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Macapá-AP
2017
Patrícia Nogueira Ferreira
Macapá-AP
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal do Amapá
342.085
F383d Ferreira, Patrícia Nogueira.
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Prof. Me. Zacarias Alves de Araújo Neto (Orientador)
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1º Examinador
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2º Examinador
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................8
2 APONTAMENTOS SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA.......................10
2.1 Conceito de Dignidade da Pessoa Humana.........................................................................10
2.2 Reconhecimento da Dignidade Humana como Princípio Basilar.......................................16
3 A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS................................................................................................20
3.1 O Avanço nos Modelos Constitucionais. Dignidade Humana, Valor a ser seguido...........21
3.2 Do Estado Liberal de Direito ao Estado do Bem-Estar Social...........................................22
3.3 Estado Constitucional Contemporâneo: o Novo Modelo Constitucional...........................24
3.4 O Constitucionalismo Brasileiro e a Dignidade da Pessoa Humana. Da Relação Vertical a
Relação Horizontal dos Direitos Fundamentais........................................................................25
4 DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS COMO REFLEXO DA DIGNIDADE
HUMANA.................................................................................................................................28
4.1 A Ineficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas e a Doutrina do „State
Action’, nos EUA......................................................................................................................28
4.2 A Eficácia Mediata e Indireta dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas.............30
4.3 A Eficácia Imediata e Direta dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas...............31
4.4 A Sustentação da Aplicação da Dignidade da Pessoa Humana nas Relações Privadas......32
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................38
REFERÊNCIAS........................................................................................................................40
RESUMO
O trabalho aborda acerca da sustentação da aplicação da dignidade da pessoa humana nas relações privadas,
considerando as discussões teóricas e julgados de Tribunais Brasileiros, no sentido da aplicação direta daquele
princípio. Para tanto, a pesquisa foi pensada a partir das diversas relações travadas no seio social, nas quais,
muitas vezes, tem um sujeito particular que viola a dignidade humana de outro sujeito da mesma relação jurídica.
A partir disso, surge como questionamento a sustentação da aplicação da dignidade da pessoa humana nas
relações privadas. A hipótese da pesquisa surge quando se constata que a imperatividade do princípio da
dignidade humana, posta na CRFB, de 1988, é tão intensa que vincula o Poder Público e os particulares à sua
observância. Para isso, o trabalho se valeu de uma abordagem qualitativa com enfoque interpretativo e
compreensivo, ambos pautados em levantamento bibliográfico e em pesquisa documental. Assim, partindo em
linhas gerais sobre discussões teóricas e julgados dos Tribunais Brasileiros que sustentam a incidência direta
daquele princípio nas relações privadas, os resultados mostram-se positivos, pois devido ao inequívoco contraste
que possui a sociedade brasileira, com forte disparidade econômica e social, os direitos conquistados pelos
indivíduos devem ser respeitados em todos os meios de relação, seja ela pública ou privada, pois ao contrário
disso, a dignidade humana se encontrará fortemente ameaçada.
The paper deals with the sustainability of the application of the dignity of the human person in private relations,
considering the theoretical discussions and judgments of the Brazilian Courts, in the sense of direct application
of that principle. For this, the research was thought from the diverse relationships locked in the social sphere, in
which, often, it has a particular subject that violates the human dignity of another subject of the same legal
relation. From this, the question of sustaining the application of the dignity of the human person in private
relations arises as a question. The hypothesis of the research arises when it is verified that the imperative nature
of the principle of human dignity, put in the 1988 CRFB, is so intense that it binds the Public Power and
individuals to its observance. For this, the work was based on a qualitative approach with an interpretative and
comprehensive approach, both based on bibliographical research and documental research. Thus, starting from
the theoretical discussions and judgments of the Brazilian Courts that support the direct incidence of that
principle in private relations, the results are positive, because due to the unequivocal contrast between Brazilian
society and a strong economic and social disparity, The rights conquered by individuals must be respected in all
means of relation, be it public or private, because human dignity, on the other hand, will be strongly threatened.
1 INTRODUÇÃO
Em virtude das diversas relações que são travadas no seio social por sujeitos
particulares ligadas às fortes influências de poderes sociais e econômicos, que um dos polos,
geralmente, o que possui maior barganha, desrespeita um atributo intrínseco do ser humano
que é a sua dignidade. Neste cenário, sob influência da intangibilidade do princípio da
dignidade humana, que ganhou status de valor supremo em disposições jurídicas
internacionais, como a Declaração Universal do Direitos do Homem de 1948 e a Carta da
Organização das Nações Unidas (ONU), de 1945, após o terror da Segunda Guerra Mundial, e
nas Constituições Democráticas, a exemplo da Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB), de 1988, que este trabalho, com supedâneo na doutrina alemã que elaborou teorias
para aplicação direta dos direitos nas relações privadas, discutirá sobre a sustentação da
aplicação da dignidade da pessoa humana nestas relações.
O trabalho foi pensado a partir de várias ofensas ao princípio da dignidade humana
praticadas por sujeitos particulares a outros particulares, que embora se encontrem na mesma
arquitetura jurídica, o forte poder social de uns, notadamente marcado pelas disparidades
econômicas, ressalta a sua posição no que se conhece por relações horizontais. Nessa
perspectiva, a pesquisa discute acerca da aplicação da dignidade da pessoa humana também
para as relações privadas, nas quais se nota que é no contexto social particular que alguns
indivíduos violam a dignidade do outro.
Tendo em vista o ambiente apresentado, busca-se responder ao problema científico:
qual a sustentação da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações
privadas?
Assim, surge a seguinte hipótese deste trabalho: a imperatividade do princípio da
dignidade humana posta na CRFB, de 1988, é tão intensa que vincula o Poder Público e os
particulares à sua observância.
O objetivo geral é demonstrar as discussões teóricas e julgados de Tribunais
Brasileiros que sustentam a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana nas
relações que têm como polos contrapostos sujeitos privados. Já quanto aos objetivos
específicos, serão apresentados: os apontamentos sobre o princípio da dignidade humana; a
influência daquele princípio na construção dos direitos fundamentais e; direitos fundamentais
aplicados como reflexo da dignidade humana.
10
Para isso, o trabalho segue uma abordagem qualitativa com enfoque interpretativo e
compreensivo, ambos pautados em levantamento bibliográfico e em pesquisa documental.
Dentre vários autores explorados neste trabalho, surgem como principais: Ingo Wolfgang
Sarlet, Daniel Sarmento, Luís Roberto Barroso e Carmem Lúcia Antunes Rocha.
A pesquisa está estruturada em três capítulos. No primeiro, trabalhou-se, a partir da
análise de algumas dimensões, sobre o conceito de dignidade humana e a sua posição como
status de valor supremo das Constituições Democráticas de Direito. No segundo capítulo,
abordou-se a construção dos direitos fundamentais, cuja influência decorreu do princípio da
dignidade humana. Assim, trabalhou-se os avanços dos modelos constitucionais, nos quais,
tinham e têm a dignidade humana como extensor dos direitos fundamentais. E no terceiro
capítulo, foi apresentado as teorias que negam e aceitam a aplicação direta nas relações
privadas. E, ainda a apresentação de julgados brasileiros e discussões teóricas a respeito da
aplicação da dignidade humana nessas relações.
A questão enfrentada na pesquisa, de início, foi a dificuldade em reunir acervo
doutrinário, justamente, no que tange ao princípio da dignidade da pessoa humana, visto que
as discussões em torno da aplicação direta daquele em ambientes privados, ainda são
incipientes. Mas no que tange aos julgados de Tribunais brasileiros, a aplicação do princípio
da dignidade humana nas relações privadas, vem sendo mais ressaltada, pois observa-se que
por ser o núcleo do ordenamento jurídico sua incidência deve se expandir também naqueles
ambientes. Assim, a pesquisa objetiva provocar reflexões teóricas acerca da necessidade de
sua aplicação para as relações particulares, visto que nesse ambiente, a sua violação também é
praticada.
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1
Quando trata das dimensões, refere-se à complexidade da própria pessoa humana e no meio no qual
desenvolve sua personalidade, e além disso, que a noção de dignidade da pessoa humana integra um conjunto de
fundamentos e uma série de manifestações.
2
Sobre este ponto, tratar-se-á em tópico apartado.
12
Válidas são as contribuições de Patrícia Mattos (2016) para a dimensão ora tratada. A
autora aborda acerca dos estudos de Axel Honneth, no qual tem como enfoque a teoria do
reconhecimento presente nos primeiros trabalhos de Hegel, denominados trabalhos da
juventude de Jena. De acordo com Mattos (2016), Honneth acredita que os trabalhos do
jovem Hegel continham insights importantes, mas que não foram desenvolvidos em seus
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3
Sobre este ponto, tratar-se-á na próxima dimensão de dignidade humana trazida pelo autor, tomando como
referência a doutrina de Dworkin.
14
Afirma que Dworkin parte do pressuposto de que a dignidade possui tanto uma voz
ativa quanto uma voz passiva e que ambas se encontram conectadas. Encontrando, assim, no
valor intrínseco da vida humana, de todo e qualquer ser humano, a explicação para o fato de
que mesmo aquele que já não possui a consciência da própria dignidade merece ter a sua
dignidade considerada e respeitada (SARLET, 2009).
Partindo principalmente4 da doutrina de Ronald Dworkin que Sarlet (2009) apresenta a
dimensão dúplice de dignidade, apontando para uma paralela e conexa dimensão defensiva e
prestacional. Portanto constata que a dignidade é simultaneamente limite e tarefa dos poderes
estatais, e ainda também da comunidade em geral.
Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser
conduzida a condição de mero objeto da ação própria de terceiros, mas
também o fato de que a dignidade gera direitos fundamentais (negativos)
contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da
previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa
humana, dela decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos
estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe
também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e
promoção (SARLET, 2009, p 32).
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4
Assume relevância, dentre outros, nos estudos da dimensão da dignidade como limite e como tarefa: a dupla
dimensão negativa e prestacional da dignidade- os apontamentos de Dieter Grimm apud Sarlet (2009). Para ele a
dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma
autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidades, ainda quando esta autonomia lhe faltar, mesmo assim
deverá sua dignidade ser respeitada pela sua condição humana.
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Vale mencionar que, de acordo com o autor, tal fórmula fornece, ao menos, um
caminho a ser trilhado, pois ao longo do tempo, deu suporte à doutrina e à jurisprudência para
identificar uma série de posições que integram a noção de dignidade da pessoa humana e que
com isso, reclamam a proteção pela ordem jurídica (SARLET, 2009).
Consoante se verifica da fórmula minimalista do homem-instrumento é que onde não
houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, ou seja, quando não
houver o mínimo de condições para uma existência digna, onde não houver limitação do
poder, onde não houver liberdade e autonomia, enfim, onde uma série de garantias e direitos
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente protegidos, não haverá lugar para se
falar de dignidade da pessoa humana e, portanto, a pessoa poderá não passar de mero
instrumento, objeto de arbítrios e injustiças (SARLET, 2009)
Com efeito, verifica-se que também para a ordem jurídico constitucional a concepção
do homem-objeto, com todas as suas nuances que devem ser extraídas, constitui, de acordo
com Sarlet (2009), justamente a antítese da dignidade da pessoa humana, apesar de que não
poderá ser analisada somente no sentido negativo, ou seja, na verificação da exclusão de atos
desumanos e degradantes, pois estaria, a restringir, por muito, o âmbito da proteção da
dignidade e, portanto, necessária a sua concretização por meio de outros princípios e direitos
fundamentais, que contemplem tanto o sentido negativo como o sentido positivo.
Neste sentido, consoante entendimento de Sarlet (2009), tem-se o delicado problema
de um conceito minimalista ou maximalista de dignidade que se encontra subjacente na
concepção desenvolvida por Boaventura Santos. Santos apud Sarlet (2009), a fim de ampliar
ao máximo a consciência da amplitude mútua entre diversas culturas por meio do diálogo,
sugere o que chama de hermenêutica diatópica.
Desse modo, sustenta que o conceito de direitos humanos e a própria noção de
dignidade da pessoa assentam num conjunto de pressuposto tipicamente ocidentais, mas que
segundo ele, em verdade, todas as culturas possuem. Apesar de que nem todas essas culturas a
concebam em termos de direitos humanos. De tal sorte que se impõe o estabelecimento de um
diálogo intercultural, com a finalidade de troca permanente de culturas e saberes, viabilizada
pela aplicação de uma hermenêutica diatópica (SARLET, 2009).
Por toda a exposição acerca das dimensões sobre dignidade da pessoa humana é que se
chega à conceituação jurídica desenvolvida pelo autor, a seguir:
A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
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5
Carmen Lúcia Antunes Rocha. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, texto
mimeografado, em palestra proferida na XVII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de
Janeiro, 29 de agosto a 2 de setembro de 1999.
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Corroborando com o posicionamento acima, Sarlet (2009), cita como exemplo o art.
151, inc. III da Constituição de Weimar, onde tratava acerca da dignidade humana,
disciplinando assim, que a atividade econômica deve corresponder aos princípios da justiça,
com vista a assegurar uma existência humana digna para todos. Nesses limites, assegura-se a
liberdade econômica dos indivíduos.
Barroso (2010) ao lecionar sobre a trajetória da dignidade humana no século XX,
ensina que ela se tornou um objetivo político, almejado tanto pelo Estado como pela
sociedade e, que houve uma transposição gradativa para a seara jurídica, tudo em razão de
dois movimentos. Destaca o autor, como primeiro movimento o surgimento de uma cultura
pós-positivista, e o segundo consistente na inclusão da dignidade da pessoa humana em
diferentes diplomas jurídicos.
Desse modo, conforme a doutrina pós-positivista, busca-se ir além da legalidade
estrita, sem menosprezar o direito posto, procurando-se compreender uma leitura moral da
Constituição e das Leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas, onde enxergava a mera
formulação de opiniões pessoais insuscetíveis de controle. (BARROSO, 2013).
No que tange a sua inclusão em pactos internacionais, foi somente após a Segunda
Guerra Mundial que a dignidade humana se tornou um dos grandes consensos éticos do
mundo ocidental, materializando-se em importantes diplomas nacionais e internacionais6.
(BARROSO, 2013).
Corroborando a lição exposta acima, no que tange ao reconhecimento nos sistemas
constitucionais positivos como fundamento e ainda concebendo a dignidade humana com
significado amplo, tendo o homem valor em si mesmo, este deu-se como reação contra
inaceitáveis excessos de ideologia nazista7, que cunhou a ideia de categorias diferentes de
homens, com direitos e condições absolutamente distintas. As formulações jurídicas após a
Segunda Guerra Mundial passam a ser embasadas pela dignidade da pessoa humana,
tornando-se valor caro sobre qualquer outra ideia e acentua-se como valor supremo (ROCHA,
1999).
No mesmo sentido, é a contribuição de Marcelo Novelino (2014), onde explica que
com o final da Segunda Guerra Mundial surge o neoconstitucionalismo. Tal termo denomina
o que se conhece por Constitucionalismo Contemporâneo, robustece e eleva o princípio da
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6
Surgem como principais documentos no plano internacional a Carta da ONU de 1945 e a Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948.
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Conforme Ingo Sarlet, o holocausto vivido na Segunda Guerra Mundial fez com que surgisse importantes
diplomas nacionais. Na Alemanha, por exemplo, o surgimento da Lei Fundamental de Bonn de 1949,
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dignidade da pessoa humana a um valor axiológico atingindo status de valor supremo nas
Constituições.
Em que pese os perfis do novo modelo Constitucional adotado pelos Estados
Democráticos, Daniel Sarmento (2010) ressalta como uma das principais características do
Direito Constitucional Contemporâneo, a proeminência atribuída aos princípios, como
reconhecimento da sua força normativa.
Neste diapasão, a dignidade humana consagra e unifica todo o sistema de direitos
fundamentais, como bem elucidou Sarmento (2010), a dignidade se torna o âmago do sistema
constitucional, que irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, ainda
segundo o autor, a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante da ordem
jurídica, alicerçando o direito positivo sobre profundas bases éticas.
Com isso, segundo os apontamentos feitos por Rocha (1999), a constitucionalização
do princípio da dignidade da pessoa humana, altera toda a construção jurídica, visto que tal
princípio delineia toda a elaboração do Direito, já que se torna elemento fundamental da
ordem constitucional e posta como matriz do sistema. Dessa maneira, a dignidade da pessoa
humana é havida como superprincípio constitucional.
Posto isso, para robustecer as contribuições dos autores citados, traz-se para melhor
compreensão acerca do tema, o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948, que assim disciplina “Art. 1º Todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade”.
No cenário nacional, sendo tema inédito8, a dignidade humana tem tratamento
explícito logo no artigo 1º inc. III da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB),
de 1988, erigida como fundamento da República, dessa maneira, assim dispõe:
“Art.1º A República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como
fundamentos: [...] III- a dignidade da pessoa humana”.
Segundo os apontamentos feitos por Rocha (1999), ao referir-se sobre a recepção feita
pela Lei Maior Brasileira, no que toca a dignidade humana como fundamento, afirma que,
dessa maneira, é posta como fundamento da própria organização política do Estado
Democrático de Direito, pois existe para o homem, a fim de assegurar condições políticas,
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Conforme Rocha (1999), o tema sobre dignidade da pessoa humana é tratado pela primeira vez na Carta Magna
de 1988, já que nos textos constitucionais que a antecederam não havia nenhuma disciplina acerca daquele
princípio.
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sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins. Complementa ainda
que, o homem é o fim em si mesmo, ou seja, como sujeito de dignidade, de razão digna e
supremamente posto acima de todos os bens e coisa, inclusive do próprio Estado.
Dessa maneira, ao erigir o princípio da dignidade da pessoa humana como valor
fundante e robustecido como valor axiológico, Rocha (1999, [s. p]) afirma o seguinte: “aquele
princípio se converteu, pois, no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana
estampado nos direitos fundamentais acolhidos e assegurados na forma posta no sistema
constitucional”.
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No que toca as várias acepções que a dignidade humana se apresenta, dentre as quais,
a carga valorativa que carrega, isto é, pela dimensão axiológica de dignidade, para Sarmento
(2010), é nesse plano ligado a ideia de justo e bom, que a dignidade humana se torna razão
moral dos direitos fundamentais.
Tal plano ético fez com que a dignidade humana, logo após a Segunda Guerra
Mundial, passasse a ser positivada em diversos documentos nacionais, como a Constituição
da Alemanha, do Brasil9, e, documentos internacionais, como a Carta da ONU de 1945,
Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, tornando-se valor fundamental, que
serve tanto como justificação moral como também fundamento normativo para os direitos
fundamentais (BARROSO, 2010).
Assim, a dignidade humana traduz-se num feixe de garantias e direitos fundamentais
que cabe a cada indivíduo. Como afirma Sarlet (2006), a dignidade humana, designadamente
na sua conexão com os direitos fundamentais, toma-se como sua função. Portanto, critério
para a construção de conceito materialmente aberto de direitos fundamentais na ordem
constitucional brasileira.
A fonte fática para a entronização da dignidade humana e a consequente garantia dos
direitos fundamentais foi justamente as reações contra a inaceitável ideologia nazista que,
cunhava o raciocínio de que havia categorias diferenciadas de homens, colocando aqueles que
não fossem considerados raça pura a mercê do seu direito de viver, visto que, cunhava-se a
consciência de que somente a raça ariana deveria existir. Esse pensamento que prevalecia na
Alemanha nazista não corroborava com a ideia de dignidade humana que hoje é concebida, na
qual assegura a todos igualdade de direitos, inviolabilidade da isonomia, da vida, da liberdade,
da integridade física e moral, além de outros direitos fundamentais (ROCHA, 1999).
Assim, entende-se a dignidade humana uma conquista da razão ético-jurídica
(RIZZATO NUNES, 2010). Nesse passo, importante para que se promova a proteção da
dignidade da pessoa humana, a observação do princípio da proporcionalidade.
Consoante Nunes (2010), o princípio da dignidade humana quando em colisão com
outros princípios fundamentais, deve ser analisado e ponderado. Diante disso, surge a
necessidade de ponderar qual princípio deve prevalecer, já que os princípios são normas
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A respeito desta constituição, tratar-se-á algumas considerações no tópico „o constitucionalismo brasileiro‟,
deste capítulo.
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interpretativas, que consagram valores ou indicam fins a serem observados, sem, contudo,
indicar um comportamento específico. O princípio da proporcionalidade surge, nesse
contexto, como verdadeiro guia de instrumento para o intérprete.
A proporcionalidade também é princípio fundamental natural de qualquer sistema
jurídico que garanta os direitos fundamentais, haja vista, que orienta a aplicação da dignidade
da pessoa humana. Desse modo, mostra-se como solucionador de colisão de princípios. Para
isso, o princípio da proporcionalidade se apresenta em três aspectos: o primeiro é a
adequação, na qual o fim que se pretende chegar tem que ser útil e conforme as pretensões
deduzidas. O segundo é a exigibilidade, na qual escolhe-se o meio mais brando, dentre os
meios que se apresentam disponíveis, para que se preserve ao máximo os valores que são
tutelados. E, o terceiro é o da proporcionalidade em sentido estrito, na qual busca o emprego
do meio que se mostra mais vantajoso para o alcance do princípio prevalecente (NUNES,
2010).
Cabe ainda, a observação feita por Sarmento (2010), no que toca o princípio da
dignidade da pessoa humana como extensor dos direitos fundamentais. Segundo o autor, a
dignidade da pessoa humana nutre e perpassa todos os direitos fundamentais que, em qualquer
medida, seja em maior ou menor, podem ser declarados concretizações ou exteriorizações da
dignidade. E ainda, o princípio em comento, executa trabalho relevante na revelação de novos
direitos, que poderão ser exigidos quando se verificar que determinada prestação positiva ou
negativa revela-se vital para a garantia da vida humana com dignidade
3.1 O Avanço nos Modelos Constitucionais. Dignidade Humana, Valor a ser Seguido
Mister se faz, em linhas gerais, apresentar as principais bases assentadas nos modelos
políticos que antecederam o atual modelo Constitucional. Segundo a lição de Barroso (2013),
o Constitucionalismo Contemporâneo, na forma que hoje é estabelecido, teve uma gradual
transição.
Deste modo, o Estado liberal, que se pautando em uma ação abstencionista das
liberdades individuais, e que foi concebido através de lutas e reinvindicações, dá lugar a um
Estado Social de Direito, voltado para uma ação positiva por parte do Estado (NOVELINO,
2014).
Não obstante, segundo Barroso (2013), com os avanços no seio da sociedade, o
Estado Social de Direito ensejou que um novo modelo político fosse estabelecido, este
sedimentado nos valores principiológicos, interpretando as leis em conformidade com uma
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Segundo Novelino (2014), os atos intoleráveis provocados pela Coroa Inglesa motivaram a instauração da
Revolução Americana. As então colônias estimularam uma comissão para a elaboração da Declaração de
Independência, sendo Thomas Jefferson o principal redator, assinada em 1776.
11
A Revolução Francesa, de 1789, foi fruto da opressão imposta à classe plebeia. Visava o declínio do modelo
aristotélico e instituir um Estado pautado sobre o lema „liberdade, igualdade e fraternidade‟(NOVELINO, 2014).
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Nesse julgamento, conforme Rodrigo Brandão (2015), a Suprema Corte norte-americana assentou a ideia de
controle difuso de constitucionalidade. O caso envolvia a diplomação para cargo de juiz de paz, que não fora
concedido a Willian Marbury, pelo então secretário de justiça, James Madison. Naturalmente Marbury impetrou
writ of mandamus para ter garantido seu direito. No entanto, o ponto em discussão pela Suprema Corte norte-
americana era saber de quem a competência para determinar a apreciação do writ of mandamus, se era da lei
(seção 13 do Judiciary Act, de 1789) que disciplinava a apreciação da matéria ou, se era da Constituição de
1787, que não fixou tal competência, deixando um grande conflito de normas. Desse modo, ficou assentado, que
quando houver conflitos de normas, entre a aplicação de uma lei em um caso concreto e a Constituição, deverá
prevalecer a Constituição, por ser hierarquicamente superior.
25
que o Estado corrigisse as fissuras sociais e desigualdades econômicas, através de uma ação
prestacional.
Em razão dessas crises, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, não se
esperava apenas que o Estado se abstivesse de interferir na esfera individual e privada das
pessoas, esperava-se também, ao menos idealmente, que se tornasse instrumento de ações
positivas, da sociedade para combater a injustiça social e conter o poder abusivo do capital
(BARROSO, 2013).
Desse modo, Novelino (2014) enfatiza que o liberalismo foi impotente diante das
demandas sociais que abalaram o século XIX, determinando uma nova etapa do
constitucionalismo, o Estado Social também chamado de Bem-Estar Social, que além de
promover a paz, a segurança e a justiça, passa a promover o bem comum.
Assim, surgiram a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de
1919, que trouxeram em seu texto um ideal de igualdade material e de direitos prestacionais.
Contudo, em razão das atrocidades cometidas pela Segunda Guerra Mundial, barbárie
que foi justificada pelo manto do positivismo, no qual buscava a objetividade científica,
equiparando o direito à lei, afastando-se da filosofia e de discussões como legitimidade e
justiça, ensejou mais tarde um novo modelo de constituição, pautado na revalorização da
razão prática, na teoria da justiça e na legitimação da democracia, buscando ir além da
legalidade estrita e compreender uma leitura moral da Constituição e das Leis (BARROSO,
2013).
Nesses termos, surge o Estado Constitucional de Direito, subordinando a lei à uma
Constituição rígida, não só impondo limites ao legislador e ao administrador, mas lhe
determinando a sua atuação. Cria-se uma nova percepção da Constituição e de seu papel na
interpretação jurídica em geral, com ideias e mudanças de paradigmas que mobilizaram as
doutrinas e jurisprudência, em vários países (BARROSO, 2013).
como valor fonte do direito. Nessa toada, o rompimento da dignidade humana, no transtorno
da guerra, fez emergir, ao final dela, a necessidade de reconstruir os direitos humanos, para
que sirva de referência ética e aproxime o direito da moral.
Corroborando o enfoque acima, Barroso (2013) explica que o final da Segunda Guerra
Mundial fez com que o mundo ocidental discutisse acerca da dignidade da pessoa humana.
Desse modo, tornou-se um dos grandes consensos éticos mundial, na medida em que foi
sendo materializada em Declarações de Direitos, Convenções Internacionais e nas
Constituições.
Assim, materializando-se naqueles documentos jurídicos, a dignidade da pessoa
humana tornava-se um valor fundamental, sendo erguida como princípio jurídico de status
Constitucional, constituindo parte do conteúdo dos direitos fundamentais (BARROSO, 2013).
Importante lembrar, conforme o magistério de Barroso (2013), que o novo modelo
constitucional é marcado de forma profunda sob três mudanças de paradigmas. Segundo o
autor, no plano teórico, surgem três grandes transformações no que toca a nova aplicação do
direito constitucional que são: o reconhecimento da força normativa da Constituição13; a
expansão da jurisdição constitucional e; a reelaboração nas doutrinas para uma nova
interpretação da Constituição.
Em que pese as principais alusões ao desenvolvimento do novo modelo constitucional
na Europa, ao fim da Segunda Guerra Mundial, Barroso (2013) explica que a primeira
principal referência surgiu na Alemanha, com a Lei Fundamental de Bonn, de 1949,
sobretudo, após a instalação do Tribunal Constitucional Federal, em 1951. Já no que tange a
segunda principal referência, o autor lembra a Constituição da Itália, de 1947 e, logo após a
instalação da Corte Constitucional, em 1956.
A Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, foi a primeira Constituição que acolheu a
dignidade humana como princípio fundamental encontrada logo no seu artigo de abertura.
Assim, dispõe o art. 1º da LF, de 1949: “A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as
autoridades públicas têm o dever de a respeitar e proteger” (ROCHA, 1999 [s.p]).
No que tange ao Brasil, a dignidade da pessoa humana aparece pela primeira vez na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Barroso (2013), explica que essa
Constituição promove, de maneira bem-sucedida, a travessia de um regime autoritário, na
qual até pouco tempo o Brasil foi palco.
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Vale observar que a constituição norte-americana, de 1787, já garantia a supremacia da constituição. Ademais,
em 1789, surge o Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
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Tal constituição nasce do movimento nacional de repúdio ao Estado Novo de 1937, que sujeitava a nação a
uma ditadura pessoal de inspiração nazista da Alemanha e fascista da Itália. Tal constituição foi promulgada no
Brasil logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.
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4.1 A Ineficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas e a doutrina do ‘State
Action’, nos EUA.
Daniel Sarmento (2010), leciona que a teoria do State Action, surgida nos Estados
Unidos, nega a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Esta
teoria, segundo o autor, é praticamente um axioma do direito constitucional norte-americano,
quase que universalmente aceito tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência.
No que tange a sustentação da tese naquele país, dá-se sobretudo, pelo argumento
liberal, uma vez que a Constituição Estadunidense de 1787, ao estabelecer os direitos
fundamentais previstos no Bill of Rights, de 168915, vincula apenas os Poderes Públicos, com
exceção da 13ª Emenda, que vincula os indivíduos privados, proibindo a escravidão.
Ademais, invoca-se, o argumento da autonomia privada, onde a liberdade individual estaria
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Dispõe, assim, segundo Sarmento (2010), que o Bill of Rights é uma Carta de Direitos que disciplinava os
direitos individuais dos cidadãos e restringia o poder dos governantes. Foi criada e aprovada pelo Parlamento da
Inglaterra em 1689, após a destituição do rei Jaime II promovida pela Revolução Gloriosa, em 1688, sucedendo
ao trono Guilherme de Orange.
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530 U. S. 640 (2000). Em New Jersey, havia uma lei Estadual disciplinando a proibição de qualquer
discriminação contra homossexuais. No entanto, ao descobrir a orientação sexual de um membro da Boy Scouts
(organização privada de escoteiros), a organização resolveu expulsa-lo da entidade. O jovem ingressou com uma
ação judicial questionando o ato, fundamentando-se na referida lei estadual antidiscriminatória, mas a
inconstitucionalidade da norma foi arguida, chegando o caso à Suprema Corte. O julgado afirmou que a
aplicação da lei estadual no caso violava a liberdade de associação, por obrigar que um grupo ligado por valores
comuns – dentre os quais a rejeição ao homossexualismo – fosse integrado por pessoa indesejada. Desse modo,
não teve êxito o membro da associação ao expressar sua orientação sexual e continuar membro da entidade.
(SARMENTO, [s.d])
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4.2 A Eficácia Mediata e Indireta dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas
Apesar dos apontamentos acima, na doutrina brasileira, a tese da Eficácia Mediata dos
direitos fundamentais é francamente minoritária, uma vez que os tribunais brasileiros e a
maioria da doutrina vêm adotando a tese da Eficácia Imediata dos direitos fundamentais
(SARMENTO [s. d]).
4.3 A Eficácia Imediata e Direta dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas
Esta teoria proposta, inicialmente pelo alemão Hans Carl Nipperdey, em meados da
década de 1950 e, mais tarde, resgatada e trabalhada pelo também alemão Walter Leisner, foi
elaborada para refutar os argumentos que a teoria da Eficácia Mediata defendia.
(SARMENTO [s. d]).
De acordo com Nipperdey apud Sarmento [s. d.], apesar de alguns direitos
fundamentais estarem presentes na Constituição Alemã e vincular apenas o Estado, outros,
pela sua natureza, podem ser invocados diretamente nas relações privadas,
independentemente de qualquer mediação por parte do legislador, revestindo-se de
oponibilidade erga omnes. Seu argumento se apoia na constatação de que os perigos que
ameaçam os direitos fundamentais no mundo contemporâneo não provêm apenas do Estado,
mas também dos poderes sociais e de terceiros em geral.
A teoria também foi reforçada pelo alemão Walter Leisner, que sustenta a concepção
de uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, uma vez que, os direitos
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fundamentais, por constituírem normas que expressam valores aplicáveis para toda a ordem
jurídica, pois, decorrente do princípio da unidade da ordem jurídica e ainda em virtude do
postulado da força normativa da Constituição, não poderia ensejar que o Direito Privado
viesse a formar uma espécie de gueto a margem da Constituição. Desse modo, não deveria
haver uma vinculação apenas do poder público aos direitos fundamentais (SARLET, 2005).
Para Masson (2016), falar desta teoria, seria, portanto, dispensar qualquer mediação,
seja por parte do legislador (que não mais precisaria criar lei que serviria de “ponte” entre os
particulares e a observância dos dispositivos constitucionais), seja por parte do órgão judicial
(ao interpretar a norma de direito privado a luz da constituição).
Nessa toada, Sarmento (2010), compreende que o princípio da dignidade da pessoa
humana sendo o núcleo do ordenamento jurídico e, portanto, legitimador e condicionador do
direito positivado, justifica a aplicação direta nas relações entre os particulares, pois se
rechaçar esse modo de incidência e condicionar a garantia da dignidade humana à
interpretação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados do Direito Privado, ou
ainda, condicionando à vontade do legislador, significaria abrir espaço para, diante de
omissões legislativas, o comprometimento da proteção da dignidade do ser humano.
Assim, conforme Masson (2016), para a teoria da eficácia Direta, os direitos
fundamentais estariam aptos a vincular de modo imediato os agentes particulares, sendo
desnecessária a intermediação legislativa.
Cabe relembrar, conforme Sarlet (2006), que a dignidade humana não se trata de um
direito fundamental a ser conquistado, pois sendo uma qualidade intrínseca da pessoa
humana, não poderá ser ela em si concedida pelo ordenamento jurídico, isto é, a dignidade
humana é anterior a qualquer ato e já nasce com a pessoa humana.
Feito isso, a dignidade humana, sendo intrínseca a qualquer ser humano, porque este é
dotado de valor, tem sido, em muitos casos, principalmente, pelo fator da desigualdade
econômica, desrespeitada. Geralmente, as relações travadas entre os particulares não são de
paridade, pois, mesmo que estes estejam, em tese, em uma mesma posição de hierarquia,
diferente do Estado, que está hierarquicamente superior ao indivíduo, muitas vezes o poder
que provem de indivíduos particulares, com forte influência sobre os demais indivíduos, abala
a dignidade humana destes. E é nesse sentido que Sarlet (2012), sustenta aplicação de uma
eficácia direta nas relações privadas, pois diferentemente do Estado clássico e liberal de
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direito17, no Estado Social, não foi apenas o Estado que ampliou seus poderes, mas também a
sociedade que detém de poder social e econômico e, sendo, pois no âmbito da sociedade que
as liberdades se encontram particularmente ameaçadas.
Masson (2016), ao se posicionar sobre o assunto, aduz que é inequívoca a incidência
dos preceitos fundamentais nas relações entre os particulares, afinal, deve-se ter em mente que
as opressões aos indivíduos não provêm apenas do Estado, mas que da mesma forma, outros
particulares se fazem opressores.
Segundo Sarmento (2010), a dignidade humana por ser princípio consagrador da
República Federativa do Brasil e, que delineia toda a ordem jurídica dos direitos
fundamentais, representa a essência da ordem constitucional. Com isso, irradia seus efeitos
sobre todo o sistema jurídico e prescreve não somente os atos estatais, como também todas e
quaisquer formas de relações privadas que se evoluem no âmbito da sociedade civil.
Do mesmo modo, de acordo com Sarlet (2006), a própria eficácia dos direitos
fundamentais nas relações entre os indivíduos particulares tem detectado importante
fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, sustentando-se que aqueles direitos
vinculam também diretamente os particulares nas relações entre si, em função de um
fundamento maior que é a dignidade humana do particular.
Ademais, o autor lembra a frase citada pelo o alemão Jörg Neuner, “não importa de
quem é a bota que desferiu o chute no rosto do ofendido”, para afirmar a eficácia vinculante
dos particulares, no que tange a aplicação da dignidade humana (SARLET, 2006, p.112 e
113).
Nesse sentido, ao se verificar a incidência da aplicação direta da dignidade humana
também no âmbito das relações privadas, os tribunais brasileiros vêm tratando sobre o tema.
São, portanto, incidências do princípio em comento nas relações que o indivíduo trata com
outros sujeitos particulares.
Isto posto, segue parte do teor do julgamento realizado pela 12ª Turma do Tribunal
Regional do Trabalho de São Paulo (TRT/SP), no Processo nº 0002197-66.2012.5.02.0311,
de relatoria do Desembargador Marcelo Freire Gonçalves, com data em 11 de junho de 2015,
publicado em 19 de junho de 2015:
RECURSO ORDINÁRIO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. VEDAÇÃO A DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EFICÁCIA
HORIZONTAL DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. O
postulado da dignidade da pessoa humana alçado pelo inciso III do art. 1º
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No contexto do Estado liberal, o indivíduo tinha proteção aos seus direitos fundamentais em face apenas das
ingerências do Estado, ou seja, apenas proteção dos direitos mais caros aos indivíduos numa relação de
verticalidade.
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No que tange a sua aplicação nas relações privadas, entendeu-se que negar a aplicação
dos direitos fundamentais, seria o mesmo que negar a força vinculante da constituição federal
nessas relações e sua supremacia na pirâmide das normas.
Ademais, sustentou-se que a ofensa aos direitos fundamentais não é uma exclusividade
do Estado. Nas relações entre os particulares também se verifica a agressão a direitos
fundamentais por uma das partes e, ainda, que a dignidade humana é pressuposto essencial
para a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a
tratamento discriminatório e arbitrário.
De acordo com Judith Martins apud Sarlet (2006), a dignidade da pessoa humana, por
ser uma autêntica fonte de valor que justifica e anima o ordenamento jurídico, e dessa
maneira, o sustentáculo para a observância dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal
Federal vem entendendo sua incidência no âmbito das relações privadas.
No Recurso Extraordinário 201. 819-8/RJ, julgado pela Segunda Turma, cuja Relatora
foi a Ministra Ellen Gracie, data do julgamento 11 de outubro de 2005, publicado no Diário
da Justiça (DJ), no dia 27 de outubro de 2006, o STF se posiciona acerca do assunto.
O julgamento a seguir, assim como os demais, corrobora toda a discussão teórica em
torno da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares, no que serve o
caso brasileiro.
Segue, assim, parte da ementa do Recurso Extraordinário (RE), no que concerne, não
especificamente ao princípio da dignidade humana, mas como leciona Sarmento (2010), que o
princípio da dignidade humana, por ser exteriorização dos direitos fundamentais, torna-se
necessário que se expanda por todas as esferas da vida humana. Desse modo, assim como o
Estado deve observar direitos dos indivíduos, as observâncias desses direitos fundamentais
também vinculam os particulares frente a outros particulares.
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO
BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM
GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO.
EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no
âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações
travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os
direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente
não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção
dos particulares em face dos poderes privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À
AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-
constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a
possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial,
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Sul que destacam a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Por conseguinte, ao recurso
foi dado provimento parcial.
Na ementa da ACJ, destacou-se que os particulares, no trato da vida civil, devem
observar as regras mínimas de respeito à dignidade da pessoa humana.
No voto do relator, destacou-se a evolução das garantias mínimas para abranger
também as relações privadas:
É cediço que o surgimento da ideia de direitos fundamentais da pessoa
humana surgiu em um contexto político de garantias mínimas do cidadão
frente ao poderio estatal. Contudo, com a evolução da hermenêutica
constitucional, a doutrina e jurisprudência pátrias atentaram para a
importância da observância desses mesmos direitos nas relações
particulares: trata-se da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (ACJ.
2006071023907/TJ-DF).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2015.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional- 4 ed. rev. ampl. e atual - Salvador:
JusPodivm, 2016.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. – 14. ed. rev.
e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.
SÓFOCLES. 496 a.C. – 406 a.C. Antígona / Sófocles; tradução de Donaldo Schüller. – Porto
Alegre: L&PM. 2006.