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GUERRA, IMPÉRIO
E DEMOCRACIA
A ASCENSÃO DA GEOPOLÍTICA EUROPEIA
Ficha Técnica
Título: Guerra, Império e Democracia – A Ascensão da Geopolítica
Europeia
Autor: Miguel Morgado
Edição: Duarte Bárbara
Revisão: Rui Augusto
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagens de capa:
1) © Greek Triremes at Salamis, de Edmind Ollier, publicado na Cassell’s
Illustrated Universal History, s.n., s.l., 1882. Reprodução da Wikimedia
Commons.
2) © Die Seeschlacht bei Salamis, de Wilhelm von Kaulbach, 1868.
Reprodução da Wikimedia Commons.
3) © O Planisfério de Cantino, de autor anónimo, 1502. Fonte: Biblioteca
Estense Universitaria, Modena, Itália. Reprodução de Wikimedia
Commons/Alves Gaspar.
4) Napoleão Oferece o Sabre ao Comandante Militar de Alexandria, Julho
de 1798, François Henri Mulard (1769-1850). © Heritage Image/Alamy
Stock Photo/Fotobanco.pt
5) © Direitos reservados.
ISBN: 9789722076319
será chinês, como avançam alguns futurólogos. Mas sabemos que não será
americano como foi o século XX, em grande parte pela ascensão
vertiginosa da China. Uma das grandes incógnitas do século XXI não está
apenas na trajectória futura da China com as dificuldades internas que já
enfrenta e que comprometem radicalmente a velocidade e intensidade da
convergência chinesa das últimas quatro décadas. Outra das incógnitas
está na resposta política e institucional americana, e a sua respectiva
eficácia, ao desafio chinês. No fundo, está por saber até que ponto se
encontra intacta a vitalidade americana que lhe conferiu hegemonia sobre
o mundo na segunda metade do século XX.
De facto, a terceira vaga da globalização não lançou todos os países do
chamado Terceiro Mundo na escalada do desenvolvimento económico.
Alguns até podem dizer, contestando o optimismo, que o número de países
com histórias de sucesso inequívoco para contar são reduzidos: o Chile e a
Colômbia, na América Latina; o Botswana em África; algumas
monarquias do golfo Pérsico e Israel no Médio Oriente; as jovens
democracias ex-comunistas do Leste da Europa integradas na União
Europeia; Índia e Bangladesh na Ásia do Sul; a China, o Vietname, a
Malásia, Taiwan, a Coreia do Sul e, enfim, o Camboja, a Tailândia e a
Indonésia, no Extremo Oriente. Esta panorâmica grosseira deixa à vista
que muitos países ainda estão no caminho já percorrido pelos que foram
mencionados. Mas se, em vez de contarmos as fronteiras políticas,
pensarmos em termos de proporção da população mundial, então
percebemos quão extensa e integradora tem sido a terceira vaga da
globalização. Se as duas primeiras vagas de globalização foram europeias,
a terceira deixou de o ser.
Um Mundo Europeu
Até por volta do ano de 1500, a Europa era um canto pobre e com pouco
peso demográfico. Em termos tecnológicos, não era certamente liderante.
E encostada num canto da grande massa eurasiática, estava desligada do
resto do mundo, à excepção de algumas rotas comerciais de fluxo irregular
e muitíssimo ligeiro. Muitas das glórias europeias que as gerações futuras
celebrariam com orgulho, como o milagre de Atenas nos séculos V e IV a.
C., o brilho de Roma e da sua expansão, a sede finalmente estabelecida do
cristianismo, a Universidade, as instituições parlamentares medievais, o
Direito e por aí adiante, já tinham ocorrido. Os vários legados desses
feitos e instituições conjugavam-se cumulativamente com compromissos
razoáveis e outros mais precários.
Mas o culminar do Renascimento, das Descobertas marítimas
protagonizadas primeiro por Portugal e Espanha, depois pelos Holandeses
e os Ingleses, e, há que reconhecê-lo, da Reforma Protestante,
introduziram uma ruptura decisiva que produziria efeitos extensíssimos e
transformaria a face do mundo. O resultado geopolítico mais geral desta
ruptura é fácil de enunciar. A Europa saiu da sua irrelevância e passou a
dominar o mundo. Descobriu, por assim dizer, um novo continente.
Mapeou os oceanos desconhecidos. Pôs os povos do mundo em contacto,
voluntariamente e à força. Exportou e importou bens a uma escala sem
precedentes. Levou a sua religião para converter os pagãos e os selvagens.
Impôs as suas leis, as suas línguas, os seus impérios. Derrotou os exércitos
e as marinhas em toda a parte, com uma organização e tecnologia que
pareciam agora gozar de uma superioridade inalcançável. Fez crescer a
sua população de modo exponencial.
População da Europa Ocidental
em dois milénios
1999 2018
País/Região 1820 1900 1950
(2009) 2020 para a Ásia
Europa 78
36 46 67 81
Ocidental (79,7)
Japão 34 44 61 81 84
Ásia 23 24 40 66 75
África 23 24 38 52 61
a. C., muito depois da data em que este fictício diálogo teve lugar.173 Para
haver igualdade perante a lei era preciso que a isonomia fosse também
igualdade na formação da lei. E esta igualdade na sua dupla dimensão não
seria efectiva se não houvesse participação directa e universal nos
assuntos políticos da cidade. Daí que a efectividade da isonomia
dependesse da isegoria, ou a igual faculdade de tomar a palavra na
Assembleia onde todos os cidadãos tinham assento. Com isto não só se
quebrou o poder reservado aos nobres, como se atribuiu ao povo ateniense
o poder supremo de decisão, revisão e julgamento na polis. O poder cabia
ao povo como agente colectivo, mas a radical democratização do acesso
aos cargos políticos e magistraturas judiciais fazia com que cada um dos
cidadãos livres, rico ou pobre, fosse chamado a exercer de alguma forma o
poder político directo durante o seu período de vida. Ao contrário da
democracia moderna, a de Atenas deliberadamente procurava dispensar
(ou inconscientemente ignorava?) o recurso a representantes do povo. De
mais a mais, isegoria também remetia para uma certa concepção de
igualdade de oportunidades.174 Poder tomar a palavra na ekklesia reflectia
já a igual oportunidade de se dirigir aos seus concidadãos, ao ser notado
por eles, de brilhar nesse espaço público, de exibir a sua areté e de ser
admirado pelos pares. Era igualmente a igual oportunidade de envolver-se
e influenciar o rumo dos assuntos públicos da polis. Norman Rockwell
exprimiu na perfeição este aspecto originariamente ateniense no seu
quadro a óleo de 1943, Freedom of Speech.
Igualdade e liberdade eram os valores democráticos por excelência. Tal
é precisamente sublinhado em múltiplos discursos, peças de teatro,
comentários de filósofos e até em diatribes dos críticos da democracia. Ao
mesmo tempo, para os partidários da democracia em Atenas e noutras
cidades gregas, a liberdade teria de apontar para a superação da relação de
mando e domínio que caracterizava a vida política tradicional. E isto de
dois modos paralelos, mas que na mentalidade democrática estavam
estreitamente ligados. Primeiro, a liberdade era «governar e ser governado
alternadamente», contrariando relações políticas de
subordinação/superordenação perpétuas. A participação política directa e
tão equitativa quanto possível nos assuntos políticos da cidade era a
institucionalização deste aspecto da liberdade democrática. Segundo, a
liberdade democrática era «cada um viver como quiser».175 Se bem que o
contraste com quem vive «como quiser» era proporcionado pelo escravo,
não restavam dúvidas de que a liberdade democrática se afirmava por uma
certa ideia de escolha na concepção de felicidade pessoal e na adequação
da conduta de cada um a essa escolha. Daí que não seja forçada a
interpretação de que a democracia ateniense fundou uma distinção entre a
esfera pública (to koinon) e a esfera privada (ta idia) onde se movia – no
seu deme, na sua corporação, na sua família, nos seus sacrifícios pessoais
aos deuses – a pessoa privada, o idiotes.176 É verdade que seria forçado e
anacrónico, isso sim, fazer a polis grega corresponder à distinção liberal
entre Estado e sociedade civil. Mas, apesar das enormes diferenças, é
possível e útil para a compreensão aceitar a existência de uma esfera
privada e a possibilidade, moralmente censurável, de uma retirada para ela
por contraponto ao envolvimento cívico, como, de resto, décadas mais
tarde escolas filosóficas, como a dos epicuristas e a dos cínicos,
preconizariam. Não por acaso, as cidades democráticas, com Atenas à
cabeça, eram descritas pelos filósofos daquela época como uma feira de
diversidade nos modos de vida. Na República de Platão, Sócrates
procurava abolir essa esfera privada na cidade justa que estava a construir
com palavras, esforço duplamente absurdo se ela não existisse na
realidade quotidiana ateniense. A abolição da privacidade, proibindo que
se fechassem as portas de casa, a abolição da propriedade privada e a
abolição da família celebrizaram a cidade que Sócrates edificou no
diálogo para discutir o problema da justiça na alma e na cidade.
Regressando à Atenas real e concreta, é preciso recordar que a igualdade
democrática não alcançava a esfera económica, embora abundassem as
invectivas dos democratas mais radicais contra os ricos, explorando as
tensões sociais, e nalguns casos aparecessem exigências de transformação
socioeconómica.
Por sua vez, Esparta era conservadora, austera e rigorosa. Isso valia para
os costumes e a mentalidade dos seus habitantes, como para a vida
económica e política. Nesse sentido, o modo de vida espartano,
reconhecido enquanto tal na sua distinção durante séculos e séculos, era
mais distintivamente grego do que o ateniense, que já continha traços que
nos são familiares no nosso próprio modo de vida tardo-moderno. A partir
de um certo grau do seu desenvolvimento, Atenas abraçou os prazeres dos
luxos, por exemplo, ou do entretenimento, ou da privacidade. Esparta
jamais o faria. Esparta, nas exigências terríveis da educação dos seus
meninos, na lendária circunspeção, na resistência ao apreço pela
individualidade da existência, é muito mais estranha ou estrangeira aos
nossos olhos do que a Atenas de Péricles. Até do ponto de vista das outras
cidades gregas suas contemporâneas, Esparta tinha o modo de vida mais
estranho e mais distintivo de toda a Hélade. Mas durante muitos séculos
foi tão admirada pela consciência ocidental quanto as maravilhas
produzidas pela democracia ateniense. Era o regime da eunomia – das
boas leis. Não foi por acaso que, até ao início do século XIX, o
republicanismo europeu moderno manteria sempre um laço de afinidade
com a austeridade espartana, com a sua simplicidade, a sua pobreza, o seu
patriotismo inflexível e o seu respectivo desdobramento para a vida
castrense.
Em Esparta, a cidadania também pertencia a todos os homens livres. Tal
como em Atenas, estavam excluídos os escravos e as mulheres. Contudo,
a oligarquia mista espartana não estreitava a cidadania a uma parte da
população masculina. Todos eram cidadãos. Daí chamarem-se a eles
mesmos os hoi hómoioi – os iguais ou os pares. Eram iguais num sentido
muito concreto: cada cidadão recebia do colectivo da cidade um lote de
terra pública da mesma dimensão para garantir um sustento mais ou
menos igual. No entanto, essa cidadania não tinha a mesma importância
política, nem conferia a mesma possibilidade de intervenção pública que
havia em Atenas. Um conjunto significativo de cargos determinantes,
como os dois reis (basileîs), os éforos e o conselho dos anciãos (gerousía),
embora interligados entre eles, não estavam sujeitos a qualquer escrutínio
– até porque cabia a esses cargos escrutinar intensamente a vida de cada
um dos cidadãos –, nem eram limitados no tempo. O cidadão anónimo não
tinha, como em Atenas, o direito de se levantar e tomar a palavra, nem de
exercer o seu voto intransmissível em todas as questões politicamente
relevantes.
Esparta era a negação das tentações privatistas e a afirmação da
prioridade da polis sobre as considerações individuais. A educação era
pública, e a partir dos sete anos as crianças eram retiradas aos pais, ricos e
pobres, para serem sujeitas à mais feroz preparação militar. Eram
entregues a um «bando» – agélé – de meninos da mesma idade.
Aprendiam a sobreviver sozinhos, com pouca comida – e daí terem de
roubar, apesar do risco de castigos corporais terríveis se apanhados em
flagrante delito – e completamente expostos ao frio e ao calor. Eram
postos a combater em lutas de treino e a competir em provas de atletismo.
Mas também praticavam as danças tradicionais e memorizavam a poesia
espartana. No fundo, as crianças eram educadas para ser guerreiros que
lutavam até à morte pela polis. Até as relações entre marido e mulher
podiam adquirir algo de clandestino e não havia nada remotamente
parecido com a família burguesa em que marido e mulher partilhavam um
espaço, uma actividade, um tempo, uma vida. Célebres ficaram também as
refeições em comum num refeitório – o sussitíon. Os Espartanos
praticavam sistematicamente o infanticídio. Não como controlo do
crescimento da população, mas como técnica eugénica. Não podiam
sobreviver em Esparta os recém-nascidos com deformações ou debilidades
físicas.
A actividade económica era rigidamente regulada por proibições do
comércio e limitações aos artesãos. Os cidadãos com menos de 30 anos
não podiam entrar na ágora comercial da cidade. Muito dependia da
exploração esclavagista da imensa população de hilotas, os quais, segundo
as estimativas possíveis, excediam em número os seus senhores por
factores de 4, 5 ou até 6. A condenação dos luxos e da acumulação de
riqueza era um ponto de honra. As leis sumptuárias eram rispidíssimas
para reprimir toda e qualquer ostentação de luxos. Eram proibidas as
deslocações ao exterior e a entrada de estrangeiros. Todas as saídas e
entradas careciam de autorização pública. Em Esparta não se cunhava
moeda. Como meio de troca usavam-se lingotes chatos de ferro. E houve
períodos em que se proibiu a posse privada de prata e de ouro.177
Em Esparta cada cidadão livre cobria-se de deveres que não eram
necessariamente compensados com direitos, muito menos com direitos
reivindicáveis contra a cidade. No entanto, a busca da imortalidade
pessoal através da boa fama póstuma, e evitando a má reputação, era
igualmente importante. Na famosa Batalha de Termópilas, o rei de
Esparta, Leónidas, decidiu ordenar aos aliados que retirassem. Ficou ele
com os seus 300 soldados para enfrentar os Persas numa luta até à morte.
Para a sua motivação contou tanto o desejo de fama heroica como a
informação de que um oráculo previa ou o extermínio da Lacedemónia,
ou, se um rei de Esparta morresse, a vitória espartana na guerra contra os
Persas.178 A glória pessoal era atribuída pela cidade e estritamente
dependente da sorte da cidade. No final, era a sobrevivência e a vitória de
Esparta que importavam. O heroísmo da obediência e a lealdade à cidade
valiam mais do que o brilho pessoal. Tirteu, o grande poeta espartano, não
cantou outra coisa.
Com a imensa multidão de escravos que sustentava a república, não
admira que os Gregos apontassem para o medo, e para a desconfiança do
estrangeiro, como os aguilhões das decisões dos Espartanos de ir para a
guerra ou de proceder a movimentos bruscos na sua orientação política.
Não de um medo físico da morte no campo de batalha. Pelo contrário, na
situação de guerra, o que havia era o medo da vergonha da cobardia. Na
estratégia política geral, o que havia era um medo estratégico, se é lícita a
expressão. Afinal de contas, havia uma multidão de rebeldes em potência
à espreita de uma oportunidade. E havia também um terror do castigo dos
deuses. Em Esparta, a religião educava cada cidadão a cumprir
devotamente a tradição política, a obedecer às leis e a dar a sua vida pela
cidade com a ameaça da fúria dos deuses sempre presente.
Se a Atenas democrática era a turbulência ruidosa das suas assembleias
e a inconstância das suas decisões e as lutas intestinas, Esparta era a
ordem e a estabilidade. Se Esparta era o repouso, Atenas era o movimento.
A coragem militar de ambas distinguia-se também por aí: a do soldado
espartano caracterizava-se por ser a coragem de quem não arreda pé, a
coragem defensiva; a do soldado ateniense era a da ousadia orientada para
o exterior, a coragem agressiva.179 Nessa medida, e além do modo de vida
disciplinado ao modo militar, o regime espartano era associado à
moderação. No entanto, o conservadorismo e tradicionalismo espartanos
também a inibiam e limitavam nas grandes escolhas e nos riscos da
guerra. Atenas levava a melhor na arte da guerra porque alimentava
politicamente, isto é, democraticamente, a propensão para o risco.180
Até à Guerra do Peloponeso, Esparta preservara o seu regime intacto
durante quatrocentos anos. Podia apelar à sua tradição política como
nenhuma outra cidade grega. Atingira o auge do seu poder na viragem do
século VI para o século V a. C., quando Atenas ainda não era o império
talassocrático que viria a ser quando ambas as cidades se confrontaram.
Mais, depois de dominar os seus rivais no Peloponeso, Esparta cobriu-se
de um imenso prestígio por ter «libertado» várias cidades gregas – com a
excepção das longínquas cidades gregas em Itália e na Sicília – de
governos tirânicos. Com efeito, os nobres ou os agathoi de cada uma
dessas cidades pediam ou convidavam Esparta para efectuar essa
libertação, substituindo o tirano local por um governo oligárquico baseado
nas leis e nos costumes. De resto, em 510 a. C., Esparta libertaria Atenas
da «tirania» dos descendentes de Pisístrato, momento que seria sempre
visto pelos democratas atenienses como decisivo no caminho para o
triunfo pleno da democracia como forma de governo em Atenas, algo que
só ocorreria na sua versão mais consolidada em plena guerra contra os
Lacedemónios. A expulsão dos tiranos em Atenas abriria caminho à
ascensão de Clístenes, que instauraria a democracia sucessivamente
aprofundada até ao período de Efialtes e de Péricles. Por todas essas
razões, poucos anos antes do início das hostilidades, quando a Hélade teve
de enfrentar a ameaça mais terrível de extinção vinda da Pérsia, Esparta
fora a cidade líder da aliança de cidades gregas que heroicamente lhe
resistiu. Ora, se, muitos anos antes, Esparta livrara a maioria das cidades
gregas dos tiranos que as governavam, incluindo Atenas, é preciso
acrescentar que Esparta jamais fora governada por um tirano.
A política de Esparta de derrube das tiranias não tinha propriamente
como propósito substituí-las por oligarquias. A sua preferência era por não
interferir directamente na política das cidades libertadas. Por vezes,
favoreciam as nobrezas locais e fomentavam a edificação de oligarquias.
Daí resultava uma grande autoridade e prestígio de Esparta sobre as outras
cidades, em particular sobre as cidades do Peloponeso, o que conferiu aos
Espartanos o controlo político do vasto território da Lacónia e da
Messénia. A pacificação política do Peloponeso, e a grande aliança que
propiciou a reunião dos recursos das outras cidades do Peloponeso
liderada por Esparta, traduzia-se também em força para decidir os destinos
da Hélade.181 Mais tarde, durante a guerra que a opôs a Esparta, o
espartano Brásidas proclamaria que a causa que mobilizava Esparta
«desde o início da guerra» era a de libertar toda a Grécia das garras de
Atenas.182 As palavras de Brásidas em Acanto proporcionariam o essencial
do programa contra-imperialista que configurou a geopolítica europeia
tanto quanto a sua veia imperial.
A história da Guerra do Peloponeso é também a história de uma
escalada – de uma escalada nos objectivos de cada uma das partes,
escalada na violência e nas atrocidades cometidas, escalada na crueldade e
na destruição. Falar-se de uma escalada da guerra é inevitavelmente falar
de uma degeneração. Com a escalada na guerra vem a degeneração dos
escrúpulos, da prática da justiça, da honestidade na argumentação e
persuasão, da constância da lealdade, no respeito pelos deuses, e por aí
adiante. No fundo, é a narrativa de uma descida para as possibilidades
mais rasteiras da vida política e da conduta individual.
Um dos sintomas e consequências dessa escalada e dessa degeneração
foi este: a multiplicação das guerras civis. A Guerra do Peloponeso não foi
apenas uma guerra entre gregos. Foi uma guerra civil que acendeu os
focos da guerra civil em cada ponto da Hélade, em cada aliado, em cada
cidade.
Impérios e Armadilhas
Depois da Batalha de Salamina em 480 a. C., com a derrota dos Persas,
a frente unida de Esparta e de Atenas tinha-se desfeito. A primeira seria a
grande potência militar em terra. A segunda no mar. Ambas foram criando
aquilo a que hoje se chama esferas de influência. Esparta garantia que os
regimes dos seus aliados eram oligárquicos para que a afinidade política
cimentasse a lealdade e a subordinação. Atenas optou por construir um
império de tributos e de garantia da protecção – na condição de o aliado
prescindir das suas próprias forças militares. Nestas empresas paralelas
cresceu incomparavelmente mais em poder o empreendimento audaz e
democrático – Atenas.183
Como Péricles deixou bem claro na sua oração fúnebre, o império
ateniense era um empreendimento livre e conscientemente escolhido.
Tucídides observou que Atenas sob Péricles era nominalmente uma
democracia, mas de facto estava sob o mando do seu líder natural, o «mais
capaz [entre os atenienses] de discursar e de realizar».184 Péricles morreria
ainda no início da guerra, pouco depois do segundo aniversário das
hostilidades. Mas deixou-a no cume do seu poder. Depois dele viria a
rampa deslizante da degenerescência interna até à derrota final na guerra.
No famoso discurso que proferiu de homenagem aos caídos em combate,
Péricles deixou um testemunho inevitavelmente propagandístico da
vitalidade democrática de Atenas e dos propósitos gerais da sua liderança
política. Entre as maravilhas da vida da cidade de Atenas, o império que
tinha adquirido, e por cuja manutenção e crescimento lutava agora nesta
guerra titânica, era um dos seus feitos maiores, se não o maior. De acordo
com o discurso de Péricles, o homem que era o primeiro dos atenienses, o
seu primeiro político e o seu primeiro general, o império era o fruto mais
nobre de um regime político e de um modo de vida peculiar. Por outras
palavras, era o fruto da democracia ateniense em que o desenvolvimento
de cada um ia a par com a sua devoção ao bem da cidade. Aquilo que para
nós pode parecer paradoxal, Péricles enunciava com suficiente clareza: o
império, que implicava a opressão das paragens conquistadas, era um
produto da liberdade de que cada ateniense gozava na sua cidade. O
ateniense era um autarkes soma – um indivíduo que toma conta de si
mesmo.185 Péricles atribuía um movimento muito peculiar para explicar a
fonte da expansão imperial ateniense: a sua generosidade para com as
cidades amigas. Presume-se que esta benfeitoria tinha a sua origem na
liderança ateniense na luta contra o Império Persa. Derrotados os Persas, o
resultado fora a libertação de muitas cidades gregas do jugo oriental. Em
que é que esta generosidade se ia converter em concreto no episódio de
Milos é algo que iremos examinar já de seguida. Mas antes tomemos em
consideração com um pouco mais de atenção esta justificação do império.
Quando Atenas experimentou os primeiros reveses na guerra, e os seus
cidadãos as primeiras perdas trágicas, Péricles caiu momentaneamente do
pedestal. Havia muita contestação e as pessoas responsabilizavam-no por
ter empurrado Atenas para a guerra. Ainda que antes o tivessem apoiado
entusiasticamente, agora, com a devastação dos campos e das aldeias fora
da cidade, com a peste e com as baixas entre os soldados, o povo mostrava
a sua fúria. Péricles decidiu falar à Assembleia para a aplacar. E pareceu-
lhe que seria conveniente revelar aos Atenienses o valor do império que
não podiam perder e pelo qual valia a pena lutar.
Tudo o que alguns cidadãos tinham perdido – as suas casas e as suas
terras – podia ser «facilmente» recuperado, dizia Péricles, se a «liberdade»
de Atenas, isto é, se o seu império fosse preservado. Em contrapartida, se
os Atenienses permitissem que o império fosse destruído, então não
recuperariam o que os exércitos espartanos tinham devastado. Além disso,
Péricles recordava-lhes que os pais dos atenienses vivos tinham construído
o império do nada, ao passo que os contestatários eram herdeiros dessas
aquisições. Tinham, por isso, uma responsabilidade: conservar o que
haviam recebido. Seria uma desonra fatal perder o que se tinha, bem maior
do que «falhar em obtê-lo». A seguir, exortou os Atenienses a terem
confiança na sua «superioridade» sobre os Espartanos – a sua inteligência
ou a «capacidade de raciocínio para dominar os adversários». Com essa
confiança, com essa fundamentada consciência da sua própria
superioridade, os Atenienses poderiam enfrentar os Espartanos com
aquela coragem que desliza para o desprezo do inimigo.186
Atenas não se expandiu para obter ganhos, continuava Péricles. Apenas
para socorrer os amigos. A mancha que macula todos os impérios é o da
injustiça – por mais democrático que um império seja, há sempre a
suspeita de que várias injustiças foram perpetradas e agora estão
disfarçadas pela vitória na guerra, que esmaga os injustiçados, e pela
propaganda, que cria novas verdades. Neste caso, a liberalidade ateniense
excluía qualquer injustiça do imperialismo ateniense.187 Além disso, o
império era uma obra nobre. Qual era a nobreza específica do império
ateniense? O império aparecia como um espaço de realização da glória – a
glória de cada ateniense, um bem incomensurável que ninguém podia
obter na sua vida privada e que não dependia dos caprichos dos deuses.
Uma glória que compensava as invejas e os ressentimentos que a
superioridade imperial sempre inspirava, e sobretudo que recompensava
todas as perdas e trabalhos que eram inevitáveis para a adquirir.188 Quanto
ao ressentimento, fica a dúvida de se para os Atenienses tal se devia ao
sofrimento causado por eles aos derrotados, se à inveja dos derrotados que
gostariam de estar na pele dos opressores e ter outros como oprimidos. Se
a origem do ressentimento fosse a segunda, até que ponto é que o triunfo
imperialista ateniense seria injusto?189
Porém, à medida que o discurso de Péricles prosseguia, as razões que
ele apresentava para persuadir os Atenienses a suportar a morte e a peste
que assolava a cidade, e a manter o rumo da guerra em defesa do império,
sofreram uma sensível alteração. Péricles afirmava sem rodeios que a
opção de evacuar o império seria equivalente à ruína mais completa. Tudo
se perderia. E o que era este tudo? Era a segurança e a liberdade dos
Atenienses. Dizia Péricles: «(...) o que agora tendes [isto é, o império] é
uma tirania, que talvez fosse injusto ter sido criado, mas que é certamente
perigoso eliminar.»190
Aqui, Péricles chegava a admitir que era a injustiça da aquisição do
império que não autorizava hesitações quanto à sua manutenção. As
origens do império, como vimos, estão sempre maculadas de uma forma
ou de outra. Mas, como os imperialistas em apuros de todas as épocas
sabem, os maus senhores – aqueles que adquirem uma tirania, por assim
dizer, para usar as palavras de Péricles – só podem esperar o pior quando
ficam à mercê dos seus inimigos. Ora aí está um cenário que manteve
perseverantes na luta os Atenienses e outras sedes de impérios que o
mundo conheceu. Num mundo de impérios que vão e vêm, num mundo de
impérios rivais e de vítimas desses impérios, o império vive cercado de
predadores. Péricles recordou os Atenienses de que eles não tinham
escolha senão lutar por manter o império.191 Quais são os limites exigidos
pela mera manutenção do império por contraponto à sua expansão? Na
prática, parecem não existir. Não haver alternativa é a sujeição mais geral
à necessidade natural. Ademais, afirmava Péricles, quem domina os outros
tem de estar preparado para «sofrer e ser odiado». Os bens que se
adquiriam com esse domínio eram reais – liberdade, riqueza, beleza – e
compensavam o ódio, que de resto, mais cedo ou mais tarde, era
substituído, como se percebeu, pelo desejo de imitação e pela inveja.192
Uma das perguntas fundamentais que se colocou a esta guerra, como, de
resto, se coloca a outras guerras com esta importância histórica, foi a que
interrogava as suas causas. Quem a começou? Por que razão começou? De
quem foi a culpa? Não era coisa de somenos. Não apenas para determinar,
se é que podemos determinar, a justiça ou injustiça dos beligerantes – a
sua culpa e a sua inocência. Mas também para compreender como é que,
depois de terem sido aliadas uma geração antes na épica guerra contra o
gigantesco Império Persa, as duas cidades se tornaram inimigas mortais.
O padrão de queixas estava no tratado entre ambas após a conquista da
Eubeia. Durante trinta anos, o tratado fora respeitado. Mas, a certa altura,
começaram as queixas de violação do tratado. Queixas sobretudo vindas
dos Espartanos. Contudo, havia razões muito fortes para Atenas atirar a
Esparta a responsabilidade primária pela violação do direito inerente a um
tratado. Tucídides, porém, queria ir mais fundo. A intenção de Tucídides é
compreensível, na medida em que cabe sempre perguntar porque é que um
tratado com trinta anos é finalmente violado. Se Esparta violou o tratado,
constituindo essa violação uma causa da guerra, a pergunta mais decisiva
do ponto de vista geopolítico é saber por que motivo Esparta violou o
tratado? Qual foi a causa da causa?
Dentre as várias queixas e acusações que foram feitas pelas partes
beligerantes, e que ecoaram por tantos anos na boca dos respectivos
partidários, Tucídides respondeu que tinha como a «mais verdadeira» das
respostas a que dizia que «os Atenienses, ao tornarem-se grandes,
provocaram o medo dos Lacedemónios, o que os forçou a declarar a
guerra».193 A culpa caía nos ombros atenienses, porque não deixaram
alternativa a Esparta senão ir para a guerra. Dessa culpa haveria
consequências além de um diletante julgamento moral dos leitores de
Tucídides no século XXI? Sabemos que nas atrocidades cometidas por
ambas as partes parecia que Atenas ia sempre mais longe na violência e no
despudor da injustiça. Haveria uma predisposição (imperialista?) dos
Atenienses para expulsar os escrúpulos do exercício da vontade de poder?
É duvidoso. Fosse como fosse, para alguns Atenas seria punida pelos
deuses com a mortífera peste que matou uma grande parte da sua
população e o seu líder Péricles. Talvez os deuses a tenham punido
também com a derrota final. Mas desde quando é que os deuses gregos
eram assim tão escrupulosos no cumprimento das regras da moral e do
direito?
Vejamos outra questão mais próxima das preocupações geopolíticas do
nosso tempo. O medo da ameaça futura do inimigo pode ser uma desculpa
para as violações materiais do tratado de paz? Pode ser uma atenuante?
Ou, pelo contrário, é irrelevante para determinar a justiça da guerra?
Ponderar se o inimigo não se está a tornar rapidamente tão poderoso que
no futuro será irresistível não apressará a conclusão de que mais vale fazer
a guerra já? No centro desta reflexão está o seguinte problema geopolítico:
no contexto de uma rivalidade entre duas potências com um alcance
geopolítico mais ou menos equivalente, o imperialismo ascendente de
uma delas suscita, ou força, uma resposta preventiva da outra. A
responsabilidade ateniense pela guerra era a responsabilidade do império
democrático ascendente. Isto não é o mesmo que dizer que houve uma
vontade imperialista de guerra. Vale antes por dizer que a guerra foi a
consequência de um desenvolvimento imperialista.194
No século XVI, Maquiavel dizia que nunca se adia uma guerra por
hesitações e pretextos. Isso seria, dizia Maquiavel, meio caminho andado
para a derrota. Mas, independentemente das recomendações de
Maquiavel, existe uma interacção estratégica discernível entre, por um
lado, um poder crescente de uma cidade, e, por outro, uma reacção receosa
– talvez de pânico – da cidade rival? A esta interacção estratégica,
Graham Allison, um professor de política internacional da Universidade
de Harvard, atribuiu a designação «armadilha de Tucídides».195 A palavra
armadilha sugere que o desfecho é inexorável. Daí a preocupação
horrorizada quando esta designação é aplicada à relação entre os EUA e a
China no nosso tempo. Na realidade, Allison estava sobretudo preocupado
em analisar a relação dos EUA, a potência (ainda) hegemónica, e a China,
a potência mundial em ascensão.
Mas a imagem da armadilha também pode sugerir uma queda acidental.
Se a armadilha está montada, não é inexorável que caiamos nela. Cair na
armadilha depende de factores de certo modo incontroláveis e
imprevisíveis. A imagem da armadilha remete para a incerteza –
maximizada em situações de tensão geopolítica graves. Tucídides não via
a situação de tensão entre Esparta e Atenas como tendo conduzindo
inexoravelmente à guerra. Mas não duvidava do seu poder de
condicionamento. Uma simples faúlha pode incendiar um pinhal, mas
apenas se o mato estiver seco e o ar quente e ventoso. Assim, a armadilha
é «a tensão estrutural aguda gerada quando uma potência em ascensão
ameaça derrubar a potência reinante».196 No fundo, há uma armadilha, ou
uma tensão sufocante e propiciadora do conflito aberto, quando uma
potência em ascensão se torna um perigo para a segurança, a hegemonia,
ou esfera de influência, da potência que finalmente se consciencializa
desse perigo. Só quando a potência dominante receia a outra em ascensão
é que se gera tensão política aguda. Ao mesmo tempo, o optimismo, a
ambição, a contemplação de horizontes futuros cada vez mais amplos,
fazem com que a potência em ascensão não consiga, nem queira, evitar
provocar o receio da potência incumbente. Até porque a potência em
ascensão deseja o reconhecimento da sua grandeza, da sua autoridade
mundial, dos seus direitos. Ora, esse reconhecimento não é independente
do medo que consiga inspirar nos outros, inclusive na potência dominante.
Nessa senda pelo reconhecimento, a potência em ascensão também tem
um grande receio: o de que a potência dominante a sufoque nas suas
ambições e veleidades. É racional esperar um ataque preventivo da
potência dominante, já que é mais fácil vencer quem ainda não se tornou
tão forte quanto está destinado a ser no futuro próximo. Essa expectativa
reforça o medo até ao ponto da paranóia, o que, por sua vez, intensificará
as circunstâncias e os actos de provocação de medo junto da potência
dominante. A ignorância sobre o que o rival fará neste jogo de interacção
estratégica, a ansiedade que a ignorância provoca, e o cortejo
incontrolável de acontecimentos aleatórios que vai agravando a incerteza
– tudo conspira para aumentar a tensão a um nível explosivo. Resta dizer
que a armadilha de Tucídides de Allison, por muito iluminadora que possa
ser, já pouco tem que ver com Tucídides, Esparta ou Atenas em meados
do século V a. C., e tudo com os EUA, a China e a situação em que
vivemos nesta terceira década do século XXI. E convém não supor que a
armadilha de Tucídides pode fazer as vezes de uma «lei de ferro» da
política internacional. Muito menos autoriza a concluir que o destino da
confrontação entre os EUA e a China está selado, como o próprio Allison
reconheceu.197 As lições de Tucídides são, afinal de contas, mais subtis do
que as de Allison.
O Primeiro Império Democrático na Primeira Pessoa
Se o medo forçar uma cidade a ir para a guerra, até que ponto podemos
dizer que ela é culpada? Somos culpados, ou moralmente responsáveis,
pelas escolhas que fazemos livremente. Ora, o medo é uma paixão que nos
condiciona radicalmente. Serve como atenuante para inúmeras
circunstâncias acompanhadas de actos violentos ou de justiça duvidosa.
Vale a pena notar, porém, que os Espartanos não invocaram o medo como
o seu móbil para partirem para a guerra. Em público, os Espartanos não
quiseram escudar-se atrás dessa consideração geoestratégica para justificar
os seus actos. Sim, porque o medo, segundo o processo da armadilha de
Tucídides, resulta de uma consideração geoestratégica de primeira ordem.
Esparta agiu preventivamente, não defensivamente. Por outras palavras,
tudo resultou de uma outra consideração geoestratégica de primeira ordem
que não o medo.
No início da Guerra do Peloponeso, um grupo de atenienses justificava
o império de Atenas junto de uma assembleia de espartanos do seguinte
modo: não fora a força bruta, mas a indisponibilidade de Esparta para
reorganizar a Hélade depois da retirada do exército persa de volta às
fronteiras do império. Restara a Atenas acolher os pedidos das cidades
gregas que lhe pediram protecção e liderança. O império fora oferecido a
Atenas. Fora oferecido, é certo, porque Atenas era mais forte, e era uma
lei da natureza humana que o mais fraco cedia a primazia ao mais forte.
Mas a superioridade de Atenas não se impusera pela conquista das
restantes cidades. E este último ponto parecia, aos olhos atenienses,
crucial na justificação do império democrático. Assim como a avaliação
evidentemente parcial de que Atenas tinha sido mais justa com os seus
fracos aliados do que era exigido pela situação de superioridade de que
gozava.198 Seria esta particularidade, que distinguia o império de Atenas
dos restantes impérios, um efeito do regime democrático, ou seria uma
decorrência da natureza do povo ateniense?
Para começar a responder a esta pergunta é preciso tecer algumas
considerações sobre a forma política imperial. O império é uma forma
política que a Europa importou da Ásia, a região dos impérios por
excelência. A Europa, o que antes do século V a. C. correspondia à
atrasada e primitiva região a oeste do Helesponto, era demasiado pobre e
despovoada para constituir impérios. Os seres humanos viviam como
viviam na maior parte da superfície terrestre: em famílias, em clãs, em
aldeias, em tribos ou em hordas. Na Europa, mais concretamente na
Grécia, formou-se a forma política própria que temos visitado, a polis, e
que reunia de um modo muito particular a comunidade da família e da
aldeia num mesmo espaço cívico e numa jurisdição governativa original.
Se é verdade que no longo curso da história a polis não resistiu às
transformações históricas e praticamente se extinguiu do mapa político, o
império revelou ser muito mais resistente. Gregos e não gregos adoptaram
durante dois séculos a forma política da polis num período de tremenda
criatividade e energia civilizacional com poucos paralelos na História da
Europa. O Império Macedónio a oriente e o Romano a ocidente
encarregaram-se de destruir a autonomia das poleis e, com o tempo, a
própria realidade política que as caracterizava. Nos escombros do Império
Romano do Ocidente, e nos interstícios dos reinos bárbaros que se foram
formando, as cidades independentes com instituições e identidade cívica
própria regressaram e vicejaram até ao final do Renascimento. No Norte
de França, nas províncias holandesas e sobretudo em Itália a norte de
Nápoles, a cidade politicamente autónoma marcou o seu tempo e acabaria
por travar um conflito perdedor com os sempiternos impérios, de um lado,
e com o emergente e pujante estado nacional, do outro. Antes da polis,
antes do estado nacional, depois da polis e veremos se também depois do
estado nacional, sobrevive o império.
A nossa palavra império vem do latim imperium, que originariamente,
ainda por inteiro num contexto republicano, designava um comando
militar supremo entregue a um magistrado, normalmente o(s) cônsul(es).
Designava, pois, uma prerrogativa puramente militar, não política, ainda
que suprema. Com o tempo e o uso republicanos, imperium passou a ser
alargado a prerrogativas eminentemente políticas, como, por exemplo,
convocar o senado. Quando Roma se tornou uma entidade política com
um vasto território, fruto de sucessivas conquistas e alianças, imperium
romanum referia a jurisdição, poder e controlo político da república sobre
um determinado território afastado do território da cidade de Roma. Nesse
último século antes da nossa era, a república estava a ruir e acabaria por
ser substituída pelo «principado» de César Augusto. Octaviano era o
princeps, nominalmente mantendo um equilíbrio institucional pseudo-
republicano plasmado na célebre fórmula SPQR – senatus populusque
romanus. Dos cônsules, Augusto, que já era o sumo pontífice, recebeu o
imperium. E, por sua vez, atribuiu-o artificiosamente ao povo romano no
seu conjunto. O imperium romanum era o imperium populi Romani.
Com a demorada duração do império, tanto nos territórios a oriente,
como sobretudo na imaginação europeia, as tentativas de ressurreição do
Império Romano, designadamente com a coroação de Carlos Magno pelo
papa Leão III e, mais tarde, de Frederico Barbarossa pelo papa Adriano V,
o domínio político a que se aspirava, a forma política consagrada, era a do
império. A aspiração imperial, que podemos não confundir com a vontade
imperialista, nunca mais abandonaria a imaginação política europeia.
Mas o que diferencia um império de qualquer outra forma política? À
partida, dir-se-ia que um império estende o seu alcance jurisdicional e o
domínio político por uma porção anormal de território através da
conquista militar. Atendendo ao precedente europeu de Roma, talvez
pudéssemos acrescentar que se trata de uma forma política autocrática,
que singulariza a figura do governante – o imperador. Porém, rapidamente
percebemos que tanto um como o outro critério são insuficientes ou
mesmo enganadores. O primeiro é acidental na medida em que o império
se caracteriza não apenas pela extensão territorial, nem sequer pela
diversidade linguística, étnica e cultural que está mais ou menos implícita
na vastidão territorial. A diversidade dentro das fronteiras de um mesmo
governo é importante para compreender a forma imperial. Afinal de
contas, a vocação imperial romana só se tornou consciente com a
afirmação política de um imperium orbis terræ, depois da conquista de
povos não-italianos. Mais decisivo para diferenciar a diversidade que pode
estar contida dentro de fronteiras de formas políticas não-imperiais é o
facto de o império pôr em contacto povos e culturas que antes da acção
imperial não tinham contactos, ou não os tinham com frequência. O
império junta povos que se desconhecem e cuja existência muitas vezes é
mutuamente ignorada. Mais, a acção imperial que junta sob uma mesma
jurisdição e governo povos e culturas sem um historial de relacionamento
é repentina. Por outras palavras, a reunião desses povos e culturas é feita
num período de tempo muito rápido, tão pouco gradual e tão inesperado
que é impossível de prever antes de ter ocorrido. De resto, o grau de
dependência da conquista militar em sentido estrito varia muito. Basta
pensar na primeira formação do Império dos Habsburgos, que deveu
muito a casamentos e alianças estratégicas que consolidaram poder e
territórios na mesma casa real.199 Convenhamos que, segundo este
primeiro critério, dificilmente Atenas seria um império.
No que respeita ao segundo critério, há que dizer que cingir a noção de
império a formas políticas autocráticas acaba por ser redutor à luz da
nossa experiência histórica. Os impérios podem ser autocráticos,
oligárquicos – isto é, governados por um grupo minoritário de pessoas – e
democráticos, como era o caso de Atenas. No Capítulo IV vimos a
ascensão da república imperial que veio a dominar a era contemporânea:
os Estados Unidos da América. Ambos tinham sistemas complexos de
governo, que não podem de modo algum ser descritos como autocráticos,
mesmo que se exagere a preponderância política do presidente dos EUA,
sobretudo a partir de Franklin D. Roosevelt, ou a supremacia de Péricles
na democracia ateniense no século V a. C. Os impérios, é certo,
centralizam o poder numa estrutura política que esvazia as autonomias
políticas locais, mas não são necessariamente autocráticos.
Acresce que, e apesar de não caber neste livro uma tipologia de
impérios que, em grande medida, está por fazer na literatura especializada,
é importante para os meus intuitos sublinhar a pluralidade das formas
imperiais. Do império militar persa, governado por um líder tido por
superior aos meros mortais, à primeira democracia imperial ateniense, aos
impérios ultramarinos das monarquias centralizadas pós-Descobrimentos
até à primeira república imperial com sede em Washington. Desde logo
reparamos na distinção que os grandes geógrafos geopolíticos do início do
século XX estabeleceram entre o império controlador de massas
continentais – o nosso já conhecido Halford Mackinder, por exemplo – e o
império marítimo, em que o controlo do território está estritamente
dependente do controlo das rotas marítimas por uma metrópole e pela
respectiva afirmação e imposição da superioridade naval – teorizado e
elogiado como superior ao seu concorrente terrestre pelo almirante
americano Alfred Mahan. Por exemplo, o Império Português no Índico,
nos séculos XVI e XVII, pode inscrever-se num tipo do segundo género.
Cada um daqueles impérios recorreu a proporções muito diferenciadas
de conquista militar, de alianças militares assimétricas, de controlo de
rotas comerciais, financeiras e marítimas, de ascendente cultural, de
hierarquização étnico-linguística, de integração geográfica na formação da
sua elite governante, e por aí adiante. Não devemos subestimar as
diferenças. Do ponto de vista das liberdades individuais e do respeito pela
dignidade humana, incluindo do ponto de vista da autonomia e liberdade
das partes enquanto partes que integram o império, não há qualquer
comparação entre um império republicano americano e um império
soviético, por exemplo. Hoje há quem defenda que a União Europeia
assumiu uma forma imperial numa variante «neomedieval», marcada pela
fluidez das fronteiras, pela heterogeneidade de prerrogativas, direitos e
políticas locais, num quadro institucional de poderes e lealdades
geográfica e juridicamente diferenciadas.200 Um império republicano, ou
democrático, contém factores internos de inibição potentíssimos que não
podem ser simplesmente ignorados. Desde logo, os valores públicos do
regime limitam as possibilidades imperiais e imperialistas. Sendo o valor
da democracia republicana a igualdade de todos os seres humanos, como
veremos, o risco de hipocrisia fatal está sempre aberto em todas as suas
acções imperiais.
E o império de Atenas? Este seria diferente de todos os outros impérios
seus contemporâneos, ou que o tinham antecedido, porque o seu sujeito
principal era o próprio povo cidadão – o demos. Seria o demos a exigir o
empreendimento mais arriscado de toda a guerra e que muito contribuiria
para a derrota final, a expedição à Sicília. Foi o eros do demos por essa
aventura que a pôs em marcha.201 O eros pelo império deslizava sempre
para o eros pelas conquistas – realizadas ou ainda futuramente possíveis –
do império. Seria o demos quem mais facilmente seria persuadido por
demagogos como Cléon, que apelava sempre à radicalização da guerra,
tanto nos objectivos – expansão ilimitada –, como nos meios – repressão
sem hesitações dos rebeldes. O demos era sempre mais favorável a quem
apelava a mais guerra do que a quem apelava à contenção. Era o demos
quem admoestava, julgava e punia os comandantes malsucedidos nas
acções militares e assim condicionava os cálculos e as condutas de quem
tinha de as liderar. Atenas travou uma guerra democrática, com o demos
sempre envolvido nas deliberações, votações e escolhas directas dos
magistrados e dos comandantes.
Em segundo lugar, como Péricles sugeriu na Oração Fúnebre, Atenas
tinha no coração do seu modo de vida o desejo de glória e o amor pela
beleza. Ambos os amores inspiravam-na e aos seus cidadãos a agir com
nobreza e a deixar uma marca de grandeza na memória de toda a Hélade.
Isso valia para a paz e sobretudo para a guerra. Até que ponto esse desejo
de glória e de nobreza ditou a doutrina proclamada pelos Atenienses de
que havia um direito natural de agir em conformidade com a necessidade
natural reflecte bem a tensão entre uma coisa e outra na pulsão imperial.
Como se o demos estivesse sempre oscilante entre o amor pelo nobre e
pelo belo, por um lado, e a conveniência e o interesse cru, por outro, a sua
volubilidade, traduzida em vagas sucessivas de euforia e de pânico,
constituía a representação democrática viva da tensão inerente à pulsão
imperialista. Se um desejo é evidentemente superior ao outro, é bom que
se perceba que o primeiro (o desejo de beleza) é irresistivelmente
universalista, ou imoderadamente expansionista. Em termos geopolíticos,
não aceita limites territoriais à sua satisfação. O segundo (o interesse
próprio nu e cru) na sua crueza, na sua evidente imoralidade até, define
alguns limites. É um princípio imoral de uma certa contenção ao
movimento.
Atenas daria um passo em frente nas suas justificações. Seria um passo
típico de uma cidade com tantos filósofos e sofistas. As razões
contingentes tinham sempre algo de insatisfatório. Uma grande teoria seria
sempre preferível. A justificação residiu na universalização do impulso
imperial. Não que Atenas defendesse que todas as cidades desejavam o
império – mandar nos outros, explorá-los, dominá-los. Atenas sustentava
com maior subtileza que todos desejariam o império sempre que fossem
aliciados pelas riquezas e pelo poder a ele associado. Por outras palavras,
as cidades e os Estados que recusaram a expansão imperial nunca o
fizeram por razões de justiça, mas por impotência.
Além disso, os Atenienses também confundiram a sua liberdade com o
império que a protegia. Se Esparta ameaçava o império, defendê-lo e
expandi-lo, como afirmou o general Hipócrates na preparação para a
batalha contra os Beócios no Inverno de 422 a. C., era proteger a
liberdade. Eram impelidos a defender e a expandir o império para
salvaguardar a liberdade democrática.202 O imperialismo ateniense
aparecia, assim, justificado por uma combinação de motivações, as «três
motivações mais poderosas»203: o medo, o prestígio e o interesse.
Inicialmente, foi o medo de uma nova invasão persa. Depois, seria o medo
de perder a superioridade imperial e, porventura, de sofrer as represálias
da outra potência grega. Que a segunda não constitua uma justificação
moral cabal do império, é algo que não precisa de surpreender ninguém.204
Nem os próprios Atenienses! Foram eles que o disseram: «(...) foi sempre
o modo do mundo que o mais fraco seja rebaixado pelo mais forte.»205
Quando já tinham passado dezasseis anos desde o início da guerra com
Esparta, Atenas assediou Milos. Esta pequena ilha, colonizada por
espartanos, e que tinha procurado gerir a sua situação estratégica frágil
evitando comprometer-se com um ou com o outro lado da guerra, via-se
confrontada com a ameaça da poderosa Atenas. Uma ilha invulgarmente
bela, formada em torno de uma caldeira vulcânica, rodeada por um mar
sedutor, Milos fica situada no lado ocidental da cintura meridional do
arquipélago das Cíclades, no mar Egeu. Seria este o quadro onde se
desenrolaria uma das cenas mais famosas da Guerra do Peloponeso.
Aquando da invasão dos Persas, com o destino da Grécia e de Atenas
em dúvida, Milos enviara embarcações de guerra para guerrear os Persas
na Batalha de Salamina, que visitaremos no próximo capítulo. Por agora,
basta dizer que sessenta e quatro anos antes do episódio em Milos que
agora iremos visitar, a pequena ilha-cidade integrara a coligação das
cidades gregas que se opuseram ao poderoso Império Persa, com dois
penteconteres, lutando e morrendo lado a lado com os Atenienses.
Em 416 a. C., os Atenienses desembarcaram uma força expedicionária
na ilha. Antes de iniciarem a operação de destruição, os enviados de
Atenas falaram directamente aos cidadãos de Milos. Na verdade, o que
teve lugar a seguir foi um diálogo. Houve uma troca de argumentos entre
as duas partes como se de um debate filosófico se tratasse. E qual foi o
tema desse diálogo? Segundo os cidadãos de Milos, além da sua própria
segurança, o tema devia ser a justiça – a justiça do assédio ateniense vs. a
justiça da defesa meliana. Milos acreditava que era a justiça que regrava
as relações internacionais, ou que estas deviam estar sujeitas a normas de
justiça acatadas por todos os que as reconheciam. Através de um debate
racional, as partes podiam reconhecer essas normas de justiça e agir em
conformidade.
Mas os Atenienses tinham outra concepção do fundamento estratégico
das cidades e dos Estados. O poder diferenciado levava a melhor sobre as
normas de justiça. Daí que para os Atenienses não existisse qualquer
contradição no facto de o diálogo se iniciar debaixo da ameaça terrível de
uso da força militar contra os Melianos. A justiça dos fracos tinha de ceder
ao poder dos fortes. E isto mesmo antes de se chegar a qualquer conclusão
política definitiva. Isto é, a cedência da justiça ao poder condicionava até a
apreciação da situação estratégica de cada um. A formulação dos
embaixadores atenienses ecoaria pelos séculos da história europeia.
Disseram eles:
Quanto a nós, não vamos usar frases pomposas, como a de que temos
direito ao poder, porque derrotámos o Medo [isto é, o Persa], ou a de
que agora vos atacamos porque fomos vítimas de injustiças, dando
uma série não fiável de razões, nem esperamos de vós que nos digais
que, embora colonos dos Lacedemónios, não entrastes com eles na
guerra, pensando que assim nos convenceis, ou então que em nada nos
fizestes mal; esperamos que em vez disso analiseis o que é praticável,
dentro do realismo que anima o pensamento de cada um de nós, pois
sabeis como nós sabemos, que o que é justo na vida humana só é
avaliado em circunstâncias equivalentes, e que os mais fortes fazem o
que podem, enquanto os mais fracos fazem o que devem.206
Note-se que, ao contrário do que tantas vezes se diz, os Atenienses não
atiraram a justiça para um buraco negro nem afirmaram que só o poder
dos mais fortes existia. Disseram algo mais subtil. A superioridade do
argumento de justiça dos Melianos cedia, ou dava lugar, à superioridade
da força dos Atenienses. Mas isto apenas porque as partes eram desiguais
em força. Se fossem iguais em força, aí haveria espaço para os
argumentos de justiça. A justiça dependia da igualdade de poder entre os
beligerantes. E tal não era manifestamente o caso na ilha de Milos naquele
ano de 416 a. C.
A grande fragilidade da posição dos Melianos era a de que a justiça
dificilmente faz executar as suas normas. O que é o mesmo que dizer que
o mais forte, quando viola a justiça, fá-lo impunemente. Apesar de tudo,
Milos disse aos Atenienses que, quando Atenas caísse – porque todos os
impérios acabavam por cair –, a injustiça flagrante cometida virar-se-ia
contra ela no pior dos momentos. Quem cometia grandes injustiças
quando era forte sofria terríveis vinganças quando era fraco. Era o modo
de Milos apelar não ao sentido de justiça dos Atenienses, que estavam
dispostos a destruir o «bem comum», mas ao seu interesse. Se Atenas não
se coibia de praticar uma injustiça por devoção à justiça, ao menos que se
inibisse de o fazer por consideração ao seu próprio interesse. O problema
era que se tratava de um interesse de longo prazo. A queda de Atenas não
seria certamente amanhã. E quem atendia a interesses senão aos de
curtíssimo prazo, ou aos benefícios imediatos?
De resto, os Atenienses não se deixaram atemorizar com a perspectiva
da sua queda futura. Porquanto na ponderação entre, de um lado, a acção
de um putativo vencedor sobre o império ateniense, que seria sempre
pautada pelo seu interesse, e não pelo sentido indignado e vingativo de
justiça, e, do outro lado, a tolerância a actuais, não futuras, cidades
súbditas que se envolvessem em insurreições contra o império, os
Atenienses davam prioridade a punir os rebeldes ou até aqueles que
suspeitosamente queriam permanecer neutros, como os Melianos,
minando a hegemonia de Atenas.207
De qualquer modo, os Atenienses desvalorizaram essa distinção entre
rebeldes e neutros. O que fez Atenas agir contra Milos foi a sua
insularidade, e nessa medida a ameaça potencial que cidades-ilhas que
destoassem da hegemonia ateniense era tão relevante como a de cidades-
súbditas que estivessem em revolta. Além disso, os Atenienses passaram
um atestado de suprema inocência – ou ignorância – aos Melianos quando
os admoestaram por estes acreditarem no socorro espartano. Milos
acreditava no apoio espartano se não pelo sentido de justiça de quem tinha
uma aliança defensiva com eles, então pelo menos pela vergonha de
deixar em aflição um povo do seu parentesco.208 Os Atenienses
denunciaram a «loucura» ou a insensatez de tais crenças e explicaram que
os Espartanos eram muito nobres e devotos da justiça nos seus assuntos
internos. Mas quanto a todos os outros estrangeiros, ou, na nossa
linguagem actual, nas suas relações internacionais, os Espartanos, tal
como os restantes povos do mundo, encolhiam as exigências morais e de
nobreza. Preferiam agir segundo outras equivalências, a saber, «o que é
agradável é nobre e a justiça é o que lhes convém».209 Numa palavra, os
Espartanos seguiam a mesma orientação de conduta política que os
Atenienses. Estes não reivindicavam para si direitos especiais, que se
aplicavam apenas a eles, na subjugação dos mais fracos. Esparta fazia o
mesmo e Atenas compreendia-os muito bem. Afinal de contas, Esparta
formara um império no Peloponeso antes de Atenas formar o seu no Egeu.
E os impérios não se formam com vinculações rígidas às regras da justiça.
Numa palavra, a política internacional é regida pelo diferencial das
relações de poder e pela interpretação do que é conveniente para cada um
dos actores. A justiça fica num difuso segundo plano. Num segundo plano
quer dizer que não desaparece. Note-se que o direito natural do mais forte
proclamado pelos Atenienses não era o direito de agir arbitrariamente.
Era, antes, o direito de agir segundo as imposições da necessidade natural,
isto é, a diferença de força compelia o forte a subjugar o fraco, se isso
fosse da conveniência do primeiro; e o forte não tolerava ameaças ou
desobediências dos mais fracos sem pôr em risco a sua integridade. No
fundo, conveniência era essencialmente segurança, ou pelo menos a
conveniência de uma cidade nunca ignorava a sua segurança.
Como a situação dos Melianos demonstrava, e o discurso dos
Atenienses apontava, na política internacional só quem tem os meios – e,
em última análise, excluindo o auxílio divino, esses meios são militares –
é que pode ter a veleidade de agir com justiça ou com nobreza. Ao
agitarem a bandeira da justiça ou da nobreza moral, os fracos estão apenas
a ser «loucos» ou suicidas, o que conduz ao mesmo. Resta saber se os
fortes que têm os meios indispensáveis à acção política justa ou nobre
usarão a superioridade da força nesse sentido, ou se, pelo contrário, como
o discurso ateniense revela, a superioridade da força funciona como uma
autorização para agir à revelia da justiça e da nobreza moral.210 A sujeição
política da cidade (ou do país) à necessidade natural era uma parte central
da tese ateniense. No século XVI, Maquiavel não se esqueceria da lição.
Até que ponto o argumento, ou a ameaça, dos Melianos era verificável,
é difícil de dizer. É verdade que Atenas perderia a guerra. Mas é duvidoso
que tenha sido pelo mal horrível que infligiram a Milos. Os crimes dos
Atenienses em Milos foram vingados por alguém? Não consta que o
tenham sido. Sabemos que Atenas perderia a guerra, mas, segundo o relato
de Tucídides, o desenlace deveu-se a erros próprios dos Atenienses, e não
à punição por injustiças cometidas.
De resto, Atenas não se deixaria impressionar por este argumento e
conduziria os Melianos à mais extrema sujeição: a morte dos homens e a
escravatura das mulheres e crianças, como era costume naquela época
entre os gregos. Mais, Milos não foi capaz de explicar porque havia um
«bem comum», nem o que era esse «bem comum», que uniria Milos e
Atenas em relações de justiça. Pelo contrário, foram os Atenienses os mais
hábeis em unir Milos e Atenas num interesse comum, a saber, a rendição
de Milos era do interesse de ambas as partes: de Atenas, porque ganharia
um aliado; de Milos, porque evitaria a sua total destruição. A comunidade
dos interesses seria, segundo a lógica ateniense, formada pela superior
força do mais forte, e não pelas normas de justiça, que, recordemos,
protegeriam a paz e a inocência da neutralidade de Milos. Recapitulando,
na tese ateniense eram as realidades do poder que ditavam a comunidade
de interesses, não as normas de justiça.
As escolhas estratégicas das duas partes tornavam-se, assim, mais
claras. Para os Melianos, existia uma escolha entre lutar pela liberdade –
correndo o risco da aniquilação – ou, por iniciativa própria, a sujeição aos
atenienses – incorrendo num acto vergonhoso. Para os Atenienses, e isso
fazia parte da sua estratégia, os Melianos não deviam iludir-se com
escolhas, mas analisar a sua situação estritamente à luz das necessidades
do poder. No final, os embaixadores atenienses refutaram os Melianos,
perguntando se a vergonha mais vergonhosa não era a que resultava da
estupidez – neste caso, da estupidez de decidir combater quando o
opositor era esmagador e não tinham qualquer possibilidade de vencer. A
honra dos fracos dependia por inteiro do reconhecimento da sua própria
fraqueza, ou da superioridade dos fortes. Só assim é que a honra dos fortes
podia responder na mesma moeda e assumir-se como o respeito por essa
honra dos fracos enquanto reconhecimento da própria fraqueza. Era, sem
dúvida, uma estratégia de condicionamento, mas não era mentirosa nem
exclusivamente manipulativa. Os Atenienses viam-se a eles mesmos como
forçados por uma necessidade, e não como agentes que escolhiam
livremente – a necessidade de manterem o seu império, de se imporem
pela força, sem sombra de escolha, aos outros, o que excluía tolerar
cidades neutras que podem cair para o lado do inimigo.
O Primeiro Império Democrático na Terceira Pessoa
Porque era a democracia ateniense imperialista? No Verão de 424 a. C.,
quando a Sicília discutia ardentemente a guerra a Oriente e travava as suas
lutas intestinas segundo linhas que em grande medida coincidiam com as
que demarcavam Esparta e Atenas, Hermócrates, filho de Hérmon,
dirigiu-se a uma assembleia que reunia as várias cidades gregas sicilianas.
Tinham-se reunido em Gela, e esse siracusano falaria exemplarmente.
Segundo Tucídides, foi o mais esclarecido dos oradores nessa assembleia
e levou a melhor sobre os restantes delegados.
Hermócrates alertou para o perigo que vinha de Atenas. Não tinha
dúvidas de que Atenas acabaria por desembarcar nas costas da Sicília para
vergá-la ao seu domínio. Em face dessa ameaça comum, propunha ele,
todas as cidades sicilianas deveriam unir-se e terminar o estado de conflito
interno em que tinham recaído. Alertava ele para que, ao contrário do que
os gregos sicilianos supunham – que as ambições de Atenas eram apenas
uma preferência «racial» pelos Jónios como ela em detrimento das cidades
dórias –, Atenas queria apoderar-se da riqueza da Sicília. Hermócrates não
censurava o desejo de domínio de Atenas. Reprovava, sim, a disposição
submissa daqueles que corriam para o seu regaço. Era uma lição da
«natureza humana» prever que sempre se manifestava o desejo de dominar
o subserviente, embora a mesmíssima «natureza humana» nos levasse a
resistir ao agressor.211 Assim, segundo Hermócrates, o desejo de
engrandecimento não era específico de Atenas, e, por maioria de razão,
não era específico da democracia. Era inerente à natureza humana e
encontrava como obstáculo o que estava igualmente inerente à natureza
humana: a resposta dos que recusavam ser dominados, dos que não eram
subservientes. A tese ateniense era aceite pelos seus inimigos com essa
importante qualificação.
Anos mais tarde, no Verão de 415 a. C., nas vésperas da invasão
ateniense da Sicília, já com a imponente frota a caminho, os siracusanos
reunidos deliberaram. Hermócrates tomou mais uma vez a palavra para
dizer que os rumores da iminente chegada da armada ateniense com um
corpo expedicionário confirmavam os seus avisos anteriores. Mas, quando
ele se calou, Atenágoras tomou a palavra. Atenágoras era o líder do
partido democrático em Siracusa, um temível orador no pior estilo do
demagogo. Atenágoras desmentiu todos os rumores. Não haveria qualquer
invasão. Era mais um truque dos oligarcas de Siracusa para manter a
população em sentido. Os Atenienses não seriam assim tão estúpidos ao
ponto de começar uma nova guerra quando o destino do conflito com a
Liga do Peloponeso estava ainda tão periclitante. O verdadeiro inimigo,
dizia Atenágoras, estava dentro de portas – o partido oligárquico com os
seus desígnios tirânicos que só conseguia levar por diante recorrendo a
fake news. Eram os oligarcas sicilianos que mereciam punição. A
democracia era superior à oligarquia, porque nesta o povo tinha de
partilhar os perigos, mas via serem-lhe subtraídos os benefícios pelos
oligarcas, que recolhiam para eles o exclusivo das vantagens.212 A
assimetria denunciada reconduzia imediatamente à sua solução segundo
um critério de justiça política. Se o demos, que constitui a totalidade do
povo da cidade, estava sujeito aos perigos, então devia poder pronunciar-
se como um todo sobre como fazer face a esses perigos e sobretudo como
distribuir os benefícios da vida colectiva.
O discurso de Atenágoras é interessante ainda noutro plano. Atenágoras
mostrou que não compreendia a democracia ateniense. Esta invadiria
realmente a Sicília contra todos os padrões de racionalidade, tal como ele
os entendia. Atenágoras ignorava os discursos do ateniense Alcibíades,
que fora um dos principais instigadores da operação que viria a revelar-se
tão desastrosa para a cidade de Atenas. Alcibíades persuadira o demos de
Atenas, contra homens como Nícias, a apoiar a expedição à Sicília. O
magnífico Alcibíades, que poucos meses depois estaria foragido de Atenas
e a entregar-se a Esparta para trair a sua cidade, convenceu o demos de
que todos os impérios tinham de intervir quando os seus aliados estavam
envolvidos, sem poder dizer que não. Um império nunca podia estar
inactivo. A inactividade conduzia à atrofia. Tinha de estar em acção
permanente para acumular poder e mais poder. Só em tensão permanente o
império estaria seguro e a gozar a sua glória. O império era expansão
permanente. Sobretudo, o império ateniense. Porquê? Porque Atenas,
dizia Alcibíades, era movimento. A cidade não podia contrariar a sua
natureza sem se desfazer.213 Mais tarde, Alcibíades revelaria que o plano
de Atenas era vergar os gregos da Sicília, depois os gregos da Itália, a
seguir o Império Cartaginês, conquistar a capital desse império e tomar
todo o Peloponeso. O objectivo era o mundo grego por inteiro. Não havia
limites.214
Donde vinha o movimento conatural à cidade de Atenas? Do seu
carácter democrático. Veremos a ascensão desse movimento no próximo
capítulo com a preparação de Temístocles na guerra contra os Persas. Por
ora, regressemos a Atenágoras. Conheceria ele Alcibíades? A ignorância
da dimensão imperial da democracia ateniense, e a concomitante
desrazoabilidade do seu impulso dominador, podia ser proveniente de
duas fontes. A pura ignorância dos factos e a suspeita típica do homem de
facção de que o aviso contrário de Hermócrates era um truque da
oligarquia para enganar o demos de Siracusa. Ou a visão mais inocente da
democracia como regime em acção decorria de o próprio Atenágoras não
ser mais do que um líder de facção, com poder de agitação, mas sem poder
efectivo de governação, sem experiência das realidades do poder, como
alguém que não era posto aos comandos do poder.
O demagogo homólogo de Atenágoras em Atenas era um homem
chamado Cléon. Também ele era um orador muito eficaz e também ele era
líder da sua facção, a mais popular na orientação política. Aristófanes, o
grande comediante desta época, mais conservador na orientação política e
partidário da facção oligárquica, denunciava-o constantemente nas suas
peças como um elemento maligno, corrupto e belicoso que conduzia
Atenas para o desastre. Mas havia uma grande diferença entre Atenas e
Siracusa. Atenas era efectivamente uma democracia. Cléon tinha genuíno
poder para fazer a cidade enveredar por esta ou por aquela via concreta.
Cléon aparecia invariavelmente a propor os castigos mais severos aos
aliados mais reticentes e a persistir na guerra independentemente das
consequências. A sua obstinação na continuação do conflito com Esparta
seria uma espécie de imagem de marca. No Verão de 427, a guerra
decorria há quatro anos, Cléon discursou na Assembleia de Atenas quando
uma delegação de Mitilene, cidade que se tinha revoltado contra o
domínio ateniense, veio implorar clemência. A democracia ateniense tinha
agora de decidir que punição exercer sobre Mitilene. Inicialmente, a
Assembleia dos cidadãos decidira matar todos os homens mitilenos e
escravizar as mulheres e as crianças. No dia seguinte, os Atenienses
recearam que a decisão anterior fosse excessiva. Cléon quis mantê-los
fiéis à cruel decisão prévia. Dizia ele que não podia haver escrúpulos
morais e compaixão quando estava em causa a gestão de um império.
Seria uma democracia imperial uma contradição nos termos, então? Cléon
sugeria, antes, que uma democracia tinha dificuldade em gerir um império
devido a uma fraqueza democrática específica, a saber, a volubilidade das
suas decisões colectivas. Hoje o povo queria uma coisa; amanhã queria o
seu contrário. A indecisão no caso de Mitilene revelava a fonte dessa
volubilidade. O povo tendia a projectar nas decisões colectivas da cidade a
sua experiência individual quotidiana. Como cada cidadão não tinha de
desconfiar do seu vizinho nas relações quotidianas, acabava por considerar
que Atenas não tinha de desconfiar dos seus vizinhos e aliados. Era uma
certa ingenuidade democrática que transcorria da doçura da vida
democrática quotidiana dentro de portas. Seria um erro gravíssimo, que
exporia Atenas a grandes perigos, se nas relações externas com os aliados
houvesse grande lugar para diálogos equitativos e esforços de persuasão,
ou para a compaixão quando erros tivessem sido cometidos. O império
democrático tinha de se impor como qualquer outro império. Pela força.
Havia outra inclinação da democracia para se perder em indecisões e
tibiezas. Com muita facilidade, a cidade democrática abstraía-se dos
perigos concretos, mas por enquanto invisíveis, quando se perdia nos
vários «concursos de discursos» ou «concursos retóricos» dos seus
políticos. Os cidadãos democráticos habituavam-se a assistir a debates
públicos e a interpretar o mundo ao sabor desses debates travados entre
oradores profissionais. Eles «gostam de ser espectadores de discursos e
auditores de acções». A política democrática convertia-se num
espectáculo, literalmente falando, o que construía um plano artificial
sobreposto à realidade concreta e que a tornava invisível à cidade.
Como espectadores de um espectáculo, os cidadãos democráticos
deixavam-se seduzir por qualquer paradoxo e resmungavam com tudo o
que fosse cansativamente familiar. Todos os cidadãos gostariam de ser
oradores, mas, como nem todos conseguiam sê-lo, envolviam-se
emocionalmente no despique entre dois retores. Todavia, não era à toa que
não se conseguia ser orador. O orador incompetente que existia em cada
cidadão democrático era também incompetente para acompanhar os
discursos dos que eram oradores profissionais. Ficavam ansiosos por
antecipar o argumento antes de ele ser pronunciado e eram lentos a
deduzir as suas consequências. O resultado era que os cidadãos
democráticos estavam sempre à procura de «um mundo diferente daquele
em que vivem» e eram incapazes de interpretar sensatamente as
circunstâncias que lhes são dadas. O próprio movimento democrático
criava um ambiente político interno – um espectáculo – não só propenso à
indecisão, como sobretudo propício à produção da irrealidade. Essa
encenação permanente desligava a consciência da cidade da realidade
concreta que a envolvia, fechando-a à noção clara dos perigos e riscos e
abrindo-a aos projectos que se apresentassem com arrojo, novidade e
habilidade. É como se o espectáculo permanente em que a política
democrática se tornava correspondesse a um desejo profundo de
distracção do povo democrático, e por sua vez alimentasse esse desejo. A
política democrática distraía os cidadãos, entretendo-os, o que muitas
vezes significava prender a atenção colectiva a ninharias e futilidades,
desviando-a do que era crítico e urgente. Como se vivia num espectáculo,
a realidade concreta seria objecto de atenção se se tornasse visível,
patente, estimulante, em suma, se ela se convertesse num espectáculo
também.215
Curiosamente, era o demagogo democrático Cléon quem queria desfazer
esses «hábitos» junto dos cidadãos atenienses. Percebe-se porquê. Era a
condição para conciliar a democracia com as exigências do império. Neste
caso, a exigência imperialista era simples. Deixar Mitilene impune por
compaixão, por vontade de justiça ou por outra razão moral, seria
multiplicar o número de insurreições e assim multiplicar os actos
necessários de crueldade que Atenas teria de praticar para disciplinar os
aliados, para já não falar do dinheiro que teriam de consumir nessas
empresas. Compaixão e equidade, a par da obsessão com o espectáculo
dos debates argumentativos – eis o que era mais prejudicial para a
preservação de um império.216 Mas isto também forçava a tomar em
consideração que o povo democrático não queria ser pura e simplesmente
distraído. Queria manter os seus escrúpulos morais e o seu sentido de
justiça. Ora, isso, disse-lhes Cléon, era incompatível com o império. Não é
preciso procurar muito mais para compreender o interesse que Maquiavel
teve no estudo do livro de Tucídides.
A alternativa era a de Brásidas em Acanto, e a geopolítica europeia
sempre a incorporou. O desejo de liberdade mobilizava os Gregos contra o
império, como o fizera umas décadas antes contra os Persas. No tempo de
Brásidas, porém, o grito pela emancipação dos que Atenas queria reduzir à
escravatura dirigia-se contra um império democrático. Esparta jurava que
não queria destruir o império ateniense apenas para substituí-lo pelo seu
próprio domínio. O intuito era o de libertar todos e todos deixar à
autonomia de cada um. No entanto, um projecto de emancipação das
trevas de um império militar tem forçosamente de ser militar na sua
natureza. Para ser eficaz, o contra-império tem de obedecer aos mesmos
imperativos que o império. Brásidas avisou Acanto de que, se não se
juntasse a Esparta e aos seus aliados para devolver a liberdade de todas as
cidades gregas, ele teria de derrotar a cidade sem quaisquer hesitações,
nem escrúpulos. Quem não se juntava à causa da liberdade alimentava a
suspeita de não ser seu amigo. Mas mais do que isso, o bloco da liberdade
tinha os mesmos requisitos de unidade e de coesão que o bloco imperial.
Não toleraria dissensões quando o que estava em causa era uma matéria de
vida ou morte.217 A geopolítica europeia nunca perderia de vista este
aspecto trágico.
Nos nossos tempos, apesar das frequentes acusações extra-europeias de
imperialismo democrático mais ou menos encapotado, a democracia
mobiliza-se para servir de contra-império. Mas sabemos como o contra-
imperialismo não nos livra de escolhas difíceis, nem das tragédias em que
a política é pródiga.
172
Mary Beard, The Classical World: an Epic History of Greece and Rome,
Londres, Penguin Books, 2006, p. 90.
173
Miguel Morgado, A Aristocracia e os Seus Críticos, Lisboa, Edições 70,
2008.
174
Mogens Herman Hansen, «Was Athens a Democracy? Popular Rule,
Liberty and Equality in Ancient and Modern Political Thought», Historisk-
filosofiske Meddelelser, n.º 59, Copenhaga, Det Kongelige Danske
Videnskabernes Selskab, 1989, p. 24.
175
Por todos, Aristóteles, Política, 1317b2-3, 12-13; Platão, República,
557a-562a.
176
Hansen, pp. 10, 18-19.
177
Paul A. Rahe, The Spartan Regime. Its Character, Origins, and Grand
Strategy, New Haven, Yale University Press, 2016, p. 9.
178
Heródoto, 7.220.2-4.
179
Ann Ward, p. 107.
180
Leo Strauss, The City and Man, Chicago, The University of Chicago
Press, 1976, p. 146.
181
Rahe, pp. 116-23.
182
Tucídides, IV.85-86.
183
Tucídides, I.18-19.
184
Tucídides, I.139.
185
Tucídides, 2.41.1.
186
Tucídides, II.62.
187
Clifford Orwin, The Humanity of Thucydides, Princeton, Princeton
University Press, 1994, p. 18.
188
Tucídides, II.64.
189
Orwin, p. 22.
190
Tucídides, II.63.
191
Tucídides, II.63.
192
Tucídides, II.64.
193
Tucídides, I.23.
194
Jacqueline de Romilly, Thucydide et l’imperialisme Aténien. La pensée
de l’historien et la genèse de l’œuvre, Paris, Les Belles Lettres, 1947, p. 27,
n. 3.
195
Graham T. Allison, «Thucydides Trap: Are the U.S. and China headed
for War?», Atlantic Monthly, Setembro, 2015,
https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/united-states-
china-war-thucydides-trap/406756/; Graham T. Allison, «Destined for
War?», The National Interest, Maio/Junho, 2017, pp. 9-21.
196
Allison, p. 11.
197
Graham T. Allison, Destined for War. Can America and China Escape
Thucydides’s Trap?, Boston, Houghton Mifflin Harcourt, 2017, Apêndice
n.º 2, pp. 560-64, edição epub. Ver a crítica de Richard Hanania, «Graham
Allison and the Thucydides Trap Myth», Strategic Studies Quarterly, vol.
15, n.º 4, 2021, pp. 13-24.
198
Tucídides, I.75-76.
199
Charles S. Maier, Among Empires: American ascendancy and its
predecessors, Cambridge, Harvard University Press, 2007, p. 36; María
Elvira Roca Barea, Imperiofobia y leyenda negra. Roma, Rusia, Estados
Unidos y el Imperio español, Madrid, Siruela, 2016, pp. 30-41.
200
Jan Zielonka, Europe as Empire. The Nature of the Enlarged European
Union, Oxford, Oxford University Press, 2006.
201
Tucídides, VI.24.
202
Tucídides, IV.95.
203
Tucídides, I.74.
204
Tucídides, I.75; Strauss, The City and Man, p. 183.
205
Tucídides, I.76
206
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, (trad. portuguesa: Raúl
Rosado Fernandes), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, V.89. Os
itálicos são meus.
207
Tucídides, V.91.
208
Tucídides, V.104.
209
Tucídides, V.105.
210
Strauss, The City and Man, pp. 189-191.
211
Tucídides, IV.59-65.
212
Tucídides, VI.35-40.
213
Tucídides, VI.18.
214
Tucídides, VI.90.
215
Tucídides, III.36-38.
216
Tucídides, III.39-40.
217
Tucídides, IV.87.
VIII
O NASCIMENTO DA GEOPOLÍTICA
EUROPEIA
Atenas, 480 a. C.
No início do século V a. C., o Império Persa era o centro do mundo. A
riqueza, o poder, a submissão de dezenas de povos, línguas e deuses sob
um mesmo governante conferiam à Pérsia um império incomparável.
Desde as fronteiras da Índia ao Afeganistão, dos desertos da Península
Arábica à nascente do Nilo (hoje território do Sudão), o império chegava
às margens orientais do mar Egeu (actual Turquia) e ao outro lado do
Bósforo, com algumas colónias e aliados na Trácia (actual parte oriental
da Grécia, Turquia Ocidental e Sul da Bulgária). As dezenas de ilhas que
polvilhavam o Egeu, e as cidades gregas que nelas despontavam,
formavam uma imensa heterogeneidade política, segundo a forma política
que os Gregos legaram ao mundo – a polis.
Nos primeiros anos do século V a. C., em grande medida atraído para as
lutas intestinas das cidades-ilhas, nas quais se destacavam Naxos e Mileto,
o império decidiu iniciar uma gigantesca expedição de punição e
submissão de todas aquelas poleis. Juntando-se numa frágil coligação, as
cidades e ilhas gregas da Ásia Menor banhadas pelo Egeu tinham iniciado
a Revolta Jónica e o seu lema era a liberdade – contra o domínio Persa.
Terra e Água
Atenas era uma cidade do mar. A sua lenda fundadora fala-nos da
competição entre Posídon, o deus dos mares, e Atena, a deusa da
sabedoria. Segundo esse mito, que nos chegou pela tradição em mais do
que uma versão, Posídon e Atena competiram para obter o favor dos
habitantes de Ática. Quem agraciasse Ática com a melhor dádiva venceria.
Posídon espetou o seu tridente e imediatamente jorrou uma fonte de água.
Mas a água era salgada, o que não matava a sede nem de pessoas, nem de
animais, nem de plantas. Atena respondeu oferecendo a primeira oliveira.
Esta proporcionaria sombra para protecção do sol abrasador. Mas daria
também a azeitona com a qual os habitantes poderiam fazer azeite e
vendê-lo por toda a Hélade. E com o lenho poderiam aquecer-se no
Inverno, fazer todo o tipo de objectos, como casas e barcos.
Quem venceria? Na assembleia votaram homens e mulheres. Como
havia mais uma mulher do que o total de homens, Atena venceu. Mas
Posídon tinha mau perder. Agitou as águas dos oceanos provocando vagas
gigantescas e inundações terríveis. Para o apaziguar, os agora Atenienses
decidiram punir as mulheres. Elas tinham sido a parte que derrotara os
homens na votação para a melhor dádiva divina. Como represália, veriam
vedada a cidadania; nunca mais poderiam votar. Um segundo castigo
determinou que os varões atenienses não poderiam ficar com o nome das
mães, adoptando-se o sistema patrilinear da descendência.
Fora as mitologias, Atenas no final do século VI a. C. era uma cidade
pequena e eminentemente rural. Talvez pareça implausível, dada a história
posterior da cidade e a sua proximidade ao excelente porto do Pireu. Mas
quando o Império Persa invadiu a Europa para punir Atenas foi em
batalhas campais que os nobres hoplitas atenienses, ombro a ombro com
outros gregos, mediram forças com os soldados persas. Atenas mudaria
muito num curto intervalo. Mudaria politicamente, inventando a
democracia, e mudaria estrategicamente, tornando-se a grande potência
talassocrática do mundo grego.
Foi Temístocles quem operou a viragem decisiva. Foi obra sua aquela
viragem em que os Atenienses deixaram de ser mais um povo situado
perto do mar, mas não plenamente marítimo, para passar a ser uma
potência marítima – uma talassocracia. Temístocles, cujo nome significa
literalmente a glória da lei, ou talvez aquele justamente glorioso218, não
podia reivindicar origens sociais nobres. Mas dizia-se que desde pequeno
demonstrara uma vocação para a vida pública, para falar em público, e
preparava-se com afinco e perseverança para ser um homem de acção.
Ansiava pela reputação que os Atenienses atribuíam aos grandes homens
de Estado que se notabilizavam pela dedicação aos assuntos públicos. Era
o velho desejo de ser o primeiro, que já Homero cantara a propósito de
Aquiles – mas desta feita não no combate propriamente dito, mas na
elevação da sua cidade a um novo patamar de glória. Toda a vida teve um
adversário político na pessoa de Aristides e dir-se-ia que Atenas só tinha
lugar para um: para ele ou para Aristides.
Temístocles mal tinha chegado à idade adulta quando Atenas
inesperadamente venceu o poderoso Império Persa na Batalha de
Maratona, no ano 490 a. C. Foi uma vitória tão formidável que convenceu
o «David» Atenas de que vencera definitivamente o «Golias» Pérsia.
Todos os Atenienses se deixaram embalar por essa euforia. Todos menos
Temístocles. Quando a generalidade dos Atenienses, ofuscada pelo brilho
de uma vitória sem precedentes, não via outra coisa além do despontar de
uma nova superioridade colectiva, Temístocles antevia já os perigos
futuros. Nessas circunstâncias, teria de ser ele a liderar uma cidade mais
míope do que ele. Quem vê mais longe no futuro preenche um requisito –
mas apenas um requisito – da liderança no presente e no futuro.
Aconteceu que Atenas por essa altura, poucos anos após a Batalha de
Maratona, obtivera o controlo das minas de prata em Laurion. Ainda sem
o saber, Atenas estava a iniciar o seu império. Mas a discussão que se
colocou na Atenas protodemocrática consistia em determinar o uso a dar a
esta nova riqueza que lhe vinha das minas de prata. Aristides propôs que o
dinheiro fosse dividido pelo conjunto do povo ateniense. Temístocles
contrapôs que tudo fosse investido na expansão da frota de guerra.
Primeiro, com o pretexto da guerra contra Egina, uma ilha rival situada ao
largo de Atenas, que em 491 a. C. se submetera ao jugo imperial da
cidade. Na verdade, Temístocles estava já a pensar na resistência a um
segundo golpe futuro dos Persas. Sabia, porém, que não conseguiria
aliciar o povo eleitor de Atenas com perigos distantes e sobretudo
invisíveis. Melhor seria apontar para aquilo que era concreto e mais
próximo: a velha rivalidade com Egina e os benefícios da sua submissão
ao poder ateniense. Assim foi. O povo ateniense apoiou a luta contra
Egina, e para a travar foi investir o dinheiro adquirido na produção de
dezenas de trirremes – aquelas que seriam pouco tempo depois cruciais
para salvar Atenas da segunda investida dos Persas.
Heródoto induz-nos ao desfecho das coisas, dizendo que foi o despontar
da guerra contra Egina que salvou a Hélade ao «forçar os Atenienses a ir
para o mar».219 No final, os navios contruídos para defrontar Egina não
chegariam a ser usados nesse conflito entre gregos. Mas salvariam a
guerra contra os Persas. Temístocles, com argúcia, fez os Atenienses
abraçarem definitivamente o mar como a sua avenida para a expansão e
para a glória, renunciando a um bem imediato e que lhe teria conquistado
o favor fugaz do povo, com vista à preparação de uma resposta a um
perigo que ninguém, além dele, enxergava no horizonte. Fez Atenas
abraçar o mar não sem a oposição de Milcíades, o grande general de
Maratona, que via no abandono da lança e do escudo, próprios da guerra
da infantaria, e associados na mentalidade ateniense à mais elevada
nobreza, uma degradação infame. Afinal de contas, abraçar o mar
significava virar as costas a terra. Os Atenienses deixariam de ser viris
soldados hoplitas, lamentava Milcíades, para passarem a ser vis
remadores.220
Temístocles apresentou aos Atenienses uma visão futura do poder
indomável da marinha de guerra, que com a estratégia adequada
alcançaria não só o domínio dos mares, mas da terra também. Uma cidade
pequena e pobre como Atenas só poderia resistir ao maior poder terrestre
– o do Império Persa – se exponenciasse a sua força militar através do
mar. E com tudo o que isso exigia: mobilização política das (poucas)
riquezas para esse propósito, edificação da construção naval em grande
escala e o treino sistemático de marinheiros de guerra nativos. Com efeito,
aquando da segunda invasão dos Persas no ano 480 a. C., seria o poder
marítimo de Atenas a infligir a derrota histórica – mais uma – do
invencível império terrestre da Pérsia.
Finalmente, a segunda invasão chegou, tal como Temístocles previra.
Chegou poderosa e avassaladora. Falava-se de um exército de um milhão
de homens, algo nunca antes visto. E ainda que possamos desconfiar da
inclinação para a hipérbole dos cronistas gregos, devemos aceitar que se
tratava de um exército colossal. Heródoto pôs-se a fazer uns cálculos e
estimou a força invasora em 2 317 610 combatentes persas. Se
somássemos os soldados recrutados na Europa, os auxiliares, os criados e
pessoal ocupado com os abastecimentos do exército e frota invasores,
Heródoto dizia que chegaríamos à estonteante cifra de 5 283 220
homens.221
Num primeiro instante, o pânico apoderou-se dos Atenienses. Ninguém
queria assumir o comando das tropas. Por fim, Temístocles avançou.
Começou por recusar a rendição. Depois negociou e formou uma grande
aliança das várias cidades gregas, que, até então, se entretinham a
guerrear-se mutuamente, e agora estavam à mercê dos Persas. Era sua
convicção que os Atenienses, e os Gregos em geral, só tinham uma
possibilidade de vencer os Persas – no mar. Inicialmente, os Atenienses
resistiram ao plano de Temístocles, mas à medida que as notícias
provindas dos avanços persas em território grego se confirmavam, cresceu
a disponibilidade para seguir aquela estratégia. Depois das derrotas nos
combates terrestres travados mais perto de Atenas, incluindo a derrota dos
famosos 300 espartanos na passagem de Termópilas, a cidade sabia que as
suas muralhas seriam inúteis. Mais valia tomar uma decisão já. Não sem
dissensões, o plano acabaria por ser o de Temístocles. E a sua liderança o
elemento agregador da frágil coligação de recém-aliados gregos, e nalguns
casos inimigos de décadas, nesta guerra épica.
Com a aproximação dos Persas, Temístocles tomou a decisão mais
dramática. Arriscou tudo. Um risco pensado, premeditado, mas
determinado pelo perigo extremo. Perante a incredulidade de muitos
Atenienses, Temístocles decidia evacuar a cidade e transportar toda a
gente para Salamina, uma ilha bem à vista do porto do Pireu e onde tinha
nascido o grande dramaturgo Eurípides – e, nos mitos dos poetas, o herói
Ájax. Não para fugir do invasor e nunca mais regressar, como tinham feito
os Focídios e alguns atenienses derrotistas agora propunham. Mas para
combater os todo-poderosos Persas em condições mais vantajosas.
Salamina é uma pequena e rugosa ilha com pouca área de terra arável e
onde, antes da evacuação de Atenas, não viveriam mais de 5000 pessoas.
Do outro lado do Pireu, Salamina dista menos de dois quilómetros do
continente, formando o estreito que proporcionaria a circunstância
geoestratégica decisiva para Temístocles derrotar os Persas. Da costa
nordestina de Salamina, 100 mil Atenienses puderam avistar com dor e
com raiva o fumo dos incêndios ateados pelos Persas na sua orgia
saqueadora quando entraram na cidade praticamente vazia. Casas, quintas,
templos, tudo destruído num espectáculo testemunhado por cada um dos
Atenienses, temporariamente a salvo pela água do mar e pela frota
ateniense, o que redobrou o ódio aos Persas, emoção parcialmente
catártica do terror que toda a cena inspirava.
Mas antes daquele mês de Setembro de 480 a. C., na preparação para a
evacuação, muitos atenienses ainda não queriam acreditar que iriam
abandonar as suas casas e os templos dos seus deuses à fúria destrutiva
dos Persas. Incrédulos ou não, assim que a frota ateniense regressou de
Artemísio, Temístocles fê-los embarcar. Evacuou todos os homens com
idade para combater, incluindo os metecos – os estrangeiros residentes que
não eram cidadãos. As mulheres e as crianças foram levadas, na sua
maioria, para Trezena, a terra mítica do herói fundador de Atenas, Teseu;
outras seguiram para Egina, onde foram acolhidas como refugiados
provisórios. Muitos dos mais velhos foram deixados para trás, assim como
os doentes e debilitados, entregues a um destino certo às mãos dos Persas
– ou das suas espadas –, destino partilhado pelos habitantes das aldeias
mais afastadas de Atenas e mais renitentes ao plano da evacuação. Ainda
houve espaço para levar a bordo algumas das estátuas dos deuses,
incluindo a de Atena, padroeira da cidade, feita de madeira. Para os
animais domésticos não essenciais não houve lugar. O cão de Xantipo, pai
do futuro grande Péricles, que lideraria Atenas contra Esparta cinquenta
anos mais tarde, nadaria atrás da trirreme do dono até à outra margem na
terra firme de Salamina, apenas para aí morrer de exaustão.
Nunca uma cidade grega fizera algo desta envergadura. Atenas era a
maior cidade grega – certamente com mais de 100 mil habitantes, talvez
150 mil – e as evacuações que outras invasões persas tinham provocado
no passado ocorreram em cidades bastante mais pequenas, e nem sempre
com grande sucesso, como sucedera em Foceia. E a grande diferença não
era de envergadura. É que neste caso Temístocles pretendia criar uma
cilada – a mãe de todas as ciladas.
O Nascimento da Geopolítica Europeia
Como os Atenienses se mantinham firmes na incredulidade, Temístocles
decidiu fazer o que vários estadistas da Antiguidade, e depois dela,
fizeram. Manipulou sinais divinos, presságios e mensagens oraculares,
explorando a credulidade do povo ateniense nas mensagens dos deuses
que contrastava com a sua incredulidade na autoridade de Temístocles
como estratega. Fez os sacerdotes falarem ao povo com as interpretações
politicamente mais convenientes. Quando os Atenienses ainda estavam
hesitantes quanto a abandonar Atenas, as suas casas, as suas terras, o seu
ganha-pão, rumo a Salamina, Temístocles lembrou-se de usar a deusa
Atena, a Protectora da Cidade, em seu favor. Dizia-se que no santuário de
Atena na Acrópole vivia uma enorme serpente animada pelo espírito da
deusa. Nunca ninguém via a serpente, excepto os sacerdotes e sacerdotisas
do templo. Havia o costume de, uma vez por mês, deixar um bolo de mel
que, segundo as guardiãs do templo, era invariavelmente comido pela
serpente. Mas eis que, na altura de todas as decisões, a sacerdotisa
anunciava aos Atenienses que o bolo tinha permanecido intocado.222 A
interpretação do pseudo-acontecimento foi devidamente engendrada,
segundo Plutarco, por Temístocles: Atena já tinha abandonado a cidade
rumo ao mar; estava na altura de os Atenienses fazerem o mesmo.223
Antes da chegada dos Persas a Ática, o oráculo em Delfos avisara os
Atenienses que tinham ido consultar a Pítia de que a cidade de Atenas se
salvaria por detrás de um muro de madeira. Como sempre, as profecias
oraculares expunham-se a várias e díspares interpretações. Houve quem
dissesse que o oráculo recomendava que se retirassem para a Acrópole,
que nessa época estava rodeada de arbustos. Um punhado deles acreditou
até à chegada dos Persas à cidade que a paliçada de madeira à entrada da
Acrópole os salvaria. Os Persas não os poupariam, nem aos templos, que
incendiaram.224 Esta profanação infame dos templos, os Atenienses não
perdoariam, e juntariam à luta pela sobrevivência a vingança dos seus
deuses ofendidos também. Depois desta destruição, seria Péricles quarenta
anos mais tarde que procederia à edificação sublime do complexo de
templos e santuários cujas ruínas podemos hoje admirar. Outros, mais
imaginativos ou mais astutos, leram nas palavras do oráculo a estratégia
de Temístocles. A começar pelo próprio Temístocles, evidentemente.
Nesta interpretação, que seria aprovada publicamente, o muro de madeira
era constituído pelos cascos dos navios atenienses.225 A marinha ateniense
era o seu verdadeiro poder e o único que poderia vergar os Persas.
Temístocles não ficou por aqui no ardil e na astúcia, tantos foram os
truques de contra-informação que praticou na preparação para o grande
confronto em Salamina. O mais famoso de todos foi este. Temístocles
tinha um escravo bárbaro que lhe era leal ao ponto de ser o tutor dos seus
filhos. Chamava-se Sicino e, como falava a língua dos Persas, além do
grego, Temístocles confiou-lhe uma perigosa missão. Fez com que Sicino
passasse por um informador dos Persas e enviasse uma mensagem
evidentemente falsa sobre os planos dos Atenienses. Temístocles queria
precipitar o ataque persa, dada a crescente tensão e medo entre os gregos
concentrados em Salamina que queriam fugir do local. Até entre os seus
Atenienses estava cada vez mais isolado na decisão de travar os Persas no
mar no estreito de Salamina ao invés de cerrar fileiras em terra no istmo
de Corinto. Temístocles estava confiante, mas tinha de acender essa
confiança em conterrâneos e aliados cépticos. Dizia ele, exprimindo a
confiança na sua estratégia:
(...) quando os homens planeiam segundo aquilo que é provável, os
acontecimentos normalmente sucedem-se de acordo com os seus
desejos; mas quando os planos são improváveis, nem deus está
disposto a apoiar as suas intenções.226
Temístocles ainda ameaçou os aliados – vinte e uma outras cidades
gregas – com a debandada da frota ateniense para Itália se eles o
abandonassem e retirassem para o istmo de Corinto, como propunham
Espartanos e Coríntios. A ameaça foi eficaz por algum tempo. Mas o
tempo corria contra os Atenienses. De resto, entre alguns dos comandantes
de Xerxes havia a nítida consciência da precariedade da coesão grega e
dos abastecimentos à frota inimiga. Artemísia, rainha de Halicarnasso,
proporia ao imperador essa abordagem: deixar o tempo correr contra os
Gregos, não os enfrentando no mar.227
Foi por isso que Temístocles enviou Sicino para que este persuadisse o
imperador de que os Atenienses e os seus aliados se achavam em total
discórdia e queriam sair a todo o custo do estreito de Salamina.
Temístocles admitiria depois ao seu arqui-rival Aristides: «Como os
Helenos não queriam combater, acabou por ser necessário levá-los para o
combate contra a sua vontade.»228 Como os Persas se entusiasmassem com
a ideia de apanhar os navios inimigos encurralados no estreito, dividiram a
frota para impedir todas as passagens em regime de vigilância
apertadíssima, extenuando os homens, que não puderam dormir.229 E como
a frota persa não ficou igualmente distribuída nessa tarefa de vigilância e
bloqueio, Temístocles atacaria onde ela estava mais vulnerável e onde
havia concentração maior de navios persas pesados e pouco manobráveis.
A ideia de Temístocles era anular a vantagem da escala persa. Era
preciso combater no estreito para diminuir a vantagem persa em alto-mar
com uma frota mais numerosa e mais rápida. No estreito, toda aquela
massa de navios teria muito mais dificuldade em manobrar e os navios
mais pesados dos gregos poderiam superiorizar-se. Pensado e feito. No
estreito de Salamina, Temístocles, com uma marinha bem treinada e
coordenada, encurralou e destruiu a marinha persa muito mais numerosa,
mas menos flexível e com mais dificuldades de manobra. Foi uma das
maiores batalhas navais da Antiguidade. Pouco depois, o imperador
Xerxes regressava à Ásia para lamber as feridas. Apesar de o perímetro
urbano da cidade de Atenas ter sido pilhado e destruído, a vitória no mar
fora esmagadora.
Quando consideramos a liderança de Temístocles, corremos o risco de
perder de vista uma mudança muito significativa que ocorrera. Enquanto a
decisão de Xerxes de punir Atenas fora tomada solitariamente, e por
influência de sonhos que interrompiam o sono do imperador, a decisão de
Atenas tivera lugar numa deliberação ao ar livre. Resultara de um debate
tenso e aguerrido, envolvendo todo o povo de Atenas, com muitas
opiniões proferidas. Todos os cidadãos foram chamados para se
pronunciar sobre a mais grave das decisões. Todos se tornaram
responsáveis pelo destino colectivo da cidade. E foi essa totalidade que
determinou a escolha feita. Não foram as autoridades tradicionais – nem
os anciãos presentes na assembleia, nem os guardiões dos templos, nem os
manteis ou videntes – a tomar a decisão, entregando-se os restantes à
passividade da submissão. Em boa verdade, os especialistas na decifração
dos oráculos favoreciam a retirada da cidade para se refugiarem noutro
território longínquo, como forma de escapar à fúria dos Persas, e eram
contra os preparativos para uma grande batalha naval. Falaram nesse
sentido e procuraram persuadir a multidão dos cidadãos. Alguns foram
convencidos. Mas não a maioria.
Durante um breve período, Temístocles seria tratado como um deus. O
seu prestígio cresceu de tal maneira que a sua superioridade se tornou
insuportável para a democracia ateniense nascente. E poucos anos depois
foi-lhe aplicada a punição para lidar com alguém que se tornara incómodo
para a igualdade democrática: o ostracismo, ou a expulsão da cidade por
dez anos em resultado de um voto na assembleia de cidadãos. Vale a pena
dizer que o mesmo tinha sofrido, antes dele, o seu grande rival Aristides.
A fama de Temístocles era helénica no seu alcance. Décadas mais tarde,
na véspera do início da guerra entre Esparta e Atenas, ainda se dizia que
Temístocles, pelos serviços que prestara a toda a Grécia, fora o estrangeiro
mais homenageado de sempre pelos Espartanos.230
O herói Temístocles foi acusado de passar a colaborar com os Persas e
daí em diante foi um foragido dos agentes da cidade de Atenas, que
queriam levá-lo de volta à cidade para ser julgado pelo tribunal
democrático. Incrivelmente, Temístocles concluiu a sua fuga prestando
vassalagem ao imperador da Pérsia, Artaxerxes, o filho do imperador
defunto que ele enfrentara no estreito de Salamina. Tornar-se-ia
imensamente influente junto do imperador, despertando até a inveja de
muitos membros da corte persa. Anos passados, porém, Temístocles,
apesar de rico e prestigiado, longe da sua terra e melancólico com tudo o
que sucedera, suicidou-se na sua casa com veneno.
Esta história está repleta de ironia. Porquanto os homens mais
conservadores, e menos amigos da democracia, nunca deixariam de
responsabilizar Temístocles e a vinculação que ele impusera da cidade de
Atenas ao mar, e ao porto do Pireu, como a origem da radicalização da
democracia ateniense e da morte da oligarquia nobre tradicional dos
agathoi. As vozes oligarcas diziam que «o império marítimo foi a mãe da
democracia».231 Menos de cinquenta anos depois de Salamina, Péricles
referia o lugar-comum geopolítico mais comum que havia em Atenas: «o
que importa é o domínio do mar».232 Ora, esta associação do império à
democracia desembocaria na chamada Guerra do Peloponeso contra
Esparta e, após três décadas, numa derrota trágica.
Porém, o inverso também é plausível. Isto é, a democracia ateniense
pode muito bem ter sido a mãe do império posterior, e não a sua filha.
Desde logo, por uma razão política e organizacional. As tiranias e as
oligarquias receavam sempre ter o povo em armas. Precisavam de se
rodear de uma guarda pretoriana e de força armada a cargo de
mercenários, de preferência estrangeiros. O povo podia deslizar para a
insatisfação e a impaciência com o governo de minorias tão exíguas na
cidade. Convinha, portanto, que não se achasse armado. Contudo, o
projecto político de manter uma extensa marinha de guerra em actividade
permanente supunha que os marinheiros seriam, em larguíssima medida,
os próprios cidadãos. E só uma democracia podia fazer cidadãos de tanta
gente – cada trirreme podia acomodar até 200 marinheiros: 170
remadores, 10 soldados e 4 archeiros.233 Só uma democracia podia conferir
tanto poder militar ao povo comum sem semear instabilidade e violência
insuportáveis, e sem arriscar a sua própria sobrevivência como regime. O
povo em armas, não como um gesto de aflição adequado a uma
emergência, mas organizado e institucionalizado, num exército ou
marinha permanentes, é uma possibilidade democrática. Não era uma
possibilidade para as oligarquias estreitas, nem para as tiranias. Contudo, é
preciso acrescentar que um exército e/ou uma marinha em permanência é
um instrumento de império imprescindível.234 O balanço de Heródoto da
vitória de Salamina permanece um guia sólido:
Nesta altura, os Atenienses tornaram-se muito mais fortes. Isto
demonstra como o igual direito de falar na assembleia (isegoria) traz
benefícios a muitos níveis: enquanto os Atenienses foram governados
por tiranos, não foram melhores na guerra do que quaisquer outros
povos seus vizinhos; mas assim que se viram livres dos tiranos,
tornaram-se de longe os melhores de todos. Assim, é evidente que eles
foram deliberadamente amolecidos quando estavam sob repressão, já
que trabalhavam para um senhor, mas, depois de se tornarem livres,
dedicaram-se ardentemente ao trabalho duro para alcançarem grandes
feitos que cada um deles queria realizar para si mesmo.235
Esta tese teria uma longuíssima e gloriosa carreira. Muitos imitariam
Heródoto e a sua ideia de que Atenas prosperou quando se livrou da
família do tirano Pisístrato. Encontramo-la, por exemplo, no historiador
romano Salústio, que escreveu sobre as guerras civis e os golpes de estado
nos últimos anos da decadência republicana. Roma só fora grande depois
de expulsar os seus reis, o que é o mesmo que dizer, depois de se tornar
republicana.236 No Renascimento italiano, Maquiavel corroborou-o
entusiasticamente.
A democracia ateniense era vista pelos Atenienses como sendo um
regime construído pelos próprios homens, e não um acidente ou um dom
dos deuses. Uma auto-interpretação política deste género conferia uma
confiança inaudita nas suas próprias possibilidades. Atenas podia
finalmente ser posta em movimento. Podia finalmente ser movimento. É
certo que sabemos como terminou esse movimento. Atenas seria
ingloriamente derrotada na Guerra do Peloponeso. No entanto, é preciso
não esquecer que a democracia imperialista de Atenas seria também a era
de ouro de Péricles, Sócrates, Aristófanes, Fídias e Apolodoro.
Assim, é legítimo inferir que o desenlace da guerra contra os Persas não
foi independente do facto de Atenas ser uma democracia. A deliberação
colectiva sobre a preparação da guerra, a execução da guerra e a
mobilização dos cidadãos devem ser lidas como práticas resultantes da
acção especificamente democrática, irreproduzíveis noutros regimes
políticos. No mesmo sentido, a motivação e a razão para Atenas se
defender, ao invés de se render ao Império Persa, não se reduzia ao puro
desejo de sobrevivência. Era também um desejo de liberdade. Quando os
Gregos enviaram embaixadores a Siracusa para persuadir o tirano Gelão a
juntar-se a Esparta, a Atenas e às demais cidades, apelaram à defesa da
liberdade da Hélade. Note-se que os embaixadores tinham sido enviados
por cidades que não eram democráticas, como Atenas, mas que nem por
isso se interpretavam como negações da liberdade. Esparta era o caso mais
sintomático, como vimos.
Destarte, os enviados gregos convocaram Siracusa, uma tirania patente
governada por um tirano que abominava as classes populares, a juntar-se
aos outros Gregos na defesa da liberdade. Da liberdade de Siracusa
também? Na verdade, o perigo que os enviados invocaram para sublinhar
o interesse de Siracusa em se juntar à força militar não foi o da perda da
liberdade. Esse seria o perigo para Esparta e Atenas. Era mais conforme
com a situação política siracusana, e com o interesse do seu governante, a
protecção contra o perigo de, uma vez caída a Hélade no Oriente, ser uma
questão de tempo até o Império Persa chegar à Hélade do Ocidente. Com
o tirano Gelão apelou-se ao interesse próprio da sobrevivência política,
não ao desejo de liberdade.237 E com razão. Gelão não seria sensível a
qualquer apelo à defesa da liberdade.
Gelão era um tirano. Mas Esparta, desde sempre, e Atenas, com a
democracia, abominavam a tirania. Depois de Salamina, o persa
Mardónio, em nome do imperador, tentou aliciar Atenas com vista a partir
a aliança dos Gregos. Prometeu-lhes as suas terras, a sua autonomia e até
ajuda para reconstruir os templos destruídos e, no fundo, a amizade
política do império. Os Atenienses recusariam a oferta da Pérsia. Aos
Espartanos, inquietos com a perspectiva de perderem Atenas para o lado
persa, e assim, após tantos sacríficos, arriscarem perder a guerra, os
Atenienses tranquilizaram-nos com a garantia de que não haveria paz com
quem tinha destruído os templos sagrados e ofendido os seus deuses.
Haveria, sim, vingança. Afiançaram-lhes ainda que não havia bem terreno
algum que pudesse corrompê-los e os levasse a medizar e escravizar a
Hélade, numa palavra, a trair aqueles que com os Atenienses partilhavam
uma língua, os laços de parentesco, os deuses e até um modo de vida.
Finalmente, quando os Atenienses responderam ao mensageiro persa
portador da proposta de aliança, avisaram-no de que jamais cessariam de
combater o império por «devoção à liberdade».238
Em 479 a. C., depois da Batalha de Plateias contra os Persas, que os
expulsaria definitivamente da Hélade, a coluna serpentina seria erguida
em Delfos com os nomes das 31 poleis gregas que tinham combatido os
invasores. Em Plateias, Pausânias, um dos reis espartanos que comandara
o exército grego nessa batalha, faria o sacrifício de agradecimento pela
vitória a Zeus Eleutherios – o Zeus da Liberdade. Tudo batia certo. Afinal
de contas, na véspera da batalha de Salamina o oráculo tinha profetizado
que «o clarividente filho de Cronos» (Zeus) e a deusa Vitória (Niké)
trariam a aurora da «Liberdade da Hélade».239
Mais do que qualquer outro acontecimento, Salamina consolidou a
fronteira entre o Oriente e o Ocidente, entre a Ásia e a Europa, que no
mito fora levada da Ásia para Creta por um Zeus metamorfoseado em
touro. Com Xerxes, o Império Persa invadiu a «Europa», e não apenas a
Grécia, segundo Platão.240 Quando Ciro, o grande fundador do Império
Persa no século VI a. C., conquistou em 546 a costa ocidental da Ásia
Menor, povoada por cidades gregas, os Espartanos fizeram os Persas saber
que assumiriam a responsabilidade pela independência das cidades gregas
em «terra grega». Assim, Esparta traçava uma fronteira geopolítica clara
entre a Ásia e a Grécia, não obstante toda a costa asiática ocidental que
fora ocupada pelos Persas ser grega linguística e culturalmente.241 Décadas
mais tarde, depois da vitória em Salamina, Temístocles, ao falar aos seus
homens, disse-lhes que tinham sido os «deuses e os heróis» a vencer
naquele dia os Persas, porque os deuses não queriam que um mesmo rei
mandasse simultaneamente na Europa e na Ásia.242
Antes da batalha, muitos tinham sido os gregos que se renderam ao
império. Afinal de contas, parecia fútil resistir. Os Atenienses chamavam a
esta prática e a esta tentação medizar, numa referência depreciativa aos
Medos, um povo ariano que fora derrotado por Ciro e passara a integrar o
Império Persa. Mas Atenas e os seus aliados – desde logo, Esparta –
resistiram. Xerxes não enviou arautos a Atenas nem a Esparta para lhes
exigir as ofertas de terra e água, os símbolos tradicionais de submissão dos
vassalos do império. O seu pai Dario fizera-o na primeira invasão, e os
Atenienses, assim como os Espartanos, tinham-nos matado. Agora, o
objectivo do imperador era a redução à escravatura de todos eles. Em
Atenas, como vimos, não faltava quem objectasse à opção de resistir. Mas
na hora H foi Temístocles quem liderou a cidade. E desta vitória resultou o
maior ponto de viragem da história europeia.
Se os Gregos tivessem sido derrotados em Salamina, o Império Persa
teria escravizado as cidades gregas resistentes, e porventura eliminado
muitas delas, até ao extremo sul do Peloponeso. Atenas e Esparta
provavelmente teriam sido destruídas. Xerxes tinha o desígnio
verdadeiramente imperialista de unificar o mundo sob o seu jugo,
uniformizando as partes dissonantes, eliminando a diferença, desfazendo a
particularidade.243 A conquista, a expansão, a negação do outro (país,
cidade, nação, povo) era o movimento interno dos Persas desde a
fundação do império por Ciro. Tal como Xerxes diria aos nobres persas
que tinha convocado para escutarem da sua boca os planos para a invasão
da Grécia, o objectivo era «estender a fronteira do território persa até ao
reino celeste de Zeus».244 E acrescentaria a formulação geopolítica do
imperialismo universal: «O sol não contemplará nenhuma terra fronteiriça
com a nossa, porque depois de eu, juntamente convosco, ter atravessado
toda a Europa, faremos de todas as terras um único país.»245 Afinal de
contas, o imperialismo universal o que na verdade faz é converter o
particular (a particularidade persa) no universal. Contudo, por aqui
vislumbramos a contradição do imperialismo. Se o imperialismo repudia o
repouso e faz da política um movimento incessante traduzido na negação
da diferença no espaço externo às suas fronteiras, o que sucederia quando
o império tivesse conquistado o mundo inteiro e fosse efectivamente
universal? Não seria isso um regresso ao repouso repudiado?246
Com uma derrota em Salamina, os Atenienses muito dificilmente teriam
capacidade para cumprir a ameaça que Temístocles fez aos aliados antes
da batalha e fugir para a Itália grega. Sem a Atenas fulgurante do século V
a. C., sem Esparta para pô-la em tensão, a civilização clássica pura e
simplesmente não teria existido. Escusado é dizer que a experiência
democrática imperial que fez a grandeza de Atenas não chegaria a
protagonizar o palco da História Universal.
Com a vitória em Salamina e a expulsão dos Persas, as pequenas
cidades gregas puderam sobreviver com a imensa vitalidade que delas
escorreria, em vez de serem sufocadas por um império monolítico. A
jovem democracia ateniense pôde adquirir uma confiança inaudita em si
mesma, aprofundar-se e até radicalizar-se, com todas as consequências
que se conhecem. Com os Persas teríamos filósofos, pintores, artistas,
como sucedeu com Anaximandro, Heráclito e Hecateu, homens que
viveram em cidades gregas sob o domínio dos Persas.247 E as cidades
gregas do Mediterrâneo Ocidental teriam provavelmente sobrevivido na
sua independência. Mas Atenas teria sido certamente destruída e extinta
da História. Recorde-se que Xerxes enunciou a destruição de Atenas como
o propósito mais imediato da sua expedição. E os grandes tesouros da
intensíssima vida ateniense ter-se-iam provavelmente perdido, ou nunca
chegariam a existir. Os Persas não sabiam o que era a cidadania, nem a
liberdade, por exemplo. Pior, os Persas, originariamente um povo
guerreiro dedicado à pastorícia e à caça, um povo de criadores de cavalos
e indisposto para as artes ou para as letras, nem se sentiam confortáveis na
vida urbana tipicamente ateniense. Uma vez constituído o grande império,
o imperador era o Grande Rei, que governava com o favor do deus Mazda,
Senhor da Luz, absolutamente incontestado, e referia-se aos súbditos
como os seus «inferiores», que os Gregos se apressavam a traduzir por
«escravos».248 Era a personificação da Justiça e o mundo a sua propriedade
privada. Dario, pai do Xerxes que invadiria a Europa, daria ao seu império
o nome bumi, a palavra persa para mundo.249 Do que sabemos pela
arqueologia, Dario tinha uma concepção cósmica do seu império, o que
não era infrequente na Ásia, nem no Egipto. É verdade que Alexandre, o
Grande, macedónio como era, também cedeu à tentação de universalizar o
seu império. Mas o espírito histórico que levou consigo nas suas
conquistas foi o da helenização, infinitamente mais forte que os devaneios
pessoais – que fora, na interpretação de Ésquilo, o célebre dramaturgo
trágico grego, a motivação de Xerxes para a invasão que levou a cabo.
Seja como for, foi mais tarde com a figura de alguns imperadores romanos
que a tentação alexandrina regressou à Europa.
Mais do que qualquer outra cidade grega, mais do que Esparta, foi
Atenas que derrotou os Persas. A liberdade de todas as cidades gregas foi
garantida por Atenas. Ora, convém não esquecer que somos ainda hoje
herdeiros de Atenas. Com Atenas aprendemos a pensar e a duvidar, a rir
da sátira e a expurgar as paixões da tragédia nas artes performativas, a
fazer política com facções partidárias, discursos públicos, campanhas
eleitorais, rivalidades pessoais e ideologias, com a participação mais ou
menos mediada das grandes massas. Aprendemos a viver com a primazia
da racionalidade na filosofia, na política, na arte e nos valores morais.
Aprendemos a acreditar que podemos compreender a infinita
complexidade do mundo. Que podemos construir um mundo também ele
infinitamente complexo. Os Atenienses ensinaram-nos a opor a autonomia
à obediência a instâncias superiores transcendentes do imperador-deus. O
que nasceu em Atenas no século V a. C. foi algo de verdadeiramente
«novo e diferente».250
O que era novo e diferente foi o que mais tarde se chamou a «cultura
ocidental». Foi nova e diferente a criação da individualidade e da
«personalidade europeia», mas também a unidade histórica do género
humano. Foi nova e diferente a vontade de universalidade. Foi nova e
diferente a descoberta do humanismo. Não do «humanismo» estafado dos
nossos dias, que múltiplos atentados de moralina converteram em nada
mais do que uma vazia palavra de ordem política. Aos Gregos que
inventaram a paideia devemos o humanismo originário e autêntico ou a
«educação do homem segundo a verdadeira forma humana, com o seu
autêntico ser». Mais do que a pessoa, os Gregos inventaram a pessoa
genérica como ideia com a sua «validade universal e normativa». Foi
novo e diferente porque era um modo de existência singular que se
exprimia no mundo e ecoaria pelos séculos.251
Tudo o resto viria daqui: o refinamento de Roma, da sua república e do
seu império; o cristianismo paulino e dos seus descendentes cristalizados
no Concílio de Niceia, convocado por Constantino, o fundador da cidade
grego-romana de Constantinopla; o Renascimento, que não é sequer
concebível sem o século V ateniense; o ideal democrático recuperado no
final do século XVIII, e daí universalizado até aos nossos tempos. Esses
tesouros foram os produtos de um mundo grego específico. De um mundo
grego que era essencialmente a «união de liberdade com o amor da
beleza».252 E não teria sobrevivido na sua superlativa especificidade e
sublimidade sem a independência política das suas pequenas cidades.
O omnipotente e elefantino império fora derrotado por uma aliança de
cidades pequenas como formigas. O mar e a inteligência estratégica, a
dinâmica política e a audácia que ela induziu na acção colectiva, foram
pouco mais do que suficientes para travar o movimento natural do gigante
e empurrá-lo de novo para as suas outrora indefiníveis fronteiras. Atenas
foi o vulcão que entrou em prodigiosa erupção e durante séculos e séculos
fertilizou toda a Europa com a lava que derramou. Mas a ignição dessa
erupção foi Salamina.
218
John Moles, «Herodotus and Athens», in Egbert J. Bakker, Irene J. F. de
Jong, e Hans van Wees (eds.), Brill’s Companion to Herodotus, Leiden,
Brill, 2002, pp. 44-45.
219
Heródoto, 7.144.
220
Plutarco, Temístocles, IV.3.
221
Heródoto, 7.184.1-7.186-2.
222
Heródoto, 8.41.2-3.
223
Plutarco, X. Heródoto deixou por determinar quem veiculou essa
interpretação. Mas sugere que foi de toda a conveniência para o esforço de
persuasão de Temístocles.
224
Heródoto, 8.51.2-8.53.2.
225
Heródoto, 7.141-143.
226
Heródoto, 8.60.
227
Heródoto, 8.68.γ-8.692.
228
Heródoto, 8.80.1.
229
Plutarco, XII; Heródoto, 8.75.1-8.76.3.
230
Tucídides, I.74.
231
Plutarco, XIX.4.
232
Tucídides, I.143.
233
Barry Strauss, The Battle of Salamis. The Naval Encounter that Saved
Greece – and Western Civilization, Nova Iorque, Simon and Schuster,
2005), edição epub, pp. 16-17. As trirremes persas transportavam um total
de 40 soldados e archeiros. Heródoto (7.184.1) cifrava a capacidade média
dos navios persas em 200 homens para calcular a dimensão humana da frota
invasora total.
234
Josiah Ober, «“I Besieged that Man”. Democracy’s Revolutionary Start»,
in Kurt A. Raaflaub, Josiah Ober, e Robert W. Wallace, Origins of
Democracy in Ancient Greece, Berkeley, University of California Press,
2007, pp. 99-101.
235
Heródoto, 5.78.
236
Salústio, Bellum Catilinae, 7.
237
Heródoto, 7.156-162.
238
Heródoto, 8.140.α-144.
239
Heródoto, 8.77.2.
240
Platão, Leis, 698b.
241
Beard, p. 88.
242
Heródoto, 8.109.3.
243
Ann Ward, Herodotus and the Philosophy of Empire, Waco, Baylor
University Press, 2008, pp. 65-66.
244
Heródoto, VII.8.γ.1.
245
Heródoto, VII.8.γ.2.
246
Ward, pp.74-76.
247
Christian Meier, Athens. A portrait of the city in its golden age, (trad.
inglesa), Londres, John Murray, 1999, p. 27.
248
Beard, p. 108.
249
Holland, Dominion, p. 50.
250
Meier, p. 28.
251
Werner Jaeger, Paideia: Los ideales de la cultura griega, (trad.
espanhola), Cidade do México, Fondo de Cultura Económica de España,
2017, pp. 18, 22, 25, 32.
252
Strauss, The Battle of Salamis, p. 156.