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Eliana dos Reis Calligaris

PROSTITUIÇÃO:
Ü ETERNO FEMININO

escuta
© by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
2• reimpressão: outubro de 2006

EDITORES
Manoel Tosta Berlinck
Maria Cristina Rios Magalhães

CAPA
Laika Designers Associados,
com foto de Leo Spigariol

PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches

Calligaris, Eliana dos Reis


Prostituição: o eterno feminino / Eliana dos Reis Callígaris-
São Paulo : Escuta, 2006.
88 p. ; 14x21 cm
Bibliografia
Originalmente Dissertação de Mestrado
ISBN 85-7137-239-X

1. Comportamento sexual 2. Feminilidade 3. Prostituição


4. Psicologia Clínica 5. Sexo (Psicologia) I. Título
CDD-155-3

Editora Escuta Ltda.


Rua Dr. Homem de Mello, 446
05007-001 São Paulo, SP
Telefax: ( 11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345
e-mail: escuta@uol.com.br
www.editoraescuta.com.br

acervo
lacaniano
Para Contardo,
Justfor a while ...
NOTA

Na origem deste livro há uma dissertação de mestrado que


defendi, sob o mesmo título, na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, em 1996, com auxílio da CAPES. Um
agradecimento especial vai a Manoel Tosta Berlinck, que orientou
meu trabalho daqueles anos com sabedoria, amizade e
generosidade.
Há dez anos, quando mudei do Brasil e terminava este texto,
meus amigos do peito, Diana e Mário Corso, carinhosamente me
mandavam faxes diários (ainda não tínhamos e-mail), para que a
saudade do meu país não tomasse conta da minha alma.
Quatro pessoas me ajudaram a nunca desistir: Contardo,
sempre pronto para uma conversa, o ausente mais presente que
se possa imaginar, constantemente ao meu lado, me fazendo rir e
pacientemente me amando, mesmo quando meu gaúcho humor
dominava. Ricardo e Ramiro, filhos sábios, que me viram crescer
e fazem parte da minha busca; ofereceram um ..nlhaL�arinhoso_
para minha atormentada curiosidade pela vida. Renato, meu
generoso irmão, me alcançou coragem nos anos americanos e
permitiu que eu conhecesse o mundo dos meninos ("só pela
metade", como ele diz ... ).
Esta dissertação permaneceu nas minhas gavetas (ou caixas)
durante os quase dez anos que passei nos Estados Unidos.
Mas essa permanência nas gavetas não foi inerte, pois a
tese de doutoramento, que defendi no Institute for the Study of
Violence, de Boston, é justamente uma pesquisa empírica e
qualitativa com um grupo de prostitutas da cidade de São Paulo.
A tese, em suma, cumpre uma promessa deixada em aberto no
fim da dissertação aqui apresentada.
A publicação do texto que segue tomou sentido e se tomou
necessária para mim, ao descobrir que o essencial do que escrevi
em 1996 continua valendo e resiste à prova da pesquisa que acabo
de terminar.
SUMÁRIO

Laura: Fantasia de prostituição 11

Andrea: Prostituição como violência 33

Rochele: Uma prostituição realizada 51

Conclusão 69

Apêndice: Feminilidade masculina 71

Referências TT
LAURA:
fANTASIA DE PROSTITUIÇÃO

No caminho para o aeroporto de Guarulhos, um enorme


cartaz me surpreendeu. Anunciava uma peça de vestuário; sobre
o corpo sinuoso da modelo estava escrito Body for sale (corpo à
venda).
Ao ler aquela frase, em letras enormes, pensei que seu valor
publicitário estava no conteúdo verdadeiro e escondido que ela
refletia. Funcionava como se algo extremamente precioso tivesse
sido tomado emprestado do campo da fantasia feminina e exposto
em letras garrafais para que todos que ali passassem, desde o
humilde trabalhador até o rico empresário estrangeiro, soubessem
"a verdade".
Por que chamo essa, certamente ingênua, propaganda de
"verdade"?
Ela pode causar várias reações, mas dentre elas duas me
parecem mais próximas de trazer à tona um elemento relevante
do conteúdo psíquico feminino. Uma é: "Que horror, onde já se
viu colocar à venda um corpo de mulher, isso é coisa de prostituta".
Essa seria a reação mais explícita e freqüente ou, no mínimo,
esperada, pois ela é absolutamente defensiva do desejo de ser
aquele corpo.
Outra reação possível é o interesse pelo objeto que está
sendo anunciado, pois mesmo que uma frase explícita não seja
produzida, o que subliminarmente fica velado é: "Talvez com essa
roupa meu corpo possa mostrar-se à venda". A propaganda
exerceu sua eficácia.
12 Eliana Jos Reis Calhqaris

A mulher que apresenta a primeira reação foge correndo,


como o diabo da cruz, de qualquer aproximação do desejo de
oferecer seu corpo. Já, na segunda reação, ela assimila pelo olhar,
pela leitura de "Corpo à venda", algo que palpita num de..§riopem
sempre reconhecido. mas._� éjsso. quevõut�nt.�ç _§ustentar,
. - . que é
urna das fundações do feminino.
Um homem poderia ter qualquer uma das duas reações,- não
só,_por rechaçD OU desejo pelo corpo exposto, mas por identificaçãÜ
a esse corpo; exatamente na via da feminização que também
pode habitar a mente masculina.
__ /'"'O corpo da mulher sofre de uma tristeza bastante escondida.
Uma tristeza fundada na descoberta de ser diferente do corpo
_1!1:��ç,u lino. Essa tristeza é bastante escondida porque, pelo
contrário, o corpo da mulher pode ser aparentemente radiante,
--enfêitâõo, colorido, bronzeado, torneado, exuberante. Presume­
se que exale alegria e exalte o desejo. Mas, não esqueçamos,
'não é preciso muito para que esse corpo perca a cor, fique cheio
de sombras, sem brilho e aparentando toda a tristeza da sua
existência.
Em ambos os_ .casos a tristeza é um alicerce da construção
- -
ys�q0 c:�:·i�� --��-����a;_ e�s��: C:S)EPº· 'ffo p_ririi eiro, - f�i p�·ssível
· dnblar a tnsteza e erottza-la de uma forma interessante e ousada.
No segundo, a tristeza não pôde ser disfarçada, e a erotização
passa pela demonstração pública de que o corpo não serve
mesmo para nada - se não é possível fazer-me desejável, então
serei feia.
Claro que se trata aqui de uma generalização exagerada,
mas, de certa forma, é o que escutamos na clínica de mulheres
que "dizem" não atrair o desejo masculino, pois não ser atraente
talvez seja uma escolha subjetiva. Mesmo os traços mais estranhos
podem ser acompanhados de uma luz no olhar, urna sedução nos
gestos, urna alegria, que fazem com qµe . esses mesmos traços
estabeleçam, proclamem· ������pgp_i�Jii4��::-�_!a�ji.si. �'",QQj
1outro;, Inversamente, a beleza mais celestial pode fazer brotar
lágrimas a cada gesto, a cada olhar, a cada não sorriso; pode falar
apenas da tristeza do corpo.
Laura: fanlasio Je proslilui�ão 13

Em 1929, Ferenczi escreve:

/,,,--Mas essa agressividade, certamente enfraquecida


/ pela humilhação sofrida quando do conflito edipiano com
,-,, / o pai (angústia de castração), é uma característica do
Í psiquismo masculino, em geral; à mulher, entretanto, só
! lhe resta como meio de combate a beleza, sendo outras
--����
',,,,. características a bondade e o pudor (1929, p. 44) .
Seguindo a afirmação de Ferenczi, o combate da mulher
.....'" . ....'"�·- ·---"·'""· ·•··· -

estaria situado em sua beleza, portanto na sua condição de seduzir,


de atrair pelos sentidos.
Acontece que algumas mulheres parecem ser levadas a··,
reconhecer em seu corpo a via de acesso a ser mulher, e outras,
ao contrário, desconhecem esse "invólucro" das pulsões, como
-;-;� corpo nada tivesse a ver com ÜrfúfpOssívelreãlfzação da
feminilidade. . ... __ . . .. .. ,,_.-
. - -- --Também,-algutiías mulheres poderiam gozar oe=Seucõrp o e'-f'',
outras não. Mas essa distinção já é diferente daquela evocada),l
por Ferenczi, pois escolher o combate da beleza, e portanto a '
sedução, ai_r1da n�o s���i��� . ���°-�����=�e- � _go����e- s�a própria
--
entrega.
A escuta de mulheres na clínica psicanalítica aponta para a
idéia de que a escolha feminina para a sedução (e não para o
pudor), e sua conseqüente possibilidade de entregar-se, estejam
em uma ce� continuidade com a freqüente fantasia de
prostituiçãdf��sa fantasia surge de forma repetida e em variadas .
·
nuances, a ponto de não ser excessiv9-_c:911,§JQyfª:::la,_uma das/
fanta�ias que organizam a sexualidade femininà>
*
**
Laura, 25 anos, solteira, bela e inteligente - perdida. Parece
anúncio de procura de parceiro, e talvez não seja de todo um erro
assim pensá-lo. O anúncio não estava afixado em nenhum lugar
concreto, mas resta que Laura procurava algo que não sabia
especificar. Já havia estado em companhia de vários homens,
não relatava problemas sexuais importantes. Sua vida profissional
14 Eliana dos Reis Calliqaris

se desenvolvia de forma extremamente satisfatória. Tudo o que


conseguia verbalizar era que algo não estava bem. Alguma coisa
faltava.
Certa vez conhece um homem. Sem ouvir a sua voz,
apaixona-se por suas mãos e, ao vê-lo segurar um copo, imagina
aquelas mãos sobre o seu corpo. Não lembra de antes ter tão
claramente desejado um homem. Na adolescência, ela fazia
fantasias de deixar-se captar por homens desconhecidos e de
classe social diferente da sua. Encurtava a saia quando passava
na frente de trabalhadores da construção civil. Ia para o clube
muito cedo, quando só os conservadores da piscina lá estavam e,
displicentemente, deixava seu biquíni escorregar mostrando parte
dos seios. Esse tipo de sedução, com homens desconhecidos e
talvez impossíveis, agradava-lhe mais do que o jogo com garotos
de seu meio e de sua idade.
Retornemos ao encontro de Laura com um homem que
novamente a faz sonhar com a sedução do desconhecido; ela,
pode-se assim dizer, preocupou-se. Na sessão seguinte a esse
encontro, disse ter percebido que, em princípio, o desconhecido
não figurava no campo de um amor possível. Isto lhe fazia supor
que suas fantasias eram extremamente perigosas, pelo risco de
virem a se tornar realidade. Ela sabia que este homem que lhe
parecia impossível (como eram impossíveis os conservadores da
piscina de sua adolescência), ela podia freqüentar.
Essa observação é importante, pois ir para a cama com
homens que ela tinha amado nunca lhe dera a licença necessária
para que suas fantasias sexuais se realizassem. De uma certa
forma, o amor a protegia da entrega sexual. Desta vez, Laura
percebe que é correspondida na troca de olhares e, pela primeira
vez, tem dúvidas sobre ir ou não para a cama com um homem.
Depois de ele ter-lhe feito a corte, ela demora-se muitos dias
antes de corresponder à altura. E, fato importante, é invadida por
uma fantasia que jamais lhe ocorrera, e pensa: "Se eu sair com
ele, sou uma puta".
Digo uma fantasia, embora, evidentemente, a frase se
apresente como um pensamento imposto de tipo obsessivo. É
Laura: fanlasia Je prosliluisão 15

notável que tais pensamentos (mais freqüentes nos homens)


geralmente coloquem como condição uma espécie de acaso que
parece não depender do sujeito. Por exemplo, como ouvia um
paciente homem, quase alucinatoriamente: "Se a conta do dinheiro
no meu bolso for ímpar, vou ter que sair, ir para uma sauna e me
ajoelhar na frente do primeiro homem para servi-lo". Na dinâmica
obsessiva, de fato, a condição impessoal é um mandato oracular
pelo qual uma instância superegóica não só autoriza, mas manda
o sujeito se entregar à sua fantasia.
No caso do pensamento de Laura, a forma é diferente: a
condição colocada (se eu sair com ele ...) depende da própria
Laura. A frase é, portanto, uma fantasia que já precipita sua própria
realização.
De fato, essa frase produz em Laura um efeito de excitação.
A verdadeira ameaça talvez se instalasse caso ela não saísse
com o homem que acabara de encontrar.
A única hesitação em topar seu próprio desejo está na tinta
moral subentendida: ser uma puta não é uma coisa certa. Mas
essa repressão moral é o resultado e, sobretudo, a prova ou a
constatação de que na frase se agita um desejo. Afinal e

:;;��:i0:i·nt.%�:·��!�!�!��::!::o���
Y!Y9.i ..�}�·t·i�·o:t)A •'Pi�-�í-�QB[�,i.i,L.fil.!�t�!!� ia acabam�
transformando-se em culpa moral para nos salvar da realização,
pois de outra forma não teríamos como viver neurotical}leffte; ou =-;-'
seja, desejando o impossível. ( } v êl \.
1..,
--

Laura buscou todas as formas para convencer-se· de�.q_ue---..


qualquer tipo de aproximação seria um grande mau negócio. Mas,
necessário dizer, Laura sempre fora corajosamente encontrar o
seu desejo, e não seria desta vez que ela fugiria.
Passaram um dia inteiro juntos, caminharam pela cidade,
olharam objetos, deram-se os braços, fingiram-se de namorados.
Era evidente, para ambos, que desejavam estar em um lugar mais
reservado e prolongar a intimidade (dos corpos) que havia se
desenrolado durante o dia. Não tinham carro, e Laura mostrou-se
resistente ao uso de um táxi para levá-los a um lugar mais íntimo.
16 E l iana d o s Reis Cal l iqo ris

O homem, de uma forma muito decidida, pega o telefone e aluga


um carro. Esse ato deixa Laura extremamente impressionada;
nunca um homem demonstrara tanto desejo de tê-la nos braços.
Pouco, ou quase nada, sabem um do outro além dos nomes; a
conversa gira ao redor de amenidades e nada "sobre cada um" é
falado: nada de declarações, nada de promessas, nada de trocas
verbais íntimas.
Vão, no carro alugado, para um motel. Laura dispõe de seu
corpo com extrema facilidade, se oferece com liberdade e
indiscriminação. Tudo o que deseja é dar prazer para o homem
desconhecido. A palavra desconhecido é um traço importante da
fantasia de entrega.
Na devolução do carro os dois estão no saguão da
concessionária. É um início de noite chuvosa e fria; sabem que ali
vão separar-se, cada um tomará um táxi, e nada fora regrado
como continuidade da relação. Ele retira do bolso um maço de
dinheiro, e, neste momento, Laura toma um choque e pensa:
"AGORA, ELE VAI ME PAGAR".

Relato esse fragmento da análise de Laura para pontuar


uma série de questões. Antes, gostaria de retomar (dando um
salto cronológico na história de Laura) que esse encontro
transformou-se numa ousada história de amor e sexo. Separo os
dois: amor e sexo, porque no encontro que inaugurou a relação
não se tratou de uma fantasia amorosa que cultivasse a idealização
do outro, mas sim de uma fantasia claramente sexual que não
necessitou (ou necessita) de enfeites espe[ta]culares prévios. O
amor é outro parágrafo desse encontro de Laura com o
desconhecido. Para ela, não foi necessário que uma fantasia
amorosa do tipo "ele me fará feliz para sempre" possibilitasse o
encontro sexual. No entanto, é preciso ressaltar que o amor permitiu
que essas fantasias prosseguissem e Laura (re)encontrasse seus
caminhos de gozo com o mesmo homem . Dito de outro modo, ela
não teve que sumir e nunca mais encontrar o desconhecido. Foi
possível também amar e se deixar ser amada pelo desconhecido,
La u r a : fa n l a s ia Je proslilu isão 17

sem que o amor, mais uma vez, funcionasse com baneira inibitória
do desejo sexual.
Para Laura, a fantasia organizadora do desejo estava sempre
diretamente relacionada com o fato de que o parceiro sexual fosse
um "desconhecido", um homem sem nome ou, como aconteceu
no relato acima, quase sem nome. Evidentemente, cada vez que
ela realizava suas fantasias sexuais, produzia-se um certo pânico,
uma sensação de desamparo, e a única saída da angústia era a
saída da cena, o que era facilitada pelo fato de pouco ou quase
nada saber ou conhecer dos homens com quem ela se relacionava
sexualmente, ou seja, com quem realizava suas fantasias.
Com os homens que amava, ela costumava dizer que "fazia
amor", com os desconhecidos que "gozava" . O amor que ela
permitiu ( ou pela primeira vez teve condições de permitir) que
acontecesse com o mesmo homem com quem "gozava" fez com
que o estado de desamparo não mais existisse.
Utilizarei o caso de Laura como exemplo para pensar a
�on�trução fantasmáüca feminina. O que me interessa é o valor
eróticõ qüé as frases "°Se éü sair com ele sou uma puta" e "Agora
ele vai me pagar" produzem, tanto na continuação da história e
da fantasia, privilegiando este homem como objeto de desejo,
quanto (ria compreensão dessas frases a posteriori), aviV!l!!QQ .Q
_
. ardente encanto de Laura pelo desconhecido.
· . -- Quatro questoe's sao importantes:
• Por que, para Laura, a decisão de conhecer o desconhecido
mais intimamente é permeada de sobressaltos ao redor da
questão que se transveste de moral: "se eu sair com ele sou
uma puta"?
• O pensamento de Laura "agora ele vai me pagar" abre que tipo
de erótica?
• O que pode levar uma mulher a fazer esta fantasia, "agora ele
vai me pagar"?
• Qu!ll é a função dq _gesconhecido nessa ficmtasia?
·í_ . •o ' C()I:po d; ·uma �ulhe� é bastante privado de qualquer
/ significação.A significação para um menino passa, como sempre
· nos lembra Freud, pelo fato de ter um corpo de homem, uma
18 E l i a n a d o s R e i s -C a l l i q a r i s

i anatomia masculina, ou seja, não castrada, ou, melhor ainda,


,1�

\ porta,dora de um pênis que, inevitavelmente, será <> representante


1 l corp gr;eo 19 J�lo.., .
· · ·

t,L"c.�,i Paraê quem e para o quê o corpo feminino e J1.iste?


- · . .• . •
d . •• • •
,

�1 Evidênt ifienr ·qoe á relação com à mãe e a relação


e
com o pai
\ são constmções imaginárias. Mas elas produzem todos os efeitos
q��-i��i'i'.n" u·ma muiher a situar-se sexualmente de forma tão
�çliversa dos homens. Também os efeitos da, distinção anatômica
,. são imaginários, como diz Freud: "... aquilo que-·cõiistitui a/\
·· ··??· ·.. .. . .. . . . .. , . .. . . . ·. . . . . ·· · .· · , . , .. •. , • · · ·,;'.O·,c-.,-·'·w·-��--
.. . .

/ masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecid�)


que foge do alc�nce _qa anatomia" (1933fl 9,J2] , p. 1 4 1 ). . :;;:ç;'..::)
---= -----·- íGi�nina, quaa"do �lha para a mã� na tentativa deê��Óntrar
significantes que a determinem neste ou naquele sexo, talvez se
depare com uma negativa: "Você não foi o filho menino que eu
esperava para me completar". Segundo Freud: "A mãe somente
obtém satisfação sem limites na sua relação com seu filho menino;
este é, sem exceção, o mais perfeito, o mais livre de ambivalência
--
de ,todo!i. OS relacioname11tos buma11os" (i_pjçl.� p. ·4-63}.�-- -
Quando a menina se depara com o pai, ela encontra sua
própria diferença anatômica no olhar que recebe e que pode ser
interpretado como desejante. Já aqui está a contradição: se esse
olhar não for interpretado (ou interpretável) como desejante, a
menina não terá como vir a ser mulher. Mas justamente esse
olhar não pode ser propriamente desejante, sob pena de não ser
mais o do pai, mas equivalente ao de um homem qualquer. Isso
pode começar a nos explicar a necessidade do amor para que a
entrega se torne possível, mas evidentemente, ao mesmo tempo,
isso nos indica que a coexistência entre amor e entrega nª9 é . /
. _ pacífic:_�--- ------· - - ___ . __ _ _ _ _ ... . . ·· - - · · · - · ·
Explico: a procura do parceiro amoroso e sexual sofre dos
efeitos que são inaugurados pela relação com o pai. Talvez
pudéssemos pensar que uma mulher, de uma certa forma, demanda
da relação amorosa muito mais e, ao mesmo tempo, de uma forma
bastante mais difusa do que acontece com os homens. Temos
exemplos desses propósitos mal explicitados pelas mulheres e mal
compreendidos pelos homens na relação amorosa, quando ouvimos
Lau ra: fanla s ia de p rosl i l u i5 õ o 19

nossos pacientes homens dizendo: "Mas o que acontece que não


consigo nunca agradá-la?".
O que uma mulher busca num parceiro é um olhar desejante
. que não seja incestuoso, que não seja anunciador de alguma culpa
· .. '·, ..de babitar esse corpo ,de mlllher que está sendo desejado:
-> -·· Seguindo Freud, . a ame�ça de castração qúe sofre umá
menina é em relação a todo seu corpo, não somente, c omo
acontece com o menino, em relação ao pênis, pois esse ela já
"sabe" que perdeu. A ameaça para as meninas passa então pelo
medo da perda de amor; seu temor se concretiza no medo de
e_erder algo exteriorf ao corpo, ou seja, repetindo, o amor.
/' "Atríbuímôsa êmíiíffiâãde maior quâritídâde de narcisismo; .
/ que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para
\ ela, ser amada é uma necessi dade mais forte que amar" (ibid.,
.. ·
· \p. 162). . .. . . ... . . . . . . . .. ... .. . . . ..
·--�.>-rsse-�únor·r;·ó�i�� -à
�oi�a qual a mulher parece dever sua
· possível significação. E, sem amor, entregar seu corpo equivale a
perder-se. Curioso, aliás, que justamente él p.nJstituta
.. seja chamada
de mulher perdida. ·\
· · " 'ó ��;;'p;re;� iú�cionar como uma sustentação possível e
necessária para que uma mulher possa gozar de seu corpo. A
questão se complica quando c.onstatamos que o chamado amor
entra numa bela confusão com o amor que ela pretendia ter
recebido do pai. Ou seja, é necessário qt1e o olhar �t!,sejm1te. s�
conjugue com o olhar amoroso para que a ordem da significação,
para uma mulher, não seja perdida : Em outras palavras ainda, é
nec,� ssário. sentfr�·se amactá· para se �ntr;g·a:it Por outro lado, o
p��blema é que, se há um amor que deve poder sustentar a entre­
ga sexual, inevitavelmente é o amor do pai. Ora, esse amor prote­
ge demais, pois implica, por assim dizer, a impossibilidade da
entrega.
----=-Isso ilustra outro aspecto bem conhecido da psicologia das
mulheres . O sexo é mais fácil num quadro amoroso, pois só o
amor poderia sustentar a descomposição imaginária que um corpo
feminino sofre durante e depois da relação sexual. Não deveríamos
20 E l iana dos Reis Calliqaris

nos admirar que sejam quase sempre as mulheres que depois do


--
enc�:mtro sexual perguntam: "Você me ama?".
-- -- Laura, quando se encontra · outras vezes com seu novo -
agora já podemos chamá-lo assim - companheiro, vive cenas que
nunca antes poderiam ser admitidas por ela. Certa vez, encontra
o leito coberto de pétalas de rosas ; é uma das cenas mais
românticas que poderia ter imaginado. É suavemente deitada sobre
a maciez das flores, coberta de doces beij os e, ao mesmo tempo,
solicitada a colocar sua boca na mais impura, em termos higiênicos,
parte do corpo de seu homem. Nada mais do que a segurança
amorosa permitiu-lhe avançar fortemente sobre quaisquer padrões
de limites na relação sexual. As pétalas funcionaram como
palavras de amor, o que vem depois é gratuito...
Vou aqui lançar mão de mais um pequeno fragmento clínico
para auxiliar minha argumentação.
Beatriz, há alguns anos inibida com seu corpo que começa a
envelhecer, não consegue mais se imaginar desejável, sente-se
envergonhada com algumas posições quando tem relações sexuais
com seu companheiro de muito tempo. Decide submeter-se a uma
cirurgia plástica, supondo que isso facilitaria sua capacidade de
entregar-se e ter prazer sexual. Depois de bastante restabelecida
e pensando que era a hora de mostrar livremente seu "novo"
corpo, propõe uma posição na cama que, imagina, vai excitar o
companheiro, pois seu corpo fica totalmente à mostra e de frente
para ele. Quando terminam, ele lhe diz: "O que é? Agora que está
de corpo novo decidiu se mostrar?". ..
Como relatou B eatriz em análise: "}\ puphaladidas paJa;râs
dele foi bem maior do que a dor do restabelecimento cirúrgico".
Ela sofre uma verdadeira dor narcisista; esperava ouvir: "Como
está gostosa", "que belo corpo", qualquer menção ao prazer que
suas novas formas pudessem vir a incitar no companheiro. Nada
disso ; ela ouviu a recriminação contida na lembrança de que ela
insistia em produzir desejo, e isso seria proibido. As palavras do
companheiro de Beatriz funcionaram como o anúncio de que ela
deveria sentir-se culpada por ser habitante de um corpo que deseja
desejo.
Lauro: f o n l o s io de p r o s l i l u i ç ã o 21

A maioria das mulheres resiste a confessar os esforços feitos


para se tomarem mais belas e desejáveis. Pintou o cabelo? Não,
é a cor natural. Como está bem, você fez dieta? Não, esse é meu
peso habitual, impressão sua (passou três meses a pão e água).
Tem feito esporte? Não, não faço nada, não sobra tempo (acorda
todos os dias às 6h para caminhar trinta quilômetros). Temos a
impressão de estar ouvindo Chapeuzinho Vermelho colocando
questões para o lobo disfarçado de vovó e recebendo respostas
escorregadias, quando o objetivo final é: "Para te comer. .. ".
A verdade do corpo feminino, ou sobre o corpo feminino,
não pode ser revelada. Estaríamos falando sobre o falso do corpo,
sobre a mentira que, inevitavelmente, ele comporta. Esse corpo
não é seu, estes cabelos não são seus, são {élbricados, f<1.ls_o s:
Estas afirmações desvendam o falo. /Desvendam _ () _A���jo _de_
· produzir desejo. E, para algumas mulheres, produzir desejo é vivido
<.,çõmô aTgõ'iiroibido. _ . - , - --·
�-- -�7Quãnaõ·e como foi proibido pioduzir desejo?
· ""-.. _
....,

/,,, Foi proibido quando, em algum momento precoce de sua vida,


,/

/ a mulher dirigiu seus desejos para o homem "errado", um homem


· proibido, ou seja, para o pai. Para um homem que não seja o pai
talvez ela pense que a permissão está dada. Com esse homem,
ela pode demonstrar seus impulsos menos pudicos, que ficaram
perdidos num passado que teve que ser esquecido (o tempo do
"quero agradar meu pai") . Se o interesse em agradar ao pai tivesse /
sido explicitamente demonstrado, ela teria sido castigada com a
!
perda do amor do próprio pai e possivelmente também com _ ,.�,
. . perda da consideração materna.
--. . '""B'eâtríz éõnsegÜira muito bem fazer a dif�rença entre um
pai proibido e um outro homem, para quem ela podia entregar-se.
Ela foi capaz de mudar de amor. Mas a frase difícil, ouvida do
companheiro, é recebida como uma surra do pai. Lembrando Freud:
"O pai me ama" queria expressar um sentido genital;
devido à regressão, converte-o em "O meu pai está me
batendo" (estou sendo espancada pelo meu pai). Esse
ser espancado é agora uma convergência do sentimento
de culpa e do amor sexual. Não é apenas o castigo pela
22 E l iana dos Reis Calli q aris

relação geni tal pro i bida, mas também o s u bsti tuto


regressivo daquela relação ( 1 9 1 9, p. 237).
Parece que i n evitavelmente uma mulher permanece
aprisionada a esse abandonado olhar paterno e que qualquer homem
pode, de várias formas e em momentos inesperados, lembrá-la de
que está "pecando" (cuidado ! perderás o amor do pai ! ) .
,,/ ·-·-Para algumas mulheres é necessário manter-se sob o olhar
_./paterno, nunca entregar-se realmente, não correndo, assim, o risco
Qt! perder o amor do pai . Permanecem mulheres, mas se
distanciaT11 do pºssível femini�o. Para outras - como Laura talvez
- 'tõrna�s� p�ssí�el . fa�e�- �-s; de seu corpo de uma forma mais
próxima do gozo. Resta saber como isso acontece.
Hélene Deutsch comenta que, em muitos casos, o pai se
distancia da jovem filha quando ela atinge a maturidade sexual; a
moça vive isso como uma infidelidade do pai e se vinga pensando:
"Todos os homens em lugar de um homem" ( 1 944, p. 243). A
vingança também tem significado de infidelidade.
Se uma mulher coloca todos os homens no lugar de um
homem, seu corpo está jogado na disponibilidade, no puro uso e
puro gasto.
Laura tem u111 rasgo de clareza desse lugar que seu corpo
ocupa no primeiro enéÓntro; é um corpo disponível, acessível, que
aceita todas as investidas de seu companheiro. Para ela, situa-se
imediatamente a confusa, mas sugestiva, relação entre essas
fantasias e a prostituição. E talvez exista mesmo uma relação
entre a disponibilidade que um corpo pode revelar e a prostituição.
· · · - Escreve Hélene Deutsch: "A moça resolve, ao menos em
suas fantasias, não sofrer o destino de sua mãe. Deve gozar sua
sexualidade, não ser uma mulher respeitável como a mãe, senão
viver Jivrem�nte, ser uma 'prostituta "' (ibid., p. 242).
' ' ' 'pó�ca� Jov�ns adolescentes nunca fantasiaram seduzir um
homem, com seus ombros à mostra, caminhando ondulosamente
num trottoir.
Quando Hélene Deutsch situa a relação imaginária da filha
com a mãe, devemos pensar que, se a mãe pode retirar algum
praze r de s u a vida sexual , ela também fantasiou o mesmo
La u r o : f o nl o s i o de p r o sl i l u i � ã o 23

e m relação à sua própria mãe. Talvez isso nos explique a cons­


tante insistência das mulheres no fato de que sua mãe nunca go-
- zou: sua mãe é frígida e até já lhe contara que o pai insistia em
manter relações sexuais, mas ela não gostava muito. Aqui duas
questões. "Será que todas as mães são histéricas?". É pouco
provável. E, sobretudo: "Por que as filhas acreditam no discurso
das mães?".
Parece que as mães, sabedoras do que significa ser mulher,
tentam diminuir as perdas de suas filhas mulheres, expressando
que, afinal de contas, a vida sexual não é tão boa assim e que a
filha não precisa sofrer por não estar com aquele homem tão
desejado (o pai). É possível que as mães se defendam assim da
inveja das filhas, inveja que inevitavelmente se reverteria em
· ·l;l.gressividade na convivência.
// As filhas precisam acreditar no discurso matemo, pois é uma
" forma de alimentar a ilusão de uma vida sexual desejável e diferente
da dos pais. Talvez seja a melhor maneira de sair do fascínio que
a relação parental pode causar, e conseguir virar as costas para
esse casal.
Essas considerações nos falam das complicadas redes de
relações imaginárias no triângulo pai-mãe-filha. E me interessa
------ estabelecer qual a diferença existente entre fantasiar não ser como
a mãe "que nunca gozou" e realmente não ser como essa mãe.
_ _ _ ··Lidar com a possibilidade de entregar-se a um homem apenas
, /no campo da fantasia não compromete a significação que, segundo
o imaginário das mulheres, vem do amor do pai. À condição de
que o amor do pai seja protegido com unhas e dentes, nem que
._ _ para isso uma mulher nunca se entregue a homem algum.
· · · -·· · A.Õ contrário, realmente não ser como a mãe que nunca
gozou, ou seja, realmente entregar-se (e, quem sabe, gozar dessa
entrega) é uma escolha que aponta para um caminho mais difícil
ou, no mínimo, em que o risco corrido é maior. Risco, sobretudo,
de perder a significação, em outras palavras, de se perder.
Se o corpo feminino é vivido como tendo perdido algo desde
o início de seu reconhecimenro, o que seria possível ser erotizado?
._ ker�tização te� iníci� ao redor d� um bura'có, dê ui,;i f�Itâ1 O
,. ..
. .. · . ·. · . · · • ·· �-· ·--, •·
.
" , . • . ..,. n· · · . :o, ,:,., •
24 E l iana dos R e i s C a l l iqa r i s

<qJ,1� borclei.:t essa falta, é o corpÔ> O corpo é constituíd()_ ��_ fatias


de carne que vão se desenrolando em círculos ccmcêntricgs.,.ao
__r�_g9x_9_q..espa50 ya�io. Portanto, o corpo feminino: Oú â'rõupagem
desse buraco, é erotizado pedaço a pedaço, fatia a fatia, formando
< __ um conjunto em que todo ele é erótico e ero�izável.
- ' :-�--�·"(Y.acan nôS õiz'qüe "às m�Üie;;;-se t�ma� �;;;; à"iíinã) pois
elas �ãõ'fãiêíf conjuntô: ÃqÜi, -gostãria de-sübvérfoi"õm pouco a
f

formulação e propor que os homens são os que tomam as mulheres


uma a uma, pois consideram (imaginariamente) que possuem um
só �tg_ ,para.,o-ferec�r .e que,_ porta� to, s? p� dem usá-lo a cad�
, -
ve � Ja as mulheres vivem (tambem 1magmanamente) seu corpo -\
·­
cõínõ"'tm todo erotizável e nebuloso ao redor de um buraco que
r

precisa ser recoberto por mil véus. Portanto, elas imaginam e )


atuam formas de traduzir esse todo erotizáveJ do corpo nqma-- ·
cena !)nde seria possível ser de todos os homensJ
, -",,,<:ó - qtrn· ··ê ss·e "'"s ê'f -- âê =rodcrs· -- o-s·· ·ttofüé� s " p e rs e gu e?
· Provavelmente, persegue a pluralidade do desejo dos homens,
que funcionaria como olhar que totaliza o corpo feminino esfatiado,
furm�clg cle_ p�d<1,_ç.9s erotizados. Presumir que o corpo pode ser
de tQdos .Q_S. homen·s (comõ"õi êõi"ios aas pufâs}jêfiií "ã�b�sç_<,!1
pór imaginária que sêja� de um olhar ou de ô1hã:es que devô1;am
à mulher um corpo que não se perderá aos pedaços. A coragem
para encontrar esse olhar exige, inevitavelmente, uma perigosa
entrega. Digo perigosa, pois os resultados nem sempre são
calculáveis.
Entretanto, nessa posição de entrega, talvez a mulher escape
das piores conseqüências da histeria e possa fazer algo interessante
com sua falta inaugural.
A disponibilidade relatada por minha paciente Laura mani­
festa um corpo feminino e não histérico. Esse corpo é vivido como
um todo sem fronteiras e facilmente oferecido. Nada parece im­
pedir a oferta. Mas, inevitavelmente, o fim da cena sexual traz
consigo um desconforto, especialmente para uma mulher como
Laura, que relata dispor de seu corpo com liberdade. O fim da
cena sexual produz exatamente a percepção de que o corpo não
é todo, algo falta. Aqui encon tramos a fronte i ra do corpo femi-
Laura: f anlasia Je p ros l i lui �ão 25

nino que é imposta por algo externo, é imposta pelo corpo do


homem.
A fantªsia de _prosti tuição ("sou uma puta") talvez conduza
uma mulher a se libertãr-da prfrião em
qüé 'a paixão inicial por um
homem - o pai - a colocou. Essa paixão impõe uma divisão
· excludente entre "amor e sexo": se me entrego, perco o amor do
_/ pai ou, então, se amo o pai, não me entrego para ninguém. Não é
só para os homens que se apresenta como necessária a dicotomia
entre a puta e a dama. Será que uma mulher consegue entregar
. seu corpo imaginando-se como a dama do amor cortês? Ou será
. que, para se entregar, ela precisa despir-se do enamoramento
i pelo próprio corpo coberto dos vestidos rendados que alegram
- , (ou alegravam) os olhos envaidecidos do pai? Essa divisão forçada
•·· sugere uma alternativa alienante entre recusar o gozo feminino
-· ou perder-se nele.
// A sâída dessa alternativa parece apresentar-se da seguinte
' 'forma: é necessário trair o pai. Mas o que significa trair o pai?
Freud ( l �),�
----·�--� -�--�-
Não posso explicar a oposição que por esse modo é
levantada pelas meninas à masturbação fálica, exceto
supondo existir algum fator concorrente que faça a menina
voltar-se violentamente contra essa atividade prazerosa.
Esse fator está à mão. Não pode ser outra coisa que seu
sentimento narcisista de humilhação ligado à inveja do
pênis, o lembrete de que, afinal de contas, esse é um ponto
no qual ela não pode competir com os meninos, e que
assim seria melhor para ela abandonar a idéia de fazê-lo.
Seu reconhecimento da distinção anatômica entre os sexos
força-a a afastar-se da masculinidade e da masturbação
m a s c u l i n a , para n o v as l i n h a s q u e c o n d u z e m ao
.. �eS<!!)VOlvimento da feminilidade (p. 3 1 7).
Freud parece situar essa escolha com uma naturalidade quase
biológica, como se estivesse dizendo que dois seres humanos de
olhos azuis produzem filhos de olhos azuis . Não estaria Freud
apresentando uma versão facilitada dessa passagem?
26 E l i a na dos R e i s Calli q a r i s

Esse não é o único momento na obra de Freud em que ele


descreve a transição da fase fálica à escolha da posição feminina
como um processei sem sofrimento e dificuldade. Bem sabemos
que talvez só uma anál ise permita a uma mulher encontrar esse
lugar dito feminino. Certo, Freud, em outros vários momentos,
lembra que essas são apenas considerações ideais e que a
aproximação de uma mulher ao feminino talvez não passe de um
estatuto teórico. Não só muitas mulheres dificilmente exercem
sua feminilidade, mas também, o que é o mais complicado e
patológico, algumas viram as costas para qualquer possibilidade
de vir a ser mulheres/femininas. Adotando ou não uma escolha
homoerótica (não é isso que importa), elas se instalam num
complexo de masculinidade. Hélene Deutsch descreve assim essa
posição: " . . . a atividade da mulher adquire um caráter anormal e
perturbado quando se coloca em conflito com o resto de sua
personalidade, ou seja, com o núcleo feminino. Só então podemos
falar de complexo de masculinidade". Mais adiante, no mesmo
capítulo, ela vai sublinhar que " . . . o complexo de masculinidade
muitas vezes oculta não um protesto mas um temor às funções
femininas" ( 1944, p. 259-97, tradução livre).
Todas essas considerações par ecem importantes para
lembrar que, ao contrário do que parece ser a forma tranqüila
pela qual Freud apresenta a chegada ao feminino, esse é um
processo dolorido e nem sempre bem-sucedido.
Voltemos à necessidade de "trair o pai" para sair da
alternativa entre se recusar ao gozo feminino e se perder nele.
Poderíamos contemplar duas posições para a futura pretensa
mulher, para que talvez pudesse usufruir de sua feminilidade sem
sofrimento neurótico: - -----------.........._
- - _:.-i . ·c;�r qu�--�'m di�--� .pai a amou°:Qual o interesse dessa
' - -Cfe·IíçãT------- ------"-- ----------------- -- - -----..__ _ ___.,,_______,_, ____... j
Aquela que pode crer que um dia o pai a amou, quem sabe,
não permaneça na posição de eterna demanda de ter esse amor
oferecido por outro (ou outros) . É certo que tentar encontrar o
amor que o pai não ofereceu seria ou é uma posição de extremo
L a ura : f a nlasia de pr o s l ilu i s ã o 27

Sbftimento. t_O amor do outro nunca será o do pai e, portanto,


. {'

nunc a parecerá o suf1c1ente ou o adequado. E, m ais importante, o


homem qu e tentar cu mprir esse pedido c a i rá n a s redes
complicadas da etern a queixa feminin a e, portanto, numa cotidiana
frustração de nunca corresponder a um a infindável demand a. A
esse homem a mulher não poderá nunca se entregar, pois ele será
um substituto (sempre insignificante) do pai. :;
� 2. Transgredir a fid�Úd;de prome�ida ao pai e oferecer-se a
outros homens.
P �J�m )ªd 9, 9 ºl�ªr i:l,Q paLfüz da.. m<:>çª :i1-.mª mulher, ,.a faz
crer-se mulher, visto que é por meio desse olhar que ela aprende
su a diferenç a sexual. Por outro l ado, esse olhar também lhe pede
que seu corpo continue intacto (pelo menos, a partir d a experiência
clínica, podemos pensar que, im aginariamente, assim se passam
as coisas para uma menina). É como se a pequena imaginasse
que o pai lhe propõe seu eterno amor, mas pede como condição
que ela renuncie a doar sexu almente seu corpo. Não nos é estranho
o comum desprezo que os pais têm, inici almente, por cada novo
namorado que a filha apresenta.
Uma moça c asad a e com três filhos desse c asamento
resolve divorciar-se; depois de algum tempo sozinha, encontra
um novo namorado. Qu a ndo decidem p a ssar a conviver
m aritalmente, ela pensa ser . correto, apen as como forma de
respeito, visto que é um a mulher adulta, com três filhos e
profissionalmente estabelecid a, comunicar aos p ais su a decisão.
Qu al não é sua surpres a quando o pai lhe responde: "Ah! Agora
que eu pensava que você voltari a para casa".
Como sair desse círculo de fogo que promete o paraíso do
amor paterno, mas pede como pagamento a fidelidade? Fidelidade,
essa, traduzid a em c astidade.
É possível que, para projet ar-se fora desse c ampo amoroso
idílico, seja necessário im aginar-se transgressora, inventar-se fora
do mundo d a lei paterna.
Na história clínica de L aura, encontramos um fato bastante
interess ante: o p ai não media esforços para usar a palavr a puta .
Cad a vez que ele via um casal diferente (por exemplo, urna mulher
28 Eliana dos Reis C a l l iqaris

muito jovem com um homem bem mais velho e vice-versa, casais


multirraciais etc.) a frase saía rapidamente : "Mas é uma puta
mesmo". Para Laura essa frase, de uma certa forma, apontava
para o fato de que na verdade o pai devia gostar das putas, admirá­
las e, por isso, procurava reconhecê-las. Também, quando Laura
era adolescente e trocava de namorado com freqüência, o pai
furioso comentava "Você vai acabar sendo uma puta de rua. .. ".
Laura percebia que, nessa ameaça de um horror futuro, poderia
se esconder algo de um desejo (ciumento, eventualmente) por
ela. Instalou-se assim uma possibilidade de entregar-se sem perder
o reconhecimento do pai, pois é claro, para um ouvido treinado, as
ofensas que o pai dirigi a a essas mulheres, que ele parecia
desprezar, mal escondiam o seu desejo. Por conseguinte, na
fantasia de prostituição, Laura negociava com o modelo de
sustentação do próprio desejo paterno.
Durante a análise de Laura, encontrei-me às voltas com a
seguinte pergunta: nas fantasias de prostituição, não estaria se
tratando de uma identificação histérica com o presumido objeto
do desejo inconsciente paterno? Mas a clínica - j á a do próprio
Freud, desde Dora ( l 905 [ 1 90 1 ] ) até a dita jovem homossexual
( 1920) - nos mostra que o avatar histérico de uma tal identificação
é propriamente um apaixonamento homoerótico pelo objeto do
desejo paterno. A histérica acaba amando a "puta" supostamente
desejada pelo pai. Agora, outra coisa seria conseguir habitar o
lugar das "outras" que seriam desejadas pelo pai.
Não está certo que essa solução seja mais uma perpetuação
do infindável Édipo feminino, pois ela implica, justamente,
reconhecer e aceitar o caráter arriscadamente aleatório do desejo
masculino do pai.
A trama conflituosa na qual uma mulher se encontra em
relação ao embelezar-se talvez seja esta: dever, a cada instante,
sua significação à possibilidade de produzir desejo - sem garantia
de um amor assegurado pelo preço da castidade. Nesse sentido,
a fantasia de prostituição seria uma das janelas para que uma
mulher se autorize a expulsar-se do circuito entre amor permitido
e sexo interditado com o pai.
Laura : f a nla s i a de proslilui5ão 29

/,
,,. _..,, A figura da prostituta tem um efeito poderoso sobre o
,-,-

/ imaginário feminino. Por que a prostituição nasce como uma


f "profissão" feminina?
<-=··-··---Ã�-ê�pHcãçi o··· ;;àrs·- popular seria de que os homens têm
necessidade física de sexo e que algumas mulheres, na maioria
das culturas, decidiram oferecer a essa necessidade um objeto
acessível ao consumo em troca do devido pagamento. Como um
pão que é vendido ao sujeito faminto. A relação comercial fica
bem estabelecida: um necessita e o outro vende .
. Não creio que seja tão simples assim. Difícil não pensar,
dentro dessa matemática simplista, que aquela que se oferece
como um objeto que sacia uma necessidade também está saciando
algo,
Emmet Murphy, em seu livro História dos grandes bordéis
do mundo, diz:
Os onipresentes bordéis de Roma aparentemente
exerciam um fascínio peculiar sobre as mulheres das
famílias patrícias. Para as mulheres de classe superior que
d i s p u nham dos rec ursos necessários foram abertas
algumas casas com plantéis masculinos, mas as socialites
de então gostavam mesmo era de trabalhar nos lupanares
comuns. Segundo Juvenal, a terceira esposa do imperador
Cláudio, Valéria Messalina, cultivava esse prazer:
Che i a de l an gor, ela se estendia nos lençói s
malcheirosos de seu bordel, ocupando o quarto apenas
para ela reservado. Desnudava os mamilos pintados e
afastava as mesmas coxas que haviam dado à luz o bem­
nascido Britânico ( 1 994, p. 35).
O prazer feminino de misturar-se com as prostitutas não é
algo novo e, segundo diferentes momentos da história da
humanidade, conforme os valores vigentes, esse era um hábito
realizável ou não. A citação de Murphy indica que na Roma antiga
as mulheres de famílias patrícias tinham acesso a realizar essa
fantasia.
Independentemente da institucionalização ou não do hábito
(e da fantasia) , crer no amor paterno e trair os ditames do mesmo
30 Eliana dos Reis Ca l l i q ari s

possivelmente conduzem uma mulher a organizar uma fantasia


de prostituição, uma fantasia de oferecer seu corpo a qualquer
homem·, sem escolha, sem regras, sem condiçõ�s. simplesmente
oferecer-se. iSer livre para gozar de seu corpo, sem culpas}
Laura pôderiâ ter frnaginadó que o d i i hêfro que o
i

companheiro naquela noite retirara do bolso serviria para comprar­


lhe um lindo presente, que lhe seria oferecido. Preferiu imaginar
um puro pagamento, em notas, como são pagas as prostitutas.
Certamente essa fantasia abriu um possível campo erótico com
esse homem. Não foi o delírio amoroso que a excitou e levou a
ele, mas sim a :fun.tilll.ia "Você � uma puta:'.
Ela era a sua puta, com ele tudo se tomaria possível . O uso
do possessivo, em seu relato, é aqui crucial. Ele é também banal
nas palavras de amor de um casal. Sua função aparece claramente:
o possessivo é um vestígio do amor que abre a possibilidade de
entrega, pois salvaguarda a significação da mulher. O possessivo
é uma espécie de cafetão lingüístico. Aliás, entre Laura e seu
companheiro se instaurou, a esse respeito, l!JÉa espécie de jogo
de carretel . Ele lhe dizia: Você é uma puta. Essa frase abria um
campo de gozo onde ela gostava de se perder, mas d,e onde ela
mesma voltava, corrigindo-o: "Não, eu sou a sua puta'�.!

TRAN S I ÇÃO

Evoquei uma fantasia de prostituição como passagem


obrigatória para que um corpo de mulher possa se erotizar e
eventualmente - escapando às malhas edípicas - conhecer algo
do gozo que lhe seria possível.
Mas, por sensível que essa fantasia apareça na escuta clínica
e por mais que ela encontre justificativas teóricas, resta que sua
evocação produz de imediato duas - por assim dizer - objeções.
A primeira, que poderíamos vulgarmente chamar de feminista,
diria que uma tal evocação só entrega a mulher à prepotência e à
violência do desejo masculino. Ela não é interessante aqui pelo
La uro : fo n f o s i a Je pro s l i l u i s ã o 31

seu conteúdo ideológico. É mais relevante tentar entender o que


essa protestação de mulheres revela e, eventualmente, confirma
ou contesta quanto à fantasia que Laura nos permitiu escutar. É
esse o tema do segundo capítulo.
A outra objeção é de cunho mais propriamente social. Sem
dúvida, não é minha intenção produzir uma apolQgia da prostituição
real como vida profissional. Ainda menos-tiata-se de imáginar
que a- escolha forçâda dcfêxercício da prostituição coincida sempre
com uma vivência do gozo feminino (a não ser eventualmente,
como veremos, na suposição dos homens) . Escolhi então - será o
terceiro capítulo - interrogar as meninas de rua prostitutas para
verificar se e como a escolha à qual elas chegam forçosamente
não é só o efeito de uma violência social. Ou, melhor dito, não é
só o efeito social de uma violência, mas também, ao mesmo tempo,
uma atuação produzida por condições sociais que na verdade
configuram um drama edípico específico. Trata-se, de novo, de
ver se essa atuação forçada contesta ou confirma a fantasia
escutada no discurso de Laura.
ANDREA:
PROSTITUIÇÃO COMO VIOLÊNCIA

Quando a mulher transgride as leis do Éden e oferece ao


homem o fruto do saber do bem e do mal, o senhor a castiga:
"Multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez, parirás com dor, a
- -- - _ paixão arrastar-te-á para o marido e ele te dominarª",
- -·· seu""iióme ·Kt:V A - HAWÃif: s{gnific�do: viver. Eva viveu
dividida entre dois castigos que lhe atacaram o corpo e o amor:
par irás com dor e a paixão arrastar-te-á. Quem são essas
mulheres, esses seres marcados pela dor do amor, pela dor de
habitar um corpo que se convencionou chamar de corpo de mulher?
Não sou a primeira a colocar a questão, que é tão antiga quanto a
civilização humana. Falar da mulher tornou-se quase uma
perseguição : seja pelo estatuto do nada que tinha este ser
denominado mulher - mas que apesar de tudo falava, o que já
colocava bastante problemas -, seja pelos movimentos das
igualdades humanas que elevou o grupo dito minoria aos palcos
iluminados de uma consideração dubitável .
O movimento feminista é responsável por situar a mulher
como cidadã, com seus direitos e deveres defendidos e
estabelecidos, coisa que infelizmente não era o caso até poucas
décadas. Por outro lado, temos também que refletir - isso está
ocorrendo dentro dos próprios grupos feministas - até que ponto
o efeito de sempre demandar consideração não situou algumas
mulheres em um certo distanciamento dos homens e de que forma
34 E l iana dos Reis C a l l i q a r i s

isso produziu - e produz - vidas infelizes e queixosas. Em outras


palavras, parece que um pedido de reconheci mento - bem
justifiq190 socii;l)m_en�e - veio reforçar aquela demanda para um
' amor paterno, a qual exclui do campo dos possíveis a entrega
· . f�!llinina do corpo. Para ilustrar e discutir essa questão, trarei,
· ma.is. adiante, um importante debate que ocorreu nos Estados
Unidos há mais de dez anos e que continua representativo e atual.
Antes disso, retomo alguns elementos sobre os caminhos que,
penso, a constituição de uma mulher encontra.
Freud, até mais ou menos 1920, estabelecia um paralelo entre
a sexuação dos meninos e das meninas ou, então, explicava como
se dava a sexuação para os meninos e deixava em suspense o
que ocorria com as meninas, dizendo que, até então, os seus estudos
não deixavam claro como as coisas aconteciam para as meninas._ .. ·
A partir de seus textos de 1920, ele passa a esclarecer pontos qúê
abriram u.m campo mais fecundo de pesquisa. 1 . ..
. · .//Para o rrienino, a·visão do corpo áô qual algo falta, o corpo
/da mulher, gera a seguinte conclusão (posterior a todas as teorias
_,,,.sexuais infantis): desse corpo algo foi retirado, o que significa que
� meu também algo pode ser retirado. O menino sai do Édipo
com uma dúvida eterna e uma dívida constante. Dúvida eterna:
vou ou não ser privado como as meninas? Dívida constante: tudo
farei para evitar que isso me aconteça e tudo farei para agradecer
este privilégio. Esse privilégio é outorgado pelo pai poderoso que
castra (castrou meninas), não é castrado e até agora não m�.
castrou .
Para as · meninas, o impasse: tenho algo, mas é menor, vai
crescer. Uma constatação posterior: não, talvez não cresça,
portanto me tiraram, o que significa que todos podem perder. A
menina entra no Édipo (e a questão, como lembra Freud, é de
saber se e como poderá sair dele) com a constatação de que //
�/
- . . . . . ---- ------
��-----�=�� - ------ - - -- ��- -·· ·······---....,,
..:
------

t . i/' Textos como: "Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica


{ entre os sexos" ( 1_9'.�5), "Organização genital infantil" ( 1 923), "Dissolução //
1 do complexo de Ed1po" ( 1 924). _,,.----· ""
.,,.
. -�__.,. /"
Andrea: Prosl iluisã o como viol�ncia 35

todos, por estarem propensos a perder, podem ser chamados de


castrados, inclusive o pai. ____ _ _
- -- Nessa .rápida:·e resumida abÕ�dagem sobre a questão edípica,
importa-me lembrar que a menina - futura mulher - é identificada
e se identifica a partir de algumas gotas de sangue. Digo "gotas
de sangue" no sentido mais figurado possível; como uma boa
metáfora para começar a falar do corpo da mulher. Esse corpo
imaginariamente vivido como faltoso e retalhado. Esse corpo
/ definido inicialmente por uma espécie de imaginária ablação
/ cirúrgica, reforçada pela idéia de uma ferida que - - ---nu_!lç<1_çicatriza
- - ''-
�eriodicament:,_,��lll:1��, , -:
- -- - _./O qüe o texto bíblico nos sugere é: Parirás com dor, teu
Gorpo existe para sofrer. E o amor vai te fazer rastejar. ___/
-------------�,.--------------- -�"_,_______ _____, ._ _, _ ,_" ___,,_ - --.-,. --�--- - - - -
- 'Não sefrata, para nós, de encontrar nesse texto a descrição
\ -----=-
do martírio de nascer mulher, mas sim de entender essa descrição
como se instaurasse ou confirmasse em nossa cultura algumas
fantasias fundamentais, com as quais cada neurótico-mulher pode
fazer algo interessante ou, então, sintomático.
Tempos atrás, participei de um congresso sobre a sexualidade
contemporânea. U ma das palestrantes, que desde o início
apresentou-se como feminist�.il<.!.!gu do mito de Lilith. Lembrou
que, segundo uma tradição���j��Lilith foi a primeira mulher
criada por Deus - do mesmo po que Adão e com os mesmos
direitos. Só que Adão reclamou para o Senhor que essa mulher
era insubmissa, não aceitando deitar-se na posição proposta para
o ato de procriação. O Senhor recebeu as queixas de Adão e
expulsou Lilith do paraíso, castigando-a com a pena de ter mil
filhos por dia. Devido à solidão de Adão, Deus, durante o sono do
único homem no paraíso, retirou-lhe uma costela e criou aquela
que ele chamou "A ajudante de Adão" - denominada Eva - a
qual, aparentemente, era mais submissa.
O comentário da palestrante, apoiada por algumas mulheres
da platéia, foi o seguinte: "Por que foram necessárias duas
mulheres, Lilith e Eva, e Adão foi sempre o mesmo e continua
sendo o mesmo até hoje?".
36 Elian a d o s Re i s Cal l i q a r i s

Ora, justamente é interessante desfrutar dessa duplicidade


ou mesmo multiplicidade que habita a mente e o corpo feminino.
A multiplicidade também é percebida no psiquismo masculino, mas
ela não representa uma fratura "interna", ela tem sempre o falo
como organizador central. Para uma mulher, essa organização -
se é que ela existe - se dá de forma diversa. Segundo Gerard
Pomrnier:
O protótipo do feminino é um enigma, qualquer que
sej a a aparência que o imagi nário tente lhe dar. As
incessantes modificações de sua apresentação encontram
seu fundamento numa ausência de fundamento e sua forma
evolui indefinidamente. Coino o desejo, a feminilidade
escapa às palavras e se mantém em outra parte que n&o
aqll,e]a_aonde se mostr� . A mulher não tem identificação'�
mas s i m iden tifi c aç õ e s ; q u e e xpri mem a falta de'.,­
c o n s i s tê n c i a d o traço i d e n ti fi c atório e revelam a(
impossibilidade de definir um modelo femi n i n o . A\1
feminilidade se resume na apresentação desse ornamentoj
do vazio, na qual ela i nexiste ( 1 987, p. 33). ,,--· ··
Seguindo a citação acima (bem representativa, aliás),)
poderíamos pensar que o feminino se estabelece - de forma
interrompida, como um jogo de velar e revelar - no espaço vazio,
que é produzido como efeito de várias identificações, desde que;
esse espaço não seja preenchido de forma sintomática. _ ___ __
A multiplicidade masculina se opõe diretamente à feminina
na medida em que ela se consolida graças ao fato de que o corpo
feminino é tomado como º--�11}_gma, que repre�ent_ll o goz.Q.. Em
outras palavras, a multiplicidade masculina parece sempre se dar
relativamente a um pólo organizador central, mesmo que esse
seja, no caso, a feminilidade perdida. Nesse sentido, aliás, é verdade
que um discll[SO positivo sobre o feminino é sempre uma fantasia
maséuÜ�a - não pórTsso indigna. de ser éséutada ()U fa.Jsa.
- - - A escuta de homens"ém"áriálíse n ·os ênsi�a sobre o sofrimento
ao redor do fato de ser sempre o mesmo; a luta para inventar um
novo lugar. A possibilidade de ser um pouco diferente é um
despertar de angústia (como disse acima, para quem mantém a
AnJ r e a : P ros f i fuisão como viol ência 37

eterna dívida de não ter perdido nada em seu corpo, ser sempre o
mesmo, é uma forma de não correr riscos).
Portanto, um corpo de mulher, na fantasia masculina, é mais
livre, pode com mais liberdade gozar, é o corpo que não deve
pagar, não está endividado com ninguém. Algo importante aqui se
apresenta, pois talvez o corpo que reveste as fantasias masculinas
sobre a feminilidade não seja um corpo de mulher, mas sim um
corpo que podemos pensar como um hipotético corpo puramente
feminino (diferente de um corpo de mulher). Essas fantasias
imaginam um corpo que se oferece incondicionalmente. Não raro
ouvimos homens que comentam: "Se eu fosse mulher, seria uma
puta". Como se na fantasia masculina o próprio do corpo de uma
mulher fosse a liberdade em se oferecer ininterruptamente. Se
assim fosse, a mulher seria sempre feminina, um eterno vazio,
sem significação própria, pronta a se oferecer ao gozo e às
fantasias dos outros.
No começo dos anos 1990 houve, em jornais e revistas
americanas, um debate que foi apresentado num especial da Folha
de S. Paulo2 sob o título "Sexo, pornô e neopuritanismo". Os
temas ainda criam polêmicas na sociedade norte-americana (e
no mundo) e valem para lançar a questão dos descaminhos criados
quando o poder público tenta dar conta da sexualidade humana
(sobretudo feminina).
O senador republicano · Mitch McConnell, de Kentucky,
apresentou um projeto de lei (um decreto de compensação às
vítimas da pornografia), que permitia que as vítimas de crimes
sexuais (ou seus representantes) entrassem com um processo
contra publicações pornográficas que teriam inspirado os atos de
seus algozes. O projeto de lei visava responsabilizar a pornografia
(livros, fotos, revistas e filmes) pelos crimes sexuais de psicopatas.
Parecia, como escreveu Bernardo Carvalho - escritor e jornalista
da Folha - "que esse senador se aproveitava de uma tendência

2. "Sexo, pornô e neopuritanismo", Folha de S. Paulo, 3 de maio de 1 992.


38 E l i a n a dos R e i s C a l l i q a r i s

americana a confundir as representações com o próprio ato para


tentar impor uma lei que serviria de pretexto para a perseguição
de qualquer obra considerada obscena" .
Esse projeto de lei, analisado pelo comitê judiciário do senado
norte-americano, gerou uma ampla discussão. A The New York
Times Book Review 3 publicou um texto do escritor norte­
americano John Irving4 atacando o projeto de lei voltado para as
vítimas da pornografia e criticando as feministas que saíram em
apoio à idéia.
Um dos primeiros argumentos de Irving é de que o estupro e
o molestamento sexual das crianças, por exemplo, são coisas que
antecedem o aparecimento dos livros eróticos, das revistas e dos
vídeos pornográficos. Outra questão abordada e que tomou o
projeto repreensível é que, moralmente, seria duvidoso deslocar a
responsabilidade de qualquer crime sexual para um terceiro - em
outras palavras, afastá-la do verdadeiro criminoso.
A idéia, ingênua, dos que defendiam o projeto lei é de que, se
parássemos de mostrar estupros no cinema, as pessoas deixariam
de cometê-los na vida real. Seria algo próximo ao pensamento
mágico infantil (se eu não comer chocolate, terei boas notas na
·- escola;·nem preciso estudar).
/'· .. .".lr.\!.ing chega mesmo a fazer uma alusão ao fato de que o
( f.iscisrn�já passou por muitas mudanças de nomes, mas geralmente
equivale a se proihir alguma coisa de que não se gosta e que não
se consegue controlar. Mas certamente o maior objetivo do artigo
era ressaltar, para quem ele chama "minhas amigas feministas",
o absurdo existente no fato de que um movimento (feminista) que
luta também pela liberdade de expressão e liberdade de opção
pudesse apoiar o tal projeto de lei. Causava consternação a Irving
que algumas feministas estivessem ansiosas em proibir a
pornografia, pois ele lembrava que, pouco tempo antes, um livro

3. Publicado em 29 de março de 1 992.


4. Autor de: O mundo segundo Garp, Hotel New Hamp shire, O filho de
Deus vai à guerra etc.
A n d rea : Pros l i l u i�ã o c o m o v i o l ê n c i a 39

femini sta chamado Our Bodies, Ourselves 5 (Nossos corpos,


nós mesmas) estava sendo proibido pelas diretoras de escolas e
de bibliotecas públicas por todo o país. A idéia do livro era propiciar
o acesso das mulheres a informações sobre seu corpo e sua saúde,
e, no entanto, a chamada ideologia feminista por trás do livro foi
considerada subversiva.
Naquela ocasião, muitos escritores e organizações de
escritores escreveram cartas às diretorias de escolas e bibliotecas,
tentando reverter a situação. E, agora, as mesmas feministas
estavam dizendo que as atitudes em relação ao estupro e ao
molestamento sexual de crianças só poderiam ser modificadas se
acabássemos com as idéias ofensivas.
Mais uma vez era a ideologia que estava sendo proibida,
segundo Irving. Ele lembrava que estavam sendo propostos e
instaurados (pela nova lei) tempos de censura; tempos esses que
não são diferentes do puritanismo que povoou os Estados Unidos
na sua origem colonizada, quando uma mulher que cometesse o
adultério era obrigada a andar pelas ruas de sua cidade com a
letra " A" bordada no peito. Por isso, atrás do Senador McConnel,
e s tari a um mov imento que merec i a ser c h amado de
neopuritanismo.
Evidentemente, o texto de Irving provocou uma série de
respostas de mulheres. Relato. a que me parece mais interessante
e que analisarei como um fragmento literário. Andrea Dworkin
publicou na The New York Times Book Review uma .contra­
resposta ao artigo do escritor John Irving. Ela disse que respondia
como mulher determinada a destruir a indústria pornográfica e
também como escritora de livros que acusam a pornografia e a
utilização do corpo da mulher como objeto da pornografia, que é
masculina.
Andrea Dworkin, na época em que escreve esse texto, tem
45 anos. Conta que durante sua adolescência trabalhou como babá.

5. Boston Women ' s Health Colecti ve, 1 97 5 , S i mon & Schuster. Edição
revisada em 1 992 e 1 996.
40 E l i a n a J o s R e i s C a l l iq a r i s

Fala que em qualquer casa de classe média era possível encontrar


livros sujos - nas prateleiras mais altas, subindo em direção a
Deus, geralmente escondidos atrás de um vaso de plantas. Os
livros costumavam ser Ulisses, O Trópico de Câncer e O amante
de Lady Chatterley. A escritora lembra que mesmo aos 1 5 ou 1 6
anos percebia que algo estranho havia nessa intersecção especial
entre a arte, a lei e o sexo sob a rubrica de obscenidade.
Enquanto isso, sua vida como mulher em tempos pré-femi­
nistas continuava. Ela pensava que era um ser humano com to­
dos os relativos direitos. Mas, antes que tivesse passado muito
dos 1 8 anos, foi atacada sexualmente três vezes. A primeira vez
aconteceu quando tinha nove anos; contou aos pais, os quais, para
protegê-la, por bem ou por mal, não chamaram a pol ícia. Aqui,
como ela se expressa, "valeu a questão do patriarcado" (sic, sem
outra explicação). A segunda vez, foi espancada e estuprada por
dois homens; quando ela estava quase à beira da morte, um de
seus agressores, incentivado pelo outro, mordeu repetida e per­
versamente sua genitália. Não contou a ninguém; estava traba­
lhando para um grupo pacifista. Na terceira vez, aos 1 8 anos,
tinha sido presa por participar de uma manifestação na ONU para
protestar contra a Guerra do Vietnã. Na prisão sofreu brutalida­
des de dois médicos. Penetração forçada com um espéculo: por
1 5 dias teve sangramento vaginal . Sua experiência foi relatada
em todos os jornais, mas os médicos não receberam qualquer
punição.
Ela diz: "Perdi a fala. Fui ferida mais do que tinha palavras".
Durante um ano deixou o país. Voltando, encontrou-se sem
casa, pobre e ainda sexualmente traumatizada. Qual foi o caminho
escolhido por Andrea Dworkin para seguir vivendo? Aqui repito
suas palavras: "Aprendi a trocar sexo por dinheiro. Passei muitos
anos nas ruas, vivendo uma existência miserável.. . Pensava que
eu era realmente uma mulher-durona, durona-calejada, durona­
desesperada, durona-amendrontada, durona-espancada por
homens sempre, virada de todos os lados, inclusive de cabeça
para baixo" .
A n d r e o : P r o s l i t u i s ã o c o m o v i o l ê n c ia 41

E outra vez, ou pela segunda vez, Dworkin perde a fala -


fica muda: " . .. fui agredida, espancada, e torturada alguns anos
pelo meu próprio marido".
Levada por seu marid o ao méd i c o , quando e stava
machucada, arriscou pedir ajuda. O médico disse que poderia lhe
dar uma receita de Valium ou interná-la. Tentou fugir e de novo
pedir ajuda. Foi mandada de volta várias vezes (por amigos,
parentes, polícia etc.). Os vizinhos ouviam os gritos, mas ninguém
fazia nada. "Não havia proteção", ela diz. E aqui transcrevo outra
frase de Andrea, que parece interessante ser lembrada mais
adiante : "Eu cheguei ao discurso debaixo de um homem,
atormentada e torturada. Eu cheguei ao discurso debaixo da
brutalidade de milhares de homens. Para mim a violência do
casamento foi pior que a violência da prostituição. Os homens
vivem a pornografia".
Dworkin acrescenta que, em seu trabalho de ficção e
a-ficção, tenta dar voz ao protesto contra o poder que é peso
morto sobre você, punho e pênis organizados para mantê-la quieta.
A escritora pensa que: "Defendendo a pornografia como se fosse
discurso, os liberais estão defendendo os novos escravos. A única
ficção na pornografia é o sorriso da mulher".
De que nos falam esses artigos? Relatei ambos, parcialmente,
mas o mais fidedignamente possível, e sem comentários, para
que o leitor possa ter uma idéia clara dos fatos, independentemente
das considerações que proporei. Oportunamente, utilizarei mais
algumas frases dos dois escritores que me parecem importantes.
Uma paciente comentava ter muitas amigas pelo mundo
afora e, portanto, receber muitas cartas e e-mails em que lhe
diziam: "O mercado de homens está fraco". Ela se perguntava
"O que está acontecendo que os homens não ouvem o eco do
nosso discurso?".
É possível que as mulheres não estejam podendo escutar
algo do seu próprio discurso. Parece que a separação dos gêneros
ou dos grupos, grupos dos homens/grupos das mulheres, não tem
conseguido muito mais do que colocar o grupo reivindicador - o
das mulheres - na posição de culpar o outro grupo - o dos homens
42 E l i a n a dos R e i s C a l l i q a r i s

- de todos os males (se é que existem . .. ) que envolvem o ser


mulher. Talvez os homens estejam somente escutando o eco desse
discurso queixoso e querendo sair do lugar de alvo de uma violência
projetada.
Na mesma época em que acontecia o debate entre Andrea
Dworkin e John Irving, a revista Time 6 apresentava um texto
interessante de N. Gibbs, sobre o back lash, expressão que poderia
ser traduzida como o retomo do bumerangue ou o retomo do
golpe. Tratava-se do back lash do movimento feminista. Nesse
texto era citada uma frase dita por Rebecca West, em 1 9 1 3 : "Eu
nunca fui capaz de encontrar precisamente o que é feminismo.
Eu só sei que as pessoas me chamam de feminista cada vez que
eu expresso sentimentos que me diferenciam de uma dona de
casa ou de uma prostituta".
A frase é bastante reveladora, pois, por um lado, nos fala de
uma das divisões que habitam a subjetividade das mulheres -
dona de casa e prostituta. Por outro, declara que ser feminista é
falar de um lugar diferente. Assim, a questão que importa é mesmo:
o que seria ser uma mulher que ocupe um lugar diferente dos que
são propostos pela divisão entre dona de casa e prostituta?
Rebecca West propunha que a feminista ocupasse esse lugar.
Talvez seja possível que o ser mulher (diferente da alternativa
entre dona de casa e prostituta) não seja uma identidade, um lugar
único e fixo. Ser mulher, assim, tomar-se::ia.1 1m� bandeira que
-
acena para a vida�etoma aqui a feminilidade vivida como um · i
espaço que pode p?êencher-se "ao som · · das ondas", num ir e v-- ·tr )
de identificaçõ��
_ Tôdos coíÍhecem esta frase que habita él,_.ç.ultura popular:
("Na sociedade uma dama, e uma puta na cama")1 Mas, natural-
mênte, a dupliêíâadê feminina nãó é binária; elatfima multiplica­
ção de divisões infinitas.
O que envolve o lugar de dama, o lugar da dona de casa ou
mesmo o lugar de mãe? Envolve a posição de sacrifício, de doação,

6. 9 de março de 1992.
A n Jrea: Pro slilu isão como v iol ê n c i a 43

do semblantear, do aparentar virgindade mesmo chegando da


maternidade com um filho nos braços. Envolve uma espécie de
g r, t
:::!'.â�::� � :::!r;.
, �r:
� :��!�!t:s!
('""�êífrõfadá) em foúmeratidentificaçõ���
(�;�!! �=�v:�-
- - • ' ' . , - - -·
-
- -
Da més rúifoIT11a, - a·p�ta pode''i�r sagrada e (mesmo sem
f 0

decretos simbólicos específicos) aparecer como intocável para


muit�s homeni)
,/'/ A mãe pode ser objeto de um desejo sexual específico, não
/necessariamente incestuoso: como já ouvi homens comentarem e
/ pacientes mulheres confirmarem, a gravidez também ostenta a
1<._,_QLova de que 9 c:or,p9 f<:>i entregue, e portanto Sé:_�ll:Ê gis_poniYel,
.,,--- - -- - Freud, ��'.:!!p�t i e�.-�ieççia.ldt.§.c.ullw,���� - ­ - _
/ homens" ( 1 9 1 O, p . 1 54) lembra o conflito que um menino vive ao
i saber, de uma forma mais clara, como uma relação sexual
\ acontece: ele acaba concluindo que entre sua mãe e uma prostituta
/ não existe mt:1itct c:iifer�nça,__pq_i� _ as duas }a_��J!l <! rn�_s_rn� _f.Q!fül-. f­
\,..;fE:ssâ'c·õ'õêfosão é a origem de um,Úingíisdâ ao longo de sua vida
J por desejar sexualmente e amar a mesma mulher. Parece, então,
/que a divisão entre a puta e a dama também está presente na
L antasia masculina, o que, mais uma vez, não nos permite pensar
/ que seja a única divisão. Em geral, é sempre melhor pensar em
,(

1, termos de multiplicidade e n�o apenas de duplicidade no que


-- -, _f_Qncerne às inúmercts fa11_t íl�_ict� q:µe_Q9.Y.:9A!!! . ª mente humana. --,/'
- -- -· 'Aincfã'i-eferénte à relação da mulher com- seu prõprtcrcôrpo,
Freud, ao longo de todo o texto "O tabu da virgindade" ( 1 9 1 8
[ 19 1 7]), lembra o quanto a perda da virgindade é vivida como um
ato sanguinolento por uma mulher, não só no sentido do cor,po,
mas porque envolve uma injúria narcisista que decorre da
destruição de um órgão. Essa injúria é representada, de forma
racionalizada, no reconhecimento social de que a perda da
virgindade leva à diminuição do valor sexual. Também é importante
lembrar o quanto o defloramento levanta a reação arcaica de
hostilidade para com o homem.
Essa reação de hostilidade nada mais é do que uma hostilidade
arcaica, como disse antes, relativa ao pai que, imaginariamente,
44 E l iana dos R e i s Calli q ari s

foi aquele que lhe retirou, ou não lhe concedeu, um pedaço a mais
de carne, um pedaço que o pai ainda lhe está devendo.
Ferenczi escreve:
/ ( . . . ) a condição prévia do primeiro gozo sexual plenamente
feminino é j ustamente uma lesão orgânica: a ruptura do
hímen pelo pênis e a dilatação brutal da vagina. Suponho
que essa lesão, que originalmente não traz gozo sexual ,
acarreta, secundariamente, o deslocamento d a libido sobre
__ a vagina ferida ( 1 929, p. 43 ).
No entanto, a lesão não seria suficiente para deslocar a libido
sobre a vagina ferida, mas a vagina ferida é a ressignificação de
uma outra lesão que a fez mulher, que a fez reconhecer-se diferente
do seu semelhante homem. O que tento pensar é o seguinte: como
essa ressignificação pode ser sintomatizada ou usufrµ_ída.
a
É estranho que p�ópda Àndreá bwÓrkin não se releia e
não perceba com que persistência ela procurava atrás dos
armários, perto de Deus, os livros ditos pornográficos de seus
patrões (clássicos como Ulisses, por exemplo ... ).
Quiçá pretendesse lê-los para poder cada vez criticá-los e
colocar-se como a virgem indeflorável. Ou, então, como a ex­
virgem deflorada pelo homem canibal. Toma-se necessária uma
ressalva. Nada do que estou tentando apontar vai no sentido con­
trário a uma luta ferrenha contra a violência. A população femini­
na realmente sofre de constantes ataques e violências sexuais
nas ruas do mundo inteiro. Mas permanece a constatação de que
exatamente os EUA, o país ocidental onde a bandeira do moralis­
mo e do neopuritanismo é mais sacudida, é um dos países com
maior índice de violência sexual (embora o valor comparativo do
índice seja problemático, pela alta percentagem de violência
que são denunciadas e registradas), sendo que, nos países onde
não há censura em relação à pornografia (como os países nórdi­
cos ou a Holanda, por exemplo), o índice de violência sexual é
próximo a zero. Essas observações levam a pensar que talvez a
maneira de ataque à violência sexual não seja a supressão da
pornografia.
A n d rea : P r o s lilu i � ã o c o m o v i o l � n c i a 45

Retornando à escritora e a suas declarações, que, repito,


são lidas como um exemplo literário - penso que é assim mesmo
que ela deseja ser lida - devemos levantar um ponto mais sutil.
Por que tantos sofrimentos no corpo? Dworkin foi atacada
sexualmente três vezes; como conseqüência, segundo ela,
embrenha-se no mundo da prostituição e, finalmente, encontra
um marido que a espanca. Teríamos que ser bastante ingênuos
para tomarmos todos esses fatos como coincidências. Vamos
tentar dar uma segunda volta. No primeiro ataque ela tem nove
anos, relata o acontecido aos pais, esses não tomam qualquer
providência, "vence o patriarcado" (diz ela). Essa frase se engata
a um certo convencimento de que existe uma guerra entre os
gêneros desde a mais tenra idade. É como se Andrea necessitasse
determinar quem vence e quem perde, ocupando portanto o lugar
da vítima, o qual, obviamente, não é privado de gozo.
É o pai quem vence, é ele quem permite que meu corpo seja
lacerado e, mais do que isso, talvez ele goze desse fato mesmo.
Não deixa de ser uma das leituras possíveis do gozo do pai (tanto
para os homens como para as mulheres), ou seja, a suspeita de
que ele goze do poder de castrar as meninas e ameaçar os meninos,
portanto, que goze de meu corpo oferecido ao sacrifício. Não é
raro escutar na clínica fantasias de punições físicas pelo pai
chegando até à crucificação. Falarei mais adiante desse pai feroz
no que se refere às mulheres.
No segundo ataque, o fato de Dworkin pertencer a um grupo
pacifista impede que ela faça uma queixa. O evento deve ser
esquecido.
O terceiro ataque vem do social. É presa e os médicos da
prisão a violentam com o espéculo.
A prostituição é visitada como uma possibilidade de que o
seu corpo se endureça a partir de suas próprias mãos. Dworkin
elege a prostituição como uma retomada de poder; nesse momento
de sua vida é ela e não os "outros" quem decide como seu corpo
vai se endurecer, se oferecer, se maltratar, se punir. Mas esse
mesmo corpo volta às mãos do marido e mais uma vez é um
corpo maltratado.
46 E l i a n a Jos R e i s C a l l iq a r i s

Os sofrimentos por ela relatados são dignos de consternação,


mas o que me interessa, como já disse, é tomar o exemplo como
literário e analisá-lo à luz da psicanálise.
Talvez seja mesmo com a vitória do patriarcado que uma
menina se resigna ao seu corpo privado de um pedaço de carne
que parece ser tão valorizado . Sim, venceu o pai, agora pode­
mos seguir a luta. Na verdade não existe luta nenhuma, mas
apenas uma tentativa de apaziguamento do que "insiste", pelo
lado da menina, em parecer uma luta de forças, quando não
com a mãe, diretamente com o pai. A mãe, muitas vezes, é a que
dá em herança essa falta no corpo pela qual a menina reclama,
como se a mãe não tivesse sido capaz de fazê-la perfeita. Consi­
dero (e esse é apenas um parênteses sobre um tema que merece­
ria maior digressão) que quando a menina pode dirigir-se direta­
mente ao pai, na sua "luta", terá mais chances de resolver suas
queixas.
No segundo momento, Dworkin conclui que tudo isso deve
ser esquec i do, momento de descanso. Vamos esperar a
adolescência para voltar à carga da queixa. E essa retorna no
terceiro momento. A queixa é depositada no social que impede a
mulher de alcançar o que gostaria (lembre-se do ataque onde os
médicos a machucam). O social é responsabilizado pela dor de
ser mulher. Aqui apenas uma pequena observação: que alívio para
os pais que a adolescência introduza um pouco de queixa dirigida
ao mundo fora das paredes da casa...
Últimos momentos do relato: emergem a prostituição e o
marido que espanca. Andrea diz: "Perdi a fala. Fui ferida mais do
que tinha palavras".
Por que uma mulher pode chegar a ficar sem palavras? O
que dá acesso à palavra?
Freud, no início de sua clínica, ouvia como verdadeiros os
relatos de sedução que suas pacientes diziam ter sofrido na
infância. Apesar de, mais adiante, ter verificado que esses relatos
faziam parte das fantasias das histéricas que inauguraram sua
clínica, n ão deixou de escutá-los, poi s os respeitava por
expressarem um dos nós da angústia feminina.
A n d re a : P r o s l i l u i s ã o c o m o v i o l ê n c i a 47

É uma angústia que se origina no desamparo produzido pelo


saber feminino de que o pai também é castrado. Essa descoberta
acarreta temor pois; sendo o pai castrado, sua força para proteger
está (i maginariamente) diminuída. O que protege a menina, o que
a ampara inicialmente, é sua constante tentativa de apontar que o
sujeito que ela deseja (o pai e, por conseqüência, os outros homens
com quem cruzará na vida) não é digno do seu amor. Crendo que
ele não é digno, ela se protege de ficar presa nas malhas desse
amor infindavelmente: não me deixarei pegar. Esse seria um
primeiro movimento imaginário da menina (mulher) em relação
ao pai, movimento que, caso estabelecido, impedirá radicalmente
de inventar o "feminino".
O pai não é digno do seu amor pois é um sujeito sanguinário
que a marcou diretamente no corpo. E, por outro lado, não é
suficientemente potente para protegê-la dos males da vida. Essa
é a fantasia que coloca a mulher de sobreaviso no que se refere à
violência sexual. Quando ela é temida além da conta pelas
mulheres, quando é fantasiada e antecipada com ojeriza e repulsa,
é que ela é a revivência de uma violência já imaginarizada (violência
do pai sobre o corpo que a fez mulher no imaginário da castração).
Talvez essa crença e esse temor se traduzam no que Dworkin
diz: "A utilização do corpo da mulher como objeto da pornografia
que é masculina". A pornografia é vivenciada como o estupro.
Se uma aposta ou fé incondicional na violência dos homens
for o que agita o encontro sexual, o encontro será sempre violência.
O sexo será temido com muita angústia, pois ele seria a ocasião
de reviver o sanguinolento castigo divino (parirás com dor, tua
ferida nunca se cicatrizará etc.) que substitui e representa, ao
mesmo tempo, a violência paterna. É a repetição do que já ocorreu
imaginariamente no corpo, sem possibilidade de erotizar o fruto
da violência (o corpo feminino). Aliás, trata-se de uma insistência
mais do que de uma repetição.
Desde essas considerações, retomemos a pergunta inicial.
Como uma mulher poderia sair do Édipo? Deixando de ser a filha
queixosa do pedaço de carne que lhe foi negado ou amputado
pelo pai . Se a última tentativa de relação com os homens, na vida
48 E l i a n a d o s Reis C a l h q a r i s

de uma mulher, é o encontro com u m sujeito violento, parece que


essa mulher ainda não deixou escapar da memória o pai feroz.
Nesse caso, o encontro com o desejo masculino só pode levar
essa mulher a lid�r com seu corpo sob a forma de carne cruenta
e profanada (é só para isso que ele me quer).
O relato do texto de Dworkin é exemplar de uma forma de
constituição da fantasia de muitas mulheres; por esse motivo é
interessante situá-lo em momentos.
A queixa ao pai ( vence o patriarcado) é o exemplo da queixa
infantil e precoce.
O silêncio pacifista tem a mesma função que produz a
latência na vida dos sujeitos (do sexual eu nada quero saber).
A seguir, a responsabilização do social pelos males do mundo
(momento adolescente na vida de cada um).
_ _ Enfim, a prostituição como única saída - com o objetivo de
· endurecer o corpo com as próprias mãos - e, como desfecho, o
encontro com o marido espancador, que só pode ser lido como o
_ retorno às mãos do pai cruento do começo.
---Que, nessa altura, a prostituição surja como forma de violência
à qual forçosamente ela se submete - segundo seu relato - por
razões de sobrevivência social, confirma nossa leitura, pois a
prostituição de Andrea aparece como a atuação direta do que se
repete desde o começo em sua vida: a violência .paterna_ nup.ca _ ·­
ultrap��-gcia . A atuação nesse caso é atuação da mesma
necessidade psíquica que comanda a fantasia de Laura, com a
"···w•--• • """••" •

diferença de que se trata aqui, para Andrea, de uma atuação sem


valor erótico, sem a fantasia erótica que parece ter se tornado
possível para Laura. A prostituição de Andrea tem o mesmo
estatuto, para clareza, do que um masoquismo que se resolveria
em bater eternamente o joelho nas pernas das mesas. Ela é
exemplar de um dos dois fracassos possíveis da feminilidade, que
são, por um lado, a i:enóncia ao_ êorpü reáüzada pela virgem, e,
por outro, uma entrega sem significaçãQ que só pode s�r ,.yjyi<!ª- _
como horror, DworkirÍ inventa Üma saída final que parece ser
uma síntese desses dois fracassos do feminino: a figura da virgo
reivindicadora, que se torna a vocação de sua vida.
A n d rea : D r o s l i l u i � ã o c o m o v i o l ê n c ia 49

De virgens, prostitutas ou cada mulher, nos falta pensar na


virgem. A figura nos chega diretamente da Virgem Maria.
As mulheres inaugurais foram expulsas do paraíso. Como
se não bastasse, Eva conduziu Adão em sua transgressão . É
possível que para as mulheres seja necessário um passo a mais
do que permanecer nesse único lug;:i.r, ,o �e tra,qsgressão . Na
vivência de sua multiplicidade, as mulheres encontram a virgem:
aquela que está acima dos desejos carnais e tem o amor do pai
como seu único caminho de reconhecimento . Eis a nossa virgem:
·âquela que ama o pai sem pedir um gozo sexual e, como prêmio,
ganha um filho.
·----Agora, o que dá acesso à palavra feminina, certamente não
é só o temor e a revivência da violência. Mas tampouco é a
virgindade. Pelo menos, não é só isso.
Precisamos aqui lembrar que, ao voltar-se de costas para a
mãe e defrontar-se com o pai, a menina encontra um problema: a
única i dentificação oferecida pelo pai é a identificação ao falo, o
que, para ser mulher, ou melhor, feminina, não basta. A saída é
buscar amor, ou seja, utilizar-se de todas as armas (colhidas da
mãe) para obter o amor paterno: já que não posso reivindicar ou
preservar o falo (aqui confundido com pênis), V}?.� pedir amor.
Nesse caminho, surge a hipótese de poder a�àr Ô pâie ser
amada por ele como a virgem, aquela que ama e aceita o amor do
outro sem reivindicar, mas fazendo uso do espaço amoroso como
de um espaço de filiação e, portanto, de identificação. O �sp_�o
qll�
. p�DJlitirá que ela não perca as palavras.
Insisto nó "amai- e se dcfüCll.(:�üíâC; - pôis os que trabalham
na clínica psicanâlítica escutam o sofrimento de suas pacientes
mulheres em se deixar i).mar, como se esse exercício, o de se
· ciê'{�ir,·a�ar, signfrica;;e ;ã� só consentir que um dia seu pai as
amou, que não quis apenas violentá-las, mas ----tall!J2tm
--- gue outro
- ---· ·-- -
homell!.P, Ode afl}�:la�,- �lém do pai.
Mas nem só de amor vivem os homens e as mulheres.
Como poderia uma mulher ter acesso ao gozo sexual senão
cada vez lembrando que seu corpo é considerado feminino e
desej ado por ser visto como amputado? Se ela não estivesse
50 E l i a n a Jos Reis Calliqa,is

constantemente revivendo sua castração, não poderia aceitar .


oµtro corpo em contato com o seu. . - _'
Revi ver a castração, fugir parcialmente do recalque é deixar
que seu corpo seja atravessado, como j á foi uma vez, pela
"violência" masculina. Pois também foi essa violência que a fez e
faz mulher. É o lancinante olhar do desejo masculino que marca o
·· Cúrpo f�miiimoc��O difere�te. Ê a pornografia que- despe OS
(\éus do des�j!Ye que pergunta "o que queres mulher?". ,,
. ...,, . . . . ' ·.. .• '
:�� -. --'�-,.- 1;.,.,,,,._ _ ,,,.. .,,_=.,.,_, -..,.
.,_

:1� :'r'-Aqúi yc1.le recordar o que avancei anteriormente sobre o


· difícil equilíbrfo entre a entrega sexual e o amor. Uma fantasia
pôde se realizar, no caso de Laura, sem o amor como condição
prévia e pareceu poder vir a se manter e estender graças à
invenção, por exemplo, de retóricas particulares do amor. De
qualquer forma, é o ser amada que permite a uma mulher não
sofrer a violência interruptiva que o ato sexual situa. Talvez
Dworkin não tenha tido condições de escutar "o que queres
mulher?". É possível que descobrisse que de um homem também
pode-se querer amor. O amor (aquele mesmo que, apesar de ser
difícil reconhecer, um dia o pai lhe dirigiu) por si só não possibilita
a palavra, mas também sem ele a entrega é muda. A 2._alayra
f�_111i11ina.v em da impossível coabitação dos dois, amor e ent rega.
Andrea se posiciona de forma tão direta do lado da entrega que a
violência chega a ela na sua mais pura crueza, muda e sem amor.
É o que ela chama de pornografia que permite a um homem
navegar entre a virgem e a puta e gozar do corpo daquela que ele
,ama. É na p ornografia que o belqdo desejo pode enc_qntrar-se,
não se{ recalê'âdó, ·escondido e desse esconderij o lançar chagas
que só servem para queimarmo-nos uns aos outros, homens e
mulheres. ,., ,
,,.-·---Tal;e·;-Aíi"'d rêrtÕ;orkin e John Irving estej am os dois
lembrando que a pornografia está em cada um de nós, nos llQmen1;
e nas mulheres.
Que a pornografia é a apresentação corriqueira do fantasma
que anima nossas vidas sexuais, não é necessário ser psicanalista
para sabê-lo. Os fantasmas ou passeiam nos nossos sótãos imundos
e podem sair à noite ou, então, sairão à rua assustando aqueles
que ainda não os reconheceram.
RocH ELE:
UMA PROSTITUIÇÃO REALIZADA

Rochele tem 1 3 anos, é filha de uma prostituta que, ao


engravidar, teve seu projeto de abortar impedido pela irmã mais
velha. A proposta desta irmã era que a gravidez fosse levada a
termo e que, no final da gestação, o bebê lhe fosse doado, já que
não tinha filhos e desejava ter um.
Quando a menina nasce, a mãe desaparece e a tia toma o
lugar da mãe de Rochele. Essa tia, quando Rochele tinha cerca
de 9 anos, adoece e a menina passa a morar com outra tia (também
irmã da mãe), casada e com filhos.
Rochele é tomada como mão-de-obra gratuita. Deve trabalhar
nos afazeres domésticos, cuidar da casa, das roupas e dos ditos
irmãos, com algumas restri ções: não pode servir-se livremente da
dispensa nem da geladeira, apenas quando for autorizada. Não
tem permissão para sair de casa. Rochele reclama de cansaço e
de fome, e a segunda tia - terceira mãe -, quando a menina,
certa manhã, ao acordar-se tenta sair da cama, diz: "Não. Tu
estás muito cansada. Então permanecerás na cama até que teu
cansaço passe."
Aqui a Cinderela não é impedida de ir ao baile, mas deve
permanecer na cama. Ao que parece, o fato de que o descanso
solicitado pela tia tenha sido na cama não será sem conseqüências.
Findo o dito descanso, Rochele foge e passa a vagar pelas
ruas de Porto Alegre. Permanece dois dias na frente de uma
52 Eli a n a Jo, Reis Cal l iqa r i s

escola com o nome bastante sugestivo: "Instituto de Educação".


Uma das estudantes, adolescente também, leva Rochele para
casa. A mãe da estudante transmite a situação para as autoridades,
solicitando a guarda da menina.
As tias de Rochele são localizadas e entrevistadas: entre
ressentidas e aliviadas, não insistem muito para ter a menina de
volta.
Dois fatos são importantes para a história dessa moça nesse
exato momento de sua vida.
O primeiro é que as tias trouxeram as fotos da primeira
comunhão de Rochele para demonstrar à psicóloga que as
entrevistava o quanto tinham investido na menina: "Até o vestido
da primeira comunhão nós compramos, ela que era uma mal­
agradecida e, de qualquer forma, já tinha os maus hábitos de roubar
e andar com homens casados".
Ao longo do processo de entrevistas, Rochele escreve uma
carta bastante carinhosa para as tias, que moram numa cidade
próxima a Porto Alegre, dizendo que tem saudades e que gostaria
muito de revê-las. Elas não acreditam que a carta tenha sido escrita
por Rochele e respondem: "Para nós tu morreste. Vamos rasgar
as tuas fotos." Ou seja, tanto a prova de que algo foi transmitido,
quanto o fim desse algo, se é que existe, passa por uma foto.
Uma foto podia servir como prova de que o vestido fora comprado.
Da mesma forma, a foto rasgada pode eliminar a prova da
existência de Rochele, que agora "não é mais ninguém", mas um
dia já foi gente, só que numa foto.
O processo é rápido: as tias não insistem e o juiz permite que
Rochele permaneça com a nova e quarta mãe.
O segundo fato que chama a atenção são as notícias finais
que temos de Rochele, pois como o processo foi rápido e o juiz
assinou a guarda solicitada, Rochele pára de ser ouvida pela
psicóloga.
As notícias finais são de que Rochele tem realizado pequenas
utilizações indevidas das roupas da nova irmã, ou seja, pequenos
furtos, apesar de estar sendo presenteada com novas roupas. E,
outro fato intrigante, ela tem tentado seduzir o namorado da irmã.
R o c � e l e : U m a p r o sf i l u i �ã o r e a l i z a d a 53

Com esses dados, perdemos o caso de vista, mas tenho muita


curiosidade em saber que destino terá Rochele. Permanecerá
nessa nova casa ou ganhará de novo as ruas?
Gilberto Dimenstein é autor de um livro brilhante - Meninas
da noite - e que entrevista e fotografa meninas prostituídas
escravas no Noroeste do Brasil. Numa das entrevistas, depois de
contar sµa história pessoal ("umã rrüilhãâe frâu�as � frustràçô'd ,)
'costIJ_ri:tdas-com viólênéia"), u-má.riieii íiiâTtíê·p�g�nt.ii-;i p�ssívet'
- na;�er d� novo?" (1991; p. 1 00). Para as meninas de rua, as
calçadas são suas camas. Elas incessantemente abordam os
transeuntes; são os "tios" e as "tias", o que recupera a rede familiar
nessa grande casa que é a ma. Os restos são o alimento e talvez
a prostituição seja o único horizonte do dia (Fenelon, 1992) . De
que forma podemos pensar na prostituição como único horizonte
social, e por que penso que Rochele, ao ter suas fotos rasgadas,
pode encontrar-se com o horizonte da oferta do corpo prostituído?
As meninas, em seus relatos, geralmente dizem que saíram
de casa porque estavam cansadas de cuidar d o s afazeres
domésticos e dos innãos menores. Também, talvez principalmente,
porque sofrem pressões e assédios sexuais dos pais, padrastos ou
tios. Como fala uma menina que morava com o tio:
( . . . ) mas prá casa do meu tio eu não quero, porque ele só
qué sabê de ficá transando comigo. Quando eu tava lá,
prá podê me dá um prato de comida, eu tinha que transá
com ele. Esse negóc i o de fi cá assim transando com
m e u tio, eu acho isso muito feio, vim prá rua (Fenelon,
1 992, p. 61 e 1 27).
O que estranha é que na ma é possível transar; na rua é
possível encontrar essa cobrança real, quando justamente é dessa
cobrança que elas fogem quando somem de casa. Sabem que
não é a cobrança certa, como se pagar o preço que é cobrado em
casa fosse algo destmtivo e, na rua, pudesse ser algo diferente.
Na rua tudo passa a ser acessível, viável e principalmente ela não
está submetida às cobranças dos ditos parentes (ti os, pais,
padrastos etc.). Essas cobranças, não podendo ser simbólicas,
54 E l i ana d o s Re i s C a l l i q a r i s

são reais, no corpo . Não podem ser simbólicas porque, querendo


seus corpos, os ditos parentes abdicam de seu valor simbólico de
parentes: são homens quaisquer. Portanto, se tem que ser real,
que seja real mesmo. A casa toma-se a rua.
- Essa moça é sua amiga? - questão colocada a
uma menina de rua.
- Não, eu não tenho amiga. Não confio nem na
roupa que eu tô vesti ndo. Essas meninas de rua não são
ami gas de verdade, não. Amiga de verdade, só a mãe (lbid.,
p . 60).
A mãe é colocada nesse espaço único, não pç>L ml?nL
i<!ealiz�çãq cto primeiro objeto de amor, ll1ª-�-�LI11J?�lqJµ,gªr, q1,1e �
figuras parentais ocupam na organização subjetiva das meninas.
Aparentemente, quem pode dizer que amiga de verdade é só a
mãe, é aquela cuja lembrança confirma que, à mãe, pode-se pedir
ser amada. A mãe poderia amar e, como um dom, fazer existir a
casa. Se a casa não existiu, não foi porque, como cada adulto
neurótico, elas um dia foram embora e tomaram-se capazes de
desejar alhure� dolar i11icialmeqte jdeªUzado. Se a casa não existiu,
foi p�rque realmente elas foram expulsas, digo realmente pois
elas vivem na carne os efeitos de um pai imaginário que as priva,
que as priva sobretudo de poder pedir amor. E esse pedido, como
já dito, é constante na vida de uma mulher e constitutivo - · d_e_ slla
significação.
Quand·o Freud, no texto sobre feminilidade, abre questões
para entender de que forma uma menina constrói sua relação /

com as duas figuras parentais, ele comenta:


Orientaremos, agora, nosso interesse no sentido de
saber unicamente que coisa põe fim a essa poderosa
vinculação da menina com sua mãe. Conforme sabemos,
esse é seu destino habitual : está determinado a dar lugar
------ª_uma vincl!laçfi<:> a seu pai (l 93 3 [ 1 932] , p. 1 50).
O acesso ao pai foi negado às meninas que abandonam a
casa e procuram na rua_ o_ .que.não1heS-f-G-i--permi.tislQ-1LQ--Primciro .,.
espaçq; O pai não se apresentou como um ancoradouro yi_ªy_el ____ \
: _ . . ... . • •. . . - . .. _ _ . • , . .. �...........,..J.. • . . - - - ·- -- · - - - - · · - - · ·
Roc h e l e : U m a p roslilui � ão re a l i z a J a 55

onde descansar, por algum tempo que seja, de sua angústia de


exisijj.i:f amor pe�dido 'permanece sendo a mãe, visto que o pai ·.
.
:neÍri'âÔ menos foi um amor encontrado ou cogitado. ..
Voltemos a Rochele para pensar a "existência" e "não
existência" de uma pessoa através de uma foto.
Uma foto como aquela trazida pela tia de Rochele é, e
permanece até termos 99 anos, a representação do olhar materno
que nos vê como o bebê perfeito e esperado. Mesmo distantes de
nossas casas, nossas mães permanecem com porta-retratos do
bebê risonho. É o olhar do desejo materno que p9usa sobre a
. criança da foto. E essa ou essas fotos é que vão construindo a
êasâ - a cásà no sentido simbólico que uma foto pode ter enquanto
figura da inserção familiar.
Note-se que as tias de Rochele mostram a foto da primeira
comunhão; da menina bem-comportada que elas esperavam que
Rochele viesse a ser, mesmo que elas fossem incapazes de fazer
o necessário para que Rochele fosse ou se tornasse essa menina.
Quando a foto é rasgada, nenhum olhar mais pousa sobre
Rochele; ela ganha as ruas, precisa entrar em outra foto. Ou
então vestir, furtivamente, as roupas da nova irmã, o que é uma
forma de colocar-se na foto da irmã.
Lujo Bassermann, historiador alemão, no livro História da
p rostitu ição, d i z : " . . . uma das opiniões aparentemente
contraditórias em que o fim do século passado se comprazia era
de que fora a mulher honesta e não a prostituta um produto da
civilização" ( 1968, p. 15 1 ).
Se a mulher honesta, como chama o autor, é um produto da
civilização, o que acontece com as meninas que chegam às ruas
e encontram a prostituição? No caso das meninas de rua, o
processo civilizador é sem êxito.
Precisamos s i tuar alguns pontos para entender esse
específico da vivência da rua pelas meninas, que é a prostituição.
Por que a prostituição seria o único horizonte do dia, e como isso
estaria entrelaçado com a fantasia feminina de prostituição?
Faz sentido evocar a fantasia de prostituição no caso das
meninas de rua?
56 E l i a n a dos R e i s C a l l iga ris

Seguindo o exemplo da foto: desamparada como uma criança


chega ao mundo, a menina recebe sua primeira foto do olhar
materno que lhe oferece um lugar no álbum de família. O que faz
desse bebê gente e não bicho. Essa é a foto do que a mãe gostaria
de ver ou tem certeza que vê na sua criança.
Inevitavelmente, apesar da foto continuar na penteadeira da
mãe até a criança tornar-se avô (algumas vezes mais tempo
ainda), paramos de ser o modelo fotográfico contratado pela mãe,
pois o pai chega, e chega para rasgar a foto, ele chega para salvar
a _çr. jªIlÇ<! _dessa_ capq1_ra, �€?� limit � s. Como pergunta Hélene
Deutsch: "O q�e espera a criança do· pai?" ( 1 944, p. 228) . .EJ�t
�P�r_<! ..1::l!'P_ª _éi,liª11ça contra a mãe em favor da re_<!lici<1:cie. Espera
que o p ai sej a um repi·esên taiúê d a reali d ade (não u m
representante d a fo to, tirada inicialmente pela mãe).
· · · ·• - C�mo meninos e meninas se aproximam do pai? Tomando o
mesmo exemplo da foto, como se viram de costas para a
teleobjetiva da mãe?
A atividade e a agressividade dos meninos são aceitas pelo
pai como o resultado da influência social, essa é a leitura de Hélene
Deutsch . E l a salienta que o s pais aceitam mu ito mais a
agressividade dos meninos por ser um valor social reconhecido.
Apesar dos valores sociais estarem ligados aos psíquicos e vice­
versa, não é possível deixar de acrescentar que o pai, enquanto
hóspede de uma subjetividade masculina, abre suas portas ao filho
homem de forma mais incentivadora do que a uma filha mulher.
Os mesmos movimentos de atividade e agressividade, necessários
para afastar-se da mãe, não são muito incentivados na menina.
Na sua investida em direção ao pai, ela precisa situar esses
movimentos de forma diferente dos meninos.
A foto da menina é menos retocada e colorida do que a do
menino. A menina, por exemplo, não pode dirigir-se ao pai
utilizando-se de atividade e agressividade. Ela termina por encontrar
outras f o rmas de aproximação que, inevitavelmente, recaem na
sedução do corpo. Essa é uma experiência dolorosa, pois ao
colocar seu corpo "a trabalhar", ela sempre encontra-o como
corpo que é imaginariamente castrado, que sofreu uma violência.
Roc � e l e : Uma p r o s l i l u i�ão rea l i z a d a 57

Ou melhor, que foi reconhecido como feminino através de uma


violência.
/ ,. ,.Hélene Deútsch faz uma distinção: a menina pequena tem
/dois pais - o pai do dia, com o qual sua relação é consciente e
,, sublinhada por uma troca amorosa; e o pai da noite, que acarreta
ameaças de crueldade e sedução , e "que mobil i z a sonhos
_ ____angustiantes" ( 1944, p. 23 1 ) .
A s fantasias de crueldade e sedução irrompem n a hora de
pedir que o pai olhe e reconheça a menina, visto que ela só pode
imaginariamente ter um corpo feminino (imaginando-o como
amputado, ou seja,jµ-iél.ginando que alguma crueldade paterna
(tAmbém irrÍa.g_Ú:i.áriai fo(exercida sobre éfo. ·E ssa crue1c1�Cte é
inevitavelmente evocada na hora da sedução que chamaria a
atenção paterna. ��ciu�ir o_ pêl.j signifis::a de.sp�r:t�r o pai ciêl. t:i_c>!te:
ele reconhecerá que o corpo da menina é feminino, pois foi ele
que o castrou. Só que o pai é também chamado a rasgar a foto da
entrega sem limites, ou seja, a foto que, no olhar da mãe, cativa a
menina numa eterna primeira comunhão. O pai, em suma, é
também o salvador.
Por um lado, ele é cruel e sedutor (o pai da noite), por outro,
afastou do corpo da menina os flashes ofuscantes da mãe.
Aqui relato um pequeno episódio de uma jovem que, por
volta dos 1 2 anos, pega um táxi. Com seu curto e adolescente
vestido, começa a cruzar e a descruzar suas pernas até mostrar o
início das calcinhas. No final da corrida, o motorista de táxi propõe
que sigam para dar outra "volta"; a menina sai correndo do táxi e,
em casa, joga-se chorando nos braços do pai, dizendo que o
motorista lhe fez propostas sexuais e que ela estava muito
chocada. O pai faz a cena esperada por ela, fica furioso, quer
chamar a polícia etc. Enfim, o que essa jovem procurava?
Não acho que se trate de um banal projeto histérico de
sedução e fuga da cena. Ela, me parece, procurava saber: primeiro,
que seu corpo poderia ser oferecido e produzir sedução. Esse
corpo é castrado, mas fascina; segundo, que essa sedução poderia
ser deslocada da mirada paterna, portanto ocorrer com outro ou
58 E l ia n a dos Re i s Call i q o ris

com outros homens ; terceiro, que o pai da realidade, portanto o


pai do dia, estaria de braços abertos para protegê-la e que, por
conseguinte, ele seria bem distinto do sedutor. É como se ela
procurasse uma afirmação de que, apesar de seu corpo seduzir,
ela não perderia o amor paterno, ou seja, ela não perderia a proteção
do pai do dia. Se essa proteção se interrompesse, ela não poderia
interrogar mais adiante o pai da noite por intermédio dos motoristas
de táxi.
O menino volta para casa dizendo, por exemplo, "hoje eu
participei de uma briga, lutei, ganhei, perdi...", enfim. E a menina
volta para casa contando das abordagens sexuais. Seja aos quatro
anos "o fulaninho me olhou", seja aos doze anos "o motorista do
táxi tentou me seduzir". Por que essa diferença?
Mais uma vez cito Hélene Deutsch: "Muitas vezes a fantasia
se divide em dois atos: o primeiro, o ato masoquista, produz tensão
sexual,fo segundo, o at() amoroso, proporciona todas as delícias
de ser am'ada e desejada)( 1 944, p. 238).
O que aconteceri;-com a jovem moça que citei acima, se
seu pai apenas lhe tivesse dito (sem oferecer abrigo): "Mas você
é uma puta, o que você fez para que ele tenha feito tal proposta?".
Certamente o segundo ato da fantasia, como determina
Hélene Deutsch, não sucederia, e o único retomo que a menina
teria é que só existe o pai da noite, o pai cruel. Qy_�- ��u. corp_OJlãQ�.
� �ry�__ pctq� ser 3m3:do,
:
só serve para ser desej3:do.
O que acontece com Rochele quando as tias rasgam-lhe as
fotos? Em princípio, quem rasga a foto de His Majesty the Baby
é o pai, afastando a criança do olhar materno. Aqui é a mãe quem
rasga. A posição paterna ficou calada, e Rochele vive os dois
atos - a foto e sua destruição - sob o comando do mesmo diretor.
_,..-0 que se pode esperar senão a atuação do corpo oferecido?
Já que ninguém quer me fotografar, o corpo grita: quem quer me
rasgar?
· · ·· · Segundo os dois tempos da fantasia que Hélene Deutsch
explicita - o tempo masoquista e o temp9 de-..amor -, o elemento
de dor tem uma função específica, pois \{l, "dor qimtn�"--·· ·-- ·- - �
..-�-· ·:�:., - .
R o c � e l e: U m a pr o sliluis ã o r ea l i zada 59

mento de culpa produzido pelo prazer, a violação libera a moça da


rêsponsabilidadê". - -· - -
As primeiras fantasias masturbatórias de uma outra paciente
eram de estar sendo levada à força por um grupo de homens, ela
sem roupas, com os olhos vendados, sendo levada para uma
caverna onde determinado ritual se real i zaria. Nessa caverna
outros homens estavam na assistência, seu corpo era amarrado
de forma a permanecer exposto ao olhar dos homens. Ela sentia
medo, pensava "o que acontecerá?", "o que me farão?".
Certamente a fantasia masturbatória dessa paciente - que
era levada a força, com os olhos vendados, o que a impedia de
saber quem eram os homens e de quem sentia medo - erotiza
uma violência que não é homóloga à violência que eventualmente
joga as meninas de rua para a prostituição.
No entanto, as duas não são completamente estrangeiras. A
idéia citada de Hélene Deutsch, segundo a qual a violência serviria
de absolvição, poderia ser reformulada da seguinte forma: a dor
(fantas i ada ou real) manifesta que, na entrega, algo resiste, o que
- paradoxalmente - poss i bilita a própria entrega.
Mas, uma vez mais, isso pode ser verdade para a paciente
que fantasia ser levada a força para a caverna como, por exemplo,
para Laura, na medida em que a dor (ou vergonha ou culpa) é um
apelo mantido ao amor do pai. Enquanto as meninas de rua não
parecem sequer dispor de um pai cujo amor possa ser mantido
por um apelo.
A partir das teorizações tanto de Freud quanto de Lacan,
parece ficar clara a relação dos homens com a dívida paterna: o
pai oferece um reconhecimento simbólico à condição de
reconhecer que a 1ncolumida.delhe é devida. Mas, para as mulheres,
por onde passa o reconhecimento de que o pai realizou seu trabalho,
ou seja, que tenha representado a realidade em oposição à mãe?
A dívida feminina é paga, ou tenta se pagar, com o corpo,
por onde também se dará a possibilidade de a mulher ser
reconhecida como sujeito. É dessa forma que o reconhecimento
do pai acontece; é assim, por sua intervenção (por imaginária que
60 E l i a n a Jos Reis C a l l iqaris

sej a) sobre o corpo da menina, que o pai realiza sua tarefa de


representar a realidade em oposição à mãe.
Depois dessa intervenção, o corpo da mulher não tem mais
nada a perder, a não ser ele mesmo. É um corpo que já teve sua
primeira foto rasgada: como constituir uma outra? Para que o
corpo não se perca, urri olhar deve ser pres�rvado: 0,gJhªLÇQ..Píl.L
Esse pai oscila entre cruel e sedutor, ele é ta:mbém o pai que
recebe nos braços a filha que foi investida sexualmente por outros
homens. E, ao mesmo tempo, é o pa:( que entrega a filha aps
braços ele . outro homem, o futuro mar1 ?: �d1�.:figri_49 c��111�nto,
mas justamente, por efetuar a entrega; ·garante sua prote�-�õ. São
esses alguns ritos de passagem da femfüilídáde;· tiurs- que dizem
respeito ao corpo da menina.
A mulher trabalha psíquicamente para fazer existir um corpo
protegido, um corpo que não se exponha, que se mantenha a salvo
do desej o paterno e no abrigo do amor. Por outro lado, fantasias
que acenam para um gozo feminino levam-na a querer se expor e
· se entregar. E i nteress ante pensar n a ori gem da pal avra
,�,,-�-- =---=-· , . .

prostituição, que segundo Bloch e Wartburg, vem do latim


f'
,/
t
\ prostituere que significa "expor livremente" : pro - na frente,
\ statuere - colocar. Expor abertamente, colocar na frente.
\

\--. -----'---Esse duplo viés do funcionamento das mulheres é ligado à


idéia de que a mulher é um bem privado; que não deve se expor.
Mas eu gostaria de insistir, ela é privada de um só homem, privada
(desprovida) do pai. Mas é um bem privado (favorito) de todos os
homens, à exceção do pai. O duplo sentido da palavra "privado"
(favorito, particular e desprovido) ilustra a dupla via de acesso à
feminilidade.
Então, o que acontece quando o pai não é uma exceção?
Quando, para comer, a menina que alcança depois as ruas deve
. - trapsar com pai, padrasto ou tio?
___ \ >. < o exercício da prnstitui ç ã o das m e ninas, apesar <:l� poder
:
\{ J também-ser sÜ.st��t�do ··p-�r- Üm� fantàsfa · feminin�• . pr�c�ra · Üm
)

\·-t' -,· '.� encontro diferente do que é buscado numa fantasia neurótica como
a de Laura. As meninas procuram um encontro com o pai
imaginário, que é cruel e que priva, o pai da noite. É aquele pai
R o c � e le : U ma p r o s l i lui s ã o realizada 61

que só as reconheceria pelo real d o seu corpo e que não se


colocaria como exceção, que as desejaria como qualquer outro.
Essa exceção, como falava antes, é necessária para que a
mulher possa justamente entregar seu corpo, uma vez que o amor
do pai a protegeria. O que difere aqui é que a meni1J,a..de. pia,
como qualquer mulher, precisa concreta e realmente'.âlijar-sê (ilo
pai que a deseja (seja ele encarnado pelo tio, padrasto Óti" ôí{tro
homem de casa) . Ela deve distanciar-se desse pai, concretamente.
Mas não encontra um pai diurno diferente que possa lhe restituir
o corpo. Sob o olhar de um pai eternamente noturno, o corpo
pode mesmo desaparecer, não ser mais corpo de gente e vir a ser
. . .!lffi···COrJ_).(}. de . bicho..... ,_ . . . ,..... . ,-,.-•···· ___. ..... .. . . · ___,. . ........ .._�-···-·"--�--------�"-
, . ./ Na tentativa de fugir da cobrança real que os ditos parentes
_/
...

.r promovem, a menina encontra as ruas e "vende o corpo" . Como


diz Dimenstein: "A miséria jogou as meninas na rua. Elas não têm
nada para vender. Não sabem ler, cozinhar, escrever. Só podem
\ . ,_,_yeJ}�:-º.!lnico_b.em_q,lJ.}�_possuem: o corpo" ( 1 992, p. 1 8) .
----- Podemos aqui pens��qi:í'ê--ã rrii'sênã'qüê 'sê . ' ·âs ]Õgou�íiâ"íuã
situa além da miséria financeira. Dimenstein fez um excelente
trabalho de pesquisa e entrevistas. Entretanto, algo mais é
especialmente tocante em seu livro. São as fotos das meninas da
noite. Dimenstein lhes devolveu um lugar, um lugar substitutivo:
agora, ao menos, elas estão nas fotos do livro, olhando com orgulho
para a câmera que não vai comê-las. O que elas buscam na rua é
comida mas, muito mais do que isso, buscam um reconhecimento,
um amor, procuram evocar um pai que faça exceção. No entanto,
elas só sabem procurar esse amor pela oferta de seus corpos. O
que encontram é só desejo sexual dirigido a seus corpos: não há
exceção.
Sobre uma conversa entre dois estrangeiros. Um diz ao outro:
"No Brasil só tem putas e futebol". Ao que o outro responde
"Péra lá, eu sou casado com uma brasileira"; réplica do primeiro:
"Ah ! sim, em que time joga a sua mulher?".
Será que as nossas meninas deveriam aprender o futebol
para deixarem de ser apenas reconhecidas como putas?
62 E l i a n a J o s R e i s C a l hq a r i s

Na rua, na procura incessante de algo que lhes ofereça um


mínimo lugar de simbolização, elas se deparam com caricaturas
do pai do dia e do pai da noite. Elas encontram o cafetão que as
lança para frente com seu olhar desejante (fingindo lhes oferecer
uma foto diferente da oferecida pela mãe). E encontram o cliente,
que é também a caricatura do pai cruel - agente da trepada
realizada e nada imaginária. Em ambos encontros - com o cafetão
e com o cliente - é o corpo das meninas que está em evidência.
As meninas encontram também o dito pai da rua, que, por
um instante, pareceria ser um substituto possível do pai do dia,
mas ele, inelutavelmente, repete a figura do pai imaginário. É como
se a entrega do corpo das meninas de rua, na nossa cultura, sempre
devolvesse ao pai imaginário sua verdade de um pai imaginário
S�!!! respa�clo sill}bólico. , -- - -
- - . Em t 993, a revista !stoé' publicou uma reportagem intitulada:
"Deus ou Diabo?", sobre os pais de rua, os homens que dão
proteção, exploram e iniciam os menores na criminalidade.
O chamado pai de rua dá trabalho e protege dos perigos da
cidade. Deus e Diabo para os menores que perambulam pelas
ruas do Brasil. A maioria das crianças não sabe onde ele mora
nem sua verdadeira identidade. Com tanto mistério, cada pessoa
acaba contando histórias diferentes e às vezes divergentes sobre
o mesmo pai.
Mauro, engraxate, é um daqueles que pode ser bom ou não:
"É, ele é um bom pai de rua, sempre ajuda as crianças" - diz um
entrevistado. "Mauro engraxate dá cola e depois abusa
sexualmente das crianças" - afirma Alexandra, ex-menina de
rua, que era protegida por Mauro.
Como todo pai de rua, diz a reportagem, Mauro é Deus e o
Diabo. Às vezes só Deus, como quando socorreu um garoto caído
na calçada com a cabeça fraturada; outras vezes só Diabo, como
no caso do abuso sexual. É esse duplo pai que as meninas
encontram na rua. O pai Deus, o pai Diabo. Ou melhor, um pai

I . 25 de maio de 1 993.
R o c h e l e : U ma pr o slilu i�ão r ealizada 63

Deus (pai do dia), que, mais cedo ou mais tarde, sempre se revela
Diabo (pai da noite).
Resta a dúvida se Rochele, tendo sua primeira foto rasgada
- aliás, ela teve muitas fotos rasgadas pelas várias mães -,
encontrará outro meio de refazê-la, que não seja passando por
entregas reais sem respaldo simbólico.
A inquietação sobre este tema é sem fim, pois é ínfima a
possibilidade de que as meninas de rua saiam da realidade quase
zoolQgica que lhes é oferecida.
/_.,_.-- É como se lhes fosse pedido que mantivessem o imaginário
/ do carnaval, do futebol e das putas e seguissem sustentando o
refrão da música que os estrangeiros adoram: "não existe pecado
do lado de baixo do Equador" . Já que elas têm o "diabo no corpo"
e são " menina s sem foto", d�.Y�� -����� n��r _expulsas -�-ºJ>..��!s.?_:. .

Apesar de todos os aspectos socioeconômicos e mesmo dos


raptos de meninas que foram enganadas com a promessa de um
emprego e acabaram escravas de prostíbulos, como relata Gilberto
Dimenstein, existe algo na posição dessas jovens em relação à
vida que eu me permito chamar de escolha.
Mais um relato de Grácia Fenelon :
- O que você acha que as pessoas pensam das
meninas como você?
- Vagabundas, maloqueiras !
- E você, o que acha de vocês mesmas?
- Vagabundas, maloqueiras ! (p. 63)
Esse não é o único exemplo que encontrei de não estupefação
das meninas com o lugar social que lhes é indicado, pois esse
lugar é vivido por elas como sendo o seu.
Outro exemplo trazido por Dimenstein: "Com treze anos,
Cláudia tem uma paixão: dançar. Gosta também de conhecer
novas pessoas. Na boate onde trabalha, tem dança e sempre gente
nova para conhecer. Prefere ficar ali a trabalhar como babá em
Santarém" ( 1 992, p. 57).
Por que, em alguns casos, as meninas chegam a admitir que
preferem a rua ou a boate, ou seja, a prostituição?
64 E l i a n a d o s Re i s Calh q a ris

Outro aspecto que não podemos deixar de abordar é que


elas sabem que a perda dada como certa é a da virgindade. A
passagem da casa para a rua é um marco equivalente à passagem
de virgem para m'..llher, essa com o sentido de sexualmente ativa.
As meninas de rua pouco falam; não vão à escola, e se já
foram, esqueceram. Desenvolvem uma linguagem gestual intensa,
e entre si falam num dialeto só por elas compreendido (Fenelon,
1992).
O que as meninas de rua fazem que escandaliza e fascina?
Gritam? Cheiram cola? Roubam? Dormem ao relento? Expõem
sua gravidez? De que verdade nos falam?
Charles Melman, em seus trabalhos sobre delinqüência
( 1 992), aponta o delinqüente como sentindo falta de um outro que
faça valer a lei; ou seja, o delinqüente agiria para tentar encontrar
um pai que, enfim, o reconheça, mesmo que a forma desse
reconhecimento seja o julgamento ou a prisão.
Nos relatos sobre meninos (não meninas) de rua, encontra­
se facilmente que a continuidade das vidas dos meninos de rua se
dá pela delinqüência, e que muito jovens, aos 1 4/ 1 5 anos, podem
ser chefes de gangues. Além da já grande experiência de rua,
eles são menores de idade, o que faz com que ocupem um lugar
de destaque na gangue, tendo em vista que serão julgados (caso
sejam presos) como menores. De qualquer forma, eles se engajam
na delinqüência, cujo horizonte é um encontro (talvez esperado)
com a lei.
E as meninas? Se a casa delas é a rua, se concordamos que
elas também vivem num mundo de relações reais desprovidas de
valor simbólico, por que seu destino não seria também o esforço
de serem reconhecidas na e pela delinqüência? Por que elas
encontram como destino a prostituição?
Para os meninos, seguir na delinqüência é seguir na procura
de um pai simbólico, procurar alguma manifestação, em suma, do
pai de dia. As meninas são filhas do mesmo desamparo social e
familiar; para el as também algo da castração falhou, elas buscam
a mesma coisa que os meninos, mas encontram algo diferente. A
sedução que a rua oferece é o encontro com a prostituição
R o c � e l e : U m a p roslilui s ã o rea lizaJa 65

(geralmente barata) que deveria lhes restituir o que perderam


sendo expulsas de casa, tendo su_as f<>l<>t rasgadas .
. ,-- · _,. to-mo disse antêdôrmente, a o�igem do ato de saícia às ruas
não difere para os meninos e meninas: para ambos, parece que o
_pai_ �_im!!ó.li_ç�} (o.. .amor_ do. . pai) . falha -e precig ser encontrado.
C�ntudo, é aqui que a questão se complica e exatamente segundo
as linhas indicadas por Freud, no que se refere aos caminhos da
castração masculina e feminina. O menino que sai às ruas procura
o encontro com a lei (mesmo que ela seja vivida como brutalidade).
Como toda conduta delinqüente (Melman, 1 992), sua conduta
espera e anseia a reação da lei. O fracasso está implícito no fato
de que, onde é esperado reconhecimento, encontra-se, por esse
caminho, repressAA,. Onde se esperava simbólico, só se manifesta
§.

brutalidade real \{>!"ª a menina não é diferente, salvo que seu


caminho para evocar um amor de pai passa imediatamente pela
oferta de seu corpo. Ela procura e encontra assim, de novo, o pai
imaginário, o pai da noite. Aquele que a privou, que só a
"reconheceria" pelo real de seu cor©
t; / Lacan ( 1 953-54) aponta para o ·fato de que seria fácil para
qidlquer menina fazer passar da procura do falo imaginário à do
pênis real do pai. Se isso não acontece, em geral, é porque, na
retaguarda, está presente um pai simbólico, por morto que seja.
_ No c_as� das meninas de rua, é exatamente isso que parece faltar.
• i Elas v�enciam, portanto, um desfile de pênis reais nenhum dos

. _ q,t1JÜSº v_irá nunca a substituir o falo paterno - o que é característico


· se ·â êâsa é a rua, como dito anteriormente. Mas essa constatação
não as impede, e parece até que propicia, de se bastarem na
confirmação de existir que lhes outorga a oferenda contínua de
seu corpo aos homens. A partir dela, elas parecem se constituir
como uma espécie de objeto especial e, vivendo como tais, se
reconhecel!l como um grupo: as meninas de rua.
Pôr que não seriam simplesmente loucas? Não são loucas
porque a cultura contempla um lugar para o objeto especial que
_ --�las se tomam. Elas têm um lugar.
· -- :::_, ::: :K·p rostituição infantil é quase a regra em todas as zonas
brasileiras ; o que em outros países seria mercadori a de
66 Eliana Jos Reis C a l liqaris

primeiríssima qualidade, ou seja, uma adolescente que serve a


gostos específicos, aqui é mercadoria de consumo popular.
Seríamos ingênuos de atirar a pedra da pedofilia; algo diverso
certamente ocorre.
Dimenstein cita uma frase estupeficante: " . .. passou dos
quinze quilos, está bom" ( 1992 , p. 2 1). As meninas de rua, na sua
procura, conseguem situar-se e sustentar-se como objeto entregue
ao próprio pai imaginário que as privou. Aqui ocorre um giro: esse
duplo escândalo e a onipresença da prostituição infantil talvez
testemunhem um pai imaginário social, cuja crueldade é
socialmente aparente na desigualdade social e nas fo�as extremas
de domínio e exploração. Esse pai imaginário não parece ser
socialmente contido, corrigido por um pai simbólico. Sobre esse
pano de fundo, não estranha que a menina passe a presumir que
a sua entrega real, a entrega do objeto especial que é seu corpo,
seja a resposta social esperada e adequada. Se o pai social é o pai
da noite, como procurá-lo se não pela entrega do corpo?
É impossível não pensar na entrega do corpo da índia ao
colonizador, onde não foi necessária a intermediação da linguagem,
numa espécie de antecipação: "É o meu corpo que ele quer ! ". A
entrega do corpo das meninas de rua, em nossa cultura, devolve
ao pai sua verdade de pai imaginário sem respaldo simbólico. O
pai do dia segue dormindo infindavelmente.
Quando eu era criança, aprendi esta música:
Se essa rua, se essa rua fosse minha,
eu mandava, eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
para o meu, para o meu amor passar. . .
A letra da música certamente é outra para nossas meninas
de rua, porque, na rua delas, os ladrilhos não acompanham os
passos do amor. Quem por eles passam são os corpos, corpos
privados de pedirem amor.
Andrea Dworkin parece ter renunciado ao amor paterno
quando os pais silenciaram a violência feita a seu corpo; eles não
abriram os braços como o pai de minha paciente no episódio do
Roc h e l e : U m a p •oslitu i s ão realizada 67

táxi. Sobrou a Andrea a repetição de uma entrega à violência


como destino imposto à mulher e - finalmente - a possibilidade
da revolta.
As meninas de rua nunca ouviram falar do amor paterno.
Arrancar-se à mãe, rasgar a foto, torna-se assim sinônimo de se
fazer rasgar o corpo. Mas não só uma vez: ad infinitum, como se
a quantidade e continuidade do pai da noite pudessem vir a
constituir um pai do dia.
Em ambos os casos é difícil falar de fantasia de prostituição,
mas sim de prostituição real como atuação de um momento decisivo
na subjetivação de uma mulher, ao qual a chance não foi dada de
simplesmente acontecer. Um momento decisivo para que uma
mulher possa ter acesso ao feminino nela mesma.
Resta lembrar que a pros,t_��.\,l�.ǪQ ��-ªl Jlão ��ecessariamen­
te o fruto de violências e falhas(Çiabriela Si_!yªJ..Játçicorrige quando
lhe chamam de ex-prostituta; diz: "Não, sou P!()§!Ü!!ta,. QÇ . C,OJl,k,
��S(. Ela escreve, em seu livro Eu, mulher Jd .vida, seu afeto
por sua profissão:
· //- Por que a prostituta desperta interesse? Uma coisa
que percebo é que as pessoas querem muito saber a
respeito da vida sexual da prostituta para entender a sua
própria sexualidade.
Chamar a prostituta de "mulher da vida" é uma
expressão reveladora. Muitas mulheres não gostam, mas
eu acho perfeito. A "vida" é o espaço onde se pode viver
o desejo, a "fantasia" . Nesse espaço a prostituta faz seu
trabalho profissional, cotidiano e anônimo. Atua na vida.
Em outras profissões também há tantas mulheres da vida:
enfermeiras, professoras, operárias, secretárias, atrizes,
cantoras, terapeutas, lavadeiras, escritoras, cada uma em
seu campo de trabalho.
Qual é o campo de uma prostituta? É o do desejo, eu
disse há pouco. Da fantasia, do sonho, do mistério.
A prostituta guarda consigo muitas chaves, neste
mistério da vida. Inclusive a chave do mistério da sedução
entre homem e mulher. Só que esse mistério sempre será
mágico, até o final dos tempos . Nunca vai deixar de ser.
( 1 992, p. 1 72).
.
·, . . ---
CONCLUSÃO

Por um caminho diferente Laura, Andréa e as meninas de


rua nos lembraram que a prostituição - pro statuere seu corpo
na busca do desejo dos outros - é um traço não contingente do
feminino.
Fundamentalmente, ela representa para a mulher a
necessidade de um desejo que pouse sobre seu corpo marcando
sua existência.
Essa necessidade pode levar a um exercício fantasmático
que abre as portas da vida erótica. Ainda assim, ij_foptJ1.�iª pg,k
continuar subterrânea ou vir a realizar-se de alguma ÍOIJTla, ley119qo . -. .
a )iisfanfri4e 11 :i frêg�
s�mpré
_
àrriséada. -- · . - .- . . ; .
- Q�à�do- o amor. patirnô (�ffâ ª-º ap�Jo,l essa mesma
necessidade pode expressàr-se nu� destino ,iê violência sexual,
sofrida e sem valor erótico. De qualquer forma, a interrogação do
desejo dos outros e o horizonte (por fantasmático que seja) de
entregar-se a tal desejo parecem constituir um traço do feminino,
talvez até seu traço decisivo. Q,.9.__1!.e. _s_igpificii que a questão da
prostituição - no mínimo sua fantasia - é um sine · quà
nón dal
vtctã"ct�-quaiquer Íher, mesmo quemu s��:�-��óiha. seja
a virginclace '
e o_à_mqf <i.9 paL - - - . - - .. - . .- . - -
· · Tais considerações também conduzem ao fato de que a
prostituição ocupa um lugar central na realização social do
feminino.
· ··--· ··; ..;.'··,. .- :. ,
70 E l ia n a dos R e i s C a l l iq a r i s

Originalmente uma das vias que me levaram a esse trabalho,


junto com a escuta de Laura, foi a constatação (também pelo
discurso de minhas pacientes) de que as mulheres reconhecem e
criticam como feminina toda tentativa de seus homens para eles
mesmos se constituírem como objetos de desejo, mesmo que seja
para elas mesmas. Como se, de antemão, se expor e propor ao
desejo, se pro statuere, significasse feminilidade.
Nessa direção, coloco em apêndice algumas reflexões que
de fato abrem para outra questão maior: como, na masculinidade,
é possível ser desejado?
Deixo um tema em aberto . É a pergunta que talvez,
silenciosamente, tenha animado todo este trabalho : qual é a
realidade de vidas prostituição como profissão, vidas que não
parecem ser só vítimas de uma violência social e paterna, mas, ao
contrário, p�recem formas do exercício erótico feminino?
APÊN DICE
fEM I N I LI DADE MASCULINA

Num artigo de Murray Healey - intelectual na ativa do


mundo gay inglês - aparecem algumas observações preciosas
sobre um paradoxo da identidade masculina. Ele lembra o caso
de Marky Mark, um rapper bostoniano cuja (auto)promoção está
ligada à proposta de seu próprio corpo como objeto erótico. Em
particular, as capas dos discos de Marky Mark parecem fazer um
bom argumento de vendas com o sex-appeal do rapper. Talvez,
justamente por isso, Mark tenha sentido a necessidade de explicitar,
em várias entrevistas, sua orientação heterossexual, como se -
pelo fato de ele se propor ao desejo público - algo se encontrasse
posto em dúvida.
Mark, a um dado momento .de sua carreira, aceitou posar
para uma publicidade de Calvin Klein que se endereçava ao mundo
gay. Aqui poderíamos fazer uma ressalva: Klein nunca admitiria
que a dita propaganda tivesse como alvo específico a minoria
gay americana. Mais facilmente diria que ela propunha um corpo
masculino desejável - contido e ressaltado pelas cuecas Calvin
Klein - a quem quisesse a ele se identificar, ou seja, a qualquer
homem que assim pudesse esperar suscitar o desejo de parceiras
ou parceiros. Marky Mark, no entanto, nessa ocasião em que seu
corpo desejável deixava a capa de seus discos e se projetava
lascivo pelas paredes das maiores cidades americanas, achou
necessário insistir e assim se expressou:
Eu gosto particularmente é de boceta, mas cada um
tem seus gostos . Conheço um monte de caras gay e
72 Elia n a dos Reis Ca l liq a ris

respeito eles. . . , se você é gay pode vir para minha casa,


mas não tente fazer aquela merda comigo. Não tente trepar
comigo! Mas traga a sua irmã, que você vai poder olhar !
(Godfrey, 1 992, apud Hcaley, 1994, p. 87).
A frase é notável pelo equívoco: pois a história de levar a
irmã é tradicional , mas menos comum é a proposta de ficar
olhando.fFica
r, ,.
assim curiosamente reafirmada a masculinidade,
..,,....
mas é deixada aberta uma porta, melhor uma janela, pela qual
todo desejo é bem-vindo: ::-,
Dir-se-á que o equfvoco é deliberado: era necessário que
Mark mantivesse uma posição, digamos, prometedora, para
confirmar seu valor como ícone publicitário para Calvin Klein e
para o público gay, que essa publicidade eventualmente alvejava.
Mesmo assim, a resposta de Marky Mark nos interroga. É
como se sua pretensa masculinidade se encontrasse de alguma
forma colocada em dúvida pelo simples fato de ele se oferecer a
um olhar desejante e, potencialmente, ao desejo dos outros. Por
isso a resposta de Mark desmente seu intento: no momento mesmo
em que ele se coloca como o machão para a irmã, _n_ªº-P�X:<1:.d� s,� -­
o(�!(?Çyf ª9 _qesejo do. .irmão _ que fiç_ª(ia olhllnqo.
Desenha-se assim um paradoxo que talvez seja inerente à
posição do homem que precisa ou quer exibir sua masculinidade,
propô-la publicamente ao desejo. Parece que, justamente por se
mostrar e declarar, a mascul inidade se encontra contestada,
colocada em dúvida.
Por mais que sua masculinidade seja explícita (tanto por suas
declarações, quanto pelos próprios clichês do macho que ele
mostra), Marky Mark se encontra, de alguma forma, feminizado
aos olhos da população feminina e homossexual .
Analogamente, uma parte relevante das revistas que, desde
os anos 1 970, foram criadas sobre o modelo da Playboy e
destinadas a um público feminino, na verdade encontram a maioria
de seus leitores entre os homens. A coisa é bem conhecida pela
agências de marketing, embora denegada pelas mesmas revistas.
É bem possível que, do lado dos espectadores, se opere uma
espécie de suposição pela qual quem "gosta de ser desejado",
Apênd ice. fe m i n ihdade masculina 73

quem se oferece ao desejo não estaria tão prestes a levantar


dificuldades sobre o sexo de quem se dispõe a desejá-lo. Mulheres
ou homens, tanto faz, à condição que me olhem ! , parece dizer
Marky Mark, quando convida o eventual homossexual a ficar e
olhar. Resta saber se essa suposição é certa ou não.
O pin-up masculino parece dever resolver uma equação
impossível: desmentir a passividade que inevitavelmente lhe seria
conferida por seu e s tatuto de imagem, pela exib i ç ão
exponencialmente crescente de signos de sua masculinidade ( ou
de machismo).
Healey sugere que a imagem enquanto tal, a tomada de
imagem, constitui uma espécie de processo de feminização. Não
seguirei indiscriminadamente o autor por esse caminho. Ou, no
mínimo, acrescentarei que essa equação impossível se verifica
seletivamente quando a imagem que o "macho" quer propor de si
está destinada visivelmente a suscitar o desejo sexual do
espectador.
Em outras palav �a� , e � a voltar ao que a� ui interes � a:
parece que o fato de ex1b1r-setoferecer-se como obJeto de deseJo,
é por si só suficiente para indicar a posição feminina de quem
assim se exi'2i} A questão dos pin-ups masculinos e de Marky
Mark estende o valor desse enunciado até o caso em que esteja
sendo exibida a própria masculií!idade.
É, provavelmente, um dos dramas da masculinidade o de
não poder exibir-se, ou, no mínimo, de se confrontar com a difícil
questão do que seria dar mostra e prova de masculinidade. Pois,
como já aparece, a --�J.(,ibj_çij9 im<1gtn4ria, ela_ µiasculinidade - na
medida em que alveja o desejo de quem olhar - g compromete ou
a reverte em seu contrário.
Retornando ao exemplo acima citado, Marky Mark, apesar
de repetir inúmeras vezes sua escolha heterossexual, não se viu
impedido não só de ser desejado pelos gays, mas também dito
como um na medida em que expunha seu corpo, sendo essa
exposição referida à confirmação de seu corpo femin izado. Aqui
é importante ressaltar que t:;J<,P,QI: . 9 .Ç QfPº não . sign i fi c:_�
simpksm�11t� most ���l,Q. · Numa praia nudi�ta ·o s· corpos estão
74 E l ia n a d o s R e i s C a l l iqa • is

expostos ao sol, não ao desejo. O mostrar que implica feminilidade


�é'ãqÚe]e que.expô� e propõe-O corpo ao o]har desejante dos OU!rii'.J
Quando falo em exposição, exibição, demonstração do corpo,
estou sempre me referindo ao desejo, ou seja, penso num
movimento que temcomo alvo encontrar o desejo do Outro. Estou
sempre situando essa ·exposição 110 camírihô füfigiêfõâ�contrar,
como retomo, a confirmação de que ;ó córpo produz desêjõ>
Esse fato dê �rônica cultusal._Q epísóâiéi de 'Marky Mark,
parece apontar para uma, c;alescêncÍà: entre a feminilidade e o
fato d e propor o corpo àó desejo, coalescência da qual
encontramos uma série de verificações na fala cotidiana, assim
como na clínica. É freqüente que mulheres reconheçam ou
apontem como feminino o mais atlético dos homens, vestido de
couro, grosso bigode, grandes tatuagens e ostentando entre as
pernas sua enorme Harley & Davidson. Como se todos esses
aparatos, que para um olhar desavisado poderiam ser confundidos
com a confirmação da masculinidade, passem rapidamente para
o outro campo, na medida mesma em que são percebidos em um
projeto de exibição do corpo, ou melhor, de proposta do corpo ao
desejo dos outros. De novo, tal percepção remete quase a uma
mecânica feminização do corpo, desde que este queira "aparecer"
como desejável. É interessante notar que a eventual queixa das
mulheres não concerne à orientação sexual do homem criticado:
se ele, por exemplo, é acusado de homossexualidade, é apenas
pelos traços externos de feminilidade comumente associados com
essa orientação sexual.
De fato, muitas vezes esse homem "exibido" recebe olhares
admirativos das mulheres. Mas esses olhares têm a função de
tentar desvendar qual o �tg�ri<:> do b rilho que . produz olhares._e .
interrogar: com9 eu (umª rnulh�d.Q9_c:i_� rja faz�r p�ra estar no seu
lugar? Ou sej11,, fi�J.�gªr!;le ond_eJ ie§p�rtll.r RQ�§ÊÍ<>:Como poderia
ocupar uma par�cl� 11a g�lerja dos corpos huqtlln9s'?
É o que surge facilmente no mal-entendido que assim se
produz em um casal ou mesmo socialmente: um homem, instigado
pelo olhar feminino que parece pousar sobre seu bíceps de
caminhoneiro e seus peitorais de nadador, pode tentar - sobretudo
Apêndice. fem i n i l idade m a s c u l i n a 75

nesta época em que a modificação dos corpos está na moda -


construir músculos até se parecer com o objeto aparente do desejo
feminino. Sua decepção será total quando a mesma mulher que
ele quis seduzir ou agradar poderá lhe dizer que ela não gosta
desse tipo de corpo masculino, e - pior ainda - que acha uma
forma de "bichice" (como se expressou a mulher de um paciente)
uma tal erotização do corpo por um homem. Desesperado, ele
poderá protestar com seu analista, por exemplo, lamentando a
incurável histeria de sua mulher. De fato, não tem porque
reconhecer nessa breve situação um golpe histérico. A mulher da
história não está necessariamente infl igindo a seu homem a
humilhação de ver seus esforços masculinos transformados em
reveladores de sua feminilidade. Acontece que o olhar feminino
que pousa com interesse sobre um corpo masculino exibido,
oferecido ao desejo, é um olhar investigante, talvez invejoso, cujo
pressuposto é justamente a feminilidade do corpo masculino que
se expõe.
Fátima, 30 anos, relatava em algumas sessões de análise o
quanto sofria ao entrar no banheiro e encontrar seu marido
revisando seus músculos perante o espelho ou mesmo retirando
cravos ou espinhas. Relatava o quanto as diárias sessões de
ginástica do marido a incomodavam. Comentava: "Ele parece uma
bicha, se admirando, se cultuando, não pode passar diante de um
espelho sem verificar se sua aparência continua sendo desejável.
Na praia gosta de usar sungas minúsculas e não paga imposto
para retirar sua camisa na presença dos outros" .
O desprazer com a exposição e os cuidados do corpo de
seus companheiros é bastante freqüente na fala de muitas
mulheres, e não é um mero sintoma de ciúmes de que outras
mulheres coloquem seus olhos sobre o corpo de seu homem. t,,Jgg
mais se decanta dessa observação. A equação que se apresenta
- é:
·um êõ'rp;'Je homem, quanto mai;-s·ê oferecê, niiis sé' p�;de
enquanto corpo masculino. Passa, inevit�yelmente, a ser um corpo
de homem erotizado como feminino:_'Qferecer-se como causa e
efeito de desejo seria um traço próprio da feminilidade) '-< - � - r i•"
76 E l i a n a do s R e i s C a l l iq a r i s

Oferecer seu corpo, prostituere, colocá-lo em exposição,


com a intenção primeira de que ele seja percebido como um corpo,
pura carne, com seus contornos, cores, cheiros, movimentos, ou
seja, com a intenção, enfim, de que exista enquanto corpo e seja
como tal desejado é, de fato, uma fantasia das mulheres que
remonta à mais tenra idade.
S ão as meninas (ainda muito crianças, às vezes quase bebês)
que mostram a-.p.icada. do mo_§quit9 11a nádega - muitas vezes
imperceptível, mas é óbvio que não se trata de mostrar a picada -;
são as meninas cujas bocas, ao beijar os adultos, escorregam "sem
querer" ju_n�C> aos lábiosi de quem lhe oferece a face; são elas que
se al�grã.in ao d�seóhâ o contorno dos l�bios com batom, o cheiro
�a -pele -com .perfumes, a forl!1� -d9_ l:Ç>íp9 COID JOUpas CO_l a�!�S.
· Enfim, desde muito jovens as mulheres já parecem perceb�r que
o ticket para o feminino é uma tênue linha entre ressaltar e
esconder o corpo, mas onde esconder seria dramático sem
ressaltar.
Prostituere se toma uma fantasia que permanentemente se
produz na vida adulta das mulheres, como vimos, pela presença
explícita ou recalcada de uma fantasia de prostituição ou mesmo
pela atuação - às vezes violenta - da própria entrega.
Esse traço do feminino cria vida própria. Não só ele vem
fazer parte das idealizações masculinas da feminilidade, mas se
constitui como um critério social de feminilidade.
REFERÊNCIAS

Uma bibliografia completa das obras lidas e consultadas nos pa­


receu demasi ado pedante. Escol hemos, portanto, limitarmo-n o s às
obras citadas no texto. No entanto, algumas obras - embora nunca ci­
tadas - foram demasiado significativas para que pudéssemos deixar de
mencioná- l as . Decidimos, então, acrescentar uma lista essencial de
obras "consultadas".

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Janeiro: Imago, 1 976. v. XI.
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ria da sexualidade. ln: Edição Standard Brasileira das Obras Psicoló­
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