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ARON, Raymond. Dezoito lições sobre a sociedade industrial.

Brasília: UNB, 1981

Lição V: A sociedade industrial

As quatro primeiras aulas deste curso constituíram uma introdução geral, não
apenas ao assunto a ser tratado este ano, mas a todo um modo de ensinar. A
partir de hoje, vou procurar caracterizar o que chamo de sociedade industrial e,
também, os seus diversos tipos. Trataremos de isolar as características comuns a
todas as sociedades industriais e as que especificam cada uma delas.

Pode-se pensar numa definição simples da sociedade industrial: a sociedade


onde a indústria, a grande indústria, seria a forma de produção mais
característica. Uma sociedade industrial seria aquela onde a produção se realiza
em empresas, como a Renault ou a Citroën.

A partir dessa definição elementar seria possível, de fato, deduzir muitas das
características de uma economia industrial. Inicialmente, observa-se que a
empresa está radicalmente separada da família. A separação do lugar de trabalho
e do círculo familiar não é um dado universal, mesmo nas nossas sociedades. As
empresas artesanais e um grande número de empresas rurais demonstram que a
separação entre local de trabalho e empresa de um lado, e família de outro, não
é uma necessidade histórica.

Em segundo lugar, a empresa industrial introduz um modo original de divisão do


trabalho. Efetivamente, ela implica não só a divisão que existiu, em todas as
sociedades, entre os setores da economia (entre os camponeses, os comerciantes
e os artesãos), mas um tipo de divisão interno à empresa, uma divisão tecnológica
do trabalho, que é uma das características industriais modernas.

Em terceiro lugar, a empresa industrial supõe uma acumulação de capital. A


civilização industrial exige que cada trabalhador utilize grande capital, e que este
se renove continuamente. A noção de sociedade industrial pode originar a noção
de economia progressiva. A este propósito poder-se-ia citar a fórmula famosa de
Marx: "Acumulai, acumulai, esta é a lei e os profetas". Marx lançou essa fórmula
para caracterizar a sociedade capitalista. Sabemos, pela experiência histórica
atual, que a acumulação de capital não caracteriza apenas as sociedades
capitalistas, mas todas as sociedades industriais. Stalin, sem dúvida, poderia
aplicar a fórmula de Marx à sua própria sociedade.

A partir do momento em que o trabalhador tem necessidade de um capital muito


grande e em vias de expansão, introduz-se uma quarta noção, a do cálculo
racional. Numa grande empresa, como as que citei, é necessário calcular
permanentemente, para obter o preço de custo mais baixo, para renovar e
aumentar o capital. Nenhuma sociedade industrial moderna pode evitar o que
tanto os economistas "burgueses" como os economistas marxistas chamam de
cálculo econômico. Teremos oportunidade de ver em que medida o modo de
calcular varia com o regime mas, de início, pode-se afirmar que toda sociedade
industrial implica um cálculo econômico rigoroso, sem o qual as perdas de
recursos e de energia seriam imensas.

Digo cálculo econômico e não cálculo técnico: uma empresa como a das Estradas
de Ferro francesa, pode ser tecnicamente uma maravilha, e estar em desequilíbrio
financeiro permanente. Não quero dizer que o desequilíbrio econômico seja
consequência da perfeição técnica, mas a introdução de aperfeiçoamentos
técnicos deve estar sujeita ao cálculo. É preciso saber se é rentável substituir um
determinado equipamento que não é do último modelo por um outro mais
aperfeiçoado. Se se coloca a dúvida sobre a substituição do equipamento numa
empresa em particular, como a Ferroviária, ela se coloca também para o conjunto
dos meios de transportes. Como repartir os recursos disponíveis entre as estradas
de ferro e os transportes rodoviários? Num cálculo mais amplo, como repartir o
conjunto dos recursos da coletividade entre as diferentes utilizações possíveis?
Numa economia industrial, não se pode, jamais, realizar simultaneamente tudo
que a técnica possibilita.

Encontramos com frequência nos jornais exemplos apresentados como


características dos defeitos da sociedade em que vivemos. Na verdade, não há
qualquer possibilidade de empregar a cada instante todos os procedimentos
técnicos mais aperfeiçoados, pois isso suporia recursos ilimitados de capital. Por
definição, sempre serão observados atrasos em certos setores, em comparação
com as possibilidades técnicas. Para saber que procedimentos técnicos devemos
empregar será necessário recorrer ao cálculo econômico.

Por fim, a quinta característica das empresas industriais é a concentração dos


trabalhadores no local de trabalho. Surge, então, o problema da propriedade dos
meios de produção. Em toda sociedade industrial há uma concentração dos
trabalhadores, qualquer que seja o estatuto da propriedade dos instrumentos de
produção. Contudo, quando de um lado há centenas ou milhares de operários, e
de outro um pequeno número de proprietários, não se pode deixar de colocar o
problema da relação entre esses proprietários e os operários concentrados. Todas
as sociedades industriais implicam uma certa organização da massa trabalhadora,
e uma indagação a respeito da propriedade individual dos meios de produção.
A ideia de propriedade coletiva é antiga como o mundo, tão antiga quanto as
sociedades complexas e as civilizações conhecidas. Sempre houve, em certas
épocas, quem protestasse contra a desigualdade implícita na propriedade
privada; quem sonhasse com um sistema de propriedade coletiva que pusesse
fim às desigualdades. Mas seria absurdo confundir o sonho socialista secular com
o problema socialista das sociedades industriais, porque, pela primeira vez,
aparecem imensas concentrações operárias; pela primeira vez os meios de
produção parecem ultrapassar, por suas dimensões, as possibilidades da
propriedade individual, surgindo, em consequência, a questão de saber a quem
eles devem pertencer.

Pode-se portanto extrair desta noção elementar de sociedade industrial um certo


número de características das nossas sociedades industriais.

Entretanto, a análise que fizemos é ainda superficial; desejaria aprofundá -la


caracterizando, sumariamente, o que é um sistema econômico e examinando os
diferentes pontos de vista em que o observador se pode colocar para estudá-lo.
Isso nos permitirá caracterizar com maior rigor a espécie de sociedade industrial
que é a sociedade capitalista.

A própria noção de econômico não é fácil de precisar. Há dois tipos de definição.


A primeira, refere-se às necessidades dos indivíduos e chama "econômica" a
atividade que tende a satisfazer as necessidades dos homens. Mas é uma
definição pouco satisfatória. Existem necessidades dos indivíduos como a sexual
que não exigem, para sua satisfação, uma atividade propriamente econômica. Por
outro lado, nunca se pôde enumerar de modo rigoroso as necessidades dos
homens. Poder-se-ia dizer, de modo aparentemente paradoxal mas, no fundo,
banal, que o homem é um animal cujas necessidades que podem parecer não-
essenciais são tão urgentes quanto as necessidades ditas "essenciais". A partir do
momento em que as necessidades "fundamentais" (como a alimentação e a
proteção) estão satisfeitas, surgem outras necessidades de ordem social de
reconhecimento, de prestígio, de poder. Por isso é impossível dizer que certas
necessidades são econômicas, e que outras não.

O segundo tipo de definição refere-se ao significado da atividade econômica; ou


ainda, para usar a linguagem de Max Weber, ao sentido que os homens, pelo seu
comportamento, dão à economia. Nesse caso, chama-se de economia a
administração dos recursos escassos, ou ainda a relação entre os meios e os fins
a atingir, na medida em que os meios são escassos e susceptíveis de empregos
alternativos.

Essa definição da economia pela característica significativa da atividade é


satisfatória para as sociedades desenvolvidas. Nessas sociedades, os fins a que se
propõem os indivíduos são múltiplos e explícitos. As necessidades, ou os desejos,
aumentam perpetuamente. Os meios de satisfazê-los são numerosos, e
comportam usos alternativos. Particularmente, o uso da moeda e a generalização
da determinação monetária dos bens introduz a noção de escolha, de uso
alternativo dos meios e de multiplicidade dos fins. A moeda é uma espécie de
meio universal para atingir os objetivos que cada um pode se propor.

A dificuldade dessa definição da economia a partir da administração onerosa de


meios escassos está em que, nas pequenas sociedades, nas sociedades arcaicas,
é quase impossível isolar a atividade que corresponderia a essa escolha racional
dos meios com vistas a fins determinados. Nas sociedades mais simples não há
um cálculo alternativo dos meios, e os fins são em grande parte determinados
pelo costume ou pela crença religiosa. É difícil isolar o cálculo econômico, ou seja,
o cálculo do uso racional dos meios escassos. Nas sociedades primitivas, o setor
econômico e a atividade econômica não estão separados do conjunto social. Os
comportamentos econômicos dos homens não podem ser isolados, porque os
fins, como os meios, são determinados pelas crenças, que nos parecem
extraeconômicas.

As dificuldades apresentadas por cada uma destas duas definições não são
insuperáveis se nos lembrarmos que os conceitos supra históricos devem ter um
caráter formal e que, para reencontrar a história, é preciso especificá-los.

O homem, enquanto animal, deve obviamente satisfazer certas necessidades


elementares para sobreviver. O homem, enquanto homem, conhece, desde que
as sociedades existem, necessidades não-biológicas, que não são menos
exigentes nem menos urgentes do que aquelas chamadas básicas. Todas as
sociedades são pobres, e precisam resolver um problema que nós chamamos
problema econômico. Isso não significa que todas as sociedades tenham
consciência do problema econômico, isto é, da administração racional dos meios
escassos. Todas as sociedades têm uma economia em si, mas nem todas têm uma
economia por si. Mais simplesmente, todas as sociedades têm uma economia e
resolvem o seu problema econômico, mas nem todas o formulam em termos
explícitos.

Nas sociedades onde não há isolamento da atividade econômica, somos tentados


a considerar exclusivamente como econômica a satisfação das necessidades
elementares. Mas isso não passa de um hábito. De fato, há nessas sociedades
muitas necessidades básicas que podemos chamar de econômicas, mas há,
sobretudo, o não-isolamento da atividade econômica.

De todo modo, uma economia, mesmo numa sociedade dita primitiva, comporta
a produção, a circulação dos bens e o consumo.
A produção, isto é, o esforço ou trabalho para colher os frutos da terra, ou para
transformar as matérias-primas, existe desde que o homem deixou o paraíso
terrestre. A condição do homem é tal que ele não pode viver a não ser pela
satisfação de suas necessidades e só pode satisfazer suas necessidades por meio
de algum trabalho.

O trabalho pode ser considerado sob três pontos de vista principais:

1) tecnológico (de que instrumentos dispõe o homem ou a sociedade que se está


estudando?);

2) jurídico (a quem pertencem esses instrumentos de trabalho e, especialmente,


a terra?);

3) social (qual é a organização social e administrativa do trabalho em comum?).

A noção marxista das relações de produção é equívoca, porque não separa


rigorosamente os pontos de vista tecnológico, jurídico e social. Estas distinções
são fundamentais, como teremos ocasião de ver, pois não poderemos
compreender os problemas da nossa época se não distinguirmos por um lado o
que existe de comum em toda produção tecnologicamente determinada; por
outro, as diferenças jurídicas que resultam da propriedade dos instrumentos de
produção, bem como as diferenças administrativas implicadas nessas diferenças
jurídicas.

A segunda fase de todo sistema econômico é a circulação, isto é, a troca e a


distribuição.

O problema da troca nasce do fato de que mesmo nas sociedades mais simples
há uma atividade social ou coletiva de produção. Não existe nenhuma sociedade
onde todos os que produzem guardem para si o que produziram; há sempre um
mínimo de troca, o que cria um problema de comércio e de distribuição.
Precisamos estudar um sistema econômico do ponto de vista da modalidade das
trocas, do ponto de vista do sistema que possibilita as trocas, isto é, do sistema
monetário e, por fim, do ponto de vista da repartição dos bens ou do grau de
igualdade ou desigualdade do consumo.

Toda economia, enfim, tem por objetivo satisfazer desejos ou necessidades; sua
finalidade última é o consumo. Estudar uma economia com relação ao consumo
significa, em primeiro lugar, procurar saber o que a sociedade deseja consumir;
que fins ela se propõe, quais os bens de que não abre mão e que quer obter.
Numa sociedade complexa, estudar o consumo é determinar o nível em que se
situa o consumo de uma sociedade global, ou de uma certa classe, ou de certos
indivíduos; é também procurar determinar de que maneira, a partir de uma certa
quantidade de recursos, os indivíduos distribuem o seu consumo em função de
seus desejos. Isso leva a fazer uma distinção entre o que chamamos de nível de
vida, noção quantitativa, e modo de vida, noção qualitativa. Um conjunto
econômico pode ser apreendido sinteticamente a partir de diversas
considerações:

1) a divisão do trabalho e o tipo de divisão de trabalho na sociedade global;

2) o espírito ou aquilo que motiva a atividade econômica.

Introduzo já aqui uma distinção banal mas útil: pode-se produzir para satisfazer
diretamente certas necessidades ou então produzir para o mercado, para obter
lucros. Não há camponês neste país que não produza em parte para atender às
próprias necessidades, e em parte para vender no mercado. Esses dois motivos
podem ser aplicados seja ao conjunto da economia, seja a um subconjunto. Há
algumas sociedades onde predomina a motivação do lucro, onde os homens
trabalham essencialmente para vender no mercado e para obter lucros.

3) o tipo de organização do sistema econômico.

Em toda economia é preciso determinar os objetivos, distribuir os meios e, por


fim, estabelecer um equilíbrio entre o que é produzido e o que é comprado.

Há, pelo menos, duas maneiras simples de regular a economia: uma é a regulação
por decisão central ou planificada; a outra é a regulação por meio dos
mecanismos de mercado. Ambos são tipos abstratos. Uma grande empresa
industrial, como a fábrica Renault, é dirigida centralmente; estabelece um plano
de produção para todo um ano, e às vezes para vários anos, plano que deve ser
revisto porque a venda de automóveis não é planificada nem sequer planificável:
depende dos desejos dos consumidores. Todos os conjuntos econômicos contêm
uma mistura de regulação por decisões centralizadas e de regulação pelo
ajustamento da oferta e da demanda, no mercado.

O tipo ideal de economia planificada é o da economia onde os planejadores


decidem, no princípio do ano, a totalidade do que se vai produzir e a totalidade
das rendas atribuídas aos diferentes indivíduos, compatibilizando assim, por uma
decisão central, a produção com o consumo. Desnecessário dizer que jamais
existiu, e nem poderia existir, uma economia tão planificada. Mas há diferenças
extremas entre os graus de planificação ou entre os graus de atuação dos
mecanismos do mercado. As diferenças entre as sociedades industriais
dependem, em larga escala, não da oposição esquemática entre mercado e
planificação, mas da parte atribuída a cada um deles.

4) a parte respectiva das funções do Estado e das iniciativas dos indivíduos no


sistema econômico.
Não me agrada a oposição que se costuma fazer entre economia estatizada e
economia baseada na iniciativa individual, porque é equívoca e combina dois
critérios claros: a propriedade dos instrumentos de produção (individual ou
coletiva) e o modo de regular a economia.

A noção de papel do Estado, utilizada vulgarmente, deve ser subdividida em certo


número de critérios mais precisos. Dentre esses pontos de vista, sob os quais se
pode estudar um conjunto econômico, quais são os mais importantes?

Não vou tentar aqui a formulação de uma teoria geral dos tipos de economia,
pois o objetivo destas lições é apenas sugerir um modo de refletir sobre os
problemas sociológicos. Estou mais interessado em demonstrar o caráter
problemático da maioria das distinções entre tipos de economia, do que em
impor uma classificação especial entre outras. Devemos constatar que, com
respeito à proto-história e à pré-história, os historiadores, etnólogos e
arqueólogos se referem comumente ao que chamei o ponto de vista tecnológico.
Efetivamente, nos primórdios da espécie humana, a qualidade e a quantidade dos
instrumentos disponíveis determinam não a maneira global como os homens
viveram, mas a margem dentro da qual podem variar as diferentes formas de
existência humana.

No que concerne as sociedades históricas complexas, estudadas por Spengler e


Toynbee (que as chamaram de civilização ou cultura), todas elas comportam, no
mínimo, a pecuária e a agricultura. O ponto de vista estritamente tecnológico é
insuficiente. Isto porque modalidades de propriedade dos instrumentos de
produção e de relações de classes podem derivar de uma mesma tecnologia. No
curso do desenvolvimento das sociedades históricas não se pode relacionar cada
transformação ocorrida com uma alteração tecnológica determinada. O nível
tecnológico da sociedade só sugere apreciações amplas e genéricas. Vamos
supor, por exemplo, que nos Estados Unidos 7% da população ativa esteja
empregada na agricultura, 45% na indústria e o restante no setor terciário. Esta
repartição da população ativa exige uma força produtiva para usar uma expressão
marxista que não existia antes da época moderna. Uma certa quantidade de
energia disponível fixa uma certa margem de variação para as sociedades, mas
não determina em pormenor a sua organização. As sociedades modernas
parecem pertencer a um tipo novo, original, justamente por causa do seu
potencial energético. Emprega-se, vulgarmente, para medir esse potencial o
conceito de escravo mecânico, isto é, a energia aproximada representada pelo
trabalho normal de um homem durante 300 dias do ano, oito horas por dia. Em
1938 a sociedade francesa dispunha de 15 escravos mecânicos por trabalhador;
a Inglaterra, 36; os Estados Unidos, 55. Se multiplicarmos essas cifras por 10,
poderemos conceber um tipo de sociedade original, em comparação com as
sociedades conhecidas no passado.

As classificações dos tipos de sociedade se referem sempre a um dos pontos de


vista que enumerei. Uma das mais célebres é a do economista alemão Karl Bücher,
para quem a história econômica se reduziria a uma sucessão de três etapas: a
economia doméstica fechada, a economia urbana e a economia nacional. Uma
classificação desse tipo se refere à esfera da circulação e pretende caracterizar a
economia em relação à extensão do campo dentro do qual circula o que é
produzido. É possível identificar numerosas características históricas concretas a
partir dessas categorias, mas não há uma sucessão rigorosa dos três tipos. Além
disso, trata-se de tipos que são, ao mesmo tempo, tipos parciais e tipos que se
aplicam às sociedades globais.

Outras classificações baseiam-se nos meios empregados para o cálculo


econômico e para a troca: economia natural, economia monetária e economia de
crédito.

Uma última classificação, que não posso deixar de mencionar, porque é célebre,
é a de Marx. Encontra-se no prefácio da Contribuição à Crítica da Economia
Política. Marx afirma que é possível distinguir o modo de produção asiático, o
antigo (baseado na escravidão), o feudal (baseado na servidão) e o capitalista
(baseado no trabalho assalariado).

A classificação de Marx toma como centro da análise histórica as relações entre


os homens dentro da produção. É possível, sem dúvida, estabelecer muitas
características das economias antiga, medieval e moderna, ou das noções de
escravidão, servidão e trabalho assalariado. Mas, seguramente, não será possível
fazer surgir todos os traços característicos das economias. Assim, não vou propor
aqui uma nova classificação. A enumeração de critérios a que procedi tinha por
objetivo essencial demonstrar que, para compreender um conjunto econômico,
é preciso que o observador se coloque em vários pontos de vista. No estágio
atual dos nossos conhecimentos não podemos afirmar que um determinado
critério seja dominante, e suficiente para determinar o conjunto da economia.

A existência do salário, isto é, de separação entre empregadores e empregados,


pode caracterizar tanto a economia da India atual como a dos Estados Unidos.
Dizer que nos dois casos a economia se baseia no trabalho assalariado tem um
interesse limitado; os dois países são tão diferentes que é a divergência entre as
formas de salário que deve chamar nossa atenção, e não o fato das duas
economias empregarem trabalho assalariado. O que se deve procurar é a fixação
de uma margem de variação com base num certo critério.
Suponhamos, com efeito, que, seguindo o método marxista, disséssemos: as
economias capitalistas modernas são baseadas no trabalho assalariado. Há nelas,
portanto, uma separação entre o trabalhador e o instrumento de produção; o
instrumento de produção pertence a um empresário ou capitalista, enquanto que
o trabalhador só possui a sua força de trabalho. O problema científico é o
seguinte: quais são as características encontradas em todas as economias onde
há separação entre empresários e assalariados, e quais as margens de variação
das economias baseadas no salário?

Lembremos o que foi dito sobre todas as economias industriais: a empresa está
separada da família e resulta daí um tipo original de produção, uma divisão
técnica do trabalho, uma acumulação de capital e o caráter progressivo da
economia; o cálculo econômico se torna inevitável e segue-se uma concentração
dos trabalhadores.

Agora que passamos em revista os diferentes critérios possíveis, podemos


indagar: se essas cinco características são encontradas tanto nas economias
soviéticas quanto nas capitalistas, o que as diferencia? Ou ainda: em que
consistem as diferenças entre as várias espécies de sociedades industriais?

1) a propriedade dos instrumentos de produção: numa economia capitalista os


instrumentos de produção pertencem a particulares, e não ao Estado;

2) o modo de regulação: pode-se dizer, de forma esquemática, que num caso a


repartição dos recursos é determinada soberanamente pela agência
governamental de planejamento; no outro, pela decisão dos indivíduos no
mercado. Em outras palavras, o equilíbrio entre a oferta e a demanda é obtido
num caso pela planificação, no outro, pelo mercado, por aproximações
sucessivas. Vamos ver quais são as consequências destas oposições fundamentais
a partir das quais encontraremos suboposições.

Pode-se e deve-se indagar em que medida variam as relações entre homens


associados para produzir, isto é, em que medida o relacionamento entre os
operários e os dirigentes da produção são diferentes num sistema de propriedade
privada e num sistema de propriedade pública. Em que medida as motivações da
atividade econômica são diferentes, segundo o modo de regulação adotado? Ou
ainda, mais precisamente, até que ponto o lucro exerce um papel semelhante ou
diferente nos dois sistemas?

Combinando os diversos critérios que relacionei hoje, pode-se dizer que o regime
capitalista é aquele onde:

1) os meios de produção são objeto de apropriação individual;


2) a regulação da economia é descentralizada, isto é, o equilíbrio entre produção
e consumo não é estabelecido de uma vez por todas por decisão planejada, mas
de modo progressivo, tateando no mercado;

3) empregados e empregadores estão de tal modo separados que os primeiros


dispõem apenas da sua força de trabalho e os outros são proprietários dos
instrumentos de produção de onde a relação chamada trabalho assalariado
(salariat);

4) a motivação predominante é a procura do lucro;

5) há flutuações de preços em cada mercado parcial e mesmo no conjunto da


economia (uma vez que a distribuição dos recursos não é planejada), o que se
pode chamar, em linguagem da polêmica, a anarquia capitalista. Como a
regulação do equilíbrio da economia não é centralizada, os preços dos produtos
oscilam no mercado, inevitavelmente, em função da oferta e da demanda. É
explicável, portanto, que o nível geral de preços também flutue em consequência
do excesso ou da insuficiência da demanda global em relação à oferta global;
assim, de tempos em tempos, ocorre aquilo a que chamamos crises (regulares ou
não).

Na verdade, nenhuma sociedade capitalista é total e idealmente capitalista.


Atualmente, na sociedade francesa, uma parte da indústria é propriedade
coletiva. De outro lado, não é certo que, num sistema capitalista, todos os sujeitos
econômicos estejam animados exclusivamente pelo desejo de lucro. Só
procuramos acentuar as características fundamentais de um regime capitalista
em estado puro.

Por que razão o regime capitalista é visto por alguns como o mal em si? Até aqui
não fiz qualquer juízo de valor, mas é preciso, agora, comparar esse modo de
organização da economia com outras formas possíveis de regulação, com outros
modos possíveis de propriedade e de produção.

Quais são as críticas fundamentais feitas à economia capitalista? Existe, em torno


do tema, um pouco de moda intelectual. Há cem anos, o anticapitalismo
escandalizava; hoje, causa escândalo o não se declarar anticapitalista.
Pessoalmente não me situo em nenhuma das duas posições; mas, para analisar o
regime capitalista mais de perto, gostaria de passar em revista os argumentos
principais da acusação.

Parece-me que o regime capitalista é fundamentalmente acusado, em primeiro


lugar, de comportar em si mesmo a exploração dos trabalhadores; em seguida,
de ser um sistema imoral, baseado na busca do lucro; em terceiro lugar, de levar
a uma desigualdade de renda extrema; em quarto lugar, de ser dominado pela
"anarquia", ou seja, pelo não-planejamento, pela não-distribuição programada
dos recursos e da renda, implicando assim risco permanente de crise.

O último argumento, que examinarei mais tarde, é o da autodestruição do


capitalismo. Segundo um certo ponto de vista, um regime como o que descrevi,
baseado na propriedade privada dos meios de produção e na regulação
descentralizada, estaria condenado à autodestruição. Hoje, vamos examinar
rapidamente o primeiro desses argumentos, fazendo referência ao raciocínio
clássico de Marx, em O Capital: a teoria da mais-valia, da qual deriva a ideia geral
da exploração. Nem todos os teóricos atuais da exploração leram O Capital; mas,
como vocês sabem, quando uma ideia adquire popularidade, não parece mais
necessário recorrer ao texto original. Se se entende que existe exploração sempre
que houver desigualdade de retribuição, é claro que a organização das grandes
empresas capitalistas implica em exploração, porque, ali, a desigualdade das
rendas é evidente. Pode-se mesmo dizer, sem excessivo pessimismo, que o
rendimento dos indivíduos tende a aumentar à medida que o seu trabalho se
torna mais agradável. As tarefas mais vulgares, menos qualificadas, que nos
parecem mais odiosas, são as que recebem menor remuneração. Vale observar,
aliás, que essa característica não se limita, presentemente, às sociedades
capitalistas, mas aparece em todas as sociedades conhecidas, inclusive na
soviética. Se deixarmos de lado o simples fato da desigualdade, a ideia da
exploração passa a girar em torno do conceito de mais-valia. A argumentação é
essencialmente a seguinte: o operário produz com o seu trabalho um certo valor,
e recebe, como salário, um valor inferior ao produzido. Pode-se aumentar a
complexidade da argumentação utilizando a teoria do valor-trabalho e a teoria
marxista do salário. Deixo de lado essas teorias que nos levariam muito longe. Em
todo caso, o nó da questão é o seguinte: o operário produz, com seu trabalho,
uma certa quantidade de valor e recebe, em contrapartida, um valor inferior
àquilo que ele produziu, indo a diferença para os lucros do capitalista.

É preciso começar reconhecendo a parte de verdade que há na argumentação. A


massa operária recebe globalmente um valor inferior ao que produz, e o mesmo
acontece com o operário, individualmente. Mas não pode ser diferente numa
economia do tipo moderno. A economia moderna, que já definimos como uma
economia progressiva, supõe que a coletividade não consome, cada ano, a
totalidade do valor que produz. Numa economia totalmente planificada haveria
também uma mais-valia; uma fração do valor produzido pelos trabalhadores não
lhes seria restituído como salário, mas caberia à coletividade. Esta utilizaria esse
valor suplementar em função do seu plano e o repartiria entre os diferentes
setores, para investi-lo.
Na economia soviética o excedente de valor criado pelo operário em relação ao
seu trabalho retorna a toda a coletividade, que o utiliza em conformidade com as
decisões da agência de planejamento central. Numa economia capitalista, em que
há propriedade privada dos instrumentos de produção, esse excedente de valor
passa por uma etapa intermediária: a renda individual dos empresários. Estou
imaginando, naturalmente, uma economia capitalista em estado puro, e
admitindo que os fundos necessários aos investimentos provenham da poupança
individual (dos excedentes das rendas individuais). Há, nos dois casos, excedentes
que são investidos. No sistema planificado soviético esse reinvestimento do
excedente do valor é decidido e distribuído pela agência de planejamento; numa
economia capitalista o reinvestimento do excedente terá como intermediário as
rendas individuais.

Quais são os possíveis inconvenientes do sistema em que o excedente de valor


passa pelas rendas individuais?

O excedente de valor que se destina a ser investido para ampliar o aparelho de


produção corre o risco de ser consumido pelos indivíduos que detêm essas
rendas. Se, num sistema capitalista, os empresários recebem lucros consideráveis
e os utilizam em despesas suntuosas, o sistema é detestável. Se, num sistema
capitalista, a maior parte da renda auferida pelos empresários é reinvestida, não
importa que estes recursos passem pelos indivíduos para retornarem, em
seguida, aos diferentes setores da economia. O primeiro problema é, portanto,
saber qual é a fração desse excedente de valor que é consumida pelos
privilegiados. O segundo é saber qual a eficiência relativa do sistema de produção
privada e do sistema de produção coletiva. O terceiro é saber se a distribuição
dos investimentos, por decisão da agência de planejamento, é melhor ou pior do
que a que é feita pelo mercado de capitais, por empréstimos de capitais no
mercado.

Há ainda um outro problema a propósito da exploração e da mais-valia. O que


representa, numa economia capitalista moderna, do tipo da norte-americana, o
excedente de valor que vai para os capitalistas?

Levantei, para vocês, os dados estatísticos sobre a composição das despesas


totais das empresas norte-americanas, em 1953. No conjunto, os salários
representam 76,9%; 12,4% vão para o Estado sob forma de impostos; 5,2% são
reinvestidos diretamente na empresa; sobram 5,5% para os acionistas.

Numa sociedade capitalista desenvolvida a proporção dos lucros distribuída aos


acionistas é irrisória, comparada com o volume total de salários, impostos e
reinvestimento direto na empresa.
Por que razão essa porcentagem é tão baixa? Dois fatores limitam a possibilidade
de despesas suntuosas e de não-reinvestimento. Em primeiro lugar, a
concorrência. Numa economia marcada pela competição é necessário reinvestir
para desenvolver o instrumento produtivo; o empresário que não o faz corre o
risco de ser ultrapassado na competição entre os diferentes produtores. Outro
fator em jogo é a pressão dos sindicatos. Os observadores pessimistas (como eu)
têm sempre uma tendência a acreditar que a quantidade de exploração é
diretamente proporcional à capacidade que têm os homens de explorar seus
semelhantes. Quanto mais uma classe social tenha uma posição que lhe permita
explorar as outras, mais ela efetivamente as explorará. No caso de uma sociedade
capitalista pouco desenvolvida, chamada hoje subdesenvolvida, onde há um
pequeno número de empresários que não têm o espírito capitalista, mas o
espírito das despesas de ostentação, o salário pode ser um sistema de exploração
detestável, tanto para os trabalhadores explorados como para o conjunto da
sociedade; os salários situam-se abaixo do nível que seria compatível com os
recursos coletivos e as grandes rendas não são reinvestidas. Por outro lado, em
outras sociedades, onde também impere o sistema de salários, pode haver uma
distribuição de renda bem diferente, com o retorno à coletividade de todo o
excedente de valor criado pelos trabalhadores.

Não há dúvida, porém, de que o regime capitalista comportará sempre, aos olhos
de um grande número de críticos, o inconveniente de que o excedente de valor
passe pelas rendas individuais. Mas, se nos referimos ao problema do nível das
rendas, a verdade é que a qualidade e a eficácia da produção e da organização
contam infinitamente mais do que o volume dos lucros. Retornemos às cifras que
indiquei: 76,9% de salários; 12,4% para o Estado; 5,5% para os acionistas. Se estes
5,5% não fossem distribuídos aos acionistas, o consequente aumento dos salários
seria irrisório, comparado ao aumento dos salários que o aumento da
produtividade, cada ano, torna possível.

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