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Resumo
A pesquisa objetivou conhecer o papel desempenhado pelas famílias de adolescentes ex-abrigados em uma instituição do
município de Uberaba (MG), durante o processo de institucionalização/desinstitucionalização que viveram. Participaram do
estudo cinco famílias que haviam recuperado a guarda dos filhos. Os materiais utilizados para coleta dos dados foram entrevistas
semi-estruturadas com o pai ou a mãe dos adolescentes, com os próprios adolescentes e com a diretora do abrigo; fichas de
identificação socioeconômica; verificação de livros de registros do abrigo e das pastas arquivadas com informações dos adolescentes;
e diários de campo da pesquisa. Os resultados apontaram que as causas que levam ao abrigo são multifatoriais, associadas à
pobreza, carência de rede de apoio sócio-psicológica para a família, ausência da figura paterna e desestruturação familiar. O
período de institucionalização apresentou-se como doloroso para filhos e genitores. O trabalho das instituições envolvidas, o
desejo dos adolescentes de sair do abrigo e a reestruturação financeira das famílias foram fatores que auxiliaram no desligamento
dos abrigados. Contudo, o estudo evidencia a necessidade de um acompanhamento multiprofissional pós-desligamento.
Unitermos: Abrigos. Adolescentes. Desinstitucionalização. Estrutura familiar. Família.
Abstract
This research aimed to evaluate the role exercised by families of adolescents experiencing the process of institutionalization/ FAMÍLIAS: UM OLHAR SOBRE O ABRIGAMENTO
deinstitutionalization, in an entity in the city of Uberaba, Minas Gerais. It studied five families who had regained custody of their children.
The materials used to collect the data included semi-structured interviews with the parent(s), the adolescents themselves and the director
of the institution; socioeconomic identification records; examination of the institution’s record books; adolescents’ information files; research
field diaries. The results showed multifactorial reasons for the sheltering, associated with poverty, lack of socio-psychological family support
from the community health centers, absence of the father figure and a poor family structure. The sheltering period was painful for both
children and parents. The work of the institutions involved, the adolescents’ desire to leave the institution and the financial restructuring of
their families helped with the process of deinstitutionalization. However, the study showed the need for subsequent multi-professional
monitoring.
Uniterms: Refugies. Adolescents. Deinstitutionalization. Family structure. Family.
1 Artigo elaborado a partir da dissertação de A.M.G.C.C.V. AZÔR, intitulada “Abrigar... desabrigar: conhecendo o papel das famílias no processo de
institucionalização”. Programa de Mestrado em Psicologia Aplicada, Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia. 2005.
2 Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Psicologia. Av. Pará, 1720, 38405-320, Uberlândia, MG, Brasil. Correspondência para/Correspondence to:
C. VECTORE. E-mail: <vectore@ufu.br>. 77
da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei Federal n. 8069 tíficas acerca da problemática referente à perda do pátrio
de 13 de julho de 1990) e a Lei Orgânica de Assistência poder (Alves, 2000) e as conseqüências na vida dos que
Social (1993), além de alguns projetos governamentais, se encontram institucionalizados. Contudo, deve-se
entre eles o Programa de Atenção Integral à Família mencionar que, no Brasil, a partir dos anos 80, iniciativas
(PAIF) e o Programa de Saúde da Família (PSF), foram como a fundação do Centro Regional de Atenção aos
criados com o objetivo de propiciar um atendimento Maus Tratos na Infância (CRAMI), em 1985, no município
3 A Roda de Expostos era um mecanismo giratório, no formato de um cilindro oco de metal ou madeira, com duas portas, uma que se abria para fora e outra
para dentro da instituição, fixado normalmente, no muro de locais de acolhimento (hospitais, igrejas), no qual se “depositava” a criança enjeitada em seu
78 interior; assim, o “depositante” tocava uma campainha e girava a roda, de modo que a criança pudesse ser acolhida, sem a identificação de seu portador.
Método
Instrumentos
Participantes
Os instrumentos utilizados no trabalho foram:
O estudo foi realizado com cinco famílias que 1) Análise do livro de registros do abrigo, para a seleção
tiveram seus filhos abrigados e que recuperaram o da amostra estudada; 2) Fichas de identificação sócio-
direito de inseri-los no contexto familiar4. A família 1 -econômica dos genitores e adolescentes; 3) Entrevistas
constituiu-se da mãe e de seus dois filhos, Antônio e semi-estruturadas gravadas em áudio com os adoles-
centes, contendo dados sobre a situação da família no
João, abrigados por um período de 14 e de 16 anos,
momento da institucionalização (ressalta-se que, por
respectivamente. A família 2 constituiu-se da mãe e de
serem bastante jovens no momento do abrigamento,
seus três filhos, Pedro, Francisco e Adriana, abrigados
tais dados se referem tanto às suas próprias lembranças
durante 4 anos. A família 3 constituiu-se do pai e de
quanto a informações transmitidas a eles sobre as
seus três filhos, Mário e Jennifer, abrigados durante 8
experiências durante e após o abrigamento); 4) Entre-
anos, e Marta, abrigada durante 4 anos. A família 4
vistas semi-estruturadas gravadas em áudio com os
constituiu-se do pai e de suas duas filhas, Alessandra e
genitores, contendo dados sobre a situação da família
Maria, abrigadas durante 11 anos. A família 5 constituiu- no momento da institucionalização, do período de
-se da mãe e de um filho, Alberto, abrigado durante 9 abrigamento e do período pós abrigamento; 5) Pastas
anos. Todas as famílias residiam na cidade Uberaba (MG). arquivadas dos adolescentes, para a confirmação dos
As famílias participantes foram escolhidas de dados oriundos das entrevistas (intercorrências no
acordo com os seguintes critérios: a) presença de genitor período de abrigamento); 6) Entrevista com diretora da
(pai ou mãe) que recuperou o direito à convivência com instituição; 7) Diários de campo.
o(s) filho(s); b) filho(s) institucionalizado(s) por um período
igual ou superior a 12 meses; c) desligamento do filho Procedimentos
ocorrido há pelo menos 12 meses; d) filho(s) com idade
igual ou superior a 12 anos. Inicialmente, a pesquisadora, que é funcionária
O primeiro critério justifica-se pela necessidade da instituição há mais de uma década, estabeleceu um
de se ter dados oriundos do responsável pela retirada contato pessoal com a diretora do abrigo, o qual foi
do(a) filho(a) do abrigo, de modo a se conhecer todos devidamente formalizado, de acordo com todos os
os fatores que estão presentes no momento da tomada procedimentos contidos na Resolução n. 196/96 do
de decisão pela institucionalização, e também pela Conselho Nacional de Saúde (CNS), que trata da pesquisa
desinstitucionalização. Quanto ao tempo de abriga- com humanos, objetivando a permissão para a utili-
A.M.G.C.C.V. AZÔR & C. VECTORE
mento, acredita-se que cerca de pelo menos doze meses zação do livro de registros contendo os nomes de todas
possibilita um melhor conhecimento da rotina institu- as crianças/adolescentes abrigados; as datas de nasci-
cional, o mesmo podendo ser dito em relação ao critério mento, de entrada e saída do abrigo; as pessoas respon-
de pelo menos doze meses pós-abrigamento, no que sáveis pelo desligamento, com o grau de parentesco
se refere às experiências vividas fora do contexto anotado; e os encaminhamentos para outras insti-
institucional. Em relação à idade igual ou superior a 12 tuições. Nessa etapa, a pesquisadora selecionou sete
anos, deveu-se à acessibilidade aos instrumentos famílias.
- A família 1 foi procurada inicialmente por - A família 5 foi procurada pela pesquisadora no
telefone, e o contato foi marcado para um domingo, às local de trabalho de Joana (mãe), que a recebeu com
15 horas, em sua casa, com o objetivo de fornecer comportamentos que denotavam hostilidade, como:
esclarecimentos sobre o trabalho (rapport). A primeira dirigir-se à pesquisadora de maneira abrupta: O que você
entrevista foi feita com João (ex-abrigado), no sábado quer?; manutenção de pouco contato visual; e atitudes
seguinte, e teve a duração de aproximadamente 40 evasivas, minimizando qualquer proximidade física com
minutos. A entrevista com a mãe foi feita na outra a mesma. Após várias tentativas fracassadas de contato
com a mãe, a entrevista foi realizada na moradia desta,
semana, e a duração foi de cerca de 50 minutos. A última
e durou cerca de 50 minutos. A entrevista com Alberto
entrevista foi realizada com Antônio (ex-abrigado), com
(ex-abrigado) teve a duração de cerca de 30 minutos e,
duração de 55 minutos, perfazendo um total de 2h25min
ao contrário dos demais adolescentes participantes, foi
de gravação com a família.
difícil de ser realizada, devido à baixa motivação deste
- A família 2 foi procurada pela pesquisadora no para participar, o que pôde ser observado por sua recusa
FAMÍLIAS: UM OLHAR SOBRE O ABRIGAMENTO
local de residência dos participantes, a fim de estabe- verbal inicial em auxiliar no trabalho. As duas entrevistas
lecerem os dias e horários para a realização das entre- perfizeram um total de 1h20min de gravação. Esclarece-
vistas. A primeira entrevista foi com Pedro (ex-abrigado), -se que Alberto só concordou em participar devido ao
e a duração foi de aproximadamente 35 minutos. A pedido de sua madrinha, em cuja casa a entrevista foi
segunda entrevista foi feita com Francisco (ex-abrigado), realizada.
e a duração foi de aproximadamente 35 minutos. A Finalmente, foi realizada a entrevista com a
terceira entrevista foi realizada com a mãe, e durou cerca diretora do abrigo, que acompanhou a inserção das
de 50 minutos. A última entrevista foi realizada com crianças na instituição e o seu período de abrigamento,
Adriana (ex-abrigada), e durou aproximadamente 40 visando conhecer e complementar dados referentes a
minutos, perfazendo um total de 2h40min de gravação tais aspectos. Após o término da etapa das entrevistas,
com a família. foram coletados dados oriundos das pastas existentes
- A família 3, apesar de algumas tentativas no abrigo, de modo a se dispor de um material passível
fracassadas de contato, foi encontrada em um domingo de ser confrontado com as informações dos familiares. 81
para o abrigo. Eu pedi pra ele me dar dois meses de prazo... própria casa. A mãe considera que deveria ter tido uma
Quando foi em agosto, tirei elas de lá... . No final a pessoa preparação psicológica e não somente ajuda financeira.
tem que abandonar, enquanto eu bebesse ele não ia liberar. É interessante observar que tal suporte psicológico foi
Se eu parasse, ele liberaria...” (Walter). oferecido por estagiários do curso de Psicologia, sendo
O período pós-desligamento foi e continua recusado por ela. Por meio dos relatos da mãe e de seu
sendo difícil para o pai e as filhas, devido tanto às filho, compreende-se que a institucionalização parece
dificuldades de relacionamento entre eles, quanto aos ter sido algo doloroso e que o abrigamento, por um
problemas econômicos. Todos acreditam que o abrigo período de nove anos, foi prolongado demais, gerando
proporcionou aprendizagem e oportunidades. Maria um grande distanciamento entre mãe e filho, e uma
84 aconselha aos adolescentes abrigados: “Que aproveite, aparente ausência de vínculo entre eles. Ela menciona:
em guardar os objetos pessoais, cortar os cabelos, vestir riamente vulnerabilidade, pois há aspectos inerentes à
roupas da instituição e receber instruções quanto às resiliência individual que protegem o indivíduo de
regras; e, finalmente, com a imposição de uma rotina desencadear um distúrbio perante um fator de risco,
de vida estranha à sua singularidade. Para Bowlby (1981), conforme demonstrou João, que conseguiu concluir o
a constituição de tal panorama opõe-se à possibilidade curso de Odontologia. Por resiliência, entende-se a
de um desenvolvimento saudável na infância e juven- busca “...de compreender os processos e condições que
tude. As mudanças típicas da adolescência parecem possibilitam a “superação” de situações de crises e
dificultar o abrigamento. Segundo Winnicott (1999), há adversidades” (Yunes, 2003, p. 83).
necessidade de se ter um “ambiente facilitador”, com a É interessante apontar as iniciativas interna-
86 presença de adultos capazes de permitir o confronto e, cionais mencionadas por Tolan e Dodge (2005) e Huang
Considerando-se a importância do período de zero a Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2003). Levanta-
mento nacional de abrigos para crianças e adolescentes da
seis anos de vida para um adequado desenvolvimento Rede de Serviço de Ação Continuada. Brasília: Autor.
humano, sugere-se que estudos maciços devam ser
Lei Orgânica de Assistência Social. (1993). Lei nº 8.745, de 7
continuamente empreendidos, no sentido de oferecer de dezembro de 1993.
a prestação de um serviço de qualidade, tanto a essas Marcílio, M. L. (1998). A história social da criança abandonada.
crianças, quanto às suas famílias. Para tanto, há a ne- São Paulo: Hucitec.
cessidade da compreensão do fenômeno em toda a Neder, G. (2000). Ajustando o foco das lentes: um novo
sua extensão e sutilezas, bem como de fomentar, em olhar sobre a organização das famílias no Brasil. In S.
Kaloustian (Org.), Família brasileira a base de tudo (4a.ed.,
última instância, um espaço de saúde mental, capaz de pp.26-46). São Paulo: Cortez.
contribuir com a construção de um ser humano mais Oliveira, M., & Flores, R. (1999). Violência contra crianças e
88 solidário e participante no seu contexto social. adolescentes na Grande Porto Alegre. In Associação do
89
90