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~ Bulimia e feminilidade
• Sara P. Fux
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I A paciente, a quem chamarei L., me foi encaminhada pela mãe, ludoterapeuta
respeitada na década de 70. Estávamos em 1978; período em que não havia nenhuma
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referência teórica ou literatura psicanalítica em relação à bulimia. Foi com a própria
paciente que pude aprender alguma coisa.
L. era uma adolescente de 16 anos, "rebelde, agressiva, violenta, sem limites,
sem.escrúpulos, insuportável, enfim!", segundo a descrição da mãe na única entrevista
quesavemos,
O que é interessante ressaltar é que eram essas mesmas características que L.
atribuía à sua mãe.. o que denota uma certa especularidade e forte identificação
narcísica, que resultaram em séria rivalidade e agressividade incontrolável, o que
justificavam as brigas violentas, agressões fisicas e insultos constantes que ambas se
trocavam.
A única característica que marcava a sua diferença com a mãe era que L. era
bulímica, fato que aparentemente a mãe desconhecia. " O que é bulimia? ", lhe
perguntei, já que era a primeira vez que ouvia falar disso. Fora seu pai, médico
psiquiatra, quem Ihe nomeara seu distúrbio alimentar, que consistia em comer até se
empanturrar e vomitar logo em seguida "para não engordar mais ainda".
• Seu pai também a diagnosticara "louca" e achava que do que necessitava
mesmo era de medicação e acompanhamento psiquiátricos. A própria paciente me
relatava que brigava com todos e por tudo na rua, quebrava coisas em casa, agredia
com violência a mãe, xingava aos berros o irmão e até já o ameaçara com uma faca,
enfim, bancava a "louca". Parecia que era desse lugar, o de "louca", que se
apresentava ao mundo e talvez L. supusesse que era esse o lugar queõPãilhe reservara
no seu desejo ...
egundo ela, o pai era omisso e não aceitou mesmo comparecer à entrevista
que lhe solicitei. No decorrer do tratamento, foi se desvelando que mantinha uma
amante e não tinha nem queria ter poder nenhum nas decisões da família. A mãe, \
segundo L., era "pai e mãe ao mesmo tempo", o que lhe delegava um poder imenso,
poder este que L. questionava com obstinação.
Sua principal questão, na ocasião, era sua aparência física. Fazia demandas
intensas para que eu a orientasse quanto aos seus cabelos, ao seu corpo, corno
emagrecer, como se maquiar, como se vestir, como ser mais atraente ... Eu sabia ...Eu
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devia saber o que é U1!1amulher ... I

Extremamente queixosa, se dizia "uma merda" ... O analista, porém, não deve
cair nesse engodo, porque se dizer "uma merda" é uma das formas de obturar, de i I
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interromper ou impedir o trabalho sobre a questão e a construção da feminilidade. Ser ! I

"uma me da" .á seria . I

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lIma resposta, o que impossibilita o sujeito de investir e se empenhar num trabalho em
tomo da questão crucial para a adolescente: "O que é uma mulher?".

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Sua bulimia surgiu exatamente no inicio da- adolescência. Como disse acima,
fora o pai quem diagnosticara, pois fora só para ele que ela contara o que estava se
passando. Ela sabia perfeitamente que esse comportamento era "estranho", "esquisito",
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que era prejudicial à saúde, <mas não conseguia se libêrtar "disso". A bulimia, porém,
não se constituía uma questão para L., que, aliás, parecia não desejar fazer análise: o
que ela buscava era um lugar aonde pudesse se lamentar bastante da vida, dos seus
infortúnios, do seu azar ...
. A bulimia geralmente surge na adolescência quando emerge a necessidade de \
uma identificação sexual adulta ("Sou homem ou sou mulher?") e a menina se defronta
com a questão crucial acerca do feminino. A nostalgia da infância reaviva as pulsões
orais e faz detonar a angústia face ao enigma do desejo do Outro: "Que me queres?". A
bulimia surge, então, quando emerge o enigma da feminilidade e a questão 'da escolha
sexual. '"
A bulimia começou, segundo ela, num momento de extrema depressão no
qual sentiu vontade de comer para se confortar do desamparo e abandono em que vivia.
Depois, se deu conta de que tinha comido muito e ia engordar mais ainda. Daí, forçou ç.
o vômito e tomou um laxànte para "se esvaziar". Dessa situação aparentemente
incidental e de interpretação bastante simplória, surgiram os atos compulsivos e
repetidos, "encher e esvaziar' logo em seguida, forçando o vômito ou tomando laxante
}?ara"esvaziar tudo" , uma fixidez fantasmática evidentemente determinada pelo gozo. \
E importante ressaltar aí o aspecto pacificador da fantasia: o sujeito refugiado na
fantasia fica à mercê do gozo e aquém do desejo, que, aliás, não é nada apaziguador.
"Comer e vomitar é um vicio como qualquer outro. Eu podia me drogar ou ser r
.•..'
• alcoólatra, dava no mesmo ..."
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Sua bulimia, ela dizia, era uma forma de "preencher o seu vazio" e também
uma forma de agredir sua mãe, já que era ela quem "enchia a geladeira para eu c
esvaziar toda". Paradoxalmente,· ela "preenchia o seu vazio", para esvaziá-lo C
imediatamente depois, mantendo nessa compulsão permanente contato com o furo C
constitutivo do sujeito. O "encher e esvaziar', o comer até se empanturrar para vomitar \
ou evacuar logo depois nos fazem crer que usava o alimento como o jogo do Fort Da
mencionado por Freud, numa tentativa de simbolizar ou efetuar uma separação dessa \
mãe na qual estava alienada, apesar de repudiar com veemência essa hipótese. Essa
manobra parecia ser uma tentativa de produzir a falta no Outro, esvaziando a
"geladeira", que, aliás, lembrando bem, era a mãe quem "enchia". É interessante
ressaltar aí o quanto se queixava que a mãe era uma pessoa "fria", que não lhe
demonstrava amor, que nunca a tinha abraçado ou beijado.
Siderada nessa especularidade, em última instância, ocupava a posição de
objeto, ainda que degradado, preenchendo, sem se dar conta, a falta dessa mãe tão
"possessiva e controladora". Na verdade, não seria essa mãe tão injuriada e »-Ó:

desqualificada alvo da sua maior admiração e inveja? E nos seus lamentos, no final '""
das contas, não estaria a reivindicação da criança que exige que a mãe tenha um desejo
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fora dela, porque essa é a via que lhe falta em direção ao seu próprio desejo?
Esse jogo de "enche e esvazia" é um vaivém de perda e reencontro com o
nada, que Lacan computa dentre os objetos causa de desejo como o mais precioso, pois
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foi justamente ao furo, ao vazio que ele nomeou aleatoriamente objeto pequeno a . O

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~ bulímico ou o anoréxico consagram a boca e o estômago' a uma função puramente
~ erótica, abandonando sua função fisiológica que é da ordem da necessidade. Ou seja, a
;;I oralidade histérica faz prevalecer ,o desejo sobre a necessidade. É a esse nada que a
histérica se reduz em sua fantasia quando procura questionar o desejo do Outro _ na
~
verdade, é essa a sua posição fantasmática, "uma merda".
~ Um transtorno alimentar, então, sempre vem no lugar do enigma sobre a
~ feminilidade. Se na mulher a castração é inicial, ela contrasta, porém, dolorosamente,
~ segundo Lacan, com a devastação que pode produzir a relação da filha com a mãe.
~
Essa forma de relacionamento devastador pode destruir na menina a possibilidade de
empreender o trabalho de encontrar o caminho .em direção ao feminino. Em muitas
~
circunstâncias, a melhor forma de evitar grandes estragos é através 'de uma ruptura
~ radical e definitiva com a mãe. Assim, na maioria das vezes, é na relação da mãe
~ com~ filha, mãe enquanto mulher, que a filha busca encontrar as respostas que podem
J introduzi-la na rota da escolha sexual. No caso de L., porém, como (?) .., se era ela
.~
própria (a mãe) incompetente quanto ao seu próprio desejo?
Se a castração materna é denegada, o sujeito é empurrado para o refúgio
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fechado da fantasia, na qual "esvaziar a geladeira" seria imaginariamente tanto furar \
:~ esse Outro completo e sem falhas, essa mãe canibal, quanto um apelo a que o pai
~ assumisse a sua posição de mediação, posição que definisse ou delimitasse os papéis e
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as posições na' família, o que nos remete a questões contemporâneas e bastante \
preocupantes: o declínio da função paterna e as conseqüentes transformações no seio
" da instituição familiar, provocando uma verdadeira revolução social.
A mãe da bulímica é, pois, uma mãe devoradora, que está em todos os lugares, \
• ~ cuja presença constante a toma insuportável e produz sempre estragos. No Sem. 17,
Lacan descreve a mãe que mantém com a filha uma relação de estrago como um
crocodilo em cuja boca, estariam os filhos, boca que a qualquer momento pode se
fechar, devorando-os. Dessa forma, a filha poderia acabar ficando presa nessa posição
de objeto degradadó, objeto de consumo, objeto capaz de satisfazer à mãe canibal,
preenchendo-a após se colocar como objeto no cardápio, na condição de ser
"devorado" pelo Outro, incamado pela mãe. Eis o desejo da mãe, diz Lacan: "Não se
sabe se, de repente; pode lhe ocorrer fechar o bico."
Parecia que era nessa fantasia que a paciente se refugiava. Qual era, afinal, a
essência desse refúgio? Sabemos que a fantasia é uma das formas de esconder o furo
do Outro. Sabemos também que um evento ou um relato só adquire valor de trauma na
fantasia que dele é construída a posteriort. E aquilo do que L. mais se lamentava era de
não ter sido desejada pela mãe. Era uma certeza inabalável, uma convicção que se
sustentava através dos próprios relatos da mãe, nos quais ela lhe contava com
freqüência e com ,detalhes todas as manobras que fizera para abortá-la, evidentemente
.sem sucesso. Na sua fantasia, portanto, L. auferia à sua mãe o poder sobre a sua vida e
a sua morte.
,.Nisso estava em jogo, evidentemente, a essência do masoquismo e uma
aspiração a voltar ao estado inanimado, o sujeito buscando manter-se permanentemente
no princípio do prazer ( Freud, " Além do princípio do prazer", 1920), repudiando as
agruras a que estamos assujeitados no dia a dia.

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No Sem. 5, Lacan aponta que essa aspiraçãoestá articulada na resistência ao


tratamento de sujeitos mais ou menos caracterizados pelo fato de terem sido crianças
não. desejadas e que, "à medida em que se enuncia o que os aproxima de sua história
de sujeito, rechaçam se inserir na cadeia significante familiar, na qual só a
contragosto foram admitidos pela mOe."[...] "O que aqui se afirma não é somente um
esejo e conhecimento, mas, sim, o reconhecimento de um desejo." Na relação,
pois, do sujeito com o significante, à qual a análise inexoravelmente o remete e onde
ele poderia vir a se constituir como desejante, o sujeito 'se recusa a fazê-lo, recusando-
se também dessa forma a pagar uma dívida~ vida _ , dívida esta que e e não admite
ter contraído, o que produz o efeito paradoxal de eternizá-la, tornando-o assim
permanentemente endividado.e ligado a ela. '
No Sem. 4, Lacan afirma que" sabemos, passo a passo, o que comporta de
conseqüências e~ cascata, de desestiuturação quase infinita, o fato de um sujeito
desde logo, mesmo até antes; do seu nascimento, ter sido uma criança não desejada.
Essa questão é essencial, ma~s essencial do que ter sido em tal ou qual momento uma
criança mais ou menos satisfeita. O termo' criança desejada' é aquele que responde à
constituição da mãe enquanto suporte do desejo.". E é l-A. Miller quem sintetiza:
"Os mais dificets na experiência analltica são os sujeitos não desejados quando do
nascimento ou não desejados nos primeiros momentos de vida: são muito diflceis de
mudar. "
Se nos transtornos alimentares, como em qualquer sintoma, há uma verdade
em jogo, a oferta do analista. é de um lugar onde somente "cuspindo" significantes é ~
que poderá haver uma retificação da posição subjetiva. A questão não é mudar o
• mundo, mas o sujeito mudar no mundo. Era a isso que ela se recusava: ela se recusava ,1'>A.9\ 1"ItV.,.iv-<:~-'
a se implicar naquilo mesmo do que se queixava ( cf. Freud, Caso Dora), pois, se ~ ~ Q:.. )~"'" "--<Vl~ ..

negava a se perguntar qual era a suapartícípação nas perseguições, agressões e insultos )J.L &'~ ~
que sofria e das quais se dizia ''vftima''. E, para concluir, enquanto estivesse na posição ~ .fÀ.I ) e
de "vitima" era impossível" incrementar uma análise, porque uma "vítima" é C
inanalisável.
Houve muitos abandonos e retomadas do tratamento. Após um lapso seu, C
cuja pontuação pela analista foi rechaçada com veemência, L. interrompeu C
abruptamente a análise: é que ela se recusava a pagar o preço, o preço da renúncia ao C
gozo que sustentava o seu "vício". Sua posição de "vítima" funcionava como um c:
"empuxo ao gozo" e essa poupança "furada", exclusivamente a serviço da pulsão de C
morte, é uma das maiores devastações do ser. Isso certamente ocasionava em L. uma "
impossibilidade lógica de operar uma simbolização dessa sua inadequação ao Mundo. C
O que então, na verdade, a precipitara para fóra da cena analítica fora o imperativo do C
gozo, esse gozo que não serve p 'rá nada, mas que ela obcecadamente poupava. C
Poder-se-ia, inclusive, propor, como hipótese, que L. teria atuado, nessa C
interrup~ão? a separação ~e sua ~ãe,. posição possivelmen~e. delegada ~ analis~ na C
transferência. Essa atuação real-lzana a ruptura necessana para evitar maiores '
estragos, ruptura indicada por Lacan nessas circunstâncias, e que, por isso, só poderia e:
mesmo ser radical, definitiva e abrupta. Assim, nem sempre uma interrupção é C
decorrente de um erro do analista. C
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Oxalá essa interrupção tenha possibilitado a L. seguir em frente, conforme o
seu desejo, na construção da feminilidade ...certamente com outro analista, pois eu fora
"a terapeuta indica
da pela mãe ".

BIBLIOGRAFIA

Freud, S Além do princípio do prazer (1920 ), vol XVII,


Obras Completas, RJ, Editora Imago, 1967 .

----- Fragmentos de um caso de histeria ( 1905 ), vol VII, idem


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• Lacan,J O Seminário, livro IV: A relação de objeto, ( 1956-57 ), RJ, Jorge

Zahar Editor, 19.95
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O Seminário, livro V : As fprmações do inconsciente, ( 1957-58'), c
RJ, Jorge Zah~ Edit?r, 1999 <-

O Seminário, livro XVII : O avesso da psicanálise, ( 1969-70 ),


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RJ, Jorge Zahar Editor, 1979

Hek:ier, M. e Miller, C Anorexia - bulimia : deseo de nada, B A, Editorial ç.


Pai dós, 1995
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Ménard, A Anorexie mentale et entrée en analyse? .Actes de L'École de la
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Cause Freudienne, n" 16, Paris, 1989 c
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