EspeciaIs

DE
Correio Internacional

Para onde vão os EUA?

 2

Especiales
CONTEÚDOS
Para onde vão os Estados Unidos?

Apresentação...........................................................................................................................................................................3

Enteder e enfrentar o governo Biden .................................................................................................................................4

Um processo revolucionário sacode os Estados Unidos! ............................................................................................20

Declaração sobre os assassinatos policiais em abril de 2021 .................................................................................24

Trump: Triste, solitário e ¿final? ......................................................................................................................................25

A dinâmica da economia e os setores da burguesia ....................................................................................................36

O sonho americano morreu................................................................................................................................................55

A política do novo governo democrata para os imigrantes........................................................................................62

Assegurar e expandir os direitos reprodutivos da mulher nos EUA .........................................................................78

Que mudanças haverá na política internacional do imperialismo estadunidense?..............................................85

A política do governo Democrata para o Oriente Médio.............................................................................................96

Editor Responsável: Alejandro Iturbe

Disenho e diagramação: Natalia Estrada

Coordenação de tradução: Lena Souza

Revisão: Marcos Margarido

Acesse às publicações da LIT­QI em:

www.litci.org
Canal de Marxismo Vivo (YouTube)
@lit.ci (Instagram)

Liga Internacional dos Trabalhadores ­ Quarta Internacional

Abril de 2021 ­ LIT­QI

APRESENTAÇÃO

I
niciamos uma nova etapa com este primeiro número dos Especiais da Correio Interna-
cional. A pandemia de COVID obrigou-nos a suspender a edição da tradicional revista
impressa. No entanto, ao mesmo tempo, permanece a necessidade de reunir, em um único
material, artigos que exponham as análises e propostas da LIT-QI sobre os fatos e questões
mais importantes da luta de classes.
Neste caso, trata-se dos Estados Unidos, principal potência imperialista do planeta na qual
o republicano Donald Trump foi derrotado em sua candidatura à reeleição por Joe Biden,
candidato do Partido Democrata, novo presidente do país desde janeiro. Em outras palavras,
houve uma mudança na equipe dirigente do imperialismo norte-americano.
Esse fato, obviamente, tem impacto na situação política mundial, especialmente nas mu-
danças que a nova equipe governante realizar nas orientações dadas anteriormente por Do-
nald Trump. Sem dúvida haverá, mas devem ser analisadas evitando, ou melhor, combatendo
a visão de que os democratas representam o “mal menor” como direção do imperialismo
porque são mais "humanos" e "sensíveis" às necessidades dos trabalhadores e dos povos.
Haverá mudanças, mas serão pequenas em relação às profundas continuidades que a defesa
comum dos interesses do capitalismo imperialista implica. Esta burguesia continua sendo o
principal inimigo que os trabalhadores e os povos do mundo têm que enfrentar.
O primeiro artigo deste Especial faz a análise do novo governo Biden e sua composição,
especialmente da política que terá nos EUA e como enfrentará as lutas dos trabalhadores e
das massas que, em 2020, foram muito expressivas, como a rebelião antirracista e inúmeras
greves.
O segundo artigo faz um balanço do governo Trump, incluindo seu apoio à ação realizada
por grupos de extrema direita no Capitólio, em 5 de janeiro. Nesse contexto, analisa as al-
ternativas sobre o futuro do trumpismo.
O terceiro artigo centra-se na dinâmica da economia e no impacto que o megapacote fi-
nanceiro promovido pelo governo terá e, neste contexto, realiza um estudo sobre os sectores
centrais da burguesia imperialista norte-americana e de suas dinâmicas socioeconômicas e
políticas.
O quarto artigo analisa a profunda crise social e de saúde vivida pelos trabalhadores e
pelas massas e alguns elementos para compreender a possível dinâmica das lutas das mas-
sas.
Em seguida, analisamos o agudo tema dos imigrantes e da imigração, e fazemos as nossas
propostas políticas sobre esta questão. Continuamos com dois artigos focados na política ex-
terna do novo governo: o primeiro, nos seus aspectos gerais e nas relações com a União Eu-
ropeia, Rússia, China e América Latina e o segundo focado na extremamente complexa
região do Oriente Médio.
Adicionamos, para referência, a declaração LIT-QI de junho de 2020 e, por fim, a recente
declaração do Worker’s Voice sobre novos assassinatos por policiais.
Esperamos que este Especial seja interessante e útil para nossos leitores.
O EDITOR
Tradução: Lena Souza.
 4

Entender e enfrentar
o governo Biden
Neokeynesianismo imperialista em tempos de pandemia

Enquanto a crise econômica e de saúde continua atingindo os EUA, a classe

trabalhadora enfrenta um novo chefe na Casa Branca. Após quatro anos
de um governo abertamente intolerante e autoritário, o Partido Democrata
(PD) e seus aliados na burocracia sindical e nas lideranças de classe média
das organizações sociais estão, mais uma vez, semeando ilusões em um novo
governo "progressista".

Orlando Torres

C
omo acontece com qualquer go-
verno democrata, tais progressistas
nos dizem que a classe trabalha-
dora tem uma chance de conquistar refor-
mas importantes colaborando com e
pressionando o governo de Joe Biden e Ka-
mala Harris. Mas, já vimos muitas vezes
como essa estratégia falhou, mais recente-
mente com a adoção de um pacote de ajuda
aos criminosos de Wall Street pelo governo
Obama, à medida que a desigualdade, pre-
cariedade e deportações atingiam níveis
sem precedentes e a intervenção imperia- Para tanto, iniciamos este artigo com a
lista [no exterior] continuava inabalável. situação do governo Biden no contexto da
Hoje, para obter as reformas de que nossa democracia burguesa no país e a compli-
classe precisa desesperadamente, devemos cada crise do capitalismo contemporâneo.
nos libertar das ilusões reformistas e confiar A seguir, analisamos o conteúdo político do
em nossa própria força de organização. projeto Biden, enfocando o carro-chefe do
Isso requer a compreensão do caráter po- estímulo econômico e das políticas de in-
lítico do novo governo, as formas em que fraestrutura.
ele mantém e em que difere das políticas do Por fim, propomos uma estratégia de
governo anterior. E porque este projeto de auto-organização e ação de massas para
renovação do capitalismo imperialista é combater o novo representante da classe
uma maldição para as necessidades e aspi- dominante e tentar ganhar importantes re-
rações dos trabalhadores americanos e do formas à medida que avançamos na luta por
mundo. uma sociedade socialista.

O contexto do governo Biden
O capitalismo é baseado na exploração e
opressão da maioria da população por uma
pequena elite. Portanto, requer um sistema
de controle social que possa manter os tra-
balhadores gerando lucros para seus empre-
gadores e antecipar ou neutralizar as
grandes revoltas vindas de baixo. Em regi-
mes totalitários ou ditatoriais, o principal
mecanismo de controle social é a coerção
estatal e a violência econômica.
Como evidenciado pela repressão brutal
às massas, às manifestações antirracistas do
verão passado e à enorme e crescente po-
pulação de desabrigados, também há muita
violência coercitiva em democracias bur-
guesas como os EUA. Mas o método de
controle social predominante neste tipo de
regime é a aceitação ou consenso das clas-
ses subalternas ao sistema econômico que
as explora.
Os capitalistas conseguem isso por meio
da propriedade e do controle de instituições
culturais (por exemplo a educação, mídia,
propaganda, filmes etc.) que produzem
ideias burguesas que são internalizadas o
tempo todo como "bom senso". O ápice
disso é o mito de que "a América é o piná-
culo da liberdade e da democracia". Este
mito se repete ad nauseam, embora haja
25 milhões de habitantes que não são ci-
dadãos e não podem votar no país (o que
inclui 11 milhões de imigrantes sem docu-
mentos); outros milhões que perderam esse
direito porque foram condenados por
crimes; financiamento de
campanha, acesso a de-
bates; a cobertura
eleitoral da mídia es-
magadoramente
controlada pelos
capitalistas e seus
representantes polí-
ticos[1]; e a pro-
5
priedade capitalista dos meios de produção,
que lhes dá a capacidade de segurar investi-
mentos (organizar uma greve de capital) e
manter as políticas do Estado sob limites
que não ameacem as regras do capitalismo
(por isso chamamos os países com democra-
cia burguesa, como os EUA, de Estados ca-
pitalistas). Além disso, a natureza
imperialista dos Estados Unidos, que usa
seu poder econômico e militar para extrair
riquezas de grande parte do mundo, o torna
a antítese da democracia em suas relações
internacionais.
Esta estabilidade e autoridade ideológica
da democracia capitalista repousa em sua
capacidade de alternar o poder entre parti-
dos burgueses que, pelo menos em certa me-
dida, representam diferentes setores da
classe dominante. Uma vez que a conco-
rrência capitalista é inerente ao sistema, os
conflitos entre os partidos burgueses e os in-
teresses econômicos que eles representam
são frequentemente agudos e sua expressão
em disputas eleitorais dá a aparência de um
vibrante processo democrático. Mas por trás
das competições eleitorais interburguesas há
um ponto fundamental de unidade entre
todos os partidos capitalistas: seu compro-
misso com o sistema econômico baseado na
exploração e opressão, que requer pilhagem
imperialista, pobreza obscena e desigual-
dade, destruição ambiental e violência esta-
tal para se reproduzir.
Além de representar diferentes setores da
classe dominante, os partidos capitalistas
mobilizam diferentes camadas do eleito-
[1]
De acordo com um estudo recente
realizado por estudiosos de
Princeton, não há nenhuma
correlação entre a opinião
pública e a probabilidade da
política transformar-se
em lei.

rado em sua competição pelo controle do
Estado. Nas últimas décadas, o Partido Re-
publicano cortejou os votos da classe média
suburbana, dos cristãos conservadores, das
regiões rurais brancas e de um segmento da
classe trabalhadora branca em declínio. A
base eleitoral do Partido Democrata, por
outro lado, é formada principalmente por
eleitores jovens, camadas urbanas de trabal-
hadores e setores médios e comunidades
não-brancas.
Para mobilizar seu eleitorado - e prevenir
distúrbios generalizados e manter a fé nas
instituições "democráticas" - ambos os par-
tidos devem fazer, pelo menos, algumas
concessões aos seus respectivos eleitores
quando no poder. Para os republicanos, isso
é feito por meio de cortes de impostos para
os ricos que beneficiam a classe média-alta,
a nomeação de conservadores religiosos
nos tribunais e o atiçamento dos impulsos
racistas dos eleitores brancos por meio de
políticas draconianas de imigração e de re-
pressão policial.
Para os democratas, que contam com a
burocracia sindical e a liderança da classe
média de organizações "progressistas" para
mobilizar os eleitores, são necessárias con-
cessões a setores da classe trabalhadora,
como a DACA (Deportação Adiada para
Crianças Imigrantes) que beneficiou os fil-
hos de imigrantes), e a ACA/Obamacare
(Lei de Saúde Acessível, que também foi
um grande presente para as empresas de se-
guro privadas).
6
E, claro, para ambos os partidos, o patrio-
tismo chauvinista, a guerra contra os chama-
dos inimigos do "modo americano de viver"
e o nacionalismo xenófobo contra as potên-
cias concorrentes devem ser periodicamente
agitados para mobilizar os eleitores e neu-
tralizar as ameaças de baixo.
Além de sustentar o mito da democracia
burguesa, algumas concessões econômicas
podem servir aos propósitos da classe domi-
nante, especialmente durante os períodos em
que os trabalhadores estão muito destituídos
para sustentar a demanda por bens e abaste-
cer os lucros e o crescimento econômico. E
em um sistema de grande riqueza e poder,
mesmo pequenas concessões podem ter um
grande impacto sobre os beneficiários da
classe trabalhadora. No entanto, como regra
- na ausência de mobilizações de massa
combativas que ameacem os lucros e as re-
gras políticas da burguesia - as concessões
de cima, principalmente econômicas, são in-
significantes, deixam intacta a raiz do sofri-
mento de nossa classe e são facilmente
reversíveis por governos futuros.
Embora a competição interburguesa entre
os partidos Democrata e Republicano seja
real, os setores mais poderosos do capital in-
vestem em ambos os partidos porque,
quando se trata das necessidades fundamen-
tais do sistema - a rentabilidade do capital,
a repressão ou a cooptação de lideranças da
classe trabalhadora, o militarismo imperia-
lista em todo o mundo, etc. - o liberalismo e
o conservadorismo convergem inevitavel-
mente. Além disso, as duas correntes da po-
lítica burguesa desenvolveram papéis
complementares para a reprodução do sis-
tema.
Quando os lucros e o crescimento estag-
nam sob governos democráticos, os republi-
canos chegam ao poder para impor ataques
amplos aos trabalhadores e uma política ex-
terna abertamente predatória sob o discurso
do bode expiatório racial, do fundamenta-

lismo de mercado, da lei e da ordem e do mi-
litarismo "chauvinista" . Quando esta "cara
feia" do capitalismo americano perde legiti-
midade e aumenta a resistência de massa, o
PD retorna ao poder, faz um punhado de pe-
quenas concessões para conter os excessos
mais desestabilizadores do capital e cooptar
os movimentos que se opõem a ele, e conti-
nua a atacar os trabalhadores priorizando os
lucros e o imperialismo sob o discurso libe-
ral de compromisso, de diversidade multi-
cultural e de imperialismo "benevolente".
Assim, por meio desse ciclo de “policial
bom - policial mau”, o capitalismo mantém
sua hegemonia.
Como o governo Biden
se encaixa nesse padrão histórico?
Após quatro anos de Donald Trump - um fa-
nático magnata da mídia com fortes tendên-
cias bonapartistas, que é visto como uma
aberração pela burocracia de ambos os par-
tidos - Biden deve trazer de volta o "rosto
bonito" para restaurar a legitimidade do sis-
tema democrático burguês e fazer avançar a
agenda da classe dominante.
Para fazer isso, ele deve restaurar as "nor-
mas" burguesas e buscar compromissos
entre os grandes interesses capitalistas; au-
mentar as ilusões sobre reformas significa-
tivas por meio de um sistema supostamente
sensível e democrático; e cooptar qualquer
movimento ameaçador por meio de conces-
7
sões e acordos menores com as forças so-
ciais do reformismo (políticos social- de-
mocratas, burocratas sindicais e lideranças
de classe média de ONGs “progressistas”).
Mas, dada a profundidade extraordinária da
crise econômica, política e de saúde, está
longe de ser claro se o governo Biden (que
carece da popularidade e de ampla maioria
no Congresso durante o primeiro governo
Obama) será capaz de desempenhar o papel
usual de "policial bom" e restaurar o estado
normal do capitalismo americano.
A pandemia de Covid-19 continua sua
passagem devastadora, com mais de 560
mil mortes (ainda o número mais alto do
mundo), e apenas 22% da população foi to-
talmente vacinada (atrás de Israel e do
Reino Unido). Enquanto isso, em dezembro
passado, foram perdidos 227 mil empregos
e em janeiro apenas 49 mil foram criados
(dos quais apenas seis mil são do setor pri-
vado). A taxa oficial de desemprego perma-
nece em 6% (9,2% para trabalhadores
negros e 8,6% para latinos), embora até o
chefe do Federal Reserve tenha admitido
que na verdade é de 10%, sem contar 2%
da força de trabalho que desistiu de procu-
rar trabalho. Como a maioria dos empregos
perdidos está concentrada em indústrias de
baixa renda, a recessão econômica se traduz
em extremo sofrimento para nossa classe.
De acordo com o Center for Budget and
Policy Priorities, cerca de 16% das famí-
lias negras e latinas relataram passar por
escassez de alimentos em março, e um em
cada sete locatários (22% dos locatários
negros) disseram estar atrasados no paga-
mento do aluguel.
A crise também afetou os lucros da bur-
guesia. A queda acentuada no emprego du-
rante 2020 foi um reflexo de uma
contração acentuada na produção e no in-
vestimento, impulsionada pela quarentena,
pelo isolamento social e pelo colapso do co-
mércio internacional. Após uma queda de
40% nas Bolsas de Valores, provocada pelo

choque inicial da pandemia, elas tiveram
uma recuperação dramática e ultrapassaram
os níveis pré-pandêmicos. Mas, isso se deve
ao grande influxo de crédito e dinheiro feito
pelo Federal Reserve no sistema bancário,
que as empresas usaram, em primeiro lugar,
para especular em ativos financeiros (o que
Marx chamou de capital fictício), não para
manter funcionários e a produção. Assim, os
índices de ações estão cada vez mais desvin-
culados da taxa real de retorno dos investi-
mentos produtivos, que vem caindo nos
últimos 50 anos e permanece estagnada
(com exceção das empresas de tecnologia, fi-
nanças e farmacêuticas). Se a lucratividade
não se recuperar pelo menos aos níveis pré-
pandêmicos, os capitalistas não investirão o
suficiente para recuperar os empregos.
Sem uma recuperação dos empregos e sa-
lários, pelo menos até o nível pré-pandêmico,
continuará havendo uma crise de demanda e
baixo crescimento econômico. Isso poderia
desencadear o colapso das chamadas empre-
sas zumbis, cujo número cresceu e suas dí-
vidas aumentaram drasticamente, por
meio de programas de ajuda com emprésti-
mos garantidos, de juros baixos; causar enor-
mes inadimplências de hipotecas; ou
estourar a bolha de US$ 1,71 trilhão em dí-
vidas de empréstimos estudantis.
Além da crise econômica e de saúde, a
burguesia norte-americana enfrenta o declí-
nio relativo de sua hegemonia global em
meio à ascensão da China como uma nova
potência econômica e uma profunda crise de
legitimidade do sistema bipartidário, ex-
pressa no surgimento de uma ala social-de-
mocrata no PD e a corrente trumpista que
8
agora ameaça dividir os republicanos. Tudo
isso em meio à mudança climática, à des-
truição ambiental e à crise estrutural de imi-
gração, habitação e violência policial. O
que fará o governo Biden para resolver esta
complexa crise do capitalismo americano?
O projeto político
do governo Biden
Depois de mais de quatro décadas como
senador e oito anos como vice-presidente,
Joseph Biden demonstrou seu compro-
misso com o capital e o imperialismo por
meio de sua oposição ao transporte escolar
multirracial na década de 1970, seu papel
central na expansão do encarceramento em
massa, bem como seu apoio ao desmante-
lamento de programas de ajuda, o apoio à
invasão do Iraque e do Afeganistão, aos
acordos de livre comércio, ao resgate de
Wall Street, à política de deportações em
massa do Obama, fracking, etc.[2]. Portanto,
não é surpreendente que, por suas políticas
e escolha de ministros, ele procure resgatar
o establishment de Washington do que foi
a "aberração" do governo Trump.
O caráter agressivo do capitalismo impe-
rialista está claramente ilustrado no gabi-
nete de Biden. Vamos dar alguns exemplos.
Anthony Blinken [Secretário de Estado,
equivalente ao Ministro das Relações Ex-
teriores], apoiou as invasões do Iraque e da
Líbia e propôs uma intervenção militar
mais agressiva na Síria antes de se tornar
consultor de empresas financeiras, de tec-
nologia e armamento[3]. Ron Klain, escol-
hido por Biden como chefe de gabinete (e
seu ex-chefe de gabinete quando foi vice-
presidente), tem uma longa carreira como
capitalista de risco[4].
[2]
Joe Biden Has a Long History of Giving Republicans Exactly
What They Want
[3]
As Biden Taps Blinken as Secretary of State, Critics
Denounce Support for Invasions of Iraq and Libya
[4]
Joe Biden’s chief of staff pick has had a long career in
venture capital
 Na chefia do esforço de recuperação eco-
nômica, está a secretária do Tesouro Janet
Yellen, que foi diretora do Federal Reserve,
promoveu repetidamente políticas de livre
comércio antitrabalhistas e recebeu pelo
menos 7 milhões de dólares em taxas para
conferências em instituições financeiras
entre 2018 e 2020. Da mesma forma, Brian
Deese, escolhido por Biden como assessor
econômico chefe, era um executivo da
Blackrock, a maior empresa de gestão de in-
vestimentos do mundo. Em um período em
que movimentos como o Black Lives Mat-
ter desafiam o sistema de justiça criminal
como nunca antes, Biden nomeou Merrick
Garland como procurador-geral, um juiz
centrista que condenou presos da Baía de
Guantánamo e votou pela lei de Citizens General Lloyd Austin, o primeiro secretário
United no Supremo Tribunal, que dá às cor- de Defesa negro. O que essas pessoas fize-
porações influência ilimitada nas eleições. ram pela justiça racial ou de gênero? Haines
E sobre a crise ambiental? O represen- foi uma das arquitetas da justificativa legal
tante oficial do presidente para o clima é para o programa de assassinatos seletivos de
ninguém menos que John Kerry, ex-secre- Obama, enquanto Austin atuou no conselho
tário de Estado do segundo governo Obama, de diretores da Raytheon, um importante fa-
que apoiou a catástrofe humana e ambiental bricante de armas.
da guerra do Iraque, nunca apoiou o New
Deal Verde [uma resolução da Câmara dos
Deputados propondo alguns medidas contra E as "reformas progressivas"
as alterações climáticas e ambientais], e de- de Biden?
sempenhou um papel fundamental no blo- Se as determinações principais da burguesia
queio de medidas legalmente obrigatórias para os governos Obama e Trump foram,
do Acordo de Paris para a redução das emis- respectivamente, salvar Wall Street e impor
sões de gases causadores do efeito de estufa. uma reforma tributária muito reacionária, a
Diante do forte repúdio da ala social-de- tarefa do governo Biden é estabilizar o capi-
mocrata do PD, Biden completou sua talismo após o fim da pandemia para restau-
equipe com figuras do aparato da era rar a lucratividade e o domínio imperialista
Obama e se recusou a nomear Bernie San- dos EUA em uma paisagem geopolítica em
ders, Elizabeth Warren ou pessoas próximas rápida mudança. Para tanto, o governo des-
a eles para vários cargos. Em vez disso, tinou um pacote econômico de 1,9 trilhão de
Biden tentou esconder o perfil conservador dólares para acelerar a vacinação e estimular
de seu gabinete nomeando mulheres e pes- o crescimento econômico. No entanto, como
soas de minorias raciais que não têm histó- com a legislação de estímulo anterior, esses
rico de representar os interesses dos esforços de cima para baixo do Estado capi-
oprimidos. Isso inclui Avril Haines, a pri- talista para recuperar a lucratividade após
meira diretora da Inteligência Nacional, e o uma crise econômica são muito mais para fa-

vorecer as grandes empresas do que os tra-
balhadores, no longo prazo (e muitas vezes
não conseguem recuperar a lucratividade a
níveis pré-crise).
Precisamos esclarecer que pacotes de es-
tímulo, como o American Rescue Plan Act,
recentemente promovido por Biden (assim
como os 3,1 trilhões de dólares das das duas
leis de resgate de Trump, em 2020) são, em
última instância, esforços capitalistas para
preservar a classe dominante, medidas ex-
traordinárias para prevenir a implosão do
sistema por suas próprias contradições. E
este tipo de generosidade em meio a uma
crise econômica só é possível por causa do
caráter imperialista dos EUA, que lhes per-
mite colher grande parte da riqueza produ-
zida pelos trabalhadores do mundo (na
verdade, enquanto os EUA sustentam-se em
grandes gastos de estímulo, muitos países
dominados estão se aproximando de uma
nova crise da dívida externa ou indo à fa-
lência).
Dado o fracasso da política neoliberal de
Obama em restaurar a lucratividade, o in-
vestimento e a produtividade aos níveis an-
teriores à recessão, o governo Biden segue
um caminho mais keynesiano em face da
10
recessão atual, que é muito mais severa do
que a recessão de 2008-09. Isso significa
que, em vez de depender apenas de crédito
barato como fez o governo Obama, Biden
está combinando uma grande injeção de cré-
dito com gastos governamentais financiados
pelo déficit do Tesoro, destinados tanto a in-
vestimentos como diretamente a empresas e
famílias. Reduzindo a taxa de juros do Fe-
deral Reserve para praticamente zero, o es-
tímulo de 1,9 trilhão de dólares de Biden
inclui gastos para estender benefícios aos
desempregados, extensão da moratória
sobre despejos, testes e distribuição de va-
cinas, aumento do crédito tributário infantil,
subsídios de saúde, doações únicas de US$
1.400 para pessoas físicas, 50 bilhões em
doações e empréstimos para pequenas em-
presas (além dos 284 bilhões de emprésti-
mos do Programa de Proteção à Folha de
Pagamento de Trump) e os 350 bilhões de
dólares em apoio aos governos municipais
e estaduais, entre outros.
Embora algumas dessas medidas certa-
mente irão beneficiar os trabalhadores e ali-
viar algumas das piores consequências da
recessão no curto prazo, elas ficam muito
aquém do que é necessário para atender às

necessidades de nossa classe no longo
prazo. Além disso, o fato do estímulo se
basear no aumento da dívida pública (em
oposição à redistribuição da riqueza dos bi-
lionários e corporações) significa que
muito do dinheiro terá que vir do bolso da
classe trabalhadora em algum momento.
A primeira coisa a dizer sobre a legisla-
ção atual é que Biden já quebrou promes-
sas de campanha ao diluir alguns dos
dispositivos que beneficiam os trabalhado-
res. Depois de prometer pagamentos indi-
viduais de dois mil dólares para aliviar o
impacto da pandemia, seu governo baixou
para 1.400, cinicamente contando os 600
já recebidos sob o governo Trump. Algu-
mas semanas depois, ele concordou em
cortar a renda máxima [para recebê-lo]
em 20 mil dólares, deixando milhões de
pessoas que se qualificaram para o estí-
mulo inicial de Trump sem ajuda. Embora
Biden tenha aceitado uma cláusula para
aumentar o salário-mínimo para US$ 15
por hora de trabalho - uma reivindicação
bem mínima, visto que a inflação corroeu
fortemente o poder de compra desse valor
desde que foi reivindicado pelo movi-
mento sindical, uma década atrás - ele ra-
11
pidamente armou sua derrota ao prever
(sem dar a menor batalha) que não passaria
pelo Congresso. Para evitar dúvidas, sete
senadores do PD juntaram-se aos republi-
canos na oposição ao aumento do salário
mínimo.
O governo também falou do cancela-
mento das dívidas estudantis (o que, como
já mencionamos, é uma grande fonte de
instabilidade financeira) mas, novamente,
nada fez quando os legisladores democra-
tas retiraram-no do projeto.
Talvez a evidência mais clara de que a
prioridade da Casa Branca não é a saúde
do trabalhador, mas sim o apoio à de-
manda para recuperar os lucros capitalis-
tas, é sua pressão agressiva para reabrir as
escolas (para liberar o trabalho dos pais
para o capital) antes que os professores e
outros funcionários sejam totalmente va-
cinados. A pressão de Biden, que desne-
cessariamente arrisca vidas a poucos
meses da imunidade coletiva, chegou ao
ponto de tirar vantagem de suas boas rela-
ções com a burocracia sindical para que-
brar a resistência de ativistas locais em
todo o país.

Além disso, a maior parte dos gastos, in-
cluindo a maioria das provisões que propor-
cionarão alívio econômico aos trabalhadores
(a expansão do crédito tributário infantil, a
extensão dos serviços de saúde, moratórias
sobre despejos e empréstimos estudantis,
benefícios a desempregados) terminará em
seis meses ou um ano. Se os estímulos não
conseguirem restaurar estruturalmente o
crescimento e o emprego (e, como explico
abaixo, há boas razões para esperar tal fra-
casso), o acúmulo de contas, aluguéis, hipo-
tecas, dívidas estudantis, dívidas
governamentais e a incrível dívida privada
de empresas zumbis continuará a existir.
Além das previsíveis traições e exclusões,
é improvável que o pacote de estímulo re-
solva a crise econômica pela simples razão
de que não aborda sua causa. Embora o pro-
grama de estímulos de Biden (que levará
anos, não meses para ser implementado)
possa elevar o investimento estatal para 4%
do PIB, o investimento capitalista privado
fica em média entre 15 e 20% do PIB. Isso
significa que o investimento privado no
setor produtivo continua sendo o fator deci-
sivo para restaurar o crescimento e, por-
tanto, o emprego.
Mas, os capitalistas só são forçados a in-
vestir quando esperam uma taxa de lucro
adequada (leia-se muito grande) e, como já
foi observado, a lucratividade permanece
historicamente baixa. Apenas um punhado
de empresas de tecnologia, farmacêuticas e
finanças estão realmente obtendo lucros
obscenos, mas a grande maioria das empre-
sas está apresentando baixo desempenho.
Independentemente do Estado burguês
propor políticas de austeridade, com apoio
bipartidário, ou social-democratas de caráter
keynesiano, a tomada de decisões sobre in-
vestimento e emprego permanecerá sob o
controle da classe capitalista e não do Es-
tado. Nas palavras de Michael Pettis, um
economista keynesiano:
12
“Se o governo gastar fundos adicio-
nais de forma a fazer o PIB crescer
mais rápido do que a dívida, os polí-
ticos não precisam se preocupar com
a inflação galopante ou o acúmulo de
dívidas. Mas se esse dinheiro não for
usado de forma produtiva, o contrário
ocorre, porque a emissão ou o em-
préstimo de dinheiro não aumenta a
riqueza do país, a menos que resulte
direta ou indiretamente em um au-
mento do investimento produtivo [...]
Se as empresas americanas relutam
em investir, não porque o custo de ca-
pital seja alto, mas porque o retorno
esperado é baixo, é improvável que
eles respondam [...] investindo mais.”
Então, se os estímulos não conseguirem
recompor a lucratividade e, portanto, os in-
vestimentos capitalistas, o baixo custo do
capital acabará por elevar a inflação e, por
fim, forçar o Federal Reserve a aumentar a
taxa de juros.
Isso poderia desencadear uma quebra do
mercado de ações, falências, desemprego
maciço e o estouro de três bolhas especula-
tivas: as dívidas estudantis, hipotecas e dí-
vidas das “empresas zumbis”.
Enquanto o Federal Reserve está pre-
vendo uma taxa de crescimento histórica de
6,5% até 2021, sua projeção de longo
prazo é de apenas 1,8% ao ano, semelhante
ao crescimento médio do PIB desde o fim
da crise de 2007-2008. Isso implica que,
embora o Federal Reserve espere o cha-
mado “efeito multiplicador” dos estímulos
e da “demanda reprimida”, eles serão como
uma injeção de calorias cuja energia desa-
parecerá em um ou dois anos, visão com-
partilhada pelo importante economista Paul
Krugman, d New York Times.

Além do desafio da baixa lucratividade,
as previsões de estagnação refletem as cica-
trizes permanentes que a pandemia infli-
giu a muitas economias capitalistas:
empresas falidas que irão desaparecer (junto
com seus empregos), deixando os trabalha-
dores hoje suspensos sem empregos, cortes
de pessoal e congelamento de vagas.
Isso explica parte do ímpeto por trás do
novo projeto de Biden, dois trilhões de dó-
lares para impulsionar a infraestrutura e au-
mentar os empregos e o crescimento
econômico. Ao contrário do projeto de estí-
mulo financiado pelo Tesouro, Biden se
propõe a pagar, por oito anos, as despesas
em infraestrutura, elevando a alíquota do
imposto sobre as empresas de 21% para
28%. Isso dificilmente é "progressista", já
que nem mesmo restaura a alíquota de 35%
que era aplicada antes da revisão tributária
de Trump em 2017. E está claro que tanto
as propostas de infraestrutura quanto o im-
pulso do governo para uma alíquota mínima
geral para grandes empresas são causadas
em grande parte por:
[5]
Em resposta a uma pergunta sobre por que ele mudou seu pensamento econômico desde 2009, Deese disse ao NYT que "Muito
disso vem diretamente de como o presidente está pensando sobre o momento atual e a direção que ele está nos dando. Quando ele
está pensando nos investimentos necessários em infraestrutura, muito disso está em contraposição ao que ele vê a China fazendo
em termos de investimentos estratégicos".
13
1. a necessidade de estabilizar as condições
para o capitalismo se reproduzir (mesmo
que exija um nível ligeiramente mais alto
de tributação das empresas) e,
2. a ansiedade imperialista sobre a crescente
competição econômica e geopolítica com
a China, como o próprio Biden deixou
claro durante sua campanha e que seu
conselheiro econômico, Brian Deese,
confirmou em recente entrevista[5].
Assim, a Casa Branca não vai recorrer ao
recurso mais óbvio para pagar os 4 tril-
hões de sua experiência keynesiana: uma
redução do obsceno orçamento militar do
país, porque a superioridade militar é
parte central da estratégia imperialista.
Embora haja acordo geral de que a in-
fraestrutura física e humana do país precise
desesperadamente de investimentos maci-
ços, os problemas de baixa lucratividade e
bolhas financeiras crescentes permanecem
sem solução. O investimento público em in-
fraestrutura pode certamente aumentar os
lucros das empresas que obtêm contratos

governamentais. Mas, se for financiado
pelo aumento dos impostos sobre os lucros,
a taxa de lucro não aumentará de modo
geral. Se for financiado com o aumento do
déficit, a inflação aumentará, o que corroerá
tanto os salários quanto os lucros, forçando
um aumento dos juros, que é o mesmo que
deflagrar uma nova crise financeira. Como
Robert Brenner frequentemente escreve,
enquanto os capitalistas controlarem o in-
vestimento - enquanto as relações de pro-
dução capitalistas continuarem - o velho
ditado de que “o que é bom para a General
Motors é bom para todos” conterá, tragica-
mente, um importante grão de verdade.
Portanto, se nem as medidas monetaris-
tas nem os gastos keynesianos do governo
podem resolver a estagnação econômica de
longo prazo, como a economia capitalista
se recupera de crises recorrentes? Fazendo
os trabalhadores pagarem. Michael Roberts,
um economista marxista, explica que o ca-
pitalismo recupera sua lucratividade:
1. dispensando trabalhadores “improduti-
vos” para expandir o exército industrial
de reserva (os desempregados) e, assim,
forçar a redução dos salários;
2. introduzindo tecnologias que melhorem
a produtividade do trabalho;
3. permitindo a aquisição ou liquidação de
“empresas zumbis” com o objetivo de
“limpar” o mercado e melhorar a renta-
bilidade das empresas restantes.
Se isto é o necessário, por que o governo
Biden não o impulsiona? A resposta aponta
para a necessidade do Estado capitalista de
equilibrar duas prioridades contraditórias:
a legitimidade do sistema político e econô-
mico (a hegemonia ideológica da democra-
cia burguesa) e a lucratividade do capital.
Depois de um ano devastador de pandemia,
de rebeliões antirracistas de 2020 e de cres-
cimento dos movimentos de extrema direita
que tomaram o Capitólio em 6 de janeiro,
14
qualquer medida que aumente o sofrimento
econômico das massas pode ser eleitoral-
mente suicida para os democratas e desen-
cadear rebeliões em massa imprevisíveis.
Como o projeto de Biden é, antes de tudo,
estabilizar o capitalismo, o que implica es-
tabilizar o Estado capitalista e restabelecer
sua legitimidade, o governo está deixando
a raiz da crise rolar ladeira abaixo e cons-
truindo sua reeleição na base da “injeção de
calorias” dos gastos do Estado (dívidas em
cima de dívidas), e apostando tudo no efeito
multiplicador da política neo-keynesiana
norte-americana.
Enquanto isso, as engrenagens do im-
perialismo norte-americano continuam a
girar. O ICE (Serviço de Imigração e Fis-
calização Alfandegária) continua vio-
lando os direitos das pessoas
impunemente, já que as prisões e depor-
tações em massa de imigrantes continuam
no governo Biden, que pressiona os go-
vernos do México e da Guatemala a usa-
rem força brutal contra as caravanas dos
centro-americanos; o governo dos EUA
continua a apoiar os regimes criminosos
da Arábia Saudita e de Israel; o capita-
lismo das grandes empresas alimentícias
continua a expulsar os pequenos agricul-
tores do mundo por meio de práticas sub-
sidiadas de dumping nos países pobres;
800 bases militares dos EUA continuam
a policiar o mundo e a proteger os inte-
resses do capitalismo dos EUA; etc.

Combater o governo Biden,
lutar pelo socialismo
É claro que, a partir da análise acima, é o
capitalismo (o controle dos investimentos
por uma pequena classe, proprietária dos
meios de produção) que cria essas recessões
econômicas recorrentes. A única forma de
chegar à raiz das crises sempre complexas
que atingem os trabalhadores e os povos do
planeta é substituir esse sistema de produ-
ção com fins lucrativos por outro em que o
investimento seja democraticamente deter-
minado pelas necessidades humanas. E,
para tornar essa sociedade socialista uma
realidade, precisamos lutar por um pro-
grama que combine as necessidades mais
prementes da classe trabalhadora interna-
cional (medicina socializada, educação gra-
tuita, moradia para todos, fronteiras abertas,
desmantelamento das bases militares dos
Estados Unidos, e freio imediato à emissão
de gases de efeito estufa e substituição de
combustíveis fósseis, etc.) com a necessi-
dade última de expropriar os capitalistas e
colocar os investimentos sob o controle de-
mocrático dos trabalhadores que produzem
toda a riqueza social.
15
Que estratégia podemos seguir para lutar
por este programa de transição? Como sabe-
mos que os políticos burgueses e os interes-
ses econômicos que eles representam nunca
apoiarão um programa que ameace as fontes
de seu poder e riqueza, o primeiro requisito
para o que precisamos é uma ação em massa
e independência política diante dos capita-
listas.
No entanto, dada a rapidez com que as
principais forças ditas progressistas e social-
democratas se desmobilizaram e passaram a
elogiar o governo Biden, é claro que essa in-
dependência não pode vir deste setor da es-
querda. A cada quatro anos, os EUA
realizam o ritual pelo qual as chamadas li-
deranças dos movimentos sociais e de tra-
balhadores vendem as esperanças de seus
membros ao Partido Democrata, em troca de
"um assento à mesa". É uma espécie de cli-
chê da esquerda falar da "traição" desses lí-
deres, mas seria ingênuo esperar o contrário.
A burocracia sindical, ONGs (incluindo
o Movimento Sunrise e Nossa Revolução),
ativistas pelo cancelamento da dívida estu-
dantil, mais Bernie Sanders e o chamado
“Esquadrão Legislativo do PD” fizeram as
pazes com Biden. Na verdade, há uma visão
consensual nessas organizações e entre os
políticos de que o governo Biden adotou
uma atitude aberta para considerar propostas
políticas progressistas, em contraste com o
desdém aberto de Obama pelos progressis-
tas. Antes mesmo da aprovação da lei de es-
tímulo econômico, a mídia Politico disse:
"Biden colaborou com a esquerda, cooptou-
a e, por enquanto, submeteu-a". Larry
Cohen, chefe de Nossa Revolução (uma or-
ganização afiliada a Sanders), disse ao New
York Times que "nenhuma das pessoas que
temíamos entrou neste gabinete" e o próprio
Sanders votou a favor da nomeação de
Neera Tanden para diretora de orçamento de
Biden, apesar de sua história de lealdade a
[Hillary] Clinton e de ser uma inimiga im-
placável da esquerda.
 Além de não possuir independência po-
lítica, as correntes reformistas representa-
das pela direção dos Socialistas
Democratas da América (DSA) e da ala
esquerda do Partido Democrata têm como
principal estratégia a eleição de políticos
com plataforma progressista ou social-de-
mocrata, a fim de implementar reformas.
Existem dois erros graves nesta estratégia.
Primeiro, nas palavras de Robert Brenner,
a suposição de que a eleição de políticos
progressistas pode conquistar importantes
reformas para a classe trabalhadora:
"Não considera a diferença entre os le-
gisladores imediatos das reformas e os
criadores das ofensivas políticas das mas-
sas que são o que realmente tornam essas
reformas legislativas possíveis. Eles, ca-
racterística e desastrosamente, negligen-
ciam os tumultuosos movimentos de
massa que transformam, a esmo, os que
até então haviam sido políticos reformis-
tas que nada faziam em agentes de mu-
dança social e política”[6].
[6]
The Paradox of Social Democracy: The American Case
[7]
Ver artigo do Voz dos Trabalhadores sobre o assunto: The 1934 Strikes: The historic struggles that got us union recognition
rights and social welfare programs -)
Como descreve em detalhes o ensaio
clássico de Brenner (O Paradoxo da So-
cial-democracia: O Caso Americano),
houve duas grandes ondas de reforma nos
Estados Unidos. A primeira foi nas décadas
de 1930 e 1940 e a segunda na década de
1960. Essas reformas só se concretizaram
porque houve uma explosão de movimen-
tos independentes da classe trabalhadora e
do povo que estavam orientados para a
ação direta e longe do eleitoralismo das
forças do reformismo: as burocracias sin-
dicais, as direções pequeno-burguesas das
organizações progressistas e os políticos
do Partido Democrata.
Na década de 1930, houve uma onda
sem precedentes de greves e mobilizações
sindicais militantes[7], que se desenvolve-
ram fora e contra lideranças burocráticas
reformistas da American Federation of
Labor (AFL). Na década de 1960, os mo-
vimentos pelos direitos civis e pelo Poder
Negro contaram primeiro com a ação di-
reta para desafiar as estruturas racistas e

econômicas, desencadeando uma onda de
organização militante que incluiu mobili-
zações de estudantes, mulheres e anti-im-
perialistas.
A partir desse desafio real aos interesses
da classe dominante, houve um correspon-
dente avanço da consciência (tanto demo-
crática quanto radical) que, junto com a
prosperidade sem precedentes e a lucrati-
vidade capitalista que caracterizou o pe-
ríodo de 1945 a 1970, permitiu uma série
de reformas durante as presidências de
Lyndon Johnson e Nixon (por exemplo, a
Lei dos Direitos Civis, o Programa de
Combate à Pobreza, a criação da Agência
de Proteção Ambiental, etc.).
O segundo problema com a estratégia
eleitoral ou reformista é que, sob o capita-
lismo, todas as reformas pró-trabalhadores
são financiadas pelas receitas fiscais, e a
capacidade do Estado de coletar impostos
depende do crescimento econômico, ou
seja, da lucratividade capitalista. Isso sig-
nifica que uma contração cíclica inevitável
da economia capitalista ou uma retenção
deliberada de investimentos pelos capita-
listas (uma greve do capital) pode desen-
cadear o caos econômico, minando a
legitimidade política de qualquer governo
progressista, forçando-o a abandonar as re-
formas e abraçar medidas antioperárias
para recuperar os lucros e o crescimento.
17
Existem muitos exemplos históricos.
Durante as décadas de 1970, 1980 e 1990,
governos social-democratas em países
como Inglaterra, França, Espanha e Suécia
implementaram políticas de austeridade e
ajuste. Da mesma forma, o governo do
SYRIZA na Grécia, que chegou ao poder
com uma plataforma antiausteridade radi-
cal, em 2015, foi forçado a implementar
um pacote humilhante de políticas de aus-
teridade impostas pela União Europeia. E,
mais recentemente, os governos reformis-
tas de Dilma Rousseff no Brasil, Daniel Or-
tega na Nicarágua e Nicolás Maduro na
Venezuela revogaram reformas anterior-
mente ganhas e implementaram o tipo de
medidas antioperárias (por exemplo, cortes
nas aposentadorias e serviços sociais, ata-
ques à negociação coletiva, repressão de
mobilizações populares, etc.) que foram
eleitos para reverter.
A superação desses obstáculos exigirá
movimentos de massas, combativos e inde-
pendentes da classe trabalhadora, tatica-
mente orientados para a ação direta e a
disposição, se necessário, de infringir a lei
e lutar contra o Partido Democrata, os diri-
gentes sindicais e as lideranças pequeno-
burguesas das ONGs progressistas. Os
mais sofisticados defensores da estratégia
reformista reconhecem tanto as barreiras
estruturais que um governo progressista en-
frenta quanto a centralidade da luta de mas-
sas para superá-las. Então, eles apelam para
a chamada estratégia “dentro-fora”, que
tenta combinar produtivamente a constru-
ção militante das lutas de massa com a con-
quista eleitoral de postos e a gestão do
estado capitalista.
Eles sempre dão como exemplo o apoio
retórico de Bernie Sanders às lutas sociais
e sindicais e apelam a "um movimento de
massas de pessoas comuns para exercer sua
própria pressão sobre os políticos, rivali-
zando com a pressão exercida pelos capi-

talistas, por meio de greves políticas que
reduzam os lucros ou parem o funciona-
mento normal da sociedade”[8]. Isso, é
claro, não é novo: a maioria dos projetos
reformistas apela para mobilizações popu-
lares, na maioria das vezes com uma retó-
rica mais radical (por exemplo o SYRIZA
na Grécia ou Chávez na Venezuela), como
um complemento necessário à atividade
parlamentar. Mas deixaram de lutar e re-
solver as tensões e contradições inerentes
entre o eleitoralismo e a luta de massas.
O conflito mais óbvio entre os dois ob-
jetivos é o das prioridades. Se, como mos-
tra a história, é o poder disruptivo dos
movimentos de massas combativos e não
o dos políticos reformistas eleitos, que cria
as condições para a realização das refor-
mas. Portanto, é claro que construir tais
movimentos é a primeira tarefa atual dos
socialistas (reformistas e revolucionários).
Então, quando os socialistas entram no
jogo da democracia capitalista, que requer
um investimento extraordinário de tempo
e energia em campanhas que começam
[8]
Bernie Sanders Wants You to Fight
18
meses ou anos antes da votação, é difícil
imaginar como haverá recursos suficientes
para construir uma base militante em lo-
cais de trabalho e bairros operários. Cada
hora que um socialista perde panfletando
para candidatos do Partido Democrata, é
uma hora que ele perde para construir mo-
vimentos independentes voltados para a
ação direta no local de trabalho e nas ruas.
Mais importante: vencer a eleição sob o
capitalismo envolve uma estratégia funda-
mentalmente diferente da construção de
movimentos de massas. Como Robert
Brenner explicou, vencer as eleições re-
quer duas coisas básicas: atrair 50% mais
um do eleitorado e fazer com que os apoia-
dores realizem o ato passivo de ir às urnas
e depositar o voto. Por outro lado, greves
e outras ações combativas de massas re-
querem não apenas uma porcentagem dos
participantes, mas um compromisso qua-
litativamente mais profundo. Para vencer
uma batalha contra os empregadores, de
acordo com Brenner, os trabalhadores
devem: “desenvolver a solidariedade mais

poderosa; as-
sumir riscos,
fazer sacrifí-
cios, estar pre-
parados para
realizar ações
ilegais e usar a
força e, por
fim, devem
estar prepara-
dos para de-
senvolver "Por nossos mortos e desaparecidos não é um momento de silêncio, quistar cargos e
ideias que jus- mas uma luta de toda a vida”.
tifiquem essas
ações para si e para os outros. Tudo isso
é necessário para vencer, porque o que
está em jogo é um teste direto de força
com os patrões e/ou o Estado."
Naturalmente, as ações combativas de
massas muitas vezes alienam a classe
média e os eleitores moderados, que estão
sobrerrepresentados no eleitorado. Quanto
mais militante e independente um movi-
mento se torna, maior é a tensão entre a
construção estrutural, a força da classe tra-
balhadora e a vitória nas eleições para go-
vernar o Estado capitalista. Além disso,
como já descrevemos, um movimento
combativo deve muitas vezes enfrentar as
forças do reformismo: a burocracia sindi-
cal e as direções pequeno-burguesas. Isso
expõe uma contradição importante para
uma estratégia voltada para a eleição de
progressistas, pois, sem dúvida, o candi-
dato que apoiar as rebeliões da base corre
o risco de alienar as poderosas burocracias
sindicais, que gastam enormes recursos
elegendo democratas nas eleições.
Propomos uma estratégia socialista al-
ternativa, na qual o centro de gravidade in-
discutível é o desenvolvimento das lutas
democraticamente auto-organizadas da
classe trabalhadora e sua unificação e pro-
gressão gradual em direção a táticas de
ação direta.
19
Isso, é claro, não
significa não par-
ticipar das elei-
ções. Significa
engajar-se em
campanhas inde-
pendentes e de
confronto, não
com o objetivo
principal de con-
administrar o Es-
tado burguês (em-
bora isso seja certamente uma possibilidade
em certos contextos) mas construir, fortale-
cer e conectar movimentos em torno de um
programa de transição que esclareça a ne-
cessidade de rompimento com o Estado e
de avanço para além dos limites do que é
possível sob o capitalismo. Essa estratégia
não só tem muito mais probabilidade de
conquistar reformas muito necessárias, mas
também de realizá-las de uma maneira que
construa a independência e o poder de or-
ganização de nossa classe, em vez de lançar
as bases para a desmobilização e contrarre-
formas.
É exatamente esse tipo de profunda soli-
dariedade, criatividade e autodeterminação
coletiva necessária para vencer greves e ou-
tras ações semelhantes que podem mudar a
correlação de forças entre as classes e
arrancar reformas importantes do governo
Biden. Desafiar os patrões e o Estado dá
aos trabalhadores uma experiência concreta
da força de suas ações. Dá sentido à ideia
de que, como trabalhadores, temos a chave
de nossa própria libertação e devemos con-
fiar em nós mesmos e em nossa força orga-
nizadora para transformar o mundo.
Tradução: Fábio Bosco.
 20

Um processo revolucionário
sacode os Estados Unidos!
Esta declaração da LIT-QI foi elaborada em 10 de junho de 2020, no contexto do surgimento
de rebeliões antirracistas que percorriam o país. A situação atual teve mudanças porque foi
mediada pelo processo eleitoral e a posse do novo governo democrático de Joe Biden. Mas
acreditamos que é impossível compreendê-la, bem como as dinâmicas alternativas que possa
ter, sem levar em consideração as análises e os conceitos que contém..

Declaração da Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional

N
os EUA existe um processo revo-
lucionário em curso. As massas
tomaram as ruas e praças e en-
frentaram-se com a repressão policial, em
uma gigantesca mobilização antirracista,
depois do assassinato de George Floyd.
Essa mobilização, por sua dimensão e
radicalidade, é historicamente inédita.
Existe um processo revolucionário nos
EUA, com características semelhantes às
que surgiram em países semicoloniais,
como no Chile, Colômbia, Iraque, Líbano,
embora também com grandes diferenças.
Só que está se dando no país imperialista
mais poderoso do mundo.
Aquilo que sempre foi mostrado ao
mundo como o modelo da sociedade,
agora aparece duplamente com sua verda-
deira face: a grotesca dominação capita-
lista.
Em primeiro lugar, porque o país mais
poderoso do mundo vive uma crise brutal
pela combinação do racismo, repressão
policial, pandemia e a recessão econômica.
 21
Em segundo porque as massas dos EUA
se levantaram. Essa mobilização, em
pleno pico da pandemia, é um exemplo
mundial para os explorados e oprimidos
de todo o mundo. O imperialismo está
mais fraco nesse momento. É possível
lutar e enfrentar a dominação capitalista.
Esse é um estímulo importantíssimo no
momento em que o mundo todo atravessa
uma crise brutal pela combinação da pan- radores de rua em Nova York. Os salários
demia e a recessão econômica. No mo- dos negros são um terço mais baixos e o de-
mento em que começam a se expressar semprego é muito maior que entre os bran-
novamente a possibilidade de retomada cos.
dos processos revolucio- A violência policial con-
nários que sacudiram o tra os negros é expressão

O
mundo no início do ano, ódio ao racismo e à de um racismo onipre-
o exemplo dos EUA repressão policial é sente nos EUA. As gran-
pode ajudar a incendiar des lutas contra a
outros países. intensificado pela crise
segregação racial, em
econômica e pela pandemia.zx particular nas décadas de
O rei está nu 60 do século passado,
conseguiram abolir as leis
O ódio contra o racismo e a repressão po- segregacionistas, mas não o racismo. O Es-
licial foram enormemente potencializados tado norte-americano é extremamente re-
pela crise econômica e os efeitos da pan- pressivo, com a maior população carcerária
demia. do mundo, em sua maioria negra. A luta con-
Os EUA, nesse momento, têm o maior tra o racismo é inseparável da luta contra o
número de contagiados e mortos pela capitalismo. Como dizia Malcom X: “Não
COVID de todo o mundo. As mais de 115 existe capitalismo sem racismo”. A grande
mil mortes (até agora) são mais que o burguesia utiliza o racismo para aumentar a
dobro das ocorridas na guerra do Vietnã. exploração e jogar os trabalhadores brancos
As valas comuns em Nova York são parte contra os negros.
da mesma barbárie dos mortos nas ruas de É preciso lutar duramente contra o ra-
Guaiaquil, no Equador. A ausência de um cismo e buscar unir os trabalhadores negros
sistema público de saúde afetou direta- e brancos nessa luta contra a exploração e a
mente a população mais pobre. Não por opressão. O exemplo da juventude branca
acaso, a taxa de mortalidade da COVID presente nos atos dos EUA fica como mais
para os negros é o dobro da dos brancos. uma lição dessas lutas.
A recessão mundial que está se ini- O que está explodindo agora nos EUA é
ciando tem números que se aproximam ao um acúmulo de décadas de exploração e
da depressão de 1929 nos EUA, e podem opressão. É o capitalismo que ataca dura-
ser ainda piores. A previsão é de queda de mente as massas, uma panela de pressão que
14,2% no primeiro semestre deste ano. a combinação de pandemia, recessão e ra-
Mais de 40 milhões de pessoas pediram cismo fez explodir. O rei está nu. O “sonho
auxílio-desemprego. Existem 70 mil mo- americano” é o próprio pesadelo capitalista.

Uma gigantesca mobilização…
sem o controle do
Partido Democrata
Uma mobilização espontânea, gigantesca, sa-
cudiu as principais cidades do país depois do
assassinato de George Floyd por um policial
branco. Nas ruas, as pessoas improvisavam
cartazes e faziam pequenos comícios. Os que
não estavam nas ruas, aplaudiam das janelas.
Em alguns lugares, supermercados foram sa-
queados pelo povo que buscava comida.
Os negros são 13% da população dos
EUA. As multidões nas ruas incluíram ne-
gros, brancos, latinos, asiáticos. Houve uma
grande participação da juventude branca, que
muitas vezes tomou a frente das mobiliza-
ções para evitar que os policiais continuas-
sem matando negros. A explicação para a
mobilização de conjunto é não só a sensibili-
dade contra a opressão racista, mas a crise so-
cial brutal nos EUA, que afeta as massas
empobrecidas.
A burguesia reagiu assustada. Trump, rai-
voso, exigiu mais repressão dos governado-
res, ameaçou mandar matar, colocar o
exército nas ruas. Os governadores e prefei-
tos do Partido Democrata diziam entender os
motivos dos manifestantes. Tentavam cana-
lizar o ascenso raivoso das massas para as
eleições de novembro. Não deu certo. Man-
daram a polícia e decretaram toque de recol-
her, exatamente como os republicanos. A
repressão policial fez milhares de presos, vá-
rios mortos. As pessoas não saíram das ruas.
A Casa Branca ficou cercada por manifes-
tantes raivosos, com um cenário de destrui-
ção nos quarteirões ao redor. As multidões
nas ruas derrotaram o toque de recolher em
muitas cidades. Uma delegacia de polícia e
dezenas de carros de polícia foram incendia-
dos em todo o país. A situação saiu do con-
trole.
22
Os aparatos de repressão deram claros si-
nais de crise. Dirigentes e ex-dirigentes do
Pentágono, incluindo vários generais, posi-
cionaram-se contra Trump, questionando
sua proposta de colocar as Forças Armadas
para reprimir o povo.
Em muitas cidades, os prefeitos suspen-
deram o toque de recolher. A polícia teve de
recuar muitas vezes perante multidões dis-
postas ao enfrentamento. A indignação po-
pular contra a repressão policial cresceu
fortemente. Em muitos locais, começaram
a aparecer policiais juntando-se às manifes-
tações, ajoelhando-se como na ação antirra-
cista de Colin Kaepernick em 2016. A
repressão recuou parcialmente, demons-
trando a força das ruas.
A crise do governo e do regime nos EUA
é consequência da força da mobilização.
Isso não vai acabar tão cedo, mesmo que as
mobilizações atuais retrocedam pelo can-
saço, pela repressão ou pela falta de uma di-
reção revolucionária.
Em muitos países, em particular na Eu-
ropa, deram-se grandes mobilizações de
apoio às lutas nos EUA. Não é por acaso.
Existem muitas situações semelhantes nes-
ses países: além da pandemia e da recessão,
também a opressão contra os negros e con-
tra os imigrantes.
 A multidão nas ruas incluiu negros, brancos, latinos e asiáticos.zx
O problema central da direção
das lutas
Ao contrário da maioria das mobilizações
do passado, as lutas hoje nos EUA não são
dirigidas pelo Partido Democrata. A espon-
taneidade das mobilizações, como ocorreu
em muitos processos revolucionários desses
últimos anos, é a maior virtude dessas lutas
nos EUA. Assim, elas não podem ser con-
troladas pelos burocratas sindicais ou pelos
representantes do Partido Democrata. É,
também, sua maior debilidade, por não ter
uma direção revolucionária, não se organi-
zar nem definir um programa, não apontar
para uma perspectiva definida.
Nesse momento, já existem sinais de que
o Partido Democrata tenta canalizar o pro-
cesso para o parlamento e para as eleições
de novembro. Os democratas apresentaram
um projeto no congresso para limitar a re-
pressão policial. Muitos parlamentos locais
estão apresentando propostas de redução do
financiamento à polícia. O Conselho Muni-
cipal da cidade de Minneapolis propôs ex-
tinguir a atual polícia e montar uma nova.
O setor do movimento Black Lives Matter
que foi cooptado pelo Partido Democrata,
também apresentou um programa limitado
com sentido eleitoral. Joe Biden, o candi-
dato democrata, passou à frente de Trump
nas pesquisas depois de tudo isso, e pro-
mete que tudo mudará se for eleito.
Se conseguirem canalizar essas lutas
para os parlamentos e o processo eleitoral,
os democratas conseguirão, mais uma vez,
esterilizar esse processo fantástico.
É necessário avançar na auto-organiza-
ção e autodefesa nos bairros e nas mobili-
zações para enfrentar a repressão. Avançar
na auto-organização dos trabalhadores
pela base contra as burocracias! É preciso
impulsionar os setores dos trabalhadores
organizados e da juventude para apoiar as
manifestações de rua.
É preciso um programa de emergência
que parta das lutas contra o racismo e a re-
pressão, para avançar em uma resposta re-
volucionária à pandemia e à crise
econômica. É necessário lutar duramente
para derrotar o governo Trump nas lutas
diretas das massas, sem esperar pelo pro-
cesso eleitoral, sem confiar nos democra-
tas! É preciso lutar por um governo dos
trabalhadores nos EUA!
É necessário construir uma nova direção
revolucionária no curso das lutas nos EUA
e no mundo!
 24

Declaração sobre os assassinatos

policiais em abril 2021
Em 11 de abril, Daunte Wright, um homem negro de 20 anos, foi morto por uma
policial no Brooklyn Center, Minnesota, durante uma blitz de trânsito. Em qualquer
circunstância, este crime seria um incidente de excesso de impunidade policial.
Mas é especialmente ultrajante porque aconteceu a cerca de 16 km de Minneapolis,
onde está ocorrendo o julgamento de Derek Chauvin pela morte de George Floyd.

Comitê Central de Workers’ Voice / A Voz dos Trabalhadores

A
defesa do Departamento de Polícia do
Brooklyn Center é que a policial ati-
rou acidentalmente em Wright com
sua pistola em vez de um taser, uma explicação
tão descaradamente inadequada que desafia a
razão. É preciso dizer que o taser foi projetado
para ser perfeitamente distinguível de armas de
fogo, que quem atirou é policial há 26 anos e
que estava treinando um novo policial quando
assassinou Daunte Wright, refutando qualquer
argumento de inexperiência que pudesse expli-
car o erro. É importante elucidar que disparar
um taser em Wright também teria sido uma
ação injustificável de violência, dadas as cir-
cunstâncias de uma blitz de trânsito. Mais uma
vez, a brutal indiferença policial foi filmada,
exatamente quando a atenção do país se volta
para outro caso de assassinato policial, a pou-
cos quilômetros de distância.
Quatro dias depois, em 15 de abril, a polícia
assassinou Miles Jackson durante uma busca
de rotina em um hospital, atingindo-o com uma
arma de choque antes de matá-lo com um tiro.
No mesmo dia, as autoridades de Chicago di-
vulgaram imagens de disparos contra Adam
Toledo, de 13 anos, mostrando-o com as mãos
levantadas e desarmado no momento em que
foi assassinado. O prefeito Lightfoot e o De-
partamento de Polícia, anteriormente, haviam
ocultado imagens de três semanas atrás, le-
vando o público a acreditar que Adam estava
armado quando foi baleado.
Em Minnesota, os governos estadual e mu-
nicipal responderam enviando forças policiais
e 500 membros da Guarda Nacional para repri-
mir os protestos. Por outro lado, 100 trabalha-
dores do Sindicato Unido do transporte
recusaram-se a colaborar com a polícia muni-
cipal ou a permitir que usassem os ônibus para
transportar manifestantes detidos para a prisão
e trabalhadores de vários sindicatos expulsa-
ram soldados da Guarda Nacional que ocupa-
ram a sede de um sindicato local. Essas ações
solidárias são cruciais na luta contra a brutali-
dade policial, ações políticas organizadas dos
trabalhadores que obstruam recursos às forças
repressivas do Estado para reprimir o movi-
mento de massas.
O racismo e a violência são a espinha dorsal
do sistema policial estadunidense, cuja história
está amplamente documentada. Independente-
mente do destino dos assassinos de George
Floyd e Daunte Wright, o problema do racismo
policial não desaparecerá até que toda a insti-
tuição seja eliminada. Exigimos o fim da imu-
nidade institucional dos policiais que lhes
permite atuar com impunidade, bem como o
desarmamento e dissolução da força policial, e
sua substituição por organizações de autode-
fesa comunitárias, democraticamente controla-
das, que trabalhem para proteger e não
aterrorizar a população negra e os bairros da
classe trabalhadora. A Voz dos Trabalhadores
marcha em solidariedade aos manifestantes
exigindo justiça em Minnesota, Chicago, Ohio
e em todo o país.
Justiça para Adam Toledo, Daunte Wright e
Miles Jackson! Dissolução da Polícia!
 25
[1]
Trump: triste, solitario e ¿final?
O mandato presidencial do republicano Donald Trump terminou em meio a
uma situação nunca antes vista no país. Inicia-se o mandato do democrata
Joe Biden. Qual é o significado destes eventos para os Estados Unidos
e para o mundo?

Alejandro Iturbe

não tinham como objetivo tomar o poder.

E
m 6 de janeiro passado, entre 8.000
e 30.000 pessoas (a estimativa varia
segundo a mídia), vindas de dife-
rentes partes do país, manifestaram-se con-
tra a ratificação pelo Congresso dos
resultados eleitorais que colocavam Joe
Biden como vencedor. Foram instigados
pela campanha de Trump de que ele tinha
sido o vencedor e que ele “foi roubado”.
Dessa multidão, cerca de 1.000 pessoas
entraram no Capitólio à força, ocuparam-
no por várias horas, e obrigaram a suspen-
são da sessão. As imagens percorreram o
país e o mundo, em especial a de Jake An-
geli (o estranho personagem com o corpo
pintado e um chapéu com chifres), que se
sentou na cadeira do presidente do Senado.
“Alguns eram extremistas que usavam a
multidão como cobertura…”, uma revista
de Boston informava[2].
Uma parte da imprensa pró-democrata
dos EUA - e outras mídias no mundo - qua-
lificou o ocorrido como uma “tentativa fra-
cassada de golpe de Estado”. Acreditamos
que esta definição esteja equivocada. É ver-
dade que alguns grupos e indivíduos esta-
vam dispostos a sequestrar e a matar, mas
Por isso, acreditamos que a palavra mais
correta a usar seja “motim”. De certa forma,
foi o que as organizações guerrilheiras de
esquerda dos anos 70 chamavam de “ação
de propaganda armada”, como parte de uma
estratégia golpista. Por isso, não devemos
subestimar o fato representado pela pri-
meira ação coordenada e centralizada de
um grupo heterogêneo de organizações de
extrema-direita, que veremos a seguir com
mais detalhes.
Porém, o grosso dos participantes da ma-
nifestação era composto por “americanos
normais”, segundo palavras do artigo do
The Atlantic já citado: setores da classe
média, incluindo proprietários e gerentes de
pequenas empresas. Os trabalhadores não
podem se permitir perder dias de trabalho
para participar de uma mobilização em
outra cidade e, menos ainda, pagar uma
passagem de avião para isso.

[1]
Triste, solitário e final é o primeiro romance do escritor e jornalista argentino
Osvaldo Soriano. Foi publicado pela Editorial Bruguera em 1973
[2]
The Thoroughly Respectable Capitol Rioters

Os grupos de extrema-direita
A análise dos grupos que realizaram a ocu-
pação do Capitólio exige que sejamos
mais precisos. Vejamos as organizações
que foram identificadas.
Os Proud Boys (Garotos Orgulhosos)
é uma organização política neofascista
fundada em 2016. Só admitem homens
como membros e estiveram envolvidos
em vários atos violentos no país e no Ca-
nadá.
Os Oath Keepers (Guardiões do Jura-
mento) é uma organização fundada em
2009, sob a forma de milícia clandestina e
integrada por ex-membros e membros das
forças armadas e policiais.
Os Three Percenters (Três Por Cento)
é um movimento de milícias e grupos pa-
ramilitares fundado em 2008. Pregam uma
espécie de “anarquismo de extrema-di-
reita”: defendem o direito de posse de
armas (existente na legislação do país,
mas que se busca restringir) e formam pe-
quenas “repúblicas” nas quais negam o di-
reito de intervenção do governo.
D
evemos começar a
caracterizar os grupos
de extrema-direita como
um embrião de movimento
fascista. zx
[3]
Ver Teorias conspiratórias do QAnon varrem o
mundo e são mais perigosas do que parecem
e QAnon ganha cada vez mais força na Alemanha
26
O Traditionalist Worker Party (Par-
tido Operário Tradicionalista) foi uma or-
ganização neonazista ativa entre 2013 e
2018. Embora formalmente dissolvido,
seus membros continuam atuando em gru-
pos menores.
Os Neo-Confederados são aqueles que
reivindicam a Confederação, um núcleo de
estados do sul do país que se separaram dos
EUA em 1861, pela sua oposição à abolição
da escravidão, dando início à Guerra de Se-
cessão, na qual foram derrotados em 1865.
Diversos grupos reivindicam seus “ideais”
racistas e conservadores contra o Norte “co-
rrupto e libertino”.
O QAnon é o mais extravagante destes
grupos (a ele pertence o “homem do chapéu
com chifres”). Partem de uma “teoria da
conspiração” na qual um “governo pro-
fundo de pedófilos satanistas” quer levar a
humanidade à sua degradação, e uma gue-
rra secreta foi estabelecida contra eles.
Trump seria o Salvador e o líder dessa gue-
rra. Grupos adeptos a esta teoria expandi-
ram-se para outros países, por exemplo,
para a Alemanha[3].

Depois da mensagem de Trump cla-
mando “pela paz”, algumas horas após a
ocupação do Capitólio, ocorreu um distan-
ciamento de sua figura por parte dos grupos
que intervieram. Os Proud Boys qualifica-
ram-no de “fracassado” e também recebeu
críticas dos Oath Keepers e dos Three Per-
centers. Por sua vez, um segmento impor-
tante de seguidores do QAnon abandonaram
o site do grupo com comentários como
“fomos enganados”, enquanto, ao mesmo
tempo, muitas pessoas novas queriam ade-
rir[4].
Como combater este perigo?
Embora, como vimos, trata-se de grupos de
origens e visões distintas, a figura de Donald
Trump atuou como catalisador, e começaram
a ter uma ação coordenada. Acreditamos que
a denominação de “extrema-direita” já não
seja suficiente para defini-los e que devemos
começar a caracterizá-los como um em-
brião de movimento fascista (possivel-
mente o QAnon mereça uma análise mais
específica sobre sua dinâmica).
Para isso, consideramos duas de suas
ações mais recentes. Primeiro, os ataques
(inclusive armados) a algumas das rebeliões
antirracistas, que ocorreram em numerosas
cidades após o assassinato de George Floyd.
Ou seja, mostras incipientes de métodos de
guerra civil contra o movimento de massas,
uma das características distintivas do fas-
cismo. A segunda é o ataque físico às insti-
tuições da democracia burguesa e aos seus
representantes, como vimos em 6 de janeiro.
Ainda são grupos muito minoritários,
mas que podem crescer rapidamente, com
base em setores desesperados da classe
média e setores operários brancos empobre-
[4]
Ver QAnon: Após posse de Biden, apoiadores de Trump criam teorias da conspiração; ou
Por que os seguidores do QAnon ficaram divididos com a saída de Trump do poder y Extremistas apoiadores de Trump, Proud
Boys mudam discurso e chamam ex-presidente de 'fracasso total'
27
cidos e lumpenizados, à medida que a crise
econômica e social que o país vive se man-
tenha e aprofunde, sem ser resolvida pelas
instituições da democracia burguesa, e que
o movimento operário e suas lutas não apre-
sentem uma alternativa revolucionária para
sair da crise.
Se nossa caracterização destes grupos es-
tiver correta, cabe aplicar a frase que, tanto
Leon Trotsky quanto o dirigente anarquista
espanhol Buenaventura Durruti utilizaram:
“Com o fascismo não se discute, o fascismo
se combate [se destrói]”. Isto significa que
os métodos a serem aplicados contra estas
organizações são totalmente diferentes do
que deve ser utilizado para ganhar as massas
e sua consciência de outras influências bur-
guesas.
C
ombate-se o fascismo com
a ação das massas, por
meio da autodefesa de suas
organizações, das greves e
mobilizações contra seus
ataques. zx
O fascismo deve ser combatido com a
ação das massas, particularmente através da
autodefesa de suas organizações, greves e
mobilizações contra seus ataques. Conside-
ramos que este direito de autodefesa tam-
bém existe à repressão “institucional” por
parte das forças policiais e de segurança.
Um elemento complementar, mas impor-
tante, é a exigência às instituições da demo-
cracia burguesa de julgamento e punição
dos participantes nesses ataques. Neste sen-
 28
tido, consideramos que a categoria jurídica Funcionários do Pentágono disseram na
utilizada tanto para o processo de impea- quinta-feira que essa força tinha recusado
chment de Trump quanto para as acusações uma oferta de tropas adicionais da Guarda
contra os detidos em 6 de janeiro (sedição) Nacional antes do assalto, e dois policiais
é ambígua e muito perigosa, porque essa disseram que inicialmente tinham recusado
mesma acusação foi utilizada em outras a ajuda do FBI enquanto a aglomeração
ocasiões contra as organizações operárias e descia”[5].
suas lutas.
Nenhuma das forças policiais estava pre-
Ao mesmo tempo, a uma tentativa fas- parada para enfrentar uma multidão armada
cista de golpe de Estado que vise derrubar e violenta: foram superadas em número e
as instituições da democracia burguesa, de- não possuíam equipamentos antidistúrbios.
fendemos estas instituições em unidade de Depois dos fatos, “O chefe da Polícia da
ação com todos os que concordarem com cidade, Robert Contee, disse em uma cole-
isso, inclusive setores burgueses, mas com tiva de imprensa que não havia informa-
nossos métodos e estratégia. ção da inteligência que sugerisse que
haveria uma violação do Capitólio dos Es-
A ação da polícia tados Unidos”. E o chefe da Polícia do Ca-
Os amotinados não seriam capa- pitólio, Steven A. Sund, disse em
zes de entrar no Capitólio e um comunicado que tinham um
mantê-lo ocupado se não hou- Estamos aqui
vesse conivência da força poli- para defender
“ “plano sólido estabelecido para
enfrentar os criminosos”[6].
cial destinada a defendê-lo. O Diante dessas declarações, só se
New York Times observa que: “A os negócios e as pode falar em uma absoluta in-
polícia do Capitólio pareceu ofe- propriedades”. zx competência para cumprir suas
recer pouca resistência e pren- funções ou, como é nossa opi-
deu somente 14 pessoas, o que nião, de uma conivência com o
tornou muito mais difícil encontrar e acu- motim.
sar os desordeiros, segundo um oficial da
Não é a primeira vez que forças policiais
lei envolvido na coordenação da resposta…
mostram esta atitude as
ações destes grupos. Durante
as manifestações na cidade
de Kenosha (Wisconsin), de-
pois da selvagem agressão a
tiros de um policial branco a
um jovem negro, os manifes-
tantes gravaram vídeos com
seus celulares onde se vê um
jovem branco atirando nos
manifestantes com um rifle
automático de estilo militar e
matando dois deles. Foi iden-
tificado como Kyle Ritten-

[5]
Police Failures Spur Resignations and Complaints of Double Standard
[6]
Justice Department warns of national security fallout from Capitol Hill insurrection
house, de 17 anos, residente
na cidade de Antioquia, Illi-
nois, a 30 minutos de Ke-
nosha. Depois, apareceram
entrevistas prévias nas
quais, junto a outros ho-
mens brancos armados, di-
ziam estar ali para
“proteger os negócios e as
propriedades”. Outros ví-
deos mostram policiais que
passavam pelo lugar e con-
versavam amavelmente com eles. Os agen-
tes não realizaram nenhuma ação contra
Kyle depois que ele atirou, e limitaram-se
a ir ao local onde estavam as vítimas. Só foi
detido depois de sua identificação pela di-
vulgação dos vídeos, e agora enfrenta a
acusação de homicídio intencional[7].
Ou seja, não só existem quadros médios
e agentes das forças policiais que integram
diretamente estes grupos, como no caso dos
Oath Keepers, como, de forma mais geral,
são considerados uma espécie de “força au-
xiliar” na tarefa de reprimir o movimento
de massas. Uma realidade que reforça ainda
mais o que propomos: o direito de autode-
fesa também se aplica diante da repressão
policial.
Neste contexto, é muito possível que es-
tejam ocorrendo atritos dentro das próprias
forças policiais, já que uma parte (embora
minoritária) de seus quadros médios e agen-
tes provém dos mesmos bairros negros, la-
tinos e pobres que os setores que devem
reprimir. É o que poderia explicar o rumo
que tomou a trama da oitava temporada da
reacionária série policial Chicago PD –
Distrito 21, na qual um detetive negro en-
frenta uma numerosa família de policiais
brancos racistas por denunciar o assassinato
de um pacífico pai de família negro[8].
A burguesia abandona Trump
Qual foi o papel de Donald Trump nestes
fatos? Duas coisas são evidentes. A pri-
meira é que foi o “mentor ideológico” do
clima que os gerou, com sua agressiva cam-
panha prévia de “impeçam o roubo” du-
rante todo o processo de apuração de votos
e a negação em reconhecer a legitimidade
de sua derrota, em um regime democrático
burguês.
A segunda é que, uma vez ocorrida a
ocupação do Capitólio, manteve uma ina-
ção de 5 ou 6 horas, segundo foi documen-
tado pelo Washington Postt[9], quando, de
acordo com a Constituição, seu cargo de
Chefe de Estado e comandante das Forças
Armadas exigia que tivesse uma ação su-
mária para defender o Capitólio e reprimir
os que o haviam ocupado.
Toda esta campanha de ataque à demo-
cracia burguesa teve um alto custo político

[7]
Tracking the Suspect in the Fatal Kenosha Shootings
[8]
Após George Floyd, 8ª temporada de Chicago P.D. leva racismo policial a sério
[9]
Six hours of paralysis: Inside Trump’s failure to act after a mob stormed the Capitol
 30
para Trump: os setores Goldman Sach, JPMor-

O
centrais da burguesia, a s setores centrais da gan Chase, Citigroup,
cúpula das Forças Arma-
burguesia deixaram Trump Bank of America e
das, a grande mídia (não Wells Fargo) congela-
só os pró-democratas cada vez mais isolado. zx ram todas suas contri-
como também outros que buições ao Partido
antes o apoiavam, como a Fox) e inclusive Republicano como castigo, e impulsionam
uma parte de seu próprio partido “largaram a expulsão de Trump. Outras entidades,
a sua mão” e deixaram-no cada vez mais como o banco Morgan Stanley, adotaram
isolado. resoluções na mesma direção, porém me-
Por exemplo, a National Association of nores, como suspender as doações aos le-
Manufacturers (um poderoso grupo de em- gisladores que não reconheceram o triunfo
presas, entre as quais se contam a Pfizer, de Biden [11].
Johnson & Johnson, Toyota, Dow Inc., Ca- No caso das Forças Armadas, os oito ge-
terpillar, Goodyear e Emerson Electric) nerais membros do Estado-Maior Conjunto
emitiu uma declaração pedindo que Trump emitiram um comunicado no qual conde-
fosse removido pela via do impeachment: nam ocupação do Capitólio: “A violenta re-
“Isto não é Estado de direito. Isto é o caos. volta…foi como um assalto direto ao
É a regra da máfia e é perigoso. Isto é se- Congresso dos EUA, ao Capitólio, e ao
dição e deve ser tratada como tal”[10]. nosso processo constitucional”, disseram
A maioria dos grandes bancos (como o as autoridades militares. O texto agrega:

“Qualquer ato que perturbe

o processo constitucional
não só vai contra nossas tra-
dições, valores e juramento,
como também contra a
lei”[12]. Isto é, localizam-se
em uma nítida defesa do re-
gime democrático burguês.
Ao mesmo tempo, é um
comunicado emitido no
marco da preocupação, por-
que os grupos que assaltaram
o Congresso têm partidários
nas Forças Armadas e nas de
segurança. Por fim, todo um
setor de dirigentes republica-
nos também o abandonou.

[10]
Manufacturers Call on Armed Thugs to Cease Violence at Capitol
[11]
Corporate America Rethinks Political Donations
[12]
La cúpula militar de EEUU condenó el asalto al Capitolio de los partidarios de Trump

Mitch McConnell, líder da maioria do
partido no Senado, nunca apoiou suas de-
núncias de roubo: “A eleição nem sequer foi
apertada”, declaro[13]. Numerosas cortes su-
premas e responsáveis pela eleição em Es-
tados que eram de tradicional maioria
republicana e agora perdiam (como Geórgia
ou Arizona) rechaçaram suas denúncias. Até
seu vice-presidente Mike Pence negou apoio
e foi duramente criticado por Trump por
“falta de coragem”[14]. Alguns dias antes,
tinha chamado os tradicionais dirigentes re-
publicanos de “líderes velhos e cansa-
dos”[15].
A crise do Partido Republicano
O
s republicanos refletem
os setores decadentes
da produção. zx
A verdade é que este partido vive uma pro-
funda crise. Uma crise que não é nova, por-
que reflete a combinação entre processos
estruturais do capitalismo nas últimas dé-
cadas, resultados da luta de classes e, inclu-
sive, dinâmicas populacionais no país.
[13]
Líder republicano critica tentativa de Trump de reverter derrota nas eleições; Pence diz que não tem poder de mudar
resultado
[14]
Idem.
[15]
Trump critica Partido Republicano contra possível bloqueio de seu veto no Congresso
31
No sistema bipartidário americano, com-
partilhado com os democratas, os republica-
nos assumiram o papel do “policial mau”,
com perfil direitista e uma base eleitoral tra-
dicional de classe média urbana reacionária
e a maioria dos setores agrários.
Ao mesmo tempo, expressam uma coali-
zão burguesa diferente dos democratas, com
centro no setor petroleiro, e integrada tam-
bém pelo complexo militar-industrial (em-
presas como a Boeing, a Lockheed e outras)
e o agronegócio. Uma das tendências de
longo prazo do capitalismo é o “envelheci-
mento” e a redução das indústrias e tecno-
logias baseadas nos combustíveis fósseis e
o surgimento, como setor mais dinâmico,
dos ramos baseados em tecnologias com
energia elétrica, obtidas de fontes alternati-
vas ou com muito menor consumo de ener-
gia, como o que se denominou “telemática”.
Até agora, estas burguesias tendem a se ex-
pressar através dos democratas. Ou seja, os
republicanos refletem ramos em declínio.
Ligado ao exposto anteriormente, deve-
mos nos referir à derrota do Projeto do Novo
Século Americano, lançado pelo ex-presi-
dente George Bush Jr., no início deste sé-
culo, para avançar no domínio dos recursos
naturais no mundo (essencialmente o petró-
leo): se os Estados Unidos não garantissem
sua hegemonia neste campo, retrocederiam
como potência mundial. Para isso, era válido
e necessário utilizar métodos agressivos e
bélicos contra outros países, o que se deno-
minou “Guerra contra o Terror”. Mas, este
projeto foi derrotado militarmente nas gue-
rras do Iraque e do Afeganistão. Estas derro-
tas somaram-se ao conhecimento das
mentiras e falsificações que o governo utili-
zou para justificá-las e geraram um grande

A
dinâmica
recessiva da
economia foi
acentuada com
a pandemia. zx
desprestígio dos republicanos. Como conse-
quência, o imperialismo deu um giro tático
de direção para os democratas e a figura Ba-
rack Obama[16].
Obama terminou seus dois mandatos com
muito prestígio. Entretanto, as grandes ex-
pectativas que as massas depositaram nele
se viram em grande parte frustradas pela
forma com a qual respondeu à crise iniciada
em 2007/2008 (salvando empresas e ban-
cos), pela sua política de expulsão em massa
dos imigrantes, e pela manutenção da legis-
lação repressora dos “três delitos” de Bill
Clinton. Isto gerou um certo desgaste do
eleitorado democrata e algumas rupturas in-
cipientes (atenuadas pelo papel de Bernie
Sanders), que se acentuaram pela candida-
tura conservadora e de pouco carisma de Hi-
llary Clinton[17].
De repente, Donald
É neste marco de um processo de crise do
regime bipartidário (muito profundo nos
republicanos, mais lento nos democratas)
[16]
Sobre esta questão, recomendamos ler: La reacción democrática. Del síndrome de Vietnam al síndrome de Irak
[17]
Sobre o governo Obama ver: O balanço do governo Obama - LIT-QI; e sobre Sanders: Bernie Sanders: El candidato
independiente de los trabajadores o una trampa?
32
que aparece Donald Trump, um poderoso
empresário da construção e dos negócios
imobiliários. De personalidade arrogante,
machista e egocêntrico, tinha ganhado
popularidade com o reality show The
Apprentice (O Aprendiz), no qual doze
pessoas disputavam um cargo em suas
empresas. Cunhou a famosa frase “you are
fired” (você está despedido).
Em 2015, concorre como pré-candidato
republicano à presidência e ganha com
folga as eleições primárias do partido, com
um discurso populista de direita (America
First) que prometia recuperar a grandeza
dos EUA ante um mundo que “se aprovei-
tava” dessa “debilidade”. Faz críticas aos
“políticos de Washington” e aos “parasitas
de Wall Street” que “não sabem o que é
trabalhar”, enquanto mantinha seu perfil
machista, homofóbico e racista. Nas eleições
presidenciais, embora tenha obtido menos
votos populares que Hillary Clinton, acaba
sendo eleito pelo antidemocrático sistema
de Colégio Eleitoral (eleição indireta), no
qual obtém maioria.

No contexto da crise que se arrastava,
Trump revive o partido republicano. Mas o
faz transformando-o. Por um lado, vai do-
minando cargos de governadores, prefeitos,
senadores e deputados que se elegem a re-
boque de seu êxito eleitoral e que deslocam
a velha guarda republicana. O mesmo ocorre
com numerosos cargos do aparato do Estado
e as cortes de Justiça.
Por outro lado, amplia sua base, pois ao
eleitorado tradicional se soma a mobilização
eleitoral muito maior dos setores agrários
inferiores do “interior profundo” e, essen-
cialmente, o apoio de setores da velha
classe operária branca, castigados pela re-
dução das indústrias tradicionais.
Trump não era o presidente que os setores
centrais da burguesia estadunidense queriam.
Mas o aceitam, buscam domesticá-lo e
aproveitam-se dele. Foi o caso da reforma
tributária aprovada em 2017, com uma
grande redução de impostos às empresas, e
da guerra comercial-tecnológica contra as
empresas chinesas para fechar o caminho à
sua expansão nos mercados de celulares e
computadores.
Mas, “a mesa começou a virar”. Primeiro,
com uma dinâmica de freio e recessão da
economia em 2019, que daria um salto
muito grande com a pandemia, em 2020.
[18]
¡Un proceso revolucionario sacude Estados Unidos!
[19]
Estados Unidos: entre a rebelião negra e as eleições
33
Depois, com uma gestão desastrosa da
própria pandemia, que fez com que os
EUA, um país com gigantescos recursos
tecnológicos e farmacológicos para derro-
tá-la, tivessem os piores resultados do
mundo.
Um elemento essencial da dinâmica da
situação foram as rebeliões antirracistas
que eclodiram em todo o país depois do
assassinato de George Floyd, que agravaram
a crise do regime[18]. Nesse contexto, os
setores centrais da burguesia norte-ameri-
cana veem a necessidade de fazer uma
mudança de direção e, essencialmente, que
é necessário “apagar o incêndio” e canalizar
para o processo eleitoral[19].
Inicialmente, Trump colabora com esta
tarefa, atraindo uma grande quantidade de
eleitores republicanos. Mas, à medida que
as pesquisas apontavam-no como perde-
dor, começa a “descarrilhar”, fazendo de-
núncias de uma fraude preparada contra
ele. Ao manter a posição de que estavam
roubando durante a eleição, começou a
gerar a ruptura em massa da burguesia com
ele. Porque a política central era recompor
o regime democrático burguês através da
confiança nas eleições, e Trump estava
bombardeando esta confiança. A ocupação
do Capitólio foi a gota d’água.
Não tão solitário
Dissemos que Trump ficou isolado pela
ruptura dos setores centrais da burguesia
com ele. Entretanto, se considerarmos a so-
ciedade norte-americana de conjunto, não
está tão só. Ele criou objetivamente uma
nova corrente política (o trumpismo) com
um peso social importante e que teve con-
tinuidade após sua derrota eleitoral e inclu-
sive após os fatos do Capitólio. Vejamos
alguns dados.

Uma recente pesquisa mostrou que 60%
dos eleitores republicanos querem que
Trump continue sendo o líder do partido. Se
considerarmos os votos que obteve na última
eleição, isto significa um respaldo de 45 mil-
hões de pessoas, cerca de 30% do eleitorado
do país, porcentagem muito semelhante ao
índice de aprovação com que deixou a presi-
dência[20]. Outra pesquisa mostra que 75% de
seus eleitores republicanos
acreditam que Trump “gan-
hou a eleição”[21].
Aqui é preciso fazer uma
observação: esta corrente
trumpista é muito reacionária
e baseia-se nos setores sociais
que analisamos. Mas não é
fascista, pelo menos por
agora, embora em sua ex-
trema-direita se localizem as
organizações, por ora muito
minoritárias, que também já
consideramos.
Ao mesmo tempo, o peso eleitoral do
trumpismo gera contradições devastadoras
no interior do partido Republicano. Vimos
que os setores centrais da burguesia pedem
que tirem Trump de cima. A velha guarda re-
publicana estaria de acordo com isso, para
recuperar o controle do partido e voltar a
transformá-lo em uma ferramenta útil para o
regime bipartidário burguês[22].
Mas, um número importante de governa-
dores, prefeitos, senadores e deputados repu-
blicanos precisam do apoio de Trump e do
34
trumpismo para se eleger ou se reeleger.
Então, não entram nessa linha, ou recuam
no caso de tê-la apoiado. Isto começa a
se expressar no processo do julgamento
político pós-mandato que tramita no Se-
nado, já que a maioria dos senadores re-
publicanos votaria contra sua condenação
e, assim, não dariam a maioria de 2/3 de
votos necessários[23].
Marco “Marc” Rubio,
senador republicano pela
Flórida, de origem cubana,
tem muito peso nessa
comunidade que reside
em seu Estado.
Mesmo Marc Rubio, senador pela Fló-
rida, de origem cubana, que acompanhou
Obama em sua visita à Ilha para retomar
relações diplomáticas e comerciais (ou
seja, enfrentando Trump neste ponto),
opôs-se ao impeachment por considerá-lo
“estúpido e contraproducente”[24].
Não por acaso, nestes dias circulou a
notícia de que Ivanka Trump (filha do ex-
presidente) poderia se postular como pré-
candidata à senadora pela Flórida e
competir com Rubio[25].

[20]
"Volveré de alguna forma": qué va a pasar ahora con Trump y el "trumpismo"
[21]
Pesquisa do Pew Research Center realizada entre 8 e 12 de janeiro de 2021.
[22]
El Partido Republicano está en guerra consigo mismo mientras traza su futuro pos-Trump
[23]
Impeachment de Trump: por que condenação de ex-presidente pelo Senado agora parece mais difícil
[24]
Giro 15:26 Republicanos anunciam que irão se opor a impeachment de Trump
[25]
Posible candidatura de Ivanka Trump como senadora por Florida le pone los pelos de punta a Marco Rubio

O futuro do trumpismo
Esta corrente trumpista chegou para ficar,
no contexto da situação econômica, política
e social dos EUA. Quais são as alternativas
para seu futuro? De modo imediato, depois
de sua saída da presidência, Trump refu-
giou-se em um exclusivo clube resort pri-
vado de sua propriedade, para planejar
enquanto joga golfe[26].
A primeira alternativa é que permaneça
dentro do partido republicano, em uma es-
pécie de entrismo ou fração pública, para
utilizar seu peso eleitoral e construir e for-
talecer sua própria corrente de governado-
res, prefeitos, senadores e deputados. É o
que aparece como o mais provável de ime-
diato.
[26]
Florida, el refugio dorado de Donald Trump | Elecciones USA
[27]
Sobre esta questão, ver, por exemplo: Um terceiro partido - A TERRA É REDONDA
35
A segunda alternativa é que em um ponto
possa se ver obrigado a sair do partido, ou
que considere que já se fortaleceu o sufi-
ciente e ele próprio decida sair. Nesse caso,
ocorreria o surgimento formal de um ter-
ceiro partido da burguesia imperialista es-
tadunidense[27].
Ambas alternativas seriam uma variante
“dura” da “lei e da ordem” no regime de-
mocrático burguês. Ou seja, reafirmariam a
definição de que o trumpismo não é hoje
uma corrente fascista.
A terceira alternativa, que acreditamos
ser a mais improvável, ao menos em um fu-
turo imediato, é que o trumpismo trans-
forme-se de conjunto (ou setores muito
importantes) em um movimento fascista.
Com certeza, no marco da crise econômica,
social e política que o país vive, não pode-
mos descartar essa hipótese para o futuro.
Mas não é essa a realidade atual.
Nos próximos artigos, abordaremos jus-
tamente esse contexto da crise, as perspec-
tivas do governo de Joe Biden, e nossa
política a ele.
Tradução: Lilian Enck.
 36

A dinâmica da economia
e os setores da burguesia
A economia dos Estados Unidos fechou 2020 com uma queda de 3,5% no PIB,
o pior retrocesso anual desde 1946[1].

Alejandro Iturbe

N
o entanto, para entender plena-
mente o significado desta cifra e
a dinâmica atual, é necessário lo-
calizá-la em uma sequência e, ao mesmo
tempo, considerar o impacto que o mega-
pacote financeiro de incentivos, proposto
pelo governo do democrata Joe Biden,
pode ter sobre ela.
Os EUA foram o epicentro da crise eco-
nômica internacional iniciada em 2007-
2008, a partir do esvaziamento da bolha
especulativa existente no mercado imobi-
liário. Esta crise derrubou um dos gigantes
bancários (Lehman Brothers) e ameaçava
derrubar todo o sistema bancário nacional
e internacional.
A partir dali, a intervenção do governo de
Barack Obama, com um gigantesco pacote
de ajuda aos bancos e empresas, evitou esta
quebra e também brecou a tendência de “la-
deira abaixo” da economia estadunidense.
Por isso, foi o primeiro país imperialista
a superar a fase mais descendente da crise.
Mas, fez isso com o que os diversos econo-
mistas burgueses chamaram de uma “recu-
peração anêmica”, que nunca conseguiu
romper o teto de 2,5% de crescimento anual
do PIB[2]. Estava melhor que as potências
europeias, mas o motor econômico não
tinha sido retificado e funcionava pela me-
tade, de modo que não conseguiu acelerar
na subida.

O
megapacote de incentivos
financeiros do governo
Biden terá impacto na dinâmica
da economia. zx

[1]
La economía de EE.UU. registró en 2020 su peor caída desde 1946
[2]
Quem usou esta expressão foi Nouriel Roubini. Ver, entre outros materiais: Never miss a commentary by Nouriel Roubini

Em 2019, começou
s organismos econômicos O megapacote
O
uma dinâmica reces-
siva da economia internacionais projetam
mundial e do país, que
ficou evidente no úl- um crescimento mundial
timo trimestre do ano e médio de 4% para 2021. zx
arrastou-se para o pri-
meiro trimestre de
2020, com um retrocesso pró-
ximo a 1,5%. As medi-
das restritivas contra a
pandemia (embora
parciais e insuficien-
tes) levaram a um
salto na queda, que
no segundo trimestre
de 2020 chegou a
10%, a maior queda
desde a crise de 1929[3].
O terceiro trimestre de 2020 apresen-
tou uma recuperação impulsionada pelos
pacotes de ajuda às empresas e pela política
criminosa da “nova normalidade”[4]. Porém,
esta recuperação, que se estendeu ao quarto
trimestre, não conseguiu compensar as que-
das anteriores e o saldo líquido anual, como
vimos, acabou sendo de -3,5%. É um retro-
cesso um pouco menor que o previsto.
Esta dinâmica de recuperação continuará
em 2021. As previsões dos organismos eco-
nômicos internacionais antecipam um cres-
[5]
cimento médio mundial de 4% . Com esse
aumento, o PIB dos EUA, ao final deste
ano, apenas chegaria a recuperar o nível de
2019, momento em que, como vimos, uma
recessão estava incubada.
37
de Biden
É neste contexto, e o da
continuidade da pande-
mia de COVID e da ex-
trema lentidão do
processo de vacinação,
que Joe Biden anunciou
em sua campanha elei-
toral – e que agora
promove como presi-
dente – um pacote finan-
ceiro de incentivos de
quase dois trilhões de dó-
lares. Ou seja, aproximada-
mente, 10% do PIB[6].
Das informações sobre o
pacote que até agora foram reve-
ladas, surgem os seguintes dados: 400 bil-
hões de dólares para acelerar o ritmo das
vacinações e cumprir seu objetivo de imu-
nizar 100 milhões de pessoas nos primeiros
100 dias; 130 bilhões de dólares destinados
à reabertura de escolas em todo o país; 1
trilhão de dólares para pagamentos a indi-
víduos e famílias, incluindo uma nova ro-
dada de cheques de ajuda de 1.400 dólares
por pessoa; e cerca de 440 bilhões de dóla-
res em assistência aos governos locais e às
empresas [7].
Nesse marco, Biden realizou uma série
de promessas. Mas não fica nítido se o
plano pode resolver problemas tais como
“reduzir a pobreza infantil pela metade”

[3]
Sobre esta questão, recomendamos o artigo Para onde vai a economia mundial?
[4]
A verdadeira cara do “novo normal”
[5]
Ver nota [3].
[6]
Biden proposing $1.9-trillion COVID relief stimulus plan
[7]
Idem.
 38
durante o próximo ano ou o aumento do rentes setores burgueses e seus representantes
salário-mínimo para 15 dólares por hora, no Capitólio: “Sei que o que acabo de descre-
uma reivindicação permanente de nume- ver não é barato, mas não fazê-lo nos custará
rosos setores de trabalhadores e organiza- mais caro”. Uma primeira resposta foi dada
ções sindicais e de numerosas lutas e por Rohit Kumar, ex–chefe de gabinete do
greves desde 2011-2012[8]. líder republicano do Senado, Mitch McCon-
Ao mesmo tempo, dirigiu-se aos dife- nell: “Está disposto a se reunir com os sena-
dores republicanos, ao menos com
alguns deles?”, e acrescentou:

O
primeiro objetivo de Biden é alcançar “Isso provavelmente não deveria
o "novo normal" que permita à incluir o aumento do salário-mí-
nimo para 15 dólares por hora”[9].
burguesia voltar aos níveis normais de Biden já anunciou que este ponto
exploração e lucro. zx não será incluído no pacote.

Os objetivos do plano Biden

Vamos despir esta proposta de Biden de sua vestimenta demagógica
e analisar mais profundamente os objetivos que a burguesia esta-
dunidense lhe propõe. O primeiro e mais evidente é alcançar rapi-
damente um funcionamento de “nova normalidade” que permita
a essa burguesia retomar os níveis normais de exploração e lucro.
O plano de reabertura do sistema escolar (com os grandes riscos
que isso implica em um momento de auge da pandemia) é parte
importante disso. Nem a aceleração do processo de vacinação
nem a volta às aulas têm objetivos humanitários, mas são evi-
dentes cálculos econômicos e políticos. Isso é disfarçado com
palavras tais como: “é fundamental para que as crianças vol-
tem à escola” e “precisamos proteger os trabalhadores”.
O segundo objetivo é reforçar a dinâmica de recuperação
da debilitada economia norte-americana: “A despesa agora
colocaria a economia em uma base mais sólida para um
crescimento renovado” (uma questão que analisaremos no
próximo ponto deste artigo).
Finalmente, e não menos importante, existe a questão da
luta de classes: 2020 foi atravessado pelas rebeliões anti-
rracistas que geraram um salto na crise pré-existente do
regime político burguês e por uma importante onda de
greves. As eleições canalizaram e conseguiram fazer re-
fluir o primeiro processo, mas as razões que as geraram
continuam presentes: a crise econômico-social e sani-

[8]
Ver, por exemplo: La recuperación económica y la lucha por un salario mínimo de 15 dólares por hora
[9]
Ver nota [6].

tária que atinge os trabalhadores e as mas-
sas, que veremos em um próximo artigo
desta série. O governo Biden precisa de um
“período de graça” para terminar de apagar
aquele “incêndio”, um ano de tranquilidade
no qual tentará aproveitar a ilusão das mas-
sas de que “as coisas estão se resolvendo”.
Por todas estas razões, argumenta para a
burguesia e seus legisladores: “Sei que o
que acabo de descrever não é barato, mas
não fazê-lo nos custará mais caro”[10].
Qual será o impacto deste pacote
na economia?
Dissemos que o conjunto dos incentivos
que o governo de Joe Biden lançará repre-
senta 10% do PIB. Entretanto, é impossível
que isso seja traduzido em um crescimento
equivalente da economia. Vejamos por que.
A parte destinada diretamente a “indiví-
duos e famílias” (em teoria, a metade do pa-
cote) vai alentar o consumo e, com isso,
proporcionará uma dinâmica positiva ao
circuito econômico. Por outro lado, neste
segmento, deve-se considerar também que
uma fração dessa ajuda será devorada pelo
setor financeiro através da cobrança de hi-
potecas atrasadas e de encargos financeiros
por dívidas. O certo é que toda a parte des-
tinada à vacinação e à reabertura das esco-
las (e aquela destinada aos Estados e
municípios) deve ser considerada como
“consumo de renda”, ou seja, um consumo
que se esgota em si mesmo sem pro-
mover o circuito de reprodução do
capital.
[10]
Idem.
[11]
El precio del bitcoin se acerca a los 50.000 dólares, tras impulso de Elon Musk. Sobre a questão das criptomoedas,
recomendamos ler a parte relacionada no artigo: O esvaziamento das bolhas especulativas - LIT-QI
[12]
Gross Domestic Product, 4th Quarter and Year 2020 (Advance Estimate) | US Bureau of Economic Analysis (BEA)
[13]
≫ Previsión del PIB EE. UU. para 2021 y 2022 | Blog Bankinter
39
Além disso, a parte dos incentivos que
pode fazer este circuito girar será interme-
diada pelo funcionamento do capitalismo:
uma vez realizado o uso por parte de “indi-
víduos e famílias”, apenas uma parte retor-
nará como investimento. Muitas empresas
a utilizarão para cobrir contabilmente suas
perdas do período anterior e outra parte será
destinada à especulação financeira, que não
cria novo valor. Uma especulação que não
somente já é realizada nos âmbitos oficiais,
como Wall Street, mas também em circuitos
paralelos como o bitcoin e outras cripto-
moedas cujo valor não para de subir, rumo
a uma nova bolha especulativa[11].
Se analisarmos os dados fornecidos pelo
Bureau of Economic Affairs (Secretaria de
Assuntos Econômicos - BEA) do governo
federal sobre a recuperação do terceiro e
quarto trimestres de 2020, vemos que os
novos investimentos capitalistas continuam
muito baixos[12]. Isso se deve à queda da
taxa de lucros, que analisamos em outros
artigos.
Com estas considerações, a previsão de
crescimento para o país localiza-se em
torno de 4%[13], embora seja possível que o
pacote de Biden empurre-o um pouco mais
para cima. Um dos principais objetivos des-
tes incentivos é precisamente garantir essa
recuperação.

Em outras palavras, neste caso, se utili-
zarmos a figura de um V para representar
graficamente a sequência dos ciclos econô-
micos, teríamos um V de lados simétricos
onde a recuperação se equipara à queda,
para o final de 2021.
O que acontecerá depois? Nossa impres-
são é que essa dinâmica de recuperação ten-
derá a desacelerar-se a partir de 2022, que
tomaria graficamente a forma do símbolo
de raiz quadrada ou do logotipo da Nike (o
chamado “cachimbo Nike”).
Nesta previsão incidem dois fatores. O
primeiro é que o pacote de incentivos é
40
“pontual”: só se fará este ano e, pelo
menos até agora, não está previsto que se
repita em 2022. Isto é, já não terá esse
efeito dinamizador. O segundo são as
grandes contradições que a economia im-
perialista dos EUA arrasta há décadas, em
especial seu caráter cada vez mais especu-
lativo e parasitário[14].
Não por acaso, antes do pacote anunciado
por Biden, o já citado Nouriel Roubini
previu que 2021 seria também um ano de
“frágil recuperação”[15]. Isto significa que,
uma vez terminado o efeito do “pacote
Biden”, as condições anteriores voltariam.

zx Os diferentes setores da burguesia

É normal falarmos da burguesia imperialista

norte-americana. Entretanto, embora haja bases e
interesses profundos em comum, dentro dela exis-
tem setores diferentes, com diferentes situações
em seus ramos econômicos e também diferentes
dinâmicas e contradições políticas (às vezes com
fortes atritos entre eles).
Vejamos alguns deles de modo resumido.
A agricultura no sul dos Estados Unidos no século XVII.

A burguesia agrária A indústria dos fazendeiros hoje.

Foto: https: //civileats.com/
A burguesia que lutou contra a Grã-Bretanha pela
independência do país, no final do século XVIII,
tinha uma base agrária.
Era formada por dois setores distintos: no
norte, predominava uma economia mais autô-
noma baseada nos agricultores, com centros ur-
banos comerciais de intercâmbio local e uma
indústria incipiente. No sul, dominava uma agri-
cultura de plantações (basicamente, algodão e ta-
baco) com trabalho escravo e uma produção
destinada ao mercado mundial [16].

[14]
Sobre esta questão, recomendamos ler a análise do artigo da nota [3].
[15]
Retomada em V, W ou U? Por que 2021 será um ano de frágil recuperação
[16]
Sobre esta questão, recomendamos: A independência dos Estados Unidos

Para manter a unidade dos dois setores
que confluíam, a fundação dos EUA deixou
inconcluso um gravíssimo problema demo-
crático: a questão da escravidão, que foi
conscientemente evitada na declaração da
independência e na constituição. Esta dife-
rença explodiria na Guerra de Secessão
(1861-1865) que terminou com a vitória
dos estados do Norte (a União) sobre os do
Sul (a Confederação).
Desde a sua formação como burguesia
independente e a chamada “guerra revolu-
cionária”, sempre houve uma evidente po-
lítica expansionista para estender o
território da Costa Leste que deu origem ao
país a oeste dos Montes Apalaches, expul-
sando os povos originários que os domina-
vam. Esta expansão continuou depois para
as Grandes Planícies Centrais. Nos novos
territórios incorporados, replicava-se, em
geral, a propriedade de novos agricultores.
Alguns estados foram comprados da
França (Louisiana) e da Espanha (Flórida).
A ocupação do território atual foi comple-
tada com o roubo de todo o norte do Mé-
xico (cerca de 50% do território que
pertencia a este país), a partir da criação ar-
tificial da República do Texas e sua poste-
rior incorporação aos Estados Unidos
(1845), e continuou com a guerra entre
ambos os países (1846-1848), que terminou
com a ocupação da Cidade do México pelas
tropas estadunidenses. O México perdeu
(além do Texas), o território que corres-
ponde aos atuais Estados da Califórnia,
Novo México, Arizona, Colorado e Utah.
O clima, o tipo de terras e a origem da
propriedade foram determinando diferentes
especializações produtivas e características
sociais e políticas dos diferentes setores.
Grosso modo, podemos falar de um predo-
[17]
Sobre esta questão, ver: Trump e a burguesia norte-americana
[18]
Dados extraídos de: https://web.archive.org/web/20070522185006
41
mínio dos agricultores na Nova Inglaterra,
Planícies Centrais e na região que contorna
os Grandes Lagos; um predomínio do sis-
tema de plantações no Sul; um setor pe-
cuário proprietário de grandes extensões no
Texas; e uma burguesia agrária califor-
niana, de alta especialização em setores
como frutas e vitivinicultura[17]. Também há
uma grande burguesia agroindustrial, cor-
porações como a Cargill e outras que, com
seu lobby, garantem subsídios de bilhões de
dólares e geram uma superprodução que
depois voltam com dumping aos mercados
internacionais.
Por diversas razões, são setores burgue-
ses e pequenos burgueses que se identifi-
cam com o Partido Republicano, com
exceção da burguesia agrária californiana,
já que entre 80 e 90% de seus trabalhadores
permanentes ou temporários são de origem
mexicana e/ou imigrantes temporários e,
por isso, opôs-se à política de Trump em re-
lação aos imigrantes.
Para concluir esta análise, digamos que
as atividades agropecuárias diminuíram
muito seu peso no PIB do país (1%). Mas,
seu peso social é muito maior, em especial
nas cidades médias e pequenas, e no “inte-
rior profundo”. No início do século XXI,
gerava cerca de um milhão de empregos di-
retos, mas esta cifra se multiplica várias
vezes se considerarmos as atividades de co-
mércio, serviços e indústria ligadas a
eles[18].
O
peso social das atividades
agropecuárias é maior nas
cidades do "interior profundo"
do país. zx

A burguesia industrial
Uma vez que conseguiu consolidar seu do-
mínio sobre seu atual território continental,
e depois do fim da Guerra de Secessão, es-
tavam dadas as condições para um salto im-
pressionante da burguesia industrial. A
indústria ferroviária conectava as cidades
das costas leste e oeste e as malhas entre
elas, garantindo o fluxo de mercadorias e
passageiros; a de carroças cobria os espa-
ços que a ferrovia não atendia.
A partir do final do século XIX e início
do XX, a produção de carroças começa a
retroceder aceleradamente e o que seria o
símbolo da indústria dos EUA faz sua apa-
rição: o ramo automobilístico. Inicial-
mente, havia dezenas de empresas e o setor
foi se expandindo e consolidando-se. A
crise de 1929 golpeou duramente toda a
economia e deteve esta expansão. Poste-
riormente, a entrada do país na Segunda
Guerra Mundial levou a uma rápida recon-
versão para a produção de veículos e mate-
riais bélicos.
No final da década de 1940 e início da
de 1950, ocorre uma nova e poderosa ex-
pansão, com centro produtivo na cidade de
[19]
Los diez mayores fabricantes de coches del mundo
42
Detroit, hoje com cerca de uma dezena de
empresas. Ao mesmo tempo, as empresas
expandem-se internacionalmente, substi-
tuindo os escritórios de importação e ven-
das pela instalação de plantas fabris em
muitos países.
Mas, esta época de ouro teve um fim
com a crise e o aumento dos preços do pe-
tróleo na década de 1970. A indústria au-
tomobilística havia se especializado em
veículos potentes e de alto consumo de
combustível e, nesse contexto, perdeu ace-
leradamente mercados para as indústrias
japonesa, europeia e coreana, que ofere-
ciam automóveis com motores menores e
de menor consumo. As gigantes automobi-
lísticas cambalearam e várias delas fecha-
ram. Só sobreviveram três: a General
Motors (GM), a Chrysler e a Ford, que ti-
veram que realizar duros planos de recon-
versão e redução, arrastando com ela
numerosas firmas fornecedoras. Como um
dado ilustrativo da perda de mercados, em
2019, embora as três empresas figurassem
entre as dez mais importantes do ramo no
mundo, ficavam em terceiro lugar (GM),
no sexto (Ford) e no oitavo (FCA, surgida
da fusão da Chrysler e da italiana Fiat)[19].
 43

A
dinâmica da indústria propriamente dita é ainda
mais decrescente do que a de outros setores. zx
Este processo ocorreu também em outros
ramos industriais, com a transferência da pro-
dução mundial aos Tigres Asiáticos, à China,
e à Índia e às montadoras mexicanas e cen-
tro-americanas, em uma nova divisão inter-
nacional do trabalho. A indústria
norte-americana (a produção realizada dire-
tamente nos EUA) viu sua participação no
PIB do país reduzida drasticamente: em
1965, esse setor (incluindo construção, ele-
tricidade e serviços de água) representava
38%; em 1988 havia caído para 33%, e, em
2004, já tinha se reduzido a menos de 19%.
A dinâmica da indústria propriamente dita é De conjunto, apoiaram a política de Ro-
ainda mais decrescente: entre 2001 e 2004, nald Reagan de redução salarial e deterio-
sua participação se reduziu de 14,1% a ração das condições trabalhistas, mas a
12,1%[20]. A partir de 2010, houve certa recu- própria Ford, décadas depois, manifestou
peração dos setores industriais (o número de publicamente suas críticas à política de
trabalhadores cresceu em torno de 10%), mas Trump em relação aos imigrantes. Apoia-
sem uma mudança qualitativa. Não temos ram com entusiasmo a redução de impostos
dados precisos do impacto causado pela crise de Trump, mas muitas empresas industriais
de 2020. Mais abaixo neste mesmo artigo ve- poderosas (agrupadas na National Associa-
remos a dinâmica dos setores ligados às tion of Manufacturers) romperam publica-
novas tecnologias. mente com ele por seu questionamento ao
processo eleitoral e seu aval implícito à
As empresas industriais estadunidenses ocupação do Capitólio[22].
não tiveram um alinhamento permanente ou
único frente aos grandes partidos burgueses Mas, é necessário fazer um esclareci-
imperialistas. Podemos dizer que “colocaram mento: as empresas industriais médias e pe-
os ovos em cestos diferentes” e se localiza- quenas, as mais atacadas pelo retrocesso
ram de acordo com o que consideravam a desse setor, identificam-se com o Partido
melhor forma de defender seus interesses em Republicano e, em particular, com o trum-
cada momento histórico. Henry Ford, por pismo, que lhes prometeu a volta à “época
exemplo, nunca ocultou sua simpatia pelo na- de ouro”. Por isso, numerosos proprietários
zismo[21], mas toda a indústria apoiou com e gerentes dessas empresas participaram da
simpatia o plano New Deal do democrata concentração que cercou o Capitólio em 6
Franklin Delano Roosevelt. de janeiro de 2020[23].

[20]
Dados extraídos do livro La crisis del petróleo y sus consecuencias en la crisis de EE.UU. de Efraín Baldaos Bensa.
[21]
Henry Ford, el amigo americano de los nazis
[22]
Manufacturers Call on Armed Thugs to Cease Violence at Capitol
[23]
The Thoroughly Respectable Capitol Rioters

A burguesia do petróleo
À medida que os EUA transformavam-se
em uma potência industrial e que surgiam
os motores de explosão interna, houve uma
mudança crescente no uso do carvão como
combustível e sua substituição por aqueles
baseados no petróleo. Rapidamente, surgiu
um novo ramo produtivo e, com ele, um po-
deroso setor da burguesia imperialista.
Formava-se o que o político italiano En-
rico Mattei chamou de as “sete irmãs” do
petróleo, das quais cinco eram dos EUA
(Exxon, Mobil, Texaco, Chevron e Gulf
Oil), além da British Petroleum e da anglo-
holandesa Shell. Durante décadas, seu con-
trole da produção e da comercialização
mundial foi quase absoluto, com algumas
exceções (a empresa estatal criada na jovem
URSS, a formação da YPF na Argentina e a
nacionalização do petróleo pelo governo
mexicano de Lázaro Cárdenas na década de
1930, embora fossem todos países com re-
servas de petróleo de menor peso). As em-
presas norte-americanas contavam também
com grandes reservas petrolíferas em seu
A rota comercial da OPEP. Fonte: https://www.suno.com.br
[24]
Sobre as questões consideradas neste ponto, recomendamos ler os artigos El fin del petróleo e La renta petrolera
publicados na revista Marxismo Vivo n.° 12. São Paulo: Ed. Sundermann, 2005.
44
próprio país. As “7 irmãs” competiam entre
si mas tinham um acordo para manter um
preço monopólico mínimo e assim garantir
sua renda.
Este controle quase monopólico começou
a ser afetado a partir da década de 1950. A
produção petrolífera foi nacionalizada e sur-
giram grandes empresas estatais (ou as já
existentes se fortaleceram) na Arábia Sau-
dita, Iraque, Kuwait e Venezuela. Em 1979,
a revolução iraniana que derrubou o Xá
Reza Pahlavi também nacionalizou o petró-
leo, criando a empresa NIOC. São estes paí-
ses os que possuem, em conjunto, as
maiores reservas mundiais. Nesse mesmo
período, a partir de 1970, ocorreu o declínio
dos níveis de produção nos EUA, cum-
prindo-se a previsão feita em 1956 pelo
geólogo King Hubert[24]. O país passou a ser
importador de petróleo.
Neste contexto, surge a OPEP (Organiza-
ção dos Países Exportadores de Petróleo),
formada pelos países produtores do Golfo
Pérsico, do Norte da África, e a Venezuela.
As empresas imperialistas de petróleo debi-

litaram-se e aceitaram a existência da
OPEP, mas estabeleceram acordos de fato
com ela (especialmente com as “petromo-
narquias”) para garantir o abastecimento,
embora devessem ceder uma parte da renda
que antes obtinham.
As cinco “irmãs” estadunidenses se re-
duziram a duas: Exxon-Mobil e Chevron-
Texaco e continuaram sendo poderosas: em
2002, entre as 20 maiores empresas do
mundo, 12 eram de petróleo. No ranking
das petrolíferas publicado pelo IPW nesse
mesmo ano, a Exxon-Mobil ocupava o ter-
ceiro lugar e a Chevron-Texaco, o dé-
cimo[25].
A
burguesia do petróleo sempre fez
parte da coalizão republicana. zx
[25]
Ver SPDR S&P International Energy Sector ETF Ranking de Usuário | IPW ETF Rankings
[26]
Next Post: Empresas más grandes del mundo 2020
[27]
Estados Unidos se convierte en el mayor exportador mundial de petróleo
[28]
Sobre esta questão, ver: Sobre o atentado às Torres Gêmeas
45
Mas seu peso foi diminuindo cada vez
mais: no ranking de 2020 sobre as maiores
empresas do mundo, a Exxon-Mobil retro-
cedeu ao posto 27 e a Chevron ao 37[26].
Para reverter esta decadência, as “duas
irmãs” sobreviventes não duvidaram em
promover golpes de Estado, invasões, e
novas tecnologias “sujas” para aumentar
sua produção, como a extração em campos
de pré-sal e offshore e o fracking. Com este
último, conseguiram equilibrar a balança
energética de produção-consumo do país (e
inclusive voltar a exportar), mas ao custo
de uma destruição e uma degradação cada
vez maiores da natureza[27].
Por todas estas razões, a burguesia do pe-
tróleo estadunidense sempre fez parte da
coalizão republicana. Esteve por detrás do
Projeto do Novo Século Americano e da
Guerra contra o Terror do ex -presidente
George Bush Jr.[28]. Mais recentemente, Rex
Tillerson, presidente e CEO da Exxon-
Mobil entre 2006 e 2016, foi secretário de
Estado do governo de Donald Trump.
 46
O complexo militar-industrial Partia-se de uma base elevada, pois, por
Entre os setores burgueses que tradicional- essa via, o governo Bush havia injetado, em
mente fazem parte da coalizão republi- seus primeiros anos de mandato, 500 bil-
cana, é importante mencionar as empresas hões de dólares que reforçaram a debilitada
que, como contratistas, fabricam diversos economia estadunidense, no que alguns au-
produtos e tecnologia bélica para o Estado. tores denominaram “keynesianismo mili-
Ou seja, o complexo militar-industrial[29]. tar”[31].
O volume destes contratos é tão impor- Inclusive a Boeing, que estava à beira da
tante que dá lugar a poderosos lobbies no falência em seu setor de aviação comercial,
Pentágono e nos respectivos comitês de salvou-se graças aos contratos de fabricação
ambas as câmaras do Congresso, no que se de aviões militares no governo Bush.
chamou de “o triângulo de ferro”. A verdade é que os EUA são, de longe,
Este complexo nasce com a entrada do os maiores fabricantes e vendedores de ma-
país na Segunda Guerra Mundial, em fins terial bélico do mundo[32].
de 1941 quando, como vimos, parte impor-
tante da indústria foi reconvertida com ob-
jetivos bélicos.
Uma vez finalizado este conflito bélico
e retomada a normalidade econômica, uma
parte da indústria permaneceu com esses
fins, alimentada pela chamada Guerra Fria,
a Guerra nas Estrelas de Ronald Reagan, e
teve um novo impulso com a Guerra con-
tra o Terror de George W. Bush, à qual já
nos referimos.
Se analisarmos um gráfico elaborado
em base aos dados do Departamento de
Segurança Interna (DHS por sua sigla em
inglês), vê-se que, entre 2002 e 2019, o
peso dos gastos militares no orçamento do
país aumentou 2,3 vezes, em um cresci-
mento constante, embora diminuísse um
pouco seu ritmo durante os governos de
Obama[30].

[29]
Dados extraídos dos trabalhos: Long-term Historical Reflection on the Rise of Military-Industrial, Managerial Statism
e Military-Industrial Complexes, publicados nos Kimball Files. University of Oregon.
[30]
Ver: El Complejo industrial-militar estadounidense
[31]
Ver, por exemplo, o trabalho da autora brasileira Gabriela Tamiris Rosa Corrêa, publicado com esse nome pela
Universidade Nacional de Santa Maria em O keynesianismo militar: o papel do complexo industrial-militar-acadêmico na
materialização da hegemonia estadunidense no pós-Guerra Fria
[32]
Os 5 países que fabricam 75% das armas do mundo (e seus maiores compradores)
 47
Embora, tradicionalmente, o complexo
militar-industrial tenha se concentrado na
fabricação de material e armamento pura-
mente bélico, depois de 11 de setembro de
2001 (atentados às Torres Gêmeas em Nova
York), o negócio expandiu-se para os cam-
pos de segurança e cibersegurança, e as
novas tecnologias aplicadas ao campo mi-
litar.
Sobre a atual composição do complexo,
a maior parte do negócio continua sendo
ocupada pelas tradicionais grandes empre-
sas fabricantes de aviões, veículos e equi-
pamentos de combate. Mas, agora também
incorporaram a tecnologia avançada e pro-
duzem elementos como radares, satélites,
câmeras de vigilância e drones, entre outros
produtos. Entre as mais destacadas, encon-
tram-se algumas das maiores empresas do
país, como Boeing, Lockheed Martin, Rayt-
heon, Northon Grumman, e General Dyna-
mics[33].

Fargo aproveitou a expansão territorial e o

A burguesia financeira
Ao longo do século XIX foram fundadas
diversas instituições bancárias nos EUA. O
acelerado desenvolvimento capitalista e sua
transformação em um país imperialista fi-
zeram com que a burguesia bancária-finan-
ceira fosse o “coração” desse imperialismo,
refletido no fato de Wall Street ser o prin-
cipal centro financeiro do mundo. Entre ou-
tras instituições, em 1812 foi fundado o que
é hoje o Citigroup; em 1824 o que seria de-
pois o Chase Manhattan (propriedade dos
Rockefeller); em 1852, o Wells Fargo; em
1874, o Bank of America; em 1895, o J.P.
Morgan e o Kum, Leb & Co. (mais tarde
Lehman Brothers).
Suas origens foram diferentes: o City
surge de capitais de comerciantes de Nova
York; o Chase da indústria química; o Wells
surgimento de novos povoados e cidades
para oferecer serviços bancários de varejo;
J.P. Morgan já surge como um banco de in-
vestimentos, com evidente critério de capi-
tal financeiro… Mas todos foram crescendo
até se transformarem em empresas gigan-
tes, com as maiores porções do mercado, no
qual coexistiam com bancos regionais e pe-
quenos bancos locais. Em 1913 é fundada
a Reserva Federal, que exerce as funções de
Banco Central.
Ao mesmo tempo, de modo inevitável,
eram partícipes, impulsionadores e benefi-
ciários do caráter cada vez mais especula-
tivo e parasitário da economia capitalista
imperialista, refletido na bolha financeira
criada na Bolsa de Valores, com um au-
mento permanente dos preços das ações.
Uma bolha que explodiria na crise de 1929

[33]
Ver nota [30].

com um duríssimo impacto para a econo-
mia do país e do mundo[34]. Bancos como o
Morgan, o Chase e o City tentaram cortar
ou atenuar o crack comprando ações de al-
gumas empresas, mas fracassaram. No
setor bancário, a crise acabou derrubando
numerosos bancos médios e pequenos.
Frente a esta profundíssima crise, o go-
verno democrata de Franklin D. Roosevelt
adotou e aplicou a nível interno as políticas
econômicas propostas pelo britânico John
Keynes (o New Deal). A nível internacio-
nal, em 1943-1944 (a Segunda Guerra
Mundial ainda em curso), apoiou e impul-
sionou seu plano para o “restabelecimento
do comércio mundial” e a constituição de
uma “autoridade monetária internacional”
que permitisse a existência de “moedas
sãs”. O plano foi adotado pela conferência
realizada em Bretton Woods (New Hamps-
hire, EUA), em julho de 1944.
Os acordos de Bretton Woods estabele-
ceram várias questões centrais. A primeira
delas foi que o dólar seria a “moeda pa-
drão” do sistema monetário, comercial e fi-
nanceiro internacional, baseado na
conversibilidade dólar–ouro, garantida
pelas reservas armazenadas em Fort Knox.
Na mesma conferência, foram criados o
Sobre esta e outras questões deste subtítulo, recomendamos ler o livro de Alejandro Iturbe, O sistema financeiro e a crise
[34]
da economia mundial, Editora Sundermann: São Paulo, 2009 e, em espanhol, sua publicação em uma série de artigos da
revista Marxismo Vivo.
48
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o
Banco Internacional de Reconstrução e
Fomento (BIRD, mais conhecido como
Banco Mundial), ambos com um evi-
dente predomínio dos EUA.
Assim se expressou a hegemonia eco-
nômica, política e militar conquistada
por este país na Segunda Guerra Mun-
dial. Por um lado, através do dólar, in-
terveio, de fato, em todas as operações
monetárias internacionais. Por outro,
era o dono da “máquina de imprimir
dólares”, e realizou uma verdadeira supe-
rimpressão. Foi uma das razões que leva-
ram à queda do sistema monetário
estabelecido em Bretton Woods, por deci-
são unilateral do governo de Richard
Nixon, em 1971. O dólar continuou sendo,
de fato, a moeda central do capitalismo im-
perialista, mas o sistema monetário interna-
cional passou a ser muito mais volátil e
instável.
O sistema estabelecido em Bretton
Woods e o boom econômico do pós-guerra
fortaleceram a burguesia financeira dos
EUA e lhe permitiram uma grande expan-
são e uma consolidação internacional nas
décadas de 1950 e 1960. Mas, a partir da
crise do início da década de 1970, mostrou
novamente que a especulação e o parasi-
tismo estavam em sua natureza. Assim, im-
pulsionou a bola de neve da dívida externa
dos países semicoloniais nos anos 70, a pri-
vatização e a rapina das empresas estatais
desses países nos anos 90 e, finalmente, a
criação de um número cada vez maior de
operações especulativas e bolhas financei-
ras.
Este último processo ocorre com muita
força nos EUA, em especial a partir da re-
vogação, em 1999, das regulações e contro-

les do setor, estabelecidas pela Lei Glass-Stea-
gall (1933) e a aprovação da Lei de Moderni-
zação de Futuros (2000). Produziu-se o que se
caracterizou como a hipertrofia do sistema fi-
nanceiro, cujo volume de operações superava
várias vezes a base real sobre a qual estas se
assentavam.
Construiu-se, assim, um verdadeiro castelo
de cartas do mercado imobiliário e dos crédi-
tos hipotecários, que era alimentado pelos ban-
cos hipotecários, os bancos de investimento,
as companhias de seguros e as avaliadoras de
risco. Mas, o castelo começou a cair em 2007
e foi derrubado definitivamente em 2008
(queda do Lehman Brothers).
Por outro lado, este setor financeiro também
operava aproveitando conjunturas críticas em
diversos países (México, Rússia, Argentina,
Grécia, entre outros e, inclusive, o próprio
euro) com os chamados “ataques especulati-
vos”. A recente minissérie Devil mostrou al-
guns desses processos.
A verdade é que, com a crise de 2007-2008,
todo o sistema bancário-financeiro do país e
do mundo estava à beira da falência. Mas, o
governo de Obama (e outros no mundo) inter-
veio para atuar como “companhia de seguros”
dos “irmãos mais velhos” e, com gigantescas
injeções de liquidez dos governos, feitas à
custa de um empobrecimento dos trabalhado-
res e das massas, permitiram-lhes cobrir as
perdas e recapitalizar-se.
49
Entretanto, o grupo dos gigantes finan-
ceiros do país foi reduzido e se concentrou,
a partir de falências, compras e fusões. Hoje
permanecem, nessa ordem de importância,
o J.P. Morgan Chase (5º no ranking mun-
dial, mas o primeiro depois dos bancos es-
tatais chineses), o Bank of America, que
absorveu o Merrill Lynch (8º do mundo),
Citigroup (11º), Wells Fargo (13º), Gold-
man Sachs (33º) e Morgan Stanley (39º). Se
considerarmos outros critérios, como a ca-
pitalização de mercado, o JPMorgan Chase
é o primeiro do mundo[35]. Se analisarmos
as maiores empresas do mundo pelo valor
de capital no mercado, o JPMorgan Chase
está em 10º (superado por várias empresas
ligadas às novas tecnologias) e o Bank of
America em 18º[36].
Em 2004, o setor denominado “Finanças,
Seguros e Imóveis” representava 20,56%
do PIB dos EUA. Nos dados provisórios de
2020, seu peso tinha crescido mais de
30%[37].
Tal como vemos, trata-se do co-
ração da burguesia imperialista.
Nesse sentido, sempre contribuiu
para as campanhas políticas de
ambos partidos. Mas, por razões
históricas, tendeu mais a integrar a
coalizão burguesa democrata.

[35]
Dados extraídos da página de S&P Global em: The world's 100 largest banks
[36]
Ver nota [26].
[37]
Dados extraídos de: https://apps.bea.gov/iTable/iTable.cfm?reqid=150&step=2&isuri=1&categories=gdpxind

Outros setores burgueses
No quadro de participação no PIB 2020 já
citado, o ramo de “serviços educacionais e
cuidados da saúde” representa quase 9%[38],
com evidente predomínio do setor de saúde.
Em vários artigos destacamos que nos EUA
não existe um verdadeiro sistema de saúde
pública, cujos serviços são caríssimos para
a classe trabalhadora, e geram um gigan-
tesco negócio[39].
Isto nos leva à análise do que chamare-
mos de “burguesia da saúde”, ou seja, o
conglomerado de empresas produtoras de
farmacologia, tecnologia e insumos, e o sis-
tema hospitalar e as fundações associadas
que o utilizam, assim como as empresas de
seguros médicos que intermediam o pro-
cesso.
Em 2016, as cinco empresas mais rentá-
veis do setor eram Johnson & Johnson, GE
Healthcare, Medtronic, Siemens e Philips
Healthcare. Salvo a primeira, dedicada a
medicamentos e insumos, as outras se dedi-
cam à tecnologia e produção de equipamen-
[38]
Idem.
[39]
Além dos numerosos artigos publicados deste site, ver: Como funciona o sistema de saúde dos Estados Unidos?
[40]
Las 5 empresas de tecnología médica más rentables
[41]
Ver nota [26].
[42]
Sobre esta questão, ver: El sueño americano ha muerto y Student Loan Debt Statistics [2021]: Average + Total Debt
50
tos especializados, como parte de conglo-
merados empresariais maiores[40]. A John-
son & Johnson estava na 12a posição entre
as maiores empresas do mundo e a 9ª nos
EUA[41]. Cabe também mencionar dois
conglomerados farmacêuticos muito im-
portantes, a Merck & Co. e a Pfizer Inc.,
localizadas respectivamente em 35ª e 39ª
no ranking já citado.
A educação tem um peso muito menor
que a saúde no PIB do país (1,2%), mas,
considerando seu volume, não deixa de ser
um grande espaço para negócios. A estru-
tura do sistema educacional dos EUA é
muito complexa, combinando setores esta-
tais, mistos e privados. Podemos dizer que
forma uma pirâmide, em cuja parte supe-
rior está a educação universitária, que é ca-
ríssima para as famílias da classe
trabalhadora já que, salvo as chamadas uni-
versidades comunitárias, devem pagar não
só as matrículas e as mensalidades mas
também o custo do alojamento, dado que a
maioria dos cursos têm residências nos
campi.
Isto leva muitas famílias a pouparem
desde o nascimento de seus filhos (ou de
alguns deles) para enviá-los à universidade
e/ou que estes tenham que trabalhar meio
período nesses anos ou solicitar os “crédi-
tos estudantis”, que depois deverão pagar
como profissionais. Muitos dos estudantes
universitários, filhos de famílias trabalha-
doras, passam fome e vivem em condições
precárias. A dívida estudantil é de 1,71 tril-
hão de dólares e é uma bolha a ponto de es-
tourar[42].

A
s burguesias dos setores da
saúde e da educação sempre
estiveram ligadas aos democratas. zx
No topo dessa pirâmide estão as univer-
sidades mais prestigiadas, a chamada Ivy
League (Liga da Hera). O nome provém da
velha liga desportiva formada por alunos
desses centros educacionais. Todas elas
estão situadas em Estados do norte da costa
leste e são, em ordem alfabética: Brown,
Columbia, Cornell, Dartmouth College,
Harvard, Pensilvânia, Princeton e Yale.
Grande parte dos quadros da burguesia es-
tadunidense é formada ali[43]. Existem, com
certeza, outras universidades de muito pres-
tígio como o MIT (Massachusetts Institute
of Technology), próxima a Harvard e onde
se graduaram 80 pessoas que ganharam
Prêmios Nobel de ciências; a Universidade
da Califórnia, em especial sua sede em Ber-
keley; a de Chicago; a Universidade de
Stanford; e outras.
[43]
Ivy League: o que é e as 8 universidades que fazem parte
[44]
Miguel Ángel Collado: ''El presupuesto de Harvard es casi la mitad del de todas nuestras universidades públicas''
51
Estudar nesses centros de primeiro nível
é ainda mais caro: o pagamento anual por
aluno oscila entre 40.000 e 60.000 dólares
(lembremos que o salário-mínimo que parte
importante dos trabalhadores recebe chega
apenas a 15.000 dólares). Além desta re-
ceita, estas universidades recebem doações
e contribuições de empresas, através de
fundações. O orçamento anual de Harvard,
por exemplo, era de 4,1 bilhões de dólares
em 2017, uma cifra que equivale à metade
do orçamento de todas as universidades es-
panholas juntas[44]. A Universidade da Ca-
lifórnia é estatal, e seu custo anual é de
15.000 dólares por aluno em média.
Finalizamos esta parte destacando que,
tanto por razões históricas quanto estrutu-
rais, as burguesias do setor da saúde e da
educação tendem a se ligar mais ao partido
Democrata.
As oito universidades que compõem a Ivy League.
Burguesia comercial e de serviços
Outros setores burgueses de certo peso são
aqueles dedicados ao comércio atacadista e
varejista e os dedicados a outros serviços,
como o de fast food. Várias delas são empre-
sas com grandes cadeias nacionais e interna-
cionais. Um dado importante é que o ramo
de comércio atacadista representa 5,7% do
PIB e o do comércio varejista uma porcen-
tagem similar[45].
Neste setor do mercado varejista destaca-
se a Walmart, fundada na década de 1940
por Sam Walton. Possui 11.000 pontos de
vendas em 27 países (em alguns opera com
outros nomes) e marcas associadas como a
Sam´s Club (bebidas). Em 2020, estimava-
se que empregava mais de 2 milhões de tra-
balhadores. É o maior empregador do país.
Outro dado importante é que grande parte
dos produtos industriais que vende (como os
pequenos cortadores de grama quadriciclos)
são produzidos na China por diversas em-
presas “cativas”. Por esta via, a empresa
controlava cerca de 15% das exportações
daquele país em 2008. Isto levou a empresa
[45]
Ver nota [26].
[46]
Walmart advierte que aranceles a productos de China aumentarán los precios en Estados Unidos
[47]
Walmart: salarios bajos todos los días
[48]
Wal-Mart Faces Class-Action Lawsuit, Newsmax (6/2/2007).
a se opor ao aumento das tarifas de impor-
tação de produtos chineses, impulsionada
por Donald Trump como parte da guerra
comercial-tecnológica com aquele país[46].
Por outro lado, assim como as empresas
comerciais em geral, paga os salários mais
baixos do mercado de trabalho e as condi-
ções de trabalho são muito duras. Por isso,
tem se enfrentado reiteradamente com os
sindicatos do setor e sua campanha pelo sa-
lário-mínimo de 15 dólares/hora[47].
Finalmente, tem sofrido vários processos
judiciais por discriminação de gênero, já
que as mulheres representam 2/3 de sua
força de trabalho mas só 1/3 dos postos de
supervisão e gestão[48]. Tudo isto se viu re-
fletido em documentários como WalMart:
The High Cost of Low, dirigido por Robert
Greenwald, em 2005.
O setor de serviços de alimentação repre-
senta 2,8% do PIB, onde se destaca a
McDonald's Corporation, a maior cadeia
mundial de restaurantes fast food, iniciada
em 1940. Hoje, possui 37 mil pontos de
venda em 119 países e 460 mil trabalhado-

res[49]. Outras empresas importantes do
setor são a Burger King, fundada em 1953,
atualmente com 13 mil restaurantes em 79
países; a Kentucky Fried Chicken (KFC),
fundada em 1939 e atualmente proprie-
dade de uma subsidiária da Pepsi Co., pos-
sui hoje 8.200 restaurantes em 60 países e
150 mil empregados, e a Taco Bell, fun-
dada em 1954, que possui 6 mil pontos nos
EUA e 500 no mundo, que também é pro-
priedade da Pepsi Co.
Assim como o Walmart e o setor de co-
mércio, pagam salários muito baixos e têm
condições de trabalho de superexploração,
e chocam-se de modo permanente com as
organizações sindicais. Ao mesmo tempo,
pelas características de sua força de tra-
balho, algumas empresas do
setor opuseram-se à polí-
tica de Trump em relação
aos imigrantes. Por
exemplo, a grande cadeia
de cafeterias Starbucks
anunciou que, em resposta a
essa medida, contrataria 10
mil imigrantes e ofereceu
alojamento aos afetados pela
medida[50].
As FAANG
Deixamos a nova crème de la crème da
burguesia imperialista estadunidense para
o final: as chamadas FAANG, sigla que
surge das iniciais das empresas Facebook,
Amazon, Apple, Netflix e Alphabet-
Google, às quais depois se somaram a
Alibaba, Baidu, NVidia, Tesla e Twitter.
Salvo a Alibaba e a Baidu (chinesas), as
demais têm sua sede central nos EUA. As
FAANG são as superstars dos índices de
[49]
http://www.burgerbusiness.com/?p=9168
[50]
Starbucks e Airbnb darão emprego e alojamento gratuito a afetados por decreto anti-imigração de Trump
53
ações S&P 500 e Nasdaq. Só quatro
empresas (Amazon, Alphabet-Google e
Facebook + Microsoft) acumulam a quarta
parte do capital representado no S&P
500[51]. Todas elas ocupam os primeiros
lugares entre as maiores empresas do
mundo (só são superadas pela Aramco, a
estatal de petróleo da Arábia Saudita).
Possuem alguns elementos em comum:
produzem ou se apoiam nas novas
tecnologias (a telemática), que gerou
grandes mudanças nos processos
produtivos e de administração, nos
mercados, e nos hábitos de consumo. São
empresas fundadas nas últimas décadas,
com um crescimento muito acelerado.
Algumas delas também são identificadas
com seus fundadores e CEOs, que se
transformaram em
parte dos homens
mais ricos do
mundo (Bill Gates,
Steve Jobs, Jeff
Bezos, Elon Musk,
Mark Zuckerberg),
como uma nova
“versão 2.0” do sonho
americano.
Entretanto, apesar desta identificação e
de elementos comuns, trata-se de empresas
distintas. Apple e Microsoft concentram-se
na produção de nova tecnologia e de
software, enquanto fabricam o hardware na
China e em outros países; a Amazon é uma
espécie de gigantesca loja varejista virtual;
Google, Facebook e Twitter apoiam-se nas
novas tendências de comunicação social e,
basicamente, lucram com a venda de
informações sobre as pessoas que utilizam
suas plataformas. O caso da Tesla é muito
interessante: foi fundada em 2003 e produz

diversas tecnologias relacionadas ao uso da
eletricidade. O preço de suas ações teve um
desenvolvimento exponencial com a
fabricação de automóveis de motores
elétricos e seus projetos em curso para a
construção de duas novas plantas, no Texas
(EUA) e nos arredores de Berlim
(Alemanha), que empregarão 5 mil
operários cada uma[52]. Também, o de
construir uma “cidade inteligente” com
baixo consumo e autossustentável[53].
Em geral, todas se opõem à organização
sindical de seus empregados. Algumas que
pagam salários mais altos e têm condições
trabalhistas mais flexíveis argumentam que
resolvem as questões trabalhistas em rela-
ção direta com seus trabalhadores. A Ama-
zon paga salários muito mais baixos e tem
condições de trabalho muito duras, pelas
mesmas razões da burguesia comercial que
já analisamos. Apesar disso, em ambos os
54
setores começam a se formar os primeiros
sindicatos[54].
Politicamente, alguns de seus CEOs,
como Bill Gates, Mark Zuckerberg e Jack
Dorsey (Twitter) alinharam-se com os de-
mocratas contra Trump. Inclusive o Face-
book e Twitter bloquearam os comunicados
e mensagens de Trump e dos trumpistas[55].
Bill Gates, por exemplo, busca apresen-
tar uma imagem progressista e de preocu-
pação com os problemas do mundo. Jeff
Bezos (Amazon) mantém um baixo perfil
político e opera através de lobbies. Elon
Musk (Tesla) se autodefine como “metade
democrata e metade republicano” porque
é “socialmente liberal e fiscalmente con-
servador”[56].
Tradução: Lilian Enck.

[51]
Apple, Facebook, Amazon, Google y Microsoft suman ya una cuarta parte del S&P 500
[52]
Así será la fábrica de Tesla en Alemania
[53]
EcoInventos Tesla planea construir la primera ciudad sostenible del mundo Elon Musk no para. Tesla no
[54]
Ver: Por primera vez, trabajadores de Google arman un sindicato e Hola, Amazon: aquí está el sindicato de trabajadores
que nunca pediste
[55]
Twitter bloqueó a Trump: así se tomó la decisión e Facebook y Twitter bloquearon las cuentas de Donald Trump: si no
remueve tres mensajes, continuará suspendido
[56]
Elon Musk: the way of the future, em: https://www.youtube.com/watch?v=B1OPxitgvmw
 55

O sonho americano morreu

O fim do mandato de Trump e o início do governo Joe Biden têm
como contexto a profunda crise econômico-social e sanitária que
os Estados Unidos vivem, que está atingindo fortemente
a classe trabalhadora e as massas

Alejandro Iturbe

V
amos começar com a crise de saúde
causada pelo coronavírus. Os Esta-
dos Unidos são um dos países que
contava com mais recursos tecnológicos, far-
macológicos e financeiros para derrotar a
pandemia. Mas, tem o triste privilégio de li-
derar a lista mundial de infecções e mortes.
Em meados de janeiro, o número total de
pessoas infectadas chegou a 24 milhões e as
mortes ultrapassavam 400 mil.
A pandemia continua em um ritmo feroz:
todos os dias temos entre 250 mil e 300 mil
novas infecções e uma média de 4.000 mor-
tes por dia. Os hospitais estão sobrecarrega-
dos e a própria TV se vê obrigada a refletir
essa realidade: por exemplo, a nova tempo-
rada da série Chicago Med, que nos mostra
a terrível pressão sob a qual médicos/as e en-
fermeiros/as têm que trabalhar.
É verdade que o governo de Trump piorou
as coisas com seu negacionismo e o péssimo
combate à pandemia. Mas, tudo foi acele-
rado pela sinistra política do “novo normal”
(promovida tanto pela burguesia republi-
cana quanto pela democrata), que obriga
milhões de trabalhadores a trabalhar com
grandes riscos de contágio.
Por último, mas não menos importante,
foi exposta a profunda fragilidade e injus-
tiça do sistema de saúde pública do país, ca-
ríssimo para um setor de trabalhadores e
que também exclui toda uma parte deles.
Para ambos partidos, a saúde é um negócio
e não um direito social da classe trabalha-
dora. Vejamos alguns dados: cerca de 27
milhões de adultos não têm seguro médico.
Entre aqueles que têm: “Uma pesquisa de
novembro de 2020 realizada pela empresa
de gestão financeira de pacientes VisitPay
descobriu que 35% dos americanos atrasa-
riam o tratamento do coronavírus por medo
de contas médicas associadas”[1].

[1]
Health insurance or food’: Americans face difficult choices amid pandemic
 No contexto em que a vacinação já foi ini-
ciada, a distribuição da vacina é lenta e caó-
tica. O governo federal recebeu 40 milhões
de doses e distribuiu 31 milhões aos estados
(muito longe das 100 milhões de doses que
Trump havia prometido até o final de 2020).
Até 17 de janeiro, entre 10 e 12 milhões de
pessoas haviam recebido uma dose e apenas
1.400.000 as duas. Ou seja, apenas 1/3 das
vacinas recebidas haviam sido aplicadas.
O grave perigo é que ela pode expirar:
“Embora a capacidade de refrigeração varie
de local para local, as vacinas só são auto-
rizadas para 30 dias de armazenamento nas
unidades mais comuns (incluindo aquelas
nas quais foram enviadas). Os estados foram
rápidos em aumentar sua capacidade de ar-
mazenamento, mas foram alertados sobre as
longas esperas por congeladores ultrafrios
que poderiam estender a vida útil para cerca
de seis meses. Isso significa que, em muitos
lugares, esse primeiro lote de vacina expi-
rará no final de janeiro”. Algumas vacinas,
como a da Moderna e da Pfizer-BioTech,
devem ser usadas em até seis horas após
serem retiradas do ultrafrio [2].
[2]
America's Vaccine Rollout Is Already a Disaster Intelligencer
[3]
Biden proposing $1.9-trillion COVID relief stimulus plan
[4]
Sobre este assunto, recomendamos o artigo Vacunas para todos y todas
Agora, como apontamos no segundo ar-
tigo desta série, o governo de Joe Biden está
promovendo um grande pacote de incenti-
vos financeiros dentro do qual 400 bilhões
de dólares serão destinados à compra de va-
cinas e ao processo de vacinação[3]. Isso
acelerou o ritmo (dizem que seriam aplica-
das 100 milhões de doses), mas não é muito
certo que resolva o caos e a desorganização.
Alguns meios de comunicação analisam
que esse caos se deve à falta de um sistema
nacional centralizado de saúde. Mas, isso é
apenas um sintoma, porque aqui se expres-
sam todas as contradições do sistema capi-
talista. Por exemplo, sua capacidade técnica
de produzir vacinas em massa, a de produ-
zir equipamentos médicos de alta tecnolo-
gia ou a de formar cientistas e profissionais
de saúde altamente especializados, mas
tudo está intermediado pela propriedade
privada e pela busca do lucro dos capitalis-
tas. Como já dissemos, a saúde pública é
hoje tratada como um negócio e não como
um direito social, embora milhões de trabal-
hadores adoeçam e morram por causa
disso[4].

A profunda crise
econômico-social
A crise econômica e sua dinâmica, que ana-
lisamos no segundo artigo desta série, teve
um forte impacto sobre a classe trabalha-
dora e as massas.
Esses são números macroeconômicos.
Atrás deles está o sofrimento da classe tra-
balhadora e das massas nas crises capitalis-
tas. Novamente, vejamos alguns dados
dolorosos. Há um aumento acentuado da
pobreza e da insuficiência alimentar (ou
seja, da fome). Quase oito milhões de ame-
ricanos juntaram-se às fileiras dos pobres
desde junho. Um relatório da Universidade
de Chicago e da Universidade de Notre
Dame mostra que “a taxa de pobreza saltou
para 11,7% em novembro, ante 9,3% em
junho. Isso é quase o dobro do maior au-
mento anual da pobreza desde a década de
1960″[5].
Além disso, “cerca de 29 milhões de
adultos, 14% de todos os adultos do país,
relataram que em suas casas às vezes ou
com frequência não tinha o suficiente para
comer nos últimos sete dias [de cada mês],
segundo dados da Pesquisa do Lar, coleta-
dos de 9 a 21 de dezembro”. Isso estava
bem acima das taxas anteriores à pandemia:
uma pesquisa publicada pelo Departamento
de Agricultura relatou que 3,4% dos
adultos informaram que seu lar “não
57
Em outra ordem de necessidades, há um
aumento de inquilinos em atraso no paga-
mento do aluguel e da hipoteca. “Estima-
se que 14 milhões de adultos que vivem em
moradias de aluguel tenham esse pro-
blema, quase 1 em cada 5 inquilinos adul-
tos”. Os trabalhadores negros, latinos e
asiáticos são os que mais sofrem esta situa-
ção: 28% dos inquilinos negros, 24% dos
inquilinos latinos e 23% dos inquilinos
asiáticos “disseram que não estavam em
dia com o aluguel, em comparação com
12% dos inquilinos brancos”[7].
Os problemas atingem setores mais am-
plos, inclusive camadas ainda mais altas da
classe trabalhadora: “Quase 90 milhões de
adultos, 38% de todos os adultos do país,
relataram que foi ‘difícil’ ou ‘muito difícil’
para o seu lar cobrir as despesas habituais
nos últimos sete dias” [do mês][8].

N
tinha o suficiente para comer” em a “terra das mil oportunidades”
algum momento de 2019. A pior situa- entre 8 e 12 milhões de crianças
ção ocorre nas famílias com filhos:
entre 8 e 12 milhões de crianças pas- passam fome e 14 milhões de adultos
sam fome[6]. têm problemas para pagar o aluguel. zx

[5]
Sobre este assunto, recomendamos o artigo Para onde vai a economia mundial?
[6]
Tracking the COVID-19 Recession's Effects on Food, Housing, and Employment Hardships
[7]
Idem.
[8]
Idem.

O desemprego oficial e o real
Em abril do ano passado, houve um recorde
de quase 30 milhões de pessoas solicitando
o seguro-desemprego. O número diminuiu
na segunda parte do ano, mas apenas parcial-
mente. A taxa oficial era de 6,7% em dezem-
bro de 2020, mas subia para 9,9% para os
negros e 9,3% para os latinos.
A perda de empregos atingiu mais os tra-
balhadores com salários baixos: “A maioria
dos empregos perdidos na crise ocorreu em
indústrias que pagam salários médios bai-
xos. Essas indústrias representam 30% de
todos os empregos, mas 58% dos empregos
perdidos de fevereiro a dezembro, último
mês dos dados de emprego do Departamento
do Trabalho”. Foi mais do que o dobro da
perda de empregos nas indústrias de salários
médios e quase quatro vezes maior do que
nas indústrias de salários altos[9].
Mas, os números oficiais, com a sua defi-
nição de “desempregado”, excluem aqueles
que já desistiram de procurar trabalho nas úl-
timas quatro semanas ou não têm condições
para fazê-lo, embora gostariam de conseguir
[9]
Idem.
[10]
Idem.
[11]
Forecast for 2021 – Michael Roberts Blog
58
um; excluem os trabalhadores licenciados
não remunerados e também os proprietá-
rios de pequenas empresas que tiveram
que fechar durante a pandemia, por distin-
tos motivos. Se incluirmos todos esses
“trabalhadores marginalizados”, existem
“cerca de 48 milhões de pessoas, ou 1 em
cada 7 pessoas no país, que vivem em fa-
mílias com um trabalhador marginali-
zado” [10].
Essa situação é muito grave e veio para
ficar num futuro próximo. A pandemia dei-
xou cicatrizes permanentes na economia:
“Durante as quarentenas de 2020, muitas
empresas, especialmente as menores do
setor de serviços, não vão voltar e os em-
pregos que as acompanham vão desapa-
recer. Além disso, é possível que muitos
trabalhadores que foram demitidos não re-
cuperem seus empregos, visto que as em-
presas procuram reduzir o pessoal e não
recontratar trabalhadores mais velhos e
mais custosos”[11].
O pacote promovido pelo governo de
Joe Biden destina mais da metade de seu
montante à ajuda a indivíduos e famílias,
e é muito possível que atenue esse quadro.
Mas, por enquanto, só será aplicado em
2021.
 59
O fim das ilusões fixo não garante que não sejam pobres,
pois o salário-mínimo médio nacional de
O sonho americano era a ideologia de que cerca de 1.200 dólares por mês não supera
os EUA eram a “terra das mil oportunida- a linha de pobreza, que requer não menos
des”. Que, qualquer que fosse a origem so- que 2.000 dólares por família[14]. Por isso,
cial de uma pessoa ou família, com trabalho a porcentagem de pobres é maior do que
duro e certa capacidade era possível ter su- a de desempregados.
cesso e ascender socialmente.
Todo esse processo de deterioração do
Embora no país sempre tenham existido nível de vida dos trabalhadores e das mas-
profundas desigualdades e discriminação ra- sas se acelerou a partir da crise de 2007-
cista, a verdade é que, para importantes se- 2008 (e a política de Obama para
tores da classe trabalhadora, esse sonho enfrentá-la) e deu um grande salto com a
pareceu real durante várias décadas: os sa- pandemia em 2020, como já analisamos
lários eram suficientes para pagar a hipoteca neste artigo. O sonho americano hoje está
da casa própria, comprar um carro e eletro- morto e para milhões de habitantes desse
domésticos e poupar para pagar os estudos país tornou-se um pesadelo. Especial-
universitários dos filhos que, assim, inicia- mente para os setores explorados e mar-
vam a vida do trabalho em um nível superior ginalizados, como a população negra e os
ao de seus pais. imigrantes latinos. É a realidade objetiva
Esse sonho começou a ser destruído em e estrutural que alimenta as lutas do mo-
1981, quando o governo republicano de Ro- vimento de massas.
nald Reagan derrotou a greve dos controla-
dores de tráfego aéreo e deu início a uma
ofensiva sobre os salários e as condições de
trabalho[12]. De lá para cá, a deterioração do
nível de vida dos trabalhadores é constante,
já que tanto os governos republicanos
quanto os democratas avançaram nesse ca-
minho, seja de modo mais lento ou mais
acelerado.
Empregos industriais eram fechados e
substituídos por outros cujo nível salarial
mal chegava à metade do anterior, como foi
o caso da reestruturação da General Motors,
em 2009[13]. Os novos empregos criados no
setor de serviços pagavam muito menos e
tinham jornadas e condições de trabalho
muito piores. Isso significa que, atualmente,
para muitos trabalhadores, ter um emprego

[12]
Forecast for 2021 – Michael Roberts Blog
[12]
El momento en que Reagan se convirtió en Reagan
[13]
GM despedirá a 10.000 empleados en todo el mundo
[14]
¿Quiénes son los 40 millones de pobres que viven en el país más rico del mundo?

A situação do movimento
de massas
Todo esse quadro gerou uma resposta cres-
cente do movimento de massa. Sua mani-
festação mais notória são as rebeliões
antirracistas que respondem aos casos de as-
sassinatos e/ou lesões causados pela polícia,
como aconteceu com George Floyd em
maio de 2020. A juventude negra foi a van-
guarda dessas lutas que, como uma faísca
que acende o capim seco, se espalhou para
toda a população negra, latina e também
para a juventude e setores brancos empobre-
cidos.
Expressavam a raiva e exaustão com a
dura realidade que viviam, agravada ao ex-
tremo pelo impacto da pandemia. Por isso,
as mobilizações se espalharam por todo o
país e houve fortes confrontos com as forças
de repressão. Seu impacto foi tão grande
que consideramos que geraram uma crise no
regime político e abriram uma nova situação
no país. Foi um salto sobre os elementos da
crise preexistente, no quadro da constante
[15]
Sobre este assunto, sugerimos a leitura da declaração da LIT-QI em: Um processo revolucionário sacode os EUA! - LIT-QI
[16]
Wave of 1000 strikes ripples across the US
60
deterioração do nível de vida e do crescente
ceticismo das massas em relação ao sis-
tema[15].
Simultaneamente, houve outros proces-
sos de luta: desde o início da pandemia, re-
gistrou-se um recorde de conflitos e greves
no país, especialmente nos setores de edu-
cação, serviços e comércio. Lutas que sur-
gem de baixo e refletem o cansaço dos
trabalhadores pela situação atual.
“A frustração com os baixos salários no
setor de serviços e a debilidade das prote-
ções aos empregados… em meio ao au-
mento das mortes pelo coronavírus” […].
“Nessa onda de greves, o impulso vem das
bases. Os trabalhadores decidiram que já
tiveram o suficiente e estão preparados
para pressionar por mudanças”, disse
Dean Baker, economista do Center for Eco-
nomic and Policy Research[16].
Diante deste “incêndio” que se produzia
no país, a burguesia dos EUA procurou
aproveitar a campanha e as eleições presi-
denciais de novembro para tentar frear e
conduzir a luta para a via morta do sistema

eleitoral democrático burguês[17] . De certa
forma, esse objetivo foi alcançado, pelo
menos temporariamente: a onda de rebe-
liões antirracistas diminuiu, e houve um re-
corde no número de eleitores por um ou
outro candidato. Também é possível que,
depois de derrotarem a tentativa de reelei-
ção de Trump, as expectativas dos trabalha-
dores e das massas no novo governo Biden
estendam um pouco esse respiro para a bur-
guesia e seu regime político.
Mas, as causas profundas e estruturais
que geraram um 2020 “quente” continuam
e não serão resolvidas. É possível então
que, diante dessa frustração, as rebeliões e
a onda de greves de 2020 voltem a esse pa-
tamar e até o ultrapassem.
Dois eventos recentes mostram essa pos-
sibilidade. No primeiro deles, o Sindicato
dos Professores de Chicago votou pela re-
jeição da retomada das aulas presenciais
enquanto continuar a pandemia, e dessa
forma desafia o plano de reabertura das es-
colas públicas da cidade promovido pela
Prefeitura[18]. No outro, os 1.400 trabalha-
dores de um frigorífico processador de car-
nes no Bronx (Nova York) fizeram uma
dura greve de vários dias e conseguiram um
aumento salarial muito superior ao ofere-
cido pela empresa[19].
Outro dado importante: os trabalhadores
de dois gigantes de novas tecnologias, a
Amazon e Alphabet-Google, começaram a
se sindicalizar. Ambas são empresas que se
opõem à sindicalização de seus trabalhado-
res. A Alphabet-Google paga salários mais
altos e tem condições de trabalho mais fle-
[17]
Ver: Estados Unidos: entre a rebelião negra e as eleições e Forecast for 2021
[18]
Chicago Teachers Union votes to refuse in-person work
[19]
1,400 Workers in the Bronx Are on Strike for a Livable Wage
[20]
Trabajadores de Amazon buscan sindicalizarse
[21]
Hola, Amazon: aquí está el sindicato de trabajadores que nunca pediste
[22]
Google: trabalhadores anunciam sindicato inédito no Vale do Silício
61
xíveis, e argumenta que resolve as ques-
tões trabalhistas em relação direta com
seus trabalhadores. A Amazon, que paga
salários muito mais baixos e tem condi-
ções de trabalho muito duras, apresenta as
mesmas razões que a tradicional burguesia
comercial.
No caso da Amazon, 1.500 trabalhado-
res da linha de frente no depósito de Bes-
semer, Alabama (a unidade tem 5.700) já
se organizaram e, de acordo com a legis-
lação dos Estados Unidos, solicitaram que
se realize uma votação entre todos os tra-
balhadores da unidade para obter reconhe-
cimento oficial e representar o conjunto da
unidade. A empresa tentou judicialmente
impedir a votação[20].
Em outra unidade da Amazon, nos arre-
dores de Detroit, também se está organi-
zando um sindicato, cuja luta foi
impulsionada pelo aumento de infecções
do coronavírus, inclusive com greves par-
ciais e com o abandono do local de tra-
balho por uma parte dos trabalhadores[21].
No caso da Alphabet-Google, algumas
centenas de trabalhadores de sua sede for-
maram o primeiro sindicato dessa empresa
(na verdade o primeiro de trabalhadores
diretos das diferentes companhias do Vale
do Silício, já que existiam sindicatos de
trabalhadores de serviços terceirizados
como a limpeza). O sindicato é o Alphabet
Workers Union e é filiado ao Communica-
tions Workers of America[22].
Tradução: Tae Amaru.
 62

A política do novo governo

democrata para os imigrantes
A mídia internacional apresenta um cenário no qual a política do governo
de Joe Biden em relação aos imigrantes teria mudado completamente daquela
aplicada pelo republicano Donald Trump. A realidade, no entanto, é muito
diferente dessa superficialidade jornalística

Alejandro Iturbe

C
omo já analisamos em outros como operários e mesmo que desenvolvessem
artigos desta série, os par- suas próprias empresas e que, nesse processo,
tidos Democrata e Repu- fossem obtendo sua cidadania. Foi uma pri-
blicano expressam distintos setores meira versão do “sonho americano” e da “terra
da burguesia imperialista e também das mil oportunidades”.
diferenças de estilo político. Porém, A Estátua da Liberdade, um pre-
têm objetivos e interesses comuns e, sente do Estado francês, depois
portanto, continuidades políticas inde- transformada em um símbolo de
pendentemente do partido que governa. Nova York, tornou-se uma espécie
Uma delas é, justamente, a política de símbolo dessa imigração.
diante da questão da imigração. Para Hoje, algumas frases escri-
compreender essa continuidade e como tas na placa de bronze situada
ela se expressa na atualidade, é neces- em sua base parecem uma
sário fazer uma breve recapitulação his- cruel ironia: “Terras antigas,
tórica. permaneçam com suas histórias
Desde sua independência, ao longo do pomposas!” exclama ela, com
século XIX e nas primeiras décadas do sé- lábios silenciosos. “Dai-me os
culo XX, os Estados Unidos foi um país de teus fatigados, teus pobres, tuas
muita imigração. Os contingentes chega- massas amontoadas ansiando
vam majoritariamente da Europa: entre para respirar livres...”.
1836 e 1914, mais de 30 milhões de mi- No entanto, não se tratava
grantes europeus chegaram ao país. de um paraíso, pois quando
É importante considerar que a po- esses operários imigrantes
pulação do país era de 92 mil- tomavam o caminho
hões em 1910[1]. A dinâmica da luta de classes, a
expansiva do capitalismo burguesia norte-ameri-
norte-americano permitiu incor- cana os reprimia sem
porá-los à estrutura produtiva considerações, como é o

[1]
La historia de la inmigración en los Estados Unidos | Remitly.
 63
caso dos Mártires de Chicago ou de Nicola Uma mudança de perfil
Sacco e Bartolomeo Vanzetti.
A crise de 1929 e sua sequela de um grande
Houve também uma migração forçada: a aumento do desemprego no país abriu um
dos povos africanos trazidos como escra- impasse nessa dinâmica migratória, que
vos. Entre 1626 e 1875, mais de 300 mil continuou durante a Segunda Guerra Mun-
pessoas foram trazidas à força, primeiro às dial. A entrada dos EUA no conflito (1941)
colônias britânicas e depois para os Estados e o recrutamento de numerosos jovens pro-
Unidos, para serem vendidas como escra- vocam uma entrada em massa de mulheres
vos obrigados ao trabalho forçado[2]. no mercado de trabalho, para substituí-los
Neste período, já se torna necessário em seus empregos.
considerar a imigração mexicana, depois da
anexação (roubo) de todo o norte do Mé-
xico após a guerra entre os dois países
(1846-1848) e o Tratado de Guadalupe Hi-
dalgo, assinado no final da guerra de inva-
são pelos EUA. O México perdeu o
território que corresponde aos atuais Esta-
dos do Texas, Califórnia, Novo México,
Arizona, Colorado e Utah. A verdade é que
80 mil mexicanos que viviam nesses terri-
tórios passaram a residir nos EUA, em uma
situação de difícil classificação, pois em-
bora o Tratado estipulasse seus direitos sob
o domínio norte-americano, tais cláusulas
foram descumpridas desde o início. Além
disso, após esse tratado, estima-se que ou-
tros 50 mil mexicanos entraram como imi-
grantes naquele novo território
[3]
norte-americano . Em 1942, inicia-se a importação tempo-
Após a ocupação da Califórnia e dos te- rária de mão de obra mexicana para trabal-
rritórios do oeste norte-americano, em mea- har na agricultura, com o chamado
dos do século XIX, e da expansão das Programa Bracero, que durou até 1964,
ferrovias para o oeste, chegaram também com uma média anual de 200 mil migran-
cerca de 300 mil migrantes chineses, con- tes sem direito à permanência no país após
tratados ou como trabalhadores livres. Uma o término de seus contratos. Durante todo
onda de xenofobia antichinesa, consubstan- o período deste programa, os braceros
ciada na Lei de Exclusão dos Chineses de nunca foram uma força de trabalho dócil,
1882, fechou o fluxo migratório até 1965, indo à greve em várias ocasiões e culmi-
deixando essas comunidades marginaliza- nando nas greves do Vale Imperial na Ca-
das em guetos (chamados desdenhosa- lifórnia, na década de sessenta, sob a
mente de Chinatowns). direção do United Farm Workers.

[2]
Idem.
Veja o trabalho A migração mexicana para os Estados Unidos. Uma breve radiografia, de Adolfo Albo e Juan Luis Ordaz
[3]

Diaz, em: La Migración Mexicana hacia EEUU

 64
Após a Segunda Guerra ocorreu uma
nova onda migratória da Europa, mas muito
menor do que a que já descrevemos. Ao
mesmo tempo, dá-se uma mudança no perfil
imigratório.
A expansão econômica e industrial do pe-
ríodo do boom do pós-guerra gera uma
grande demanda de trabalhadores que co-
meça a ser ocupada, em parte significativa,
por imigrantes do México e, em menor es-
cala, de países centro-americanos. No pe-
ríodo compreendido entre 1945 e 1970 há
um crescimento dessa imigração - com pico Loja no bairro indiano de Nova York, em Jackson Heights,
em 1965 - e uma sequência nas décadas localizado no distrito de Queens. Fotografia retirada de
posteriores, com intensidades menores, mas http://revistacultural.ecosdeasia.com/dadme-a-los-
com um fluxo permanente[4]. Para além das
cansados-a-los-pobres-y-a-los-asiaticos-estados-unidos-y-
flutuações, a classe trabalhadora mexicana
passou a ser, de fato, parte do exército in- la-inmigracion-oriental/, dezembro de 2015.
dustrial de reserva da burguesia norte-ame-
Ocorreram também outras ondas migra-
ricana, e compreende 25% da população
tórias significativas, embora motivadas por
imigrante nos EUA (censo 2017). Ao
razões distintas e com características dife-
mesmo tempo, foi uma válvula de escape às
rentes. Estamos nos referindo, em particu-
limitações da burguesia e dos governos me-
lar, à imigração proveniente da Índia: entre
xicanos.
os anos 2015 e 2019 houve um fluxo que
ultrapassou dois milhões de imigrantes
anuais[5], à medida que “os Estados Unidos
estão suprindo suas necessidades atuais e
futuras de trabalhadores altamente qualifi-
cados”, conforme expresso em um trabalho
especializado sobre este tema[6]. Estima-se
que existam cerca de dez milhões de resi-
dentes dessa origem atualmente, ou seja,
6% da população imigrante. A imensa
No último terço do século XIX, a China contribuiu com 85% da maioria entrou legalmente no país, mas
existe uma minoria que entrou sem docu-
mão de obra para a construção da Ferrovia do Pacífico
mentos. A imigração chinesa, por outro
Central. Fotografia retirada de: La gran paradoja china: de
lado, manteve-se constante desde 1965 até
esforzados peones del ferrocarril a líderes en tecnología de o presente, atingindo 5,5% da população
alta velocidad. imigrante (censo de 2017).

[4]
Ídem, gráfico 2.
[5]
KHADRIA, Binod; Índia: migração qualificada para os países desenvolvidos; Coleção América Latina em: India: migración
calificada a los países desarrollados, migración laboral al Golfo*
[6]
https://www.un.org/development/desa/pd/data/world-population-policies

Algumas questões de termos
Achamos importante ver o significado de
alguns termos que nem sempre são utiliza-
dos da mesma forma em diferentes países
e podem gerar confusão. Imigrante é uma
pessoa nascida em um país que emigra
para outro para nele residir; em geral de
maneira permanente, embora existam imi-
grantes temporários por motivos de estudo
ou de períodos de trabalho, que também se
identificam a si mesmos como “migran-
tes”.
No caso dos Estados Unidos, uma parte
desses imigrantes conseguiu obter a cida-
dania, outra parte permanece com diferen-
tes categorias de vistos de residência, entre
elas a permanente (green card). E, por fim,
estão aqueles que a legislação burguesa
qualifica como “ilegais” (nós os denomi-
naremos “sem documentos”), ou seja,
aqueles que entraram no país sem a permis-
são de entrada ou cujos vistos venceram.
Logo, devemos considerar o conceito de
“comunidade de origem imigrante” que in-
clui não apenas os nascidos em outro país,
mas também a segunda e a terceira gera-
ções. Como existe o jus soli nos Estados
Unidos (os nascidos no país tem o direito
[7]
World Population Policies | Population Division
[8]
Dados obtidos de uma tabela elaborada de acordo com os dados do Pew Research Center em: 5 gráficos que explican el
estado actual de la inmigración irregular en Estados Unidos
65
à cidadania), essas novas gerações não são
mais consideradas imigrantes. A exceção são
as situações de altos níveis de criminalidade
ou problemas sociais, por isso mesmo os
norte-americanos de origem migrante são
acusados de “não ter se adaptado” e “serem
um problema no país”. Em vários casos, a ci-
dadania foi retirada e foram deportados,
como aconteceu com jovens de vários países
centro-americanos.
Neste conceito de “comunidade” entram
em jogo fatores como a preservação do
idioma materno (seja como língua principal
ou em caráter bilíngue) e outros aspectos cul-
turais. Esses elementos linguísticos e cultu-
rais são muito fortes nas comunidades de
origem latino-americana, do leste asiático e
da Índia. Quando isso se perde, a sociologia
considera que está ocorrendo um processo de
“assimilação”.
Como um dado geral, a ONU informava
que nos EUA havia cerca de 51 milhões de
imigrantes em 2019, a maior cifra do mundo,
que representa quase 15% da população do
país[7]. Desse total, o número dos sem docu-
mentos é menos preciso: as estimativas va-
riam entre 10,5 e 12 milhões. Além disso, a
quantidade vem diminuindo de um máximo
de 12,6 milhões, estimado em 2016[8].

Os latinos
O governo dos Estados Unidos define “his-
pano ou latino” como “uma pessoa de cul-
tura ou origem cubana, mexicana,
porto-riquenha, sul-americana, centro-
americana ou outra origem espanhola, in-
dependentemente da raça”[9]. É uma
definição discriminatória e, nos censos, é
considerada separadamente do conceito de
“branco” (existem também outras catego-
rias como “asiático”, “afro-americano”,
etc.). Em consequência disso, muitas vezes
as comunidades defendem essa classifica-
ção porque, pelas chamadas “leis de discri-
minação positiva”, permite que eles
obtenham “quotas raciais” nas escolas, bol-
sas universitárias e empregos.
Segundo esse critério, a agência do Censo
registrou 31,7 milhões de imigrantes “his-
pânicos” em 2006, dos quais 11,5 milhões
eram mexicanos. Se considerarmos o con-
ceito de “comunidade”, o número se mul-
tiplica, pois com a segunda e terceira
gerações, as famílias de origem mexicana
chegavam a cerca de 30 milhões de pes-
soas[10]. As cidades com maior número de
latinos são, nessa ordem, Los Angeles,
[9]
¿A quién consideran latino en Estados Unidos? (y por qué es más complicado de lo que quizá imaginas).
[10]
Ver trabalho citado na nota [3], gráfico 3.
[11]
Ver nota [9].
Nova York, Houston, Riverside/San Ber-
nardino, Dallas, Chicago, Miami, Phoenix,
San Antonio e San Francisco[11].
Embora a categoria “latino” seja utili-
zada de modo geral, é necessário precisar
que, dentro desse grupo, existem diferen-
ças importantes. Nos estados como Cali-
fórnia, Texas e Arizona os mexicanos são
claramente predominantes, e um compo-
nente central do proletariado da região.
Devemos também levar em consideração
um número de imigrantes temporários que
vêm trabalhar sazonalmente. Além disso,
embora de forma minoritária, surgiram se-
tores burgueses e pequeno-burgueses. Em
geral, alinham-se com o partido Demo-
crata. Ao mesmo tempo, os mexicanos são
um elemento dinâmico da luta de classes:
comemoram o 1º de Maio como dia de luta
dos trabalhadores (nos Estados Unidos,
tentou-se ocultar essa data com o nome de
Labour Day, em outra data e com um con-
teúdo puramente festivo), impulsionam o
“dia sem imigrantes”, são participantes ati-
vos das lutas pelo salário de 15
dólares/hora, enfrentam permanentemente
a política de expulsão de imigrantes sem
documentos, etc.

Na faixa que vai de Nova
York a Chicago, é muito no-
tória a presença porto-ri-
quenha (em 2018
estimava-se um total pró-
ximo aos seis milhões no
país), inclusive com bairros
próprios, como o East Harlem em Nova York
(também chamado Harlem Hispânico).
Como eles vieram de um “Estado Livre As-
sociado” (uma forma especial de colônia),
têm a vantagem de obter automaticamente a
cidadania norte-americana ao emigrar para o
continente. Também há a presença de domi-
nicanos, estimados em dois milhões, no norte
do distrito de Manhattan e no Bronx. A ten-
dência dos dois setores é de se alinhar com
os Democratas.
Finalmente, na Flórida, em particular em
Miami, a comunidade majoritária é a cubana.
Podemos falar de duas ondas migratórias di-
ferentes. A primeira é a de setores burgueses
e pequeno-burgueses (os gusanos) que fugi-
ram de Cuba após a revolução de 1959 (mui-
tos deles tinham negócios e propriedades).
Eles formaram um setor burguês integrado à
coalizão republicana. A segunda é a dos ma-
rielitos (assim chamados porque vieram do
porto de Mariel). São setores operários e po-
pulares que fugiram da pobreza que o cha-
mado período especial gerou em Cuba nas
décadas de 1980 e 1990. Por essa
razão, havia uma tendência a seguir
as posições políticas dos gusanos.
Aqui, devemos nos referir à política
de “pés secos, pés molhados”, vi-
gente entre 1995 e 2017, pela qual os
cubanos que conseguiram pisar em
solo norte-americano depois da via-
gem em jangadas, tinham o direito
de permanecer no país. Foi revogada
por Obama no final de seu man-
dato[12].
[12]
Obama pone fin a la política de “pies secos, pies mojados” para los cubanos
[13]
Situación Respuesta a los Venezolanos
67
Mais recentemente, aconte-
ceu uma imigração vene-
zuelana, estimada em mais
de 350 mil em 2020[13],
como parte de uma emigra-
ção muito mais ampla do
país para diferentes desti-
nos. Nos EUA, apresenta características
principalmente burguesas e pequeno-bur-
guesas. Recentemente, Biden concedeu-
lhes um “status de proteção temporária”
(TPS por suas siglas em inglês) que, en-
quanto estiver em vigor, protege-os da de-
portação e permite que trabalhem
legalmente. O TPS é, como o próprio nome
indica, temporário e não permanente; além
de ter um custo a ser pago ao Estado tanto
no início como na sua renovação anual. No
entanto, mostra o caráter com que os demo-
cratas lidam com essa questão, discrimi-
nando os imigrantes de acordo com a
conjuntura política do país de origem e de
como os EUA se situam nesse contexto.
As políticas migratórias discriminatórias e
persecutórias estão cada vez mais focadas
nos latino-americanos e, especialmente,
nos mexicanos. Não apenas por uma ques-
tão numérica, mas também pelo que pode-
Muitos imigrantes cubanos vivem na Little Havana
em Miami.
mos chamar de “porosidade” em uma fron-
teira muito extensa. E também, como
vimos, porque são eles, muitas vezes, os
que promovem e são as centelhas da luta de
classes.

O capitalismo imperialista
e os imigrantes
As migrações em massa sempre existiram
na história da humanidade. Entre outras
causas, pela necessidade, de povos ou seto-
res deles, de garantir sua sobrevivência.
Mas, o capitalismo imperialista aumentou
e acelerou esses processos e, se vale o
termo, internacionalizou-os
Como um fator central, como já menciona-
mos, utiliza a imigração do proletariado de
outros países como um exército industrial
de reserva, que usa para manter os merca-
dos nacionais de trabalho em equilíbrio.
Regula o fluxo desse exército através das
leis de imigração, que são amenizadas ou
endurecidas de acordo com as necessidades
de cada período.
Na outra ponta do processo, a situação de
pobreza e miséria causada pela exploração
dos países colonizados (mais recentemente,
o colapso ambiental em zonas inundáveis
[14]
Caravana de inmigrantes hondureños hacia EE.UU: “No nos vamos porque queremos, nos expulsa la violencia y la pobreza”
ou desérticas altamente povoadas causado
pelas mudanças climáticas) cria setores
cada vez maiores de trabalhadores para os
quais a emigração passa a ser a única saída
possível para alimentar a sua família, seja
se deslocando com ela ou empreendendo
sozinhos a aventura, para depois fazer re-
messas de dinheiro. O volume total de din-
heiro que retorna ao país de origem por
meio dessas remessas é muito grande: vá-
rios bilhões de dólares. Em alguns países,
como El Salvador e Equador, passou a ser
um componente essencial da economia na-
cional e do PIB. No caso de El Salvador,
originou uma fonte de capital para as em-
presas.
Por isso, muitas vezes, os emigrantes não
hesitam em arriscar suas vidas nas traves-
sias ou em ter uma vida quase clandestina
no país de destino. Nas recentes caravanas
de hondurenhos que tentaram entrar nos Es-
tados Unidos atravessando o território me-
xicano, vários dos participantes declararam:
“Não vamos porque queremos, a violência
e a pobreza é que nos expulsam”[14].

Obama e a máquina
de expulsar imigrantes
Nossa análise sobre os fluxos migratórios no
capitalismo imperialista é especialmente vá-
lida para os países latino-americanos e os Es-
tados Unidos. Nas últimas décadas, este país
sempre teve uma legislação repressora e per-
secutória contra os imigrantes sem docu-
mentos. Mas, esta legislação foi
aplicada com mais ou menos rigi-
dez de acordo com as necessida-
des do mercado de trabalho.
Algo que tem pouco a ver
com o fato de o go-
verno ser dos parti-
dos Democrata
ou Republicano.
O democrata Bill
Clinton (1993-
2001), em um momento de
boom econômico, expulsou “ape-
nas” 870 mil. Durante os governos
do republicano George W. Bush
(2001-2009) esse número mais do que
dobrou (2,1 milhões).
Mas, quem acabou levando o “prêmio” foi
Barack Obama: durante seus mandatos
(2009-2017) foram deportados quase 2,8 mil-
hões de imigrantes. E foi ainda mais longe:
em 2004, Bush centralizou várias agências
que realizavam esta repressão: o Citizenship
and Immigration Services (Serviços de Imi-
gração e Cidadania, chamado de “migra”
pelos latinos), o Immigration and Customs
Enforcement (Serviço de Imigração e Alfân-
dega) e a Customs and Border Protection
(Proteção de Fronteiras e Alfândegas). No
governo Bush, essa unidade tinha 28.000
agentes e um orçamento de 4 bilhões de dó-
lares. Obama aumentou o número de agentes
[15]
Obama, el presidente que más inmigrantes ha deportado
[16]
Obama anuncia plano de imigração que protege 5 milhões da deportação
[17]
Los números que confirman que Trump deportó menos personas que Obama en su primer año de gobierno
69
para 48.000 e elevou seu orçamento para 18
bilhões[15]. Não é por acaso que, ao final de
seu segundo mandato, alguns meios de co-
municação da esquerda e da comunidade
latina falassem da “máquina de deporta-
ções que Obama construiu para o presi-
dente Trump”, além de ganhar o apelido de
“deportador-chefe”.
Ao mesmo tempo, Obama propôs uma
“cenoura” em 2014: planos de legali-
zação para os imigrantes sem docu-
mentos que tivessem filhos
nascidos nos EUA ou para os que
chegaram quando crianças
(DACA por suas si-
glas em inglês).
Esses planos pro-
punham um longo
trâmite, de não menos
de dez anos para aspirar
à cidadania e que, além
disso, visava dividi-los, já
que beneficiava apenas uma parte
dos sem documentos[16]. Como se
não bastasse, o início do trâmite exi-
gia o pagamento de uma multa de 1.500 dó-
lares por pessoa por “ter entrado
ilegalmente no país”.
O que aconteceu com Trump?
Inacreditavelmente, neste aspecto a política
do governo de Donald Trump não signifi-
cou nenhum salto qualitativo em relação à
de Obama. Trump utilizou a “máquina de
deportações” construída por Obama. Inclu-
sive, “deportou 177 mil imigrantes a menos
que Barack Obama em 2009, [durante] seu
primeiro ano na Casa Branca [2017], de
acordo com dados do Escritório de Alfân-
degas e Proteção de Fronteiras dos Estados
Unidos” (CBP, em sua sigla em inglês)[17].

Inacreditavelmente, neste aspecto a política
do governo de Donald Trump não signifi-
cou nenhum salto qualitativo em relação à
de Obama. Trump utilizou a “máquina de
deportações” construída por Obama. Inclu-
sive, “deportou 177 mil imigrantes a menos
que Barack Obama em 2009, [durante] seu
primeiro ano na Casa Branca [2017], de
acordo com dados do Escritório de Alfân-
degas e Proteção de Fronteiras dos Estados
Unidos” (CBP, em sua sigla em inglês)[18];
o anúncio da construção de um muro na
fronteira com o México (que deveria ser
pago pelo governo mexicano); a detenção,
em jaulas, de crianças imigrantes (uma ima-
gem que percorreu e indignou o mundo)[19];
a recusa de concessão de asilo político a
todos os refugiados que solicitaram, etc.
Entre essas medidas ruidosas, uma delas
provocou uma grande crise: o chamado
“veto aos muçulmanos”. Ou seja, a ordem
executiva assinada em janeiro de 2017,
logo após a sua posse, pela qual ficou pra-
ticamente proibida a entrada no país de pes-
soas oriundas de diversos países do Oriente
Médio, inclusive aquelas que já possuíam
70
vários tipos de vistos de residência nos Es-
tados Unidos. A ordem provocou mobiliza-
ções contrárias em vários aeroportos do
país (especialmente no Kennedy em Nova
York); demandas de associações de advo-
gados; decisões judiciais contrárias a ela,
como a de uma juíza federal de Nova York
que autorizou as entradas. A aplicação da
medida foi suspensa, mas a Suprema Corte
(em uma votação muito dividida), baseada
em uma segunda versão feita por Trump,
considerou a ordem “legal” em 2018.
No entanto, para além dessa atitude mais
“beligerante”, Trump estava muito distante
de cumprir sua promessa eleitoral de expul-
sar as “onze milhões de pessoas que entra-
ram ilegalmente neste país”. Enquanto a
média anual de deportações sob Obama foi
de 350 mil pessoas, o governo Trump atin-
giu a cifra de 269 mil em 2019, segundo
dados do MPI (Migration Policy Insti-
tute)[20]. O que aumentou foi o número de
detidos na fronteira com o México: de uma
média mensal de 35 mil para 40 mil. O nú-
mero de operações de “caça a ilegais” tam-
bém aumentou nos locais de trabalho, como
a realizada pelo ICE em Odessa (Texas),
com métodos muito violentos, nas fábricas
da Koch Food Inc., cujos proprietários se

PAÍSES DE MAIORIA MUÇULMANA AFETADOS

PELO DECRETO DO GOVERNO TRUMP
SÍRIA
IRÃ
LÍBIA

CHADE IÉMEN

SOMÁLIA

[18]
La Vanguardia Trump ha deportado a 10.000 inmigrantes en medio de la pandemia Las medidas de
[19]
Secuestro, tortura y muerte de menores inmigrantes en Estados Unidos
[20]
Trump prometió millones de deportaciones, pero no cumplió
encontram entre as famílias mais ricas do
país e apoiaram Trump[21].
Não foi por falta de vontade de Trump
que o número de deportados não foi maior.
Por um lado, como vimos, teve que enfren-
tar mobilizações de massas e inclusive for-
tes atritos com setores burgueses que
aproveitam a exploração dos sem documen-
tos e imigrantes para aumentar seus lucros,
além de tê-los como clientes que pagam em
dinheiro, porque muitos deles não possuem
cartões de crédito. Por outro lado, ocorreram
algumas manifestações incipientes de crise
moral naqueles que deveriam exercer a re-
pressão contra os imigrantes sem documen-
tos. Um guarda de fronteira da cidade de
Tucson, Arizona, declarou ao jornal New
York Times: “As pessoas realmente nos
odeiam. Eles nos chamam de assassinos de
crianças. Não podemos ir comer em muitos
restaurantes com medo de que cuspam na
nossa comida”. No mesmo estado, um
agente pediu demissão porque “prender
pessoas por uma atividade não violenta co-
meçou a me corroer por dentro”[22].
A operação "caça aos ilegais" realizada nas fábricas da
Koch Food Inc. pela polícia.
Ao mesmo tempo, e de forma totalmente
hipócrita pelos antecedentes que vimos com
Obama, o partido Democrata colocou-se
em oposição a esta política. Em muitos
casos, funcionários públicos e inclusive po-
liciais em cidades administradas pelos de-
mocratas recusaram-se a deter ou a
deportar imigrantes. Estas “cidades santuá-
rio” vêm dos anos 80, em conjunto com a
solidariedade com as revoluções centro-
americanas, mas ganharam um novo signi-
ficado em face de Trump.
O famoso muro
Durante sua campanha eleitoral, Trump
prometeu a construção de um muro que
percorreria toda a fronteira com o México
e disse que o custo de sua construção seria
pago pelo México. Logo que assumiu, as-
sinou uma ordem executiva autorizando a
obra, e ao final de seu mandato (já derro-
tado nas eleições por Joe Biden) tirou foto-

[21]
Represión y masacres alentados por la política de Trump contra los trabajadores inmigrantes
[22]
La gente realmente nos odia’: la crisis moral de la Patrulla Fronteriza

grafia na construção e disse que esperava
que seu sucessor mantivesse essa “obra de
meu governo”.
A realidade, no entanto, é muito diferente
dessa bravata de Trump. A fronteira entre os
Estados Unidos e o México tem 3.142 qui-
lômetros de extensão. Antes de ele chegar à
Casa Branca, já havia barreiras ou cercas de
separação em um terço dessa fronteira, cerca
de 1.050 km[23].
Nas zonas urbanas, as barreiras são feitas
para impedir a passagem de pedestres e veí-
culos. As cercas são de diversos tipos: em
alguns segmentos são chapas de metal ou
aço corrugado, em outras partes há uma
malha de arame ou várias sobrepostas, e em
certos setores existem barras verticais que
medem entre 5,5 e 9,1 metros de altura, co-
locadas sobre concreto e separadas por pe-
quenos espaços. No posto fronteiriço entre
San Diego e Tijuana, as cercas vão até 100
metros mar adentro e são feitas de materiais
resistentes à corrosão salina. Às vezes, as
barreiras são simples (primárias) e em outras
[23]
Os dados neste subtítulo foram retirados de: Cuánto se ha construido realmente del famoso muro de Trump con México y
quién lo está pagando
72
são duplicadas paralelamente (secundá-
rias).
Nas áreas mais remotas, o governo usa
cercas para veículos, postes de madeira
cruzados (geralmente obtidos dos trilhos
das ferrovias) que impedem a passagem de
veículos, mas que podem ser atravessados
por pedestres. Em grande parte do resto da
fronteira, existem áreas montanhosas, de-
sertos, pântanos e canais em torno do Rio
Bravo (ou Rio Grande) e não há nenhuma
estrutura artificial porque, em teoria, a na-
tureza constrói sua própria barreira.
Em 28 de agosto do ano passado, após a
Convenção Nacional Republicana, Trump
declarou que havia construído "300 milhas
(480 quilômetros) do muro fronteiriço".
Mas, não era verdade: fez obras em 507
quilômetros, mas a maior parte (451 qui-
lômetros) foram substituições ou reparos
de estruturas já existentes. Dos 56 km res-
tantes, 43 correspondem a novas cercas se-
cundárias. Ou seja, havia apenas 13
quilômetros de muro incorporados.

No entanto, apesar da extensão do muro
existente, da vigilância oficial no lado
norte, e da repressão, essa fronteira conti-
nua sendo como uma peneira, com túneis
clandestinos que a atravessam e com tre-
chos não controlados, onde a natureza devia
cumprir seu papel de barreira. Essas passa-
gens são usadas tanto pelos cartéis do nar-
cotráfico quanto pelos “coiotes”, uma
atividade sinistra que contrabandeia clan-
destinamente migrantes (muitas vezes em
condições sub-humanas) em troca do paga-
mento pelo “serviço”.
Alguns grupos das milícias de extrema
direita que operam no país dedicam-se a
“caçar” imigrantes clandestinos que não
foram detectados pela Patrulha de Frontei-
ras. Outros vão ainda mais longe e plane-
jam ataques até mesmo contra aqueles que
obtiveram asilo. Um artigo de 2017 relata:
“Em outubro foi descoberto um complô de
uma milícia no Kansas para explodir um
prédio que abrigava imigrantes soma-
lis”[24]. Em 2019, na cidade de El Paso
(Texas), um jovem branco de 21 anos atirou
em pessoas em um importante Centro Co-
mercial, matando 20 delas e ferindo outras
26, quase todas latinas. Antes dessa ação, o
assassino tinha escrito um manifesto (que
não foi tornado público), e, ao ser preso, foi
processado por “crime de ódio”[25]. Esse fe-
nômeno não começou com Trump, mas foi
exacerbado em seu governo.
73
países colonizados. Algo como terceirizar
o serviço.
O primeiro a acompanhá-lo neste ca-
minho, e o mais importante para essa polí-
tica, foi o supostamente progressista
presidente do México, Andrés Manuel
López Obrador (AMLO). No início de
2019, ele já tinha aceitado a renegociação
do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da
América do Norte, entre EUA, Canadá e
México), aceitando condições ainda piores
do que as já impostas pelo tratado origi-
nal[26].
Poucos meses depois, Trump ameaçou
AMLO de aumentar os impostos de impor-
tação dos produtos mexicanos se o governo
mexicano não começasse a atuar como
muro e polícia do lado sul da fronteira entre
os dois países, para controlar o fluxo migra-
tório. É claro que AMLO obedeceu e seu
governo passou a cumprir esse papel no
México[27].

O acordo com López Obrador

Com um muro que não aumentava e que
cumpria apenas parcialmente sua função,
Trump procurou outras formas para tentar
resolver a questão da fronteira sul, apelando
ao servilismo dos governos burgueses dos

[24]
Quem são os 165 grupos paramilitares que atuam nos Estados Unidos
[25]
Tiroteio em El Paso, no Texas, deixa 20 mortos e 26 feridos em centro comercial
[26]
Sobre este assunto, veja a parte sobre o México de: Latinoamérica: el avance del dominio imperialista (Parte 2)
[27]
Trump chantajea y López Obrador obedece
 74
Porém, essa medida não afetava apenas o
povo mexicano, mas também os migrantes
provenientes de outros países (incluindo da
África e da Ásia), para os quais o território
mexicano era a porta de entrada nos EUA.
O México devia funcionar como dique de
contenção para que o problema não che-
gasse à fronteira. AMLO deixou de lado sua
promessa eleitoral de uma política de imi-
gração humanitária e passou a desempenhar
o papel de guarda de fronteira dos EUA[28].
Isso se expressou no “Programa Permanecer
no México”, que exigia que os migrantes
não mexicanos que solicitavam asilo espe-
rassem no México até a data de sua audiên- O governo guatemalteco exerce violência contra os
cia nos Estados Unidos. Isso provocou, hondurenhos que tentam entrar no México.
entre outras coisas, a instalação de acampa-
mentos, em condições nem sempre ideais, Em seguida, enumera uma série de me-
no lado mexicano da fronteira, inclusive didas que fundamentam esta avaliação,
aqueles em que a primeira caravana de hon- como a nomeação da imigrante cubana Es-
durenhos permaneceu. ther Olavarría como presidenta do Con-
selho de Políticas Nacionais de Imigração
Para as caravanas posteriores provenien-
da Casa Branca. Rapidamente, ele também
tes de Honduras, o dique de contenção es-
anulou o “veto aos muçulmanos” ditado por
tava localizado ainda mais ao sul e com
Trump, prometeu resolver a questão da uni-
métodos mais violentos: foi o governo gua-
ficação familiar dos 600 filhos de imigran-
temalteco (este sim, abertamente reconhe-
tes separados de seus pais deportados (ação
cido como de direita) que as impediu de
na qual se espera que a esposa de Biden
entrar no México e as reprimiu duramente
participe) e anulou a continuidade das ins-
em seu lado da fronteira[29].
crições no Programa Permanecer no Mé-
xico. Neste último tema, no entanto, a
O que realmente muda com Biden? política proposta será essencialmente a
mesma de Trump: “Biden procuraria pro-
Dissemos que a imprensa transmite a ideia
teger os migrantes que se encontram perto
de que o novo governo deu uma guinada
de suas casas nos próximos decretos, atra-
completa na política de Trump em relação
vés de um sistema de asilo nos países vizin-
aos imigrantes. Por exemplo, a edição em
hos”[31].
espanhol da CNN afirma: “Uma das pri-
meiras políticas de imigração do presidente A mudança mais significativa, até agora,
dos Estados Unidos, Joe Biden, é conseguir seria o cumprimento de sua promessa elei-
uma maior abertura para os imigrantes e, toral de aumentar a cota de admissão de 15
de modo geral, de boas-vindas aos estran- mil refugiados imposta por Trump (legal-
geiros”[30]. mente em vigor até setembro próximo) para

[28]
Trump y AMLO ante el «acuerdo» migratorio
[29]
La violenta represión en Guatemala contra la caravana de migrantes que se dirige a EE.UU.
[30]
Política de inmigración de Biden: bienvenida a los extranjeros
[31]
Idem.

125 mil. Mas, mesmo nesse aumento, o
conceito de refugiados é confuso: refere-se
ao número total de vistos com autorização
de residência que serão concedidos ou ape-
nas aos que solicitam a entrada nessa qua-
lidade?
Estas medidas e a ambiguidade entre o
que é declarado e o que é executado gera-
ram confusão nos dois lados da fronteira.
Do lado norte-americano, algumas mães
centro-americanas com seus filhos foram li-
bertadas dos centros de detenção, do lado
mexicano, milhares continuam esperando
em abrigos e campos em Matamoros e ou-
tras cidades mexicanas[32].
Ao mesmo tempo, Biden enviou ao Con-
gresso o Projeto de Lei de Cidadania dos
Estados Unidos: “A proposta inclui um ca-
minho de oito anos para que a maioria dos
11 milhões de imigrantes que vivem ilegal-
mente nos EUA obtenha a cidadania, re-
Xavier Becerra, de origem colombiana, será o responsável
pelas relações com a América Latina no governo Biden.
[32]
Biden modifica las políticas migratorias de Trump y la confusión reina en la frontera
[33]
Projeto de Biden para dar cidadania a 11 milhões de imigrantes chega ao Congresso (em português no original, tradução
nossa).
75
força os sistemas de refúgio e asilo, e apela
para que se use tecnologia adicional para
ajudar a proteger a fronteira Sul…”[33].
Este projeto repete essencialmente o
apresentado por Obama em 2014, que
Trump engavetou. O caminho para a obten-
ção da cidadania é longo e trabalhoso, cheio
de trâmites e etapas burocráticas. Por outro
lado, não está nítido se será mais amplo do
que aquele em que foi enquadrado apenas
a metade dos sem documentos, enquanto
neste, pelo menos na sua apresentação pú-
blica, fala da “maioria”. Mas, o que signi-
fica “maioria”? Quem será excluído e por
quê? Ao mesmo tempo, o governo já anun-
ciou que “está aberto a dividir o pacote em
partes”, para ganhar o apoio dos legislado-
res republicanos e que, enquanto isso, avan-
çará com “medidas menores”. Por outro
lado, é muito possível que o custo do início
do trâmite seja muito mais caro do que com
Obama: fala-se de uma multa de 10 mil dó-
lares (quase o mesmo que um coiote cobra
para trazer alguém ao país).
Por fim, permanece a questão daqueles
que querem entrar, atualmente, para morar
e trabalhar legalmente nos EUA. Por um
lado, como vimos, a promessa de Biden é
de ampliar a cota anual para 125 mil reque-
rentes, um número bem abaixo da demanda
real, o que continuará alimentando tanto o
acúmulo de contingentes de pessoas no Mé-
xico e na Guatemala, bem como o fluxo de
entrada dos imigrantes sem documentos.
Diante dessa realidade, a tecnologia adi-
cional será usada para proteger a fronteira
Sul. Já sabemos o que esse termo representa
na boca do imperialismo. Ou seja, pode
haver uma mudança de forma nos mecanis-
mos, mas a política de detê-los na fronteira
permanecerá a mesma.

Este conceito (mudança de forma e de
mecanismos com continuidade de fundo
em relação à Trump) aplica-se ao conjunto
da política de Biden para os imigrantes.
Trump dizia que “os imigrantes têm que ir
embora” (ou seja, serem expulsos), os de-
mocratas não utilizam essa terminologia,
mas recordemos que Obama foi o “depor-
tador-chefe”.
Sobre essa questão, talvez haja alguma
mudança de Biden em relação a Obama.
Mas, devido à situação política e não por
filosofia humanitária.
As comunidades imigrantes já devem
estar se aproximando aos cem milhões de
habitantes. Só as comunidades latinas con-
tabilizam cerca de sessenta milhões. Como
vimos, a maioria dos que obtiveram a ci-
dadania apoiaram Biden contra Trump. Ao
mesmo tempo, são solidários com seus fa-
miliares e compatriotas ameaçados e, mui-
tas vezes, participam das lutas contra a
deportação e nas rebeliões antirracistas dos
últimos anos.
Além disso, há um aumento do número
de legisladores de origem latina (em sua
grande maioria nas chapas democratas),
muitos dos quais localizados na ala es-
querda desse partido, como Alexandria
Ocasio-Cortez, de origem porto-riquenha
que, com 29 anos, tornou-se a mulher
mais jovem a entrar na Câmara de Repre-
sentantes, e reivindica-se socialista.
Biden não tem, portanto, condições po-
líticas de praticar uma deportação em
massa de imigrantes, como fez Obama,
sem o risco de enfrentar fortes mobiliza-
ções e rebeliões contra ele e, em menor es-
cala, de sofrer rupturas significativas da
ala esquerda de seu partido e de sua base
eleitoral.
76
Algumas propostas
Dissemos que o capitalismo imperialista é
o responsável pela realidade que os trabal-
hadores imigrantes e suas famílias vivem,
porque é ele que gera a pobreza e a miséria
que obriga os povos dos países dominados
a migrar, e porque os utiliza como exército
industrial de reserva para manter seus mer-
cados nacionais de trabalho em equilíbrio.
Mas, faz isso com leis discriminatórias e
repressoras, cuja aplicação é mais dura
quando necessita reduzir esse fluxo. Uti-
liza-as, ao mesmo tempo, para que esse
setor de trabalhadores comporte-se bem
diante da ameaça permanente de deporta-
ção.
Lutar contra esta realidade é uma tarefa
que deve ser exercida por toda a classe tra-
balhadora do país de imigração, porque a
burguesia a utiliza em um duplo sentido.
Em tempos de boom da economia, para re-
duzir os salários e as condições de trabalho.
Em momentos de declínio, para dividir a
classe acusando os imigrantes de “roubar o
trabalho”, tal como fez Trump de maneira
descarada, e se esquivando de sua respon-
sabilidade na crise. Como disse Marx, já no
século XIX, “um povo que oprime outro
não pode ser livre”. Por isso, nenhum
homem ou mulher pode ser considerado
ilegal por sua origem geográfica, raça,
etnia ou crenças religiosas.

Nesse sentido, um primeiro nível de rei-
vindicações de luta nos Estados Unidos deve
responder aos graves problemas atuais. A
primeira é a legalização imediata de todos os
imigrantes que já residem no país, com ple-
nos direitos para residir, trabalhar, estudar e
receber atendimento público de saúde. Como
os imigrantes na Europa exigiam: documen-
tos para todos, como um primeiro passo, de-
pois o direito pleno à cidadania. Relacionado
com isso, de modo específico, está o direito
à reunificação das famílias que foram sepa-
radas pelas deportações.
A segunda reivindicação é o fim imediato
das batidas policiais em todo o país, a revo-
gação da legislação repressora e a dissolução
dos órgãos que a aplicam, como a ICE e a
“migra”. Diante dos ataques de grupos fas-
cistas e racistas, reivindicamos o direito de
autodefesa das comunidades agredidas, um
direito que acreditamos também ser válido
frente à violência policial. Lutar por estas
reivindicações é imprescindível e imediato.
Um segundo nível refere-se aos muitos
que, pelas necessidades já descritas, desejam
emigrar para os EUA. As fronteiras nacio-
77
nais, as leis discriminatórias contra a livre
emigração e sua repressão são mecanismos
das burguesias nacionais para manter uma
“reserva de exploração”.
Todos os trabalhadores e suas famílias
devem ter o direito de escolher o país onde
residir e trabalhar, porque a burguesia já
tem esse direito, nos atos e nas leis. Exigi-
mos uma legislação de imigração em que
emigrar e imigrar em qualquer país seja so-
mente um registro administrativo.
Mas, esse segundo nível nos leva a um
problema muito mais profundo: a necessi-
dade de lutar contra o capitalismo imperia-
lista como um todo, porque é ele que cria
as condições atuais, tanto a necessidade de
emigrar como as leis que reprimem os mi-
grantes. Só derrotando o capitalismo impe-
rialista, através de uma revolução que inicie
a construção de uma sociedade mais justa e
humana (o socialismo), poderemos tornar
realidade o objetivo proposto no hino A In-
ternacional: “A Terra será o paraíso de
toda a Humanidade”.
Tradução: Rosangela Botelho
 78

Assegurar e expandir os direitos

reprodutivos da mulher nos EUA
Nos Estados Unidos, o direito ao aborto e os direitos reprodutivos das mulheres
estão em grande parte em perigo; eles vêm sendo progressivamente corroídos
nos últimos 30 anos. Em muitos Estados, os direitos reprodutivos das mulheres
já foram vastamente restringidos pelo direito religioso e pelas assembleias
legislativas.

Florence Oppen – Workers’ Voice

A
gora, a Suprema Corte tem uma
série de casos que estão surgindo,
promovidos por grupos religiosos
conservadores e pelo Partido Republicano,
que poderiam minar ou até mesmo derrubar
o veredicto Roe vs. Wade, a decisão da Su-
prema Corte de 1973 que garante o acesso
das mulheres ao aborto – pois a Suprema
Corte tem hoje uma maioria conservadora.
A administração Biden prometeu assegu-
rar os direitos das mulheres que hoje estão
sob ataque. Entretanto, se o período neoli-
beral nos ensinou algo, é que os direitos so-
ciais e democráticos que pensávamos terem
sido conquistados e “assegurados” através
da luta em massa podem, na ausência de
luta, ser facilmente esvaziados ou retirados.
Não houve nenhum progresso duradouro e
real na garantia e expansão do acesso aos
direitos reprodutivos nos EUA, incluindo o
direito ao aborto, sem a ação em massa in-
dependente das mulheres, e em particular
das mulheres da classe trabalhadora, das
negras e imigrantes. Como aprendemos nos
Estados Unidos nos anos 70 e novamente
na Argentina em 2020, a ação independente
das massas é a única maneira de conquistar
direitos, de ter voz sobre como as leis são
elaboradas e de garantir que elas
não permaneçam palavras ocas.
A ação independente das massas
inclui a continuação da mobili-
zação após a conquista de direi-
tos, de modo que recursos
materiais sejam fornecidos para
garantir nossos direitos, e que o
acesso seja irrestrito.

Fachada da Suprema Corte dos

Estados Unidos em Washington.
Fotografia: Al Drago / The New York Times.

Os direitos reprodutivos
das mulheres nos EUA hoje
O maior perigo para os direitos das mulhe-
res ao aborto hoje é a estratégia legal que o
direito evangélico cristão e o Partido Repu-
blicano conceberam. Desde 1973, mais de
1900 restrições ao aborto já foram aprova-
das. Cerca de um terço delas já foram apro-
vadas desde 2011. Isto em si não é uma
inovação: as proibições estaduais de aborto
ou as leis TRAP (Restrições direcionadas
aos prestadores de serviços de aborto) au-
mentaram em metade do país desde 2001.
O veredicto Roe vs. Wade em 1973 foi
um enorme passo à frente. Foi o resultado
de uma mobilização em massa, embora
tenha sido expressa indiretamente através
de uma decisão judicial e não através de
uma lei no Congresso, como seria na maio-
ria dos países democráticos. Isto significa,
concretamente, que nenhum dos dois parti-
dos teve que realmente fazer campanha ou
mesmo se comprometer a defender o aborto
e os direitos reprodutivos, deixando este as-
sunto chave nas mãos de uma das institui-
ções menos democráticas do país, o
judiciário. Isto emoldurou o destino do di-
reito ao aborto e moldou suas limitações, à
medida que a liderança liberal do movi-
mento de mulheres se concentrou quase que
exclusivamente na busca de nomeações
amigáveis para a Suprema Corte e da elei-
ção de membros do Congresso,
em oposição à organização de um
movimento independente nas
ruas.
De fato, vinte anos depois,
quando o movimento de massas
havia recuado, uma segunda de-
cisão chave do tribunal superior,
Planejamento familiar vs. Casey,
em 1992, argumentou que os es-
tados poderiam impor restrições
ao aborto, desde que não crias-
sem uma “carga indevida” sobre
o direito da mulher ao aborto, tor-
nando a questão da “carga inde-
79
vida” um tema de interpretação. Esta nova
decisão enfraqueceu o significado prático da
decisão Roe vs. Wade e abriu o caminho para
mais de mil processos de proibições e restri-
ções a nível estadual desde então.
Desde o final dos anos 90, o direito ao
aborto no papel corresponde a realidades ma-
teriais muito diferentes – e para muitas mul-
heres, isto não tem correspondido a nenhuma
realidade. A decisão de 1992 iniciou uma
longa e lenta guerra de atrito com o objetivo
de colocar múltiplos obstáculos ao acesso ao
aborto. Desde então:
• 45 Estados permitem que provedores in-
dividuais de assistência médica se recu-
sem a participar de um aborto;
• 42 Estados permitem que instituições se
recusem a realizar abortos;
• 18 Estados declaram que as mulheres
devem ser aconselhadas antes de um
aborto;
• 27 Estados exigem que uma mulher que
busca um aborto espere um período de
tempo específico, geralmente 24 horas,
entre o momento em que ela recebe o
aconselhamento e a realização do proce-
dimento;
• 14 desses Estados têm leis que efetiva-
mente exigem que a mulher faça duas via-
gens separadas à clínica para conseguir o
procedimento.

Tais restrições levaram ao fechamento de
muitas clínicas de aborto e, a partir de 2014,
90% dos condados dos EUA não possuem
uma clínica de aborto[1]. Enquanto existem
2.300-3.500 centros de apoio à gravidez de
risco, espalhados pelos Estados Unidos,
existem apenas 1.800 clínicas de aborto[2].
Estes desenvolvimentos têm sido bem-
sucedidos na restrição do direito ao aborto:
hoje 53% das mulheres vivem em um mu-
nicípio onde não existe uma clínica de
aborto, fazendo do direito ao aborto uma
mera abstração para a maioria. Isto, entre-
tanto, é apenas a ponta do iceberg de uma
estratégia maior. Segundo o jornal Was-
hington Post, “estão em preparação pelo
menos 20 ações judiciais, em vários está-
gios de revisão judicial, que têm o potencial
de serem decididas de formas que poderiam
mudar significativamente os direitos esta-
belecidos na decisão Roe vs. Wade de
1973”[3].
Como assegurar nossos direitos
reprodutivos?
Muitas mulheres votaram em Biden espe-
rando que ele proteja seus direitos reprodu-
tivos como prometeu fazer – apesar do fato
de Biden ser um católico devoto e ter se
oposto ao aborto durante a maior parte de
sua carreira. Recordemos seu papel no caso
Anita Hill em 1991, quando Hill acusou o
juiz Clarence Thomas de assédio sexual
(assim como Kavanaugh foi acusado), e
Biden, que era então senador, recusou-se a
acreditar nela e a levar a sério essas acusa-
ções: Thomas foi confirmado para a Su-
prema Corte. Recordemos também o forte
apoio de Biden à emenda Hyde, que proíbe
o uso de dinheiro federal para pagar por
abortos através do Medicaid, exceto em
[1]
https://khn.org/news/what-the-end-of-abortions-in-missouri-means-for-neighboring-states/
[2]
https://socialistresurgence.org/2019/11/19/the-ongoing-struggle-for-abortion-rights/
[3]
https://www.washingtonpost.com/health/2019/02/15/least-abortion-cases-are-steps-us-supreme-court-any-one-could-
gut-roe-v-wade/?utm_term=.e080f518610b
80
Anita Hill e Joe Biden, quando em 1991 ele era senador
e não levou a sério as acusações de Hill contra o juiz
Clarence Thomas por assédio sexual.
pouquíssimos casos (incesto e estupro), me-
dida que ele defendeu até 2019, quando ele
decidiu concorrer às eleições presidenciais
de 2020. Na campanha de 2020, ele afir-
mou que “viu a luz” e que havia mudado
sua posição sobre essas coisas e que agora
era um aliado dos direitos reprodutivos das
mulheres.
Para nós, não se trata de acreditar ou não
em Biden: Os marxistas não confiam em
promessas, mas em provas. Olhamos tanto
para seu histórico quanto para o que o Par-
tido Democrata fez mesmo nos últimos
anos em relação aos direitos da mulher:
desmobilização e cooptação. Todos nós nos
lembramos da impressionante, grande e his-
tórica Marcha da Mulher de 20 de janeiro
de 2017 após a eleição de Trump. No en-
tanto, esta marcha não resultou no início de
um movimento independente de mulheres
como o da Argentina, Chile ou Espanha.
Foi muito rapidamente cooptada pelo Par-
tido Democrata e ONGs e corporações alia-
das. Primeiro, eles se certificaram de
manter uma “celebração anual”, em vez de
transformá-la em um movimento; recusa-
ram-se a se mobilizar para o 8 de março

(Dia Internacional da Mulher Trabalha-
dora), como muitos setores de base exi-
giam; e não marcaram mais reuniões para
organizar e discutir estratégias e demandas.
Em segundo lugar, canalizaram todas as
manifestações subsequentes, cada vez me-
nores, para as urnas: em 2018, seu slogan
era “Hoje marchamos, amanhã votamos”!
Seu objetivo era transformar uma luta ur-
gente contra um presidente reacionário e
duas décadas de ataques ao direito ao
aborto em uma cooptação oportunista para
objetivos eleitorais.
A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris.
Foto: Reprodução / CNN (10/11/2020).
O Partido Democrata produziu a ilusão
de que as aspirações da classe trabalhadora,
das mulheres negras e imigrantes, muitas
delas refletidas na Marcha das Mulheres,
serão cumpridas pelo governo Biden sem a
necessidade de continuar e intensificar a
ação em massa. E, de fato, Biden prometeu
propor uma “opção pública à Lei de Cuida-
dos Populares” que cobrirá o acesso a cui-
dados preventivos, contraceptivos e aborto,
para revogar a emenda Hyde e, finalmente,
codificar a decisão Roe vs. Wade através de
uma lei aprovada no Congresso a fim de
parar/anular as leis TRAP. Até agora, ele
não fez nada disso.
[4]
Lei PRO: referente à lei de legalização do aborto na
Argentina, que foi rejeitada pelo senado em uma primeira
votação, na gestão do presidente Macri.
81
Pingue-pongue legislativo
versus luta de classes
O plano de Biden parece ótimo, com a pe-
quena advertência de que já ouvimos tudo
isso antes e isso nunca acontece, muito pa-
recido com a promessa de uma nova lei tra-
balhista de fazer da negociação coletiva a
regra de todos os locais de trabalho e ex-
pandir o poder sindical, ou a promessa de
dar um caminho para a cidadania plena a
todos os imigrantes. Não vai acontecer, por-
que todas essas reformas precisam ser apro-
vadas por ambas as casas, e sempre há
alguns democratas que se aliam aos repu-
blicanos para bloqueá-las. Os democratas
sabem disso.
Então, em primeiro lugar, por que eles
apresentam projetos de lei que não serão
aprovados? Para cortejar e manter sua base
de apoio entre a classe trabalhadora e os
oprimidos, para evitar divisões à esquerda,
à medida que as pessoas percebem que as
prioridades do partido estão com o grande
capital, para poder manter suas credenciais
liberais enquanto transferem a culpa do fra-
casso para os republicanos. Os democratas
não estão dispostos a fazer o que é real-
mente necessário para aprovar e tornar efe-
tivo qualquer um destes direitos: convocar
mobilizações de massas e greves.
Como na Argentina, onde os deputados
peronistas supostamente de esquerda blo-
quearam a lei do direito ao aborto no Se-
nado. Como a Lei PRO[4], sabemos que isto
não será aprovado no Senado. Na Argen-
tina, o Senado teve que ceder à lei por causa
de uma tremenda pressão pública. Dezenas
de milhares de mulheres estavam literal-
mente acampadas fora da casa do Senado
O
s democratas recusam-se
a fazer o que é necessário
para cumprir os direitos
trabalhistas e sindicais.zx
A Manifestação dos Lenços Verdes
das mulheres argentinas após a
aprovação do aborto legal.
durante as muitas horas que duraram o de-
bate e a votação, depois de terem organi-
zado enormes greves no país. Elas
provavelmente teriam invadido o Con-
gresso se a proposta fosse recusada.
Nos Estados Unidos, a menos que faça-
mos uma pressão equivalente, não assegu-
raremos e tornaremos o direito ao aborto
livre para cada mulher, independentemente
de sua renda, raça, nacionalidade ou outros
fatores. Obama esteve no poder por 8 anos
e não fez nada contra a erosão dos direitos
reprodutivos: ele alegou, como muitos ou-
tros, que suas mãos estavam atadas e que
lhe faltava “apoio bipartidário” para fazer
qualquer coisa. Os democratas nos estados
republicanos têm sido cúmplices das leis
TRAP, e o Partido Democrata tolera dentro
de suas fileiras um grupo que se organiza
contra o aborto, os Democratas pela Vida
da América. Esta bancada inclui membros
do Congresso, como Dan Lipinski na Câ-
mara e Joe Donnelly, Joe Manchin e Bob
Casey no Senado. Hoje, a Suprema Corte
tem uma maioria aberta contra o aborto, o
que significa que qualquer nova lei hipoté-
tica aprovada pelo Congresso, poderia ser
revogada pela Suprema Corte ou restrita em
nível estadual.
Em outras palavras, garantir o aborto efe-
tivo, o trabalho, a cidadania e outros direi-
tos, não pode depender da eleição de mais
democratas “progressistas” para o Con-
gresso ou para a Casa Branca, ou da espe-
rança de juízes receptivos da Suprema
Corte: a história dos EUA nos mostra que
todo o regime, e não apenas políticos espe-
cíficos, está profundamente comprometido,
antes de tudo, com o domínio capitalista in-
contestado. É por isso que, como em 1973,
qualquer “vitória” no Judiciário sob Biden
permaneceria novamente um direito formal,
um direito no papel, apenas para a minoria
das mulheres ricas, burguesas e da classe
média-alta. Somente através de uma verda-
deira mobilização de massas, com milhões
de mulheres nas ruas, como na Argentina,
unidas com os sindicatos e outras organiza-
ções de classe, a classe trabalhadora pode
tornar nossos direitos uma realidade mate-
rial: aborto livre e direitos reprodutivos ple-
nos, realizados pela saúde pública.

Os direitos reprodutivos
das mulheres e a luta
pelo socialismo
O capitalismo transformou e se reapropriou
das relações patriarcais prévias a ele e a pró-
pria família em relações de propriedade de
uma classe, e usou a opressão das mulheres
para extrair mais trabalho não-pago (através
do trabalho doméstico não remunerado ou
da diferença salarial de gênero, por exem-
plo) que beneficia a minúscula minoria que
possui todos os meios de produção e a terra.
Nas sociedades burguesas, os corpos das
mulheres tornaram-se mercadorias desvalo-
rizadas: elas podem pertencer a outra pes-
soa, podem ser compradas e vendidas,
podem ser usadas para fazer propaganda,
podem ser alugadas, podem ser espancadas,
estupradas e até mesmo mortas. A luta pelo
aborto livre é também uma luta política
contra este processo de dominação e mer-
cantilização do corpo das mulheres. Não é
a luta para “possuir” nossos corpos como
propriedade privada, é a luta para retirar
nossos corpos e nossas relações sociais
dessas relações de propriedade e de troca
que nos desumanizam.
No entanto, a luta pelos direitos reprodu-
tivos plenos, incluindo o aborto e a saúde
socializada, toca uma questão ainda maior
da economia política capitalista: a reprodu-
ção da força de trabalho – ou seja, a repro-
dução da classe trabalhadora. O capitalismo
precisa de trabalhadores para produzir todos
os tipos de mercadorias e obter lucros, e
transformou a maior parte do trabalho hu-
mano em trabalho assalariado para garantir
A
luta pelos direitos reprodutivos está
ligada à luta pela medicina socializada
e por um sistema de saúde pública
socializado.zx
83
sua exploração de acordo com o sistema ca-
pitalista. No entanto, a vasta quantidade de
trabalho necessária para reproduzir a força
de trabalho só se tornou parcialmente assa-
lariada. Para reproduzir a força de trabalho,
o capitalismo depende da instituição da fa-
mília, dos papéis de gênero e, acima de
tudo, do trabalho não pago de todas as mul-
heres da classe trabalhadora: o trabalho de
reprodução biológica e de reprodução social
utilizado no cuidado de crianças, doentes e
idosos, e do trabalho doméstico como o
abastecimento, a cozinha e a limpeza.
A luta contra o aborto é, na verdade, uma
luta de classes sobre quem controla o poder
reprodutivo da classe trabalhadora: a classe
dominante e o Estado, ou as mulheres da
classe trabalhadora e suas famílias – nossa
classe. O sistema capitalista quer ter ambas
as coisas: quer que as mulheres tenham fil-
hos para reproduzir a força de trabalho (para
isso, controla fortemente os direitos repro-
dutivos), mas não quer pagar integralmente
o custo da reprodução social da força de tra-
balho!
A busca do capitalista por lucro sempre
tem o objetivo de corroer ou negar a previ-
dência social, como licença maternidade
paga, creche gratuita, assistência médica
pública ou outros benefícios sociais que não
existem nos Estados Unidos, enquanto in-
centivam e apoiam a reprodução.

Isto cria uma
contradição na
qual dar à luz é
obrigatório, mas
não é apoiado
pelo estado.[5]
Os socialistas
veem a luta pelo
aborto livre como
uma luta dupla: trata-se tanto da afirmação
política das mulheres como sujeitos políticos
independentes e autônomos que podem e
devem decidir por si mesmas se querem ou
não ter um bebê, quanto uma luta da classe
trabalhadora, das famílias da classe trabal-
hadora (e há muitos modelos de família que
nossa classe desenvolveu) que precisam de
cuidados reprodutivos socializados e livres
de exploração. A luta pelos direitos reprodu-
tivos está ligada à luta pela saúde pública e
gratuita e pelas tarefas domésticas socializa-
das. Ela só pode ser resolvida em uma nova
economia que reorganize o trabalho produ-
tivo e reprodutivo, livre de exploração e
opressão, uma economia socialista com de-
mocracia operária e participação e direitos
iguais para homens, mulheres e pessoas não-
binárias.
Não acreditamos que as mulheres da
classe trabalhadora e nossa classe como um
todo possam ganhar este tipo de liberdade,
que é uma liberdade material e política su-
perior, simplesmente contando com o Par-
tido Democrata para aprovar algumas
reformas diluídas. A única maneira de vencer
é levá-la para as ruas, não apenas as mulhe-
res e o movimento LGBT, mas toda a classe
trabalhadora. Os direitos reprodutivos das
mulheres são também os direitos das
familias da classe trabalhadora
à paternidade planejada, à
saúde e à educação. Esta
luta precisa ser as-
sumida por
todas as or-
ganizações
[5]
https://socialistresurgence.org/2019/11/19/the-ongoing-struggle-for-abortion-rights/
84
operárias, comuni-
tárias e grupos de
jovens, e precisa se
articular com ou-
tras lutas existen-
tes, integrando
abertamente as
exigências antirra-
cistas e ecológicas.
As mulheres marcharam em grande nú-
mero nos últimos anos. No ano passado, na
Espanha e na Argentina, elas organizaram
e lideraram duas das maiores greves da his-
tória, unindo trabalhadores assalariados e
não assalariados, trabalhadores de todos os
gêneros, e pressionando os sindicatos para
que trabalhassem por exigências políticas
de igualdade e liberdade. Na Argentina, foi
conquistada uma vitória histórica, embora
a mobilização deva continuar para garantir
sua implementação e defesa. A nova onda
de greve das mulheres e de luta de classes
está nos mostrando o caminho para defen-
der nossos direitos. Agora é hora de seguir
a liderança de nossas irmãs na América La-
tina e na Europa, e ir além das marchas, or-
ganizando greves em massa pelos direitos
das mulheres. Só então teremos o poder de
vencer!
Tradução: Marcos Margarido.
 85

Que mudanças haverá na política

internacional do imperialismo
estadunidense?
Em vários artigos, dissemos que os Partidos Democrata e Republicano são os dois
pilares do regime político burguês dos EUA, expressões políticas de setores distintos
da burguesia imperialista do país. Isto significa que têm alguns enfoques e estilos
diferentes diante de determinados problemas. Mas, estrategicamente, defendem
interesses econômicos, políticos e militares comuns. Na política exterior haverá,
então, uma mudança de estilo e de algumas táticas em relação ao governo de
Donald Trump, mas no quadro de uma grande continuidade de objetivos.

Alejandro Iturbe

A
política exterior de Donald Trump
foi qualificada por vários analistas
políticos como “isolacionista”.
Esta é uma definição equivocada. Os isola-
cionistas formaram uma corrente política da
burguesia estadunidense durante os séculos
XIX e parte do XX. Ela foi contrária às
alianças com outros Estados e à participa-
ção em assuntos internacionais. O centro de
seu interesse eram os assuntos internos do saparecer completamente na Segunda Gue-
país para “buscar a prosperidade e garan- rra Mundial.
tir sua segurança”. Esta visão enfrentava- Embora Trump tenha boicotado os âm-
se com aquelas que vinham da Doutrina bitos e relações que expressavam as alian-
Monroe (século XIX) e do Big Stick (o ças com outros Estados imperialistas (como
Grande Porrete) de Theodore Roosevelt o G7) e outras instituições que estão a ser-
(início do século XX). Entretanto, tinham viço do imperialismo (como o G20 e a
peso no Partido Republicano e conseguiram ONU), sua política externa era profunda-
atrasar a entrada do país na Primeira Guerra mente intervencionista e agressiva. De
Mundial (1914-1918) e, em 1919, na Socie- qualquer forma, a qualificação mais precisa
dade das Nações (antecessora da ONU), seria a de “unilateralismo” como expressão
contra a política do presidente democrata do America First: “Faço o que acho mel-
Woodrow Wilson[1]. Esta corrente foi per- hor, não consulto ninguém, e os outros que
dendo peso nas décadas posteriores, até de- se virem”.

[1]
Aislacionismo de Estados Unidos
[2]
Sobre este tema, ver: La reacción democrática. Del síndrome de Vietnam al síndrome de Irak

Como tudo o que se refere a Trump, foi
verborrágico e fanfarrão. Mas, entre o pro-
metido e desejado e o obtido na realidade,
houve uma grande distância. Principal-
mente porque, para além de sua vontade,
existe a luta de classes em seu país e no
mundo; de maneira especial, a derrota que
o projeto internacional de George Bush so-
freu nas guerras do Iraque e do Afeganistão,
o que se denominou como “síndrome do
Iraque”. Ou seja, o temor de se envolver em
guerras de longo prazo com resultados ne-
gativos[2].
Por isso, várias vezes “foi e voltou” com
suas intenções agressivas: ameaçou bom-
bardear a Coréia do Norte mas não o fez e
optou (resmungando) pelo “caminho chi-
nês” da negociação; ameaçou invadir a Ve-
nezuela para derrotar Maduro e instalar o
governo fantoche de Guaidó, mas acabou
em um fracasso patético; nas regiões quen-
tes do Oriente Médio (especialmente na
Síria) teve que atuar transversalmente atra-
vés de alianças com forças regionais, enviar
assessores e armas, e limitar-se a algum ata-
que relâmpago…
No terreno econômico e comercial foi
um pouco melhor: conseguiu renegociar o
NAFTA em condições piores para o Mé-
xico do que no tratado anterior[3] e “demar-
cou o campo” para a China na “guerra
comercial-tecnológica” entre ambos paí-
ses[4]. Aprofundaremos estas questões neste
mesmo artigo.
De conjunto, o estilo de Trump na polí-
tica externa do imperialismo norte-ameri-
cano contribuiu para deteriorar as ações
conjuntas dos países imperialistas e enfra-
[3]
Sobre este tema, ver: EEUU-México: Mayor explotación y saqueo colonial
[4]
Sobre este tema, ver: Armas de Guerra
[5]
Donald Trump se retira del Acuerdo de París
[6]
União Europeia celebra “novo amanhecer” para os EUA antes da posse de Biden
86
quecer as áreas em que se chegou a um con-
senso. Ao mesmo tempo, contribuiu para ra-
rear a dinâmica do comércio internacional,
já rarefeita pela própria situação econômica
do capitalismo imperialista.
Finalmente, diante da questão ambiental,
o efeito estufa e as mudanças climáticas (ou
seja, a destruição da natureza pelo capita-
lismo imperialista), Trump retirou seu país
do Acordo de Paris, criado em 2015, onde
os governos burgueses fazem de conta que
fazem alguma coisa frente a estes graves
problemas[5].
Bons modos
e algumas mudanças reais
Por isso, acreditamos que a primeira coisa
que Biden imporá será uma mudança de es-
tilo e, como resultado, uma mudança de
clima nas relações com as outras potências
imperialistas e dentro das esferas respecti-
vas (como o G7, o G20 e a ONU). Deixará
de lado as ameaças verborrágicas e os maus
modos de Trump para retomar os consensos
com as potências europeias e a ação diplo-
mática, tal como era na época de Barack
Obama. Por isso, a União Europeia festejou
a vitória eleitoral de Joe Biden e dos Demo-
cratas[6].
 87

U
ma política de "bons
modos" para a defesa
estratégia dos interesses
imperialistas.zx

É neste sentido que ocorreu a aproxima- Mas, as posições de Democratas e Repu-

ção e a sintonia entre o novo presidente e o
papa Francisco[7]. Não se trata de que agora
o imperialismo e as instituições a seu ser-
viço voltarão a ser democráticos e humani-
tários (nunca foram, nem poderão ser). O
recente exemplo do ataque militar relâm-
pago em território sírio está aí para compro-
var[8].
Mas, haverá “bons modos” para a pró-
pria defesa estratégica dos interesses impe-
rialistas. Esse é o sentido do primeiro
discurso de Biden sobre política exterior, no
qual expressou: “Os Estados Unidos estão
de volta” e declarou que “a diplomacia está
de volta ao centro da política externa esta-
dunidense… Vamos reconstruir nossas
alianças”[9].
Sim, há duas mudanças pontuais de certa
importância. A primeira é a volta dos EUA
ao Acordo de Paris, muito celebrada pela
ONU[10] e a segunda, o chamado a uma Cú-
pula de Países pela questão climática para
abril próximo[11]. Dissemos que os governos
de muitos países fazem de conta que fazem
alguma coisa frente a estes graves proble-
mas.
blicanos, neste ponto, são diferentes, porque
expressam diferentes interesses burgueses.
Os Republicanos refletem a velha indústria
muito mais poluente e, portanto, nem sequer
querem simular que fazem alguma coisa; os
Democratas estão muito mais ligados aos
ramos burgueses das novas tecnologias,
menos poluentes. Estes setores apresentam-
se hipocritamente como “burguesia verde”
e, por isso, podem aparecer publicamente
como preocupados e ativos frente a esta si-
tuação, como é o caso de Bill Gates ou Elon
Musk.
A volta da OTAN
Outra mudança pontual que pode ser signi-
ficativa é o das relações com a Rússia e o
regime de Vladimir Putin. Trump tinha es-
tabelecido uma espécie de acordo tácito com
Putin, pelo qual lhe deixava certas áreas in-
ternacionais de influência nas quais ele seria
o responsável por impor uma ordem contra-
rrevolucionária. Algo que se expressou, por
exemplo, na divisão objetiva da Síria em
duas áreas de influência política e militar[12].

[7]
Sobre este tema, ver: Joe Biden y el Papa Francisco: ¿el nuevo equipo del imperialismo?
[8]
Sobre este tema, ver: El primer crimen internacional de Joe Biden
[9]
Biden dice que 'EE.UU. está de regreso' y anuncia cambios en política exterior
[10]
La ONU celebra el regreso de los Estados Unidos al Acuerdo de París y que no abandone la OMS
[11]
Joe Biden convoca una cumbre de líderes sobre cambio climático el 22 de abril
[12]
Sobre este tema, ver: ¡Rechazamos el bombardeo imperialista en Siria! e Diez años de revoluciones en el mundo árabe
 88
Esta política de Trump debilitava o da China, mas são igualmente reais”[13].
papel histórico da OTAN (Organização do Mais recentemente, qualificou Putin de “as-
Tratado do Atlântico Norte), aliança militar sassino”. A expressão mais importante
formada em 1949 com o objetivo de frear deste giro foi um grande aumento da tensão
a expansão de áreas de influência militar na Ucrânia, onde se concentra esta disputa.
da então União Soviética (URSS). Tam-
bém debilitava, nesse sentido, o papel das
potências europeias como sócias militares,
algo que mesmo Bush manteve nas inva-
sões do Iraque e Afeganistão.
A URSS desapareceu e, na Rússia, o ca-
pitalismo foi restaurado há décadas. Já não
existe a luta contra o comunismo hasteada
como bandeira do imperialismo no pós-Se-
gunda Guerra. No contexto de uma deca-
dência geral da Rússia, existe o fato de que
Putin, a burguesia russa e seu regime pro-
curam manter áreas de influência. É nesse
contexto que Biden volta a apresentá-los
como “inimigos” e recupera a OTAN. O
objetivo desta política é disputar com Putin
para reduzir e limitar ao máximo suas áreas
de influência.
A “guerra” com a China
Analisemos agora o que pode acontecer
Em uma cúpula realizada em Munique
com a “guerra comercial-tecnológica” entre
(Alemanha), em fevereiro passado, com a
ambos os países, iniciada pelo governo de
chanceler alemã Angela Merkel, o presi-
Trump há dois anos. Essa guerra começou
dente francês Emmanuel Macron e o pri-
com dois blocos de medidas: o primeiro foi
meiro-ministro britânico Boris Johnson,
o aumento das taxas de importação aos pro-
declarou: “A Aliança Transatlântica está
dutos chineses que entravam nos EUA; o
de volta”. Especificamente sobre a Rússia,
segundo, o bloqueio do uso do sistema ope-
disse que “enfrentar a temeridade de Mos-
racional Android pelos celulares fabricados
cou e sua pirataria de redes informáticas
pela empresa chinesa Huawei em suas ven-
nos EUA, Europa e em todo o mundo vol-
das nos mercados ocidentais[14]. Para enten-
tou a ser crucial para proteger os desafios
coletivos de segurança”. Referiu-se à Rús- der ambas as medidas e o significado geral
sia como um “adversário que ameaça a desta guerra, é preciso ver alguns elementos
segurança de seu povo e que quer debilitar históricos de modo resumido.
o projeto europeu”. Uma conclusão disso: A China foi um Estado operário, com
“É por isso que os Estados Unidos devem uma economia de transição ao socialismo
defender a Ucrânia e opor-se à pirataria entre 1949 e fins da década de 1970,
e outras ferramentas russas (…) Os desa- quando o regime chinês e o governo de
fios com a Rússia podem ser diferentes dos Deng Xiaoping restauraram o capitalismo

[13]
Biden oficializa en la Conferencia de Múnich el regreso de EE. UU. al multilateralismo
[14]
Real motivação? Trump explica bloqueio da Huawei e se contradiz em entrevista
no país. Com esta restauração, especial-
mente a partir da derrota das grandes mo-
bilizações na Praça Tiananmen (1989),
chegou à China um gigantesco volume de
investimentos imperialistas, com forte
peso direto e indireto dos EUA. A China
transformou-se na “fábrica do mundo”, em
uma nova divisão internacional do tra-
balho, como provedora de produtos indus-
triais, enquanto diminuía o peso da
produção industrial no PIB dos EUA e em
outros países imperialistas[15].
A balança comercial entre ambos os paí-
ses era amplamente favorável à China,
mas isto era compensado pelo fato de que
uma parte importante deste saldo voltava
aos EUA via compra de títulos do Tesouro
pelo Estado chinês. Ao mesmo tempo, se-
tores centrais da burguesia norte-ameri-
cana obtinham a parte do leão da
mais-valia extraída do proletariado chinês,
através do controle das cadeias internacio-
nais de comercialização (como a Walmart)
ou do controle da tecnologia utilizada nos
produtos (Apple)[16].
[15]
Sobre este tema e outros deste subtítulo, recomendamos ler: Certezas e interrogantes que plantea la crisis económica en
China
[16]
Idem.
[17]
Huawei supera Apple em venda de celulares; Samsung lidera ranking
Por outro lado, muitos setores industriais
menores eram prejudicados e perdiam cada
vez mais peso como fornecedores, pela im-
possibilidade de competir com os custos chi-
neses. Mas, nesse ponto começa a ocorrer
uma mudança. Setores burgueses chineses
começaram a competir diretamente nos mer-
cados mundiais, em especial em áreas tão di-
nâmicas como a dos celulares. Foi o caso da
Huawei, que se transformou na segunda
vendedora mundial no início de 2020, supe-
rando a Apple (a primeira era a Samsung co-
reana). Em quarto e quinto lugares estavam
outras duas empresas chinesas: Xiaomi e
Oppo[17].
Mas, o problema era ainda mais grave,
para o imperialismo estadunidense, do que a
perda de espaço nos mercados atuais. A Hua-
wei informava que lançaria celulares com
chip 5G (um elemento que se diz que revo-
lucionará o campo dos celulares e computa-
dores) baseado em um processador próprio.
Ou seja, ameaçava os espaços nos mercados
futuros com tecnologia autônoma. Isto foi
considerado inaceitável pelo imperialismo[18].

Foi aí que Trump lançou sua guerra co-
mercial-tecnológica com as medidas a que
já nos referimos. A primeira, o aumento de
impostos de importação, permitia a Trump
aparecer cumprindo algumas premissas do
America First: a volta de indústrias aos
EUA, ansiada pelos setores burgueses in-
dustriais menores e por setores importantes
da velha classe operária branca. A China, ao
mesmo tempo, respondia com taxas de im-
portação a produtos estadunidenses, como
a soja. Mas, no caso de Trump, tratava-se,
na realidade, de “fogo de apoio” à batalha
central: bloquear a aspiração chinesa de ter
autonomia tecnológica na questão do 5G.
Biden será ainda mais duro
que Trump
Trump iniciou a guerra comercial-tecnoló-
gica com a China e, em seu transcurso,
eram realizadas reuniões bilaterais que fa-
O presidente chinês Xi Jinping.
Fotografia: AP.
O
imperialismo norte-
americano tenta
bloquear a aspiração
chinesa de ter autonomia
na tecnologia 5G.zx
[18]
Ver nota [4].
[19]
Acuerdo EE.UU.-China: quién es el ganador de la guerra comercial entre
las dos mayores economías del mundo
[20]
Biden põe fim ao “America First” de Trump e manda recados à China e à Rússia
90
ziam acordos parciais sobre as taxas, em-
bora mantendo o enfrentamento princi-
pal[19].
Como o governo de Biden atuará neste
ponto crucial? Todos os analistas políticos
e econômicos concordam que haverá uma
continuidade da política de Trump quanto
ao problema de fundo. Inclusive, que Biden
será ainda mais duro. É lógico, já que,
como vimos nesta série, o Partido Demo-
crata está muito ligado aos setores burgue-
ses que dominam as novas tecnologias e,
por isso, querem manter esse controle e os
grandes lucros que derivam disso. Vejamos
as declarações de Biden:
“Vamos confrontar os abusos econômicos da
China, enfrentar seu curso de ação agressiva
para repelir seu ataque aos direitos humanos,
à propriedade intelectual e à governabilidade
global. […]. Se o comércio internacional e as
regras de propriedade intelectual fossem jus-
tas, não haveria país na Terra, nem a China ou
qualquer outro, que poderia comparar-se a
nós”[20].
Nessa perspectiva de maior enfrenta-
mento, começa a articular as alianças ne-
cessárias. Não só com os tradicionais
aliados europeus, como já vimos, mas na
região do Pacífico Oriental e do Oceano Ín-
dico, áreas de muita influência chinesa.

“O presidente dos Estados Unidos, Joe
Biden, irá encontrar-se virtualmente com
os primeiros-ministros da Austrália, Índia
e Japão, promovendo uma aliança emer-
gente entre os quatro países, frequente-
mente tida como um bastião contra a
China”[21]. Este espaço geopolítico do Pa-
cífico asiático e sua extensão ao Índico tem
muita importância na disputa com a China,
porque representam mercados muito rele-
vantes.
O caso da Índia é muito interessante:
como a China, é um dos países de maior de-
senvolvimento capitalista nas últimas déca-
das, com um caráter muito dependente do
imperialismo. Por exemplo, ali está umas
das plantas mais importantes do mundo do
conglomerado farmacêutico inglês Astraze-
neca, produtor de vacinas contra a COVID-
19 exportadas para todo o mundo.
Por isso, a Índia está sendo utilizada no
que podemos chamar de “guerra da diplo-
macia das vacinas”. O regime chinês utiliza
sua capacidade de produção de vacinas para
vendê-las a muitos países por um preço
mais acessível que as produzidas no Oci-
dente e, inclusive, para doar certas quanti-
dades a países sem condições de
comprá-las, para manter ou ampliar sua in-
fluência política e comercial[22]. Nessa re-
gião, o imperialismo tenta contra-atacar
[21]
Biden se reunirá com líderes
mundiais por aliança contra China
[22]
La diplomacia de las vacunas
impulsa a China
[23]
Índia envia 1 milhão de vacinas
contra Covid de graça ao Nepal
91
através da Índia, cujo governo, ao mesmo
tempo em que não garante um plano sério
de vacinação em seu próprio país, acaba de
doar um milhão de doses ao Nepal, um país
vizinho da Índia, mas onde a China tem
uma grande influência[23].
Poderá esta guerra comercial-tecnológica
passar diretamente ao terreno militar? É
uma possibilidade que, olhando para a his-
tória, não pode ser descartada. Mas, parece
que, nas condições mundiais atuais, é quase
impossível de modo imediato ou próximo.
O imperialismo norte-americano nem se-
quer pode dar o passo de bombardear a Co-
reia do Norte, não por falta de capacidade
militar, mas por suas consequências. Abrirá
uma guerra contra um país que, embora
com menor capacidade militar que o impe-
rialismo, é uma potência militar com o po-
derio de produzir bombas atômicas?
Tampouco o regime chinês iniciará uma
guerra. Como orientação, ele aposta em seu
crescimento produtivo e tecnológico e na
decadência do imperialismo norte-ameri-
cano, para desgastá-lo no curso do tempo,
enquanto aumenta suas áreas de influência.
Além disso, este enfrentamento é um dos
fatores centrais da situação mundial e, se-
guramente, irá se endurecer. Não é por
acaso que o velho pensador político impe-
rialista Henry Kissinger (um dos arquitetos

da política que levou à restauração capita-
lista da China na década de 1970) tenha
afirmado, em novembro passado: “Estamos
no início de uma guerra fria entre a China
e os Estados Unidos”, em alusão à situação
existente entre os EUA e a URSS no pós-
Segunda Guerra[24].
América Latina
Nesta parte do continente americano, con-
siderado pelo imperialismo do norte como
seu quintal, a política de Trump teve três
eixos diferenciados. O primeiro foi a rela-
ção com o México – país com o qual con-
seguiu a renegociação do NAFTA durante
o governo de Peña Nieto, do PRI, e ao qual
obrigou a desempenhar o papel de controle
e freio da imigração ao sul da fronteira
entre ambos os países –, com o governo
atual de Andrés Manuel López Obrador
(AMLO), questão que analisamos no artigo
anterior desta série. Baseado em uma hie-
rarquia chefe/subordinado, Trump estabe-
leceu uma boa relação com AMLO.
[24]
La gran duda China: Trump, mal; Biden ¿peor?
[25]
Qué puede esperar México de la presidencia de Biden (tras la sorprendente buena relación de AMLO con Trump)
92
Em ambas as questões, o governo de
Biden continuará o essencial da política de
Trump.
É possível que na questão dos novos imi-
grantes seja menos vociferante e mais amá-
vel nas formas do que Trump; por exemplo,
deu ordem de parar a construção da exten-
são do muro fronteiriço.
Mas, a política básica continuará sendo a
mesma: que o México atue como um “dique
de contenção” da imigração com uma exi-
gência maior nesse papel.
Um analista mexicano considerava:
“É provável, por exemplo, que Biden
exija mais do México em matéria de segu-
rança. A política de Trump era deixar rela-
tiva liberdade ao país vizinho a esse
respeito, porque ele construiria o muro e
assim solucionaria o problema. Mas Biden
não o construirá, porque vai querer mais
segurança deste lado e isso afetará o nar-
cotráfico, a migração…”. A conclusão é
que AMLO “já vê tensões e possíveis con-
flitos se aproximarem…”[25].

Cuba e Venezuela
A segunda orientação foi a apresentação de
um “eixo do mal” latino-americano (os go-
vernos de Cuba, Nicarágua e Venezuela), si-
milar ao que Bush havia formulado para o
Oriente Médio há quinze anos, com o obje-
tivo de derrotar esses governos.
Com respeito a Cuba, freou e deu marcha
à ré na política de Obama de retomar rela-
ções diplomáticas e comerciais com Cuba[26].
Por isso, manteve a legislação e as sanções
que provêm do início da década de 1960 (o
chamado bloqueio comercial), apesar de o
capitalismo ter sido restaurado há mais de
duas décadas em Cuba. Com esta política, re-
forçou a aliança com o setor da burguesia de
origem cubana que reside em Miami (os cha-
mados gusanos), que exige a derrubada do
regime castrista.
Biden já anunciou que retomará a política
de Obama, que é a posição de outros setores
burgueses que veem a perda de bons negó-
cios em Cuba, com excelentes condições
oferecidas pelo governo cubano, para pro-
veito de países imperialistas europeus e do
Canadá. Por isso, os Democratas apresenta-
ram ao Congresso um projeto de lei que eli-
mina o bloqueio e que, ao ser aprovado,
retomará as relações comerciais e diplomá-
ticas com a Ilha, mesmo com a manutenção
do regime castrista.
A Nicarágua foi esquecida e atolada em
seus próprios conflitos[27]. Foi na Venezuela,
contra o regime chavista e o governo de Ni-
colás Maduro, que Trump desenvolveu sua
política mais agressiva: apostou em sua de-
rrubada; promoveu e reconheceu o governo
fantasma de Juan Guaidó; tentou quebrar a
soberania territorial venezuelana com opera-
93
ções mediáticas de entrega de alimentos e
medicamentos pela fronteira com a Colôm-
bia (com o apoio do presidente daquele
país, Ivan Duque); bloqueou fundos do país
no exterior e, inclusive, ameaçou usar a
força militar. Entretanto, como dissemos,
fracassou pateticamente em seu objetivo[28].
Sobre o balanço deste fracasso, Biden e
os Democratas mantêm o objetivo estraté-
gico de Trump (o afastamento de Nicolás
Maduro e uma mudança de regime polí-
tico), mas vão procurar implementá-lo com
táticas diferentes e a longo prazo. Segundo
a análise de Gerald Michael Feierstein, ex-
diplomata e alto funcionário do Departa-
mento de Estado durante o governo de
Obama, o objetivo seria impor “uma tran-
sição democrática”, ou seja, uma saída ne-
gociada de Maduro e um acordo para um
calendário eleitoral.
Neste sentido, Biden faria “um uso mais
apropriado das sanções, como um meio
para um fim”. Antecipa que serão “manti-
das sanções a indivíduos por corrupção e
abusos de direitos humanos, mas poderia

[26]
Sobre este tema, recomendamos ler: Sobre la visita de Obama a Cuba
[27]
Sobre este tema, recomendamos ler: Un año de la rebelión contra Ortega: la Alianza quiere pactar con la dictadura
[28]
Sobre este tema, recomendamos ler: ¡Fracasó la operación imperialista de Guaidó-Trump! ¡Fuera la injerencia del imperialismo
en Venezuela! ¡Fuera Maduro! ¡Ni Guaidó ni Maduro!
 94
revisar as sanções econômi-
cas ao país… que só impõem
dor ao povo”[29]. A própria
equipe de Biden explicou o
giro tático através de um fun-
cionário da Casa Branca, em
conversações com a im-
prensa: “Biden continuará
com a pressão até que Ma-
duro sente-se à mesa e tome a
decisão de convocar eleições.
Quando isso acontecer, fala-
remos com a comunidade in-
ternacional para ver quais
sanções poderão ser anula-
das”[30].
Nessa combinação de táticas de pressão – que se apresentava como seu discípulo
e de negociação, o Papa Francisco e suas –, ao qual tratou com uma mescla de in-
mediações podem ajudar… a favor do im- diferença e desprezo. Biden, pelo contrá-
perialismo. rio, elaborou uma política específica para
o Brasil, referente especialmente à região
amazônica. O imperialismo tem uma
Brasil e Argentina velha aspiração de “internacionalizar”
O resto da América Latina ficou, em grande esta região (isto é, tirar a soberania do
medida, fora das preocupações de Trump. Brasil e de outros países) e assim poder
Nem sequer cultivou uma relação especial fazer bons negócios com suas imensas ri-
com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro quezas naturais.
Para isso, usa como escudo um
“discurso verde”: a defesa da natu-
reza ameaçada por setores burgue-
ses de rapina que queimam
grandes regiões para se apropria-
rem dessas terras e dedicá-las ao
agronegócio. Por isso fala de “de-
fesa da biodiversidade” e de
“deter a destruição”. Um discurso
hipócrita para aqueles que estão
destruindo a natureza em seu con-
junto, e que encobre o verdadeiro
objetivo: explorar de modo “sus-
tentável” suas riquezas.

[29]
Del cambio climático a Venezuela: la nueva agenda de EE.UU. en América Latina con Biden como presidente
[30]
Biden promove um complicado giro na política dos Estados Unidos em relação à América Latina
 95

Em sua campanha eleitoral, em um debate América Latina: a manutenção das bases

com Trump, Biden propôs constituir um militares do imperialismo nos países da re-
fundo internacional de 20 bilhões de dólares gião e, certamente, serão retomados os
com este objetivo de punir o governo de exercícios militares conjuntos entre as di-
Bolsonaro se este não o aceitasse[31]. Agora, versas forças armadas quando as condições
mantém essa proposta e vai apresentá-la na da pandemia permitirem[35]. Tudo isto, sob
cúpula climática a que nos referimos e, em o controle do Comando Sul do Pentágono
vez de ameaçar com sanções, convida o go- (sede do ministério da Defesa dos EUA),
verno Bolsonaro a se somar a essa inicia- responsável pelas operações militares na
tiva[32]. América Latina e no Caribe. Agora com um
No cone sul da América Latina, o governo “novo rosto”, já que pela primeira vez es-
argentino de Alberto Fernández e Cristina tará encabeçado por uma mulher: a tenente-
Kirchner, demonstrando claramente que não general Laura Richardson[36].
tem nada do suposto autoatribuído anti-im- Tradução: Lilian Enck.
perialismo, faz esforços patéticos para ser
escolhido como o instrumento privilegiado
do novo governo imperialista dos EUA no
subcontinente. Em uma carta a Biden, ime-
diatamente após sua posse, Alberto Fernán-
dez deseja-lhe “o melhor dos êxitos”,
porque ele representa “uma esperança para
o mundo”, e convida-o a trabalhar em “uma
agenda conjunta”[33]. Inicialmente, não
houve resposta, mas depois foram realizados
contatos nos quais se dá certo espaço conti-
nental ao governo argentino como instru-
mento dos Democratas, algumas concessões
(ajuda do FMI na renegociação da dívida ex-
terna, manutenção no país de indústrias que
se retiraram do Brasil, como a Ford) mas
tudo em um quadro de muita subordinação
por parte da Argentina[34].
No contexto de tudo o que analisamos, al-
gumas coisas permanecerão imutáveis na Laura Richardson, chefe do Comando Sul.

[31]
A proposta de Biden para a Amazônia e por que ela irritou Bolsonaro
[32]
Araújo indica que Bolsonaro pretende participar de cúpula climática de Biden
[33]
Presidente de Argentina escribe carta a Joe Biden y hace llamado a trabajar en una agenda compartida
[34]
Sobre este tema, recomendamos ler: Latinoamérica: el avance del dominio imperialista (Parte 3)
[35]
Reunión de trabajo de la Cancillería con la Embajada de los Estados Unidos
[36]
Joe Biden nomina a la primera mujer para liderar el Comando Sur de EEUU

A política do governo Democrata
para o Oriente Médio
Como já analisamos em artigos anteriores desta série, consideramos
que haverá uma continuidade geral da política aplicada por Trump,
com algumas mudanças de estilo e de táticas.
Alejandro Iturbe
N
a política externa da burguesia im-
perialista dos EUA, o conceito
“Oriente Médio” é utilizado para
definir uma extensa região que inclui o norte
da África e a região ocidental da Ásia. Isto
é, abrange todos os países árabes e aqueles
cuja população é de outras origens étnicas,
mas que, em sua maioria, reivindica-se mu-
çulmana.
Uma consideração importante é que a re-
ligião muçulmana dividiu-se em duas rami-
ficações depois da morte do profeta Maomé
(século VII d. C), devido aos critérios de sua
sucessão. O setor majoritário de sunitas
(cerca de 90%) defendia uma sucessão de
caráter político (critério que foi aplicado),
enquanto os xiitas reivindicavam a linha su-
cessória de Ali (genro de Maomé) e são con-
siderados mais tradicionalistas ou ortodoxos.
Essa divisão continua até hoje e se expressa
em confrontos políticos. Os xiitas são majo-
96
ritários no Irã, são superiores em número
aos sunitas no Iraque, são dominantes entre
os muçulmanos do Líbano e são minoritá-
rios em outros países.
Para a burguesia imperialista, a região do
Oriente Médio tem uma importância estra-
tégica. Em primeiro lugar, porque lá exis-
tem as maiores reservas conhecidas de
petróleo no mundo. Em segundo lugar, por
sua localização geopolítica, entre a Europa
e a Ásia. Em terceiro, porque é palco de im-
portantes processos da luta de classes com
impacto internacional.
Após a Segunda Guerra Mundial, sua
política de controle da região foi baseada
em três pilares: o Estado de Israel (um en-
clave político-militar, criado em 1948, am-
parado em um genocídio planejado do povo
palestino) e as monarquias do petróleo da
Arábia Saudita e do Irã.
 No contexto geral, a chamada Guerra Fria
- as disputas com a URSS sob o comando da
burocracia stalinista (no âmbito de um
acordo contrarrevolucionário estratégico
pactuado nas conferências de Yalta e Pots-
dam) - concretizou-se nos choques com os
nacionalismos burgueses que governaram
diversos países da região (o mais destacado
deles foi o nasserismo egípcio) que tendiam
a se aliar ao stalinismo.
No final da década de 1970 e inícios dos
anos 1980, aconteceram duas importantes
mudanças na região. Em 1979, uma grande
revolução derrubou o regime monárquico do
Xá Reza Pahlevi no Irã, em um processo
que, de modo distorcido, levaria ao surgi-
mento do regime dos aiatolás xiitas. Este re-
gime tem aspirações de que o Irã se
transforme em uma potência regional e, para
isso, promove correntes políticas ligadas a
ele, em diversos países. Neste contexto, pas-
sou a ser considerado o principal inimigo
dos EUA na região.
Nesse mesmo período, após a morte de
Nasser, seus sucessores impingiram uma
profunda reviravolta no regime egípcio: pac-
tuaram a “paz definitiva” com Israel e pas-
saram a receber ajuda financeira dos EUA.
Desse modo, esse regime tornou-se uma di-
tadura militar pró-imperialista clássica com
um claro papel contrarrevolucionário na re-
gião.
Paralelamente, o imperialismo e Israel,
diante das rebeliões da juventude palestina
conhecidas como Intifada, realizaram os
acordos de Oslo (1993) que transformaram
as alas majoritárias da Al Fatah e da OLP
(Organização para a Libertação de Palestina)
em agentes de Israel nos territórios ocupa-
dos, através da ANP (Autoridade Nacional
Palestina). A partir desse momento, a resis-
tência contra Israel passou a ser amplamente
influenciada por organizações islâmicas.
[1]
Sobre tema, recomendamos ler: La reacción democrática. Del síndrome de Vietnam al síndrome de Irak
A
pós a morte de Nasser, o Egito
pactuou a "paz definitiva" com
Israel e começou a receber ajuda
financeira dos Estados Unidos.zx
Nesse contexto, o governo Bush, com um
acordo bipartidário no Congresso, lançou
sua “guerra contra o terror” em 2001, que
se expressou nas invasões que derrubaram
o regime dos talibãs no Afeganistão e o de
Saddam Hussein, no Iraque. Mas, depois
disso, essas invasões se transformaram em
ocupações militares de longo prazo, que ti-
veram como resposta as guerras de liberta-
ção em ambos os países. Essas guerras
terminaram objetivamente com a derrota do
imperialismo e deram origem ao que se de-
nominou de “síndrome do Iraque”: a difi-
culdade e o temor do imperialismo de se
envolver em ações militares de longo prazo
na região, e como resultado disso, ter que
operar apenas com ataques relâmpagos e
alianças temporárias com forças regionais[1].
A situação em toda a região tornou-se muito
mais instável e explosiva: o Iraque ficou, de
fato, dividido em três setores: a parte prin-
cipal controlada por um governo xiita,
apoiado pelo Irã; outra parte disputada pelas
milícias sunitas; e uma região autônoma dos
curdos, nas fronteiras com a Turquia e a
Síria. Como parte desse fracasso da política
de Bush, devemos considerar também a de-
rrota do exército israelense na sua invasão

O
ao Líbano em 2006, diante de uma resistên-
cia encabeçada pelo Hezbollah[2]. Foi a pri-
meira derrota militar de Israel em sua
história.
A primavera árabe
É nesse contexto que, a partir de 2011, co-
meçou o que a imprensa mundial chamou
de Primavera Árabe. Ou seja, uma série de
rebeliões contra os regimes que no passado
adotaram posições nacionalistas burguesas
e, como vimos, regrediram a ditaduras clás-
sicas. Muitas dessas rebeliões avançaram
para processos revolucionários.
Em vários países, a luta democrática con-
tra esses regimes foi potencializada pelos
efeitos da crise econômica internacional de
2007-2008. O início se deu na Tunísia (uma
semicolônia do imperialismo francês), onde
as massas obtiveram uma importante vitória
ao derrubar o regime do ditador Ben Ali,
que foi sucedido por um regime democrá-
tico burguês. O imperialismo francês e a
burguesia tunisiana conseguiram conter o
processo revolucionário, mas o mesmo
gerou outras ondas, agora em um novo con-
texto[3]. O país sempre esteve fora da mira
de Trump. É muito provável que Biden
mantenha esta postura e deixe o país sob os
cuidados do imperialismo francês.
[2]
Ver: ¡Paremos ya el genocidio que comete Israel en El Líbano!
[3]
Ver: Túnez y las nuevas olas del proceso revolucionario en curso
[4]
Libia: ¿Revolución o golpe del imperialismo?
[5]
Ver: Por qué Libia corre el peligro de convertirse en una nueva Siria
98
s Acordos de Oslo foram assinados
em resposta à Intifada palestina.zx
Na Líbia, a luta revolucionária levou a
uma guerra civil com divisão territorial: o re-
gime de Muammar al-Gaddafi manteve o
controle da região da capital Trípoli, en-
quanto os rebeldes dominaram Benghazi (a
segunda cidade do país, na região produtora
de petróleo), onde se instalou um “governo
livre”, encabeçado por setores burgueses,
parte dos quais estão ligados ao imperia-
lismo, especialmente o italiano. No resto do
país combatia-se com dureza: as forças de
Gaddafi perderam o combate terrestre nas
imediações de Trípoli, mas recuperaram te-
rreno com a aviação e chegaram a ameaçar
Benghazi. Naquele momento, o governo
Obama realizou um ataque relâmpago sobre
as bases aéreas do regime. As milícias rebel-
des tomaram Trípoli, derrubaram o regime e
executaram o ditador. Essa participação se-
cundária dos EUA fez com que, equivocada-
mente, muitos setores da esquerda
caracterizassem esse acontecimento não
como um triunfo da revolução, mas como
um golpe do imperialismo[4].
No entanto, a situação posterior deixou
um país territorialmente fraturado entre o
Oriente e o Ocidente, com fortes choques in-
terburgueses e a existência de várias milícias
autônomas[5]. Trump também não tinha a
Líbia na mira, com a definição que “só de-
vemos intervir naquelas guerras que façam
sentido para nós”. No entanto, surgiu a in-
formação de que a Blackwater (uma espécie
de empresa privada de guerra com sede nos
EUA) interveio apoiando as forças do
homem forte de Benghazi, o general Khalifa
Haftar, contra aqueles que apóiam o go-
verno instalado em Trípoli, com a aprova-
ção de Trump[6]. Aqui, também, o mais
provável é que Biden não modifique essas
políticas.
O processo no Egito teve um curso di-
ferente: as grandes mobilizações na Praça
Tahrir (Cairo) obrigaram o ditador Hosni
Mubarak a renunciar, mas o regime
nunca foi derrubado. No âmbito do as-
censo revolucionário, foi manobrando:
permitiu eleições, que foram vencidas
pela Irmandade Muçulmana, cujo go-
verno foi posteriormente derrubado pelos
próprios militares em um cenário de mo-
bilizações populares contra o governo de
Mohamed Morsi, que era incapaz de con-
trolá-las. O regime conseguiu derrotar o
ascenso com a repressão, mas acontecem
com frequência ondas de greves operárias
e lutas contra a repressão[7].
No Egito, a política de Trump continuou
como a de Obama e dos democratas: apoio
político e financeiro ao regime militar.
Desde 1979, os EUA dão uma ajuda anual
de cerca de 1,5 bilhão de dólares, essencial-
mente para fins militares[8]. Isto faz com
que o país seja o que mais recebe ajuda mi-
litar do imperialismo norte-americano fora
da OTAN, atrás apenas de Israel.
Tudo indica que o governo de Biden
continuará com essa política histórica. Por
exemplo, já aprovou a venda de armas ao
país[9]. Nesse contexto, é bem possível que
aumente a retórica de defesa dos direitos
humanos e faça algumas críticas formais à
repressão do regime.

[6]
Blackwater en Libia: 'Si esta operación tuvo lugar, tuvo el visto bueno de Donald Trump' - Enfoque Internacional
[7]
Ver, por exemplo: Egipto: huelgas obreras se expanden por el país e 2 años de la masacre de Rabaa en Egipto
[8]
Dados extraídos de: Cable: 09CAIRO874_a e RANKED: World's 20 Strongest Militaries
[9]
Biden aprueba la venta de armas a Egipto, a pesar de haber prometido una postura más dura contra los abusos de derechos
humanos

Uma estratégia permanente:
o apoio a Israel
Se algo teve continuidade na política exte-
rior do imperialismo norte-americano na re-
gião, com governos republicanos ou
democratas, foi o apoio e a defesa incondi-
cional do Estado sionista de Israel, desde sua
criação em 1948. Definimos Israel como um
enclave militar do imperialismo na região,
nascido da usurpação do território histórico
do povo palestino, a expulsão violenta de
parte da população e a opressão permanente
dos que lá permaneceram, tanto nos territó-
rios ocupados como dentro das fronteiras de
Israel.
Foi e continua sendo uma arma, que pre-
cisa ser destruída, apontada contra a luta dos
povos árabes, tanto para avançar na luta con-
tra o imperialismo na região quanto para que
o povo palestino possa recuperar sua terra e
ter paz na região[10]. Não é casual que receba
a maior ajuda financeira militar norte-ame-
ricana fora dos países da OTAN: uma média
de mais de 3 bilhões de dólares anuais, que
Obama aumentou para 3,8 bilhões. É um
grande fabricante de armamento, tecnologia
de segurança e vigilância, e é sabido que,
além disso, possui armas atômicas (embora
nunca as tenha reconhecido). A esta cifra,
deve-se adicionar o envio da ajuda arreca-
dada por organizações sionistas, estimada
em mais 2 bilhões de dólares anuais.
[10]
Ver: Setenta años de complicidad de la ONU con el apartheid en Palestina e Palestina-Israel: ¿son posibles “dos Estados”?
[11]
Las protestas para exigir la renuncia de Benjamin Netanyahu no cesan en Israel
100
A
Intifada palestina
corroeu o moral do
exército israelense.zx
Os diversos governos norte-americanos
sempre respaldaram as múltiplas agressões
militares contra os povos árabes, por um
lado e, por outro, ajudaram-nos a avançar
nos momentos de crises, como com os acor-
dos de Oslo - aos quais já nos referimos –
após as Intifadas, que corroíam o moral do
exército israelense, e uma política diplomá-
tica de acordos de paz com outros países
árabes.
Nos últimos anos, por diversas razões,
Israel vive uma situação de crise política e
social (utilizamos como referência a derrota
no Líbano) que se expressou em várias mo-
bilizações da população judaica contra o
governo de Benjamin Netanyahu, primeiro-
ministro desde 2009[11]. A partir desta crise,
este governo (apoiado por complexas alian-
ças parlamentares) quer sair pela direita, ex-
plicitando o caráter racista e usurpador de
Israel, agora sem máscaras, como quando
os trabalhistas governavam. Por isso, ataca
periodicamente a Faixa de Gaza (governada
pela organização islâmica Hamas), avança
em sua política de expulsão da população
 101
árabe de Jerusalém e na tomada de terras na
Cisjordânia, através dos colonos judeus de
origem russa, pede permissão ao imperia-
lismo para atacar o Irã e destruir seu pode-
rio militar (embora não lhe tenha sido
concedida até agora).
Trump apoiou fortemente esta política de
direita de Netanyahu: ele continuou o que
Obama fez ao assinar um acordo por dez
anos, que manteve a ajuda financeira mili-
tar anual em 3,8 bilhões de dólares[12] e
transferiu a embaixada norte-americana
para Jerusalém[13]. Também avançou na po-
lítica dos chamados acordos de paz entre
países árabes e Israel. que apóia a campanha internacional de
BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções)
O que vai mudar com Biden? Evidente- contra Israel[15].
mente, não haverá nenhuma mudança na
defesa estratégica nem no apoio financeiro.
O plano de diplomacia e de acordos de paz A revolução síria
com os países árabes continuarão, como os Um dos pontos mais altos do processo re-
que acabam de ser assinados entre a Arábia volucionário na região ocorreu na Síria con-
Saudita, Emirados Árabes, Marrocos, Bah- tra o regime ditatorial de Bashar al-Assad,
rein e Sudão com Israel[14]. iniciado em março de 2011, influenciado
É possível que haja uma mudança menor, pelos acontecimentos na Tunísia, Egito e
mas de certa importância: no contexto de outros países. Foi uma revolução democrá-
uma guinada retórica em direção à defesa tica muito forte, que libertou regiões e ci-
dos direitos humanos, que exerça alguma dades, criou conselhos populares e
pressão sobre o governo de Netanyahu para encurralou o regime em Damasco. O senti-
que abra uma simulação de negociações mento que unificou este movimento foi: “O
com os palestinos, especialmente com a povo quer a queda do regime”[16]. Como
OLP. Vários fatores empurram para esta parte do processo, os curdos, um povo di-
guinada tática, como as pressões da ala es- vidido em vários países da região, majori-
querda do partido Democrata e, ligado a tário em três cantões do nordeste do país (na
isso, a ruptura com o sionismo de um setor região que eles denominam Rojava), cria-
minoritário, mas importante, dos judeus ram seus próprios governos, apoiados em
norte-americanos (Jewish Voice for Peace) milícias curdas[17].

[12]
EE.UU. entrega ayuda militar a Israel de más de 38.000 millones de dólares
[13]
EEUU traslada embajada a Jerusalén, en el 70º aniversario creación de Israel
[14]
Por que um acordo de paz entre Israel e Arábia Saudita parece mais próximo do que nunca e Entenda o acordo histórico
anunciado entre Israel e Emirados Árabes
[15]
Jewish Voice for Peace | Justice • Equality • Dignity
[16]
Sobre este tema, ver: Abajo el régimen sanguinario de Bashar
[17]
Sobre este tema, ver: ¿Por qué defendemos el derecho de los kurdos a tener su propio Estado? e Rojava (Kurdistán sirio):
Un Estado burgués atípico [Parte 1]

Diante do processo revolucionário, Bas-
har al-Assad revidou com uma repressão
sangrenta e o processo transformou-se em
uma guerra civil, cujo curso inicial era des-
favorável ao regime. Nessa altura, a partir
de 2013, potências internacionais e regio-
nais começaram a intervir no país O regime
de al-Assad recebeu apoio do Irã e de Vla-
dimir Putin (que buscava manter a histórica
influência russa no país). Até a milícia li-
banesa Hezbollah (ligada ao regime ira-
niano) cruzou a fronteira para defendê-lo.
Dessa forma, conseguiram evitar sua queda
e iniciar um projeto de recuperação do te-
rritório sírio com métodos genocidas, inclu-
sive com armas químicas. Do outro lado, os
Estados Unidos, impossibilitados de fazer
uma intervenção militar permanente, esta-
beleceram uma aliança com a direção
curda, à qual fornecia armas e instrutores,
e fazia alguns ataques relâmpagos.
Como se não bastasse, uma nova força
entrou no processo: o Estado Islâmico
(ISIS), formado no Iraque por setores bur-
[18]
Un año de “califato” en Irak y Siria
102
gueses e milícias sunitas, destituídos do
poder desde a invasão norte-americana em
2003. O ISIS, que inclui mercenários em
suas fileiras, aproveitou a guerra civil síria
para entrar em seu território e ocupar uma
faixa em direção ao centro do país, que
passava pela região curda, a qual agrediu
de modo especial. Por trás de sua roupa-
gem islâmica estava a tentativa de dominar
um “corredor de petróleo” e constituir um
novo país[18].
Obama declarou o ISIS como o “inimigo
fundamental” e estreitou a aliança com as
milícias curdas, como principal ferramenta
para derrotá-lo. O povo curdo defendeu he-
roicamente seus territórios, em especial a
cidade e o cantão de Kobane. Depois, essas
milícias avançaram para território não
curdo para concluir a tarefa e liquidar o
ISIS na cidade de Raqqa.
No início, Trump manteve e aprofundou
essa política de Obama. Inclusive aprovei-
tou para realizar alguns bombardeios re-
lâmpagos.

Mas, a certa altura deu uma guinada par-
cial: estabeleceu um acordo de fato com
Putin para dividir a Síria em áreas de in-
fluência, delimitadas pelo rio Eufrates.
Desta forma, entregou uma parte do terri-
tório curdo, o cantão de Afrin, o mais rico
e povoado dos três que se encontram em
território sírio. Essa realidade foi uma
amostra da cegueira estratégica da direção
curda, que havia confiado nessa aliança
sem nenhum alerta.
Com este desfecho, entrou outro ator no
conflito: Erdogan, presidente da Turquia -
um país no qual a maioria do povo curdo
luta por sua autodeterminação -, para quem
a existência de uma Rojava autônoma do
outro lado da fronteira representa um
grande perigo. Erdogan invadiu o território
sírio e atacou os curdos com o objetivo de
criar um “cordão sanitário” sob controle
turco ao longo da fronteira, com a aprova-
ção de Trump[19].
Em outros artigos, definimos essa situa-
ção como um polígono de forças muito
complexo, com “jogadores” internacio-
nais, regionais e nacionais em um jogo de
alianças variáveis com dois grandes blocos
contrarrevolucionários: o de al-Assad-Rús-
sia-Irã, de um lado, e o encabeçado pelo
imperialismo norte-americano, do outro.
Em meio a essa complexa situação sobre-
vivem algumas forças que refletem a revo-
lução de 2011.
O povo sírio sofreu muito: uma econo-
mia destruída e uma altíssima perda de
vidas. Em 2016, um relatório da ONG
Human Rights Watch contabilizou 470 mil
mortes, 90 mil detidos e 60 mil desapare-
cimentos forçados. Os números, certa-
mente, são muito maiores hoje[20].
[19]
Trump da señal verde para la agresión militar a Rojava
[20]
Ver: En acto virtual, militantes y refugiados conmemoran los diez años de la Revolución Siria
[21]
El primer crimen internacional de Joe Biden
103
Jornalistas independentes estimam cerca de
300 mil desaparecidos e quase metade da
população refugiada ou deslocada.
Que política o governo Biden adotará
nesse cenário? No artigo anterior, vimos
que ele rescindiu o acordo de fato que
Trump tinha com Putin e começou a atacá-
lo verbalmente. Como isso se expressará
na Síria? Certamente, ele aumentará a re-
tórica contra al-Assad, mas, devido às con-
dições objetivas, seria muito difícil dar
uma guinada e iniciar uma intervenção pe-
sada. Ele mantém cerca de 3 mil soldados
e conselheiros nas áreas petrolíferas con-
troladas pelos curdos, procura enquadrar
Erdogan para que ele não atue “fora da
caixa” em sua política para a região e o
país... Na verdade, o mais provável é que
acabe aceitando o predomínio do regime
de al-Assad na maioria do país (ou seja,
sob a influência de Putin) e, em uma futura
negociação global, tentar colocar um “pe-
zinho” dentro. Entretanto, para mostrar que
“está no jogo”, realiza algum ataque aéreo
relâmpago, como o que ordenou recente-
mente contra milícias ligadas ao regime
iraniano[21].
Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia.

Arábia Saudita
Dissemos que um dos pilares da política do
imperialismo é a petromonarquia saudita,
instalada em 1932, cujo atual chefe é o rei
Salman, e está assentada na família real,
composta por sete mil príncipes (organiza-
dos em uma hierarquia segundo a ordem
em que podem aspirar ao trono) e suas es-
posas e filhos. Eles fazem parte do ramo su-
nita do islamismo.
A Arábia Saudita tem o maior PIB da Pe-
nínsula Arábica e é um dos países mais im-
portantes do mundo (29º), graças à sua
produção de petróleo: possui a segunda
maior reserva conhecida do mundo (de
muito fácil acesso e extração) e é seu prin-
cipal exportador. Isso fez com que uma bur-
guesia parasitária e rentista muito forte se
estruturasse em torno da família real. Por
exemplo, a petrolífera estatal (Aramco) era,
até recentemente, a maior empresa do
mundo em valor de capital e lucros[22].
É um regime monárquico absolutista, di-
tatorial e muito repressor, cuja interpretação
distorcida e ambiciosa da sharia islâmica
[22]
Cómo la pandemia alteró el ranking de las empresas con mayores ganancias del mundo
[23]
En Arabia Saudita el gobierno arresta a activistas de los derechos de las mujeres
[24]
Arábia Saudita - Iimigrantes totais 2019 | countryeconomy.com
[25]
Military expenditure by country as percentage of gross domestic product, 1988-2019 © SIPRI 2020
serve de pretexto para impor leis represso-
ras: por exemplo, o consumo de álcool é
proibido, existe uma “polícia religiosa” [sic]
e as mulheres são muito oprimidas[23]. É
claro que essas leis são aplicadas apenas às
classes médias e aos trabalhadores, porque
os membros da família real exibem e des-
frutam sordidamente de sua riqueza no país
e no mundo.
No outro extremo da sociedade e da re-
pressão está a classe trabalhadora, composta
em sua maioria por imigrantes que represen-
tam 40% da população. Em ordem de im-
portância, eles provêm da Índia, Indonésia,
Paquistão, Bangladesh, Egito, Síria, Iêmen
e Filipinas, além de outras imigrações me-
nores[24]. Com raras exceções, nem eles nem
suas famílias têm sequer o direito de acesso
à cidadania.
Este regime está blindado por poderosas
forças armadas: mais de 300 mil efetivos
entre seus diferentes ramos, equipados de
armamento muito moderno, já que a monar-
quia dedica à defesa um dos percentuais
mais altos do mundo[25]. Isso, sem contar os
milhares de membros da polícia religiosa.

Potência regional
Podemos definir a Arábia Saudita como
uma semicolônia privilegiada do imperia-
lismo norte-americano, com um papel cen-
tral na região. Por um lado, junto com as
demais monarquias do petróleo do Golfo
Pérsico (Emirados Árabes Unidos, Bahrein,
Qatar, Kuwait e Omã), atua como regulador
do mercado mundial de petróleo. Por outro,
com seus recursos financeiros ajuda a com-
prar governos e a cooptar lideranças do
campo sunita do mundo árabe.
Por exemplo, é conhecido o vínculo fi-
nanceiro que mantinha com o anterior re-
gime paquistanês, o apoio à sua
militarização, e inclusive à fabricação de
bombas atômicas para contrabalançar o do-
mínio da tecnologia nuclear pela Índia,
cujos governos, naqueles anos, tendiam a
se aliar com a União Soviética.
Seu peso como potência regional pró-
imperialista levou-a a permanentes atritos
com o regime xiita iraniano. Inclusive a
confrontos militares “terceirizados” que,
em alguns casos, não se inserem nas neces-
sidades imperialistas. Por exemplo, em
março de 2014, o então primeiro-ministro
do Iraque Nouri al-Maliki, ligado aos aia-
tolás iranianos, denunciou que a Arábia
Tropas hutis.
[26]
Maliki: Saudi and Qatar at war against Iraq
[27]
¿Quién apoya a los extremistas de Estado Islámico?
105
Saudita e o Qatar tinham dado apoio polí-
tico e militar às milícias sunitas que luta-
vam contra seu governo[26]. Vários meios
de comunicação e analistas internacionais
apontaram que houve um fluxo de fundos
sauditas na formação da Al-Qaeda, pri-
meiro, e do ISIS, depois[27].
O conflito no Iêmen
Até agora, o regime saudita operava nos
bastidores. Mas, em 2015, deu um passo à
frente e passou a intervir diretamente no
Iêmen, o país mais populoso e pobre da Pe-
nínsula Arábica (não tem petróleo), com o
qual compartilha uma extensa fronteira.
O atual Iêmen foi criado em 1990 a par-
tir da união do Iêmen do Norte (que sempre
esteve muito ligado à Arábia Saudita) com
o Iêmen do Sul, que chegou a se reivindi-
car socialista e estava ligado à URSS. A ca-
pital é Sanaa e havia um presidente
permanentemente reeleito: Ali Abdullah
Saleh.
Outro elemento muito importante é que,
devido ao seu desenvolvimento atrasado,
as influências e as rivalidades tribais têm
peso no país. Uma das etnias mais impor-
tantes são os hutis (cerca de 40% da popu-
lação), que sofreram a opressão de outras
etnias ligadas à camarilha governante.
Nesta circunstância, como reflexo do
processo revolucionário árabe, os hutis le-
vantaram-se contra o regime de Sanaa e,
com ajuda de suprimentos militares do Irã,
chegaram a tomar a capital. Ao longo do
processo, a Arábia Saudita forneceu armas
ao regime e, além disso, realizou ataques
aéreos contra os hutis. Como isso não bas-
tava, foi necessária uma invasão terrestre
para obrigá-los a retroceder e recuperar a

capital[28]. No entanto, a resistência huti
continua e inclusive desfere alguns golpes
na própria Arábia Saudita, como o ataque
com drones-mísseis contra poços de petró-
leo, em 2019[29].
Obama deixou correr esta política do re-
gime saudita; Trump apoiou-a claramente.
Qual será a política de Biden? Analisare-
mos esse tema abaixo, em um contexto
mais geral.
Algumas considerações gerais
Dissemos que a situação no Oriente Médio
deve ser definida como um complexo polí-
gono de forças em que atores internacionais
(EUA e Rússia), potências regionais (Ará-
bia Saudita, Irã e inclusive Turquia), gover-
nos nacionais e forças locais influenciam
com alianças estratégicas e outras táticas,
muitas vezes variáveis. Dissemos, também,
que o imperialismo norte-americano, de-
vido às suas derrotas no Iraque e no Afega-
nistão, deve intervir muito tangencialmente.
Vimos como as revoluções no mundo
árabe, com seus altos e baixos, cruzaram
todo o processo e o tornaram mais agudo.
Brett McGurk.
[28]
¡Rechacemos los bombardeos sauditas a Yemen! ¡Viva la revolución del pueblo yemení! e Invasión terrestre en Yemen
[29]
Sobre el ataque a los pozos de Arabia Saudita y el aumento de los precios del petróleo
[30]
China envía expertos médicos, equipamiento y suministros a Irak
106
Vários países (Iraque, Síria, Líbia) ficaram
divididos. Eles e outros vivem guerras civis
sem um fim ou resultado definido (como o
Iêmen).
Como se tudo isso não bastasse para con-
figurar um panorama muito complexo, um
novo ator começa a aparecer na região: a
China. Através do que se denominou de di-
plomacia das vacinas, começa a utilizar
suas doações (não apenas de vacinas, mas
de suprimentos médicos) para ganhar in-
fluência. A China está desenvolvendo uma
ofensiva diplomática no Oriente Médio, por
meio de uma ajuda que é recebida com gra-
tidão. O Egito, Estados do Golfo, Irã e Ira-
que receberam remessas. “A China envia
suprimentos médicos e seus melhores es-
pecialistas... enquanto os EUA não nos
forneceram um único frasco de medica-
mentos”, disse Jafaar Allawi, ministro da
Saúde do Iraque. Além disso, a China é hoje
o principal sócio comercial do Iraque[30].
É nesse cenário complexo que o governo
democrata de Biden deve elaborar e aplicar
uma política para a região. E o faz, condi-
cionado não apenas pelas consequências da
“síndrome do Iraque”, mas também pela di-
fícil situação que vive em seu próprio país;
isto é, o risco de novas rebeliões e ondas de
greves, e também pela pressão exercida
sobre o partido Democrata por sua ala es-
querda e suas reivindicações pelos direitos
humanos.
Nesse contexto, ele dará mais importân-
cia e acompanhamento à região do que seu
antecessor Trump. Nomeou Brett McGurk
(um quadro do imperialismo especializado
na região) como coordenador para o
Oriente Médio e o Norte da África.
 107
Dessa forma, manterá as alianças estraté-
gicas (Egito, Arábia Saudita e as monarquias
do petróleo e Israel). Ao mesmo tempo, ten-
tará desmantelar as guerras em curso (Líbia,
Síria, Iêmen, as remanescentes do Afeganis-
tão e Iraque) por vias diplomáticas e nego-
ciações, a fim de se concentrar, por um lado,
na situação interna dos EUA e, por outro, no
confronto mais estratégico com a China.
Com esta política, tentará apaziguar a região
que continua vivendo levantes populares
como os que ocorreram no Líbano, Argélia,

Sudão e agora na Jordânia devido ao au-
mento das mortes pela pandemia.
Em um artigo editorial muito interessante,
o New York Times analisa que o foco princi-
pal de Biden será a situação interna de seu
país e que, em relação à região, o próprio
Biden expressou que deseja “acabar com as
guerras sem fim” para que os conflitos no
Oriente Médio “não ofusquem sua política
doméstica” ou “seu foco em não ser supe-
rado pela China”[31].
Com base nisso, deve enquadrar todos os
seus aliados para que eles não façam jogadas
“fora do roteiro”. Certamente, aumentará
sua retórica sobre os direitos humanos e fará
críticas públicas, mas sem virar a mesa. Por
exemplo, os serviços de inteligência norte-
americana já sabem que o assassinato do jor-
nalista saudita opositor Jamal Khashoggi na
Turquia, em 2018, foi ordenado pelo prín-
cipe herdeiro Mohammed bin Salman. No
entanto, Biden já o perdoou, embora possa
pedir a cabeça de algum príncipe de menor
importância para encerrar o assunto. Como
diz o artigo editorial já citado do New York
Times: “Os interesses estratégicos america-
A
China é hoje o principal
parceiro comercial do Iraque.zx
nos prevalecem sobre os ideais de direitos
humanos e liberdade”[32].
A questão do Iêmen é mais complexa e
localiza-se em uma esfera diferente (a das
guerras sem fim). Até agora, o governo
Biden fez dois movimentos, ainda retóricos.
Por um lado, o Departamento de Estado
anunciou que revogará sua classificação an-
terior da milícia huti como “organização
terrorista”[33]. Por outro, anunciou que en-
cerraria “todo apoio americano para ope-
rações ofensivas na guerra do Iêmen,
incluindo a venda de armas relevantes”[34].
Tudo indica que, possivelmente, tentará
montar uma mesa tripartite de negociações
(Arábia Saudita, um governo iemenita e os
hutis) que pactue uma paz que permita a re-
tirada das tropas sauditas e a instalação de
um governo com alguma participação dos
hutis.
Resta-nos uma última questão impor-
tante: as relações com o regime iraniano.
Vimos que, desde a revolução de 1979, este

[31]
Where Biden’s Foreign Policy Is Taking the U.S.
[32]
Idem.
[33]
EUA revogarão designação de houthis como terroristas devido à crise no Iêmen
[34]
Ver artigo de nota [31].

regime foi considerado um “inimigo estra-
tégico” pelo imperialismo norte-ameri-
cano. Mas, a realidade (a luta de classes e
suas expressões militares) obrigou-o a re-
alizar vários acordos tácitos para evitar
males maiores. Por exemplo, após a derrota
da ocupação do Iraque, o regime do Irã foi
imprescindível para sustentar um governo
central de maioria xiita no país. Após a de-
rrota de Israel no Líbano, o papel da orga-
nização xiita Hezbollah e suas milícias foi
essencial para sustentar um regime burguês
no país. Mesmo na Síria, há uma aceitação
de fato a seu papel de apoio ao regime de
Assad.
Nesse ambiente, o imperialismo sempre
tentou demarcar um campo. Por exemplo,
com a pressão e as sanções contra seu de-
senvolvimento nuclear autônomo. Obama
havia assinado um acordo com esse regime
pelo qual o Irã aceitava os controles impe-
[35]
Idem.
108
rialistas em troca da suspensão das sanções.
O objetivo de fundo era aumentar os inves-
timentos imperialistas com a privatização
(promovida pelo próprio regime iraniano)
do até então muito forte setor estatal da
economia. Tudo isto no âmbito de ondas
periódicas de greves operárias e demandas
dos setores médios por maior liberdade
contra um regime ditatorial que, sob o
manto do islamismo, reprime ferozmente
as massas. Essa política de longo prazo vi-
sava a transformação do Irã em uma semi-
colônia clássica e, na medida do possível,
que essa nova burguesia surgida das priva-
tizações pudesse obter uma abertura con-
trolada do regime.
Trump rompeu o acordo nuclear de
Obama e voltou atrás em sua política geral.
Tudo indica que o governo de Biden vai re-
tomá-la: em sua campanha eleitoral, com-
prometeu-se a restabelecer tal acordo[35].
Tradução: Rosangela Botelho.