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PROSTITUIÇÃO:
Ü ETERNO FEMININO
escuta
© by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
2• reimpressão: outubro de 2006
EDITORES
Manoel Tosta Berlinck
Maria Cristina Rios Magalhães
CAPA
Laika Designers Associados,
com foto de Leo Spigariol
PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches
acervo
lacaniano
Para Contardo,
Justfor a while ...
NOTA
Conclusão 69
Referências TT
LAURA:
fANTASIA DE PROSTITUIÇÃO
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Y!Y9.i ..�}�·t·i�·o:t)A •'Pi�-�í-�QB[�,i.i,L.fil.!�t�!!� ia acabam�
transformando-se em culpa moral para nos salvar da realização,
pois de outra forma não teríamos como viver neurotical}leffte; ou =-;-'
seja, desejando o impossível. ( } v êl \.
1..,
--
sem que o amor, mais uma vez, funcionasse com baneira inibitória
do desejo sexual.
Para Laura, a fantasia organizadora do desejo estava sempre
diretamente relacionada com o fato de que o parceiro sexual fosse
um "desconhecido", um homem sem nome ou, como aconteceu
no relato acima, quase sem nome. Evidentemente, cada vez que
ela realizava suas fantasias sexuais, produzia-se um certo pânico,
uma sensação de desamparo, e a única saída da angústia era a
saída da cena, o que era facilitada pelo fato de pouco ou quase
nada saber ou conhecer dos homens com quem ela se relacionava
sexualmente, ou seja, com quem realizava suas fantasias.
Com os homens que amava, ela costumava dizer que "fazia
amor", com os desconhecidos que "gozava" . O amor que ela
permitiu ( ou pela primeira vez teve condições de permitir) que
acontecesse com o mesmo homem com quem "gozava" fez com
que o estado de desamparo não mais existisse.
Utilizarei o caso de Laura como exemplo para pensar a
�on�trução fantasmáüca feminina. O que me interessa é o valor
eróticõ qüé as frases "°Se éü sair com ele sou uma puta" e "Agora
ele vai me pagar" produzem, tanto na continuação da história e
da fantasia, privilegiando este homem como objeto de desejo,
quanto (ria compreensão dessas frases a posteriori), aviV!l!!QQ .Q
_
. ardente encanto de Laura pelo desconhecido.
· . -- Quatro questoe's sao importantes:
• Por que, para Laura, a decisão de conhecer o desconhecido
mais intimamente é permeada de sobressaltos ao redor da
questão que se transveste de moral: "se eu sair com ele sou
uma puta"?
• O pensamento de Laura "agora ele vai me pagar" abre que tipo
de erótica?
• O que pode levar uma mulher a fazer esta fantasia, "agora ele
vai me pagar"?
• Qu!ll é a função dq _gesconhecido nessa ficmtasia?
·í_ . •o ' C()I:po d; ·uma �ulhe� é bastante privado de qualquer
/ significação.A significação para um menino passa, como sempre
· nos lembra Freud, pelo fato de ter um corpo de homem, uma
18 E l i a n a d o s R e i s -C a l l i q a r i s
/,
,,. _..,, A figura da prostituta tem um efeito poderoso sobre o
,-,-
TRAN S I ÇÃO
eterna dívida de não ter perdido nada em seu corpo, ser sempre o
mesmo, é uma forma de não correr riscos).
Portanto, um corpo de mulher, na fantasia masculina, é mais
livre, pode com mais liberdade gozar, é o corpo que não deve
pagar, não está endividado com ninguém. Algo importante aqui se
apresenta, pois talvez o corpo que reveste as fantasias masculinas
sobre a feminilidade não seja um corpo de mulher, mas sim um
corpo que podemos pensar como um hipotético corpo puramente
feminino (diferente de um corpo de mulher). Essas fantasias
imaginam um corpo que se oferece incondicionalmente. Não raro
ouvimos homens que comentam: "Se eu fosse mulher, seria uma
puta". Como se na fantasia masculina o próprio do corpo de uma
mulher fosse a liberdade em se oferecer ininterruptamente. Se
assim fosse, a mulher seria sempre feminina, um eterno vazio,
sem significação própria, pronta a se oferecer ao gozo e às
fantasias dos outros.
No começo dos anos 1990 houve, em jornais e revistas
americanas, um debate que foi apresentado num especial da Folha
de S. Paulo2 sob o título "Sexo, pornô e neopuritanismo". Os
temas ainda criam polêmicas na sociedade norte-americana (e
no mundo) e valem para lançar a questão dos descaminhos criados
quando o poder público tenta dar conta da sexualidade humana
(sobretudo feminina).
O senador republicano · Mitch McConnell, de Kentucky,
apresentou um projeto de lei (um decreto de compensação às
vítimas da pornografia), que permitia que as vítimas de crimes
sexuais (ou seus representantes) entrassem com um processo
contra publicações pornográficas que teriam inspirado os atos de
seus algozes. O projeto de lei visava responsabilizar a pornografia
(livros, fotos, revistas e filmes) pelos crimes sexuais de psicopatas.
Parecia, como escreveu Bernardo Carvalho - escritor e jornalista
da Folha - "que esse senador se aproveitava de uma tendência
5. Boston Women ' s Health Colecti ve, 1 97 5 , S i mon & Schuster. Edição
revisada em 1 992 e 1 996.
40 E l i a n a J o s R e i s C a l l iq a r i s
6. 9 de março de 1992.
A n Jrea: Pro slilu isão como v iol ê n c i a 43
foi aquele que lhe retirou, ou não lhe concedeu, um pedaço a mais
de carne, um pedaço que o pai ainda lhe está devendo.
Ferenczi escreve:
/ ( . . . ) a condição prévia do primeiro gozo sexual plenamente
feminino é j ustamente uma lesão orgânica: a ruptura do
hímen pelo pênis e a dilatação brutal da vagina. Suponho
que essa lesão, que originalmente não traz gozo sexual ,
acarreta, secundariamente, o deslocamento d a libido sobre
__ a vagina ferida ( 1 929, p. 43 ).
No entanto, a lesão não seria suficiente para deslocar a libido
sobre a vagina ferida, mas a vagina ferida é a ressignificação de
uma outra lesão que a fez mulher, que a fez reconhecer-se diferente
do seu semelhante homem. O que tento pensar é o seguinte: como
essa ressignificação pode ser sintomatizada ou usufrµ_ída.
a
É estranho que p�ópda Àndreá bwÓrkin não se releia e
não perceba com que persistência ela procurava atrás dos
armários, perto de Deus, os livros ditos pornográficos de seus
patrões (clássicos como Ulisses, por exemplo ... ).
Quiçá pretendesse lê-los para poder cada vez criticá-los e
colocar-se como a virgem indeflorável. Ou, então, como a ex
virgem deflorada pelo homem canibal. Toma-se necessária uma
ressalva. Nada do que estou tentando apontar vai no sentido con
trário a uma luta ferrenha contra a violência. A população femini
na realmente sofre de constantes ataques e violências sexuais
nas ruas do mundo inteiro. Mas permanece a constatação de que
exatamente os EUA, o país ocidental onde a bandeira do moralis
mo e do neopuritanismo é mais sacudida, é um dos países com
maior índice de violência sexual (embora o valor comparativo do
índice seja problemático, pela alta percentagem de violência
que são denunciadas e registradas), sendo que, nos países onde
não há censura em relação à pornografia (como os países nórdi
cos ou a Holanda, por exemplo), o índice de violência sexual é
próximo a zero. Essas observações levam a pensar que talvez a
maneira de ataque à violência sexual não seja a supressão da
pornografia.
A n d rea : P r o s lilu i � ã o c o m o v i o l � n c i a 45
\·-t' -,· '.� encontro diferente do que é buscado numa fantasia neurótica como
a de Laura. As meninas procuram um encontro com o pai
imaginário, que é cruel e que priva, o pai da noite. É aquele pai
R o c � e le : U ma p r o s l i lui s ã o realizada 61
I . 25 de maio de 1 993.
R o c h e l e : U ma pr o slilu i�ão r ealizada 63
Deus (pai do dia), que, mais cedo ou mais tarde, sempre se revela
Diabo (pai da noite).
Resta a dúvida se Rochele, tendo sua primeira foto rasgada
- aliás, ela teve muitas fotos rasgadas pelas várias mães -,
encontrará outro meio de refazê-la, que não seja passando por
entregas reais sem respaldo simbólico.
A inquietação sobre este tema é sem fim, pois é ínfima a
possibilidade de que as meninas de rua saiam da realidade quase
zoolQgica que lhes é oferecida.
/_.,_.-- É como se lhes fosse pedido que mantivessem o imaginário
/ do carnaval, do futebol e das putas e seguissem sustentando o
refrão da música que os estrangeiros adoram: "não existe pecado
do lado de baixo do Equador" . Já que elas têm o "diabo no corpo"
e são " menina s sem foto", d�.Y�� -����� n��r _expulsas -�-ºJ>..��!s.?_:. .
Ü B R A S C ITADAS
LEITE, Gabriela Silva. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tem
pos, 1992.
MELMAN, Charles. A lcoolismo, delinqüência, toxicomania - uma ou
tra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1 992.
MURPHY, Emmet ( 1 983). História dos grandes bordéis do mundo. Por
to Alegre: Artes e Ofícios, 1994.
/ PoMMIER, Gérard ( 1 985). A exceção feminina. Rio de J aneiro : Jorge
\ _Zahar, 1 987.