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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E

ATIVIDADES COMPLEMENTARES

TRADUÇÃO DE ESPANHOL-PORTUGUÊS E PORTUGUÊS-ESPANHOL

A TRADUÇÃO DO HUMOR CRÍTICO-SOCIAL NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DA MAFALDA.

Por

Aline Fernandes da Silva

Brasília

2010
UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E

ATIVIDADES COMPLEMENTARES

TRADUÇÃO DE ESPANHOL-PORTUGUÊS E PORTUGUÊS-ESPANHOL

A TRADUÇÃO DO HUMOR CRÍTICO-SOCIAL NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DA MAFALDA.

Monografia apresentada à UGF como


requisito parcial para a conclusão do
curso de pós-graduação latu sensu em
Tradução de Espanhol-Português e
Português-Espanhol

Por
Aline Fernandes da Silva

Professora orientadora
Meritxell Almarza

Brasília

2010
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM TRADUÇÃO DE ESPANHOL-
PORTUGUÊS E PORTUGUÊS-ESPANHOL

A TRADUÇÃO DO HUMOR CRÍTICO-SOCIAL NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DA MAFALDA.

Aline Fernandes da Silva R.A: 31892 _______________________________

AVALIAÇÃO

1. CONCEITO
Nota_____________ Conceito_______________

Carlos Nougué ____________________________________

Nota_____________ Conceito_______________

Meritxell Almarza ____________________________________

NOTA FINAL:_____________CONCEITO:________________

Rio de Janeiro,______de _________________de 2010.

________________________________________________________

José Luis Sánchez


RESUMO

Os estudos na área de tradução e humor, ainda são incipientes no Brasil, porém uma das áreas
que tem despertado interesse da academia é a tradução do humor. O presente estudo tem
como finalidade promover a análise de algumas histórias em quadrinhos da Mafalda,
personagem criado na década de 60, pelo cartunista argentino Quino, onde predomina o
humor crítico-social da sociedade argentina, do mundo daquela época e que faz muito sucesso
em diferentes sociedades de diferentes épocas. A proposta foi analisar comparativamente
algumas histórias em quadrinhos da Mafalda com a finalidade de identificar a existência ou
não de mecanismos especiais para a reprodução do humor do texto original para o traduzido.
Desta maneira, o método utilizado para este estudo foi o comparativo tendo como sustentação
e base para as referidas análises a Teoria do Escopo de Reiss e Vermeer e os estudos de Sírio
Possenti e Marta Rosas sobre lingüística, tradução e humor. Assim sendo, após as análises
concluiu-se que a obra Mafalda se caracteriza por seu caráter atemporal, por temáticas atuais
com as quais o leitor se identifica. Outra conclusão foi a de que o tradutor do humor deve
destinar sua fidelidade ao leitor e não ao texto original para assim garantir a manutenção do
sentido humorístico.

Palavras-chave: tradução; humor crítico-social; Mafalda.


RESUMEN

Los estudios realizados en el área de la traducción y del humor son aún incipientes en Brasil;
sin embargo, si hay un área que ha llamado la atención de los académicos es la traducción del
humor. Este estudio tiene como objetivo promover el análisis de algunas historietas de
Mafalda, un personaje creado en los años 60 por el dibujante argentino Quino, en las que
predominan el humor crítico social de la sociedad argentina y del mundo en ese periodo, así
como caló exitosamente en el resto de las sociedades en diferentes épocas. La propuesta fue
analizar comparativamente algunas historietas de Mafalda con el objetivo de identificar la
existencia o no de mecanismos especiales para la reproducción del humor presente en el texto
original para el texto traducido. De esta manera, el método utilizado para este estudio fue el
comparativo teniendo como eje para los referidos análisis la Teoría del Escopo de Reiss y
Vermeer y los estudios de Sírio Possenti y Marta Rosas sobre lingüística, traducción y humor.
Así, tras el análisis, se concluyó que la obra Mafalda se caracteriza por su carácter atemporal,
por temáticas actuales con las que el lector se identifica. Otra conclusión fue la de que el
traductor del humor debe destinar su fidelidad al lector y no al texto original para así
garantizar la manutención del sentido humorístico.

Palabras clave: traducción; humor crítico social; Mafalda.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 6

CAPÍTULO 1 – ORIGEM DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS...................... 8

1.1 Breve histórico das histórias em quadrinhos na Argentina............................... 9

1.2 A linguagem das histórias em quadrinhos........................................................... 10

CAPÍTULO 2 – MAFALDA: A HISTÓRIA EM QUADRINHOS......................... 12

2.1 Mafalda e companhia............................................................................................. 13

CAPÍTULO 3 – A TRADUÇÃO DO HUMOR......................................................... 17

3.1 A Teoria do Escopo................................................................................................ 18

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA


20
MAFALDA...................................................................................................................

CONCLUSÃO.............................................................................................................. 29

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 31
6

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a finalidade de analisar como o humor crítico-social é mantido


na tradução para o português das histórias em quadrinhos da Mafalda, personagem criada na
década de 60 pelo argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, conhecido como Quino. Para
isto, foram escolhidas como corpus desta análise algumas tiras das histórias da Mafalda
publicadas em espanhol no livro 10 Años con Mafalda da Ediciones de La Flor e suas
respectivas traduções publicadas em português no livro Toda Mafalda, da Martins Fontes,
com a finalidade de identificar a existência ou não de mecanismos especiais para a
manutenção do humor na língua de chegada. Vale ressaltar que este último livro foi traduzido
por vários profissionais da área com a revisão da tradutora Monica Stahel.

Para possibilitar uma melhor compreensão, esta análise está dividida em quatro
capítulos que serão destacados a continuação. Ao longo deste estudo são tratados assuntos
como a origem das histórias em quadrinhos, passando por um breve histórico destas histórias
na Argentina, seguindo com as características da linguagem presentes nas mesmas. Em outro
momento, trata-se da obra Mafalda, com suas características e aspectos particulares. Na
sequência, são discutidos temas acerca da tradução do humor e da Teoria do Escopo de Reiss
e Vermeer, principal arcabouço teórico desta pesquisa, tendo como desfecho a análise de
algumas histórias da obra original com suas respectivas traduções para o português.

A personagem Mafalda foi criada em um momento crítico da sociedade argentina e do


mundo e, apesar de não ter sido criada com a intenção de retratar esta situação, não demorou
muito para que suas histórias seguissem o tom crítico, inteligente e de humor ácido que se
tornaram sua marca. Além de adorada por seus compatriotas, Mafalda alcançou o sucesso em
vários países, entre eles o Brasil, onde suas histórias são lidas por pessoas de todas as idades
até hoje.

Entretanto, o humor crítico-social presente nas histórias em questão muitas vezes é de


difícil compreensão até mesmo para um argentino, porque a questão não é entender a língua
em uso (espanhol) e sim o humor inteligente e o contexto por detrás da obra. Desta maneira, a
pretensão deste estudo foi investigar como este humor inteligente é reproduzido na tradução
de maneira que a obra faça sucesso e alcance o riso em pessoas de uma sociedade diferente,
com características culturais diferentes.
7

Com esta pesquisa, poderão ser identificadas características comuns e recorrentes na


tradução do humor e suas possíveis alternativas, de maneira a contribuir com o trabalho dos
tradutores, com a ampliação do universo de possibilidades que cada um poderá dispor no
momento que se defrontar com a necessidade de traduzir enunciados humorísticos.
8

1 ORIGEM DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Antes de abordar a história em quadrinhos Mafalda cabe voltar às origens destas


histórias para assim possibilitar o entendimento desta e de outras obras presentes na
atualidade. Mafalda é uma representante deste estilo de texto diferente que consegue tratar de
todos os temas e atingir as massas com uma linguagem mais próxima de cada indivíduo,
retratando a cultura e os traços de uma sociedade.

A comunicação através de imagens remonta a época dos homens primitivos e suas


pinturas rupestres. Mas muitos estudiosos consideram que o surgimento das histórias em
quadrinhos (também conhecidas por comics) se deu nos Estados Unidos no final do século
XIX como afirma Barbosa:

Ainda que histórias ou narrativas gráficas contendo os principais elementos da


linguagem dos quadrinhos possam ser encontrados, paralelamente, em várias regiões
do mundo, é possível afirmar que o ambiente mais propício para o seu florescimento
localizou-se nos Estados Unidos do final do século XIX, quando todos os elementos
tecnológicos e sociais encontravam-se devidamente consolidados para que as
histórias em quadrinhos se transformassem em produto de consumo massivo, como
de fato ocorreu. (BARBOSA, 2004)

A princípio, as histórias em quadrinhos eram compostas por imagens e estavam


voltadas para o público infantil, mas a obra Yellow Kid do norte-americano Richard F.
Outcault uniu as imagens ao texto e como tinha sido direcionada a um jornal sensacionalista,
abriu caminho para que estas histórias passassem a ter espaço nestes meios de comunicação
de massa. Segundo Quella-Guyot:

Em alguns anos, seus heróis fizeram a volta ao mundo, impondo as séries cômicas
(por isso chamadas comics) antes de difundir as séries de aventuras por meio dos
jornais diários. Os anos 20 e 30 viram nascer a aventura sob todas as formas: ficção
científica, fantástica, expedições exóticas, histórias policiais [...] (QUELLA-
GUYOT, 1994, p. 60).

Nesta mesma época, além dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália também
foram representativos na arte das histórias em quadrinhos. O fato é que a partir de então as
imagens, unidas ao texto formando uma narrativa não pararam de crescer. Com isto estas
narrativas saíram dos limites dos jornais e passaram a ser distribuídas pelos Syndicates,
grandes organizações que tinham o papel de expandir o alcance das histórias em quadrinhos e
9

distribuí-las para outros países. Assim, houve a necessidade de padronização das histórias
para que elas alcançassem sucesso em todos os contextos.

Desde sua criação até o presente momento as histórias em quadrinhos evoluíram muito
em todos os aspectos, seja em sua estrutura, em sua temática, entre outros. Diante disto
Quella-Guyot faz uma reflexão:

Como será a história em quadrinhos do século XXI? A análise dos últimos dez anos
dá indicações, mas sem dúvida nenhuma certeza. A HQ moderna se diversificou
tanto do ponto de vista gráfico como do narrativo e temático. Ela conseguiu abordar
com talento temas contemporâneos ou propostas intimistas que antes era
considerada incapaz de evocar (QUELLA-GUYOT, 1994, p. 62).

Nos últimos anos, as histórias em quadrinhos passaram a exercer um importante papel


também junto à educação e à formação do leitor, por possuir uma linguagem acessível e
atraente aos olhares infanto-juvenil e por suas infinitas possibilidades de abordagem. Como
reflexo disto, a academia voltou seus olhares para estas histórias que vem sendo estudadas sob
vários enfoques, assim como a presente pesquisa.

1.1 Breve histórico das histórias em quadrinhos na Argentina

As histórias em quadrinhos, chamadas na Argentina de historietas ou comics,


apareceram na segunda metade do século XIX com os primeiros esboços gráficos em jornais
de sátira política com predominância de caricaturas. A partir de 1898 surgem as primeiras
histórias com características mais próximas às histórias em quadrinhos com a criação das
revistas Caras y Caretas e PBT. Porém, somente em 1912, com Viruta y Chicharrón
(SpareRibs and Gravy), de Manuel Redondo foi que a história em quadrinhos tomou sua
forma, com personagens fixos e uma história em sequência. Em 1913, foi criado e publicado
na revista Caras y Caretas o primeiro personagem verdadeiramente argentino chamado Goyo
Sarrasqueta, de Manuel Redondo, que tinha por características a crítica social. Em 1920, o
jornal La Nación passou a inserir histórias em quadrinhos em suas edições diárias, mesmo
enfrentando duras críticas por parte de seu público que colocou em julgamento a seriedade da
publicação. Em 1962, nasce das mãos do cartunista Quino a personagem que revolucionaria
as histórias em quadrinhos na Argentina e que ultrapassaria as fronteiras deste país: Mafalda
(GIUNTA, 2010).
10

1.2 A linguagem das histórias em quadrinhos

As histórias em quadrinhos possuem duas linguagens, uma verbal, composta pelo


texto escrito e outra não-verbal, que se refere às imagens. Na maioria das vezes estas duas
linguagens aparecem juntas, mas podem aparecer separadas. Sua estrutura é geralmente
composta por requadros dispostos lado a lado no sentido horizontal, que facilita e determina
sua leitura da esquerda para a direita.

A linguagem destas histórias é coloquial e está composta por símbolos, imagens,


expressões dos personagens numa rica interação com o leitor que por sua vez deve interpretá-
las. De acordo com Barbosa (2004) os elementos que compõem esta linguagem peculiar são o
requadro, o balão, o formato das letras, as onomatopéias, a gestualidade (expressões corporais
e faciais) e as metáforas visuais, como pode ser visto na seguinte tira da Mafalda:

Requadro Balões Metáforas visuais

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 61.


Gestualidade
Formato das letras

Os requadros ou quadros são os contornos dos quadrinhos e a história, as falas, as


imagens estão dentro deles, ainda que estes também possam servir como recurso narrativo. Os
balões são elementos fundamentais na expressão da linguagem verbal das histórias em
quadrinhos, pois são eles que fazem a junção da imagem com a palavra. Eles podem aparecer,
entre outros, como o balão-fala, iguais aos que aparecem no segundo, terceiro e sexto
requadro da história acima e servem para inserir uma fala do personagem; o balão com o
contorno tracejado (indica que o personagem está falando baixo); o balão que parece uma
11

nuvem (indica que o personagem está pensando) e o balão com o contorno em zig-zag (como
exemplificado no quinto requadro da história acima) que indica que o personagem está
gritando ou que a voz não vem do personagem e sim de um aparelho mecânico como um
rádio, um telefone etc.

Para reforçar esta junção de imagem e palavra temos além dos balões, as metáforas
visuais, as onomatopéias, o formato das letras e a gestualidade. Alguns destes elementos
podem ser vistos no quinto requadro da história anterior, onde se percebe que Mafalda está
exaltada porque: sua fala está dentro do balão com o contorno em zig-zag, as metáforas
visuais, neste caso, são usadas para ocultar um xingamento, as letras em determinado
momento são postas em negrito para destacar ainda mais a exaltação da personagem e o
gestual, ou seja, a postura corporal e o formato da boca de Mafalda ressaltam e formam o
conjunto capaz de transmitir ao leitor a exata sensação da personagem. A gestualidade fala
por si só e é uma característica marcante nas histórias da Mafalda.

A linguagem utilizada por Quino nas histórias da Mafalda vai de uma falsa
ingenuidade a um humor inteligente e ácido por meio de perguntas diretas, reflexões dos
personagens que na verdade são colocadas com o intuito de fazer com que o leitor faça sua
própria reflexão dos fatos, de maneira que o inconformismo da personagem passa a ser
também o do leitor. Geralmente, as histórias começam com um questionamento da
personagem, seguidas da resposta de seus pais e terminando com sua conclusão que choca
pelo excesso de maturidade. Justamente este comportamento inesperado é um fator
importante para a obtenção do sentido cômico, pois as conclusões da Mafalda são sempre algo
que quebra o considerado normal e aceitável para uma criança de sua idade, como será visto
mais adiante.
12

2 MAFALDA: A HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Mafalda, personagem de Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como


Quino, foi criada em 1963 para uma campanha publicitária da marca de eletrodomésticos
Mansfield que queria uma história com personagens com o perfil de seus consumidores, ou
seja, uma família tradicional com pai, mãe e filhos e que a letra M fosse usada para dar nome
a um dos personagens. A campanha não foi realizada e Quino, então guardou suas tiras que
após um ano foram publicadas na revista Primera Plana e a partir de então sua ascensão foi
inevitável.

A partir de 1965, as histórias passaram a ser publicadas no jornal El Mundo, com


Mafalda e seus pais como personagens. Com o passar do tempo a historieta passou a contar
com outros personagens, dando mais possibilidades ao autor para tratar de temas ainda não
explorados. Em 1966, Quino lança um livro de coletâneas das histórias da Mafalda e a partir
de então a cada ano é lançado um novo livro da menina precoce, sendo publicado o último em
1973.

Mafalda alcançou sucesso imediato e passou a ser lida por pessoas de todas as idades e
nações, pois, suas histórias foram traduzidas para 26 idiomas e para vários países. A pequena
questionadora virou um ícone da cultura argentina e até hoje suas histórias são lidas e fazem
sucesso, tornando-a imortal.

A criação desta história em quadrinhos coincidiu com um momento muito difícil para
o mundo e, sobretudo para a Argentina que vivia cercada pela pobreza, por golpes militares e
ditaduras. Assim, por meio das histórias da Mafalda, Quino conseguia não só divertir as
pessoas, mas também expor de maneira inteligente todo seu pensamento em relação à
sociedade argentina das décadas de 1960 e 1970, criticar e analisar os acontecimentos
mundiais, de forma a possibilitar que os leitores de suas histórias percebessem e refletissem
sobre vários temas de uma maneira muitas vezes sutil através dos olhares e inquietações da
menina Mafalda e de seus companheiros.

Em suas historietas foram tratados temas como a política, o papel da ONU, o


capitalismo, o papel da mulher na sociedade, a pobreza mundial, o governo, a ditadura, as
13

guerras, entre muitos outros. A idade de Mafalda e dos demais personagens (em sua maioria
crianças na faixa etária dos seis anos) não reflete seus pensamentos e inquietações. Segundo
Quino:

Ninguém nega que as histórias em quadrinhos (quando atingem certo nível de


qualidade) assumam a função de questionadoras de costumes - e Mafalda reflete as
tendências de uma juventude inquieta, que assumem aqui a forma paradoxal de
dissidência infantil, de esquema psicológico de reação aos veículos de comunicação
de massa, de urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de asma intelectual
causada pelo cogumelo atômico. Já que nossos filhos vão se tornar - por escolha
nossa - outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que
merece um personagem real. (LAVADO, 2000, p.16)

A criatividade de Quino ao tratar de alguns temas demonstra sua perspicácia diante


dos acontecimentos de sua época. A própria metáfora da sopa, alimento odiado por Mafalda e
sempre imposto por sua mãe, nada mais é que uma alusão ao sistema opressor que de uma
forma ou outra obrigava as pessoas a “engolir” o que a elas era imposto.

Como visto, no início a história contava apenas com Mafalda e seus pais, mas com o
passar do tempo e com a diversidade dos temas da época, outros personagens foram criados
por Quino. Os novos personagens serviram para dar continuidade e criatividade à história e
também para que o autor pudesse explorar outros temas e aspectos da crítica social. A seguir
será feita uma descrição de cada personagem para maior compreensão da obra.

2.1 Mafalda e companhia

Mafalda

Mafalda é uma menina de 6 anos (idade na época de sua criação) nascida em uma
típica família portenha e tem como características principais a curiosidade, a ironia e a
inteligência precoce. Ela está sempre perguntando o porquê das coisas e não se contenta com
qualquer resposta. Mafalda não aceita o mundo como está e filosofa a todo o momento
14

acreditando em um futuro melhor. Odeia a injustiça, o racismo, as armas nucleares, a guerra,


as absurdas convenções dos adultos e, mais que tudo, odeia a sopa. Por outro lado, ama os
Beatles, a democracia, a paz e os direitos humanos.

Os Pais de Mafalda

Os pais de Mafalda sempre se vêem cercados pelas perguntas de sua filha precoce, das
quais muitas vezes não sabem responder. O pai (sem nome) trabalha em um escritório e
sempre está rodeado de contas, que são sua preocupação no fim do mês. Adora as plantas, seu
carro e odeia as formigas. Raquel é a mãe de Mafalda, uma dona de casa frustrada por ter
deixado seus estudos para formar uma família, motivo pelo qual sempre é criticada por
Mafalda. Seus maiores problemas são os que não ultrapassam os limites de sua casa, ou mais
especificamente de sua cozinha. Muitas vezes os pais parecem mais infantis que Mafalda e
Guille.

Felipe

Foi o primeiro amigo de Mafalda e é o oposto de sua amiga. É inocente, tímido e


bondoso. Tem muita preguiça de ir à escola e de fazer seus deveres de casa. É um sonhador
que muitas vezes acredita que seus sonhos são reais.
15

Manolito

É um menino realista que sempre está com os pés no chão. Filho de um comerciante,
Manolito é ambicioso e está sempre tentando fazer negócios e promover o negócio de seu pai.
Assim como Felipe, ele não gosta de ir à escola. Também não estão entre suas preferências os
Beatles e Susanita.

Susanita

Susanita é amiga de Mafalda. Sua maior aspiração de vida é casar com um homem
lindo e rico e ter muitos filhos. É fútil, briguenta, invejosa, fofoqueira e só pensa em sua vida,
não se importa com a situação mundial. Não gosta de pobres, negros, de Manolito e das
reflexões de Mafalda.

Guille

É irmão de Mafalda e se parece muito com ela o que diz respeito à sua curiosidade e a
suas infinitas perguntas. Guille é uma criança muito inteligente e está sempre tentando fazer
graça para os demais que nunca riem de seus feitos. Adora rabiscar as paredes, sua chupeta on
the rocks e Brigitte Bardot.
16

Miguelito

Depois de Guille, Miguelito é o mais novo da turma. É sonhador e egoísta, sente-se o


centro do mundo e não se deixa convencer do contrário. Adora filosofar e odeia ter a idade
que tem e não ser notado.

Libertad

Libertad representa as utopias da época. Pode ser comparada à Mafalda, ainda que em
miniatura diferenciando-se por ser muito radical em seus pensamentos. Possui um
pensamento esquerdista, é intelectual e crítica. Não suporta as pessoas complicadas, as
comparações e as metáforas envolvendo seu nome. Seu sonho é ser tradutora de francês,
assim como sua mãe. O seu tamanho é proporcional ao que o seu nome representava para a
sociedade argentina na época de sua criação.
17

3 A TRADUÇÃO DO HUMOR

Já de início é possível identificar uma semelhança entre tradução e humor, tendo em


vista que, independente dos motivos, as duas áreas são carentes de estudos científicos, como
pode ser constatado na seguinte afirmação de Rosas:

Infelizmente, tratam-se ambos os campos de uma espécie de “patinhos feios” da


Academia. No caso da tradução a investigação lingüística até hoje não prosseguiu
senão de forma que deixa muito a desejar quanto ao estudo da semântica.[...] Assim,
tendo a princípio relegado a último plano aquilo que representava a chave para uma
melhor compreensão do seu objeto de estudo, a ciência da linguagem se fez por
muitos anos a despeito de um ponto cego: a hesitação em abordar o tema da
significação - crucial para uma teoria tanto da tradução quanto do humor verbal -
dentro da própria linguagem. (ROSAS,2002:16)

Os estudos na área a tradução vem crescendo nas últimas décadas e uma das áreas que
tem despertado interesse, ainda que incipiente, é a tradução do humor. Talvez por seu inerente
caráter de causar o riso, a linguagem humorística ainda não tenha atingido tanto destaque nos
estudos científicos como menciona Possenti quando diz existir “um estranho desinteresse pelo
aspecto especificamente lingüístico dos dados humorísticos” (1998, p. 22). Sobre este tema o
referido autor diz ainda que:

Se você diz a alguém que estuda piadas, o primeiro efeito que produz ainda é o riso.
É uma pena que seja assim, porque as piadas são de fato um tipo de material
altamente interessante. Por várias razões. Em primeiro lugar, as piadas são
interessantes para os estudiosos porque praticamente só há piadas sobre temas
controversos. [...] Em segundo lugar, porque piadas operam fortemente com
estereótipos. [...] Em terceiro lugar, as piadas são interessantes porque são sempre
veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não se manifestaria,
talvez, através de outras formas de coletas de dados, como entrevistas. (POSSENTI,
1998, p.25)

A questão com a qual o tradutor se depara ao traduzir um texto humorístico é a de


como possibilitar a manutenção do riso que o texto original produz também no texto
traduzido. No caso específico deste estudo presume-se que haja uma maior dificuldade na
tradução do humor, pois, nas histórias em quadrinhos da Mafalda, aparecem muitas críticas
sociais relacionadas à sociedade argentina, ou seja, como traduzir o humor específico de uma
determinada cultura para outra com a manutenção do sentido do riso. Numa certa
18

oportunidade Quino disse “As tiras da Mafalda são baseadas em tópicos argentinos, e sempre
me pergunto como é que as podem entender em outras culturas.” (QUINO apud LOUZÀN,
2009, p. 17).

O trabalho do tradutor é justamente buscar maneiras de responder ao questionamento


de Quino, ou seja, de proporcionar ao leitor do texto traduzido o mesmo sentido cômico do
original. Segundo Leibold apud Rosas (2003) a tradução do humor:

[...] requer a precisa decodificação de um discurso humorístico em seu contexto


original, sua transferência para um ambiente diferente e, muitas vezes, discrepante
em termos lingüísticos e culturais e sua reformulação em um novo enunciado que
tenha sucesso na recaptura da intenção da mensagem humorística original,
suscitando no público-alvo uma reação de prazer e divertimento equivalentes.
(LEIBOLD apud ROSAS, 2003, p. 149)

Tomando esta referência como sustentação e tendo como base a Teoria do Escopo de
Reiss e Vermeer, serão analisadas algumas histórias originais da Mafalda e suas respectivas
traduções para o português.

3.1 Teoria do Escopo

A Teoria do Escopo de Reiss e Vermeer é uma abordagem funcionalista e pragmática


iniciada em 1984 que parte do pressuposto de que:

Toda ação visa (de forma mais ou menos consciente) a um determinado objetivo e se
realiza de modo que tal objetivo possa ser alcançado da melhor forma possível na
situação correspondente. [...] A produção de um texto é uma ação que também visa a
um objetivo: que o texto “funcione” da melhor forma possível na situação e nas
condições previstas. Quando alguém traduz ou interpreta, produz um texto. A
tradução/interpretação também deve funcionar de forma ótima para a finalidade
prevista. Eis aqui o princípio fundamental de nossa teoria da translação. O que está
em jogo é a capacidade de funcionamento do translatum (o resultado da translação)
numa determinada situação, e não a transferência lingüística com a maior
“fidelidade” possível a um texto de partida (o qual pode, inclusive, ter defeitos),
concebido sempre em outras condições, para outra situação e para “usuários”
distintos dos do texto final (Reiss e Vermeer 1996, p. 5).
19

Esta teoria da finalidade/objetivo diz que o ato de traduzir deve pautar-se em seu
público-alvo e na melhor maneira de traduzir um texto de modo que sua compreensão e seu
resultado final seja o mais próximo possível do efeito causado pelo texto original em seu
público de origem, ou seja, a fidelidade é com o leitor final e não com as estruturas
lingüísticas da língua de saída. Assim sendo, o tradutor não reproduz o texto original e sim
cria um novo texto com a finalidade de alcançar o mesmo objetivo pretendido pelo o autor do
original.

Para tanto, o tradutor deve ter em mente que tanto o texto original quanto o traduzido
nascem no contexto de uma sociedade e se dirigem ao público deste contexto, assim sendo a
tradução não será uma simples transposição de palavras sinônimas e sim um trabalho de
perfeita compreensão global e multidisciplinar do que foi dito para assim reescrevê-lo com as
mesmas características. Desta maneira, Rosas diz que a tradução deve considerar a
“indissociabilidade entre o elemento lingüístico e o cultural, a função do texto traduzido e o
papel de intérprete que cabe ao tradutor”. (ROSAS, 2003, p. 134)

A decisão funcional de uma translação se divide em: decisão do escopo (o para quê)
onde é fundamental conhecer o receptor; adaptações prévias mediante a avaliação do escopo e
a realização deste onde o texto final sairá da avaliação do tradutor após todas as etapas
anteriores, o que confirma que o conhecimento lingüístico é a última etapa do processo em
sequência e em importância (ROSAS, 2003).

Ainda de acordo com Rosas, o que se pretende com a Teoria do Escopo é:

1. manter a função na ação translativa, com base na determinação do receptor final


e/ou na intuição de suas possíveis expectativas; 2. estabelecer critérios de avaliação
do que importa preservar ou alterar em cada parte do texto-fonte (definir novos
“valores”), com base principalmente na detecção do gatilho; 3. buscar alternativas
que permitam a obtenção de um efeito análogo ao que o texto (potencialmente)
provoca na língua-cultura de partida, com base nas injunções – e, é muito importante
frisar, também nas ofertas/possibilidades – da língua-cultura de chegada,
privilegiando sempre aquelas cuja oferta informativa mais se aproxime da do texto
de partida. (ROSAS, 2003, p. 149)
20

4 ANÁLISE DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA MAFALDA

A análise das histórias em quadrinhos da Mafalda foi feita por meio do método
comparativo, que tem como corpus algumas tiras escolhidas por apresentarem características
relevantes retiradas da obra 10 Años con Mafalda, da Ediciones la Flor (Buenos Aires, 2004)
e suas respectivas traduções presentes na obra Toda Mafalda, da Editora Martins Fontes (São
Paulo, 2009). A finalidade destas análises é observar como foram feitas as traduções, os
resultados finais e se existem mecanismos especiais para a tradução do humor crítico-social.
Este estudo buscou utilizar em sua maioria, histórias que tivessem um tom de crítica social,
não necessariamente específicas à sociedade argentina da época. Assim, a seguir serão
apresentadas as histórias escolhidas e suas análises, sempre seguindo a ordem de primeiro
comentar a história em quadrinhos em espanhol para depois analisar a tradução para o
português.

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 73.

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 170.

Na primeira tira, Mafalda está com uma lista telefônica e no primeiro requadro fica
evidente que o que ela vê a surpreende, pois aparece um balão de pensamento com uma
metáfora visual que indica esta reação ao leitor. Em seguida ela começa a folhear a lista e se
dá conta de que o sobrenome Pérez se repete em várias páginas até que no último requadro ela
21

pensa: Los Pérez son a la guía telefónica lo que los chinos a la población mundial. O humor
presente nesta tira se revela justo no último requadro, na comparação que Mafalda faz do
sobrenome Pérez, muito comum no mundo hispânico, com os chineses, pois naquela época a
China já era o país mais populoso do mudo.

A tradução para o português consegue manter o humor, porque o tradutor sabendo


dessa característica do sobrenome Pérez encontrou a compatibilidade ideal com o sobrenome
Silva mantendo a ideia de um sobrenome excessivamente comum. Outro detalhe pequeno,
mas que pode ser percebido é que no quarto requadro Mafalda diz ¡Y hay más! ¡Dios mío!...
que para o português foi traduzido como E ainda tem mais! Minha nossa!... O tradutor deu
mais ênfase a primeira frase ao inserir ainda e na segunda frase preferiu a expressão Minha
nossa à Meu Deus que poderia ter sido utilizada, porém são alterações que não indicam
prejuízo ao original e mantêm o riso no texto traduzido.

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 139

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 37

A tira em questão começa com Felipe dando timidamente uma flor de presente a
Mafalda que pergunta se é para ela. A alegria de Mafalda e a timidez de Felipe estão
perfeitamente demonstradas na linguagem não-verbal apresentada no primeiro requadro, de
maneira que a verbal apenas reforça as imagens. No segundo requadro Mafalda agradece e
22

segue com o amigo para guardá-la, porém ao chegar na sala (já no terceiro requadro) percebe
que tem tantas flores que terá que arrumar um lugar para mais esta. Felipe por sua vez
apresenta uma feição de quem está frustrado com sua falta de originalidade e isto se confirma
no último requadro quando ele diz: Ha sido como regalarle un terrón de azúcar a Fidel
Castro. O cômico está na mudança de sensação dos personagens, sobretudo de Felipe que
começa feliz e termina frustrado. A imagem das várias flores é o primeiro sinal desta
frustração que se confirma quando ele diz que dar as flores a Mafalda na primavera foi como
dar açúcar a Fidel Castro, presidente de Cuba que na época era grande produtora de açúcar.
Ao pensar nesta última condição para o efeito do humor da tira, conclui-se que o leitor tem
que ter um conhecimento prévio sobre a Cuba daquela época ou ser capaz de deduzir pela
lógica, ou seja, flores-primavera e azúcar-Fidel Castro. Sobre isso Possenti diz que “são
necessários tanto o conhecimento lingüístico quanto o conhecimento de mundo para que se
compreenda uma piada.” (POSSENTI, 1998, p. 27)

Vê-se que o tradutor em sua decisão funcional da translação, visto na Teoria do


Escopo, preferiu manter a tradução literal e manteve a originalidade da história, porém ao se
pensar no efeito cultural e atual, esta última frase que foi traduzida como Foi como dar um
torrão de açúcar ao Fidel Castro poderia ser traduzida, por exemplo como Foi como dar
petróleo a Hugo Chávez, ou Foi como dar urano ao Irã (ou ao presidente Armadinejad),
aproveitando assim o efeito político-cultural da atualidade.

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 66


23

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 22

A tira escolhida começa com Mafalda ligando seu rádio e no segundo requadro nota-se
que ela escuta atentamente a notícia ...”Hizo el Papa un nuevo llamado a la paz”... Até este
momento não há nada de cômico, mas o último requadro desperta o riso por meio da
duplicidade de significado da palavra llamado que primeiro denota apelo, pedido para depois
denotar ligação telefônica. Assim este jogo de significados juntamente com a quebra da
expectativa do leitor são os responsáveis pelo humor ácido e inteligente desta tira. Tirando a
comicidade, a presente tira é uma crítica ao período da Guerra do Vietnã e de outras
violências que a população vivia naquela época, assim como da pouca influência e relevância
da Igreja Católica na eliminação destes conflitos.

A tradução da tira acima não apresenta a comicidade e inteligência da tira original,


porque o tradutor quebrou a duplicidade de sentido ao traduzir llamado por apelo que, ao
contrário da tira original, não tem relação com a palavra ocupado. A compreensão do duplo
significado do vocábulo em espanhol era fundamental para esta tradução e sua falta gerou a
perda da comicidade em português.

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 79


24

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 375

A crítica à sociedade moderna se apresenta nesta tira quando, ao não entender o que
foi dito Mafalda, começa a perguntar a seu pai se o que ela entendeu está correto, fazendo
assim as comparações aparentemente inocentes de sociedad, suciedad y zoociedad. Aqui os
segundo e o terceiro termos significam respectivamente que a sociedade dita moderna era
composta por pessoas desonestas e com comportamento de animais irracionais. O sentido do
humor está na semelhança fonética que permite o trocadilho entre os três vocábulos, ambos
com o fonema /s/.

Entretanto, este sentido do humor se perde na tira traduzida, porque o tradutor optou
por se aproximar ao máximo do original e o resultado foi a eliminação da comicidade
fonética, visto que em português para os casos acima existem os fonemas /s/ e /z/ e a
pronúncia da palavra zoociedade se encaixa neste último, não estabelecendo assim a mesma
relação fonética do original em espanhol. A opção pelo vocábulo sujidade para se referir a
suciedad, também causa estranheza visto que o mesmo não é comumente utilizado como o da
tira original.

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 190


25

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 373

Aqui, Libertad está em um de seus momentos de reflexão e desabafo intelectual, e nos


dois primeiros requadros fala com Susanita e Mafalda sobre os governos que há muito tempo
oprimem o povo, ideia que é reforçada principalmente no segundo requadro quando por meio
da repetição ela deixa claro que o povo sempre é oprimido, não importando quem esteja no
poder. Outro aspecto importante nestes dois requadros é a gestualidade de Libertad que com o
dedo indicador reforça suas palavras. O humor está no último requadro quando Susanita diz
¡También el pueblo, Ché! ¡Qué vocación de timbre! ¿No? Onde ela, por ser fútil e não se
preocupar com o próximo, promove a relação entre o verbo oprimir, que também significa
apertar, fazer pressão sobre algo, com a palavra timbre, reforçada pelo gestual de Libertad e
seu dedo indicador. Novamente há uma quebra na expectativa do leitor que vai
acompanhando o raciocínio sério e filosófico de Libertad para no final deparar-se com a
reação de Susanita, que de certa maneira culpa o povo por ser oprimido.

O tradutor preferiu utilizar o verbo apertar no lugar de oprimir e acredita-se que com
isso houve prejuízo parcial na comicidade, pois o verbo oprimir tanto em espanhol quanto em
português em uma de suas acepções está justamente apertar, fazer pressão sobre algo, porém
nas duas línguas esta acepção não é usual. Como conclusão, tem-se que se diante disto o autor
preferiu o verbo oprimir e não outro foi porque havia um motivo e isto poderia ter sido
explorado também na tradução.
26

Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 58 (refere-se a tira da página anterior)

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 146

Esta tira foi escolhida por dois motivos, o primeiro por apresentar várias onomatopéias
e o segundo por apresentar no último requadro a substituição de uma marca antiga por uma
mais moderna, trazendo o texto para o contexto cultural atual. Esta típica cena de ciúme de
Susanita já desperta e atiça o humor desde o primeiro requadro quando ela zomba da paixão
de Felipe pela professora e tenta demonstrar que não se incomoda com a situação. No
segundo requadro ela muda completamente sua atitude e sua gestualidade passa de uma
pessoa indiferente a outra furiosa, efeito que também é demonstrado quando ela chama Felipe
de papanatas querendo ofendê-lo, atitudes que o deixam visivelmente assustado. Em seguida
é estabelecida uma pausa na linguagem verbal e os personagens apenas se olham, ela com
cara de quem esperava alguma reação e ele atônito. No quarto requadro há novamente a
quebra da expectativa quando Susanita agarra Felipe e lhe dá um beijo e um abraço apertado
deixando-o ruborizado. Seguindo, ela volta a ofendê-lo chamando-o de estúpido e depois sai
correndo e chorando, efeito que é explicitado com o balão de fala se desfazendo como
lágrimas caindo. Neste momento Felipe que estava totalmente perplexo, aparece no último
requadro fazendo uma relação entre a falta de entendimento das reações de Susanita e do
sistema de funcionamento de cambio do automóvel Ford-Lotus.

A produção do humor desta tira tem a particularidade de ser uma constante desde o
primeiro até o último requadro e se dá principalmente pelas quebras de expectativa do leitor,
que a todo momento é levado a crer em algo que imediatamente é alterado. A interação entre
as linguagens verbais e não-verbais também é fundamental para a comicidade da história.

A tradução conseguiu manter do início ao fim as características humorísticas do


original, com alterações bem sucedidas como [...] ¡Pues yo me rio! ¿Ves? [...] por [...] Eu não
27

estou nem aí [...]; do xingamento papanatas por boboca; da conversão das onomatopeias de
uma língua para outra, como é o caso da que representa o choro que em espanhol é Sñíg e em
português é Snif e, sobretudo, da troca do automóvel Ford-Lotus, que era um dos carros de
corrida da época, por Maclaren, um dos carros de corrida da atualidade. Todos estes detalhes
proporcionam ao leitor da tradução o mesmo efeito cômico que tem o leitor do original, sem
ter sido uma reprodução do mesmo e sim uma nova criação.

Quino, 10 Años com Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 86

Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 324

A escolha desta última tira se deu pelo seu caráter crítico-social disfarçado e por seu
humor ser claro, objetivo sem truques nas linguagens verbais e não-verbais. Como dito
anteriormente, o fato de Mafalda odiar a sopa e se sua mãe sempre obrigá-la a tomar é uma
alusão ao sistema opressor daquela época (décadas de 60 e 70) e seus efeitos sobre os
cidadãos, neste caso especial os argentinos. Assim, Mafalda sempre tenta encontrar maneiras
de fugir deste destino e na história acima ela faz questionamentos impositivos à sua mãe como
aparece nos dois primeiros requadros, reivindicando os direitos das galinhas e tentando
sensibilizar sua mãe a não cometer o crime de matá-las para fazer a sopa. No último requadro,
ao ver que seus argumentos não estão funcionando, lança sua última cartada que é acusar a
mãe de estar sujando as mãos com o caldo de seres inocentes. A tira faz alusão aos massacres
28

promovidos na época das guerras mundiais, da ditadura militar na Argentina na década de 70,
considerada a mais devastadora de todas da América do Sul.

O humor produzido nesta tira foi perfeitamente traduzido, pois aqui o tradutor não
encontrava muitas dificuldades já que a simples tradução lingüística e literal bastava para a
manutenção do riso. Neste caso, não houve a necessidade de uma reescritura do texto
destacando a manutenção da originalidade do texto de saída para o de chegada como o
elemento de sucesso.
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CONCLUSÃO

O presente estudo buscou explicitar, de maneira teórica e comparativa, as


características da tradução do humor, a existência ou não de mecanismos especiais para a
manutenção do humor na língua de chegada e mais especificamente, como este humor
inteligente presente nas histórias da Mafalda é reproduzido na tradução de maneira que a obra
faça sucesso e alcance o riso em pessoas de uma sociedade diferente, com características
culturais diferentes.

A premissa central desta pesquisa era a de que a linguagem do humor crítico-social


tinha características específicas e sua tradução requeria a utilização de mecanismos especiais.
Como sustentação deste estudo foi utilizada a Teoria do Escopo de Reiss e Vermeer e os
estudos de Sírio Possenti e Marta Rosas nas áreas da lingüística, do humor e da tradução.

Assim sendo, os resultados obtidos após as análises demonstram que na tradução do


humor o tradutor deve ter como orientação básica a fidelidade com o leitor e não com a obra,
ou seja, deve criar mecanismos capazes de provocar o riso no leitor mesmo que para isso ele
tenha que reescrever um novo texto. Evidenciou-se que na tradução do humor o caráter
lingüístico ocupa o último lugar no processo tradutório, uma vez que a sensibilidade, a
interpretação e a compreensão das histórias por parte do tradutor são as peças fundamentais
para o desfecho desejado: o riso.

Com a análise das histórias em quadrinhos da Mafalda pode-se identificar que o


humor explorado por Quino está na constante quebra na expectativa do leitor e, o ambiente e
os personagens, são fundamentais para a criação desta atmosfera já que tudo remete à uma
inocência disfarçada, à crianças que pensam e agem como adultos, mas que em nenhum
momento perdem a ternura infantil. Por mais que os temas tratados sejam os sérios problemas
sociais vividos por um povo de um momento determinado, nota-se que a crítica muitas vezes
está implícita e preza pela inteligência, não pela agressividade.

Por meio do estudo da obra Mafalda notou-se que o seu caráter atemporal é um fator
muito relevante para seu sucesso em várias culturas, visto que sua temática continua sendo
atual, as sociedades continuam sofrendo com os sistemas opressores, com as crises
financeiras, com o racismo, o capitalismo, as guerras.
30

Após esta pesquisa, conclui-se que mais do que mecanismos ideais para uma perfeita
tradução humorística, o tradutor deve criar a consciência global e multidisciplinar de que para
provocar o riso no leitor do texto final ele próprio deve compreender amplamente o que leva o
leitor do original a rir, podendo assim, como dito por Reiss e Vermeer, ser o autor de um novo
texto.
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BIBLIOGRAFIA

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