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Seu analista a tinha como um caso que não deu certo – uma partida de xadrez
que não aconteceu. Um caso de échec (fracasso em francês) e não d'échecs
(jogo de xadrez).
Ele entendia ser esta uma metáfora possível para um processo de análise –
estratégias para pôr abaixo uma ilusão de totalidade, atravessar defesas para
derrubar o Rei. A menina, para o analista, foi um caso de fracasso. O fracasso
de seu desejo de analisar. Rei morto e não posto.
A menina estava entre seus 19 e 20 anos, assim chamada pela mãe e por ela
própria. Uma menina e sua mãe católica.
O analista recebeu a filha no dia seguinte. Uma jovem simpática e gentil de fala
mansa. Ela contou ao analista que ficou meio alterada, mas tranquila. Estava
em casa com um amigo, tinham passado a tarde conversando sobre
começarem uma marca de roupas – ele, o amigo, economista; ela, estudante
de moda. Tomaram vinho – mas quando o amigo saiu, ela percebeu que talvez
tivesse bebido demais e veio a reação da mãe.
Veja se é possível uma coisa dessas, dizia ela – uma menina em casa bêbada,
e em vez de cuidar dela, a mãe vem com sermão! Perdi a cabeça. Errei, eu
admito – exagerei. Mas me sinto abafada pela minha mãe, ela se mete em
tudo; não me deixa viver a minha vida.
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mais presente na sua prática – fosse pelo álcool, pela comida ou por
experiências não muito bem assimiladas. Excessos que sobrecarregavam os
corpos, tornando o sofrimento de quem o procurava não só psíquico. Não raro,
o processo psíquico era posto de lado, numa espécie de curto-circuito entre o
impulso e a ação, provocando arroubos de violência. Era visível como as
famílias participavam do surgimento e da manutenção desses quadros; haja
vista aquela que tinha acabado de sair.
O analista pensava nessas queixas. Seria ela o tipo de mãe que se adianta às
necessidades da filha e ocupa o território necessário para que ela se
desenvolva como sujeito, ao não ver (ou não identificar) suas demandas? Uma
dessas mães que procuram oferecer por antecipação aquilo que elas próprias
não tiveram na infância e impossibilitam qualquer estruturação do desejo
infantil. Falta de desejo que, no curso da infância e da adolescência, ficará
registrada como vivência de tédio, antes de se exteriorizar como atuações
transgressivas ou como trágicas passagens ao ato. Estava diante de uma
possibilidade de mãe intrusiva a ser observada, calculou o analista.
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ter um modo de organização narcísico – e quanto mais o ideal do eu for
narcísico, maior será o distanciamento da realidade e tanto mais primitivas as
defesas mobilizadas para escapar da angústia.
Mãe intrusiva e pai fraco era uma combinação explosiva para produzir
estruturas neuróticas graves ou psicóticas. Mas, no entender do analista, não
explicava o abuso de álcool da menina, e suas passagens ao ato ocorriam
quando estava alcoolizada.
Como acontece com a estrutura da linguagem, que define o simbólico e nos faz
humanos, pensava o analista, a passagem de um estado a outro responde a
certas regras que definem essas transições – há pulos que molestam e trazem
consequências danosas ao psiquismo. Podemos pensar na passagem do
Édipo e na passagem da adolescência para a vida adulta. Podemos pensar
igualmente na pandemia, quando da noite para o dia fomos roubados. Uns não
viram ou não entenderam, outros não tiveram como dizer o que estava
acontecendo. Mas o roubo aconteceu aos olhos de todos. Como lidar com
quase 700.000 vidas subtraídas e um hiato no cotidiano que afastou multidões
de parentes e amigos. Fomos dormir no dia 19 de março de 2020 e acordamos
atordoados em 20 de março de 2022, com muita dificuldade para retomarmos o
contato social, numa espécie de fobia coletiva. Se desejo é o desejo do outro,
como desejar sem outro? Colapso – deu tela azul no mundo, deu tela azul na
vida de cada um e os mais jovens foram os mais afetados.
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Essa circunstância coloca os rituais, ou a ausência deles, em algum ponto da
vida desses jovens situado entre o passado e uma possibilidade de futuro
posta no presente.
Isso tudo dá ao usuário um saber sobre o gozo, que tira o analista de sua
posição de suposto Saber e, por consequência, complexifica o processo de
análise – que depende da fala de quem tem seu laço com a linguagem
comprometido. Ao analista restam a escuta e uma longa espera de que os
laços se reconstituam.
De fato, a estrutura estava lá; com pai fraco ou não, a menina não era psicótica
– não era essa a hipótese do analista. Para ele, o que a levava às passagens
ao ato era o abuso de álcool. E se a origem do abuso era atual, restava-lhe
olhar para o fenômeno e procurar entender o que a menina queria entorpecer
com o álcool e que sofrimento ela procurava mitigar, numa tentativa de
automedicação.
A análise era uma possibilidade de ritual para a jovem – e sem a confiança dela
no analista, não haveria transferência possível e qualquer oportunidade de
balizamento cairia por terra.
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Mas o analista e a menina se falaram por poucos meses. Ou não se falaram
muito. Nesse meio tempo ela quebrou outros vasos, brigou com o pai, perdeu o
ano na faculdade, saiu de férias, faltou mais do que compareceu e teve
embates com a mãe.
Quando o analista e a menina se falaram pela última vez, ela estava acelerada
por causa da faculdade, dizia-se incompreendida e tinha discutido com um
professor que não a deixava exercer todo o seu potencial criativo como
designer de moda - queixa similar à que ela tinha da mãe.
Dias depois surgiu o pai por mensagem de texto. Muito nervoso dizia que a
filha não se cuidava, não tomava banho e não se depilava. Não encontrava um
rumo na vida, segundo ele, que arrematou dizendo que ia dar um jeito naquilo.
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Raul França Filho, setembro de 2022