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MIGUEL MORGADO

GUERRA, IMPÉRIO
E DEMOCRACIA
A ASCENSÃO DA GEOPOLÍTICA EUROPEIA
Ficha Técnica
Título: Guerra, Império e Democracia – A Ascensão da Geopolítica
Europeia
Autor: Miguel Morgado
Edição: Duarte Bárbara
Revisão: Rui Augusto
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagens de capa:
1) © Greek Triremes at Salamis, de Edmind Ollier, publicado na Cassell’s
Illustrated Universal History, s.n., s.l., 1882. Reprodução da Wikimedia
Commons.
2) © Die Seeschlacht bei Salamis, de Wilhelm von Kaulbach, 1868.
Reprodução da Wikimedia Commons.
3) © O Planisfério de Cantino, de autor anónimo, 1502. Fonte: Biblioteca
Estense Universitaria, Modena, Itália. Reprodução de Wikimedia
Commons/Alves Gaspar.
4) Napoleão Oferece o Sabre ao Comandante Militar de Alexandria, Julho
de 1798, François Henri Mulard (1769-1850). © Heritage Image/Alamy
Stock Photo/Fotobanco.pt
5) © Direitos reservados.
ISBN: 9789722076319

Publicações Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
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© 2022, Miguel Morgado e Publicações Dom Quixote


Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Por vontade do autor, este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo
Ortográfico de 1990.
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Índice
Capa
Ficha Técnica
INTRODUÇÃO
I - O MUNDO ATÉ AO DIA DE ONTEM
O Retrato do Mundo
Um Mundo Europeu
O Eclipse Europeu
Um Mundo Pós-Europeu
II - DOIS AMERICANOS EM WASHINGTON
Washington, 1992
Final da História?
Civilizações
Dos Dois Americanos, Quem Levou a Melhor?
III - AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES
Paris, Fevereiro de 1848
Capitalismo e Democracia
A França, a América e a Revolução de 1848
O Poder do Povo
Os Preços Baixos como Factor Geopolítico
IV - A ASCENSÃO DA GRANDE POTÊNCIA DO NOSSO TEMPO
Paris, 1783
O Nascimento de Uma Nação
A Religião Civil Americana
Industrializar ou não Industrializar? Eis a Questão Geopolítica
A Geopolítica Europeia na Doutrina Americana
O Farol e os Monstros
V - A DESCOBERTA DO NOVO MUNDOE O ENCONTRO COM O
OUTRO
Valladolid, 1550
O Novo Mundo e a Nova Consciência
A Controvérsia de Valladolid
Alteridade
Cristandade, Alteridade e Geopolítica
O Padre António Vieira e os Índios do Brasil
VI - BÁRBAROS DENTRO DE PORTAS
Roma, 410
A Queda de Roma
As Queixas dos Pagãos
O Cristianismo ou a Geopolítica do Amor
VII - O PRIMEIRO IMPÉRIO DEMOCRÁTICO
Milos, 416 a. C.
Mais Uma História de Duas Cidades
Impérios e Armadilhas
O Primeiro Império Democrático na Primeira Pessoa
O Primeiro Império Democrático na Terceira Pessoa
VIII - O NASCIMENTO DA GEOPOLÍTICAEUROPEIA
Atenas, 480 a. C.
Terra e Água
O Nascimento da Geopolítica Europeia
INTRODUÇÃO
«De facto, o maior determinante dos acontecimentos é o futuro
incalculável, que é o elemento mais traiçoeiro de todos e, no entanto, é
também o mais proveitoso.»1
Hermócrates
É comum atribuir-se a Auguste Comte, o fundador do positivismo, a
frase «a demografia é destino». Comte nunca a escreveu, mas a ideia
ficou. As dinâmicas demográficas eram o grande determinante da vida
colectiva dos seres humanos. Se fosse verdade que a demografia é destino,
então poderíamos dizer que a geopolítica é vida e destino.
O que é a geopolítica? Trata-se de uma pergunta mais difícil de
responder do que parece. A geopolítica encerra uma dupla possibilidade.
Por um lado, é a reflexão que se delicia com a absoluta contingência e
confere uma generosa atenção ao puramente casual na sua relação com o
permanente. Daí que muitos que se reclamam da reflexão geopolítica
pareçam limitar-se a recitar a secção internacional da última edição do
jornal. Não é necessariamente uma crítica, embora haja uma tendência
mediática para fazer a geopolítica deslizar para o jornalismo internacional.
Com efeito, a geopolítica tem de estar rigorosamente informada pela pura
factualidade. Caso contrário, não passa de uma estéril especulação com
vocação profética. Mas, ao mesmo tempo, a geopolítica tem de conservar
a ambição da grande teoria. Faz sentido que assim seja. A geopolítica
pretende partir de um olhar transversal e abrangente sobre o mundo. Em
certo sentido, é forçoso que seja um olhar transversal e abrangente sobre o
mundo inteiro. Ora, o que quero dizer não é que o discurso geopolítico
seja uma acumulação infinita de dados sobre o mundo inteiro. Isso seria
um contrassenso. Quero antes dizer que a geopolítica ambiciona, e deve
ambicionar, ser uma teoria da política, uma teoria da história e uma teoria
da articulação do espaço com a política e com história. Porquanto a
geopolítica é espaço, história e política. O que equivale a dizer que é
acção, tempo e território (e maritório). É sobretudo a sua articulação.
Daqui resulta um problema, na medida em que os nossos tempos
críticos tornaram-se muito desconfortáveis para ambições teóricas
excessivas. As grandes teorias não têm hoje vida fácil. Mas podemos
perguntar: é possível reflectir sobre a geopolítica sem o socorro
permanente da teoria com T maiúsculo? De facto, quantas vezes
encontramos nos livros sobre geopolítica restos de teorias políticas e de
teorias da história espalhadas pelas páginas sem explicitação e, muitas
vezes, sem o autor estar inteiramente consciente delas? Ora, a geopolítica
não é sinónimo de diplomacia, nem se limita a relatar factos constantes de
relatórios e de notícias jornalísticas. Qualquer um destes factos tem, ou
não tem, relevância geopolítica. Todavia, a pergunta «o que é a relevância
geopolítica?» pressupõe recursos intelectuais que vão muito além do
relato factual. Mas é neste relato que tendemos a refugiar-nos para fugir
do fulgor crítico que se reacendeu com a declaração pós-moderna da
morte das grandes narrativas. Há cautelas que devemos ter em conta. E
há receios que devemos desafiar.
A geopolítica é, no seu modo de análise, inseparável da questão
existencial clássica: «Donde viemos? Como viemos aqui parar? Para onde
vamos?» E tem de ser a consciência de que estando o futuro radicalmente
aberto e indeterminado – o «futuro incalculável» de Hermócrates –, e não
sendo o futuro logicamente tematizável, já as possibilidades futuras mais
próximas estão sempre condicionadas pelo legado que vem do passado.
Mesmo aquelas possibilidades futuras que estão fora de todas as
cogitações no presente.
Os múltiplos factores da geopolítica
A reflexão geopolítica é tão antiga quanto a historiografia e a filosofia
política. A nossa tendência para analisarmos o mundo político segundo
parâmetros geopolíticos é coeva com a consciência política do homem
europeu. No quadro da geopolítica, a nossa interpretação do mundo
político foi dando importância relativa a diferentes factores ao longo do
tempo. Se a partir do século XIX a geoeconomia adquiriu um estatuto
cimeiro, de que nunca tinha gozado antes, no passado outras
considerações tinham sido mais relevantes do que são hoje. As tecnologias
militares, de comunicação, de produção e distribuição de recursos vários,
sofreram alterações tão profundas que não podiam deixar de se reflectir na
política mundial, assim como nas prioridades da análise geopolítica. A
globalização não é outra coisa senão o processo histórico de mutação das
manifestações da geopolítica na economia. Globalização significa um
certo tipo de geoeconomia. As suas origens não são puramente técnicas.
Não são o mero resultado do desenvolvimento de novas tecnologias de
informação e de comunicação. São origens fundamentalmente geopolíticas
e geoeconómicas. Compreender a política e a história geopolítica que nos
trouxe a globalização ajuda-nos até a compreender a ascensão das
tecnologias de informação e comunicação que tornaram os fenómenos
mais familiares da globalização tecnicamente possíveis.
É inútil negar o predomínio da geoeconomia na geopolítica dos nossos
tempos. Veremos que isso já era verdade no século XIX. Mas é um erro
supor que a geopolítica se esgota na geoeconomia. É, por isso, muito
proveitoso examinar os momentos geopolíticos definidores do nosso
mundo que, neste livro, nos levarão a épocas em que a geoeconomia
ocupava um lugar secundário.
Secundário não significa nenhum. Se as questões económicas e
financeiras hoje ocupam um lugar cimeiro nas considerações geopolíticas,
sendo inclusivamente um traço característico da geopolítica dos nossos
tempos em contraponto com a de períodos históricos anteriores, não
podemos dizer que no passado o problema económico podia ser pura e
simplesmente ignorado. No século V a. C., fazendo uma comparação dos
recursos de Atenas com os de Esparta na preparação para a guerra que
essas cidades travariam, Péricles, o ateniense, chamava a atenção dos seus
ouvintes para o facto de Esparta ser pobre. E, como potência pobre, não
seria capaz de fazer uma guerra de longa duração, nem uma guerra
ultramarina. Não podia financiar frotas marítimas de guerra, com a sua
multidão de marinheiros assalariados, ou mercenários, nem de enviar
demoradas expedições por terra. Péricles era um governante que sabia que
a guerra prolongada e sofisticada na mobilização de recursos tem de ser
financiada.
Seja como for, não há dúvidas de que os factores económicos – a
capacidade industrial, o abastecimento de matérias-primas e a operação
financeira de sustentação da guerra – adquiriram uma importância
decisiva sem precedentes na nossa contemporaneidade. A Primeira Guerra
Mundial foi provavelmente o primeiro grande conflito a demonstrar essa
preeminência para além de qualquer dúvida. Ainda que tenha sido a
Inglaterra a primeira potência a usar esses três factores para conquistar a
primazia geopolítica durante todo o século XIX – com muito voluntarismo
talvez se pudesse atribuir a distinção da primeira experiência histórica
dessa natureza aos Países Baixos no século XVII –, foi aos EUA que coube
mobilizá-los com uma eficácia sem precedentes logo desde os meados da
guerra de 1914-1918.2
Todavia, a diversidade de factores na matriz de determinações da
geopolítica europeia transcendia largamente a dicotomia factores
políticos/factores económicos. Os factores a ponderar numa análise
geopolítica figuravam todos, por ordens diversas na sua irredutível
pluralidade, nessas reflexões que geraram alguns dos livros mais
importantes da civilização europeia. Tucídides, Agostinho, Maquiavel,
Montesquieu, Gibbon, incluíam nas suas cogitações o clima, a geografia, a
lei e política internas, a sofisticação estratégica, os costumes, a religião, a
tecnologia e o treino militar no conjunto das explicações, e
inevitavelmente das causas, para o rumo geopolítico que as coisas
seguiram.
A Geopolítica e a Geografia
Desde há muitos séculos que a Europa foi pródiga em teses geopolíticas
de pendor determinista. Por assim dizer, elas estão connosco desde
sempre. Por outras palavras, é de longa data a nossa atracção por teorias
que sustentem de um modo ou de outro que os seres humanos são
radicalmente condicionados pela sua localização geográfica. No fundo,
são puros corolários de formas determinísticas mais gerais, em que as
pessoas são determinadas pela sua condição ou como seres biológicos, ou
como seres terrestres ou marítimos, como filhos de um determinado clima
frio, temperado ou quente, das montanhas ou das planícies, e assim em
diante. O modo de vida dos povos, e as suas formas sociais, aparecem,
deste modo, estritamente determinados pelas condições materiais e
geográficas em que estão situados. Não surpreende, pois, que as relações
de vizinhança entre os povos, na amizade, indiferença ou inimizade,
sejam, por esta leitura, resultado também das condições geográficas. Mais,
são as próprias condições naturais que impõem as fronteiras – as
chamadas «fronteiras naturais» – de separação entre esses povos e que se
tornam constitutivas das relações que poderão estabelecer entre eles.
O que dizer de teses desse género? Parafraseando o grande filósofo
espanhol Ortega y Gasset, os povos são de facto eles e as suas
circunstâncias, o que inclui inevitavelmente as suas circunstâncias
geográficas. Ao contrário das ideologias que despontaram nos últimos
anos, não devemos supor que os seres humanos são criaturas incorpóreas,
insusceptíveis de condicionamento material. Talvez um dia haja seres
(humanos?) que gozem de uma existência inteiramente virtual,
inteiramente desligada do corpo e da matéria. Mas hoje, e em todo o nosso
passado, a corporeidade é, e foi, determinante da nossa existência,
incluindo da vida espiritual. Acedemos ao mundo através dos sentidos,
experimentamos dor e prazer corporal, caminhamos, corremos, nadamos
em superfícies a que estamos agarrados por forças físicas que o corpo não
consegue, por si, transcender. Temos necessidades alimentares e de
descanso. Sentimos frio e calor. Apreciamos formas de disposição
material das coisas, na ordem, na cor, na coerência e regularidade, e
desaprovamos o contrário. Somos corpos que nascem, crescem, adoecem e
morrem. O horizonte da mortalidade, constitutivo de toda a nossa
existência nas suas múltiplas dimensões, assim como o facto da
natalidade, que remete para muito mais do que o simples fenómeno da
reprodução biológica da espécie e da sua sobrevivência no tempo,
remetem para a diversidade e transformação incessante do mundo
humano, para a sua abertura natural à novidade, ao que não tem
precedentes, e para a indeterminação do futuro desse mundo. Nascimento
e morte são as consequências mais fundamentais da nossa corporeidade.
Somos corpos situados num mundo material. Disso não podemos fugir.
Pelo menos, no futuro previsível. Aqui reside a raiz filosófica dos
equívocos de muitas consciências que, sobretudo nos anos 1990,
analisaram a globalização como se a geografia tivesse deixado de contar.
O embaraço provocado por esses equívocos deve sempre servir de alerta
para quando escutamos as teses que desprezam a distância, a geografia e
os constrangimentos físico-naturais nas discussões sobre a política e sobre
a economia.
Por outro lado, somos seres corpóreos de um tipo muito particular. Hoje,
na discussão dos temas da geopolítica, já ninguém se sente autorizado a
invocar a alma. Foi esse o recurso central tanto na Antiguidade clássica,
como no cristianismo, no judaísmo ou no islamismo, para identificar uma
dimensão da existência humana que não podia ser simplesmente associada
à corporeidade. A vida especificamente humana obedecia a um princípio
de movimento próprio, isto é, de um movimento cuja origem era interna a
cada pessoa. A alma não era mais do que a sede desse movimento vital,
que ia além dos movimentos do corpo – a respiração, a circulação
sanguínea, a digestão, o nascimento, crescimento e morte das células e
tecidos que nos formam, e assim em diante –, onde podíamos
conceptualmente situar o desejo, a aversão, a vontade, a disposição, a
razão, a inteligência. Ora, a referência à alma assim entendida tem uma
razão de ser. Na verdade, os homens e as mulheres, seres
incontornavelmente corpóreos, são também capazes de desafiar a sua
localização geográfica, a sua existência material e até a consciência
formada por essas condições materiais. A geopolítica, tal como o ser
humano, é, por conseguinte, corpo e alma.
A geopolítica inclui obviamente a geografia na sua reflexão. Afinal de
contas, a relação dos agrupamentos humanos com o território, e as suas
mutações, é, sem dúvida, um dos motores da história. Mas não se reduz à
geografia. Uma latitude, uma cadeia montanhosa, um oceano, uma bacia
hidrográfica, um planalto, uma floresta, o clima, a fertilidade do solo – são
elementos físico-naturais que sempre condicionaram fortemente a vida
humana. Muitas das fronteiras que dividiram e dividem os povos e as
comunidades foram desenhadas por factos físico-naturais e pela sua
invencibilidade. No mesmo sentido, quando as comunidades não viviam
em espaços caracterizados por factos físico-naturais tão invencíveis,
quando viviam em espaços planos e relativamente indiferenciados, as
fronteiras tornavam-se mais ténues e permeáveis. Na existência pré-
tecnológica da humanidade podemos dizer que todos esses elementos
físico-naturais determinaram radicalmente a vida dos seres humanos. Mas
a História da Humanidade nos últimos 2500 anos – o plano histórico-
cronológico deste livro – foi escrita pela resposta dos seres humanos aos
elementos físico-naturais a que estavam expostos. Uma resposta sempre
condicionada, é certo, mas com graus de liberdade inconfundíveis. E à
medida que foi crescendo o poder tecnológico adquirido pelos povos do
mundo, esses graus de liberdade foram aumentando. Dito de outra
maneira, os graus de liberdade foram permitindo respostas mais e mais
criativas – e, nesse sentido, mais livres – das comunidades humanas à
necessidade imposta pelos elementos físico-naturais.
Os povos nunca se emancipam por completo da sua condição terreste,
definida em parte pelos elementos físico-naturais de que falo, mas vão-se
permitindo adaptações e superações desse contexto natural historicamente
mais inesperadas. Para o humano, e falando como os nossos antepassados,
o espírito não é independente da matéria e a matéria não é independente
do espírito. Até que ponto é que as alterações dos ecossistemas planetários
farão regressar os elementos físico-naturais à primazia ancestral e,
portanto, farão regredir a geopolítica à geografia, talvez ninguém saiba
dizê-lo com confiança. Podemos, sim, concordar que se trataria de uma
catástrofe humana inigualável.
A geopolítica não é apenas geografia. Não depende estritamente do seu
prefixo geo, que no grego original (γῆ) significaria apenas terra,
insuficiência declarada já que o mar é um elemento igualmente decisivo
na geopolítica. Pior, a possibilidade tecnológica que se abriu à
humanidade de viajar pelo ar e no espaço exterior, de apropriá-los e de
politizá-los, alterou a nossa relação política com a terra e com o mar,
assim como alterou a relação entre a terra e o mar.3
Pelo que acabámos de ver, a geopolítica é também cronopolítica, que
tem como elemento determinante o tempo – o tempo histórico, o tempo
humano, a acção e a meditação humanas. A geopolítica é sempre o nosso
ponto num processo, entre o devir e o porvir da história humana, onde
espírito e matéria se relacionam, condicionam e colidem. Mesmo que se
diga que a geopolítica é, no fundo, geografia porque esta inclui o
ambiente externo natural e humano, o que vale por dizer «o ambiente
externo enfrentado por cada Estado quando determina a sua própria
estratégia», sendo esse «ambiente externo» formado «pela presença de
outros Estados que também lutam pela sobrevivência e pelo proveito
próprio»4 – mesmo com esta definição ficaríamos com um entendimento
deficiente de geopolítica. E nem a síntese «a geopolítica é a influência da
geografia sobre as divisões humanas»5 a pode reparar. Deixaria de ser geo-
política para passar a ser outra análise de estruturas.
Digamos, então, numa formulação alternativa, e que colida menos com
o prefixo geo na geopolítica, que este prefixo recupera o sentido antigo da
geografia. Geographia é uma palavra grega, bem se vê. O verbo
geographein era usado recorrentemente para designar o acto de descrever
o mundo com palavras ou com outro tipo de representação gráfica,
desenhando mapas, por exemplo. A prática desta ciência no mundo grego
e romano da Antiguidade revela bem o sentido de geografia que é preciso
recuperar para obter um entendimento mais amplo da geopolítica que aqui
será tratada. Vemos nas obras dos grandes «geógrafos» antigos –
Eratóstenes, Estrabão, Ptolomeu, Plínio, Possidónio, Anaximandro,
Hecateu, o próprio Heródoto de quem me irei ocupar no último capítulo
deste livro – que o que hoje compartimentamos na filosofia, na etnografia,
na antropologia, para nada dizer da cosmologia, eram naturalmente
abrangidos pelo seu esforço de compreensão.6
Na consciência tardo-moderna, a linhagem destas considerações
remonta ao agora célebre artigo de um estudioso inglês chamado Halford
J. Mackinder, e que chegou a ser deputado na Câmara dos Comuns
durante a segunda década do século XX. Em 1904, Mackinder assinaria um
artigo sugestivamente intitulado «The Geographical Pivot of History» no
Geographical Journal de Londres.7 O artigo, que fora na verdade um
discurso lido a 25 de Janeiro de 1904, na Royal Geographical Society, em
Londres, acabaria por ser particularmente marcante para os teóricos
europeus que se apaixonaram irremediavelmente pelas teses dos grandes
espaços. Muitos eram politicamente sinistros, engrossando as fileiras
nacional-socialistas alemãs, como o influente jurista Carl Schmitt8 ou
como o major-general Karl Haushofer, a quem Rudolf Hess apresentou
Hitler, e que estava obcecado com o Lebensraum, termo que apropriara de
Friedrich Ratzel, um geógrafo alemão do século XIX.9 Na equipa dos
discípulos politicamente sinistros de Mackinder temos de contar aqueles
que se juntaram aos eurasianistas russos (comunistas ou não), como Lev
Gumilev, filho da poetisa Anna Akhmátova, que passou catorze anos no
inferno do Gulag, e se tornou o pai intelectual da recém-descoberta
civilização russo-eurasiática e da sua missão espiritual no mundo, que
continua a inspirar os que desde a invasão da Ucrânia em 2022 mais têm
vociferado contra a existência da Ucrânia como Estado político
independente.
Hoje, tornou-se convencional atribuir ao artigo de Mackinder a
paternidade da geopolítica e da geoestratégia. Sucede que é frequente os
filhos desviarem-se do caminho que os pais planeiam para eles. Daí que
valha a pena examinar brevemente os planos de Mackinder. Escrevendo
em 1904, o ponto de partida para o geógrafo era compreensível. Depois
das viagens de expansão marítima, e na crista de uma vaga sem
precedentes de colonização europeia dos vários continentes, os limites e
contornos do mundo eram finalmente conhecidos. A política teria de se
ajustar a este facto histórico novo: já não havia mundo por conhecer. O
mundo estava, por assim dizer, fechado. Isto tinha consequências políticas
profundíssimas, porque pela primeira vez depois de muito tempo as forças
de desordem e de excesso já não encontrariam espaço de escoamento. As
pressões acumular-se-iam, e rebentariam, sem o escape imperial. Assim,
todos os grandes conflitos jogar-se-iam no plano mundial. Mas, do ponto
de vista intelectual, o momento era igualmente disruptivo. Permitia
finalmente que se estabelecesse «uma correlação» entre «as grandes
generalizações geográficas e históricas». Mackinder não fazia por menos.
Esta era a janela de oportunidade para se consagrar a «causalidade
geográfica» na História Universal – na cultura, na política, na religião, e
por aí adiante. Segundo Mackinder, era preciso regressar à consideração
dos elementos físico-naturais («as características físicas do mundo») que
tinham sido sempre «coercivíssimos da acção humana». Advertia que não
era sua intenção deslizar para um «materialismo excessivo». Mas a
verdade é que, «em grande medida», a «natureza» «controla[va]» as
«iniciativas» do homem. Era uma fonte de desconcentração atermo-nos à
«concepção literária da história», isto é, às «ideias» e à «civilização que é
o seu resultado». Por outras palavras, a geografia era lei e os conteúdos
espirituais pareciam ser mais ou menos irrelevantes.
De tudo isto, Mackinder deduzia que os movimentos nómadas
obedeciam às possibilidades criadas e limitadas pelo ambiente físico. A
partir da grande estepe da Eurásia escorreram os movimentos mais ou
menos violentos que formaram a História da Europa, da China, da Índia,
da Ásia Central. Consultando os mapas, podíamos ver que a grande massa
continental da Eurásia, a mais perfeita para a mobilidade de tribos e
populações, a cavalo ou a camelo, e sem rios que desaguassem no oceano,
controlava esses movimentos. A permeabilidade destes espaços às
movimentações asiáticas, bem como a necessidade de reacção a essas
movimentações, constituíam o grosso da história de todos estes espaços,
povos e culturas. À volta da Eurásia, e como destino dessas migrações,
tínhamos quatro grandes áreas que corresponderam a quatro grandes
religiões: o budismo, o bramanismo, o islamismo e o cristianismo. Em
suma, a massa continental da Eurásia era a «região-pivô» da política
internacional. Daqui resultava, por exemplo, que a Rússia seria sempre
uma potência terrestre e a Grã-Bretanha uma potência marítima – factos
que nenhuma «revolução social» alteraria.
No final, Mackinder reconhecia que os elementos espirituais também
pesavam, e muito, na equação da política internacional. Mas a geopolítica,
entendida como a política determinada pela geografia, tinha a vantagem
de todos os materialismos: a de poder ser cientificamente contada,
quantificada, medida e calculada. A ciência moderna podia depender da
constância, regularidade e materialidade dos elementos geográficos. Ora,
o humano tinha o condão de resistir a toda esta disciplina da metodologia
científica moderna. Era a prioridade dos cientistas, e não tanto a natureza
da realidade, que propunha o entendimento materialista de geopolítica.
Porém, tudo o que sucederia nos cem anos seguintes, em que as
conquistas do espírito tornaram muito mais complexa a interacção com a
matéria – a geografia –, encarregar-se-ia de nos convidar a transcender
uma visão tão restrita da geopolítica. Pior do que isso. Na explicação de
Mackinder, a Europa era um produto da sua geografia, do emaranhado de
rios, montanhas, e por aí adiante, reagindo às invasões asiáticas. A
civilização europeia tinha assim um estatuto duplamente subordinado.
Primeiro, subordinado à sua geografia, que proporcionou resistências às
incursões dos povos asiáticos. E, segundo, subordinado à história asiática.
A Geopolítica da Liberdade
A geopolítica é o palco de todo o tipo de dilemas. Não apenas os que
envolvem a estratégia militar ou política. Os dilemas que assombram e
engradecem a geopolítica são de ordem moral e espiritual, económica e
material. De um lado, as escolhas morais forçosas entre dois bens, ou mais
frequentemente entre dois males. Do outro, a confrontação com a escassez
material e as escolhas por vezes proveitosas, por vezes destrutivas, que ela
implica. Escolhas também forçadas pela condição temporal da existência
humana – individual e colectiva. Escolhas entre o passado e o futuro, entre
o curto prazo e o longo prazo. Muitas das escolhas são, na verdade,
produto da necessidade pura e dura. Mas a agência humana ainda permite
respostas mais ou menos criativas ao império da necessidade. Além
destas, há escolhas verdadeiramente livres quando se abrem possibilidades
indeterminadas e incertas. Em ambos os tipos de escolhas revelam-se a
grandeza humana ou a mesquinhez. São escolhas feitas por seres humanos
que se recusaram a ser meros joguetes da contingência. Por vezes foram
chamados a pagar um preço elevadíssimo por elas – eles e os povos que
governavam ou dirigiam ou inspiravam. Noutras ocasiões cobriram-se
provisoriamente de glória e conseguiram proteger os povos pelos quais se
responsabilizaram. Noutras ainda cometeram crimes indizíveis e
trouxeram a violência e o sofrimento em grande escala. Podemos colher a
sabedoria de que precisamos acompanhando os momentos destas escolhas,
as ponderações que foram feitas, os bens e os males concretos que
estavam em causa, os horizontes políticos morais em que essas escolhas se
desenhavam, os recursos espirituais e materiais que forneciam os meios
das escolhas, e por aí adiante. Com essa aprendizagem acedemos a uma
dimensão mais profunda da análise geopolítica e dos grandes momentos
definidores da geopolítica do passado e do presente. A gravidade e a
grandeza desses momentos nunca são efectivamente discernidas sem todas
estas considerações.
O discurso sobre a geopolítica, as interpretações dos acontecimentos,
das mudanças, dos perigos, das oportunidades, têm repercussões sobre a
própria realidade histórica, na medida em que informam, justificam e
condenam as escolhas, as reacções, as esperanças, as aspirações e a
articulação dos «interesses» de todos os actores. O logos da geopolítica
interage sobre a realidade geopolítica. O que faz com que o discurso sobre
a geopolítica seja um factor geopolítico de primeira ordem. Sobretudo os
europeus devem conceder que «os grandes pensamentos são os grandes
acontecimentos».10
Ora, Guerra, Império e Democracia procura resistir às inclinações
deterministas. A sequência histórica dos acontecimentos geopoliticamente
decisivos que aqui apresento não deve ser lida à luz de nenhuma
inexorabilidade. Muitos destes momentos assinalam escolhas radicalmente
livres dos seus protagonistas, assim como restrições inamovíveis impostas
pelas circunstâncias e pelo passado. A contingência não deixou de ter a
sua quota-parte na governação do mundo humano. Por outro lado, não se
pode dizer em retrospectiva que a formação deste ponto de vista
geopolítico europeu foi pura e simplesmente arbitrária, nem que o seu
predomínio nos séculos XIX e XX resultou de puros acasos históricos ou de
puras reacções mecânicas e não-criativas à ditadura de circunstâncias
essencialmente dadas. Podemos dizer em contradição com as teses da
essencial arbitrariedade do retrato que formamos hoje do mundo
geopolítico, e das teses de que esse retrato corresponde apenas e
exclusivamente à vontade crua de poder, que o momento do nascimento
do ponto de vista geopolítico europeu consiste numa escolha política livre
– e muito contestada pelos seus contemporâneos – de um homem, de um
ateniense, chamado Temístocles.
Guerra, Império e Democracia defende que a geopolítica europeia
nasce de um momento de resistência a uma «invasão» de um «potentado»,
ou de um império, «asiático». Falo da resistência de Atenas ao império
dos Persas no início do século V a. C. Não será, então, uma confirmação
inadvertida das teses de Mackinder e dos seus discípulos? Isto é, não
confirmo eu o que quero desmentir, a saber, que a geopolítica não é
redutível à geografia? Julgo que não. Podemos conceber muitas teses, mas
convenhamos que é muitíssimo difícil aceitar que foi a geografia ática que
decidiu Salamina. Não foi nenhum fatalismo que nos deu Temístocles.
A Política da Geopolítica
Na Democracia na América, Tocqueville pronunciou-se longamente
sobre a influência da condição democrática na alma humana. E desta sobre
as ciências da sociedade que são praticadas em tempos democráticos. Nos
historiadores da época democrática, Tocqueville viu, em contraste com os
historiadores das épocas aristocráticas, a inclinação para atribuir «quase
nenhuma influência» do indivíduo sobre o destino da «espécie» ou do
«cidadão» sobre o seu «povo». Preferiam apontar para «grandes causas
gerais» e ignorar a vontade e a liberdade que fazem uns actores optar por
esta possibilidade e não por aquela. Os historiadores das épocas
aristocráticas exageravam em atribuir a indivíduos heroicos a
omnipotência sobre a história dos seus povos. Já os historiadores
democráticos eram vítimas da percepção democrática de que os indivíduos
eram «independentes» uns dos outros, e que só a «massa» era poderosa e a
pessoa singular impotente. No julgamento de Tocqueville, o exagero dos
historiadores democráticos era apenas um sintoma da sua mediocridade.
Causas «gerais» – hoje chamaríamos estruturais – e causas individuais
concorrem na formação do acontecimento. Abolir umas para benefício das
outras é um erro. Mas a inclinação dos historiadores democráticos era
«mais perigosa». Tornava flagrante a contradição entre a liberdade do
indivíduo que a democracia queria promover, por um lado, e, por outro
lado, a negação na historiografia da liberdade do ser humano como agente
histórico. Fazia crer que os movimentos históricos nada tinham de
voluntário. Que a acção histórica era comandada por forças externas e
impessoais. Que os povos democráticos eram joguetes de uma
«providência inflexível» ou de uma «fatalidade cega». A maior vítima
dessa contradição não era a veracidade da interpretação histórica. Era a
própria liberdade. Deste impasse intelectual formado pelo tempo
democrático saía um certo tipo de interpretação geopolítica. A expressão é
minha, evidentemente. Mas a citação de Tocqueville permite perceber que
não estou a abusar dos meus privilégios de comentador:
(...) cada nação está invencivelmente amarrada pela sua posição, pela
sua origem, pelos seus antecedentes, pelo seu meio ambiente, a um
certo destino que nem todos os seus esforços conseguiriam mudar.11
Há, no entanto, um aspecto do artigo de Mackinder, precisamente
aquele aspecto que não era original dele, que vale a pena tomar em conta
no apuramento da ideia de geopolítica. Falo do fechamento do mundo
geográfico e do subsequente fechamento do mundo político. Num certo
sentido, o primeiro fechamento determinava que houvesse apenas um
único «sistema político» no mundo. Tentando resgatar o propósito de
Mackinder, poderíamos dizer que a geopolítica seria o estudo dessa
unidade. Estando o mundo fechado, os actos, movimentos, iniciativas
numa parte dele afectam, de uma maneira ou de outra, as restantes partes
e, porventura, induzem nelas uma reacção. Todas as partes estão
relacionadas entre si. O sistema político torna-se global. Assim,
ponderando tudo isto, podemos dizer que a geopolítica é a política
internacional e as suas circunstâncias – a totalidade das suas
circunstâncias.
É um erro desligar a reflexão geopolítica da questão do regime político
e da forma política em geral. Há quem o faça, como se os regimes
políticos ou as formas políticas fossem irrelevantes, como se as
justificações, racionalizações, refutações políticas dos povos fossem
epifenómenos inconsequentes. Os regimes políticos são, pelo contrário,
elementos primordiais na análise geopolítica. Não são meras derivações de
estruturas mais fundamentais como a geografia, os alegados «interesses»
intemporais dos povos, a economia e a técnica. Em conformidade, as
questões geopolíticas, em particular a conceptualização da geopolítica
europeia, serão aqui articuladas sem omitir o regime político. É por isso
que falarei muito de império e de democracia. A geopolítica europeia é
pura e simplesmente incompreensível sem estudar seriamente essas duas
formas políticas, os conflitos em que se envolveram e, em termos gerais, a
relação dialéctica em que se deixaram envolver. É, sem dúvida, umas das
chaves mais versáteis para a interpretação da geopolítica europeia.
O Plano do Livro
O propósito deste livro é apresentar a base da política internacional e da
totalidade das suas circunstâncias tal como apareceram e se
desenvolveram na Europa. Para isso, exporei um conjunto de episódios
históricos geopolíticos, numa pluralidade de manifestações – militares,
políticas, culturais, económicas, intelectuais e por aí adiante – de
importância avassaladora na construção da geopolítica europeia. Cada um
desses episódios tem uma data e um local. Estão dispostos segundo uma
sequência cronológica regressiva, isto é, começo pelo mais recente e vou
recuando até ao acontecimento geopolítico fundador da geopolítica
europeia. Assim, começo pela globalização e pela situação dos nossos dias
– pelo nosso tempo de profundíssimas transformações geopolíticas
(Capítulo I).
Do ponto de vista intelectual, não é arriscado dizer que houve duas
interpretações geopolíticas da nossa situação que, mais do que quaisquer
outras, representaram o espírito do tempo e traduziram-no directamente da
consciência histórica. Foram elas a tese do Fim da História e a ideia da
Civilização como agência geopolítica primordial. O conteúdo dessas duas
interpretações e da acção política que directa e indirectamente dele
decorreu é o nosso primeiro acontecimento geopolítico, que teve lugar na
capital da potência hegemónica: Washington, em 1992 (Capítulo II).
Esse duplo testemunho da situação actual, contraditório como é,
apontando para direcções diferentes como aponta, seria impossível sem as
duas Grandes Transformações trazidas pelo século XIX: o duplo triunfo da
democracia e do capitalismo. São fenómenos tão complexos e abrangentes
que só com o auxílio de mentes invulgarmente poderosas podemos
começar a tentar compreendê-los. Como a prioridade cronológica tem na
geopolítica uma importância decisiva, decidi discutir as duas Grandes
Transformações com a ajuda das suas duas mais precoces testemunhas,
Alexis de Tocqueville e Karl Marx (Capítulo III). Antes de mais ninguém,
Tocqueville compreendeu a vastidão e a irresistibilidade da revolução
democrática no mundo. Antes de mais ninguém, Marx compreendeu a
profundidade das transformações do mundo que a revolução capitalista ou
industrial estavam a produzir. Ambas as forças históricas moldaram o
mundo que temos hoje até aos mais pequenos detalhes.
De Tocqueville até ao nosso tempo, a nação que mais peso geopolítico
teve foi a dos Estados Unidos da América. Quando Tocqueville os visitou
na década de 1830, eram ainda um pequeno país – em termos
demográficos – no início de uma fulgurante expansão territorial. Tinham
uma economia predominantemente rural e um papel residual, largamente
impotente na geopolítica europeia. Eram um fraco rival das grandes
potências europeias. De resto, os EUA tinham nascido pouco tempo antes
num movimento anticolonial contra o Império Britânico. A sua certidão de
nascimento é normalmente a Declaração da Independência proclamada no
dia 4 de Julho de 1776. Mas, de um ponto de vista geopolítico, essa
Declaração – e as dezenas de declarações de independência em relação ao
Império Britânico que os americanos produziram nesses meses – poderia
ter sido completamente fútil não fosse o tratado de paz que os americanos
independentistas conseguiram firmar com os Ingleses em Paris em 1783
(Capítulo IV). Foi essa segurança imprescindível que permitiu ao débil
Estado recém-criado começar a caminhar pelas suas próprias pernas. Foi
aí que nasceu a grande potência geopolítica das últimas décadas. E nasceu
para ser a sede das Grandes Transformações do século XIX testemunhadas
por Tocqueville e por Marx. O primeiro, que foi visitar a América para ver
in loco a primeira democracia moderna. O segundo ainda não podia saber,
ofuscado como naturalmente estava pela liderança económica e financeira
da Inglaterra na segunda metade do século XIX, que os EUA seriam a sede
territorial da economia de mercado no século XX e teriam no seu regime
político como ingrediente inseparável, e uma das chaves do seu poder
geopolítico, aquilo a que Marx chamava capitalismo.
Tocqueville e Marx, cada um à sua maneira, apontaram para a
globalização do mundo – para a mundialização. Uma mundialização com
uma certa estrutura e configurada por um conjunto de valores. Mas as
condições dessa mundialização tinham sido realizadas três séculos antes
com a descoberta da América. Não me refiro só à circunstância óbvia de a
democracia analisada por Tocqueville ter origem literalmente na América.
A importância da descoberta de um novo continente conformou
radicalmente a geopolítica europeia. Contudo, não se tratou de uma
simples descoberta resultante de épicas navegações protagonizadas por
Portugueses e Espanhóis. Com a descoberta da América foram também
descobertos povos e civilizações novas que os Europeus não sonhavam
sequer que existiam. Este encontro com o Outro foi tão formador da
geopolítica europeia quanto a descoberta da massa continental do outro
lado do oceano. A figura de Bartolomeu de Las Casas apareceu como a
mais extraordinária testemunha e fonte de meditação das consequências
desse encontro. Em 1550, num dos acontecimentos mais extraordinários
dessa época extraordinária, Casas e Juan de Sepúlveda, um prestigiado
pensador espanhol do seu tempo, confrontaram-se em Valladolid para um
debate sobre a natureza do índio (Capítulo V).
Com a descoberta da América, operada pelos Portugueses e pelos
Espanhóis, a geopolítica europeia alterou-se profundamente. Tanto os
Portugueses no Sul como os Espanhóis na região das Caraíbas estavam
mais interessados em chegar à Índia. Não que a existência de um novo
continente os não seduzisse. Mas na viragem do século XV para o século
XVI, a Ásia – a Índia – era tida como a região mais próspera do mundo.
Certamente contrastava com a pobreza europeia. Os Europeus acabariam
por dominar o oceano Índico, graças à sua superioridade naval. Mas, em
retrospectiva, a alteração repentina da geopolítica europeia, que acabaria
por retirar a Europa de uma condição de inferioridade mundial para uma
outra de absoluta e radical superioridade face a todas as regiões do mundo,
não se deveu apenas ao estabelecimento de ténues fluxos económicos
marítimos com a Índia. Deveu-se sobretudo à colonização da América.
Até 1550, a superioridade asiática era indiscutível. Depois de 1550, a
Europa viria a dominar o mundo em todas as suas dimensões. A Europa
seria o foco da liderança económica, tecnológica, científica, militar e
cultural. Desde então, o mundo foi essencialmente o reflexo da Europa,
que o fez à sua imagem e semelhança. Hoje, estamos a viver o momento
de transição para o desmantelamento desse mundo. Mas, como podemos
ver pela experiência de Bartolomeu de Las Casas, o mundo que ainda
conhecemos seria impossível sem uma força histórica incomparável: o
cristianismo.
A religião é um elemento geopolítico de primeira ordem e na
geopolítica europeia o elemento religioso central é indubitavelmente o
cristianismo. Ora, o cristianismo tornou-se um factor geopolítico
determinante num contexto inteiramente geopolítico, a saber, na revisão
profundíssima que fez do Império Romano. Daí que seja decisivo para a
nossa história analisar o primeiro saque da Roma imperial às mãos dos
bárbaros no ano de 410. E ninguém pensou esse chocante acontecimento à
luz das categorias cristãs como Agostinho de Hipona (Capítulo VI). A
influência cristã na civilização europeia, a meditação sobre o império
universal e o lugar de Roma na geopolítica europeia aparecem todos
conjugados no relato e comentário de Santo Agostinho. E permite
compreender como os recursos morais, teológicos e intelectuais, em geral,
usados na discussão seiscentista sobre os índios americanos remetem para
a problemática de Agostinho e do cristianismo no século V.
Roma era, como vimos, herdeira de Atenas e da totalidade da Grécia.
Mas estas foram marcadas por acontecimentos geopolíticos de primeira
ordem. O primeiro foi a Guerra do Peloponeso, uma espécie de guerra
civil da Hélade, em que os dois lados eram liderados pelas duas cidades
gregas mais brilhantes e tão diferentes: Atenas e Esparta. O nosso
acontecimento geopolítico tem lugar na linda ilha de Milos em pleno mar
Egeu, no ano de 416 a. C., aquando da terrível invasão de Atenas para
submeter os ilhéus (Capítulo VII). Atenas foi a primeira democracia do
mundo e, nessa guerra, estava à frente do primeiro império democrático
que o mundo jamais conheceu. A doutrina imperialista ateniense – a tese
ateniense – seria divulgada para intimidar os Melianos, e modificaria
profundamente a nossa relação com a guerra e a justiça nas relações
geopolíticas.
Por conseguinte, a constituição de Atenas como grande cidade
democrática e imperial – mais, a constituição da própria Europa – remete-
nos para o primeiríssimo acontecimento configurador da geopolítica
europeia: a Batalha de Salamina em 480 a. C. (Capítulo VIII). Depois da
invasão do omnipotente Império Persa de Xerxes, foi Salamina mais do
que qualquer outra batalha – mais do que Maratona, mais do que Plateias
– que salvou a coligação de cidades gregas que decidiram não se render.
Atenas e Esparta lideraram todos os gregos que não ofereceram terra e
água ao imperador, o ritual costumeiro de submissão total e sem
condições ao domínio imperial persa. Essa vitória que fez a Europa teve
um brilhante estratega – um político ateniense chamado Temístocles – e
um extraordinário relatador – o primeiro dos historiadores europeus,
Heródoto. Foi em Salamina que começou o milagre de Atenas. E assim
nasceu a geopolítica europeia.
Como o leitor decerto já percebeu, Guerra, Império e Democracia trata
daquilo a que chamo geopolítica europeia. À partida, esta expressão não
faz sentido. Geopolítica é geopolítica. Dispensam-se os qualificadores.
Aparentemente, é um contra-senso falar-se de uma geopolítica «europeia».
Porém, o problema deve ser visto de um modo mais subtil. Qualquer visão
geopolítica adopta, passe a redundância, um ponto de vista. Um ponto de
vista situado cultural e até geograficamente. Mas isto também é mais do
que dizer que a reflexão geopolítica neste livro adopta um ponto de vista
europeu. Ou que analisa o mundo presente e passado com uma
sensibilidade europeia. O que é verdade. Era inevitável que assim fosse,
tendo em conta as minhas origens, educação, interesses, mundividência e
preocupações. Mas é mais do que isso. A história que quero contar não é
apenas um conjunto de episódios históricos com importância geopolítica.
Eles estão profundamente relacionados. E a sequência que exprimem
conta uma parte da história da formação da geopolítica europeia.
Porquanto não é viável alcandorarmo-nos a um ponto de vista
extraterrestre para podermos ter uma perspectiva não-localizada, ou
localizada num ponto arquimediano, situado fora do mundo, que nos
emanciparia das perspectivas culturais particulares.
Não estou convencido de que a particularidade do ponto de vista deste
livro seja excludente da imparcialidade na ponderação dos bens e dos
interesses do resto da humanidade. Quanto ao resto, a sequência
cronológica regressiva que aqui irei descrever está efectivamente centrada
na Europa. É, nesse sentido, eurocêntrica e eurocentrada, mas espero que
não seja tida por eurocentrista. Uma análise europeia do mundo não tem
de ser o desprezo pelo mundo extra-europeu, nem uma tola afirmação de
superioridade absoluta sobre tudo o resto. Tal como uma análise que
queira evitar o eurocentrismo não tem, para realizar esse propósito, de
desprezar a Europa. Pode ser que no futuro, dadas as tendências que
conhecemos, e que parecem empurrar-nos para um declínio relativo
inexorável do continente, o ponto de vista europeu seja insignificante e,
por isso, irrelevante. Podemos pelo menos concordar que esse ponto de
vista não foi insignificante nos últimos 2500 anos. E podemos garantir
que, por enquanto, o dia da irrelevância europeia ainda não chegou.
O subtítulo deste livro indica que me cingirei à ascensão da geopolítica
europeia, isto é, ao seu aparecimento, estruturação e apogeu. Talvez seja
este o momento historicamente mais adequado para o fazer, dada a
primazia das categorias europeias para reflectir sobre a geopolítica
mundial, e em cada um dos cantos do mundo. Mais adequado ainda
porque o mundo que foi criado pela geopolítica europeia está já a preparar
o declínio e a decadência europeus. Mas a história da queda da geopolítica
europeia fica evidentemente reservada para o futuro. Num mundo futuro
muito diferente deste que conhecemos nas últimas décadas. E ninguém
sabe que manifestações concretas adquirirá o processo histórico de
declínio e decadência da Europa.
Nesta discussão parece-me mais realista supor que há modos de ver o
mundo que se diferenciam desde logo nos seus distintos pontos de vista. A
história da cartografia é muito proveitosa a esse respeito. Um mapa nunca
é epistémica nem politicamente neutro. Exprime sempre um ponto de
vista, ou a adopção de um determinado ângulo de visão. As convenções
geográficas mais basilares são todas elas radicalmente convencionais:
norte, sul, leste, oeste, por exemplo. A orientação dos mapas com o
hemisfério norte na parte superior e o hemisfério sul na parte inferior dos
planisférios seria outro exemplo. Não existe um ponto fixo no Universo
que nos permita concluir que o planeta está «virado para cima» ou «virado
para baixo.» Terei a oportunidade de comentar mais adiante a introdução
histórica do hemisfério ocidental e do hemisfério oriental 12, que serviu
uma determinada política internacional concreta. Os exemplos são
infindáveis.
Ora, mais importante do que estas constatações é a reflexão que nos
indica que ao longo da história formou-se um ponto de vista geopolítico
especificamente europeu. Em larga medida, a partir do século XIX, esse
ponto de vista geopolítico veio a dominar os restantes. Talvez agora
estejamos em mais um ponto de viragem depois do qual, acompanhando o
declínio relativo da Europa, também o ponto de vista geopolítico
«europeu» venha a sofrer uma erosão histórica na sua plausibilidade e
aceitabilidade. Seja o que for que o futuro incalculável nos reserve, é
decisivo compreendermos de onde vem esse ponto de vista geopolítico e
quais são os seus elementos constitutivos. Guerra, Império e Democracia
procura ser um modesto contributo para tão exigente tarefa. E até lhe
atribui uma certidão de nascimento, como iremos ver – a geopolítica
«europeia» nasceu em Salamina.
Mas não antecipemos o início da história. Comecemos por onde
devemos começar: pelo fim.
1
Tucídides, IV.62. Todas as traduções são minhas, a menos que o indique
explicitamente.
2
Adam Tooze, The Deluge. The Great War, America and the Remaking of
the Global Order, 1916-1931, Londres, Penguin, 2015.
3
Carl Schmitt, The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus
Publicum Europæum, (trad. inglesa), Nova Iorque, Telos Press, 2003, p. 48.
4
Robert D. Kaplan, The Revenge of Geography: What the Map Tells Us
About Coming Conflicts and the Battle Against Fate, Nova Iorque, Random
House, 2012, p. 138, edição epub.
5
Idem.
6
Johannes Engels, «Geography and History», in John Marincola (ed.), A
Companion to Greek and Roman historiography, 2 vols., Oxford,
Blackwell, vol. 2, 2007, p. 542.
7
Halford J. Mackinder, «The Geographical Pivot of History», The
Geographical Journal, Vol. XXIII, n.º 4, 1904, pp. 421-37. O artigo incluiu
os comentários de outros membros da Royal Geographic Society e do seu
presidente (pp. 437-44).
8
Ver no prólogo a Der Nomos der Erde, publicado em 1950, o
agradecimento explícito de Schmitt a Mackinder pelo que com ele
aprendeu.
9
Haushofer suicidar-se-ia com a sua mulher logo após a vitória aliada em
1945, depois de uma duríssima passagem por Dachau. As circunstâncias
familiares podem ajudar a explicar a queda na desgraça junto do regime
nazi. A sua mulher era descendente de judeus e um dos seus filhos juntara-
se à conspiração contra Hitler liderada por Stauffenberg, em Julho de 1944.
10
Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal, (trad. portuguesa:
Carlos Morujão), Lisboa, Relógio d’Água, 1999, §285.
11
Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, 2 vols., Paris,
Gallimard, 1992, II.1.20.
12
Ver Capítulo IV.
I
O MUNDO ATÉ AO DIA DE ONTEM
O Retrato do Mundo
A geopolítica do nosso tempo parece estar integralmente contida
naquilo a que se convencionou chamar globalização. A transformação da
nossa consciência comum habituou-nos a pensar a política, a economia, a
cultura e até o nosso destino colectivo com um alcance planetário. É bom
fixar desde logo que, em última análise, a globalização é sobretudo uma
transformação da consciência humana de si. Revela a constituição de um
único mundo a partir de fragmentos históricos diferentes, como a palavra
francesa para globalização tão bem descreve – mondialisation.
Não obstante as ideias míticas e as narrativas religiosas que
proporcionavam um retrato do mundo, a verdade é que a consciência
global desse mundo é muito recente na nossa história. E tem uma origem
europeia. Durante séculos, «não havia um conceito de um planeta, não
havia uma consciência global e, por isso, não havia um objectivo político
orientado para uma esperança comum».13 Filosoficamente falando, a ideia
de unidade do mundo e até do Universo, assim como a de ordem cósmica,
é muitíssimo mais antiga. Podemos encontrá-la logo nos estóicos, por
exemplo. Mas se é verdade que a geopolítica não é independente de
pressupostos cosmológicos, ela não se confunde com a cosmologia.
Quando falamos de geopolítica, a unidade do mundo é uma ideia muito
mais recente. Em concreto, essa consciência da Terra dividia sempre o
mundo entre o conhecido e o desconhecido, entre o mundo humanamente
reconhecido e a terra dos bárbaros. As unidades políticas imperiais, que
ocupavam grandes porções do mundo, reconheciam os seus vizinhos,
algumas das vezes também eles extensões e unidades imperiais. Mas cada
uma dessas unidades reduzia o mundo a si mesma, cada uma delas era «o
mundo» ou o «centro do mundo, o cosmos, a casa», desdenhando o resto
do planeta como irrelevante e certamente como indiferente para a sua
história. Pura e simplesmente, não havia «a ideia de uma ordem espacial
comum englobando toda a Terra».14
O cristianismo trouxe modificações a esta consciência introduzindo a
ideia do mundo, não apenas como criação de um deus, até porque essa
ideia era pré-cristã, mas como um mundo humano universalmente
convertível à mesma fé. A unidade do género humano na criação, no
destino sobrenatural da alma e na preparação terreste para tão decisivo
destino, começou a quebrar as divisões entre o «centro do mundo» e a
terra neglecta. A unidade do género humano arrastava consigo a unidade
do planeta, no sentido em que deixava de haver histórias locais, e todos os
acontecimentos historicamente significativos eram os acontecimentos
universalmente significativos. Paradoxalmente, o cristianismo prepararia
essa unificação do mundo, criando uma nova divisão inaudita: a divisão
entre a vida terrestre, interpretada como uma peregrinação, e a Cidade
Celeste, entre a pátria terrestre infinitamente dividida e a pátria celeste – a
pátria eterna e indivisível (ver Capítulo VI). Veremos ainda que a
descoberta da América, um novo continente para a consciência europeia,
um novo mundo, representaria uma ruptura civilizacional que não pode ser
subestimada. Ruptura essa que seria assimilada pela civilização europeia,
não sem a ajuda preciosa de recursos especificamente cristãos (ver
Capítulo V). Foi, sem dúvida, esta época, do século XVI em diante,
profundamente marcada pelos Descobrimentos dos Portugueses e dos
Espanhóis, e pelo concomitante domínio dos oceanos, que sedimentou a
consciência global do mundo e a concomitante partilha de uma mesma
História.
Escusado será dizer que o cristianismo, impondo a ideia da unidade do
género humano, não conseguiu estabelecer em termos práticos a unidade
planetária que logicamente decorre da primeira. Esta, para deixar de ser
uma ideia e passar a integrar a autoconsciência do ser humano enquanto
tal, precisava de ser historicamente alcançada. O que vale dizer, técnica,
económica, científica e politicamente realizada. Se o cristianismo criou a
ideia, os Descobrimentos, a ciência moderna, e sobretudo as Grandes
Transformações que irei discutir no Capítulo III – a democratização e a
industrialização do mundo – realizaram-na.
Para manter o rigor histórico, é útil falar como alguns economistas
numa terceira vaga de globalização ao invés de usar uma única
globalização no singular. Independentemente da quantificação, se a nossa
é a segunda ou a terceira ou a quarta vaga de globalização, falar de vagas
tem o mérito de recordar que a globalização é um fenómeno histórico da
segunda metade do século XIX. As páginas de elogio histórico do
capitalismo no Manifesto do Partido Comunista de Marx e de Engels são
um testemunho de uma globalização em curso. Nas vésperas da Primeira
Guerra Mundial havia uma globalização ainda mais extensiva. O padrão-
ouro quase global, o nível de exportações e importações, os fluxos de
capitais e de investimento directo e indirecto estrangeiro, a revolução que
tinha ocorrido nas comunicações e nos transportes, a imprensa
internacional, os movimentos migratórios de proporções inauditas e em
muitos aspectos comparáveis com a globalização dos anos 1980 e 1990.
John Maynard Keynes deixou-nos um retrato do mundo económico
anterior ao fatídico Verão de 1914 que se tornou verdadeiramente
inesquecível.
Que episódio extraordinário no progresso económico do Homem
constituiu aquela época que chegou ao fim em Agosto de 1914! (...) O
habitante de Londres podia encomendar pelo telefone, enquanto
bebericava o seu chá da manhã na cama, os vários produtos de toda a
terra, na quantidade que lhe parecesse melhor, e podia razoavelmente
esperar que lhos entregassem atempadamente à sua porta; podia ao
mesmo tempo e pelos mesmos meios aventurar a sua riqueza nos
recursos naturais e em novos empreendimentos em qualquer canto do
mundo, e partilhar, sem esforço nem sequer incómodo, dos seus frutos
e benefícios prospectivos; ou podia decidir associar a segurança da sua
fortuna à boa-fé dos munícipes de alguma grande cidade em qualquer
continente que o capricho ou a informação pudessem recomendar.
Podia assegurar imediatamente, se assim quisesse, os meios de
transporte baratos e confortáveis para qualquer país ou clima sem
passaporte nem qualquer outra formalidade, podia enviar o seu criado
para o balcão mais próximo de um banco para se fornecer de metais
preciosos na quantidade que lhe fosse mais conveniente, e podia
depois prosseguir para o estrangeiro, sem conhecer a sua religião, a sua
língua, nem os costumes, levando consigo riqueza cunhada, e
considerar-se-ia profundamente ofendido e muito surpreendido se
sofresse a mínima interferência.15
A Grande Guerra, seguida das revoluções extremistas do comunismo
bolchevique, da implantação de regimes autárcicos um pouco por toda a
parte com a retracção do ideário da democracia liberal, do
desmantelamento dos fluxos económicos internacionais e finalmente da
Grande Depressão, destruiu esta primeira globalização económica.
Quando rebentou a Segunda Guerra Mundial já pouco restava da brilhante
globalização do início do século. Preclaro, Keynes oferecia este lamento
depois de muitas frustrações com as negociações em Paris para o
amaldiçoado Tratado de Versalhes. Fazia parte da delegação diplomática
inglesa e abandonou os trabalhos como demonstração do seu protesto.
Estas linhas foram escritas pouco tempo depois. Era o registo dos últimos
raios de luz emanados do brilho do capitalismo vitoriano.
É verdade que os impérios coloniais das grandes potências europeias
facilitaram muito a propagação global do capitalismo anterior à Grande
Guerra. Mas, como o final do século XX demonstraria na terceira vaga de
globalização, esta não precisava de impérios coloniais para se afirmar
como processo histórico. Se a primeira vaga da globalização teve início no
final do terceiro quartel do século XIX até Agosto de 1914, a segunda vaga
iniciou-se com a reconstrução da economia ocidental após a Segunda
Guerra Mundial e a edificação das grandes instituições financeiras
multilaterais do pós-Guerra: FMI, Banco Mundial, Comunidade
Económica Europeia, GATT e por aí adiante e, com alguma dose de boa
vontade, podemos aceitar que sofreria um revés – uma «contravaga» –
com a decisão unilateral americana sob Richard Nixon em 1971 de
«fechar a janela do ouro», isto é, de acabar com o sistema monetário-
financeiro de Bretton Woods e com o primeiro choque petrolífero na
sequência da guerra israelo-árabe do Yom Kippur. Finalmente, segundo
algumas cronologias não impensadas16, a terceira vaga começou com
grande precisão em 1978, ano das primeiras reformas chinesas pós-
maoístas, centradas na produção agrícola, no regime de propriedade rural,
na formação de preços de mercado dos bens agrícolas e na apropriação
privada dos excedentes.
A marca distintiva da terceira vaga é ter sido protagonizada, não pelos
suspeitos do costume – as economias ocidentais –, mas por países que se
tinham tornado durante décadas no rosto da miséria económica do
Terceiro Mundo. Em rigor, por alguns países concentrados
geograficamente na metade oriental do continente asiático – China à
cabeça, Índia, Vietname, e por aí adiante. Estes países tinham
experimentado um contraste abissal e humilhante entre o desempenho
económico espantoso dos aliados americanos no Extremo Oriente desde o
início dos anos 1970 – e no caso do Japão mais cedo ainda. As grandes
estrelas do desenvolvimento industrial eram países como a Coreia do Sul
ou a pedra no sapato da China nacionalista-comunista, Taiwan, já para não
falar das cidades de Singapura e de Hong Kong. Por seu lado, o Japão era
já, no início da década de 1980, um símbolo do desenvolvimento
económico mais avançado e da sofisticação tecnológica. Liderados por
Deng Xiaoping, os antimaoístas no Partido Comunista Chinês lançaram o
seu gigantesco país na trajectória de desenvolvimento mais fulgurante de
que há memória. Rompendo com o comunismo que condenara a China às
fomes mais assassinas e ao retrocesso tecnológico mais confirmado, Deng
e o seu grupo com o seu eufemismo «comunismo com características
chinesas»17 converteram uma das sedes mais puristas da revolução
comunista num Estado nacionalista e capitalista.
Os resultados foram espectaculares. Desde as centenas de milhões de
pessoas que foram resgatadas das garras da pobreza absoluta – medida
pelo Banco Mundial como a condição de quem tem rendimentos inferiores
a 1 dólar por dia – até à disputa pela China da primazia da tecnologia de
ponta com os EUA, foram quarenta anos absolutamente espantosos.
Graças a essas quatro décadas, a China contesta hoje com eficácia a
posição geopolítica hegemónica dos EUA. Não sabemos se o século XXI

será chinês, como avançam alguns futurólogos. Mas sabemos que não será
americano como foi o século XX, em grande parte pela ascensão
vertiginosa da China. Uma das grandes incógnitas do século XXI não está
apenas na trajectória futura da China com as dificuldades internas que já
enfrenta e que comprometem radicalmente a velocidade e intensidade da
convergência chinesa das últimas quatro décadas. Outra das incógnitas
está na resposta política e institucional americana, e a sua respectiva
eficácia, ao desafio chinês. No fundo, está por saber até que ponto se
encontra intacta a vitalidade americana que lhe conferiu hegemonia sobre
o mundo na segunda metade do século XX.
De facto, a terceira vaga da globalização não lançou todos os países do
chamado Terceiro Mundo na escalada do desenvolvimento económico.
Alguns até podem dizer, contestando o optimismo, que o número de países
com histórias de sucesso inequívoco para contar são reduzidos: o Chile e a
Colômbia, na América Latina; o Botswana em África; algumas
monarquias do golfo Pérsico e Israel no Médio Oriente; as jovens
democracias ex-comunistas do Leste da Europa integradas na União
Europeia; Índia e Bangladesh na Ásia do Sul; a China, o Vietname, a
Malásia, Taiwan, a Coreia do Sul e, enfim, o Camboja, a Tailândia e a
Indonésia, no Extremo Oriente. Esta panorâmica grosseira deixa à vista
que muitos países ainda estão no caminho já percorrido pelos que foram
mencionados. Mas se, em vez de contarmos as fronteiras políticas,
pensarmos em termos de proporção da população mundial, então
percebemos quão extensa e integradora tem sido a terceira vaga da
globalização. Se as duas primeiras vagas de globalização foram europeias,
a terceira deixou de o ser.
Um Mundo Europeu
Até por volta do ano de 1500, a Europa era um canto pobre e com pouco
peso demográfico. Em termos tecnológicos, não era certamente liderante.
E encostada num canto da grande massa eurasiática, estava desligada do
resto do mundo, à excepção de algumas rotas comerciais de fluxo irregular
e muitíssimo ligeiro. Muitas das glórias europeias que as gerações futuras
celebrariam com orgulho, como o milagre de Atenas nos séculos V e IV a.
C., o brilho de Roma e da sua expansão, a sede finalmente estabelecida do
cristianismo, a Universidade, as instituições parlamentares medievais, o
Direito e por aí adiante, já tinham ocorrido. Os vários legados desses
feitos e instituições conjugavam-se cumulativamente com compromissos
razoáveis e outros mais precários.
Mas o culminar do Renascimento, das Descobertas marítimas
protagonizadas primeiro por Portugal e Espanha, depois pelos Holandeses
e os Ingleses, e, há que reconhecê-lo, da Reforma Protestante,
introduziram uma ruptura decisiva que produziria efeitos extensíssimos e
transformaria a face do mundo. O resultado geopolítico mais geral desta
ruptura é fácil de enunciar. A Europa saiu da sua irrelevância e passou a
dominar o mundo. Descobriu, por assim dizer, um novo continente.
Mapeou os oceanos desconhecidos. Pôs os povos do mundo em contacto,
voluntariamente e à força. Exportou e importou bens a uma escala sem
precedentes. Levou a sua religião para converter os pagãos e os selvagens.
Impôs as suas leis, as suas línguas, os seus impérios. Derrotou os exércitos
e as marinhas em toda a parte, com uma organização e tecnologia que
pareciam agora gozar de uma superioridade inalcançável. Fez crescer a
sua população de modo exponencial.
População da Europa Ocidental
em dois milénios

Gráfico 1. O crescimento exponencial da população europeia a partir de


meados do segundo milénio, e sobretudo nos últimos duzentos anos do
milénio, fica bem patente (linha superior a picotado) quando contrastado
com o comportamento da demografia europeia no primeiro milénio da
nossa era (linha inferior contínua).
Fonte: Angus Maddison, The World Economy: A Millennial Perspective,
Paris, OCDE, 2001, p. 32.
Até ao início do século XIX, esta trajectória de descolamento da Europa
relativamente ao resto do mundo foi muitíssimo gradual. Mas com a
consolidação da chamada Revolução Industrial, e a inauguração de uma
forma económica moderna espectacularmente produtiva; com o avanço da
chamada Revolução Científica, que gerou um crescimento da capacidade
tecnológica europeia, que comparativamente deixava os outros povos,
mesmo os mais sofisticados, como o Império Chinês ou a civilização
hindu, nas trevas da ignorância e da impotência; e com o triunfo da
Revolução Nacional-Democrática; a Europa deixou o resto mundo para
trás.
O Taco de Hóquei
da Grande Divergência

Gráfico 2. As linhas representam os níveis de vida, medidos pelo PIB per


capita (a dólares internacionais de 1990), de regiões do mundo
seleccionadas que nos permitem averiguar o processo histórico da Grande
Divergência. Até sensivelmente ao início do século XIX, os padrões de vida
eram muito equivalentes pelo planeta, em virtude de se ignorar uma forma
económica moderna que colheu, reproduziu, multiplicou e maximizou o
manancial tecnológico disponível. Com a Grande Transformação
económica, a Europa, tanto a sua parte ocidental como as suas ex-colónias
mais prósperas no espaço anglófono, cresceram incomparavelmente mais
depressa do que o resto do mundo. Na verdade, até 1973, o resto do mundo
tinha padrões de vida quase inteiramente estagnados face à realidade da
vida no início do milénio. A terceira vaga da globalização nos anos 1980
encarregar-se-ia de mudar tudo isso. Mas a Grande Divergência concedeu
a total supremacia geopolítica aos Europeus durante este período.
Fonte: Angus Maddison, The World Economy: A Millennial Perspective,
Paris, OCDE, 2001, p. 126.
Mais Vida e Melhor Vida
Esperança média de vida à nascença (em anos)

1999 2018
País/Região 1820 1900 1950
(2009) 2020 para a Ásia

Europa 78
36 46 67 81
Ocidental (79,7)

Japão 34 44 61 81 84

Ásia 23 24 40 66 75

África 23 24 38 52 61

Tabela 1. A Grande Transformação económica produziu frutos sem


quaisquer precedentes na História da Humanidade ao nível da qualidade
de vida. Do ponto de vista mais material e objectivo, a vida humana
tornou-se muitíssimo mais longa, menos precária, mais saudável e muito
mais confortável. Uma vez mais, podemos ver a Grande Divergência
manifestada nos números da esperança média de vida. Na Europa, a
longevidade era já muito maior na viragem do século XIX para o século
XX e a disparidade só começou a reduzir-se significativamente durante a
terceira vaga da globalização nossa contemporânea.
Fonte: Angus Maddison, Historical Statistics of the World Economy: 1-
2008 AD, http://www.ggdc.net/MADDISON/oriindex.htm.
Hoje, há quem chame a esta assimetria de trajectórias históricas a
Grande Divergência.18 E nunca ela foi tão expressiva como desde as
primeiras décadas do século XIX, em que alguns, poucos, países no norte
ocidental da Europa deram os passos na consolidação da forma económica
moderna: a industrialização, a racionalização e a total mercantilização da
actividade agrícola, a financeirização e a elevação sustentada dos níveis de
vida, isto é, das possibilidades de consumo da generalidade da população.
Por outras palavras, a Grande Divergência ocorreu desde a chegada do
crescimento económico persistente, primeiro a um punhado de países, e
depois por contágio estrutural e institucional a um conjunto cada vez mais
alargado de países. Mas nesse século XIX praticamente todos estariam
concentrados no continente europeu (no norte, ocidente e centro, para
sermos mais rigorosos) e na América do Norte, sobretudo na metade
setentrional-oriental do subcontinente. Foi um fenómeno especificamente
europeu e que a Europa acabaria, muito mais tarde, por exportar. Ou, para
sermos talvez mais rigorosos, que muitos importariam da Europa.
*
Em 1776, Adam Smith, no livro que alguns com excesso de
generosidade dizem ter fundado a ciência «lúgubre» da Economia Política,
fazia uma admirável previsão. Vale a pena escutá-lo – ou lê-lo:
No momento específico em que essas descobertas [marítimas] foram
feitas, a superioridade do uso da força passou a ser tão grande do lado
dos Europeus que foram capazes de cometer impunemente todo o tipo
de injustiças naqueles países remotos. Doravante, talvez, os nativos
desses países poderão tornar-se mais fortes, ou os da Europa tornar-se-
ão mais fracos, e os habitantes de todas as diferentes partes do mundo
possam chegar a essa igualdade de coragem e de força que só ela, por
inspirar medo mútuo, poderá intimidar a injustiça de nações
independentes a vergar-se a algum tipo de respeito pelos direitos uns
dos outros. Mas nada parece mais propenso a estabelecer essa
igualdade de força do que aquela comunicação mútua de
conhecimentos e de toda a sorte de melhorias que um amplo comércio
de todos os países entre si naturalmente, ou melhor, necessariamente,
arrasta consigo.19
Smith avisava que os próprios mecanismos e estruturas que a Europa
trazia ao mundo – o comércio internacional, a transmissão de
conhecimentos e da ciência europeia ao resto do mundo para benefício
deste, o contágio cultural e moral –, que eram simultaneamente causa e
efeito da sua prosperidade, e da Grande Divergência prestes a começar,
seriam alavancas para reerguer o resto do mundo e terminar no futuro a
superioridade geopolítica europeia. Mais, o sóbrio Smith sabia, tal como
Tucídides ensinara 2200 anos antes (ver Capítulo VII), o que as grandes
disparidades de força faziam ao cumprimento das normas de justiça.
Sucede que nos nossos tempos vemos a profecia de Smith cumprir-se.
Pelo menos no que diz respeito ao fim da Grande Divergência como
resultado dos instrumentos de prosperidade e de força inventados pelos
Europeus. E, não custa reconhecer, no que toca ao facto de a memória de
sujeição à superioridade europeia do passado estar a condicionar as
escolhas políticas actuais de muitos povos no mundo.
É verdade que a cultura europeia se delicia periodicamente a prever a
sua própria queda. Mas os factos geopolíticos dos nossos tempos não são
enganadores. Não que a Europa e a América do Norte estivessem depois
do século XIX a deslizar para a sua decadência. Em 1919, Keynes, por
exemplo, julgava muito provável que esse predomínio europeu – e inglês,
em particular –, com todas as suas delícias, confortos e belezas, chegara
ao fim com o estalar da Primeira Guerra Mundial. De facto, as
conturbações que ocorreram na Europa depois de Agosto de 1914 até
Maio de 1945 foram de tal modo anómicas, violentas e destrutivas, que
muitos viram o pequeno livro de 1919 a condenar a Paz de Versalhes
como profético. Não obstante o suicídio a que a Europa se dedicou nessas
três décadas de miséria e de horror, nem por isso terminou a Grande
Divergência. O resto do mundo ainda não iniciara a sua marcha para a
modernidade social, económica e tecnológica. Eram ainda vassalos das
potências europeias, ou seus dependentes. Eram ainda caracterizados pela
pobreza milenar da esqualidez de recursos que sempre marcara a História
da Humanidade e a que só a Europa soubera pôr fim.
Depois da guerra de 1939-1945 vieram a descolonização, o movimento
dos não-alinhados e a expansão soviética no Terceiro Mundo. Lambendo
as feridas o melhor que sabiam, com traumas mais ou menos assimilados,
os países europeus regressavam aos seus territórios originários e às suas
metrópoles. Contudo, a hegemonia ocidental, agora já não liderada pela
Inglaterra e pelo seu colossal império, mas pelos EUA e pelo seu
republicano império, não seria posta em causa. Havia um confronto
político, ideológico e militar com o bloco soviético, e com regimes
comunistas um pouco por toda a parte. O Ocidente, porém, continuava a
divergir do resto do mundo na economia, na tecnologia, na organização
social. No Sueste Asiático – Singapura, Hong Kong, e sobretudo Coreia
do Sul e Taiwan e Japão, cujo processo de modernização era anterior à
guerra – despontavam as primeiras excepções, mas ainda numa proporção
pequena da grande massa da Humanidade. Mais, a explosão demográfica
que ocorreu em todo o mundo, e com uma dimensão fabulosa sobretudo
no Terceiro Mundo, estava gradualmente a fazer mexer os pratos da
balança geopolítica pelo mero efeito material dos desequilíbrios
populacionais entre o Ocidente e o resto do mundo.
O Eclipse Europeu
Até que veio o fim da Grande Divergência. A chamada globalização
viera por vagas desde o século XIX. Fora sempre comandada pelo
Ocidente. A nova vaga de globalização que os anos 1980 conheceram, e
que ainda não se desfez até hoje, apesar da crise financeira de 2008, dos
confinamentos gigantescos em 2020 e, nalguns lugares, em 2021, não
seria menos liderada pelos EUA e pela então CEE, que em breve se
assumiria numa pequena cidade holandesa como uma união política. Mas
essa terceira vaga da globalização, como alguns lhe chamaram
provavelmente em homenagem à tese de Samuel Huntington sobre as três
vagas da democratização, teria uma característica que a distinguiria das
suas congéneres anteriores. Na verdade, as características distintivas
seriam várias. No entanto, do ponto de vista geopolítico, uma adquiriria
preeminência sobre as restantes. Como vimos, embora em meados dos
anos 1980 ninguém pudesse prevê-lo, os protagonistas da terceira vaga da
globalização não estariam no Ocidente. Seriam aqueles países que
estavam há alguns séculos condenados à pobreza mais abjecta, à
estagnação social mais desesperante e à impotência geopolítica.
Curiosamente, dois deles, os mais populosos, os mais destacados, os que
mais deslocariam as placas tectónicas da geopolítica, tinham sido antes da
Grande Divergência os agentes mais preponderantes da história planetária:
a Índia e a China. Estes dois países, com populações que combinadas
perfazem mais do que a terça parte da população mundial, tinham uma
proporção do rendimento mundial até ao século XVII muito superior ao
europeu. Depois, no século XX tornaram-se o símbolo da fome e da
miséria terceiro-mundista. Agora, a história da sua nova ascensão, a
história da Convergência que pôs fim à Grande Divergência, é em larga
medida a história da globalização dos últimos 30-40 anos.
O Fim da Grande Divergência:
regresso à normalidade histórica?

Gráfico 3. Nas vésperas das Grandes Transformações que catapultaram a


Europa para o domínio geopolítico do mundo, a Ásia (Índia e China) ainda
era o centro de gravidade da economia global, em virtude mais do seu peso
demográfico do que de alguma suposta dianteira – de que não gozavam –
na frente económica e tecnológica. Porém, a Grande Divergência tornou os
imensos aglomerados populacionais na China e na Índia economicamente
irrelevantes. Em 1990, a proporção da economia do G9 (os países que
actualmente constituem o G7 mais a Bélgica e os Países Baixos) no
conjunto da economia mundial era avassaladora. Igualmente notável é a
rapidez com que a Grande Divergência se desfez nos últimos trinta anos.
De um certo modo, a China e a Índia preparam-se para retomar a
preponderância de que gozaram até 1820 na economia mundial. Mas com
uma diferença colossal: anteriormente, era uma preponderância sem
globalização, sem grande interligação das economias umas às outras. Hoje,
assistimos ao fim da Grande Divergência, mas num contexto de intensa
integração económica global. Resta saber se esta é tão irreversível quanto
os mais optimistas gostam de apregoar.
Fonte: Richard Baldwin, The Great Convergence: information technology
and the new globalization, Cambridge, Harvard University Press, 2016.
Não restam dúvidas de que outros países, com características históricas
idênticas, têm acompanhado a ascensão destes dois gigantes geopolíticos,
somando na demografia, na economia e, evidentemente, na política a
proporção dos países que eram pobres e estão a deixar de o ser. Países
como o Vietname, a Tailândia, a Indonésia, as Filipinas, o Bangladesh são
exemplos mais ou menos robustos desta convergência com os níveis
económicos do Ocidente. Na América Latina houve alguns outros
exemplos, como o Chile ou a Colômbia e talvez também o México,
embora aqui a ascensão dos últimos 30-40 anos não seja tão acentuada.
Temos os países que saíram da esfera soviética, como a Polónia, a
República Checa, a Hungria ou a Eslováquia e os países bálticos – embora
aqui estejamos a falar de Estados exíguos. Em África ainda há
escassíssimos exemplos como o Botswana, e talvez seja prematuro
associar o bom registo social, económico e político deste país a
transformações alucinantes como as do Vietname ou da Coreia do Sul
numa geração anterior.
Quando ponderamos país a país o registo económico de cada um na
terceira vaga da globalização, notamos que em termos demográficos é
muito expressiva a mudança que ocorre. Os países que passam a integrar
os circuitos económicos e culturais do mundo globalizado são muito
populosos, mas não são muito numerosos. Um conjunto ainda muito
grande de países não tem uma história idêntica para contar. O declínio
relativo que está a ocorrer na nossa era é inequivocamente o do Ocidente,
ainda que partindo de um patamar elevadíssimo de hegemonia económica
quando nos situamos, por exemplo, no ano de 1985. A ascensão que está a
ter lugar reúne uma grande parte da população mundial – e daí a notável
redução da pobreza extrema no mundo que os nossos tempos trouxeram,
facto que já nem os mais contestatários da ordem económica global se dão
ao trabalho de pôr em causa, passando a concentrar-se mais nas questões
da desigualdade. Mas é um grupo reduzido de países que está em causa.
Talvez isso mude no futuro próximo. Teremos de esperar para ver.
O fim da Grande Divergência ocorreu em simultâneo com grandes
mudanças demográficas. Em 2019-2020, pela primeira vez na sua história,
a Índia registou uma taxa de fecundidade inferior ao índice de renovação
de gerações de 2,1 filhos por mulher (em 2015-2016 era de 2,2).20 À
medida que as taxas de natalidade caíram numa grande parte do mundo,
incluindo em algumas que pareciam imunes a tamanha transformação, e a
medicina ocidental operou as suas maravilhas em toda a superfície do
planeta, a geodemografia começou imediatamente a impor grandes
mudanças. A combinação destes dois factores está a revolucionar as
preponderâncias regionais. Se a maior parte do mundo está a envelhecer,
algumas das regiões, como a Europa e o Extremo Oriente (Japão, Coreia
do Sul, várias regiões da China, Taiwan, Singapura, Hong Kong), estão a
envelhecer muito rapidamente. Desde a segunda década do século XXI, são
muitos os países que vêem a sua população activa (a proporção dos que
têm entre os 15 e os 65 anos no conjunto da população total) cair e o seu
rácio de dependência (a proporção da população «dependente» em virtude
da idade – os mais jovens e os mais velhos – no conjunto da população
total) disparar por via do aumento rápido da população com mais de 65
anos. As consequências na desaceleração do crescimento económico são
directas, ainda que possam ser compensadas por milagres de
produtividade que alguns anunciam para o futuro próximo. Há uma região
do mundo, porém, que está a detonar uma autêntica explosão demográfica.
A África Subsariana e mais alguns países na Ásia Central e no Médio
Oriente (Afeganistão e Paquistão, por exemplo) são beneficiários dos
produtos da medicina ocidental, mas sem ainda acolherem nos seus
hábitos reprodutivos a mudança cultural que o Ocidente trouxe ao mundo
e que está a mudar a própria concepção e representação da família. Com a
dificuldade que a região tem notado em preservar a ordem política em
alguns países nevrálgicos, e em fomentar as suas economias à velocidade
do crescimento das populações, uma tal desproporção de comportamento
demográfico relativamente às regiões vizinhas, nomeadamente a Europa,
resultará necessariamente em vastos movimentos migratórios, de certo
modo já em marcha. As tensões geopolíticas de que daí resultarão são de
monta suficiente a alertar as consciências e a reorientar a política externa
europeia para fazer face a esse enormíssimo desafio.
As Mudanças na Geodemografia:
a alteração dos pesos populacionais no mundo
Regiões mais populosas – 1960, 2020,
2050 (projecção)

Gráfico 4. No início da segunda metade do século XX, a África Subsariana


era uma região relativamente pouco populosa. Em 1960, era
inclusivamente bastante menos povoada do que a Europa, apesar de ter um
território muito mais vasto, com pouco mais de 60 por cento da população
europeia. Em 2020, tinha quase o triplo da população europeia e estima-se
que daqui por menos de trinta anos ultrapassará a fasquia dos dois mil
milhões de habitantes. Em 2050, países como a Nigéria, a Etiópia e a
República Democrática do Congo constituirão populações enormes,
contando os dois últimos com 200 milhões de habitantes e a Nigéria com
mais de 400 milhões. Grandes ajustamentos geopolíticos ocorrerão
forçosamente em resultado destas dinâmicas.
Fonte: Banco Mundial (2021).
Um Mundo Pós-Europeu
À entrada da segunda década do século XXI, era indubitável que a
geoeconomia tinha de contar com duas grandes potências económicas.
Mas uma delas continuava a ser os Estados Unidos. Não desvalorizemos
as conquistas sem quaisquer precedentes na escala e na velocidade que a
China operou no período de uma única geração depois do desastre
maoísta. Conquistas de modernização primária, mas também conquistas
de sofisticação, como se vê na produção tecnológica, na qualidade das
suas universidades, na excelência das suas infra-estruturas e na
disseminação de ligações económicas com o resto do mundo pelas
exportações e investimentos reais e financeiros. É impossível desvalorizar
tamanhos feitos. Todavia, continua a ser verdade que a disputa pela
primazia económica é proporcionada à China pela sua imensa expressão
demográfica quando comparada com os EUA.
Seja como for, podemos dizer que a geoeconomia mudou radicalmente
nos últimos trinta anos, invertendo inclusivamente uma trajectória
histórica global de quinhentos anos. Não é coisa de pouca monta. É
verdade que, em termos de pesos relativos, é como que um regresso ao
mundo anterior a 1600. Mas com uma política, uma economia, uma
ciência, uma tecnologia e até uma espiritualidade muito diversas do que as
que estruturavam a vida do mundo pré-seiscentista. O poder relativo, esse
mantém a sua importância, e os privilégios ocidentais que foram obtidos
pela sua hegemonia, com o fim desta, podem também estar em final de
prazo de validade.
Se dúvidas existem quanto à aspiração da China à hegemonia global –
ainda que suficientemente flexível para adequar os meios disponíveis aos
fins –, não podem restar dúvidas quanto à hegemonia asiática que a China
prossegue. Essa ambição já foi reiterada muito explicitamente por Xi
Jinping.21 A iniciativa Belt and Road, desenrolando as infra-estruturas e os
circuitos económicos chineses pelo continente asiático até à Europa, mas
com múltiplas ligações a localizações estratégicas em África e na América
Latina, pretende criar uma esfera de domínio económico, tendo como
centro de decisão, de produção fundamental e de desenvolvimento
tecnológico a economia da China, e nenhuma outra. A corrida para aquilo
a que o Partido chama «rejuvenescimento nacional», ou o projecto de
modernização nacionalista do espaço chinês, traz consigo uma política
externa muito concreta. Não é apenas assegurar o abastecimento de
matérias-primas vitais, abrir mercados de exportação ou proteger os
investimentos chineses no estrangeiro contra a reacção que começou a
fazer-se sentir mais agudamente desde a crise da covid-19 em 2020.
Traduz-se na constituição de um sistema internacional não dominado pelo
Ocidente, ou «pós-ocidental», para usar a expressão de Sergei Lavrov, o
ministro dos Negócios Estrangeiros russo. Isso implica, entre outras
coisas, um mundo menos confortável para o regime democrático e para os
valores liberais. Na óptica dos regimes que contestam a hegemonia
ocidental, como o regime chinês, a estabilidade política interna, assim
como externa, pressupõe a capacidade de neutralizar as forças anárquicas
e anómicas das liberdades individuais ou da autonomia da sociedade civil.
O Ocidente representa institucional e logicamente a desestabilização da
China, e induz ao seu enfraquecimento e a convulsões no globo segundo
as conveniências americanas. Em 2017, Xi Jinping não desperdiçou a
oportunidade de, em Beijing, verbalizar a veleidade chinesa imperial: a de
ser o «guia do mundo» na formação de uma «nova ordem mundial».22
Do ponto de vista dos regimes políticos, o sucesso chinês é correlativo à
travagem no processo de democratização do mundo. A terceira vaga da
democratização do mundo, assim a baptizou Samuel Huntington23, que
teria começado em Portugal com o 25 de Abril de 1974, parece ter sido
interrompida por volta do início do século XXI. Depois de um recorde
histórico de existência de Estados democráticos no mundo, alguns
analistas propõem o ano de 1994 como aquele em que estatisticamente
podemos observar um ponto de inflexão e o início de uma vaga de
autocratização. Em 2017, o número de casos de reversão democrática
excedeu o número de melhorias dos padrões democráticos.24 As
dificuldades metodológicas nas medições destes índices de
democratização e de autocratização são óbvios. Mas talvez seja prudente
associar o sucesso chinês ao enfraquecimento da reputação da democracia
no mundo, sobretudo fora do Ocidente. É a questão muito óbvia de passar
a haver uma alternativa sedutora à democracia liberal, representativa e
constitucional, como forma de organizar as sociedades e promover uma
rápida modernização económica.
E tudo isto está a ocorrer muito depressa num sistema económico-
financeiro que foi preparado e liderado pelos EUA – o sistema que deu a
oportunidade aos seus agora rivais de se erguerem e de lhe contestarem a
hegemonia, ao ponto de hoje termos de regresso uma competição de dois
modelos de organização político-económica interna.
De um lado, o modelo americano, em que a economia de mercado de
tendência não dirigista é combinada com a democracia política e o Estado
de Direito. A planificação é sobretudo dirigida à provisão ou acesso aos
mecanismos de protecção social, e menos à orientação dos processos
económicos ou do enquadramento normativo da sociedade civil.
Do outro, o modelo chinês, que recusa a democracia política, que
preserva a ditadura de um partido político, agora já não comunista-
revolucionário, mas nacionalista-burocrático-tecnocrático. De facto, o
«comunismo com características chinesas» – a divisa maoísta de
adaptação do marxismo-leninismo soviético à revolução na China que
conduziria o partido de Mao ao poder – há muito que passou a ter a sua
ênfase muitíssimo mais acentuada nas «características chinesas» do que
no «comunismo». Do ponto de vista da mera economia política, o
marxismo foi efectivamente abandonado. Para o poder político na China,
o sucesso económico chinês foi apenas a confirmação da sensatez desse
abandono. Na ideologia oficial foram preservados, porém, aqueles
elementos do marxismo respeitantes à interpretação do devir histórico e da
situação geopolítica. O materialismo histórico, ou uma interpretação
económica da História, da superstrutura da sociedade e das relações de
poder internacionais, mantém-se vivo como orientação oficial do Partido
Comunista Chinês. Assim, o modelo chinês ao mesmo tempo que se fecha
no monopólio do poder por parte do partido nacionalista-burocrático-
tecnocrático, converte-se plenamente à economia de mercado, com amplas
protecções da propriedade privada, com a preponderância de empresas e
de investimento privados, integrada no mercado global de investimentos e
exportações-importações, mas não prescinde de um certo grau de
dirigismo. O modelo chinês separa estruturalmente a forma económica do
capitalismo da forma política da democracia liberal. Implanta um Estado
de Direito muito parcial e intermitente, na medida em que se recusa o
princípio da separação de poderes, se limita a aplicação universal da lei e
se mantém uma reserva de arbítrio do poder político sobre empresas e
pessoas. O sector privado tem uma dimensão preponderante no conjunto
da economia, existe um sistema descentralizado de formação de preços de
mercado em integração com os mercados globais. Mas não se permite ao
sector privado que tenha a mínima possibilidade de interferir ou contestar
as decisões do poder político, de impor preferências públicas ao conjunto
da sociedade ou que se desvincule de prioridades não-económicas
definidas pelo Estado ou pelo Partido. Na formulação de um dos
mandarins do Partido Comunista Chinês, Chen Yun, com altíssimas
responsabilidades no planeamento económico desde os primeiros anos do
maoísmo, e de moderação do radicalismo de Mao, o sector privado seria
como um pássaro na gaiola. Se a gaiola for demasiado exígua, o pássaro
morrerá. Se o deixarmos fora da gaiola, ele voará para longe. O segredo é
pô-lo numa gaiola suficientemente espaçosa. Na imagem de Chen, que,
após a morte de Mao, se juntaria a Deng Xiaoping na crítica ao maoísmo,
na luta interna contra os «esquerdistas radicais» e pela reforma económica
do país, a gaiola representaria a planificação com os seus planos
quinquenais. Hoje, o modelo capitalista chinês já não depende de planos
quinquenais tão rígidos como os dos anos 1950. Mas a metáfora mantém-
se actual se pensarmos na gaiola como a absoluta subordinação política do
sector privado e da sociedade civil ao diktat do Partido-Estado.
Esta combinação de uma forma política não-democrática com uma
forma económica de mercado é sustentada em nome, não só da
estabilidade do regime não-democrático e do monopólio perpétuo do
partido governante, mas também da superioridade na eficiência da
transição de um país pobre e atrasado para um país moderno, próspero e
tecnologicamente avançado. Os resultados económicos são a base da
legitimação política do modelo, e com elas uma certa ideia de prestígio e
liderança internacional, sobretudo em países com uma tradição histórica
de grandeza imperial passada que fez sobreviver um desígnio de desforra
ou de acerto de contas com antigos opressores.
Os resultados económicos visam antes de mais legitimar o processo
político interno. Mas também são determinantes para fazer brilhar o
modelo junto de possíveis aspirantes no estrangeiro – e fazê-lo brilhar de
modo mais cintilante do que o modelo americano alternativo. Primeiro, na
velocidade com que leva a cabo o processo de modernização e sem as
convulsões políticas de fragilização do regime ditatorial. Segundo, na
velocidade com que leva a cabo a convergência dos níveis de vida da
generalidade da população com os níveis de vida da população americana
ou ocidental. Toda esta dupla velocidade tem consequências manifestas na
capacidade orçamental e tecnológica de se dotar de forças armadas de
nível superior e assim reforçar a segurança do regime e o seu prestígio, ou
capacidade de intimidação, no exterior. O que vale para as forças armadas
vale para outras dimensões mais suaves do poder que se projecta para o
exterior no domínio das artes e da cultura, dos valores e normas e de uma
certa liderança mundial dos debates intelectuais e científicos, sem
esquecer a adesão a conteúdos próprios na cultura popular global.
Há um ponto em comum entre a nova luta titânica pela supremacia
global que os nossos tempos nos reservaram e as que o mundo
testemunhou no passado. Todos os factores estruturais contam, e a
tendência futura de alguns deles é imprevisível. Mas a eficácia, a
qualidade, a robustez, a densidade das instituições internas das potências
em conflito, dos seus valores e normas, das suas práticas sociais, e a sua
adequada articulação com a geração de poder, são determinantes. O
mesmo vale, de resto, para a capacidade de controlar ou anular patologias
materiais e espirituais internas ao seu próprio Estado. Vale a pena
sublinhar que a China tem desafios internos de grande monta, dado que as
condições históricas para o seu enorme sucesso nos últimos trinta anos
estão em larga medida esgotadas.
Desde logo, o dividendo demográfico. Entre 1990 e 2010, a China teve
os seus rácios de dependência nos mínimos, com todos os benefícios
económicos que daí decorreram. Ao mesmo tempo, procedeu-se ao maior
e mais rápido êxodo rural da História da Humanidade. Centenas de
milhões de chineses foram retirados à economia de subsistência e
baixíssima produtividade para, através das migrações para as zonas
economicamente industrializadas do país, passarem a integrar a economia
mundial e o mercado de trabalho global. Como este processo também
envolveu em grande parte a população feminina, o dividendo demográfico
e migratório foi reforçado com um aumento da participação da mulher no
mercado de trabalho e um consequente aumento da população activa. O
processo atingiu uma tal envergadura que afectou a economia de todos os
países do mundo, praticamente sem excepção. Além destes trabalhadores
que foram subtraídos a uma vida de miséria, mesmo que com a
contrapartida de longas jornadas de trabalho, sem direitos sindicais e
políticos, nem segurança social, e auferindo salários baixos por padrões
internacionais, muitos foram os beneficiários desta transformação. A
começar pelos inovadores e os empresários, que passaram a poder
mobilizar o conhecimento ocidental com trabalho barato e estruturas
obsessivamente apostadas na sua própria modernização. Este pequeno
grupo viu aumentarem espectacularmente as possibilidades de acumulação
de capital, e a uma velocidade inimaginável antes. Os trabalhadores
qualificados no Ocidente também beneficiaram com termos de troca tão
favoráveis. Foram os trabalhadores com menos qualificações nas
economias ocidentais, e noutras com estruturas produtivas equivalentes,
que pagaram um preço mais alto. Estes foram os anos do offshoring, ou
das deslocalizações, e a China, entre um grupo reduzido de países, foi um
dos maiores recipientes. Além disso, a China foi um dos grandes
vencedores de um jogo de soma positiva que foi a globalização. Contudo,
a globalização parece ter perdido algum do fulgor que mostrou até à crise
financeira internacional. O processo traumático e desestabilizador de
combate à pandemia da covid-19, com os sucessivos confinamentos,
interrupção da actividade económica e consciencialização da necessidade
de autonomia para determinados bens e serviços necessários em períodos
de emergência, dificultaram a recuperação para a tendência anterior a
2008 de crescente integração da economia mundial.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, e a devastadora guerra que daí
resultou, reforçaram esta tendência. A 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia
completou o que provavelmente já estava concebido desde a invasão não-
oficial de 2014 da bacia do Donbass. Movida por uma liderança política
que se crê absolutamente geopolítica, isto é, que a geopolítica entendida
restritamente como a política da geografia determina não só as origens dos
povos, mas também a sua acção e o seu destino, a Rússia decidiu
unilateralmente recuperar a política de conquista e de sujeição para as
portas da Europa. A obsessão com as forças de desagregação de um
império mastodôntico, com o acesso aos oceanos, com as minorias russas
supostamente oprimidas pelo realinhamento das fronteiras e pelas políticas
de colonização, com o «cerco continental», com a missão de derrubar a
hegemonia geopolítica americana independentemente da demonstração
dos males e dos bens de um estado de coisas ou de outro – tudo faz da
Rússia envelhecida, em contracção demográfica, corrupta, dependente da
exportação de hidrocarbonetos e de matérias-primas e da importação de
tecnologia estrangeira, um país obsessivamente geopolítico.
A Globalização em Retrocesso?

Exportações de bens e serviços (% PIB) – economia mundial.


Gráfico 5. Exportações de bens e serviços de toda a economia mundial em
percentagem do PIB. Podemos usar este indicador como medida
aproximada do aprofundamento da integração da economia mundial. O
pico foi atingido em 2008 nas vésperas da crise financeira internacional,
conhecida como a Grande Recessão. Mesmo que descontemos a anomalia
de 2020, um ano de confinamentos em massa e de retracção da economia
mundial, é fácil constatar que a trajectória de aumento da integração
comercial mundial foi interrompida. Veremos nos próximos anos se se
trata de um intervalo curto ou de um processo mais duradouro.
Fonte: Banco Mundial, 2021.
Seja como for, a guerra perturbou mais ainda as cadeias globais de
abastecimento, impôs novos alinhamentos geopolíticos que abrangem o
mundo inteiro, e não se cingem às cimeiras da União Europeia, e
aprofundou a consciência da perigosidade das relações de dependência
ditadas pelo princípio da divisão internacional do trabalho. Nada disto são
boas notícias para a retoma das condições económicas anteriores a 2008,
quando a China podia ser «a fábrica do mundo» sem que isso
incomodasse mais do que um punhado de nacionalistas e de sindicalistas
na Europa e na América do Norte. Também não são boas notícias para o
Ocidente, que será forçado, sobretudo a Europa, a mobilizar recursos para
a sua segurança e defesa, para a autonomia energética, enquanto terá de
lidar com ineficiências económicas avultadíssimas em consequência da
escalada dos custos de bens essenciais.
É verdade que a China tem hoje infinitas e complexas ligações aos EUA
que estavam pura e simplesmente ausentes durante a Guerra Fria, em que
as relações entre a URSS e os EUA eram muito limitadas, desde logo no
plano económico. No início do século XXI, a situação é completamente
diversa. China e EUA realizam investimentos avultadíssimos na casa um
do outro, o volume das exportações e importações entre ambos é colossal,
os intercâmbios académicos, as relações culturais, incluindo com a
comunidade chinesa há mais de 150 anos instalada na América, a mistura
sino-americana de conteúdos materiais e imateriais nos produtos que o
mercado global disponibiliza, a detenção de uma soma astronómica de
dívida pública americana nas instituições financeiras chinesas, e por aí
adiante. Serão estes factos suficientes para dissuadir a escalada da
rivalidade que já existe hoje entre as duas potências? As modalidades do
conflito são já muito diversas e complexas. Do espaço virtual cibernético
até à reserva das consciências de todos nós: são muito os campos de
confrontação. Não obstante as relações mútuas de dependência, a verdade
é que a luta pela hegemonia é sempre uma luta.
13
Schmitt, p. 50.
14
Schmitt, pp. 51, 55.
15
John M. Keynes, The Economic Consequences of the Peace, Nova
Iorque, Harcourt, Brace, and Howe, 1920, pp. 10-12.
16
David Dollar, «Globalization, Poverty, and Inequality since 1980», The
World Bank Research Observer, vol. 20, n.º 2, 2005, pp. 145-75.
17
Na realidade, trata-se de uma expressão usada por Mao, mas que com
grande habilidade seria sistematicamente usada, e até aos nossos dias sob a
liderança de Xi Jinping, com um outro alcance muito distinto.
18
Kenneth Pomeranz, The Great Divergence. China, Europe, and the
Making of the Modern World, Princeton, Princeton University Press, 2000;
Prasannan Parthasarathi, Why Europe Grew Rich and Asia Did Not. Global
Economic Divergence, 1600-1850, Cambridge, Cambridge University
Press, 2011; Richard Baldwin, The Great Convergence: information
technology and the new globalization, Cambridge, Harvard University
Press, 2016.
19
Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of
Nations, Edwin Cannan, ed., 2 vols., Londres, Methuen, 1904, IV.7.
20
National Family Health Survey 2019-20,
rchiips.org/nfhs/factsheet_NFHS-5.shtml.
21
Hal Brands, The Twilight Struggle. What the Cold War Teaches Us about
Great-Power Rivalry Today, New Haven, Yale University Press, 2022, p. 4.
22
Bruno Maçães, The Dawn of Eurasia. On the Trail of the New World
Order, Londres, Penguin Books, 2018, pp. 115-55.
23
Samuel Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late
Twentieth Century, Norman, University of Oklahoma Press, 1991.
24
Anna Lührmann, Staffan I. Lindberg, «A third wave of autocratization is
here: what is new about it?», Democratization, vol. 26, n.º 7, 2019.
II
DOIS AMERICANOS EM WASHINGTON
Washington, 1992
Os acontecimentos do final dos anos 1980 e dos primeiros meses da
década de 1990 foram interpretados por dois americanos. Não que
escasseassem comentários em artigos, livros ou debates nas televisões. A
sociedade ocidental de então já tinha sofrido a sua primeira grande vaga
de mediatização integral. Estes dois não eram os pensadores mais
profundos da sua época. Nem eram os que tinham a audiência mais
numerosa garantida pela reputação oracular. Se Huntington já era um
veterano professor universitário com uma longa e prestigiada carreira,
Fukuyama era ainda relativamente jovem e desconhecido do grande
público.
Quando Fukuyama publicou O Fim da História e o Último Homem, e o
livro estava a ser digerido pelas elites empresariais, académicas e políticas
de Washington, Huntington deslocava-se até à capital federal dos EUA – e
da grande potência vencedora da Guerra Fria – para apresentar pela
primeira vez a sua tese sobre o Choque das Civilizações numa palestra
organizada pelo think tank conservador American Enterprise Institute
(AEI). Aconteceu em 1992. Ambos começaram por publicar as suas teses
em artigos. Primeiro, Fukuyama publicara em 1989 o seu artigo
fulminante na revista National Interest, sediada em Washington também, e
o livro de desenvolvimento em 1992. Depois, Huntington repetiu o
percurso habitual do artigo para o livro, respectivamente em 1993 (logo
após a palestra no AEI em Washington), e em 1996.
Se os filósofos de carreira se dedicaram nos anos seguintes a atacar a
superficialidade intelectual de um e de outro, um exercício que dava
sempre um falso tom de superioridade, os historiadores entretiveram-se a
apontar o último detalhe de que se lembravam e que não encaixava nas
teorias de Fukuyama e de Huntington. A verdade é que na sua alegada
superficialidade, e no seu alegado alheamento face à realidade histórica,
Fukuyama e Huntington foram capazes de apresentar interpretações
verdadeiramente desafiantes da nova ordem que nascia dos escombros da
antiga e que tocavam magistralmente nos pontos mais sensíveis de todo o
gigantesco problema. Cada uma das teorias condensava uma ideia
relativamente simples, mas nem por isso desenraizada dos dados
fundamentais da questão a decifrar. Além disso, elas reproduziam de um
modo mais caricaturado o debate ignorado pelos media que foi travado
entre dois grandes pensadores. Alexandre Kojève e Carl Schmitt foram
quem primeiro articulou a estrutura de uma teoria e de outra. Talvez fosse
esse o segredo do eco interminável das teses de Fukuyama e de
Huntington. Afinal de contas, para usar uma expressão de Bernardo de
Chartres, eles estavam aos ombros de gigantes.
Recapitulemos, então, as lições que ambos retiraram da sucessão
vertiginosa dos acontecimentos que tiveram lugar entre 1989 e 1993. Uma
lista apenas dos acontecimentos mais sonantes deste período é de perder o
fôlego:
– A queda do Muro de Berlim,
– A implosão da União Soviética,
– O fim do Pacto de Varsóvia,
– A reunificação alemã,
– A entrada em vigor do Mercado Único europeu,
– O Tratado de Maastricht, criando a União Europeia e o euro,
– As guerras de secessão da Jugoslávia,
– A fatwa a Salman Rushdie,
– O primeiro ataque terrorista ao World Trade Center em Nova Iorque,
– Os protestos na China e a repressão na Praça Tiananmen,
– A libertação de Nelson Mandela e a legalização do ANC, o que
conduzirá ao fim do apartheid poucos meses depois,
– O primeiro atentado suicida palestiniano em território de Israel,
– A primeira legalização das uniões de facto de casais do mesmo sexo na
Dinamarca,
– A invasão do Koweit pelo Iraque e a Primeira Guerra do Golfo,
– A intervenção militar americana na Somália,
– A intensificação em larga escala do processo de offshoring da
capacidade industrial ocidental e japonesa,
– A integração da Índia na economia global.
É difícil descrever as várias dimensões que fizeram daqueles anos um
período tão transformador. No plano geopolítico, podemos dizer que a
ordem internacional que subsiste ainda hoje construiu-se naquele tempo e
num ano em particular: 1989. No plano geoeconómico, sabemos hoje,
porque era provavelmente impossível compreendê-lo na altura, que esse
ano marcou uma aceleração alucinante do processo de globalização que
começara uns anos antes. É que também a ordem geoeconómica que
temos hoje, e não só a ordem estritamente política, foi preparada nos
últimos meses da década de 1980.
Final da História?
Fukuyama foi o primeiro a compreender que algo de fundamental tinha
ocorrido na História do mundo durante aqueles meses. Não se limitava a
dizer, como milhares de comentadores pelo mundo fora diziam, que
estávamos a assistir a acontecimentos imprevistos e sem precedentes.
Algo tinha de ser discernido para além dos acontecimentos espúrios que
iam tendo lugar, mas que eram destituídos de significado histórico
autêntico. Fukuyama propôs uma interpretação do significado desses
acontecimentos nos próprios termos da História Universal. Isto é, a
indagação que importava era a que soubesse responder às seguintes
questões: «Que processo histórico conduzira àquele desfecho?»; «Qual era
o sentido histórico do processo e do desfecho?», ou, o mesmo seria
perguntar: «Qual era a sua racionalidade imanente?»; e, finalmente: «O
que anunciava para o futuro da Humanidade?»
A seu ver, a História tinha chegado ao fim. Com isto, Fukuyama não
queria dizer que deixaria de haver acontecimentos, guerras, inovações,
tragédias, nem peripécias colectivas de todo o tipo. Na realidade,
Fukuyama estava a apelar a uma ideia extraída de Hegel, o grande filósofo
alemão do início do século XIX, e à sua reinterpretação feita já no século
XX pelo russo-francês Alexandre Kojève. Na realidade, o conceito de Fim
da História era muito mais obra da interpretação kojèviana de Hegel do
que aquilo que podemos encontrar no texto hegeliano propriamente dito.
Antes de Kojève (um marxista muito versado em Nietzsche), dois
Friedrichs – Engels e Nietzsche – descobriram no sentido da filosofia da
história de Hegel o conceito implícito de Fim da História. Para o
primeiro, era um brinde de Hegel em cima de tudo o que Hegel dera ao
marxismo. Para o segundo, era a prova «provada» da decadência e
influência nefasta de Hegel sobre a consciência ocidental: o detrito do
suposto Fim da História era o Último Homem.
O encerramento ou fechamento da História queria dizer que nada de
historicamente novo poderia acontecer, porque tudo o que de
historicamente significativo havia para acontecer já acontecera.
Chegávamos então a um estado de repouso. Uma vez mais: isto não queria
dizer que não haveria atribulações, peripécias e surpresas de todo o tipo.
Queria, sim, dizer que a dialéctica da progressão da consciência humana
de si mesma tinha chegado à sua consumação. O que significava isto?
A ideia era a seguinte. A História da Humanidade podia ser lida à luz de
uma relação particular: a do senhor com o escravo. No campo de batalha,
aquele que se rendia para ver a vida poupada pelo vencedor assumia-se
como seu escravo. Reconhecia a superioridade do vencedor. Reconhecia-
lhe uma superioridade particular – a que se manifestava em desafiar o
medo da morte. Por seu lado, o agora escravo devia a sua escravatura à
submissão ao medo da morte. Ao mesmo tempo, o senhor queria ver
reconhecida a sua superioridade. Acontece, porém, que quem reconhecia a
sua superioridade era um inferior, o que conferia a essa luta constante pelo
reconhecimento um carácter insatisfatório. Em simultâneo, o escravo tinha
como função trabalhar para o seu senhor. O seu trabalho era a condição de
possibilidade do ócio do senhor. Ora, trabalhar significava transformar o
mundo material. Assim, era o escravo – um inferior – quem ia moldando o
mundo material à sua volta através do seu trabalho. O mundo era feito não
à semelhança do senhor superior, mas do escravo trabalhador.
Na leitura de Fukuyama, o mundo no final da década de 1980 chegara a
este ponto porque triunfara um regime político – a democracia liberal
representativa assente numa economia de mercado – que correspondia à
forma social desta igualdade no reconhecimento, ou do reconhecimento
mútuo e pleno de seres iguais. Ao desaparecer a última modalidade de
consumação da dialéctica do senhor-escravo, que era proporcionada pelo
comunismo marxista, triunfava finalmente a forma social do
reconhecimento mútuo: o reconhecimento da dignidade do homem
enquanto homem. O mundo tornava-se historicamente homogéneo na
medida em que não havia alternativa a esta forma social. É verdade que
em 1989, como em 1993, havia muitas sociedades fora da órbita
demoliberal assente na economia de mercado. Mas a tendência histórica
era para serem, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde,
atraídos para ela. Pela razão histórica fundamental de não haver uma
alternativa de resposta à luta pelo reconhecimento.
Se o movimento da História era essencialmente o movimento da
consciência de si dos actores da História – o Homem –, então a questão
empírica seria sempre secundária, até porque se seguiria sempre com o seu
próprio movimento acompanhando o movimento da consciência humana.
Que movimentos da consciência eram esses? A interpretação que o
Homem fazia de si mesmo, da sua existência e do mundo em que vivia.
Numa palavra, a religião, a cultura, os valores morais, a ideologia política.
Na dialéctica senhor-escravo, na consumação do reconhecimento homem-
a-homem, já não era possível ir além da combinação liberal de igualdade e
de liberdade. Neste contexto, o Fim da História era ocasionado por se
concluir a tarefa histórica da política por excelência. Por outras palavras,
por já não ser preciso prosseguir uma luta violenta pela liberdade e pelo
direito, restando à política tornar-se a gestão da sociedade da liberdade e
do direito.
Contudo, para que o movimento da História obedecesse a uma
racionalidade, para que houvesse um sentido racional da História,
Fukuyama precisava de um elemento adicional. Precisava de um factor
determinante que explicasse o carácter progressivo e linear do movimento
histórico. Esse elemento histórico era dado pelo desenvolvimento da
ciência natural moderna. O modo como o desenvolvimento da ciência
natural moderna, sobretudo a partir do século XVII, se deu
progressivamente num desdobramento consequente das suas
possibilidades internas, e segundo uma lógica cumulativa, era suficiente
para conferir coerência e unidade ao desenvolvimento histórico das
sociedades do mundo como um todo. Era suficiente assim que se dava
conta do carácter integrador, cumulativo, irreversível e abrangente do
conhecimento científico moderno. Tal como Hegel ensinara, o progresso
da história das sociedades não estava separado do progresso intelectual – o
indivíduo pertence essencialmente ao seu tempo, todo o pensamento é
filho do seu tempo: «o indivíduo é um filho do seu tempo; tal como a
filosofia também é o seu próprio tempo apreendido em pensamentos».25
Dito de uma maneira muito simples, o mundo transformado pela ciência
natural moderna e pelas suas possibilidades tecnológicas não regrediria
desaprendendo o que aprendeu. Ao mesmo tempo, sendo eminentemente
tecnológica, a ciência natural moderna foi, e é, um instrumento de poder.
As sociedades que a dominassem e a desenvolvessem tornar-se-iam ipso
facto mais poderosas do que as restantes e dominá-las-iam.
Como veremos, a discussão histórico-empírica em torno do triunfo
global da democracia e do capitalismo liberal seria muito intensa e nada
consensual. Mas no caso da forma económica de mercado, ou o
capitalismo, a discordância seria muito menor. Economistas pouco
amigáveis para as teses de Fukuyama e mesmo para o conteúdo da forma
económica de mercado, como, por exemplo, Branko Milanović, uma das
vozes mais autorizadas na abordagem ao problema das desigualdades
económicas na era da globalização, anuiu precisamente nesse ponto
fulcral. Disse ele: «o capitalismo é não só dominante, como é o único
sistema socioeconómico do mundo». Para ele, os dois grandes factos da
nossa era resultavam da convergência económica da Ásia com a Europa
registada nas últimas décadas, e sobretudo a solidão do capitalismo na
estruturação da vida económica do planeta. Fukuyama certamente
assentiria com condescendência ao ler a obviedade assinalada por
Milanović: «o facto de o globo inteiro operar segundo os mesmos
princípios económicos (...) não tem precedente histórico».26 O ponto mais
interessante reside aqui: Milanović reconhecia que, não obstante o
internacionalismo teórico do comunismo marxista, se este tivesse
triunfado sobre o capitalismo, não teria havido globalização. A
globalização é um produto do capitalismo e só do capitalismo. O que
significa que o capitalismo tem propriedades que o fazem expandir-se até
ao mais recôndito canto do globo, algo em que Marx sempre insistiu,
como iremos ver. Resta saber se a tese de Fukuyama estaria igualmente
correcta. Isto é, se o conteúdo da democracia liberal a conduziria vitoriosa
até à última fronteira do mundo.
Segundo Fukuyama, a solução especificamente liberal para o problema
político e para o problema económico da Humanidade triunfou, e com
esse triunfo a História encerrou-se. Isso queria dizer, como vimos, que o
que havia de historicamente significativo para acontecer já acontecera. As
discussões políticas agora centrar-se-iam já não nas questões políticas e
económicas fundamentais, debates e conflitos que no passado faziam a
História mover-se, mas na resolução de problemas tecnológicos, nas
preocupações ambientais, na defesa dos consumidores e outros problemas
essencialmente técnicos.
Não é preciso grande obsessão com as linhagens intelectuais para
reconhecer que o esqueleto da teoria de Fukuyama não lhe pertencia. De
resto, Fukuyama admitia-o abundantemente. A sua fonte imediata era o
filósofo russo, e alto funcionário público francês, Alexandre Kojève, uma
personagem complexa e fascinante. E tão excêntrica que alimentou
suspeitas de ter sido espião ao serviço dos soviéticos. Kojève era senhor
de uma mente prodigiosa, e entre outras coisas foi um dos arquitectos
intelectuais da formação das Comunidades Europeias no pós-Segunda
Guerra Mundial e um dos engenheiros silenciosos do GATT, o acordo para
a redução das tarifas aduaneiras no mesmo período. Antes da Segunda
Guerra Mundial, Kojève notabilizou-se em Paris por ser um extraordinário
intérprete de Hegel. E na sua interpretação de Hegel, Kojève anunciava
que fora o filósofo alemão o pai da ideia de Fim da História. Entre 1933 e
1939, Kojève encantou e seduziu a nata da intelectualidade parisiense
mais jovem com os seus seminários sobre Hegel na École des Hautes
Études. Reza a lenda que quem os frequentou nunca mais voltou a ser o
mesmo. Foi nesses seminários sobre a Fenomenologia do Espírito de
Hegel que Kojève deu as suas lições sobre o progresso na História e a sua
conclusão.
Hegel era, pois, o homem com quem tinha de se contar neste
entendimento de que a História tinha uma direcção racional e que era
conduzida para um desfecho, para uma consumação. Hegel mostrava-se
convencido de que vivia na época em que a História estava prestes a
fechar-se. A Revolução Francesa tinha sido também ela encerrada por
Napoleão e exportada para a Europa – e para o mundo. Era a inauguração
da liberdade absoluta. Ao mesmo tempo, a filosofia de Hegel era a
autenticação espiritual desse fechamento da História. Só quem estava na
posição histórico-cronológica de Hegel, o que excluía os filósofos seus
antecessores, podia dar testemunho da realização do Espírito, do
progresso do Espírito. Por ser histórica, a filosofia de Hegel era também o
encerramento da história da filosofia. Hegel era a testemunha, o intérprete
e o arauto do Fim da História. Mais rigorosamente, a sua filosofia
integrava o mesmo processo histórico que tinha trazido a Revolução
Francesa. O progresso na história humana não estava separado do
progresso do pensamento. Numa carta ao seu amigo Niethammer, Hegel
contou como, da sua janela em Iena, viu Napoleão passar a cavalo, aquele
«Imperador, o Espírito do mundo, a sair da cidade em reconhecimento».27
Era a consumação da revolução política que destruíra o Ancien Régime,
proclamara os princípios racionais dos direitos individuais universais e,
por conseguinte, levara a cabo o desfecho da luta pelo reconhecimento. O
Fim da História, em Hegel, era mais rigorosamente o culminar do
progresso do Espírito Absoluto.
Vale a pena notar que inicialmente Kojève julgava que a ideia que ele
via em Hegel de um Fim da História era uma «tolice». Só depois
compreendeu que era afinal um verdadeiro golpe de génio filosófico.
Kojève passou a colocar a ideia de Fim da História, que não fora
explicitada por Hegel nas suas obras, no centro da sua reflexão. Todavia,
admoestava Hegel por este ter anunciado no seu tempo o que só viria a
suceder século e meio depois. Não era, afinal de contas, Napoleão o fautor
do Fim da História, como Hegel alegadamente suporia, mas Estaline!
Recordemos que Kojève, pelo menos nos anos 1930 e 1940, foi um
marxista-comunista pró-soviético. Mas o próprio acabaria por rever a sua
cronologia do Fim da História à luz dos primeiros anos do pós-Segunda
Guerra Mundial. Paradoxalmente, Kojève acabaria por regressar à
cronologia imputada a Hegel, a que marcava o Fim da História em 1806.
Mas o pensamento definitivo sobre este ponto central ficaria firmado na
única alteração que, em 1962, Kojève fez à segunda edição da
Introduction à la lecture de Hegel, o livro baseado nas lições de Kojève e
reunido pelo escritor Raymond Queneau. Essa alteração consistiu na
adição de uma nota de rodapé. Na verdade, a nota era complementar a
uma outra nota de rodapé que ele introduzira na primeira edição, em 1946.
Esta primeira nota esclarecia que o Fim da História era a «aniquilação» do
homem como ser de acção no sentido pleno do termo, isto é, como ser de
acção que negava o que era simplesmente dado. Em termos políticos, isso
significava que desapareceriam as «guerras e as revoluções sangrentas».28
Seria também o fim da filosofia, porque deixaria de haver razão para
modificar os princípios segundo os quais o homem interpretava a
realidade e a si mesmo.
O que dizia, então, a nota da segunda edição? Começava por dizer que a
nota da primeira edição era «ambígua, para não dizer contraditória».
Porque na primeira nota, apesar de se dizer que o homem como ser de
acção e como filósofo «desaparecia», continuava a dizer-se que tudo o
resto «pode ser preservado indefinidamente: a arte, o amor, o jogo, etc.».
Ora, tudo ponderado, tal não era possível. O regresso à «animalidade» do
homem, isto é, desprovido do que fizera dele um ser histórico, afectaria
tudo o resto. Com essa modificação em tudo, a felicidade deixaria também
de ser possível. A vida humana na abundância material e na segurança
física geraria contentamento, mas não felicidade. Era preciso estabelecer o
que a partir de 1948 Kojève pensava sobre o Fim da História. Este não
estava inscrito no porvir. Não, o Fim da História já tinha chegado. A
Batalha de Iena fora o momento dessa chegada. Foi nesse momento, o que
vale por dizer cerca de 140 anos antes da sua reflexão, que se chegara ao
limite da «evolução histórica do Homem». Tudo o que sucedera desde
então era a mera extensão espacial desse fim. Tudo o que sucedera desde
então, e não fora pouco, tinha sido essencialmente a democratização do
mundo: a eliminação do passado pré-revolucionário, e o alinhamento dos
países mais recônditos à trajectória histórica europeia. Daqui Kojève
concluía que o ponto mais avançado da história, ou onde se tinha ido mais
longe nessa eliminação do passado pré-democrático e na remoção de todos
os vestígios de anacronismo, era a América do Norte.
Saltar da Rússia estalinista para a América do Norte: convenhamos que
se tratava de um enorme salto na interpretação que Kojève fazia do seu
próprio tempo. Mas Kojève não prescindia das categorias marxistas de
análise do Fim da História para justificar a escolha dos EUA. Era a
sociedade onde «praticamente, todos os membros de uma “sociedade sem
classes” pod[iam] doravante apropriar para si tudo o que lhes parec[esse]
bom, sem que para isso [tivessem] de trabalhar mais do que o seu coração
dita[sse]». As categorias marxistas eram importantes para organizar o
pensamento, mas Kojève também indicava as viagens que fizera
entretanto aos EUA e à URSS. Do ponto de vista histórico, não havia
diferença entre os russos, os americanos e os chineses. A única diferença,
então, era esta: os americanos eram chineses-russos ricos; os chineses e os
russos eram americanos pobres. China e URSS convergiam para o
american way of life, e este, sim, era o tipo de vida específico do Fim da
História. A História chegara ao fim primeiro nos EUA antes do resto do
mundo. Ou, o que é dizer a mesma coisa, os EUA indicavam ao resto do
mundo o seu próprio futuro, donde já não seria possível progredir mais;
indicavam ao mundo o seu próprio «presente eterno».29
As hipérboles de Kojève são menos importantes para nós do que as
portas abertas pelas suas provocações. Nem hoje, em 2022, e muito menos
na América na década de 1960, é verdade que praticamente todos os
membros da sociedade trabalham apenas, e não mais, do que o seu
coração lhes dita. Em contrapartida, se em 1962 era ultrajante afirmar a
convergência dos russos que viviam no esclerótico regime soviético, e dos
chineses a braços com um pesadelo chamado o Grande Salto em Frente
numa sociedade de carências radicais, fome e esqualidez tecnológica, com
o american way of life, hoje já não o seria tanto depois de termos visto a
passagem da China para um modelo de capitalismo não-democrático de
modernização económica e a transição da Rússia depois da implosão da
União Soviética.
Como quase sempre, a surpresa estava reservada para o fim. Kojève
prosseguia a sua nota de rodapé reconhecendo que a partir de 1959 o seu
julgamento histórico sofrera uma «mudança radical». Nesse ano fizera
uma viagem ao Japão, provavelmente nas muitas viagens de Estado no
cumprimento das suas funções como alto funcionário público da Direcção
das Relações Económicas Externas no Ministério das Finanças da
República Francesa. É difícil perceber até que ponto é que estes últimos
parágrafos seriam mais do que os jogos filosóficos que Kojève gostava de
jogar para confundir os interlocutores e para exercitar até ao limite as suas
faculdades de meditação. Fosse como fosse, a partir dessa altura, Kojève
decidiu que o Fim da História chegara, na verdade, ao Japão. No Japão já
não havia política, nem moral, nem religião, no sentido histórico pleno
destas palavras. A acção histórica, e a disciplina a que esta sujeitou o ser
humano durante milénios, fora substituída por uma forma de snobismo.
Um dos ritos mais demonstrativos do snobismo japonês era a cerimónia
do chá. Aqui, os «valores» que estavam em causa eram puramente
«formais», esvaziados de todo o conteúdo histórico. No mundo histórico,
os valores segundo os quais os seres humanos vivem têm sempre um
conteúdo social e político. Já não era assim no Japão. A convergência
histórica do mundo corria no sentido do Ocidente para a japanização, e
não o contrário, como todos os observadores julgavam. Isto queria
também dizer que, ao contrário do que Kojève defendera na primeira
edição, o Fim da História não seria o regresso à «animalidade» do homem,
à «naturalidade» do ser humano. O Japão desmentira Kojève: «Nenhum
animal pode ser um snob.»30
Mas o que realmente impressionara Kojève fora o Fim da História no
Japão, ou os traços característicos da civilização japonesa,
incomensuráveis com os de outras civilizações?
Civilizações
Poucos meses depois de Fukuyama, o velho Huntington entrou em cena.
Como habitualmente, para escrever um texto marcante. Huntington propôs
outra hipótese. Em vez de supor a formação de um universo político, viu
aquele momento apoteótico de globalização como um retorno a fronteiras
civilizacionais, determinadas menos pela economia e mais pela cultura,
pelos valores mundividentes e pela religião. O mundo estruturava-se não
segundo a forma de um universo, mas antes segundo a forma fragmentada
de um pluriverso. Num mundo assim, a comunhão de valores universais e
universalmente partilhados deixava de uma vez por todas de formar o
horizonte da política internacional. Todo o planeta podia ser, com mais ou
menos retoques, identificado como uma colecção de diferentes
«civilizações», que não só não partilhavam necessariamente os mesmos
valores, como podiam ser antagónicas e inimigas, sobretudo nas suas
zonas de fronteira. Estas «civilizações» não podiam ser entendidas como
meras entidades culturais, mas antes como agências geopolíticas de
primeira ordem configuradas sobretudo por conteúdos culturais, e não
político-ideológicos. Seriam as «civilizações» enformadas em Estados, ou
em conjuntos de Estados, a constituir o grupo de actores geopolíticos
decisivos. Todas as alternativas se diluíam na força gravitacional da
cultura civilizacional. Estados ideológicos ou estritamente nacionais,
sociedade civil global, organizações internacionais – todos seriam mais ou
menos absorvidos pelo vórtice civilizacional.
Fukuyama imaginava um mundo a caminho de uma certa forma de
homogeneização, um tema recorrente no debate sobre a globalização.
Uma homogeneização de formas políticas e económicas, já que as
alternativas à democracia liberal e à economia de mercado iam
soçobrando mais cedo ou mais tarde por não corresponderem aos padrões
de legitimidade que a dialéctica histórica foi desenvolvendo até atingir
uma certa culminação. Em contraponto, Huntington diagnosticava um
mundo culturalmente fragmentado com múltiplas zonas e motivos de
colisão. Em parte, Huntington reabilitava o prestígio das interpretações
geopolíticas da história, que vimos estar muito em voga na primeira
metade do século XX, mas que, com os traumas do nacional-socialismo,
com a tentativa de deixar para trás os desígnios imperiais e imperialistas e
com a monopolização do debate geopolítico em termos ideológicos nos
tempos da Guerra Fria, tinham caído em desuso, e até em repúdio. Dir-se-
ia que a consciência democrática denegava essa limitação à liberdade
humana que os determinismos sempre constituem. Esta concepção da
geopolítica acabava por ser a confissão de que os actores políticos,
pequenos e grandes, nunca conseguiriam libertar-se do que
involuntariamente herdavam do passado. Tocqueville sabia do que falava.
No entanto, para Huntington, o que diferenciava cada uma das
«civilizações» não era apenas a posição geográfica. Eram sobretudo os
«valores» e as mundividências que definiam o conteúdo histórico de cada
uma dessas «civilizações». Em particular, o fundamento religioso desses
conteúdos históricos constitutivos da política, da economia, da arte, da
linguagem, da literatura, das maneiras e dos costumes quotidianos,
reaparecia com uma relevância que surpreendia as interpretações
materialistas e secularistas do devir da Humanidade. Convém não
esquecer que o sistema democrático e liberal que Fukuyama via como
triunfante trazia umbilicalmente ligado a si uma concepção laica da
política e da sociedade, com uma estrita separação entre religião e política.
Nalguns casos, promovia activamente a privatização da religião, isto é, a
proibição da sua dimensão pública ou pelo menos a sua desvalorização.
Ora, algumas das «civilizações» de Huntington podiam virar essa
prioridade liberal de cabeça para baixo. A busca da identidade para
Huntington em termos planetários podia levar a melhor sobre a
apropriação dos valores do Estado de Direito democrático ou dos «valores
ocidentais». Era a aproximação a um determinismo identitário (ou
cultural) mais do que aos determinismos materialistas clássicos, embora a
força de determinação das condições materiais-geográficas mantivesse
alguma importância.
Dos Dois Americanos, Quem Levou a Melhor?
Assim que os textos de Fukuyama e de Huntington viram a luz do dia,
gerou-se um exército de detractores que nunca parou de crescer. As
críticas, na sua maioria, foram efectivamente inúteis e desinteressantes.
Outras houve que foram certeiras e promissoras. Nenhuma destas, porém,
teve o condão de fazer gerar uma outra grande teoria interpretativa da
nova ordem geopolítica do início do século XXI. Pelo menos, nenhuma
digna desse nome como, apesar de todas as carências, as teses de
Fukuyama e de Huntington o eram. Podemos concordar que ambas eram
reducionistas e omitiam uma constelação de matizes e contradições no
plano dos factos e dos conceitos. Podemos anuir que as simplificações
levadas além de um certo ponto tornavam-se distorções puras e simples da
realidade, o que é o contrário do que se pretende de uma teoria
interpretativa dessa mesma realidade. Mas, no contexto deste capítulo, a
frase de Alfred North Whitehead – «É mais importante que uma
proposição seja interessante do que verdadeira»31 – deve ser apreciada
como muito mais do que um simples jogo de palavras.
Por exemplo, a Fukuyama, além de se imputar o ter confundido o
desígnio da História com os seus próprios interesses ideológicos, acusa-se
também a ignorância mais avassaladora, a saber, do facto cru de que a
democracia não venceu em largas porções do mundo, nem há sinal de que
venha a vencer num futuro próximo. Ao mesmo tempo, o espaço
democrático também conhece as suas crises de regressão nos padrões
institucionais que uma democracia sempre exige. É, como vimos, o
material empírico para as recentes teses sobre a interrupção e reversão da
terceira vaga da democratização nos últimos anos, ou até para a formação
de uma vaga de autocratização. O 11 de Setembro, os autoritarismos
desenvolvimentistas e terceiro-mundistas, e a ascensão dos populismos de
esquerda e de direita no início do século XXI estariam aí para desmentir
Fukuyama em toda a linha.
A Huntington, noutro exemplo, apontou-se o absurdo de supor que as
áreas civilizacionais eram monolíticas e absolutamente coesas, quando
nada podia estar mais longe da verdade. Choveram, como seria de esperar,
as acusações de essencialismo cultural ao tratamento huntingtoniano das
civilizações. A facilidade com que Huntington identificava em três ou
quatro penadas espaços culturais complexos e diversos, e os baptizava
com nomes genéricos, ora de índole religiosa-espiritualista, ora de puras
demarcações geográficas convencionais, como «hinduísta» ou «budista»
ou «ortodoxa» ou «islâmica» ou «latino-americana», suscitou mais do que
o gesto de torcer o nariz. Mais, o essencialismo cultural representava as
entidades civilizacionais como fixas, sobrevivendo na história sem
grandes modificações, sem contradições nem escapes – excepção aberta
para a civilização «ocidental», cuja descrição na obra integrava profundas
mudanças históricas. Nas restantes, os equilíbrios culturais pareciam ter
sido dados há muito, muito tempo à respectiva civilização e não eram
susceptíveis de mudanças com impacto sistémico.
Quem invoca grandes unidades «civilizacionais» como agentes
primordiais da geopolítica tem de se preparar para ser confrontado com
uma torrente de detalhes históricos que invariavelmente indicam a
diversidade, e não o monolitismo implícito na concessão de uma singular
agência política. Como ignorar que espaços culturais-territoriais com
populações de muitas centenas de milhões estão atravessados por graves
fracturas internas, como, por exemplo, as lutas sangrentas e intermináveis
entre sunitas e xiitas (que alguém descreveu como o choque de
civilizações árabes32), ou os genocídios recorrentes na África Subsariana,
os conflitos entre muçulmanos e hindus na Índia ou entre budistas e
hindus no Sri Lanka?
Note-se que Huntington previa que a Ucrânia não estaria dividida
«civilizacionalmente», pois russos e ucranianos eram «dois povos eslavos
e principalmente ortodoxos que têm tido relações próximas durante
séculos». Se a civilização fosse o guia preditivo do conflito, então era
improvável que houvesse guerra. Mas Huntington não excluía a secessão
da metade oriental russófona com o destino provável de absorção política
pela Rússia. Huntington tinha em mente sobretudo o que se passara no
início da década de 1990 na Crimeia, com todas as movimentações
políticas independentistas que tiveram lugar logo após a independência da
Ucrânia da defunta União Soviética. O cenário que ele considerava mais
provável era, porém, o da integridade territorial e da independência
política da Ucrânia, num contexto geral de boas relações de cooperação
com o vizinho russo.33 Quem opte pela leitura benevolente desta previsão
à luz da violentíssima invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de Fevereiro de
2022 pode sempre alegar que este conflito não tem um fundamento
civilizacional e se deve a factores políticos contingentes. Tal não deixaria
de ser um atestado de irrelevância à tese de Huntington. Por outro lado,
uma previsão falhada não condena à morte uma teoria geopolítica. Em
todo o caso, os comentários de Huntington sobre a Ucrânia relevam a
importância por ele subestimada do detalhe microcivilizacional. Corre-se
sempre o risco de arrecadar representações erradas da realidade.
Um retrato geopolítico do mundo torna-se irremediavelmente
incompleto quando se omitem as «diferenciações internas»34 a cada espaço
cultural. Constatadas estas fracturas internas, torna-se arbitrário indicar
como as grandes fronteiras de conflito são constituídas pelos espaços de
contacto das tais «civilizações», e não as colisões internas aos espaços
civilizacionais, quando não internas a Estados políticos particulares ou até
a regiões dentro desses Estados. Afinal de contas, quantas guerras são
travadas entre «civilizações» e quantas são travadas entre países que
partilham uma mesma «civilização»? A empiria não pode ser expulsa
nestas discussões. E a crítica não é despicienda. Fosse como fosse, o ponto
de Huntington era que não podíamos esperar que a luta pelo
reconhecimento que subjaz ao devir histórico encontre nos valores liberais
ocidentais a sua consumação à escala planetária, e muito menos que a
geopolítica exprima esse suposto consenso ético-político.
Chamado a concretizar as forças de conflito que fariam as civilizações
guerrear-se umas às outras no século XXI e, porventura, nos séculos
posteriores, Huntington deu apenas dois exemplos. Eram exemplos
claramente decalcados do presente que já estava a afirmar-se diante dos
nossos olhos no início da década de 1990. Huntington avançava, então, o
«Ressurgimento Islâmico», não limitado ao fenómeno do
«fundamentalismo islâmico», e que teria uma natureza expansionista e
conflituosa. O conflito estrutural explicar-se-ia essencialmente com a
ameaça neocolonialista do Ocidente e com a reacção adversarial aos
valores ocidentais da liberdade individual, igualdade entre os sexos e
laicidade política e social. E avançava ainda a «Afirmação Asiática»,
correspondendo à ascensão económica e política do Sueste Asiático e da
China, o que comprometeria a hegemonia ocidental com as consequências
que se podem razoavelmente adivinhar numa potência que está em
declínio relativo, e quer travá-lo, e noutra potência que quer
impacientemente conquistar a hegemonia que o adversário teve durante
tanto tempo. Veremos no Capítulo VII como Tucídides inspirou alguns
analistas contemporâneos a conceptualizar esta dinâmica geopolítica.
No entanto, convém salientar, em defesa póstuma de Huntington, que os
nossos tempos – digamos, desde 2001 até 2022 – têm dado amplos
exemplos da relevância da sua tese. A Rússia de Putin, a China antes e
durante a liderança de Xi Jinping, a Índia de Modi, compreendem-se a elas
mesmas em termos «civilizacionais». Justificam crescentemente a sua
ordem interna e a sua política externa na base dessa auto-interpretação. E
exprimem o seu desafio ao domínio secular ocidental segundo a lógica
subjacente ao Choque das Civilizações.
A inclinação mediática e académica para martelar carimbos e colar
etiquetas não perdeu de vista o grande debate entre os proponentes do Fim
da História e os do Choque das Civilizações. Prendeu-se Fukuyama à
chamada escola «liberal» da teoria das relações internacionais e colou-se
Huntington à sua rival de décadas, a escola dita «realista» da política
internacional. Multiplicaram-se as generalizações que associavam a tese
do Fim da História à atracção pela «utopia liberal», consubstanciada na
possibilidade da harmonia democrática entre os povos do mundo. Ou
como o trabalho de Huntington parecia corresponder ao desejo de punição
(intelectual) dessa mesma «utopia liberal» com a proclamação da
persistência do conflito na ordem mundial. Estas categorizações têm os
seus propósitos, mas, em última análise, são menos úteis do que se pensa.
Não só violam a substância intelectual que emerge assim que procedemos
a uma genealogia das duas ideias, como são enganadoras na sua
interpretação. De resto, as categorizações «realista», «idealista» e outras
de idêntico jaez simplificador têm perdido relevância nos últimos anos,
tanto no debate académico como no discurso político.
Mas se as duas teses parecem ser tão antagónicas, embora tenham várias
áreas de convergência e até de sobreposição, como é que podemos
considerar ambas relevantes para compreender a ordem internacional e a
geopolítica do pós-1989? Se Fukuyama profetiza, ou melhor, se
Fukuyama diagnostica o triunfo da democracia liberal e Huntington
aponta para a pluriversalidade, e consequente multipolaridade, da
constituição da ordem internacional, como é que ambos podem ser
frutuosos nas suas análises?
Em primeiro lugar, as teorias de ambos reflectiram e formaram as
perspectivas de análise e de acção para os protagonistas activos e passivos
da política internacional. Governantes, burocratas, representantes,
investidores, militares, de um lado, e opiniões públicas a par de opiniões
publicadas, do outro, tendiam a ver o mundo sob uma destas duas lentes.
E isso só por si é já um facto geopolítico que exige estudo e convida à
meditação. A aceitação da tese de Fukuyama conduzia a uma
representação da geopolítica global como já não acomodando conflitos
entre grandes potências em disputa pela hegemonia, ou pela
criação/manutenção/expansão de áreas regionais de influência exclusiva.
Daqui podiam resultar políticas, ou apoio a políticas alheias, de promoção,
por variadíssimos meios, da democracia no mundo. O objectivo
deliberado dessas políticas seria produzir um mundo homogéneo e, por
isso, pacífico: a pax democratica. A aceitação da tese de Huntington podia
redundar em políticas que vissem com suspeição a promoção da
democracia, convidando antes à coexistência entre regimes e civilizações
diferentes, sem esperar qualquer tipo de convergência entre elas no futuro,
além das bases mínimas de entendimentos pacíficos de cooperação
elementar. Deste ponto de vista, a multipolaridade do mundo não seria um
seu defeito, mas um facto com que se teria de contar e, por assim dizer,
inamovível. Para a perspectiva do Choque das Civilizações, a promoção
da democracia, apostada na inauguração da paz perpétua mundial, poderia
muito bem, e apesar das suas intenções, multiplicar os focos de conflito e
iniciar escaladas dos conflitos abertos em guerras destrutivas e totais. Até
porque cada «civilização» consideraria naturalmente ter o direito de lutar
pela sua própria sobrevivência, esfera de influência e, talvez, expansão.
Nesta interpretação geopolítica, a promoção global da democracia política
e da moral que a sustentava – direitos humanos universais, tolerância, e
por aí adiante – seria uma política concreta de uma civilização particular, a
ocidental, da qual as restantes deveriam proteger-se, assim como de outras
formas de dependência cultural. Para nada dizer da tentação de travar a
guerra final com o fim improvável de acabar com todas as guerras,
tentação gravada nas palavras imortais do conde de Richmond, em
Ricardo III: «Para colhermos esta paz perpétua basta-nos / Esta prova
sangrenta de guerra feroz».35
Em contrapartida, a aceitação destas teses enquanto diagnósticos não as
confirmavam necessariamente como prescrições, nem como fontes de
normatividade. Por outras palavras, ambas as teorias foram também
aceites como pontos de partida políticos para evitar a sua concretização na
realidade geopolítica. De um lado, os Estados não democráticos, que
receavam os efeitos de contágio político como consequência directa do
Fim da História, ou de uma crença generalizada na inevitabilidade de um
Fim da História com um conteúdo demoliberal hegemónico, prepararam a
protecção e fortalecimento dos seus regimes com graus variáveis de
sucesso. Outros interromperam e inverteram mudanças internas que
poderiam deslizar para uma liberalização política indesejável, sobretudo
alimentando nos cidadãos a desejabilidade e/ou a necessidade histórica da
democracia política e do regime de liberdades individuais.
Do outro lado, a tese do Choque das Civilizações forjou um pesadelo de
guerras totais, com armamentos nucleares em certos casos, que
resultariam de rigidezes normativas e culturais inegociáveis para as partes,
o que poderia desembocar em guerras de extermínio envolvendo centenas
de milhões de pessoas. O choque de civilizações precisava de ser evitado
iniciando imediatamente um diálogo de civilizações. Depois do 11 de
Setembro, o então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan,
fundou, em 2005, uma iniciativa sob a égide da ONU com o nome Aliança
das Civilizações. No fundo, seria um fórum solene propiciatório do
diálogo entre as várias civilizações, embora na realidade a criação se
tivesse devido sobretudo à necessidade de facilitar a comunicação entre o
mundo árabe e os EUA no contexto da guerra no Iraque e no Afeganistão.
Em última análise, o devir histórico considerado por Fukuyama era
posto em causa pelos factos apenas nos casos como os espasmos –
terroristas ou institucionalizados – do islamismo radical tradicionalista,
que rejeita integralmente os valores da modernidade, ou por ideologias
«eurasiáticas» do sacrifício e do sofrimento colectivos em nome da
sobrevivência histórica de uma especificidade cultural, como viceja
nalguns círculos próximos do poder político russo nas primeiras décadas
do século XXI. Porém, é preciso perguntar até que ponto essas instâncias
inquestionavelmente pertinentes conseguem contrariar um devir histórico
de afirmação do reconhecimento igual dos seres humanos uns pelos
outros, num contexto ético formado pela lógica dos direitos individuais, e
de prioridade política central no crescimento económico, alargamento das
possibilidades de consumo da população e consideração essencial pela
vida comum. Afinal de contas, Fukuyama, quando expandiu o seu artigo
inicial para a versão em livro, acrescentou-lhe uma reflexão não
despicienda sobre o triunfo inerente do último homem.
Esta era uma referência evidente a Nietzsche, que anunciara o último
homem como o tipo humano formado pelo livre e extremo
desenvolvimento da modernidade. Nela, Nietzsche incluía a famosa e
prematura «morte de Deus», mas também o triunfo da ideia de igualdade
individual e de liberdade que lhe estava estreitamente associada. Por sua
vez, os valores da liberdade e da igualdade do último homem eram
inseparáveis do propósito omnipresente e inesgotável da segurança
corporal e do conforto material, numa espécie de epicurismo para o povo.
A doutrina do último homem era explicitamente antiburguesa no seu
conteúdo e orientação política. O bourgeois condenado por Rousseau
aparecia em traços não muito diferentes dos do último homem desprezado
pelo profeta Zaratustra.
Decaídos das suas possibilidades, estes últimos homens viviam para «o
seu pequeno prazer do dia e o seu pequeno prazer da noite, mas
preocupam-se com a saúde».36 O último homem rendera-se ao niilismo que
provinha de se prescindir daquilo que permite resistir ao niilismo. Em
termos políticos, e esse é o ponto a destacar das observações de Fukuyama
a este respeito, o último homem afastava-se de uma vez por todas das lutas
de vida ou morte, o que, por um lado, curava-o dos fanatismos políticos e
religiosos que sangraram a Humanidade, mas, por outro lado, separava-o
da vitalidade que historicamente fizera valorizar a liberdade e os frutos do
progresso. Nas últimas páginas do seu livro, Fukuyama colocava a
questão reaberta pelo fenómeno do último homem:
A vida do último homem é uma vida de segurança física e de
abundância material, precisamente aquilo que os políticos ocidentais
gostam de prometer aos seus eleitorados. Será realmente isto que
esteve em causa na história humana nestes últimos milénios? Devemos
recear que seremos felizes e satisfeitos com a nossa situação, já não
sendo seres humanos mas animais do género homo sapiens? Ou o
perigo é que estaremos felizes num plano, mas permaneceremos
insatisfeitos connosco próprios noutro plano, e por isso prontos para
arrastar o mundo outra vez para a história com todas as suas guerras,
injustiça e revolução?37
Nesta medida, a ascensão da China e da Índia, o despontar do
crescimento económico na África Subsariana, e sobretudo as aspirações
comuns de uma grande parte da população mundial independentemente da
maior ou menor democraticidade institucional do regime sob o qual
vivem, reflectem a tese de Fukuyama mais do que a refutam. Trata-se de
vias para a modernidade e para a tardo-modernidade por meios políticos
institucionais diferentes dos que foram adoptados no Ocidente nos últimos
setenta ou cem anos. Mas não colocam em alternativa um modelo político-
económico essencialmente diferente de rejeição dos valores dessa
modernidade ética, moral e, em muitos aspectos, política, como no final
do século XX-início do século XXI alguns tentaram artilhar no mundo
islâmico. Para Fukuyama, o capitalismo democrático era a forma político-
económica definitiva, porque nenhuma outra corresponderia mais
satisfatoriamente à consumação da dialéctica senhor-escravo ou à
expressão da luta pelo reconhecimento levada a cabo por essas duas
figuras. Contudo, as vias para a modernização das sociedades chinesa,
vietnamita ou indiana neste sentido não se desviaram da expressão dessa
mesma luta pelo reconhecimento. É nessa medida que a sua ascensão no
mundo nas últimas três décadas não desmentiria cabalmente a tese de
Fukuyama, desde que a ênfase fosse colocada na modernização e menos
na democratização. O Fim da História significava certamente o
desaparecimento da controvérsia ideológica como fonte do conflito
internacional. Mas não significava que desaparecessem as guerras e os
conflitos com motivos não-ideológicos de toda a espécie. Até porque o
vencedor de uma dessas guerras do Fim da História não teria para impor
ao vencido um modelo político-económico essencialmente diferente
daquele que prevalecesse.
Mas contra Fukuyama pode-se alegar que a ascensão do modelo chinês
do crescimento económico com integração na economia mundial sem
democracia liberal, e coadjuvado pela inspiração mais ou menos concreta
de uma tradição moral e intelectual especificamente chinesa, e, por isso,
não-ocidental, alternativa à ocidental, altera os dados do problema. Se não
de modo essencial, pelo menos a ponto de fazer reconsiderar as fontes do
conflito político e internacional. Para muitos povos do mundo, sobretudo
fora do espaço ocidental, parece haver agora um modelo de modernização
das suas sociedades alternativo ao modelo euro-americano. Seria talvez
excesso de subtileza supor que nem suficiente homogeneidade haveria
entre o regime político-económico americano e o europeu, o que
contradiria a própria ideia de Ocidente. Excluída essa hipótese, resta uma
muito plausível, a saber, que o nacionalismo autoritário de
«rejuvenescimento», ou de modernização rápida, com ordem interna
disciplinada e afirmação externa desse poder, seria uma alternativa
ideológica-cultural ao modelo ocidental. Se, além da retórica oficial, for
realmente verdade – o que, é preciso sublinhar, está ainda por demonstrar
– que a via chinesa se faz sem participar dos valores ocidentais, e se tiver
a criatividade suficiente para uma apropriação completamente distinta das
estruturas ocidentais que necessariamente adquire, então há que admitir
esta segunda hipótese. E, nessa medida muito circunscrita, Huntington
levaria a melhor sobre Fukuyama.
Na nevrálgica década de 1990, Fukuyama e Huntington questionaram a
capacidade de expansão global de uma extraordinária invenção da Europa:
um sistema político-económico. O capitalismo de mercado, ou a
democracia liberal assente numa economia social de mercado, reuniu o
mundo inteiro sob a sua égide, alterando radicalmente a geopolítica
tradicional, como profetizava Fukuyama? Ou havia limites severos, sob a
forma da incompatibilidade civilizacional, à passagem desse sistema além
da fronteira ocidental, como alertava Huntington? Em suma, a democracia
e o capitalismo eram os grandes elementos destas reflexões. São eles os
ingredientes exclusivos da modernização especificamente ocidental. É
para ambos que temos agora de nos virar.
25
G. W. F. Hegel, Outlines of the Philosophy of Right, (trad. inglesa:
Stephen Houlgate), Oxford, Oxford University Press, 2008, Prefácio, p. 21.
26
Branko Milanović, Capitalism, Alone. The Future of the System that
Rules the World, Cambridge, Harvard University Press, 2019, p. 2.
27
Carta de Hegel a Niethammer, 13 de Outubro de 1806.
28
Alexandre Kojève, Introduction to the Reading of Hegel. Lectures on the
Phenomenology of Spirit, Raymond Queneau (ed.), (trad. inglesa) Ithaca,
Cornell University Press, 1969, pp. 158-59, n. 6.
29
Kojève, pp. 159-61, nota à segunda edição.
30
Kojève, pp. 161-62, nota à segunda edição.
31
Alfred North Whitehead, Adventures of Ideas, Nova Iorque, The Free
Press, 1967, p. 244.
32
Lee Smith, The Strong Horse. Power, Politics, and the Clash of Arab
Civilizations, Nova Iorque, Doubleday, 2010.
33
Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of
World Order, Nova Iorque, Simon and Schuster, 1996, edição epub, pp.
382-89.
34
Dieter Senghaas, The Clash within Civilizations. Coming to terms with
cultural conflicts, (trad. inglesa), Londres, Routledge, 2002.
35
William Shakespeare, Ricardo III, (trad. portuguesa: Rui Carvalho
Homem), Lisboa, Relógio d’Água, 2015, 5.2.16-17.
36
Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, (trad. portuguesa: Paulo
Osório de Castro), Lisboa, Relógio d’Água, 1997, Parte I, «Prólogo de
Zaratustra», 5.
37
Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, Nova Iorque,
The Free Press, 1992, p. 312.
III
AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES
Paris, Fevereiro de 1848
Capitalismo e Democracia
Quando examinamos o mundo contemporâneo e queremos destilar as
ideias e as estruturas que o formam na sua diferença relativamente a todas
as experiências históricas do passado, podemos recorrer a muitos
elementos diferentes. Mas não andaremos longe da verdade se dissermos
que o que diferencia o nosso mundo tardo-moderno das experiências
históricas do passado reside numa palavra que diz tudo e diz nada: a
modernização. É mais do que certo que esta resposta não é satisfatória,
porque ainda precisamos de saber em que consiste a dita modernização
que nos diferencia dos nossos antepassados. Dando um novo passo,
teremos de dizer que ela procede de dois grandes elementos: a vaga de
democratização do mundo, entendida no seu sentido mais amplo; e a
forma económica moderna que ganhou nomes lisonjeadores ou pejorativos
conforme o lado político da barricada – a economia de mercado, a
industrialização, o sistema de liberdade natural, a sociedade comercial, o
capitalismo.
Ambas foram frutos do século XIX. Não é fácil determinar com
exactidão quando se iniciaram nas suas formas maduras, tarefa que é
provavelmente incompatível com a natureza do processo histórico que
quer a democratização quer a forma económica moderna têm. Não têm
datas exactas de nascimento. Mas isso não quer dizer que existissem desde
tempos imemoriais, nem que foram muito gradualmente despontando.
Independentemente das suas causas, o seu surgimento no século XIX teve a
feição de uma revolução – ou de duas revoluções em simultâneo. Uma na
vida política, outra na vida económica, se é que fazem sequer sentido
fronteiras que separam como gavetas estanques a existência individual e
colectiva. Vimos como Fukuyama interpretou os acontecimentos
geopolíticos do final do século XX à luz da articulação dos dois
movimentos – o da democratização e o da consolidação da forma
económica moderna. Só no final da História se tornava possível
compreender que se tratava, afinal de contas, de um mesmo movimento
histórico, invalidando a leitura de uma forma política que só
acidentalmente se cruzava com um tipo de economia particular.
Tal era a visão de Fukuyama. Que tanto a democratização como a
consolidação da forma económica moderna surgiram revolucionariamente,
por assim dizer, podemos dizer com alguma segurança pelos efeitos
radicalmente transformadores que elas não pararam de gerar desde então.
E que foram dramaticamente súbitas também o sabemos, porque temos
testemunhas dessa irrupção. As testemunhas mais eloquentes e profundas
de ambas as revoluções foram dois contemporâneos, um francês (mais
velho) e outro alemão (mais jovem). Alexis de Tocqueville, um nobre
conservador reconciliado com a modernidade e com muitos aspectos da
revolução democrática, testemunhou a chegada dessa revolução e foi o seu
mais profundo profeta. Karl Marx, um intelectual radical, agitador
incansável das massas, e projectista político de primeira água,
testemunhou o fulgor revolucionário da forma económica moderna, ou,
como ele lhe chamava, do capitalismo. Se dúvidas restarem de que foram
eles os mais eloquentes e profundos, não é impossível reunir o consenso
de que foram os primeiros a compreender ambas as revoluções em (quase)
toda a sua extensão. Entre os filósofos políticos e os economistas
oitocentistas anteriores a Tocqueville e a Marx, encontramos muitos que
se mantiveram presos ao mundo político e económico que lhes estava a
fugir debaixo dos pés sem que o compreendessem verdadeiramente.
Encontramos outros que salientaram aspectos novos de ambas as
revoluções, mas sem quererem ou conseguirem articulá-los numa análise
sistemática da extensão dessas revoluções. E é por isso que precisamos de
Tocqueville e de Marx como testemunhas desse grande momento
geopolítico. Momento a partir do qual o mundo humano e físico foi
radicalmente reconstruído.
Não houve ruptura no mundo como aquela que foi concretizada no
século XIX. Houve muitas transformações na História da Europa, e ainda
mais na História da Humanidade. Mas o que o século XIX trouxe não teve
paralelo com nenhum acontecimento, nem com nenhuma sucessão de
acontecimentos anteriores. Nada do que se passou antes no mundo teve a
mesma profundidade de impacto desde logo na vida material de todas as
pessoas. Podemos resumir essa ruptura em dois aspectos essenciais com as
designações de Democratização do Mundo e Industrialização do Mundo.
O século XIX foi o século das revoluções não tanto porque herdou a
grande revolução política – a Francesa –, nem por ter conhecido
sucessivas vagas revolucionárias transcontinentais com barricadas, sangue
e projectos políticos de todo o tipo nas capitais europeias. Foi o século das
revoluções porque foi movido por duas grandes revoluções: a Democrática
e a Capitalista. Foi também o século da Revolução Nacionalista –
preparada no final do século XVIII – e que seria um factor geopolítico de
primeira ordem. Mas talvez se possa dizer que a Revolução Nacional, não
se confundindo com a Revolução Democrática nem com a Revolução
Industrial, foi certamente propiciada com a combinação eufórica de uma
com a outra. Não precisamos de debater aqui a tese altamente discutível
de que o nacionalismo foi um produto directo da industrialização.38 Basta
dizer o seguinte: o nacionalismo que irrompeu no século XIX não foi o
esforço político por um simples «reconhecimento cultural». Foi, sim, a
afirmação do princípio político da soberania da nação, e esse princípio
tinha um fundamento indiscutivelmente democrático.39 Por exemplo, o
Império Austríaco no século XIX «reconhecia» as «especificidades
culturais» das suas «minorias». Reconhecia a imensa diversidade
religiosa, linguística, folclórica e consuetudinária dentro das suas
fronteiras. Reconhecia até os direitos dinásticos das nobrezas terratenentes
e os privilégios dos cleros locais. O que não reconhecia era o direito de as
suas nacionalidades constituírem comunidades políticas independentes.
Democratização e industrialização: ambas as designações podem ser
enganadoras ou unilaterais. Neste contexto, por democratização do mundo
não se deve entender a conversão de cada Estado do mundo à democracia
política, liberal, representativa, constitucional, como temos hoje na União
Europeia ou na América do Norte. A democratização tal como foi
atempadamente assinalada por Tocqueville refere um fenómeno mais
amplo. Poucos parágrafos depois da abertura da sua obra-prima,
Tocqueville escreveu: «Uma grande revolução democrática está a ocorrer
entre nós; todos a vêem, mas nem todos a vêem da mesma maneira.»40 E
numa formulação simples, escrita numa carta, resumiu a ligação entre uma
revolução e outra: «(...) o mundo vira-se para a indústria porque corre para
o bem-estar. Parece-me que, independentemente do que seja feito, as
paixões industriais vão tornar-se as mais fortes de todas (...), [as] mais
vivas e as mais íntimas do coração humano.»41
Por outro lado, a industrialização do mundo, ou a revolução capitalista,
terão de servir como expressões imprecisas para abranger o extraordinário
fenómeno – e até então desconhecido da humanidade – daquilo a que
chamamos crescimento económico. Falo do crescimento económico tal
como o temos experimentado até hoje: revolucionário, criativo, destruidor
do que é velho, avassalador – a destruição criativa, para mencionar a
expressão de Joseph Schumpeter. Isto é, o crescimento económico como
produto de uma forma económica moderna particular. A Revolução
Industrial é apenas uma expressão retrospectiva para designar um
processo imensamente complexo e que tem múltiplas dimensões. Já
capitalismo é um neologismo de origem francesa com conotações de
repúdio e que sugere o capital como elemento nuclear da forma
económica moderna, algo que pode ser sujeito a dezenas de críticas
devastadoras. Seja como for, a expressão sugere imediatamente à nossa
consciência a novidade de uma forma económica, isto é, um novel modo
de organizar o domínio económico com consequências de tal maneira
prodigiosas que transformaram a vida da Humanidade nos seus pontos
mais superficiais e mais profundos. Portanto, a chegada e o triunfo da
democracia – uma forma política não exactamente moderna, mas que
assumiria uma variante especificamente moderna – e a chegada e o triunfo
do capitalismo – uma forma económica plenamente moderna – foram as
Grandes Transformações.
A França, a América e a Revolução de 1848
É sensivelmente a meio do século XIX que a força histórica da
democratização começa a ser assinalada e trazida à consciência europeia.
E também a meio do século XIX, a força histórica da industrialização, ou
do crescimento económico, é pela primeira vez trazida à consciência
europeia. Foram duas testemunhas que primeiro, antes de todos os outros,
deram esse sinal: Tocqueville, testemunha da chegada triunfante da
democracia; Marx, testemunha do poder global e irresistível do
capitalismo, não obstante ser ele um profeta do comunismo.
Nos primeiros dias do ano de 1848 havia uma tremenda tensão
revolucionária um pouco por toda a Europa. A crise económica do ano
anterior e a correspondente carestia de bens alimentares tinham semeado o
descontentamento pelo continente. As semanas seguintes iriam revelar a
força e o contágio transcontinental de uma revolução que foi dos
trabalhadores, ou dos novos operários, gerados pela forma económica
moderna; foi dos camponeses, a grande massa pobre de milénios no
continente europeu; foi das populações urbanas, sobretudo das capitais,
que conheciam neste período um crescimento alucinante; foi das classes
médias ditas burguesas; foi dos intelectuais. Foi de todos estes grupos, o
que não quer dizer que todos tivessem os mesmos propósitos, nem que a
revolução não tivesse desencadeado guerras abertas entre eles. Em Paris,
nas chamadas Jornadas de Junho, 100 mil combatentes confrontaram-se
nas barricadas quando a monarquia já tinha caído cinco meses antes. A
revolução de 1848 na Europa foi nacionalista, liberal, democrática e,
nalguns casos, «social» ou até socialista. Não por acaso, Marx sentiu-se
suficientemente confiante para proclamar que o «espectro do comunismo»
pairava sobre a Europa.
Quando veio, a revolução percorreu e abalou todo o continente. O que
sobrara do Ancien Régime depois das ondas de choque da Revolução
Francesa parecia estar a mais – como que empecilhos históricos iníquos.
O ano de 1848 era, por assim dizer, a continuação da Revolução Francesa.
Uma espécie de segunda vaga depois de se constatar que a primeira não
limpara por completo os destroços do passado aristocrático, monárquico,
tradicionalista e clerical. Pelo menos, muitos dos seus protagonistas e
muitos dos populares na rua assim pensaram num assomo nostálgico pela
mãe de todas as revoluções. As próprias elites privilegiadas pelo status
quo perderam a confiança nelas mesmas. Deixaram de acreditar na
inabalável certeza da sua superioridade. Muitos dos seus membros
juntaram-se aos movimentos revolucionários nas ruas – alguns por
oportunismo, percebendo que não conseguiriam suster o seu ímpeto
destrutivo, outros por convicção, aderindo livremente à bondade dos seus
ideais.
O ano de 1848 não terminaria com o mesmo ardor revolucionário com
que começara. Pelo contrário, parecia a muitos que as forças da reacção
tinham acabado por triunfar e resgataram a sua própria sobrevivência das
mandíbulas do progresso. Afinal de contas, nenhuma casa real europeia
perderia o trono, com a excepção da casa de Orleães em França42, ela
própria levada ao poder dezoito anos antes na sequência de jornadas
revolucionárias que tinham derrubado os Bourbons e instaurado a
Monarquia de Julho. Mas, na realidade, ainda que muitos dos movimentos
políticos revolucionários e nacionalistas tivessem sido derrotados no
Outono de 1848, a Europa já não era a mesma. Em parte, pela memória
colectiva de jornadas revolucionárias épicas e trágicas que sempre
acalentara a esperança da revolução bem-sucedida num futuro próximo. E
sobretudo porque 1848 vira juntar a força de duas grandes revoluções que
estavam a transformar a Europa, e cem anos depois transformariam o resto
do mundo, fazendo dele aquilo que é ainda hoje. Pelas mãos da
democracia e do capitalismo, a Europa estava a mudar ao ponto de se
tornar irreconhecível. Mais do que ninguém, Tocqueville e Marx
diagnosticaram essas transformações sem subestimar a sua profundidade,
a sua irreversibilidade, as suas promessas e os seus perigos. Referi que
1848 foi também a revolução dos intelectuais, título de um livro
admirável sobre este ano. Os dois intelectuais que mencionei não foram
apenas espectadores distantes dos acontecimentos. Pelo contrário. Vamos
ver os dois envolvidos directamente nos acontecimentos revolucionários,
como actores da História, um a querer domá-los, o outro a querer
hiperbolizá-los. E, curiosamente, estiveram durante algumas semanas na
mesma cidade. Quem sabe se não se cruzaram nos passeios de Paris
ignorantes da fisionomia um do outro?
Em 1848, Tocqueville estava interessado em constitucionalizar o
movimento revolucionário para o manter dentro de carris simultaneamente
democráticos e moderados. Ao testemunhar a radicalização da retórica
pública nos primeiros meses da revolução de 1848, Tocqueville foi levado
a estimar ainda mais a experiência da democracia americana, que
combinava pacificamente os valores da igualdade com a ordem, e as suas
instituições indispensáveis. A liberdade humana, o valor que ele
genuinamente amava, não podia sobreviver se os franceses não
compreendessem que a democracia funcional supunha uma certa arte
constitucional, como o equilíbrio dos poderes políticos, a liberdade de
imprensa, o bicameralismo e a descentralização territorial do poder. A
obsessão com a unidade da soberania popular, típica da democracia
francesa desde os tempos da Convenção revolucionária, e em larga
medida ignorada pelos americanos, colocava obstáculos terríveis à
estabilização da revolução de 1848 num ponto de moderação política.
Assim, para Tocqueville, a democracia revelava-se na sua complexidade
como um regime capaz de se transfigurar numa ordem política da
liberdade, ou na desordem despótica da igualdade. Um pouco à
semelhança da imagem do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, personagens célebres
do escritor Robert Louis Stevenson. A mesma pessoa podia ser o epítome
da educação civilizada, ou um monstro assassino afastado de todos os
sentimentos humanos. Trata-se de uma reflexão antiga que remonta a
Aristóteles, e cujos ecos hoje ainda escutamos nas discussões sobre as
democracias liberais e iliberais, constitucionais e populistas.
A América aparecia a Tocqueville como uma referência e um possível
guia da constitucionalização desejável da democracia francesa. Não que
lhe parecesse viável a imitação pura e simples do modelo constitucional
americano. Mas as carências francesas e as desorientações dos seus
revolucionários tornavam-se muito mais transparentes à luz da experiência
americana. Por outro lado, e do ponto de vista mais fundamental, a
América era, de facto, a primeira experiência estável e ordeira da
democracia moderna. A América era a democracia moderna. A Atenas da
democracia antiga, com a multidão dos seus escravos e o grupo restrito de
cidadãos que participava activamente na política, não passava de uma
«república aristocrática em que todos os nobres tinha um direito igual a
governar».43 E foi conhecendo a América que Tocqueville estudou e
meditou na democracia como grande força histórica irresistível e
transformadora da geopolítica do futuro.
Tocqueville e o seu amigo Gustave de Beaumont partiram para a
América a 2 de Abril de 1831 e por lá ficaram quase um ano. A revolução
de 1830, a instauração da Monarquia de Julho e os novos realinhamentos
políticos tornaram mais atraente a perspectiva de sair de França, mas em
paz com as novas autoridades. Pretextaram que os sistemas penitenciários
americanos eram objectos de interesse para as reformas a fazer em França.
Tocqueville tinha, na realidade, uma curiosidade insatisfeita por saber
mais acerca daquela jovem república democrática. Veio de lá com as notas
e os apontamentos para aquele que foi considerado «o melhor livro jamais
escrito sobre a democracia e o melhor livro jamais escrito sobre a
América».44 Em 1838, três anos depois de publicar o primeiro volume do
seu livro Da Democracia na América, o próprio Tocqueville confessaria
que por vezes sentia que não voltaria a encontrar um tema tão nobre como
o da novel democracia americana e, em conformidade, mais valia não
voltar a pegar na pena.45 Beaumont também aproveitaria as viagens pela
América para escrever um livro, uma obra ficcionada sobre a escravatura
no Sul do país.
Foi com base nesta aprendizagem americana que Tocqueville levou por
diante a sua participação nos debates políticos franceses, por vezes muito
tensos, no ano de 1848. Não nos importa aqui averbar as derrotas que
Tocqueville acumulou nesse ano. Como ele receava, a violência do que
estava para vir levaria tudo à sua frente. Os ventos revolucionários de
1848 apanharam Tocqueville na Câmara de Deputados da moribunda
Monarquia de Julho, em Paris. Havia vários anos que Tocqueville era
deputado. Desde 1839, para ser mais exacto. Tinha sido reeleito no Verão
de 1846. A 27 de Janeiro de 1848, Tocqueville tomou a palavra na Câmara
alertando para a fermentação revolucionária que a monarquia de Orleães
fazia crescer. Profético, Tocqueville apontava para o «estado dos espíritos
em França», que devia «alarmar e afligir» todos, a começar pela Coroa.
Confessava um «certo receio pelo futuro». Vislumbrava no país o
«instinto da instabilidade», esse «sentimento precursor das revoluções».
Tocqueville queria fazer despertar o Governo e os restantes deputados
para não se iludirem com a tranquilidade dos factos, ou por as ruas ainda
não estarem em polvorosa. No seu espírito, a França e as suas classes
sociais já estavam em revolta. A classe trabalhadora ainda não se
manifestava nas ruas, mas já sentia arder no peito as paixões políticas que
eram «sociais» na sua natureza. Isto é, já não visavam a crítica desta ou
daquela lei, deste ou daquele ministro. Visavam o derrube das «bases
sobre as quais a própria sociedade repousa hoje». Numa palavra, dizia
Tocqueville, a classe política naquele momento «dorme sobre um vulcão»,
o «solo treme de novo na Europa» e a «tempestade está no horizonte».46
Quando, a 22 de Fevereiro, a oposição convocou um grande banquete-
comício, as autoridades entraram em pânico e proibiram-no. Os protestos
subsequentes converteram-se rapidamente numa insurreição aberta.
Fizeram-se barricadas em Paris e a monarquia vacilou. Dois dias depois, a
República era proclamada no magnífico Hôtel de Ville parisiense, mesmo
junto ao Sena. A república precisava de uma constituição, e foram
convocadas eleições sem demoras para eleger uma assembleia
constituinte. Tocqueville foi eleito pelo círculo da Mancha, na sua
Normandia natal. Em Maio começavam os trabalhos com um Tocqueville
deputado constituinte que se fez escolher membro da comissão
encarregada de redigir o projecto da Constituição, tarefa que partilharia
com o seu inseparável amigo Gustave de Beaumont. No ano seguinte, já
com Louis-Napoléon Bonaparte – sobrinho do imperador malogrado em
Santa Helena – eleito presidente da República, Tocqueville tornava-se
deputado da Assembleia Legislativa. E em Junho era nomeado ministro
dos Negócios Estrangeiros. Assim prosseguiu durante todo o Verão, até
que o crescentemente autoritário Louis-Napoléon demitiu todo o Governo.
A experiência republicana terminava aí. Um novo e fugaz império francês
desenhava-se no horizonte apenas para se desfazer menos de vinte anos
depois no desastre de Sedan.
O Poder do Povo
Para Tocqueville, a democracia era um regime político, uma condição
social e uma força histórica. Era um regime político no sentido clássico
do conceito. Isto é, os princípios éticos, políticos, constitucionais e
simbólicos contidos num sistema de governo eram os elementos mais
decisivos na determinação do carácter de uma comunidade política. O
regime político configurava um tipo humano próprio. Assim, o regime
democrático não estabelecia apenas umas instituições e derrubava outras,
como se houvesse um cordão sanitário entre, de um lado, a política e, do
outro, a «sociedade» e a vida «privada» dos indivíduos. A democracia
criava um ser humano determinado pelos seus valores, princípios, práticas
e movimentos: o ser humano democrático, distinto do ser humano
aristocrático, por exemplo. Por conseguinte, o regime político determinava
a «sociedade» e a vida «privada» de toda a gente sob a sua jurisdição. Tal
como havia uma sociedade democrática e uma sociedade aristocrática,
também havia uma vida «privada» democrática e uma vida «privada»
aristocrática, uma família democrática e uma família aristocrática,
costumes democráticos e costumes aristocráticos, lugares-comuns
democráticos e lugares-comuns aristocráticos, uma arte democrática e
uma arte aristocrática, e por aí adiante. Na ciência política de Tocqueville,
o regime político era uma totalidade viva em movimento. A democracia
era, para ele, a nova totalidade viva em movimento, actuando sobre a
humanidade do homem através de um trabalho constante de
transformação.
Enquanto regime político, a democracia tinha um dogma central – a
soberania do povo – e um valor político central em torno do qual
orbitavam outros moldados por si – a igualdade. Era também uma
condição social. Ou melhor, era um regime político atravessado ou
dominado por uma condição social. Essa condição era evidentemente de
igualdade. Dito de outra maneira, a democracia era a igualdade de
condições. A expressão designava o contrário da sociedade estratificada
que Tocqueville identificaria com a aristocracia do passado. Neste
contexto, a igualdade não dizia respeito à redução das disparidades de
rendimentos entre os indivíduos ou a distribuição de propriedade em
partes iguais por todos. A igualdade democrática que a América revelava
era sobretudo a negação da hierarquia social, em que uns eram superiores
e outros inferiores. A igualdade democrática era, pois, compatível com as
distinções que as riquezas e a educação criavam na sociedade.
Institucionalizava a recusa de um esquema social solenemente consagrado
de superioridades/inferioridades sociais. As desigualdades que
permaneciam sob tolerância vigiada deviam a sua sobrevivência ao facto
de ser essencialmente provisórias, jamais inamovíveis. A sociedade
democrática moderna era, portanto, essencialmente caracterizada pela
preponderância das classes médias. Mais particularmente em França,
Tocqueville dizia que a classe média passara a governar a partir de 1830,
quando os Bourbons foram substituídos por uma monarquia de pendor
liberal, liderada pela casa de Luís Filipe de Orleães. A Monarquia de Julho
era a forma política do triunfo das classes médias. Em todo o período que
separou 1830 da revolução de 1848, Tocqueville explicava, o «espírito
particular da classe média tornou-se o espírito geral do governo». Como
uma transformação política desta envergadura não deixava o seu trabalho
a meio, o espírito da classe média passou a determinar a política interna e
a política externa também. E que espírito era esse? Era...
(...) o espírito activo, industrioso, frequentemente desonesto, em geral
arrumado, por vezes temerário por vaidade e por egoísmo, tímido por
temperamento, moderado em todas as coisas, excepto no desejo do
bem-estar, e medíocre; espírito que, misturado com o do povo ou com
o da aristocracia, pode fazer maravilhas, mas que sozinho nunca
produzirá mais do que um governo sem virtude e sem grandeza.47
Mas este fenómeno de equalização social não era francês. Era
democrático e extensível a todo o mundo no futuro. Estava aí uma das
ideias que Tocqueville retirara da filosofia da história de François Guizot.
Outro problema político que Tocqueville extraiu de Guizot e dos
Doctrinaires foi o que dizia respeito à relação entre a liberdade e a
descentralização do poder. O espírito do governo democrático conduzia à
centralização do poder que se cristalizava na centralização administrativa,
ao passo que era da natureza do governo aristocrático a descentralização,
difundindo a autoridade das nobrezas locais. A igualdade deslizava para
uma certa uniformidade, que se estendia pelo território – a uniformidade
tanto das normas como dos costumes, das mentalidades e das práticas.
Observando a América com atenção, e num exercício de sistemática
comparação com a situação europeia, em particular com a francesa,
Tocqueville descobriu no conteúdo social americano um efeito
especificamente democrático: o da combinação da igualdade de condições
com o individualismo.
Finalmente, a democracia era para Tocqueville uma força histórica. Isto
é, a História da Humanidade devia ser interpretada à luz da emergência
desta grande novidade e, em larga medida, o futuro estaria condicionado
por este facto – o facto histórico fundamental do seu tempo. O espírito
democrático, sendo um espírito novo, era o produto de uma transformação
histórica. Ora, como a expressão indicava, esta transformação histórica
era, como todas as outras grandes transformações, um fenómeno do
espírito humano. A democracia moderna americana era o resultado de
transformações espirituais – de revoluções espirituais. O regime político
democrático e a sociedade que lhe correspondia decorriam de uma
revolução nas ideias, nos sentimentos, nas mentalidades, nos costumes,
nos dogmas religiosos, e por aí adiante. Ainda que não a determinasse
unilateralmente, o espírito dominava a realidade da vida material. Não a
determinava unilateralmente, porque Tocqueville aprendera com homens
como Montesquieu que o espírito também reagia, respondia e se adaptava
aos dados materiais da vida humana. Havia uma relação mais dialéctica do
que determinística.
A utilidade da experiência americana residia aqui: mostrava a ideia
democrática e a revolução democrática na sociedade levada até aos seus
«limites naturais». No futuro era provável que todo o mundo fosse como a
América, com esta qualificação decisiva: a América revelava ao mundo a
variante americana da revolução democrática. As condições materiais
americanas, a acidentalidade da história americana, a casualidade da
combinação americana de factores geográficos, económicos, sociais e
religiosos, davam conta de uma particularidade que possivelmente seria
irrepetível noutras partes do mundo. Mas o que havia de democrático na
democracia americana era agora revelado a toda a Humanidade pela
História. Assim, a revolução democrática começara antes de 1789 – e
antes de 1776 –, e fora na sua origem mais europeia do que francesa.
Porém, era preciso explicar as grandes mudanças, as grandes
revoluções. Para serem dignas deste nome, não podiam esgotar-se na
acidentalidade deste ou daquele acontecimento contingente. A tomada da
Bastilha ou a execução de Luís XVI não eram a revolução propriamente
dita, mas a adaptação política francesa à revolução democrática em curso.
Era preciso, pois, descer às mudanças estruturais. E a estrutura era
sobretudo espiritual. Por sua vez, as transformações históricas como a
emergência da democracia prosseguiriam os processos de mudança na
vida material e nas ramificações da vida do espírito. Destarte, a irrupção
da democracia na História afectava tudo. Criava, por assim dizer, uma
humanidade distinta. E, por maioria de razão, criava um novo mundo. Foi
assim que Tocqueville literalmente descreveu a situação histórica do seu
tempo: «um mundo inteiramente novo».48 Tão novo que precisaríamos de
uma ciência política igualmente nova para o compreender.
A era democrática gerava um sentimento novo – o sentimento da
semelhança humana. Este era mais subtil do que a igualdade pura e
simples. Semelhança não era identidade. Mas era reconhecimento de uma
certa igualdade. Não devolvia todos ao mesmíssimo patamar, mas
neutralizava patamares superiores e inferiores intoleráveis. Para encontrar
essa semelhança universal, a humanidade precisava de anular muito do
que era consequência da sua humanidade, e que individuava e
diferenciava, para se concentrar na humanidade como essência. Não é que
a sensibilidade democrática tivesse uma vocação filosófica na busca de
essências e substâncias. Tratava-se antes de isolar e elevar uma essência
do humano que desvalorizava o que era acidental a essa essência. O
reconhecimento universal do ser humano por cada ser humano requeria
que se limpasse do caminho o que obstruía esse reconhecimento, o que
ofuscava o plano comum desse reconhecimento. O sentimento da
semelhança naquilo que todos temos em comum – inevitavelmente,
nalgum tipo de mínimo denominador comum – era o que possibilitava
esse reconhecimento. Mas isso implicava que a democracia, sendo o
regime dos seres semelhantes que viviam num plano de igualdade, já
anulara as diferenças pré-democráticas que existiam noutros tempos,
como, por exemplo, em sociedades aristocráticas, onde o outro era
genuinamente um outro diferente de mim. Como é que a democracia
anulava as diferenças? O homem democrático recusava-se a ver o outro
como diferente. Via-o sempre como semelhante. As diferenças que lhe
apareciam eram ignoradas, relativizadas, neutralizadas, abstraídas.49
A democracia como força histórica era, segundo Tocqueville, irresistível
e tendencialmente universalizável no planeta. Nas consequências práticas
era semelhante ao diagnóstico do capitalismo feito por Marx como uma
força histórica irresistível e que se espalharia por toda a parte. Como um
século e meio depois Fukuyama se lembraria de afirmar, isto queria dizer
que a democracia não teria outro regime que lhe pudesse fazer frente no
espírito humano. Nem haveria outro conjunto de valores e sentimentos
que pudesse desafiar o conjunto de valores e sentimentos que gravitavam
em torno da igualdade. Porquanto qualquer outro conjunto de valores
alternativo ao democrático gravitaria, como sucedeu no passado, em torno
da desigualdade. Ora, a igualdade triunfou como valor referencial. A
crescente igualdade de condições na sociedade conferia-lhe suporte
material e social. Essencialmente, a História da Humanidade, sobretudo
desde a introdução do cristianismo, podia ser vista como uma marcha para
o ideal da igualdade.
Juntando a irresistibilidade e a universalidade da democracia em
Tocqueville com a irresistibilidade e a universalidade do capitalismo,
aproximamo-nos do Fim da História que vimos na sucessão Hegel-
Kojève-Fukuyama. Na realidade, Tocqueville não podia pura e
simplesmente declarar o Fim da História. A democracia padecia de
tensões internas que a metamorfoseavam quando certas condições se
reuniam. Além do mais, o triunfo da igualdade era ambivalente
relativamente à liberdade humana. Mais aproximadamente, isto queria
dizer que havia liberdade no regime da desigualdade, assim como se era
verdade que a igualdade democrática podia ser associada à
universalização e à estabilização da liberdade, a igualdade também podia
conduzir ao esmagamento da liberdade. Tratava-se de uma importante
indeterminação que inviabilizava o encerramento definitivo da História.
À pergunta o que é que o mundo político faria à inevitável
universalização da igualdade de condições? ninguém sabia dar uma
resposta infalível. Do ponto de vista da geopolítica, a marcha irresistível
da História entendida à la Tocqueville fazia antever um mundo diverso,
conflituoso, heterogéneo, mas não politicamente misterioso. Seria o
mundo da igualdade. E as relações entre os povos, os Estados e as
sociedades seriam orientadas pelo dogma da soberania do povo e pelo
valor da igualdade.
Neste contexto, podemos dizer que a democracia é evangélica.
Apresenta-se a si mesma como uma religião universal que se abstrai das
condições geográficas particulares dos povos para lhes anunciar um
conjunto de direitos e de liberdades inegociáveis e inalienáveis. Prega o
Evangelho da igualdade aos Estados democráticos e aos que (ainda) não
são democráticos. O Evangelho da igualdade garante a universalidade dos
direitos que proclama. Primeiro para os homens, e só mais tarde as
mulheres foram incluídas na pregação. Mas é precisamente por os seres
humanos serem todos iguais – e são tão iguais os que vivem em Estados
democráticos igualitários como os que não vivem em Estados desse
género – que não se pode travar a transmissão da Boa Nova aos que ainda
não foram abençoados.
Ora, este movimento natural da democracia como força histórica e como
elemento geopolítico condiciona radicalmente a política internacional.
Desde logo, divide o mundo em duas partes: a parte democrática, mais
avançada e que se torna responsável pela pregação do Evangelho por uma
miríade de meios, a que se acrescenta a questão de se os meios violentos
também devem ser incluídos; e a parte (ainda) não democrática, que se
defenderá das investidas dos pregadores democráticos por ver neles uma
ameaça existencial. Além disso, como o Evangelho apela à conversão da
alma por argumentos que tocam na cabeça e no coração dos pagãos, uma
competição pelos meios de persuasão e pela vitória no debate intelectual
das ideias é posta em marcha por pressão democrática. Sendo um regime
político evangélico, a democracia alimenta a esperança na reconciliação
de todas as diferenças pré-democráticas que até a esse momento de
consumação dividiram os povos e fizeram-nos guerrear-se. Quando todo o
mundo for finalmente democrático, não haverá mais guerras e os conflitos
serão localizados e policiados. A esperança democrática geopolítica mais
profunda é a da paz perpétua.50
Como Tocqueville explicou, os povos dominados pelo valor da
igualdade eram levados por uma «espécie de apatia e benevolência
universal» que os atraía à paz e fazia-os repudiar a guerra. Além disso, a
igualdade de condições, e a falência dos valores aristocráticos, promovia a
economia e o comércio internacional. A igualdade e o sentimento de
semelhança uniformizavam os gostos, as opiniões e os interesses pelos
diferentes povos democráticos. As vidas, os sustentos e os interesses de
uns ficavam emaranhados nos dos outros, tornando inviável o projecto de
causar danos ao povo vizinho sem infligir danos equivalentes, ou quase, a
si mesmo. Em última instância, o sentimento de semelhança humana era
contraditório com as inimizades internacionais. Mas daqui decorria uma
consequência interessante que ia além da pacificidade do mundo
democrático. Se todos os povos se tornassem semelhantes, o factor
geopolítico de diferenciação era puramente material e quantitativo. Quem
tivesse a maior população superiorizava-se aos demais povos. Era aí que
residiria a força potencial e o factor de desempate militar. Os Estados
democráticos seriam, por isso, tentados a integrar-se e a unir-se em
Estados maiores.51 Afinal de contas, a democracia era a consagração do
poder do número.
Por outro lado, a democracia vive ameaçada por heresias e discussões
da sua teologia. Os povos democráticos podem, como sabemos, dividir-se
e conflituar, não porque prescindam da sua democraticidade, mas porque
interpretam o cânone democrático de maneira diferente. Ao mesmo
tempo, podem vir a interpretar democraticamente as suas diferenças
geopolíticas que os simples dogmas da soberania popular e da igualdade
não conseguem limar. A particularidade de cada povo pode até ser
exacerbada precisamente porque se apoia no dogma da soberania do povo
e da igualdade. Não é contrário ao triunfo universal da democracia que
persista uma tensão e uma oscilação pendular entre os dois pólos da
integração e da diferenciação geopolíticas entre os povos do hipotético
mundo futuro. Se a esperança democrática geopolítica mais profunda é a
da paz perpétua, devemos presumir que a realidade geopolítica de um
mundo integralmente democrático continua a acolher a guerra como
possibilidade. A guerra democrática é a guerra da divisão de opinião, da
divisão de interpretação. Por outras palavras, um tipo de guerra com
fundamentos e justificações morais e intelectuais.
Um outro aspecto que se torna decisivo na geopolítica da era
democrática é a importância da opinião pública. Na interpretação de
Tocqueville, a sociedade das classes médias era a sociedade onde
imperava o individualismo racionalista, numa variante de cartesianismo
americano, como Tocqueville sugeria em Da Democracia na América.
Paradoxalmente, esse individualismo de classe média, depois de
desmantelar todas as sedes de autoridade tradicional – o senhor nobre, o
padre, o governante, o chefe do clã –, o que é o mesmo que dizer depois
de sujeitá-las à dúvida mais renitente, acabaria por tornar cada um dos
indivíduos dependente da opinião pública, a qual passava a constituir um
facto e uma sede de autoridade historicamente nova e tipicamente
democrática. Disse paradoxalmente porque, na tese de Tocqueville, o
triunfo da autonomia racional do indivíduo conduzia à amputação dessa
mesma autonomia no plano moral e intelectual.52
Em rigor, a opinião pública enquanto tal só existe num contexto
democrático. Como conceito, supõe que essa opinião é mais do que uma
opinião: é a verdade da sociedade relativa aos temas sobre os quais se
pronuncia. É menos uma opinião do que um julgamento. «A fé na opinião
comum é a fé das nações democráticas. A maioria é o profeta.»53 A
sociedade é constituída como um tribunal paralelo aos tribunais
constituídos, paralelo aos governos e parlamentos que existem para se
pronunciarem e julgarem os mesmos temas que a opinião pública. A
sociedade aparece como um grande tribunal ou um grande púlpito
proclamatório. Às instituições representativas da sociedade nada mais
resta senão seguirem a opinião pública. Sobretudo, os governos e os
parlamentos, mas não excluamos ingenuamente os tribunais. E porquê?
Em parte, porque a soberania do povo não autoriza que se castre a opinião
do público. Além disso, os titulares das instituições políticas dependem
directa ou indirectamente do voto e da opinião dos constituintes da
opinião pública. Tudo se complica porque o povo soberano não é
exactamente coincidente com o público que tem e forma opinião. Esta é
flutuante, volúvel e amnésica. Mais, ela é manipulável e tem de ser
contada, explicitada, verbalizada. Em última análise, há que apelar a ela e
conduzi-la. Nesse hiato entre o povo soberano e o público opinativo cria-
se o espaço para as elites políticas e culturais sobreporem os seus
julgamentos e levarem a melhor nas suas decisões. Mas não há dúvida de
que a geopolítica nos tempos democráticos passa a ser a geopolítica das
opiniões públicas.
Ora, convém que não nos deixemos adormecer à sombra da
uniformidade conceitual. As opiniões públicas são todas estruturalmente
idênticas? Ou pode haver circunstâncias políticas, sociais, económicas e
culturais que propiciem opiniões públicas mais ambiciosas, mais
aventureiras ou mais voláteis? Em desabafos epistolares com os seus
amigos americanos, Tocqueville mostrava-se preocupado com a inclinação
americana para «o espírito de aventura e de conquista, o sentimento da
força própria e o orgulho excessivo nela, e as paixões da juventude». E
ponderava se não se trataria de um excesso da própria democracia, de um
abuso da democracia de si mesma. As circunstâncias especificamente
americanas – a sua juventude, a fronteira aberta para conquistas e
abundante em terra fértil, a vertigem de um poder em crescimento
alucinante – e as circunstâncias especificamente democráticas – o fervor
ideológico, a confiança igualitária no esforço colectivo, a vocação
universalista – concorriam para o excesso ou para o abuso. Neste ponto
particular, que era muito importante não só para a estabilidade interna da
democracia americana, mas para as suas acções externas também,
Tocqueville recomendava moderação. «As nações não precisam menos de
moderação do que os indivíduos.»54
Finalmente, a democracia como força histórica era irresistível e chegaria
a todos os cantos do planeta. Era o regime político universal cujo triunfo
planetário formaria um mundo homogéneo. O seu aparecimento na
história teria de alterar radicalmente o jogo geopolítico. Entre o pólo da
paz perpétua, filha da aversão à política «heróica» e belicista, e o da
inimizade natural pelos regimes não democráticos, aos olhos
democráticos condenados pela História e pela moral, a geopolítica do
novo mundo democrático seria também ela nova. Existe ainda hoje a
tendência para interpretar a geopolítica dos nossos dias, desse mundo já
bastante avançado no processo de democratização tocquevilliano, segundo
as «grandes constantes» da História, como se as transformações políticas
de regime fossem mais ou menos irrelevantes, pois alegadamente
deixariam intactos os «interesses intemporais» dos Estados. Mas é uma
tendência que reduz o problema geopolítico. A variável política e as suas
transformações, sobretudo quando são radicais, introduzem rupturas. E
não deixam o mundo igual ao do passado.
Os Preços Baixos como Factor Geopolítico
Em 1848, Karl Marx vivia em Bruxelas. Como activista revolucionário
e organizador de panfletos radicais, Marx era forçado a saltar de cidade
em cidade. Da sua Alemanha natal veio parar a Paris, a capital
revolucionária da Europa, em 1843. Foi em Paris que travou amizade com
Friedrich Engels, amizade que só seria desfeita com a morte de Marx
décadas mais tarde. Foi aí que decidiu propor o comunismo como força
revolucionária e estádio final da emancipação humana. Mas em 1847
seguiu para Bruxelas depois da expulsão de França às ordens do ministro
François Guizot, o grande historiador com quem Tocqueville aprendera
tanto e contra quem se rebelara intelectual e politicamente. Marx também
aprendera uma coisa ou outra com a interpretação whig da história
europeia em Guizot. Contudo, no Manifesto do Partido Comunista de
1848, Marx não deixaria de exemplificar com o nome de Guizot as vozes
da «reacção».
Comparada com Paris, Bruxelas era uma opção inferior. É certo que a
Bélgica se tornara independente mais de uma década antes, durante a vaga
revolucionária de 1830, mas Marx estava habituado ao fervilhar de Paris e
à sua permanente agitação. E se era verdade que Bruxelas, tal como Paris,
era um refúgio europeu de todo o tipo de activistas políticos radicais e
liberais, ao contrário de Paris, em Bruxelas socialistas e comunistas nem
vê-los. Além disso, Marx só conseguira o exílio em Bruxelas na condição
de estar calado sobre a política do seu tempo, sendo os seus movimentos
fortemente vigiados. A sua preocupação era estar longe do alcance do rei
da Prússia e do czar da Rússia, que tinham conseguido provisoriamente
silenciar a sua voz em momentos anteriores. Não que Marx fosse cumprir
o que as autoridades políticas europeias esperavam dele. Marx era um
intelectual que passava longas horas estudando e escrevendo
silenciosamente. E era um organizador da revolução perpetuamente
envolvido na fundação de ligas e grupos afectos ao ideal revolucionário.
Em 1847, começou a preparar o programa da Liga Comunista, uma
recém-criada organização de debate e acção política subversiva, herdeira
da Liga dos Justos, uma organização secreta sediada em Londres
constituída maioritariamente por artesãos e trabalhadores alemães
refugiados, onde cabiam todos os tipos de jacobonismo radical e
socialismos de várias estirpes.55 Na mudança de uma organização para a
outra, a divisa da segunda já tinha alterado a da primeira. Karl Schapper,
não Marx, já se tinha encarregado de apagar «Todos os homens são
irmãos» e de substituir a divisa por «Trabalhadores de todos os países,
uni-vos!».
Em Janeiro de 1848, Marx discursava abrasivamente na Liga, lançando-
se numa diatribe contra a ideologia e a prática do comércio livre. Para
grande espanto, usava a autoridade do prestigiado economista «burguês»
David Ricardo para bradar contra o livre-cambismo. Mais espantosamente
ainda, Marx, depois de descrever o desastre que o comércio livre
representava para a condição de vida dos trabalhadores, apelou ao apoio à
prática do mesmo comércio livre pela razão puramente instrumental de
aceleração da revolução anticapitalista. E no dia 21 de Fevereiro de 1848,
já com as primeiras faíscas revolucionárias visíveis, publicaria com o seu
camarada Engels O Manifesto do Partido Comunista, o programa da Liga
homónima. Foi nesse curto livro que apareceram as grandes teses do
marxismo numa composição sistemática e sintética. Mas o livro era
também um testemunho poderosíssimo e uma análise fulgurante da
revolução trazida pelo capitalismo.
A proclamação da república francesa em Paris faria com que Marx fosse
expulso de Bruxelas e regressasse à capital francesa. Não seria a última
paragem na vida de Marx. Continuaria a deambular por um mundo que
gradualmente se tornaria mais democrático e mais capitalista, enquanto ele
prepararia o estádio de emancipação que se lhe seguiria. Na verdade,
prepararia a experiência comunista que outros pegariam em mãos, numa
sequência de horrores, de crimes e de catástrofes cujo fim ficaria
simbolizado na queda do Muro de Berlim.
No vocabulário marxista, capitalismo era um modo de produção. Queria
isto dizer que era uma modalidade histórica, claramente distinguível dos
modos de produção do passado, como o esclavagismo ou o feudalismo, de
operação das forças produtivas. A actividade económica era
essencialmente uma relação produtiva do homem com a natureza. O ser
humano, enquanto ser, caracterizava-se por trabalhar – por extrair de uma
natureza indiferente ou até hostil os recursos de que precisava para
sobreviver. A luta humana pela sobrevivência era uma luta incessante do
Homem com a Natureza. O homem era o ser que produzia os seus meios
de subsistência e, por esse intermédio, a sua própria vida material. Ora,
sendo o desenvolvimento das forças produtivas, como a expressão
indicava, progressivo, o capitalismo representava o mais alto nível
produtivo e tecnológico de que a humanidade fora até agora capaz. Mas,
mais do que isso, o capitalismo libertaria a um ponto totalmente
inesperado e espectacular – a capacidade produtiva do género humano. O
que podia extrair da natureza e o horizonte de possibilidades para a sua
vida material dependiam do progresso tecnológico, já que a relação com a
natureza era mediada pelo uso de ferramentas que a capacidade laboral e
criativa do ser humano ia criando e aperfeiçoando.
Marx tornar-se-ia o mais famoso crítico do capitalismo. Contudo, na sua
teoria, cuja verdade e cientificidade estavam sempre pressupostas na sua
acção, o capitalismo tinha uma função histórica a desempenhar que não
podia ser ignorada, nem substituída. E essa função, não obstante as
terríveis injustiças e monstruosidades sociais que do seu desempenho
adviriam, era o de levar até ao derradeiro grau de produtividade o
desenvolvimento das forças produtivas. Não restavam dúvidas para Marx
de que o capitalismo destruía o corpo e a alma do trabalhador. Destruía-o
quebrando-o com a tortura rotineira do trabalho diário organizado e
alienando-o com a divisão técnica do trabalho, a que se somava a
separação relativamente ao fruto do seu trabalho. Porém, da libertação de
potencial produtivo operada pelo capitalismo viria a transformação do
mundo humano à escala planetária. Uma transformação que não podia ser
comparada a outras transformações históricas. E essa transformação
estava a ocorrer no seu tempo. Em 1848, Marx dava testemunho como
ninguém antes dele da força, da profundidade, do alcance, da
multidimensionalidade e da irreversibilidade da revolução capitalista.
A multidimensionalidade da revolução capitalista era garantida pelo
materialismo histórico, a grande tese segundo a qual a realidade material –
económica, num certo sentido – da luta do homem contra a natureza pela
extracção de recursos, ou dos meios de subsistência, era infra-estrutural,
determinando (ou condicionando, nem sempre Marx pautou firmeza
inquestionável nos graus de determinação) a «superstrutura».
(...) na produção social da sua vida os homens entram em determinadas
relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a uma determinada etapa de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade
destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade,
a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e
à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O
modo de produção da vida material é que condiciona o processo da
vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina
a sua consciência.56
Se a infra-estrutura era idêntica à organização concreta da produção
num determinado tempo e lugar, a superstrutura era composta pela
carapaça da economia nas suas manifestações políticas – o Estado, por
exemplo, e as suas instituições –, jurídicas – a lei e o direito – e até
religiosas. A ideia era a de que haveria uma forma de Estado, leis com um
certo conteúdo e dogmas teológicos, em conformidade com o grau de
desenvolvimento das forças produtivas. Se o estado de desenvolvimento
das forças produtivas suscitava uma divisão social em torno do excedente
económico que os processos produtivos segregavam, então o modo de
produção capitalista, à semelhança dos outros modos de produção
anteriores, dividia a sociedade em classes antagónicas em perpétuo e
inegociável conflito. A divisão social típica do capitalismo era uma
polarização social em torno de uma classe opressora e exploradora, de um
lado, e de uma classe oprimida e explorada, do outro. Respectivamente, a
burguesia, proprietária dos meios de produção, e o proletariado,
constituído pelos trabalhadores, os únicos geradores de valor económico, e
que não tinham nada senão o seu trabalho formalmente livre e as suas
correntes da pobreza e da submissão. Mas através deste conflito social a
sociedade estruturava-se com todas as suas representações, com todos os
seus recursos, com toda a sua violência, para proteger e confirmar a classe
exploradora nos seus privilégios e para manter submissa a classe
trabalhadora. A determinação da superstrutura tomaria formas previsíveis.
As vossas próprias ideias [isto é, as ideias da burguesia] são produtos
das relações de produção e propriedade burguesas, tal como o vosso
direito é apenas a vontade da vossa classe elevada a lei, uma vontade
cujo conteúdo está dado nas condições materiais de vida da vossa
classe.57
(...)
Que prova a história das ideias senão que a produção espiritual se
reconfigura com a material? As ideias dominantes de um tempo foram
sempre apenas as ideias da classe dominante.58
Nada seria natural nas instituições políticas e sociais. Tudo seria
radicalmente histórico e numa relação de reflexo da infra-estrutura
fundamental. Assim, haveria uma concepção do direito que teria por
indiscutível o direito de propriedade privada. Ou uma religião que
prometeria a felicidade eterna aos pobres que se conformassem com o seu
destino injusto neste mundo, porque a justiça não tardaria no outro. Para
Marx, o protestantismo era uma religião-ideologia de justificação dos
interesses da burguesia, uma religião-reflexo das necessidades sociais de
uma certa maneira de organizar a vida económica da humanidade. No
capitalismo, o Estado não passaria de uma «comissão que administra os
negócios comuns de toda a classe burguesa»59, ou uma «máquina de
guerra nacional do capital contra o trabalho»60, ou «um «parasita» das
forças sociais vivas, e que usava o seu monopólio do uso da violência em
perfeito ajustamento a esse desígnio.
Marx não inventou a palavra capitalismo. Já estava em voga em França
e noutros países vizinhos quando Marx pegou nela e lhe deu um conteúdo
muito preciso. A palavra agradava-lhe para descrever a forma económica
moderna, porque imediatamente veiculava qual era o elemento central
deste modo de produção: o capital. O capitalismo era o modo de produção
que tinha no seu centro, que tinha como seu princípio de movimento, que
tinha como seu alfa e ómega o capital. Ora, se o capital era a substância
do capitalismo, o que lhe dava a sua natureza e atribuía os seus
movimentos, devia ser visto essencialmente como um processo
económico. Não precisamos de nos debruçar com detalhe na
especificidade desse processo. O que é importante para os propósitos deste
livro é sublinhar que o capital tinha uma necessidade ilimitada de
expansão. Neste sentido, a imagem do vampiro sempre seduziu Marx. O
capital tinha uma natureza vampírica porque, tal como os vampiros das
lendas, precisava perpetuamente de se alimentar de sangue vivo para
prosseguir a sua não-morte. Nesta imagem tão sugestiva, o equivalente do
sangue vivo era o trabalho criador de valor económico. O capital
vampírico expropriava recorrentemente a mais-valia que o trabalho
assalariado gerava. Assim se alimentava o apetite insaciável por mais e
mais acumulação do capital.
Essa era a razão vital que explicava a capacidade de expansão e de
movimento do capitalismo. Era a razão que permitia perceber porque é
que o capitalismo chegaria a todos os cantos do mundo. Dada a natureza
vampírica do capital, o capitalismo seria o modo de produção reinante em
todo o planeta – até ao colapso final. Antes de o capitalismo se deixar
vencer pelas suas próprias contradições, chegaria a todos as partes do
planeta, mesmo as mais remotas, mesmo as mais bárbaras. E tal não
dependeria estritamente de uma imposição política pelas nações
capitalistas poderosas que subjugariam o resto do mundo. Com efeito,
para Marx era a dinâmica imanente do capitalismo, a força interna de
expansão do capital, a substância central e motriz do sistema, que levaria o
capitalismo a toda a parte e, na sua expressão imortal, derrubaria todas as
muralhas da China.61
A força histórica do capitalismo era mais do que transformadora. Era
revolucionária.
A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os
instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto
as relações sociais todas. (...) O permanente revolucionamento da
produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a
incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de
todas as outras.62
Não ficava pedra sobre pedra do mundo pré-capitalista que os
românticos romantizavam e cuja perda choravam. Sobretudo, o
capitalismo mostrava a dura realidade da esqualidez e da esterilidade do
mundo do Ancien Régime. Mostrava finalmente tudo o que o homem
enquanto ser tecnológico podia fazer.
A burguesia pôs a descoberto como a brutal exteriorização de força,
que a reacção tanto admira na Idade Média, tinha na mais indolente
mandriice o seu complemento adequado. Foi ela quem primeiro
demonstrou o que a actividade dos homens pode conseguir. Realizou
maravilhas completamente diferentes das pirâmides egípcias, dos
aquedutos romanos e das catedrais góticas, levou a cabo expedições
completamente diferentes das antigas migrações de povos e das
cruzadas.63
Este elogio que Marx reservou à força transformadora, revolucionária
até, do capitalismo não é pequeno. Vale sobretudo para se adquirir uma
certa consciência histórica de que em meados do século XIX já era possível
olhar para trás, para a História da Humanidade, e perceber a extraordinária
mudança que ocorrera umas décadas – poucas décadas – antes. Marx foi
certamente um dos primeiros a compreender a profundidade desta
mudança, embora fosse cego para aspectos cruciais dessa transformação,
como a melhoria do nível de vida dos mais pobres e da classe
trabalhadora.
Curiosamente, antes de Marx tinham sido os românticos, politicamente
conservadores, críticos da forma económica moderna, como Carlyle, a dar
conta da ruptura histórica trazida pelo capitalismo. Fizeram-no
invariavelmente em nome de um lamento pelo mundo que se tinha
perdido. Marx não lastimava nem um milímetro do mundo que se tinha
esfumado. Pelo contrário, uma das funções do capitalismo fora trazer o
mundo inteiro para a «civilização» e arrancar populações inteiras à
«idiotia da vida rural» isolada, supersticiosa, desligada das inovações
tecnológicas e culturais trazidas pelo progresso histórico. Com Marx, o
«reacionarismo» ou o romantismo passou a ser visto, além de um projecto
político nefando, como um pleno anacronismo, e por isso absurdo. Para
ele, o capitalismo era a agência histórica, a estrutura geral de
modernização do mundo; o capitalismo era a própria modernização.
A burguesia, na sua dominação de classe de um escasso século, criou
forças de produção mais massivas e mais colossais do que todas as
gerações passadas juntas. Subjugação das forças da Natureza,
maquinaria, aplicação da química à indústria e à lavoura, navegação a
vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, arroteamento de
continentes inteiros, navegabilidade dos rios, populações inteiras feitas
saltar do chão — que século anterior teve ao menos um pressentimento
de que estas forças de produção estavam adormecidas no seio do
trabalho social?64
A tal ponto chegava o pensamento de Marx que analisou à mesma luz o
papel histórico do imperialismo inglês na Índia. A colonização inglesa era,
na sua leitura, simultaneamente destrutiva e modernizadora da sociedade
indiana. E antes de pensar em termos normativos, Marx pensava em
termos históricos. Essa era a função histórica do colonialismo inglês:
«aniquilar» a sociedade indígena arcaica e modernizá-la. Trazê-la para a
«civilização» (burguesa), lançando as «fundações da sociedade ocidental
na Ásia».65 Marx elencava o que os ingleses tinham feito pelos indianos, à
semelhança do diálogo dos Monty Python no filme Life of Brian – what
have the Romans ever done for us?: os ingleses tinham trazido o telégrafo,
a imprensa livre, a propriedade privada da terra, a educação científica, a
energia a vapor, os caminhos-de-ferro, a comunicação directa com o
Ocidente.
Segundo Marx, o capitalismo mudara o mundo. Era uma criação nova à
imagem e semelhança do seu criador, a classe dominante. Isso queria dizer
em concreto que o mundo inteiro se tornaria capitalista e a identidade do
modo de produção sobrepor-se-ia a todas as outras distinções nacionais ou
culturais. Desvanecendo-se as diferenças nacionais, desapareceriam as
guerras tradicionais – e subsistiria a guerra de classes, dentro das
fronteiras de cada nação e à escala global. Acresce que as teorias
interpretativas que o aparecimento do capitalismo inspirou também
redundaram num factor de mudança. Desde logo de mudança no modo
como lemos o mundo e o analisamos geopoliticamente. Por exemplo, a
óptica marxista não deu apenas conta de que o mundo se tinha
transfigurado radicalmente. Indicou também o sentido geopolítico de
todas as mudanças. Mas mais alguma coisa sucedeu. Algo mais subtil.
Mesmo quem repudiava as teses marxistas passou a interpretar o mundo,
ainda que não a transformá-lo, segundo pelo menos algumas das linhas de
leitura legadas por Marx. As categorias, a interpretação da história, as
dinâmicas sociais e por aí adiante foram assimiladas e perpassaram para as
análises geopolíticas. Assim que esse universo de pessoas que aceitava
alguns dos recursos analíticos do marxismo atingisse uma dimensão
crítica, e assim que algumas dessas pessoas fossem directa ou
indirectamente investidas de poder político ou opinativo, seria apenas uma
questão de tempo até a acção política e, por conseguinte, a própria
configuração geopolítica reflectirem esse modo de olhar para o mundo. Se
reunirmos todas estas relações que se foram fortalecendo gradualmente
após 1848, precisamos de reconhecer as consequências geopolíticas que
elas produziram.
Para uma interpretação geopolítica vale a pena destacar três
consequências, ou três manifestações das mudanças na estrutura da
economia e da sociedade pelo mundo e das mudanças engendradas pela
assimilação das categorias marxistas na interpretação do mundo.
Em primeiro lugar, a hegemonia global do capitalismo. Isso corresponde
à homogeneização política, social e económica de todo o planeta. Dos
terrores socialistas aos milenarismos liberais na era da globalização, a
ideia de que o mundo converge para o mesmo sistema socioeconómico, e
de que dessa convergência infere-se logicamente a convergência das
várias histórias nacionais ou regionais numa única história cosmopolita,
nasce das teses que temos examinado. Além disso, o encadeamento
temporal geopolítico torna-se cada vez mais linear. Existe um
encadeamento de convergência das nações subdesenvolvidas para as
nações desenvolvidas, em que as primeiras se tornam mais semelhantes às
primeiras – na sua vida económica, no seu mimetismo institucional, na sua
orientação ideológica, em particular no apego ao individualismo ético e
social e à doutrina dos direitos humanos em geral. Na formulação desse
analista da globalização que foi Marx...
(...) a nação mais industrializada limita-se a mostrar à menos
industrializada a imagem do seu próprio futuro.66
Não há mais nações bárbaras, naturalmente. Há «mercados
emergentes». Já não há nações subdesenvolvidas, como havia no
vocabulário tecnocrático até há pouco tempo, mas nações em «vias de
desenvolvimento».
Em segundo lugar, as velhas rivalidades arcaicas entre os Estados ou
entre blocos geopolíticos são historicamente superadas. O conflito
geopolítico passa a ser mais automaticamente traduzido em termos de
conflito geoeconómico, por um lado, e, por outro, em termos das lutas
revolucionárias que se opõem à exploração de uma parte subdesenvolvida
do mundo por outra parte economicamente mais desenvolvida – a Europa
Ocidental e a América do Norte. Leitor de Darwin, Marx sugeriu que o
autor de A Origem das Espécies transpusera a vida económica no
capitalismo para o mundo da natureza. Em tempos idos, mais
concretamente cem anos antes, Rousseau acusara Hobbes e os seus
seguidores de, na elaboração do estado de natureza pré-político, terem
transposto o homem da civilização, o burguês, para a figura do homem
nessa condição «natural» – um equívoco fatal. Agora, Marx dizia que o
mundo natural da luta pela existência, da sobrevivência dos mais aptos e
por aí adiante, não era mais do que a transposição da sociedade capitalista
para a representação da vida animal. Não por acaso, Marx imputaria aos
darwinistas a defesa partidária da sociedade capitalista como falsamente
apoiada nessa representação da natureza.
Mas, independentemente das leituras de Marx à luz da categoria da
«falsa consciência», daqui também restava uma tese muito antiga. A saber,
que o mundo geopolítico era o resultado de uma luta pela sobrevivência
cujas armas e instrumentos eram fornecidos pelo modo de produção
capitalista e, em termos mais gerais, pelo desenvolvimento das forças
produtivas, isto é, pela actividade económica e pelas possibilidades
tecnológicas. Os mais atrasados no processo histórico perdiam e eram
conquistados, assimilados, explorados, submetidos por aqueles que
constituíam a vanguarda da História da Humanidade. Muitas tensões
políticas passaram a ser vistas como focos de resistência à hegemonia
global do capitalismo. O terceiro-mundismo não foi uma invenção do pós-
Segunda Guerra Mundial. Estava já escrito com todas as letras na segunda
metade do século XIX. Os terceiro-mundismos do século XX, desde
Bandung até às teorias da «dependência» tão em voga na América Latina
durante a década de 1960, passando pelas modas maoístas em Paris e
outras capitais europeias no Maio de 1968, não eram mais do que
derivações do tema apresentado por Marx e desenvolvido por Rosa
Luxemburgo, Lenine e outros discípulos.
Em terceiro lugar, a consideração do imperialismo como consequência
das transformações económicas e do alargamento do terreno em que tem
lugar a luta de classes. Se a luta de classes parecia ter como palco a
história das sociedades particulares, se a história de cada sociedade era a
história da luta de classes, então a História da Humanidade unificada pelo
capitalismo seria a história da luta de classes à escala planetária. A última
vaga do imperialismo no século XIX, por contraposição aos imperialismos
que a Humanidade conhecera noutras épocas, era interpretada como a
extensão das necessidades de expansão do capital e como o fenómeno da
exploração era deslocalizado, ou duplicado, para as colónias dos vários
impérios ultramarinos europeus.
Como em tudo na obra de Marx, o imperialismo tinha causas
essencialmente económicas. Coube aos seus discípulos articularem de
modo mais sistemático essa relação de causalidade. Em particular, estava
em jogo a aquisição e o consumo de um aumento da produção quando o
capital ao mesmo tempo se acumulava. Rosa Luxemburgo, a mais famosa
das mulheres marxistas do século XX, e que seria assassinada depois da
tentativa fracassada de instaurar uma república soviética na Baviera logo
após a Primeira Guerra Mundial, em Novembro de 1918, daria uma
resposta que ficaria célebre. No seu principal livro A Acumulação do
Capital, publicado em 191367, disse Luxemburgo que o capital era forçado
a colonizar o mundo pré-capitalista para garantir a absorção do excesso de
produção e assim evitar um colapso económico por défice de procura.
Marx já tinha ido longe na denúncia do saque capitalista dos recursos das
regiões do mundo pré-capitalistas. Mas não tinha prestado suficiente
atenção à análise económica dos mecanismos capitalistas na colonização
do mundo extra-europeu. Na análise económica de Rosa Luxemburgo, o
capitalismo expandia-se forçosamente para todo o mundo e explorava o
mundo inteiro. Porém, nenhuma sociedade no mundo estava
exclusivamente dominada pelo modo de produção capitalista. Convém
recordar que para Rosa Luxemburgo a expansão territorial do capital
nunca ocorria de modo homogéneo e indiferenciado. O alastramento das
relações capitalistas concretizava-se ao longo de eixos e de redes
circunscritas de transporte e de exploração. As regiões pré-capitalistas
assim alcançadas eram usadas pelo capitalismo como reservatório de
escoamento do excesso de produção, de abastecimento de recursos – de
«meios de produção» – e de força de trabalho.68
O império da fase histórica do imperialismo era a válvula de escape de
pressões internas insuportáveis do capitalismo metropolitano.
Estruturalmente, o capitalismo produzia bens de consumo em excesso que
não seriam absorvidos pela procura formada pelos trabalhadores e pelos
capitalistas metropolitanos. Esse excesso teria de ser absorvido pelas
regiões pré-capitalistas: tanto nos países metropolitanos cujo território
ainda não fora totalmente dominado pelo capitalismo, como nas colónias
fora do território da metrópole. Em linguagem da geografia política,
metrópole queria dizer o conjunto dos países europeus capitalistas, ou os
seus centros territoriais mais avançados, e países não-capitalistas eram os
territórios colonizados pelos Europeus em África, na América e na Ásia,
bem como os países formalmente independentes que, no início do século
XX, estavam a cair nas malhas da geoeconomia europeia: Turquia, China,
Austrália, e por aí adiante. A invasão das sociedades pré-capitalistas pelo
capital desmantelava formas tradicionais de propriedade e impunha a
mercantilização do trabalho. Determinava a proletarização da população
indígena e canalizava toda a produção para o mercado e para a geração de
«valor de troca».
Rosa Luxemburgo recorria, assim, ao termo imperialismo para designar
o último estádio de exploração da região pré-capitalista. O capital
acumulado na metrópole resultante do crescimento da produção era
investido nas colónias para que daí viesse a absorção da produção
excessiva. Em última análise, a população indígena garantiria mão-de-
obra barata e submissa, perderia as suas fontes produtivas próprias – a sua
própria agricultura e indústria rural – e tornar-se-ia uma massa passiva de
consumidores dos excessos da metrópole.69
Parte fundamental do processo de acumulação planetário do capitalismo
era o militarismo. O suporte político da expansão económica do capital
traduzia-se necessariamente no uso organizado da força. Primeiro, para
conquistar os territórios e colonizá-los. Depois, para destruir a
organização social indígena e abrir caminho à estrutura de exploração
capitalista da metrópole, forçando a proletarização assalariada das
populações. Seguidamente, o militarismo seria indispensável para
consolidar e defender as esferas de interesse do capital europeu nas várias
regiões do mundo, para agir como cobrador do camuflado das dívidas
contraídas pelos países mais fracos junto do capital metropolitano. E, qual
cereja no topo do bolo, o militarismo seria a principal linha de actuação
política na competição mortal entre os países capitalistas pelos seus
impérios coloniais. A todas estas funções complementares no processo de
acumulação de capital acrescia a das despesas militares, que constituiam
um canal de escoamento da produção excedentária. O capitalismo
convertia-se necessariamente num militarismo global.70
Assim que se chegasse aos limites desta expansão imperialista mundial
desenfreada, a acumulação de capital deixaria de ser possível, conduzindo
ao colapso do sistema. Daí o imperialismo ser, para Rosa Luxemburgo e
outros marxistas como Lenine, o último estádio do capitalismo. Nos
nossos tempos pós-coloniais, o marxista Immanuel Wallerstein prosseguiu
a mesma análise aplicando-a à estrutura da globalização, a qual, nesta
perspectiva, disfarçaria mal a continuação da exploração da «periferia»
pela «metrópole» altamente capitalista. Na metrópole, a tendência seria
para a organização monopolista dos mercados, estando o poder político ao
serviço da protecção dos capitalistas monopolistas, ao passo que a divisão
do trabalho global impunha a abertura forçada dos mercados periféricos à
concorrência da produção da metrópole.71
38
Por exemplo, Ernst Gellner, Nations and Nationalism, Londres,
Blackwell, 1983.
39
Miguel Morgado, Soberania. Dos seus usos e abusos na vida política,
Lisboa, Dom Quixote, 2021, pp. 412-420.
40
Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, Vol. I, Introdução.
41
Carta de Tocqueville a Royer-Collard, 4 de Abril de 1838, Oeuvres
complètes, 14 vols., Paris, Michel Lévy Frères, 1864-1866, Vol. VII, p. 165.
42
Lewis Namier, 1848: The Revolution of the Intellectuals, Nova Iorque,
Anchor Books, 1964, p. 5.
43
Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, Vol. II, Parte I, Cap. XV.
44
Harvey C. Mansfield, Delba Winthrop, introdução a Alexis de
Tocqueville, Democracy in America, (trad. inglesa) Chicago, The
University of Chicago Press, 2000, edição epub, p. 24.
45
Carta de Tocqueville a Royer-Collard, 20 de Novembro de 1838, Œuvres
complètes, Vol. XI, p. 74.
46
Tocqueville, «Discours prononcé a la Chambre des Deputés», 27 de
Janeiro de 1848, Œuvres complètes, Vol. IX, pp. 521, 525-26, 534-35.
47
Alexis de Tocqueville, Souvenirs, Paris, Calmann Lévy, 1893, p. 6.
48
Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, Vol. I, Introdução.
49
Pierre Manent, Tocqueville and the Nature of Democracy, (trad. inglesa)
Lanham, Rowman & Littlefield, 1996, pp. 48-49; Mansfield, Winthrop,
introdução a Democracy in America, p. 90.
50
Morgado, Soberania, pp. 442-71.
51
Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, Vol. II, Parte III, cap. 26.
52
De la Démocratie en Amérique, II.1.2.
53
Apontamento de Tocqueville a De la Démocratie en Amérique, II.1.2 in
Democracy in America, edição biligue, Eduardo Nolla (ed.), Vol. III, p. 720,
nota P.
54
Carta de Tocqueville a Jared Sparks, 11 de Dezembro de 1852, in
Aurelian Craiutu, Jeremy Jennings (eds.) Tocqueville on America after
1840. Letters and other Writings, Cambridge, Cambridge University Press,
2012, p. 139.
55
Jonathan Sperber, Karl Marx. A nineteenth-century life, Londres,
Liveright, 2013.
56
Karl Marx, prefácio a Para a Crítica da Economia Política, in Karl Marx,
Friedrich Engels, Obras Escolhidas, (trad. portuguesa: José Barata-Moura),
Lisboa, Avante, 1982.
57
Karl Marx, Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, (trad.
portuguesa: José Barata-Moura, Francisco Melo), Lisboa, Edições Avante,
1997, Cap. II.
58
Marx, Manifesto, Cap. II.
59
Marx, Manifesto, Cap. I.
60
Karl Marx, A Guerra Civil em França, in Marx, Obras Escolhidas, Vol.
II, Parte III.
61
Marx, Manifesto, Cap. I.
62
Marx, Manifesto, Cap. I.
63
Marx, Manifesto, Cap. I.
64
Marx, Manifesto, Cap. I.
65
Marx citado em Kevin B. Anderson, Marx on the margins. On
Nationalism, Ethnicity, and Non-Western Societies, Chicago, The
University of Chicago Press, 2010, p. 22.
66
Karl Marx, O Capital, (trad. portuguesa: José Barata-Moura, João Pedro
Gomes, Pedro de Freitas Leal, Manuel Loureiro, Ana Portela), Lisboa,
Edições Avante, 1990, prefácio ao Vol. I.
67
Rosa Luxemburgo, The Accumulation of Capital, (trad. inglesa), Londres,
Routledge, 2003.
68
George Lee, «Rosa Luxemburg and the Impact of Imperialism», The
Economic Journal, vol. 81, n.º 324, 1971, p. 846.
69
Rosa Luxemburgo, Sec. III, cap. 26.
70
Rosa Luxemburgo, Sec. III, cap. 32.
71
Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Geoculture. Essays on the
Changing World-System, Cambridge, Cambridge University Press, 1991.
IV
A ASCENSÃO DA GRANDE POTÊNCIA DO NOSSO TEMPO
Paris, 1783
O Nascimento de Uma Nação
No dia 3 de Setembro de 1783, os delegados franceses, ingleses,
holandeses e espanhóis juntaram-se em Paris aos embaixadores da recém-
constituída república dos Estados Unidos da América para pôr fim ao
estado de guerra que havia entre eles.
A França ainda vivia sob aquilo a que poucos anos mais tarde se
chamaria Ancien Régime. Tinha Luís XVI como rei. Ainda não havia
guilhotina e os Estados-Gerais estavam adormecidos há quase duzentos
anos. Com a rivalidade secular que mantinha com a Inglaterra, e que a
Revolução ao virar da esquina não perturbaria, a França tinha sido um
preciosíssimo aliado dos insurrectos das colónias inglesas na América.
Por seu lado, a Inglaterra estava prestes a inaugurar e a liderar o
processo mais transformador da existência humana conhecido como
Revolução Industrial. Não obstante a perda de treze colónias na América
para os independentistas, na sua maioria descendentes de britânicos e
escoceses, a Inglaterra veria o seu poder externo aumentar paulatinamente
até atingir um estatuto hegemónico no mundo. De facto, no século XIX e
até à Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra teria o mais vasto de todos os
impérios. Seria a potência hegemónica na indústria, nos investimentos, e
também no poder militar – sobretudo no poder naval. Além do império,
era suficientemente poderosa para, tal como todas as potências
hegemónicas, reduzir os seus próprios aliados à condição de
protectorados, para não dizer colónias, ingerindo directamente na sua
política interna, capturando activos económicos estratégicos, arbitrando
disputas territoriais e rotas comerciais. Portugal foi, em certos períodos
críticos, um desses aliados.
Finalmente, a América não se limitou a ser uma síntese da Revolução
Democrática com a Revolução Económica. Acrescentou um elemento
próprio: a religião combinada com a democracia capitalista. Ou dito mais
rigorosamente: a América traduziu nos seus termos a Revolução
Democrática com a infusão religiosa e fez o mesmo para a Revolução
Económica. Foi desde a sua fundação mais do que uma combinação sem
originalidade da política francesa com a economia inglesa.
Tocqueville disse que a democracia americana nasceu antes da
independência dos EUA e de estes serem formalmente republicanos. «Os
povos ressentem-se sempre da sua origem. As circunstâncias que os
acompanharam desde o seu nascimento e o seu desenvolvimento
influenciam o resto do seu caminho.»72 No início, a América foi o
puritanismo inglês. A democracia americana no século XIX, para não dizer
nos seguintes, já não era o republicanismo puritano refugiado e peregrino
que chegou às costas da América. Nem a América fora formada apenas
por puritanos ingleses na primeira vaga de colonização. Mas tinham sido
eles a imprimir o carácter social daquela comunidade originária. E a
circunstância geopolítica de partida – a abundância de recursos naturais e
a ausência de inimigos externos poderosos próximos – também deu uma
(grande) ajuda.
Mais do que qualquer outra coisa, foi a leitura religiosa do seu lugar na
História, e a interpretação religiosa de ambas as revoluções de que seria
herdeira, que estruturou o contributo original da América na História
Universal. E como, por cima de todos os acidentes e contingências, o
percurso histórico secular americano não foi obra do acaso, este contributo
específico determinou a geopolítica europeia e o destino americano no
mundo, com a sua república economicamente poderosa, a sua cultura
democrática, o seu império e, enfim, a sua hegemonia no século XX.
Não precisamos de perder tempo com as causas da guerra entre a
Inglaterra, a Holanda e a Espanha, dois países que, tal como a França,
apoiaram os independentistas. O que tornou 1783 determinante do ponto
de vista geopolítico, e lhe conferiu uma importância histórico-universal
superior, foi uma das partes signatárias do tratado ser americana. Uns
anos antes, em 1775, o Congresso Continental, reunindo representantes
daquelas que ainda eram colónias do Império Britânico, decidiu que cada
uma delas iniciaria o seu próprio processo constitucional, dando um
primeiro passo para a independência formal. Cada colónia atribuir-se-ia a
si mesma uma constituição republicana para o seu autogoverno. Na
realidade, o mal-estar político começara pelo menos uma década antes,
mas sempre com enormes cautelas quanto ao passo mais drástico – a
ruptura com a metrópole. Um ano depois, mais exactamente no dia 4 de
Julho de 1776, seria formalmente declarada a independência do conjunto
desses treze (agora) estados relativamente ao Império Britânico. Antes e
depois multiplicar-se-iam as declarações de independência dos estados e
por vezes até de cidades. Os ingleses reagiram com uma expedição militar
punitiva. Com as dificuldades de comunicação e a táctica do exército
americano liderado por George Washington, homem de elevada estatura,
física e moral, de se evadir tanto quanto possível à colisão frontal com o
exército imperial, os ingleses acabariam por se cansar do conflito.
Relutantes, acabaram por reconhecer a independência daquelas treze
colónias, ainda que mantivessem um território vastíssimo a norte, no
Canadá, para onde se exilaram dezenas de milhares de lealistas que antes
viviam no território.
Para a parte americana, obter a paz era crucial. Na verdade, a letra do
Tratado punha o rei britânico Jorge III a reconhecer como «livres,
soberanos e independentes» os trezes estados, e não a confederação que
eles formavam. Mas isso era quase irrelevante. A sobrevivência do
projecto político americano dependia da paz com o Império Britânico.
Desde logo, porque a inferioridade militar da jovem república era patente.
Depois porque a construção do seu caminho no mundo pressupunha a
capacidade de comerciar com todos, incluindo com quem dominava os
mares e se tornaria na grande potência económica, a que acresciam os
laços linguísticos, culturais e de afinidade mais profundos. A paz e o
reconhecimento da soberania americana permitiriam também estabilizar o
regime político fundado na América e que era absolutamente novo na
História. Os riscos de fracasso político eram grandes, os factores de
instabilidade também. Daí que as relações com os ingleses fossem tão
importantes.
Haveria muitas perturbações nos anos seguintes, a começar pela eclosão
da Revolução Francesa no momento em que os americanos inauguravam
uma nova Constituição republicana que procurava remediar a falência dos
Artigos da Confederação. Com efeito, a Revolução fracturou o debate
político americano, dividindo-o entre os «franceses», apoiantes da
revolução em França, liderados por Thomas Jefferson, e os «ingleses»,
críticos dela, mas não do regime republicano, liderados por John Adams.
Adams seria o segundo presidente da União, sucedendo a Washington.
Jefferson, o terceiro. Nas eleições que elegeram Jefferson, em 1800, o
debate político tornou-se particularmente amargo e violento. E, como se
sabe, os debates políticos americanos, não tendo o potencial terrorista dos
franceses, podiam tornar-se muito violentos, com o caso mais grave a
ocorrer em 1860 nas eleições que levaram Abraham Lincoln à Casa
Branca e o país à Guerra Civil. Evidentemente, a ajuda prestada pelo rei
de França não era esquecida. A amizade íntima da América
independentista com a França de Luís XVI fora forjada no fogo abrasador
da uma aliança de guerra. O ódio a Inglaterra reforçara essa amizade e era
reforçado por ela. E assim seria até aos primeiros meses da Revolução em
França. Todavia, a violência e o sectarismo, culminando no Terror
jacobino que se seguiu, desmancharia um entendimento tão arrumado.
Mas não percamos o fio à meada.
Na assinatura do Tratado em Paris estiveram, pelo lado americano,
eminentes políticos da República: John Adams; Benjamin Franklin, uma
espécie de ícone do espírito americano, e bem conhecido dos franceses;
John Jay, futuro primeiro secretário de Estado de Washington, primeiro
presidente do Supremo Tribunal Federal e segundo governador do estado
independente de Nova Iorque, e que co-assinaria os famosos Federalist
Papers, um extraordinário manifesto em defesa da ratificação da
constituição proposta pela convenção de Filadélfia em 1787 (desses 85,
artigos Jay apontaria aqueles dedicados às relações externas na
arquitectura constitucional); e Henry Laurens, um veterano da política
colonial e, mais tarde, do movimento independentista. Os três primeiros
assinariam o tratado oficial.
Anos mais tarde, um outro presidente dos EUA, filho do signatário John
Adams, descreveria o tratado como a «sobremesa» do «sumptuoso
banquete» que fora a Declaração da Independência de 1776. Fora o
«epílogo» desse «drama sem paralelo», do qual a «Declaração [era] o
prólogo».73 Com ele, os americanos obtiveram dos poderosos ingleses
fronteiras muito elásticas para sul, na direcção da Florida, e para oeste,
para a imensidão da expansão que ocuparia o país durante grande parte do
século XIX até às margens do Pacífico. Por outras palavras, se Raymond
Aron em tempos designou os EUA a República Imperial Americana74,
então o Tratado de Paris marcou o início do Império Americano. No início
deste livro ficou o aviso crucial de como os impérios podem ser
muitíssimo diferentes. E este não foi um império qualquer. Trata-se de um
império que, há cerca de cem anos, revezou a hegemonia britânica com
uma certa naturalidade, amparando até o lento declínio daquela potência,
convertendo-a no seu mais íntimo aliado. Mais como uma passagem de
testemunho do que como uma expulsão e substituição na hegemonia
global.
Não quero com isto iludir as grandes diferenças entre o Império
Britânico e a República Imperial Americana. Elas são ineludíveis. Além
disso, os EUA edificaram-se como a potência hegemónica no campo
militar, económico e, o que não é menos importante, cultural – o mundo
globalizado que fala inglês, as caracterizações americanas do quotidiano
das populações em todo o mundo, os símbolos e imagens oriundos do
cinema, da televisão, da literatura, da publicidade e do entretenimento
americanos, reconhecidos em todas as partes do planeta. E fizeram-no na
base de uma síntese dos contributos civilizacionais dos outros países
também envolvidos na Paz de Paris, a Inglaterra e a França. A síntese de
que falo consiste na combinação americana incrivelmente poderosa da
revolução democrática trazida pelos acontecimentos em França do final do
século XVIII com a revolução económica que a Inglaterra exportou para o
resto do mundo – tanto ao nível da produção e do consumo, como da
interpretação intelectualizada dessa revolução com a ciência da economia
política. Do ponto de vista histórico-universal, os EUA representam a
acção histórica desta síntese, a síntese americana da democracia com o
capitalismo. Quando medido pelos produtos da dinâmica social –
população, recursos económicos, meios de controlo do território e das
populações, tanto dentro de fronteiras como fora –, o sucesso da síntese
foi retumbante. Nas condições históricas dos últimos duzentos anos, a
expressão política desse sucesso teria forçosamente de ser a forma
imperial e a hegemonia geopolítica.
A Religião Civil Americana
A grande potência que nasceu em 1783 seria uma combinação inaudita
de democracia, mercado e religião. Não se tratava, nem se trata, de
elementos díspares. Mas a sua potente harmonização foi especificamente
americana e provavelmente irrepetível. A conciliação americana do
espírito da religião com o espírito da liberdade espantou de admiração
observadores como Tocqueville. Essa foi, e é, uma razão para que, nos
últimos duzentos anos, houvesse tanta perplexidade perante o fracasso da
geração de mais Américas pelo mundo fora. Ao contrário de muitos dos
valores democráticos, ao contrário de muitas das instituições da forma
económica moderna, ao contrário de muitos dos ensinamentos religiosos,
a alquimia americana provavelmente não é exportável. A alquimia
originária foi made in America. Veremos se continuará a sê-lo no futuro,
quando a América das origens se desvanecer no turbilhão do porvir
histórico.
«Uma agência livre, ou uma existência racional com os seus poderes e
faculdades, e a liberdade de fruir delas e exercê-las, é o dom de Deus ao
homem.»75 Esta passagem do sermão de Moses Mather, proferido em
1775, é apenas um exemplo dentre dezenas das formulações americanas –
antes sequer de haver Estados Unidos da América – da identificação da
liberdade humana com um dom de Deus – com o mais precioso dom de
Deus ao género humano. A famosa frase de abertura do segundo parágrafo
da Declaração da Independência do 4 de Julho de 1776 – «Sustentamos
que estas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais,
que eles são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que
entre eles estão a Vida, a Liberdade e a prossecução da Felicidade»76 – não
era mais do que o eco de síntese de todos estes sermões e reflexões. E se a
Declaração da Independência, que reuniu os contributos de homens mais
religiosos e de outros menos religiosos, referia a origem destes direitos às
«leis da natureza» e ao «Deus da Natureza», já a profusão de panfletos,
sermões e discursos que pontuaram a América antes e depois de 1776
afirmava a Providência do Deus bíblico sem quaisquer ambiguidades.
Afinal de contas, depois de várias tentativas falhadas de colonização,
quando os «peregrinos» protestantes, ditos dissidentes, fugidos da
repressão religiosa em Inglaterra embarcaram para fundar Boston em
1630, atravessaram o Atlântico com uma nova esperança.
O sermão que condensaria essa esperança foi escrito por John Winthrop,
que seguiria com os «peregrinos» na travessia do oceano, e seria
governador da colónia alguns anos mais tarde. Era um sermão sobre a vida
cristã, segundo a Lei do Evangelho, que os colonos iriam levar ao Novo
Mundo. Winthrop detalhava como se deveriam relacionar ricos e pobres,
credores e devedores. Explicava como se deveriam perdoar os inimigos e
amá-los. Aditava quais eram os deveres perante os homens e perante
Deus. Dizia ele que a colónia que iriam fundar seria uma comunidade de
amor cristão, que se desdobraria em todas as relações humanas –
familiares, económicas, políticas. A missão de fundar uma comunidade de
amor procedia do chamamento de Deus e resultava da obediência a Ele.
Não era uma cidade meramente profana que se queria fundar, mas uma
Nova Jerusalém – uma cidade que, unida no amor a Cristo e
impossibilitada no Velho Continente pelo triunfo do pecado de reis, nobres
e sacerdotes diabólicos, prefigurasse a vida celestial. À semelhança do que
era habitual nas exortações práticas protestantes, os exemplos do povo
eleito no Antigo Testamento adquiriam uma relevância contemporânea
não tão nítida nas igrejas estabelecidas. Em particular, a relação do povo
de Israel com Deus, em busca da Terra Prometida ou na luta contra os seus
inimigos, formava horizontes de orientação imprescindíveis para os
peregrinos ingleses. Também estes eram partes de uma nova Aliança. Se
os peregrinos cumprissem os seus deveres nessa Aliança, Deus traria a
paz no destino por que eles ansiavam. Mas se os peregrinos
abandonassem o caminho de Cristo, se caíssem e cedessem aos desejos
carnais, à sedução de outros deuses, como o «nosso prazer» e os
«proveitos», rompendo a Aliança, tornar-se-iam rapidamente as vítimas da
justa ira divina. Restava, pois, o caminho da «humildade, mansidão,
paciência e liberalidade», vivendo numa irmandade de amor. Assim,
testemunhariam no Novo Mundo que «o Deus de Israel está connosco», o
mesmo que lhes garantirá que «dez de nós seremos capazes de resistir a
mil dos nossos inimigos». E depois vinha o remate que celebraria
Winthrop para sempre na cultura americana. Disse ele aos seus irmãos de
fé e de aventura: «Pois temos de considerar que seremos como uma cidade
no topo da colina.»77
Uma cidade no topo da colina. Tal invocação do Evangelho de Mateus –
«Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada
sobre um monte»78 – queria dizer neste contexto que os olhos do mundo
estão sobre nós. A aventura americana era sublimemente exemplar. Do
seu sucesso dependeria não apenas a sorte de cada um dos peregrinos, mas
também a derrota dos inimigos de Deus, daqueles que aguardam pelo
insucesso das boas almas para poderem amaldiçoar os caminhos de Deus
por toda a parte. A aventura americana era exemplar para a Humanidade
na procura da paz e da liberdade para viver na devoção a Deus e para a
reputação de Deus no mundo dominado pelos homens maus. Na sua
origem, a aventura americana combinava a resolução aparentemente
contraditória de, por um lado, cada um tomar nas suas mãos o seu destino
temporal, começando de novo, e, por outro lado, cada um e todos em
conjunto colocarem-se fervorosamente nas mãos de Deus.79
A experiência colonial de gradual acumulação de prosperidade material,
liberdade religiosa e, no final do século XVIII, de atracção pelo modo de
vida republicano, levariam à assimilação integral do sermão de Winthrop
às novas circunstâncias. Primeiro, de luta contra o Império Britânico, e
depois de afirmação de um regime político que tinha por inerência uma
missão no mundo.
Regressemos a Moses Mather. A liberdade como dom de Deus consistia
no uso livre – ou segundo o arbítrio individual – das faculdades racionais.
Sendo livre, todos tinham «o direito mais claro» à «segurança pessoal, à
liberdade e à propriedade privada». A propriedade privada era uma
consequência desta concepção de liberdade, em que a natureza humana
fora criada por Deus, com determinadas possibilidades e faculdades,
doadas gratuitamente por Ele. «Por natureza», e «sob [a tutela] de Deus»,
cada indivíduo era o seu próprio «legislador, juiz, e vingador e o senhor
absoluto da sua propriedade». Além disso, e seguindo a tradição cristã
fundada por S. Paulo na Epístola aos Romanos, os americanos também
acreditavam que toda a autoridade política vinha de Deus. Mas com esta
determinação não redundante: Deus era a fonte do poder que brotava
através da «voz e consentimento do povo».80
Ora, o regime político compatível com o dom de Deus seria aquele que
não só agisse em nome do povo e em prol do bem do seu povo, como
salvaguardasse e protegesse os seus direitos naturais porque resultantes de
um dom divino. E isto só ocorreria num regime republicano. Porquanto da
liberdade natural e divina de cada um decorria o direito de participar nas
instituições políticas. Dos direitos naturais «sagrados» de propriedade
privada inferia-se um regime económico particular, que aceitava a
tributação pelo Estado desde que consentida formalmente pelo povo
tributado, e o princípio geral de não-ingerência política e social na
aquisição, acumulação e usufruto da propriedade privada.
O Tratado de Paris foi recebido na América com júbilo. Era pura e
simplesmente a confirmação, depois de tantas dúvidas e derrotas, da
independência declarada, mas não garantida, em 1775 e 1776. George
Duffield, um clérigo presbiteriano, veterano da contestação ao domínio
inglês, e que convivia com a nova elite política independentista, celebrou
a 11 de Dezembro de 1783 uma acção de graças pela paz. O triunfo era
mais uma prova da benignidade da Providência humana no que respeitava
ao destino temporal dos americanos. «Uma nação nasceu de facto, quase
de imediato.»81 No caso americano nem fora preciso aguardar quarenta
anos de errância no deserto, como sucedera com o outro povo eleito, o de
Israel. E logo contra a grande potência militar e económica do mundo!
Deus abençoara a América na luta contra a Inglaterra. Escolhera o lado
americano, tal como alguns milénios antes tomara partido por Israel.
Washington era o novo Josué. Agora, no primeiro ano do resto da sua
vida, a América continuaria a ser abençoada por Deus. A Deus, os
Americanos deviam tudo.82
O paralelo com o povo de Israel escolhido e comandado por Deus era
uma referência constante dos numerosos sermões políticos que
abençoavam a experiência americana, a sua luta e fundação política, e que
profetizavam a sua glória futura. Samuel Langdon era um pastor
congregacionista, muito activo na contestação ao Império Britânico, e que
acabaria por ser decisivo na convenção do estado de New Hampshire para
a ratificação da nova Constituição em 1788. Na sua oratória fez um amplo
uso do exemplo do povo de Israel para a América – ou do exemplo da
América para o mundo. Porquanto a América também podia ser vista
como uma «nação» escolhida por Deus e, por intermédio dessa escolha,
separada do resto da humanidade. Nessa medida, Israel era visto como
uma república, o que não deixava de ser muito conveniente. Uma
república regrada por leis como o mundo jamais conhecera. Era, pois, o
mais rico dos exemplos, este dos Israelitas que da «escravatura abjecta, da
ignorância e da quase total ausência de ordem», passou «a um sistema
nacional aperfeiçoado em todas as suas partes muito além dos outros
reinos e Estados», de uma «simples turbamulta» passou a «nação bem
regulada, com um governo e leis muito superiores aos de que nenhuma
outra nação se podia gabar».83
Mas havia um ponto de demarcação entre as experiências dos Judeus e a
dos Americanos. É que os primeiros tinham recebido as mais excelentes
leis dadas directamente por Deus. Não obstante, foram incapazes de as
cumprir e preservar. Os Americanos aprenderiam essa lição, esperava-se.
E a glória terrena que faltou aos Israelitas sorriria aos Americanos sempre
fiéis, sempre obedientes, sempre devotos. No final, os Judeus pediram
para viver sob o jugo de um rei, como as outras nações. Esse «crime» os
Americanos não poderiam, nem iriam cometer. O que valia, e valeu, para
as Doze Tribos de Israel valia para os Trezes Estados Unidos. Seguir o
caminho de Deus, abandonado pelos Israelitas, e conduzidos pela mão
providencial de Deus, aos Americanos caberia «número, riqueza e poder»,
além de «reputação e dignidade entre as nações». Sem esquecer a lição
fundamental: sem religião, não haveria liberdade, incluindo liberdade
política. Sem religião, a república não sobreviveria. A condição necessária
era a religião e a moral e os bons costumes: «sobriedade, regramento,
honestidade, fidelidade, industriosidade, frugalidade» eram as virtudes da
vida ordeira e livre – da vida republicana.84
O bispo James Madison, homónimo do seu primo, este um dos
progenitores da Constituição de 1787-1788 e que seria o quarto presidente
da União, lia na história política da Humanidade os contornos nítidos do
desígnio providencial. E para onde apontava a Providência? Para uma
marcha irresistível e universal da liberdade no mundo. O espírito da
liberdade emigrara da Inglaterra para a costa atlântica da América do
Norte. A revolução da liberdade começara na América. Alastrava-se agora
à Europa. Mas não pararia na sua caminhada até que se consumasse a
«restauração completa dos direitos inerentes ao género humano (...) por
todo o globo».85 E Deus não perdoaria, avisava David Osgood, um clérigo
congregacionalista do Massachusetts, a um povo tão visado pela
generosidade da Providência que revelasse na sua conduta uma essencial
ingratidão. O dever de reconhecimento perante Deus e de acção de graças
frequentes era indeclinável. Os Americanos teriam de mostrá-lo nos
pequenos gestos da vida quotidiana e nas grandes opções políticas.86 Com
isto, a América seria no futuro o exemplo orientador do anelo dos povos
pela liberdade e pela fraternidade.87
Industrializar ou não Industrializar? Eis a Questão Geopolítica
Que a veia comercial e economicamente empreendedora lhes vinha da
herança inglesa e de certas instituições, os Americanos não tinham
dúvidas. Por exemplo, na comemoração dos cem anos da chamada
Revolução Gloriosa, que havia deposto Jaime II do trono inglês,
substituindo-o por Guilherme de Orange e Maria, filha do rei escorraçado,
Elhanan Winchester, um pastor baptista do Massachusetts, remetia para a
Inglaterra e para a sua história política a origem de na América se gozar de
tamanhas garantias da «liberdade de adquirir e pacificamente possuir
propriedade». É verdade que à Inglaterra a América devia outras
liberdades porventura mais sagradas, como a «liberdade pessoal» ou a
segurança do indivíduo face ao arbítrio de outrem, a «liberdade de
imprensa» ou a «liberdade de consciência». Mas a primeira que ele
enunciava, a de adquirir e gozar de propriedade privada, era
indubitavelmente a causa de muitas «bênçãos» materiais e não devia ser
desvalorizada.88
William Emerson, pastor unitarista e pai do poeta e ensaísta Ralph
Waldo Emerson, repetia essencialmente a mesma ideia quando perorou em
comemoração de um aniversário da Revolução Americana na cidade de
Boston em 1802. Como não haveriam de ser empreendedores os
Americanos quando eram descendentes de um «povo comercial»? O que
lhes corria no sangue era estimulado pelo país que habitavam e que
inspirava todos os empreendimentos económicos de expansão das
fronteiras da prosperidade. Daí também o cuidado que dedicavam na
limitação dos gastos e tributação do poder político. Para os Americanos, a
liberdade estava no «controlo da sua riqueza» mais até do que na «eleição
dos seus governantes».89 Em suma, esta jovem república democrática ao
integrar a forma económica moderna separava-se da experiência
republicana do passado, sobretudo das cidades marcantes da consciência
ocidental como Esparta e Roma. Ambas tinham sido sedes de um
republicanismo pobre, austero, que reprimia os desejos materiais de
individualidade. Eram inimigas dos luxos, da dedicação à vida económica
e viam a acumulação de riquezas como uma ameaça directa à coesão
cívica, às virtudes marciais e à entrega dos cidadãos ao bem comum da
cidade.
Não era assim na América. Como escreveu Alexis de Tocqueville ao seu
irmão Édouard: na América, «a paixão profunda, a única que move
profundamente o coração dos homens, a paixão de todos os dias, é a
aquisição de riqueza, e há mil maneiras de adquiri-la sem perturbar o
Estado».90 Numa carta enviada poucas semanas mais tarde, Tocqueville
regressava ao mesmo assunto com o seu amigo Ernest de Chabrol. O povo
americano, reflectia Tocqueville...
(...) parece uma companhia de mercadores, reunida para os negócios; e
quanto mais fundo escavamos o carácter nacional dos Americanos,
mais se vê que eles procuraram o valor de tudo apenas na resposta a
esta simples pergunta: quanto dinheiro é que vai render?91
Os EUA eram uma democracia nova. E eram uma democracia moderna
na assimilação da forma económica aquisitiva e reprodutiva-crematística à
forma política popular.
Após o Tratado de Paris e, sobretudo, com a ratificação da nova
Constituição em 1788, os EUA puderam concentrar-se no futuro
geopolítico e geoeconómico da sua jovem e, por enquanto, frágil
república. Tomaram duas decisões que alterariam o rumo da História da
Humanidade. Uma de ordem económica. A outra de política externa geral.
Comecemos pela economia. Na madrugada de 11 de Julho de 1804,
junto às margens do rio Hudson, vendo o sol nascer por detrás da ilha de
Manhattan no outro lado das águas, dois homens preparavam-se para um
duelo mortal. De um lado, Aaron Burr, vice-presidente dos EUA em
funções. Do outro, Alexander Hamilton, o enfant terrible da política
americana, favorito de George Washington desde os tempos da Guerra da
Independência, e o primeiro secretário do Tesouro da história da União.
As causas do duelo não nos interessam, nem as dimensões do escândalo
em que o vice-presidente da União matou a tiro o seu rival político de
Nova Iorque. Interessa-nos apenas porque foi aqui que terminou uma
carreira vertiginosa de um prodígio político inigualável.
Entre as muitas obras que Hamilton na sua curta vida deixou contam-se
os seus escritos económicos. Entre estes conta-se a defesa da
industrialização dos Estados Unidos. No famoso Relatório sobre o
Assunto das Manufacturas, Hamilton defendia uma decisão fundamental –
a de que os EUA não seriam, ou não deveriam ser, um mero complemento
económico da economia inglesa na produção de matérias-primas, em que
ricardianamente teriam uma sólida vantagem comparativa. Deviam, antes,
mudar de rumo e imitar a Inglaterra para mais tarde ultrapassá-la em
poderio económico.
Acontecia que, para imitar a Inglaterra no seu estatuto de preeminência
económica europeia e atlântica, os EUA teriam de seguir por um caminho
de desenvolvimento diferente daquele que fora trilhado pela Inglaterra.
Faz diferença tomar a dianteira num processo histórico, e estar só nesse
caminho, ou ser um seguidor que enfrenta todas as vantagens do líder
além das suas próprias desvantagens. O Relatório sobre o Assunto das
Manufacturas fora solicitado por resolução do Congresso e apresentado
por Hamilton no final de 1791. É uma peça de reflexão e de proposta de
acção a vários títulos admirável. Convém não esquecer que, quando
Hamilton reflectiu sobre este problema e politicamente se expôs com a
proposta audaz de um caminho não experimentado e arriscado para o
futuro, os EUA eram um país essencialmente agrário, praticamente sem
indústria digna desse nome. Para os políticos americanos, o futuro era
obviamente agrário, dada a extensão infinita de terra fértil ainda por
colonizar a oeste até ao Pacífico – em contraste com uma Europa no início
de uma explosão demográfica e com severos limites à expansão da terra
cultivada. O futuro estava, por assim dizer, diante dos olhos dos
Americanos e era agrário. Menos para Hamilton.
No Relatório, Hamilton reprovaria as teorias económicas que de um
modo ou de outro, ainda muito ao estilo do século XVIII, conferiam
centralidade à actividade agrícola, menorizando a actividade industrial (e
comercial). A influência da chamada escola dos fisiocratas fora imensa
sobre a generalidade dos economistas na segunda metade do século XVIII.

Hamilton, o político, soube ser mais clarividente do que os peritos, os


economistas. Da constatação das vulnerabilidades da ciência económica
da sua época ao discernimento das necessidades geopolíticas dos EUA,
Hamilton percorreu os pontos nevrálgicos da construção de uma política
económica alternativa. Atendendo à delicadeza da situação geoeconómica
dos EUA, ou a sua extrema dependência económica relativamente à
Inglaterra, que esta aproveitava para condicionar a existência política da
nova nação, Hamilton fazia notar que a sobrevivência geopolítica da
América como país independente requeria uma certa dose de auto-
suficiência económica. Por alguma razão, e a razão era a influência directa
de Hamilton, George Washington, a 8 de Janeiro de 1790, na
primeiríssima mensagem anual enviada ao Congresso – naqueles tempos e
por muitos anos não havia discursos do presidente sobre o Estado da
União em pleno Congresso – avisara que a independência dos povos livres
solicitava urgentemente que se «promovesse as manufacturas suficientes
para torná-los independentes de outros no que respeita a abastecimentos
essenciais, e em particular militares».92
Para Hamilton não havia que ter muitos pruridos ideológicos. Se fosse
preciso contrariar as teses de Adam Smith, muito popular entre os
Americanos naquele final de século, e a sua defesa do comércio livre
internacional, tanto pior para Adam Smith. A política comercial não podia
ser determinada por critérios estritamente económicos. Fazia parte
integrante do todo da política externa de um Estado. Hamilton rejeitou que
o padrão de divisão internacional do trabalho fosse determinado pela
situação material factual no momento presente. Politicamente, a situação
de facto podia ser transformada amanhã. A vantagem comparativa não era
estática. Essa era a intuição decisiva.
É verdade que, em larga medida, o que se seguiu não foi a
operacionalização uniforme das teses de Hamilton pelo território
americano. Em particular, os estados do Sul prosseguiram com a sua
vocação agrária, associada em parte às grandes plantações onde
predominava o trabalho escravo. Apesar da excepção sulista, o não de
Hamilton seria decisivo. Não queria o seu país como uma economia
especializada na produção agrícola. Para ele, as vantagens absolutas, ou as
diferenças estruturais entre países, que tornavam o comércio internacional
mutuamente profícuo, não eram ditadas pelo destino, nem gravadas na
natureza para todo o sempre. Podiam ser, dentro de limites amplos, é
certo, manipuladas por políticas acertadas. Pelo menos neste aspecto
decisivo, o político tinha uma capacidade de determinação do
desenvolvimento económico que era inegável. Mas, ao mesmo tempo,
substituía o estatuto do economista como astrónomo por outro bem
diferente. O grande estadista do futuro não seria apenas alguém que
tivesse vencido uma grande guerra, ou que encarnasse um qualquer ideal
de justiça. Seria também, e cada vez mais, aquele que transformasse o
conteúdo económico do seu país e o pusesse numa esteira de
desenvolvimento ininterrupto durante décadas e décadas.
A afectação dos recursos produtivos pelos usos mais eficientes como
efeito do livre jogo do mercado era uma tese que a autoridade de Adam
Smith fizera singrar rapidamente. Não ter qualquer política industrial ou
comercial era superior nos resultados ao activismo proteccionista e
dirigista. Hamilton contestava a tese e a conclusão. Os hábitos
económicos não eram automaticamente mutáveis. O que se fizera durante
muito tempo tinha algum efeito de inércia sobre os comportamentos,
expectativas e ajustamentos das pessoas. Por vezes, era preciso efectuar
mudanças no interesse dos indivíduos e da sociedade como um todo que
um certo emperramento fazia tardar. Na relação com o economicamente
novo, essas lentidões e inibições tornavam-se mais notórias e custosas. O
medo do fracasso no investimento em produtos ou técnicas novas podia
ser paralisante. Alguma «confiança», que era equivalente a dizer alguma
garantia, teria de ser dada aos investidores para que eles dessem o salto
necessário. Só o Estado, só o poder político, estava em condições de dar
essa garantia. De resto, a «confiança» era um bem económico capital que
tinha a particularidade de ser um bem eminentemente político também. A
«confiança» era a opinião generalizada e disseminada que se tinha acerca
das instituições, da segurança dos projectos pessoais e, em última
instância, na estrutura política da comunidade. Confiar era sinónimo de ter
uma boa opinião, uma opinião tranquilizadora, que permitia agir para o
futuro. Quando a confiança se sumia, a opinião que se formava na
consciência dos cidadãos e dos agentes económicos tornava-se negativa,
lendo nocividade ou até hostilidade nas instituições, instrumentos e
estrutura política do Estado. Resta dizer que no domínio da opinião a
aparência valia tanto, ou quase tanto, quanto o real. Além disso, uma
política da industrialização tinha de ser uma política da inovação e da
invenção. Cabia também ao Estado premiar e incentivar as inovações
industriais que favoreciam e eram indispensáveis ao progresso.93
Ademais, o desejo de cada um melhorar a sua condição, que em Smith
era tido como espontâneo, ou correlativo a contextos de um mínimo de
liberdade de acção e de segurança da propriedade, era para Hamilton algo
que carecia de incentivos e golpes de espora. Aquilo a que ele chamava
«espírito de melhoramento» (spirit of improvement), florescia apenas em
contextos propícios e configurados para o inflamar. O Estado era um
agente primordial na criação e manutenção desse contexto propício. Mas
como é que um «espírito de melhoramento» podia ser tido como não
espontâneo e, não obstante, ter esse poder transformador? Como é que um
espírito desses podia ser, ele mesmo, produzido, e ainda por cima pela
acção do Estado? A resposta a estes impasses foi dada pela sociedade
americana em crescimento e a tomada de consciência do espírito
americano: empreendedor, responsável, cioso da sua propriedade e
mobilidade, alimentando o sonho de passar da pobreza para o conforto da
abundância. Todavia, este individualismo económico estava associado a
uma profunda religiosidade, ao sentido comunitário e ao patriotismo.
Política, indivíduo, economia e comunidade formavam na América uma
combinação historicamente inaudita.
Já nesta altura, Hamilton tinha um cortejo de ódios que reunia os
homens mais importantes da república. A começar por James Madison,
um dos progenitores da Constituição, e o insuperável Thomas Jefferson,
na época secretário de Estado de Washington, e, portanto, colega de
governo de Hamilton. Ambos julgaram inconstitucional por ultra vires
aquele activismo político-económico proposto ao Estado federal. Apesar
de recomendar que se atirasse sem demoras o relatório para a lareira,
Madison compreendeu, correctamente, que a adopção ainda que não de
toda a letra do Relatório, bastando apenas do seu espírito, converteria um
executivo federal, limitado nas suas funções e pequeno na sua extensão,
num grande governo intervencionista.94 Jefferson também não queria o
governo federal com esse poder nas mãos, preferindo que se deixasse cada
um dos estados com essas competências. Um ano depois da publicação do
Relatório, preveniu o presidente Washington por carta de que a adopção
daquelas teses «demoliriam a república».95 O dilema para Madison e para
Jefferson era que, ainda que convencidos da inconstitucionalidade do
Relatório em particular, e da vileza de Hamilton em geral, ambos também
desejavam alguma auto-suficiência económica sem a qual nunca haveria
independência relativamente à Inglaterra.
Pouco mais de um século depois, a América alcançava o poder
industrial e geoeconómico da Inglaterra e da Alemanha. Depois da
Primeira Guerra Mundial era já a maior potência económica do planeta. E
esse poder seria indispensável para poucos anos depois vencer o nacional-
socialismo alemão, o fascismo italiano e o imperialismo japonês. Mais
tarde, seria determinante para forçar o colapso do comunismo soviético.
A Geopolítica Europeia na Doutrina Americana
No dia 25 de Agosto de 1814, as tropas inglesas invasoras ocuparam e
destruíram a capital dos EUA, Washington, D. C. E de caminho
incendiaram a residência do presidente – hoje, a Casa Branca – e o
Capitólio, que continua a albergar o Congresso. Trinta e oito anos depois
da independência, era a suprema humilhação. Na verdade, a guerra com os
Ingleses recomeçara por iniciativa dos Americanos em 1812 e não
faltaram ataques e pilhagens a cidades na América do Norte Britânica
(Canadá) pelo exército americano. A resistência americana ao ataque
inglês a Fort McHenry inspirou Francis Scott Key a compor o poema Star-
Spangled Banner, que se tornaria o hino nacional americano. O conflito
acabou por ser muito danoso para ambas as partes. Foram levadas à paz na
véspera de Natal de 1814 por essa frustração quase equitativamente
repartida.
Não nos podemos demorar nem sobre as condições negociadas da paz,
nem sobre as causas da guerra. Importa mais para os propósitos deste livro
perceber quem era o secretário da Guerra do então presidente James
Madison. Chamava-se James Monroe. Quando Washington ardeu, Monroe
era secretário de Estado. O impacto da humilhação americana fez Madison
nomear o seu secretário de Estado para o cargo de secretário da Guerra, na
prática acumulando ambos. Os meses que se seguiram deram-lhe
suficiente capital político para que fosse eleito nas eleições de 1816 para a
Presidência da União.
Aquilo a que política americana designaria Doutrina Monroe
originariamente não foi declarada como tal. Na sua origem não foi mais
do que algumas passagens da mensagem presidencial anual ao Congresso
enviada por James Monroe aos representantes do povo no ano de 1823. É
verdade que por duas vezes no século XIX foram derrotadas moções no
Congresso para converter essa doutrina em lei. É igualmente verdade que
nos anos que se seguiram à Mensagem do Presidente Monroe não foram
as suas palavras que se encarregaram de intimidar possíveis veleidades
europeias de recolonização das Américas, mas antes a diplomacia inglesa
e a Royal Navy. Mas esses factos não permitem duvidar da sua
centralidade na construção da política externa americana e da própria
consciência política dos EUA. A sua importância foi avassaladora para a
sua ascensão a grande potência continental, intercontinental e finalmente
mundial. Nenhuma outra articulação de política externa se tornou tão
estruturante do lugar dos EUA no mundo como esta. Como alguém disse,
a Doutrina constituiu a narrativa mais poderosa do século XIX com que os
Americanos podiam dar sentido ao lugar dos Estados Unidos no mundo.
Por outras palavras, foi o recurso intelectual mais determinante na
autointerpretação geopolítica do Estado americano, aquele que viria a
crescer até chegar a uma posição de hegemonia no mundo e atingir a
dimensão de um império.
O contexto dessa mensagem de Monroe era de crise. Por um lado,
generalizava-se o receio (injustificado) de que as potências europeias se
preparavam para recolonizar o continente americano que obtivera
independência de Espanha. Corriam rumores de que a Santa Aliança
(Rússia, Prússia e Áustria), apoiada pela França da Restauração, se
preparava para auxiliar a Espanha pela via militar nesse esforço de
recuperação imperial, depois de terem reabilitado Fernando VII no trono
espanhol. Por outro lado, os EUA enfrentavam a concorrência da
Inglaterra e da Rússia no que dizia respeito às ambições na costa norte-
ocidental do Pacífico.
Porém, o conteúdo da mensagem seria suficientemente criativo para ir
além das mais directas imposições contextuais. A mensagem dividia o
mundo segundo uma referência geográfica que teria uma bela carreira na
consciência política americana. Agora passava a haver o hemisfério
ocidental, que incorporava todo o continente americano e o oceano
Pacífico; e o hemisfério oriental, que englobava os restantes continentes.
A habitual divisão entre hemisfério sul e norte era convenientemente
substituída pela divisão Ocidente/Oriente, mas desviando bastante mais
para Oeste a fronteira tradicional entre ambos, deixando agora a Europa e
a Rússia no hemisfério oriental. A divisão seria levada mais longe, como
veremos. Seria a categorização geográfica de dois regimes políticos
diferentes e antagónicos: no Ocidente, a república democrática, defensora
dos direitos naturais dos indivíduos, mostrada ao mundo pelos EUA; no
Oriente – e este Oriente era essencialmente a Europa e o seu domínio
sobre o resto do mundo – havia formas mais ou menos disfarçadas de
tirania monárquica, antiquada e mais ou menos opressora. O hemisfério
ocidental era o Novo Mundo político, protegido e liderado pelos EUA; o
hemisfério oriental era o Velho Mundo político, constantemente em
conflito e entretido em jogos de poder que sacrificavam a felicidade dos
povos. As intrigas, golpes e conquistas do Velho Mundo eram
protagonizados pela Inglaterra ou pela Santa Aliança, formada por
instigação da Rússia, e pensada pela Áustria de Metternich, a que também
pertencia a Prússia, para controlar as irrupções revolucionárias depois da
eliminação do poder napoleónico em 1815. A invenção do hemisfério
ocidental era muito mais do que uma nova representação cartográfica. Era
a expressão de uma nova concepção geopolítica e do lugar dos EUA nela.
Citando a mordaz formulação crítica de José Martí, o grande poeta
nacionalista cubano do século XIX, era a criação de uma «moralidade
geográfica».96
Afinal, o que dizia a Doutrina? Duas coisas não necessariamente
ligadas, mas que a ambição geopolítica dos EUA já se tinha encarregado
de ligar.97 Primeiro, os EUA declaravam unilateralmente o continente
americano – incluindo, claro está, toda a antiga América espanhola e
portuguesa – interdito à colonização europeia. Os EUA tomavam para si a
guarda da «condição livre e independente» – para usar as palavras de
Monroe – dos recém-criados países do continente ocidental (Bolívia,
Venezuela, Argentina [Buenos Aires], Chile, México, Peru e, claro, Brasil)
para protegê-los das investidas colonialistas do Velho Continente. A via da
liberdade política era aparentemente a razão que permitia aos EUA
assumirem este papel que ninguém lhes solicitara. O facto de os EUA
reconhecerem o México e o Brasil, dois Estados que explicitamente se
apresentavam ao mundo como impérios hereditários, perturbou muitas
consciências republicanas. Houve quem até rejubilasse com as revoltas
republicanas no Pernambuco que deram origem à fugaz e malograda
Confederação do Equador. Mas não o suficiente para reverter a política
diplomática americana. Mais, o território do hemisfério ocidental
politicamente organizado era protegido das garras colonialistas europeias,
mas, da mesma penada, o território por colonizar do hemisfério era posto à
disposição da colonização americana sem que se admitisse concorrência
de outras potências colonizadoras.
O hemisfério ocidental estava, pois, interdito à expansão europeia.
Como vimos, havia um contexto diplomático para esta afirmação de poder
americano. O Governo czarista russo e o Governo inglês tinham
manifestado a vontade de negociar o estatuto definitivo da costa norte-
ocidental americana. Contudo, não era imediatamente evidente por que
motivo a condição da costa do Pacífico da América do Norte, onde não
havia qualquer estado político constituído, nem dos EUA, nem do Canadá,
e com insignificante população, sob o olhar da Rússia e da Inglaterra,
produzia consequências sobre uma suposta recolonização dos territórios
bem mais a sul que até poucos anos antes pertenciam a Espanha e a
Portugal. A ligação tornar-se-ia óbvia. As ex-colónias agora
independentes não podiam ser assediadas pela Europa, e os EUA
asseguravam o monopólio do direito político a povoar, colonizar e anexar
os territórios onde ainda não havia EUA. Por outras palavras,
asseguravam o grande desígnio, o Destino Manifesto, da extensão
continental de um oceano ao outro – from sea to shining sea. Mas nada se
dizia sobre as «nações» índias independentes no Oeste da América do
Norte. Era um silêncio imensamente expressivo.
Seguidamente, Monroe mencionou a intenção de Portugal e de Espanha
respeitarem as independências alcançadas pelas suas ex-colónias
americanas. E aproveitou para sublinhar que a liberdade dos povos
europeus era assunto que não era indiferente a nenhum americano. Até
porque a «origem» de cada um dos Americanos estava na outra costa do
Atlântico. Contudo, o ponto principal a sublinhar era outro: a não
intromissão dos EUA nas guerras e nos conflitos entre potências
europeias. A política externa americana seria estritamente defensiva, como
todos os republicanos desde os tempos da fundação juravam. Os EUA
agiriam em sua própria defesa quando os seus «direitos» tivessem sido
«trespassados ou seriamente ameaçados».
A assimetria – dir-se-ia, hemisférica – de prioridades políticas para os
EUA era notória. Na Europa, os EUA não se intrometeriam, nem nas
alianças, nem na política interna de nenhum dos seus Estados. Não faria
sequer julgamentos sobre a legitimidade deste ou daquele governante,
desta ou daquela forma de governo. Era um princípio geral que servia para
responder ao desafio muito concreto que fora colocado a Monroe. George
Canning, o notável secretário dos Assuntos Externos inglês, propusera
nesse ano que os EUA se juntassem à Inglaterra contra a Santa Aliança,
com o desígnio de interditar o continente americano às tentativas
espanholas, ou de outros, de recolonizar os territórios agora
independentes. A resposta, proveniente da cabeça de John Quincy Adams,
e apesar da reticência do próprio presidente, não podia ser mais clara. Era
um rotundo não ao convite inglês. E uma afirmação de um caminho
americano próprio.
A política externa americana para os países europeus não seria uma
política de indiferença, mas de «amizade» com todos, desde que não
sofresse «injúrias» de ninguém. Mas, no hemisfério ocidental, o caso
mudaria de figura. A razão da assimetria não estava apenas na distância
oceânica. Estava igualmente na diferença de regimes políticos de um lado
e do outro do oceano. A América lutaria em defesa do seu republicanismo
democrático contra as monarquias tradicionais da Europa. Defender o
republicanismo democrático implicava, na óptica da Doutrina, não tolerar
exportações do monarquismo europeu para solo americano. Com a
Revolução Americana e definitivamente com a Revolução Francesa, a
questão do regime político voltava a ser definidora da política externa dos
Estados e um elemento geopolítico de primeira ordem. Tinha de se tornar
o mundo seguro para a democracia.
Segundo a Doutrina Monroe, não haveria incómodo com as colónias
que os europeus tinham mantido no hemisfério ocidental, mas a
intolerância abrangia todos os Estados que tinham adquirido recentemente
a sua independência das metrópoles europeias. A ingerência europeia na
ex-América espanhola e portuguesa seria vista pelos americanos como a
«manifestação de uma disposição hostil». Este aviso era necessário à luz
dos recentes acontecimentos em Espanha e Portugal, onde as forças
políticas ainda não se tinham conformado com a perda de um império
secular, e que mostravam que a Europa ainda estava «inquieta» quanto à
perda das Américas como província de impérios. A Doutrina era, pois,
este aviso: a Europa que deixasse os novos Estados americanos em paz e
assim os EUA fariam o mesmo com as suas colónias no continente
americano e no resto do mundo.
Oitenta anos mais tarde, o primeiro dos presidentes Roosevelt
acrescentaria o seu próprio «corolário» à Doutrina Monroe. Segundo o
corolário, a responsabilidade de protecção dos EUA ao hemisfério
ocidental estendia-se até ao direito de intervir em qualquer ponto do
território hemisférico. Foi a 6 de Dezembro de 1904, e depois de digerir a
crise venezuelana de 1902-1903, que Theodore Roosevelt decidiu enviar a
habitual mensagem anual ao Congresso. Nela explicitou o direito de os
EUA reporem a ordem da «civilização» num país cujas «malfeitorias
crónicas» ou «impotência» conduzisse ao colapso dos «laços da sociedade
civilizada». Em concreto, isto queria dizer que quando um Estado no
hemisfério ocidental não pagasse as suas dívidas externas ou atentasse
contra a ordem republicana, a Doutrina Monroe pré-anunciaria e
justificaria o uso da força pelos EUA, à semelhança de um «exercício de
um poder policial internacional».98 Primeiro, no início do século XX,
polícia do hemisfério ocidental. Depois, no final do mesmo século, polícia
dos dois hemisférios em simultâneo. Theodore Roosevelt não perderia
tempo e logo no ano seguinte aplicaria o «corolário» da Doutrina Monroe
sem hesitações à República Dominicana. Em 1911, seria a vez da
Nicarágua já sob a presidência de William Howard Taft. Em 1915, o Haiti
seguir-se-ia, com Woodrow Wilson na Casa Branca.99
O Farol e os Monstros
Foram várias as mãos que compuseram aquela mensagem enviada por
Monroe ao Congresso em Dezembro de 1823. O próprio presidente; o
secretário da Guerra, John Calhoun – um dos mais proeminentes políticos
sulistas no período anterior à Guerra Civil; William Mirt, procurador-geral
dos EUA e, por isso, membro do executivo de Monroe; e sobretudo o
secretário de Estado, John Quincy Adams. A mensagem foi composta
pelas mãos destes quatro. Mas o longo alcance geopolítico da declaração,
aquilo que fez dela a Doutrina Monroe, vinha da cabeça de Quincy
Adams, que redigiu um dos parágrafos – relativo à proibição da
recolonização europeia – e orientou os outros dois – os da não-
intervenção.100
Quincy era o segundo mais notável do notável clã Adams, que já
rendera um presidente à República e um dos seus mais eminentes Pais
Fundadores. Não restam dúvidas de que no texto da Doutrina Quincy fazia
coro, se bem que com uma voz intelectualizada e muito cultivada, de uma
ideia e motivação que estavam na atmosfera política americana daquela
época.101 Mas articulou-a com um brilhantismo incomum e, com ele, fez
de um simples «princípio» uma trave-mestra do regime político
americano.
Quincy nascera em Quincy, uma cidade próxima de Boston no estado do
Massachusetts, e fora objecto da mais esmerada educação e preparação
para o serviço público. Tivera uma ampla experiência internacional,
incomum para um americano do seu tempo, desde a sua meninice quando
acompanhou o pai à Europa em missões diplomáticas da maior gravidade.
Foi embaixador dos EUA durante oito anos nas principais cidades
europeias: São Petersburgo – onde privou frequentemente com o czar
Alexandre I – Gante e Londres. Esteve de malas feitas para assumir o
cargo de embaixador dos EUA em Lisboa, mas à última hora foi desviado
para Berlim para assumir a recém-criada embaixada na Prússia como
ministro dos EUA nomeado pelo presidente, John Adams, o seu pai. Foi
provavelmente o mais influente de todos os secretários de Estado que a
América conheceu. E, poucos anos depois, um dos presidentes mais
fracassados da história da União. Não seria à toa que Tocqueville e o seu
amigo Beaumont o tivessem procurado, e com ele se tivessem
entrevistado, durante a sua viagem pela América.
O fracasso da sua presidência é irrelevante para os nossos propósitos.
Foi um produto óbvio da indisponibilidade ou incapacidade de Quincy
Adams de se adaptar à vaga de democratização e partidarização da política
interna americana. Mas como estratega geopolítico do seu país, Quincy foi
um dos maiores – e num sentido muito restritivo e selectivo de quem
foram os maiores. Dois anos antes da mensagem de Monroe ao
Congresso, John Quincy Adams fizera um discurso comemorativo do 4 de
Julho onde deixara todos os pontos nos is da futura Doutrina.
Nessa ocasião, Adams recordou aos seus ouvintes que os EUA foram
fundados pela liberdade e pela doutrina dos direitos do homem. Cansados
de opressão política e religiosa no seu país natal, alguns dos ingleses
arriscaram tudo para viver segundo as luzes da liberdade, dos direitos
naturais e da liberdade religiosa. Quando chegaram ao novo continente,
foi com base num «pacto social» que deixaram para trás a «conquista» e a
«servidão». As relações cívicas que aí se desenvolveram eram todas filhas
do «consentimento».102
Adams explicou que aquilo que os Americanos tinham feito cinquenta
anos antes não lhes dizia respeito apenas na sua condição particular. Fora
muito mais do que isso. Pela primeira vez, uma «nação» fundara o seu
regime político no único título «legítimo» que existia: a «soberania
inalienável do povo», a liberdade individual e os direitos iguais para
todos. Na verdade, segundo Quincy Adams, a nação americana e o
republicanismo democrático assente na soberania popular nasceram no
mesmo acto fundacional. Adams proclamou assim o significado histórico-
universal de 1776: «Foi a pedra angular de um novo tecido, destinado a
cobrir a superfície do globo.» A América proclamara à Humanidade os
«direitos inextinguíveis da natureza humana e as únicas fundações
legítimas do governo».103
Era, afinal de contas, o princípio do Fim da História à la Fukuyama – e
sem o socorro de Hegel. O outro lado da mesma moeda era o de que a
América mostrara a toda a Humanidade a condenação de todos os regimes
políticos fundados na «conquista» – e que nenhum povo precisava de
tolerar tamanha imposição. A América era, e continuaria a ser sozinha...
(...) um farol no topo da montanha, para o qual os habitantes da Terra
podem virar os olhos em busca de uma luz genial e salvífica, até que o
tempo venha a perder-se na eternidade, e o próprio globo se dissolva,
sem deixar um náufrago para trás.104
A recapitulação do mito fundacional americano e do seu significado
histórico era indispensável como preâmbulo da definição da nova política
externa americana no início do século XIX depois da amarga experiência
da guerra de 1812 com a Inglaterra e depois do fim de Napoleão na
Europa. Mas era uma recapitulação que atribuía primazia política – e já
não tanto religiosa, como vimos com Winthrop – ao fundamento do mito.
Os EUA falariam a todas as nações, mesmo às mais desdenhosas, com a
linguagem da «igual liberdade, igual justiça e direitos iguais».
Respeitariam a independência de todas as nações, incluindo das mais
desdenhosas da «única fundação legítima do governo». Seriam ciosos e
intransigentes na defesa da sua própria independência. Estariam com o seu
«coração, bênçãos e orações» ao lado de todos os seres humanos que
desfraldassem o «estandarte da liberdade e da independência». E, numa
frase memorável, Quincy Adams acrescentaria: «mas não irão ao
estrangeiro à procura de monstros para destruir».105 Nos EUA, o zelo
republicano democrático seria ardente e com plena consciência do
exemplo que eram agora para toda a humanidade oprimida. Contudo, não
seriam cruzados do republicanismo democrático. Não porque não
valorizassem as lutas dos outros pela liberdade e pela independência.
Antes porque seriam «os campeões e os vingadores» exclusivamente da
sua própria liberdade e independência.
Porquê esta recusa em juntar-se activamente à luta dos povos oprimidos
do mundo, quando estes lutassem por aquilo que os americanos tinham e
pregavam? Por razões prudenciais. Porque seria inevitável que a intenção
irrepreensível de auxiliar a causa da liberdade e da soberania popular
acabaria por se corromper assim que os americanos se envolvessem em
«guerras de interesse e de intriga, de avareza individual, inveja e
ambição». Era para aí que estas iniciativas degenerariam, ainda que sob a
bandeira da liberdade. Em breve, os EUA deixariam de estar a lutar pela
liberdade e assemelhar-se-iam aos algozes que pretendiam combater.
Tornar-se-iam os «ditadores do mundo».106 Por conseguinte, a contenção
externa americana devia-se a um escrúpulo republicano-democrático. E
foram incontáveis as vezes em que a poderosa América se debateria com
este dilema até aos nossos dias. A América recusava a glória da ambição
romana, a glória do domínio imperial. Trocava-a pela glória da
liberdade.107
A interpretação cabal deste momento decisivo da história mundial dos
últimos duzentos anos não fica por aqui. Há dois pontos que subsistem,
que nos forçam a estender as consequências geopolíticas deste discurso.
Primeiro, ao se prometer ao mundo a liberdade e a democracia, isso não
faria da sua sede política – a América – o trampolim da sua expansão, por
mais juras que houvesse de contenção? Seria plausível supor que os
revoltosos impotentes nas paragens tirânicas não clamariam pelo auxílio
americano na sua luta mortal? E todo esse clamor da liberdade seria
ignorado com frieza pelos que eram abençoados pelas benesses da
democracia? Não se geraria um elo instantâneo pela comunidade de
valores, pelo uso da mesma linguagem, pela invocação do exemplo
liderante, pela chantagem moral de não darem a mão aos que precisavam e
se terem socorrido de outras mãos quando foram os Americanos a precisar
delas? Vimos que Quincy Adams alertava prudentemente para o
envolvimento em «guerras de interesse e de intriga» em que as guerras
pela liberdade se convertiam. Mas com que firmeza se responderia a todos
aqueles que protestassem e jurassem que a sua causa era pura e que a
degeneração receada por Quincy era impossível? Era viável ser o «farol»
da liberdade – o «farol no topo da montanha» – e deixar os combatentes
da democracia entregues ao seu próprio destino com indiferença glacial?
Por exemplo, se os texanos rebeldes contra o México declarassem a sua
independência e implorassem a anexação pelos EUA, com a adesão na
qualidade de mais um estado federado, o que fariam os já federados?
Em segundo lugar, se a liberdade e a democracia, em associação com a
forma económica moderna que lhes era própria – o mercado, a
industrialização, o consumo de massas, o comércio internacional –,
geravam um poder político no mundo concentrado na América, não
fomentariam um desejo de império muito próprio? Não certamente um
império do obscurantismo e da tirania. Antes um império da liberdade e da
prosperidade. Com tanto poder acumulado em todas as suas manifestações
– político, diplomático, económico, tecnológico e militar –, esse poder
ficaria por usar num mundo em que não faltam episódios de repressão do
legítimo desejo de liberdade dos povos? Esse poder não seria rapidamente
visto como uma responsabilidade dos EUA perante os democratas de todo
o mundo?
Veremos como a primeira democracia da História, a Atenas da era
clássica, não separou o regime democrático do projecto imperial. Ambos
caminharam juntos – e caíram juntos. À América caberia um caminho
semelhante, que, pelo menos por enquanto e no futuro previsível, não
conheceu o mesmo fim. Até porque, como vimos em Monroe/Adams, a
tensão entre o isolacionismo do America First! e a vontade imperial, ela
própria combinando zelo ideológico democrático com o desejo de poder, é
o traço característico e provavelmente único dos EUA. E é bem possível
que tenha sido essa originalidade, que parece empurrar invariavelmente os
EUA para uma política externa contraditória, a fórmula mais adequada ao
sucesso político de longo prazo. Porquanto permitiu aos EUA oscilarem
entre os pólos da tensão, não se concentrando nem num nem noutro, dado
que ambos são posições insustentáveis no tempo, quando monopolistas na
formação da política externa.
No discurso que analisei, Quincy Adams repudiava o colonialismo por
ser incompatível com a «única fundação legítima do governo». Porém, a
formulação abria uma porta de justificação do colonialismo: «quando a
condição do estado subordinado é, pela sua fraqueza, incompetente para a
sua própria protecção».108 Aí, a acção protectora da república madura
americana podia ser exercida sobre a anarquia dos pobres países ainda
jovens na sua independência. Isto não era uma mera abstracção. Por
exemplo, neste mesmo ano, Quincy Adams desabafou com Henry Clay
que desejava as maiores felicidades às lutas independentistas na América
Latina, mas não vislumbrava por enquanto qualquer tendência para aí se
criarem «instituições de governo livres ou liberais». Pelo contrário, «o
poder arbitrário, militar e eclesiástico, está gravado na educação, nos
hábitos e em todas as instituições» da América hispânica, sentenciava
Quincy Adams.109
A porta que ficava aberta parecia aproximadamente aristotélica e com
uma estrutura idêntica, ainda que não tão aristocrática, como a de
Sepúlveda na justificação da sujeição dos índios ao domínio espanhol.
Teremos tempo de examinar as posições de Sepúlveda no capítulo
seguinte. Aqui, vale a pena considerar as portas imperialistas que se
fechavam nos princípios de política externa de Quincy Adams/Monroe, e
as que simultaneamente se abriam. Nestes termos, a protecção da
liberdade e da democracia permitiam tanto a profissão de contenção
externa americana como a necessidade justificada de proteger uma e outra,
se não indiscriminadamente por todo o planeta – Woodrow Wilson, depois
da Primeira Guerra Mundial, seria o primeiro presidente americano a
articular essa maximização –, pelo menos em determinados locais no
estrangeiro escolhidos em função de uma pluralidade de critérios:
proximidade, viabilidade da intervenção, alianças com potências hostis ou
amigas, e por aí adiante. Independentemente destas considerações, este
império seria diferente dos impérios anteriores. Seria protector, não
dominador.
Não faltaria quem protestasse contra estes eufemismos. Simón Bolívar,
El Libertador, o herói dos independentismos ibero-americanos, presidente
de países por atacado, receava a reacção da reacionária Santa Aliança e de
Espanha. Não duvidava que a recém-construída Grande Colômbia
precisava de auxílio contra o regresso dos colonizadores e para a
estabilização interna. Mas não tinha ilusões. Viu a Doutrina Monroe como
a luva das garras americanas e a constituição de uma esfera de influência
dos EUA.110 José Martí, a alma da luta independentista cubana contra o
que restava do Império Espanhol, contestou a pureza das intenções
americanas. Escrevendo no final do século XIX, Martí descrevia os EUA
como uma «nação que começa a considerar a liberdade – a esperança
perene e universal da humanidade – como o seu direito, e a invocá-la com
o propósito de privar dela as outras nações».111
Henry Clay, que viria a ser secretário de Estado de Quincy Adams, tinha
publicamente defendido o auxílio americano às lutas independentistas
contra Espanha e Portugal na América Central e do Sul. Afinal de contas,
os EUA eram naquele início do século XIX a principal república do
mundo, filha de uma revolução republicana e de uma guerra de libertação
contra uma monarquia imperial. Algo não muito diferente parecia estar a
sacudir o continente do México ao Chile. Restava uma dúvida, porém.
Porquê apenas as Américas? Então e a Grécia, que se batia contra a
opressão de séculos pelo Turco – a imortal Grécia? Clay rendia-se à
generalização. Pela força da lógica e pelo imperativo inerente à sua ética,
a universalidade dos princípios da democracia parecia arrastar consigo a
universalidade da acção em sua defesa por todo o mundo, sem excepções.
Afinal de contas, se os homens (no século XIX, apenas os homens) eram
todos iguais, porquê defender a democracia para uns e escolher a
impassividade quando a democracia era desejada por outros?
Como vimos, Quincy Adams proibia à América a tentação de ir à
procura de monstros no estrangeiro para os destruir. Até à independência
dos domínios espanhóis e portugueses na América, Quincy Adams levou a
melhor sobre Clay. Mas, na proximidade da pátria, Quincy Adams queria
a expansão territorial dos EUA até cada canto da América do Norte – o
que, entre outras coisas, excluía a existência de uma América Britânica-
Canadá. Foi ele que concluiu as negociações com Luis de Onís, o
negociador espanhol que infrutiferamente quis preservar a Florida e
fronteiras menos exíguas e menos delineadas para o México. Quincy
Adams garantiu a apropriação da Florida e a formalização da dimensão
territorial transcontinental dos EUA. No seu volumoso diário escreveu que
a ligação ao Pacífico plasmada nesse tratado com Espanha «constitui um
grande marco na nossa história».112 Nessa expansão americana nenhuma
outra potência poderia interferir e as que já estavam presentes no terreno –
a Espanha e a Inglaterra – deviam retirar-se. Ora, essas negociações com
Espanha, afectando tantos territórios preciosíssimos para os EUA, ajudam
a explicar porque é que Quincy Adams foi tão cauteloso e contrariou Clay
no auxílio aos revoltosos contra Espanha e Portugal. Depois, consumadas
as independências na América do Sul, os EUA apressaram-se então a
reconhecer os novos Estados – por razões de identificação ideológica
republicana e por razões de conveniência geopolítica. Urgia evitar que se
instalassem monarquias de estilo europeu no continente americano, ou
repúblicas demasiado amigas das potências europeias que suscitavam as
maiores suspeitas aos EUA.
72
Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, I.1.2.
73
John Quincy Adams, An Address, delivered at the request of the
committee of arrangements for celebrating the Anniversary of
Independence, Cambridge, Harvard University Press – Hilliard and Metcalf,
1821, p. 27.
74
Raymond Aron, République impériale, Les États-Unis dans le monde
1945-1972, Paris, Calmann Lévy, 1973.
75
Moses Mather, America’s Appeal to the Impartial World (1775), in Ellis
Sandoz (ed.), Political Sermons of the American Founding Era, 1730-1805,
2.ª edição, Indianapolis, Liberty Fund, 1998, Vol. I, p. 444.
76
Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, 1776.
77
John Winthrop, A Modell of Christian Charity (1630), Collections of the
Massachusetts Historical Society, Boston, 1838, 3.ª série, vol. 7, pp. 33-48.
78
Mateus 5:14.
79
Winthrop, pp. 33-48.
80
Mather, pp. 444-46.
81
George Duffield, A Sermon Preached on a Day of Thanksgiving (1783),
in Political Sermons, Vol. I, p. 776.
82
Duffield, pp. 776, 784, 788.
83
Samuel Langdon, The Republic of the Israelites an Example to the
American States (1788), in Political Sermons, Vol. I, pp. 947, 950.
84
Langdon, Vol. I, pp. 952, 955, 957-58, 965.
85
Bispo James Madison, Manifestations of the Beneficence of Divine
Providence towards America (1795), in Political Sermons, Vol. II, 1313.
86
David Osgood, The Wonderful Works of God are to be Remembered
(1794), in Political Sermons, Vol. II, p. 1224.
87
Bispo James Madison, Vol. II, 1314.
88
Eliahan Winchester A Century Sermon on the Glorious Revolution
(1788), in Political Sermons, Vol. I, p. 986.
89
William Emerson, An Oration in Commemoration of the Anniversary of
American Independence (1802), in Political Sermons, Vol. II, 1560.
90
Carta de Tocqueville a Édouard de Tocqueville, 28 de Maio de 1831.
Citada em Eduardo Nolla, introdução a Alexis de Tocqueville, Democracy
in America. Historical-Critical Edition of De la démocratie en Amérique,
edição bilingue com trad. inglesa, Indianapolis, Liberty Fund, 2010, p. LXVI.
91
Carta de Tocqueviille a Ernest de Chabrol, 9 de Junho de 1831. Citada em
Nolla, pp. LXVII-LXVIII.
92
Citado em Douglas Irwin, «The Aftermath of Hamilton’s “Report on
Manufactures”», The Journal of Economic History, vol. 64, n.º 3, 2004, p.
802.
93
Report on the Subject of Manufactures, in Alexander Hamilton, State
Papers and Speeches on the Tariff, F.W. Taussig (ed.), Cambridge, Harvard
University Press, 1892, pp. 22, 47.
94
Citado em Irwin, p. 805.
95
Citado em Irwin, p. 813.
96
Citado em Gretchen Murphy, Hemispheric Imaginings. The Monroe
Doctrine and Narratives of U.S. Empire, Durham, Duke University Press,
2005, p. 98.
97
Mensagem do presidente James Monroe no início da 1.ª sessão do 18.º
Congresso, 12 de Fevereiro de 1823, in Annals of Congress, Senate, 18th
Congress, 1st Session, pp. 12-24, Library of Congress, https://www.loc.gov/.
98
Mensagem de Theodore Roosevelt ao Congresso, 6 de Dezembro de
1904, p. 33. https://catalog.archives.gov/id/5752367.
99
Walter Nugent, Habits of Empire. A History of American Expansion,
Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 2008, pp. 296-99.
100
Andrew Shankman, «John Quincy Adams, Diplomacy, and American
Empire», in A Companion to John Adams and John Quincy Adams, David
Waldstreicher (ed.), Chichester, Wiley-Blackwell, 2013, p. 300.
101
Gretchen Murphy, Hemispheric Imaginings. The Monroe Doctrine and
Narratives of U.S. Empire, Durham, Duke University Press, 2005.
102
John Quincy Adams, An Address, delivered at the request of the
committee of arrangements for celebrating the Anniversary of
Independence, Cambridge, Harvard University Press – Hilliard and Metcalf,
1821, pp. 7, 9.
103
Quincy Adams, pp. 22, 23, 31.
104
Quincy Adams, p. 23.
105
Quincy Adams, p. 32.
106
Quincy Adams, p. 32.
107
Quincy Adams, p. 34.
108
Quincy Adams, p. 12.
109
Citado em Ernest R. May, The Making of the Monroe Doctrine,
Cambridge, Harvard University Press, 1975, p. 27.
110
Jonathan Israel, The Expanding Blaze. How the American Revolution
Ignited the World, 1775-1848, Princeton, Princeton University Press, 2017,
p. 485.
111
Citado em Murphy, p. 97.
112
Citado em Bradford Perkins, The Cambridge History of American
Foreign Relations, Vol. I The Creation of a Republican Empire, 1776-1865,
Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 154.
V
A DESCOBERTA DO NOVO MUNDO
E O ENCONTRO COM O OUTRO
Valladolid, 1550
O Novo Mundo e a Nova Consciência
As viagens das descobertas nos séculos XV, XVI e XVII trouxeram uma
revolução profundíssima a quase todos os níveis da vida europeia. Desde
logo, trouxeram uma transformação da nossa concepção planetária de
espaço. É irrelevante saber se outros, como os Cartagineses, chegaram a
latitudes setentrionais da costa africana antes dos Portugueses, ou se os
Vikings ou os pescadores de baleias acostaram ao continente americano
antes de Pedro Álvares Cabral, de Cristóvão Colombo ou dos irmãos
Corte-Real. É irrelevante porque não tiveram efeitos geopolíticos. E muito
menos alteraram de modo tão radical a nossa relação com o espaço
planetário como sucedeu nos séculos XVI e XVII.
As transformações afectaram tantas dimensões da vida do homem
europeu que é impossível listá-las todas. Mas em termos gerais podemos
dizer que deixaram para trás as comunidades políticas da Idade Média e
abriram uma época histórica de domínio da Europa sobre o resto do
mundo. E esse domínio foi inteiramente novo. Além de ser uma
demonstração da superioridade fáctica do engenho europeu, redundou no
domínio político, administrativo e militar das potências europeias sobre o
resto do mundo, com a consequência de que todo o território extraeuropeu
– habitado ou desabitado – passou a ser visto como objecto de conquista e
de apropriação. E sujeitou todo o planeta às formas espirituais europeias –
na ciência, na filosofia, na religião, na arte, na economia e na socialidade.
A geopolítica foi evidentemente transformada na mesma proporção.
Podemos dizer que os parâmetros da nova geopolítica planetária
eurocêntrica ficaram mais ou menos definidos no final do século XVII.

Podemos acrescentar ainda que ela se consumou plenamente no final do


século XIX e perdurou até aos primeiros anos do nosso século. É provável
também que tenha terminado.
Mas houve uma confrontação com um significado geopolítico
profundíssimo e, em certos sentidos, muito mais interessante do que
batalhas ou tratados que pudéssemos assinalar. Falo da confrontação com
uma outra Humanidade, por assim dizer. A confrontação do europeu com
o índio, quando antes nem o primeiro nem o segundo desconfiavam
sequer da existência do outro. Para medirmos a experiência de alteridade
mais profunda que a consciência europeia teve, é preciso examinar as
reflexões desencadeadas pelos primeiros contactos com os índios da
Mesoamérica. De facto, antes os Europeus nunca tinham estado isolados
de África e dos Africanos, dos Árabes, da Índia nem dos Chineses. Não se
trata apenas de se ter chegado a uma experiência notória de nós-eles, dos
autóctones e dos bárbaros, dos nativos e dos estrangeiros – nem sequer
dos civilizados e dos exóticos. Esta experiência foi mais longe na medida
em que o outro era inteiramente inesperado. Nessa medida, só os
encontros futuros dos humanos com alienígenas porventura poderão
repetir – e talvez até transcender – os encontros imediatos dos europeus
com os índios no século XVI. Não sem razão, uma das grandes
personalidades desta época, Bartolomeu de las Casas, viu-se vivendo num
tempo novo como nenhum outro.
O mais interessante deste grande encontro é que foram desafiadas as
inclinações naturais deste tipo de desigualdades numa circunstância ética
bastante diferente da nossa. Ou melhor, o interessante não é tanto a
diferença ética, mas a diferença na consciência do Outro. Nas primeiras
décadas do século XVI, a discussão ética sobre a condição do Outro teve
lugar em termos completamente inesperados. Claro que não faltaram
conquistadores, navegadores, soldados, marinheiros, exploradores que,
por pura ganância, espoliaram, mataram, saquearam sem grandes
considerações éticas. Do outro lado, o Outro encontrado, sobretudo nas
sedes imperiais dos Astecas ou dos Maias, exibia requintes de crueldade e
de opressão que também ultrapassavam os limiares do horror moral. Mas
ao nível da expressão da consciência mais profunda do problema em
mãos, foi em Espanha na primeira metade do século XVI que assistimos a
um debate complexo e sofisticado.
O acontecimento de que quero falar foi talvez a primeira ocasião em que
um imperador todo-poderoso, Carlos V, suspendeu todas as iniciativas de
conquista e apropriação no seu novo espaço de expansão – o Novo Mundo
– até ao desfecho de um puro debate intelectual entre duas partes em
confronto. Carlos V, em 1549, convocou para a cidade de Valladolid um
encontro em que pudessem dirimir argumentos Bartolomeu de las Casas, o
frade dominicano e o primeiro bispo de Chiapas, e Juan Ginés de
Sepúlveda, um literato da Universidade de Salamanca e um dos mais
destacados vultos dos estudos humanísticos em Espanha, enamorado da
obra de Aristóteles.
Las Casas vinha de uma longa estada na ilha de La Española, na
Guatemala e no México, junto de colonizadores e índios. Era um
fervoroso defensor dos índios, um seu protector, e, por maioria de razão,
adversário dos gananciosos exploradores. Escreveu uma maravilhosa
História das Índias, que é ainda hoje uma fonte de valor incalculável para
compreendermos como foi a colonização ibérica naquelas primeiras
décadas, desde a chegada de Cristóvão Colombo às Caraíbas.
Sepúlveda, por seu lado, não tinha qualquer experiência do terreno, por
assim dizer. Era um homem dos livros e das palestras. A sua bússola era
sobretudo Aristóteles. No século XIX, o literato-estadista Cánovas del
Castillo disse dele: «Dos aristotélicos [espanhóis], Juan Ginés de
Sepúlveda foi o maior, tradutor e anotador das obras do mestre, homem de
inflexível lógica e de vasta erudição e doutrina.»113
Com esta assimetria de experiências, não foi surpreendente que Las
Casas difamasse constantemente Sepúlveda, acusando-o de ser uma pena à
venda dos interesses injustos e gananciosos dos colonizadores obcecados
com o ouro ou com outras riquezas miríficas. Sepúlveda queixava-se
frequentemente dessa perseguição. Deixara todas as explicações sobre o
tema que o levaria ao debate em Valladolid na forma mais literária
possível para um filósofo: um diálogo à moda dos gregos clássicos.
Escreveu-o em 1544. Porém, o diálogo de Sepúlveda, Demócrates
Segundo, denunciado por Las Casas, fora reprovado pelo Conselho das
Índias. O Conselho de Castela, o órgão político representativo mais
importante do reino a seguir ao próprio rei, solicitou o parecer dos
teólogos universitários antes de dar a sua aprovação. E acabou por não lha
dar. O diálogo só seria publicado em Roma por portas travessas, mas não
em Espanha.
Sepúlveda não se conformava com a não-autorização do seu livro e
rogou ao então príncipe herdeiro Filipe que convocasse uma reunião de
teólogos para dar ao livro a consideração que merecia. E eis que em Abril
de 1549 o imperador Carlos V toma a decisão inédita de suspender todas
as conquistas, expedições e entradas nas Américas até que aquela épica
controvérsia entre Las Casas e Sepúlveda fosse devidamente dirimida.
Nessa declaração, Carlos V proibia os conquistadores de roubarem e de
pilharem os bens dos índios, pelos quais teriam sempre de pagar segundo
os preços determinados pelos clérigos das Índias. Proibia-os de tomarem
mulheres índias à força ou de usarem a força nas suas relações com
qualquer índio, excepto nas situações de lei natural de autodefesa. O que
fizera o todo-poderoso Carlos V suspender a expansão do império e as
viagens de descoberta? O bem que estava em causa era a própria salvação
da alma do imperador e dos conquistadores, não menos do que a expansão
do império. O cumprimento destas regras era imprescindível para a
«exoneração da consciência régia» e dos colonos espanhóis nas Américas.
O imperador cristão tinha esta limitação que outros congéneres
desconheciam.
Foi assim que durante uns meses todo um império embrionário esteve
suspenso do resultado de um debate filosófico e teológico em torno da
condição e do estatuto do Outro, isto é, do índio. Sepúlveda apoiava-se na
tese aristotélica da legitimação da escravatura. Para Aristóteles, havia dois
tipos de escravatura. Havia a escravatura convencional, que resultava das
leis e dos acordos entre os homens. Seria a escravatura que resultava do
direito da guerra, em que os vencidos podiam ser reduzidos à escravatura;
ou da pura transação económica, em que o escravo era adquirido pelo
senhor numa operação de compra e venda. Na Política, Aristóteles
deixava escapar que a legitimidade da escravatura convencional era
duvidosa, porque facilmente podia ser contraposta à escravatura por
natureza, o segundo tipo de escravatura. Era legítima e salutar a relação
que reduzisse à escravatura alguém que fosse de tal modo inferior que não
soubesse governar a sua própria vida e que ficaria mais bem servido nos
seus interesses fundamentais se um superior o governasse. Neste caso, o
superior escravizaria o escravo no interesse deste último. Era o resultado
da diferença natural entre um superior e um inferior. Daí que a
escravatura natural pudesse destacar-se em termos de razoabilidade
relativamente à escravatura convencional. Se a primeira fosse o padrão de
verificação da segunda, rapidamente se constataria que haveria muitos
escravos na Atenas do século IV a. C. que não seriam escravos por
natureza. Se a relação de escravatura por natureza era essencialmente justa
para Aristóteles, isso também implicava que muitas das relações de
escravatura puramente convencionais seriam injustas.114
Ora, Sepúlveda sugeria que os índios encontrados na América eram
naturalmente inferiores e, portanto, seria justo que os Espanhóis os
dominassem como senhores. Sepúlveda sublinhava que em «prudência,
engenho, virtude e humanidade» os índios eram inferiores aos Espanhóis
como as crianças eram aos adultos.115 Se eles se recusassem a esse
domínio, dizia Sepúlveda, era justo fazer-lhes guerra para restabelecer a
relação de justiça natural determinada pela superioridade/inferioridade dos
espanhóis/índios. A colonização pela força seria assim justificada. O outro
aparecia como aquele que está por civilizar. Só o civilizado podia civilizar
o incivilizado. Mesmo contra a sua vontade. Até porque civilizá-lo contra
a sua vontade era do seu interesse, ainda que o inferior não fosse capaz de
enxergar esse seu próprio interesse. Nestes termos, podemos dizer que a
razão da colonização era a de um paternalismo aristocrático. Não
obstante, Sepúlveda reconhecia que, se a conquista das Américas se
esgotasse no roubo e na espoliação que toda a gente sabia ocorrer por mão
deste ou daquele espanhol, então tratar-se-ia de uma guerra injusta e ímpia
sem qualquer justificação. Mais, os ditames da justiça imporiam a
devolução de tudo o que fora roubado pelos Espanhóis. Assim seria se os
príncipes espanhóis tivessem consentido no latrocínio dos que acostaram
às terras da América. Contudo, Sepúlveda considerava que tal não era o
caso da direcção política geral da conquista espanhola. Acrescia a isto a
constatação e condenação veemente da superlativa crueldade manifestada
nas práticas e instituições dos povos a ser conquistados, entre as quais se
destacavam o canibalismo e os sacrifícios humanos. Sobre as ilusões de
Sepúlveda acerca da moderação do soldado espanhol da sua época,
verdadeiras canções patrióticas absurdamente fantasiosas, mais vale nem
sequer perdermos tempo.
Mais realisticamente, Sepúlveda recordava os leitores de que episódios
de saque e de espoliação, para nada dizer da escravização dos vencidos,
não eram nada de novo na História da Humanidade em todos os cantos do
mundo. Esta constatação inatacável tinha, porém, um problema que Las
Casas poria a nu. No século XVI, a consciência europeia tinha mudado
decisivamente. A Europa era cristã. O contraste entre a prática dos
Espanhóis, não muito diferente do que outros povos tinham feito no
passado, e a consciência moral dos Espanhóis – esse, sim, era
efectivamente novo. As justificações implícitas ou explícitas que os outros
povos tinham apresentado para acções deste género de subjugação não
eram válidas. Ao morrer, o grande Conquistador, Hernán Cortés, deixaria
bastante transparente no seu testamento quão poderosa era a condenação
moral da má-consciência dos colonizadores que possuíam escravos nas
Américas.116 E isso mudava tudo. Incluindo a geopolítica das Descobertas.
A Controvérsia de Valladolid
Em 1550, o debate de Valladolid teve lugar no Colégio de São Gregório.
Opôs Las Casas a Sepúlveda na presença de um conselho de quinze
juristas e teólogos, que incluía sete membros do Conselho das Índias. O
propósito desta inusitada iniciativa estava no esclarecimento da grande
questão inscrita na convocatória:
(...) discutir e determinar que forma de governo e que leis podem
assegurar melhor a pregação e a expansão da nossa fé católica no novo
mundo (...) e investigar que organização é necessária para manter os
povos do novo mundo na obediência ao Imperador, sem dano para a
consciência régia e em conformidade com a bula de Alexandre [VI].
No fundo, o que se queria esclarecer era «como é que as conquistas
podem ser levadas a cabo com justiça e segurança de consciência». E que
conquistas eram estas? As que resultassem de guerras iniciadas se os
índios se recusassem a receber a religião cristã e submeter-se
voluntariamente aos reis de Castela.
Em Valladolid, primeiro falou Sepúlveda. Fez um depoimento que
durou cerca de três horas. Depois, no dia seguinte, foi a vez de
Bartolomeu de Las Casas. Durante cinco sessões, Las Casas leu aos juízes
o seu Tratado sobre la matéria de los indios que se han hecho esclavos.
Tinha 550 páginas e seria publicado em Sevilha dois anos mais tarde.
Nele, Las Casas abordava com minúcia os aspectos legais e morais da
conquista das Américas e o estatuto moral dos índios. O ponto de partida
de Las Casas era circunscrever o objecto da sua análise nos seguintes
termos: que género de seres eram os aborígenes americanos e que
capacidades teriam para converter-se à religião cristã – propósito que Las
Casas partilhava com os restantes interlocutores – e fazer parte da
civilização europeia. A tese defendida contrariava a de Sepúlveda em toda
a linha. Las Casas derrotou a ideia geral de Sepúlveda e refutou ponto por
ponto cada uma das alegações.
Podemos resumir a tese de Las Casas do seguinte modo: todos os índios
escravizados pelos Espanhóis nas Américas recém-descobertas foram
reduzidos à escravatura injustamente e sem qualquer justificação; os
espanhóis que possuíam escravos padeciam de má consciência e
arriscavam a salvação das suas almas. O Tratado era um relato histórico,
um depoimento de choque e condenação moral, mas também era um
exame teológico, como não podia deixar de ser. Depois de o cristão Las
Casas apresentar as suas alegações, resultava claro que a religião cristã era
igual para todas as nações, e não condenava nenhuma delas à servidão.
Quanto a isto, não havia volta a dar. Todas as guerras para promover a
religião e destruir a «idolatria» eram negadas pelos fundamentos do
cristianismo. As conversões operavam-se com persuasão e boa-fé; não se
forçavam. A infidelidade e a idolatria não eram razões suficientes da
guerra justa.117
Foi decidido que o confessor do imperador, Domingo de Soto,
prepararia um sumário dos argumentos expostos. Sepúlveda e Las Casas
prosseguiriam a sua discussão em livros e panfletos. Após um intervalo de
um ano, que se arrastou insuportavelmente, os juízes, ou a sua maioria,
deram razão a Las Casas. Mas o parecer escrito dos juízes tardava em
chegar ao Conselho das Índias. Ironicamente, o único parecer escrito
individual que sobreviveu foi o do doutor Bernardino de Anaya, que
alinhava com muitos dos argumentos de Sepúlveda. O Conselho das
Índias parecia satisfeito com este resultado em que, por um lado, se dava
razão às razões de Las Casas e dos defensores dos índios, mas, por outro
lado, se deixava as colónias mais ou menos entregues a si mesmas – ou à
vontade dos colonos e dos conquistadores.
Alteridade
Las Casas chegou pela primeira vez às Américas em 1502, fazendo
parte da expedição de Nicolás de Ovando. Nessa altura ainda não tinha
abraçado a vocação sacerdotal. Viria mais tarde a ser consagrado padre da
Igreja. Só depois seria o primeiro bispo de Chiapas. Acabaria os seus dias
como frade dominicano. Permaneceu na ilha de La Española (hoje metade
Haiti, metade República Dominicana) por dez anos e depois seguiu para a
conquista da ilha de Cuba. Nesses anos, não se portou particularmente
bem. Sabemos que teve escravos índios no trabalho das terras e das minas.
Aconteceu até que outro frade dominicano lhe recusou os sacramentos por
ele possuir escravos. A consciência católica do problema estava, pois,
muito inquieta. Foi só em 1515 que resolveu mudar de vida, recusar a
encomienda que tinha, e dedicar-se à protecção dos índios. O resto da sua
vida foi uma longa e incansável epopeia de lutas, debates, meditações,
sempre com o mesmo fito: salvar as pessoas dos índios e as almas dos
Espanhóis.
Naqueles primeiros anos, os Espanhóis enfrentaram um grande dilema.
Por um lado, havia a ambição salvífica de renovar o cristianismo com as
novas almas americanas. Tanto Sepúlveda como os Dominicanos
concordavam neste ponto: a evangelização das Américas, a pregação da
palavra de Deus, era um objectivo maior. As diferenças estavam nos
métodos. Sepúlveda estava disposto a sacrificar a segurança dos índios.
«Porquê submeter os índios?», perguntava ele. Para que sob o domínio do
império secular espanhol se pudesse finalmente corrigir a sua idolatria (a
maior ofensa contra Deus) desumana e forçá-los a escutar a palavra de
Deus. O império tinha como derradeira justificação a generalização da
verdade pelo mundo desconhecido. A conversão dos índios era o maior
bem que os Espanhóis lhes podiam desejar e o maior bem que os índios
podiam obter.
Em contrapartida, os frades Agostinhos, os Franciscanos e os
Dominicanos recusavam-se a sacrificar a humanidade dos índios. Os
Espanhóis e os outros cristãos tinham um direito indiscutível de pregar o
Evangelho nas terras dos índios. Mas, sublinhava Francisco de Vitória, um
frade dominicano e o grande mestre dos teólogos investidos na
recuperação do tomismo em Espanha no século XVI, deviam fazê-lo com
«amor fraternal», o que implicava que só poderiam ensinar a doutrina
cristã se os índios estivessem dispostos a escutá-la. O dever de pregação
junto dos que não conheciam a palavra de Deus, e pecavam
abundantemente em resultado dessa ignorância, tinha como correlativo o
direito de evangelizar livremente pelas terras descobertas. Mas não tinha
como correlativo o direito de forçar as conversões, nem de punir com a
espada os que não estavam disponíveis para salvar as suas almas.
Las Casas não era o grande teólogo da sua geração. A autoridade
intelectual, tão reverenciada e preciosa naqueles tempos, e sobretudo em
temas deste tipo, não lhe cabia. Esse grande título era unanimemente
reconhecido a um outro frade dominicano, ligeiramente mais velho, o
Francisco de Vitória que conhecemos no parágrafo anterior. Fundador da
tradição filosófica da Escola de Salamanca, Vitória é hoje reconhecido,
com o exagero em que a era dos soundbites bombásticos é pródiga, como
um dos pais fundadores do direito internacional.
Em certos aspectos, e sem jamais ter posto os pés nas Américas, Vitória
foi praticamente tão longe quanto Las Casas.118 Para ele era evidente que
os índios não podiam ser convertidos automaticamente em vassalos do rei,
porque isso pressupunha que seria legítima uma guerra de conquista e de
expropriação com razões ilegítimas. Ora, a contradição estaria nos
próprios termos. As razões aduzidas pelos homens do poder eram
teologicamente insuficientes. Os índios não podiam ser submetidos ao
poder castelhano, nem expropriados dos seus bens e territórios, por serem
«infiéis», nem por serem «heréticos», nem sequer por serem «pecadores»
– eliminando o argumento dos crimes cometidos pelos povos ameríndios
constituírem a razão da guerra que lhes era feita. Vitória repudiava
também os argumentos de Sepúlveda e dos imperialistas aristotélicos do
seu tempo, segundo os quais os índios seriam escravos por natureza, fruto
da sua inferioridade intelectual e moral. Vitória concedia que a
racionalidade era uma condição da detenção do direito de propriedade
(dominium) e do seu exercício. As criaturas irracionais não tinham
quaisquer direitos legais. Só as criaturas racionais possuíam senhorio
sobre os seus corpos, os seus actos e os seus bens materiais.
Os índios poderiam ser equiparados a criaturas irracionais como os
animais? Vitória negou-o peremptoriamente. Poderiam ser,
alternativamente, equiparados a crianças antes da idade da razão, como era
tradicional dizer-se? Neste caso, Vitória negava que as crianças estivessem
destituídas de direitos. Se podiam ser vítimas de injustiça, então era
porque tinham direitos que eram violados por actos injustos. E se tinham
direitos, então tinham dominium também. Não podiam ser expropriados
sem outras considerações. E o que valia para as crianças, valia, por
maioria de razão, para os índios. Vitória estendeu este argumento ao caso
dos loucos, isto é, daqueles de quem, ao contrário das crianças, nunca se
esperava que alcançassem o estado da razão. Também os loucos tinham
direitos, segundo Vitória, porque podiam ser vítimas de injustiça, ainda
que o teólogo fosse cauteloso na concessão de um direito de dominium a
quem fosse incuravelmente destituído de razão.
Fosse como fosse, os índios não eram irracionais, não eram loucos e não
eram equivalentes a crianças. Eram dotados, como todos os outros seres
humanos, da faculdade de julgar. Tudo o que se sabia dos índios indicava
para além de qualquer dúvida que eram seres perfeitamente racionais:
viviam em cidades, com leis, magistrados, praticavam o comércio e a
indústria. Em suma, nos seus assuntos havia uma certa ordem. E isso era a
demonstração cabal de racionalidade. Se não eram tão evoluídos
intelectualmente como os Espanhóis, tal devia-se a causas puramente
circunstanciais, como a «educação maligna e bárbara» a que eram
submetidos. Mas entre os Espanhóis havia muitos que tinham sido sujeitos
a uma educação defeituosa e esses também eram «pouco melhores do que
animais». Tudo concorria para se inferir que os índios tinham direitos que
não podiam ser violados sem outras considerações. Possuíam dominium
público e privado. Por outras palavras, tanto os líderes políticos como os
seus súbditos possuíam um título legítimo de propriedade que os protegia
moral e juridicamente de qualquer tentativa de expropriação, à semelhança
do que acontecia com um cristão espanhol ou europeu. Esses direitos dos
índios eram anteriores à chegada dos europeus e estavam radicados na
natureza humana. Mais, a superioridade intelectual dos europeus não lhes
conferia quaisquer direitos de mando, e Vitória negava inclusivamente que
Aristóteles alguma vez tenha avançado uma tese nesses termos. Eram
interpretações abusivas do texto da Política de Aristóteles.
Não é preciso esconder que Vitória, aqui e ali na sua exposição, mostrou
algumas hesitações quanto ao argumento de a inferioridade mental dos
indígenas atingir o ponto da sua incapacidade para se governarem.
Precisariam, pois, para seu próprio bem, de ser governados por quem
fosse mais sábio, tal como as crianças precisam de ser governadas por
adultos. Vitória sublinhava que não se atrevia a afirmar, nem a negar,
peremptoriamente este possível argumento que era avançado por alguns
imperialistas. Continuava dizendo que apenas nele tocava para efeitos da
extensão de toda a reflexão sobre o tema em mãos. Mas não deixava de
fazer observações que pareciam confirmar a opinião de alguns
imperialistas, a saber, que os índios bárbaros estavam metidos numa
condição de radical inferioridade a ponto de se lhes aplicar, pelo menos
em parte, a lição aristotélica dos escravos por natureza. Talvez aqui se
notasse mais do que em qualquer outro ponto da sua reflexão o facto de
nunca ter posto os pés nas Américas nem ter avistado e contactado por ele
mesmo com os índios sobre os quais dissertava.
O caso de Las Casas, como sabemos, foi diferente. O seu conhecimento
de causa in loco fez muita diferença. A indignação de que era portador
deu-lhe a força interior para responder a todas as lutas. Mas, apesar de
tudo, é preciso dizer que Vitória não tinha quaisquer ilusões sobre o
comportamento dos conquistadores espanhóis, nem sobre o grau mais ou
menos grosseiro das alegações que invocavam para prosseguir os seus
crimes. Vitória confidenciou a um amigo que lhe bastava ouvir falar do
que se passava nas Índias para o seu sangue «gelar-lhe nas veias».119
Mas se os índios não podiam ser livremente expropriados pelos
Espanhóis, podiam ao menos ser convertidos em vassalos do rei de
Espanha? Vitória recorreu ao seu mestre Tomás de Aquino, o Doutor
Angélico da Igreja que escrevera e ensinara no século XIII. Tomás de
Aquino foi precioso para Vitória no auxílio ao desmantelamento daquela
presunção. Segundo Tomás de Aquino, à luz da lei natural, todos os seres
humanos eram livres no sentido de que não estavam sob o domínio de
outrem. Ao abrigo da lei natural interpretada por Tomás de Aquino, as
únicas excepções eram as proporcionadas pela vida familiar: os filhos
estavam sujeitos aos pais, e as mulheres aos maridos.120 O domínio
político de uma pessoa particular, ou de um governo particular, era
matéria da lei humana, não da lei natural.121
Daqui, Vitória colheu o que precisava. Ainda que se admitisse o que não
era admissível, a saber, que o imperador romano-germânico no século XVI,
Carlos V, fosse senhor do mundo, mesmo assim não poderia ocupar e
dispor das terras dos índios, derrubar os seus governantes nem tributá-los.
Isto porque Vitória alegava que o título de imperador trazia consigo
apenas um dominium jurisdicional (per jurisidictionem), e não de
propriedade (per proprietatem). Tratava-se de um direito inferior em
alcance ao poder de usar e abusar dos territórios e dos seus habitantes.
Assim, Vitória derrotava a tese a que podemos chamar imperialismo puro
– a de que o Império Romano-Germânico (e espanhol) gozava
automaticamente e sem mais razões de um título a todas as terras que
fossem descobertas.
Contudo, naquele tempo havia imperialistas aliados aos papalistas.
Queria isto dizer: se o imperador não gozava daquele título que era
reivindicado por alguns, era porque esse poder estava nas mãos do Papa.
Ora, sabe-se que, a partir de 1493, o papa Alexandre VI promulgou as
chamadas Bulas de Doação. Nelas, dividiu o mundo desconhecido em
duas partes, reservando o hemisfério ocidental – vimos a origem posterior
desta representação geográfica na primeira grande conceptualização da
política externa americana no início do século XIX – para os Espanhóis e a
parte restante do mundo para os Portugueses. Não só dividiu o mundo,
como explicitou uma doação às duas monarquias e aos seus sucessores,
que lhes concedia «todos os direitos, jurisdições e pertenças» aos
territórios descobertos, incluindo a todos os «domínios, cidades, campos,
lugares e aldeias». Com efeito, o Papa arrogava-se o direito de conceder
aos reis de Espanha e de Portugal, bem como aos seus sucessores, «o
pleno e livre poder, a autoridade e as jurisdições de todo o tipo» sobre
aquelas terras e os seus habitantes. Com duas condições: primeira, a de
que o propósito era trazer as populações desses territórios descobertos
para a fé cristã, propósito que não podia ser subalternizado na acção de
colonização; segunda, nenhum destes direitos, jurisdições e pertenças
valiam sobre territórios que fossem governados por príncipes cristãos.122
Do século XIII até ao século XVI houve uma abundância de doutores que
atribuíam a primazia do poder espiritual e temporal ao Papa, ao ponto de
afirmarem que os príncipes temporais governavam por delegação do Papa,
o único verdadeiro imperador do mundo. Papel importante nesse debate
foi desempenhado por um documento falsificado conhecido como a
Doação de Constantino. Denunciado por Lorenzo Valla no século XV

como uma falsificação, a Doação de Constantino procurava provar que o


imperador romano Constantino, o primeiro dos imperadores a converter-se
ao cristianismo no século IV, doara os territórios da parte ocidental do
império ao Papa, reconhecendo o seu domínio temporal além do espiritual.
Se Constantino após a Doação continuava como imperador, dizia-se no
documento forjado, tal se devia ao dom do Papa, que concedia a
Constantino e aos seus sucessores o usufruto do território a par das
receitas financeiras do mesmo.
Sem discutir a veracidade do documento, Vitória reduziu os argumentos
a um disparate. A razão essencial é rápida de enunciar. O Papa não era o
príncipe temporal do mundo; não era o imperador das terras conhecidas e
desconhecidas. De resto, a tese não era original. Havia uma longa tradição
de doutores, de sacerdotes e até de papas muito assertivos do seu próprio
poder, como Inocêncio III, que sempre refutara as teses papalistas. E essa
tradição radicava, como não podia deixar de ser, na autoridade dos
Evangelhos e nas palavras de Jesus Cristo. Por maioria de razão, o Papa
não tinha poder temporal a exercer sobre os índios bárbaros. Logo, ao
contrário do que os imperialistas afirmavam, a recusa dos índios em
aceitar a soberania do Papa não constituía razão para se lhes ser feita uma
guerra justa ou lícita.
Mas havia um título de domínio mais poderoso que estava nas
reivindicações dos imperialistas – o direito da descoberta (ius inventionis).
Este era o fundamento apresentado desde logo por Cristóvão Colombo,
como o próprio Vitória constatava. Porém, Vitória concluía que essa
pretensão já fora refutada com a refutação das pretensões restantes. Se os
índios tinham um justo título de domínio público e privado das suas terras,
cidades e bens, o princípio de que a descoberta conferia um direito de
ocupação caía por terra, porque esse direito apenas seria procedente se o
território descoberto, ou os bens que aí estivessem depositados, não
tivessem nenhum senhorio. O direito de descoberta acabava por ser
equivalente ao direito do primeiro ocupante. Mas se o descobridor não
fosse o primeiro ocupante, então o direito de descoberta não se aplicava.
É verdade que nenhum destes grandes teólogos negava um certo direito
da descoberta. Nem Las Casas, nem Cajetan, nem Vitória negavam que os
Espanhóis, e os demais seres humanos, tinham o direito de viajar e viver
nos territórios entretanto descobertos. Desde que, bem entendido, não
causassem danos aos indígenas e para lá fossem com intenções amistosas.
Se assim fosse, era negado, sim, aos indígenas o direito de recusar a
entrada nas Américas aos Espanhóis e restantes descobridores. Vitória
apoiava-se no ius gentium interpretado ao modo romano para confirmar
que «o que a razão natural instituiu entre todas as nações chama-se o
direito das gentes».123 Ora, uma dessas instituições era o dever de
hospitalidade. A esse dever os índios não podiam escapar. Tratava-se de
um dever que ficava razoavelmente suspenso assim que os recém-
chegados causassem males aos indígenas. Mas, se tal não acontecesse, o
dever de hospitalidade mantinha-se. Sendo universal o dever de
hospitalidade, valia também para os povos europeus que recebessem
espanhóis no seu território. Assim, as viagens dos Espanhóis, ou dos
Portugueses, ou de qualquer outro povo europeu e não-europeu, estavam
protegidas pela lei divina e pela lei natural. Tal como estava protegido o
direito de comerciar com os indígenas. Uma vez mais, na condição de se
não causar dano aos índios com quem se comerciava. E o direito dos
espanhóis de fruir dos bens que estavam em comum entre os indígenas e
todos os estrangeiros, o que incluía minas que viessem a ser descobertas
ou a pesca de pérolas nos mares costeiros das Américas. A mesma
condição já citada aplicava-se a este direito. O que não pertencia a
ninguém podia converter-se em propriedade do primeiro tomador – era um
preceito do ius gentium.
Vitória também acrescentava que, como se discutia um assunto
espiritual, estava dentro da autoridade do Papa atribuir um monopólio de
evangelização aos Espanhóis em detrimento de outros europeus. Havia,
porém, uma outra diferença entre os Dominicanos. Vitória acabava por
reconhecer o direito de pregação e de reincidente tentativa de conversão
dos índios, se todo o esforço de evangelização tivesse prosseguido
pacificamente e se se tivesse deparado com a obstrução dos índios. Mais, a
obstrução dos índios, dizia Vitória, podia ser a causa de uma guerra justa
dos Espanhóis. Cabe alertar que não seria uma guerra para forçar as
conversões. Apenas para garantir a segurança dos pregadores e do seu
trabalho de apostolado. E, além disso, para garantir a segurança dos índios
que entretanto se tivessem convertido. Mas o passo da concessão de um
direito à guerra justa para prosseguir o trabalho obstruído de
evangelização era reconhecido. Ora, Las Casas recusava-se, e recusou-se
sempre, a dar esse passo.
Por outro lado, os protagonistas deste grande debate eram herdeiros da
tradição medieval segundo a qual a escravização de um cristão era
condenável. O que fazia com que os colonos hesitassem na conversão dos
seus escravos índios. De qualquer modo, em 1501, a rainha espanhola
Isabel declararia que os indígenas eram livres por lei da escravatura. E
porquê? Porque eram agora reconhecidos como súbditos da Coroa
espanhola, tal como qualquer outro espanhol. Porém, a longuíssima
distância da metrópole, as extremas dificuldades de comunicação e a
corrupção do sistema da encomienda não deram aos índios a protecção
que lhes era devida pela lei. Essas leis foram expandidas, desenvolvidas e
conformadas pelo imperador Carlos V, em 1542, em larga medida graças
ao incansável trabalho de Las Casas.
A primeira vitória dos clérigos sobre os colonos foi asseverar que os
índios tinham alma. Isso reabilitava-os desde logo para um certo plano de
igualdade com os Espanhóis e, além disso, recomendava-os à conversão
ao cristianismo. Não faltava quem negasse isto. Mas, logo em 1511, o
frade dominicano Antón de Montesinos, num famoso e indignado sermão
que incomodaria muitos colonos, perguntava:
Com que direito e com que justiça mantendes em tão cruel e horrível
servidão estes índios? Com que autoridade fizestes tão detestáveis
guerras a estas gentes...? Eles não são homens? Não têm almas
racionais? Não estais obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não
compreendeis isto? Não sentis isto? (...) Tomai por certo que no estado
em que estais não vos podereis salvar mais do que os que carecem e
não querem a fé de Jesus Cristo.124
Em 1533, Julián Garcés, bispo de Tlaxcala, ia mais longe:
Aqueles que erroneamente julgam estas pobres pessoas como
incapazes e que a sua incapacidade é uma razão suficiente para os
excluir da Igreja (...) Essa é a voz de Satã (...) uma voz que vem das
gargantas avarentas de cristãos cuja ganância é de tal ordem que, de
modo a satisfazer a sua sede por riquezas, insistem que criaturas
racionais criadas à imagem de Deus são animais e burros.125
Em 20 de Novembro de 1542 eram proclamadas em Espanha, e nas
Américas, assim que a lentidão das comunicações intercontinentais
daquele tempo o permitiu, as chamadas Novas Leis das Índias. Quando
chegaram ao outro lado do oceano, foi grande a consternação dos colonos.
O texto legislativo era da autoria do cardeal García de Loíasa, presidente
do Conselho das Índias até 1546 para depois se tornar inquisidor-geral, e
de Francisco de los Cobos, o secretário do dito Conselho desde a sua
fundação, que na verdade desempenhava as funções de um moderno chefe
de gabinete todo-poderoso do próprio imperador Carlos V.
Surpreendentemente, o documento abria com uma intervenção de Carlos
V. E todo o conteúdo legal nele contido era muito interessante. Acolhendo
a doutrina de Las Casas, o documento proclamava que os índios, sendo
vassalos do rei de Espanha, eram por esse facto livres. Todos os escravos
índios sob o domínio de senhores espanhóis deviam ser libertos se estes
não conseguissem provar a legitimidade da sua posse. Os supremos
tribunais deviam investigar até às últimas consequências se os índios eram
alvo de maus-tratos por parte dos governadores ou de outros vassalos
europeus do rei. E acrescentava ainda que os índios não podiam ser
sobrecarregados com trabalhos físicos que pusessem em risco a sua vida
ou a sua saúde. Não podiam ser recrutados para trabalhos forçados, nem
ser tributados excessivamente face ao que os espanhóis das Américas
pagavam de imposto. Mais, tal como Las Casas sempre insistira, as Novas
Leis atacavam o sistema das encomiendas, ainda que apenas revogassem o
seu título a quem não conseguisse demonstrar um direito justo à
encomienda que concretamente praticava. Mas limitava o número de
índios aos ditames da razoabilidade em qualquer encomienda. Os índios
excedentários teriam de ser desonerados. Fosse como fosse, acabar-se-iam
as novas encomiendas no futuro e as terras dos encomenderos defuntos
reverteriam para a Coroa.
Vimos que Las Casas repudiou por inteiro o argumento de Sepúlveda
segundo o qual os índios eram escravos por natureza. Era forçoso que o
fizesse, porque esse era o alicerce da argumentação de Sepúlveda, como
ficou patente. Las Casas valeu-se da sua experiência in loco nas Américas.
Na realidade, explicou ele aos Espanhóis como Sepúlveda e outros que
nunca tinham posto os pés nas Américas nem nunca tinham visto um
único indígena, os índios viviam em sociedades com leis e tinham um
entendimento do lícito e do ilícito. As formas que reflectiam a sua
racionalidade e humanidade eram diferentes, mas nem por isso menos
demonstrativas do que Sepúlveda negava. De resto, o argumento de que os
índios eram escravos por natureza era perigoso. Dependia da
demonstração de que não eram suficientemente racionais para receberem a
fé e, portanto, não podiam ser cristianizados. Daí que Las Casas afiançasse
que a racionalidade dos índios era indiscutível. As formas culturais dessa
racionalidade é que eram muito diferentes. E, o que era muito importante,
essas formas culturais não eram imutáveis.
Em Valladolid, e durante toda a sua vida depois de se consagrar, Las
Casas afirmou que os índios eram plenamente humanos, cada um com
uma alma criada por Deus. Disse ainda que eram pacíficos, mansos de
coração e fisicamente frágeis. Que só eram violentos quando atacados
pelas guerras injustas dos Espanhóis. Sugerir o contrário era mentir. E Las
Casas acusou frequentemente as relações que chegavam das Índias de não
passarem de um chorrilho de mentiras.
Notavelmente, uns anos antes de Valladolid, Las Casas já conseguira
influenciar a redacção de uma importante bula de Paulo III, Sublimis
Deus126, onde o Papa reconhecia previamente a humanidade do índio e o
estatuto pleno da sua alma, não se esquecendo de condenar sem qualquer
ambiguidade todos os cristãos que agissem em sentido contrário. A bula
produziria consequências pastorais práticas. Por exemplo, quando Las
Casas regressou pela sétima vez às Índias, já com mais de 70 anos, foi
investigar quem retinha ilegalmente índios como escravos, e na sua
qualidade de sacerdote ameaçou os proprietários com o pecado mortal e a
negação dos sacramentos antes de eles os terem libertado. Mais, pôs a
circular pequenos textos de instruções aos confessores segundo as quais
estes teriam de perguntar sempre a quem pedia o sacramento da penitência
se possuía escravos índios.
Quanto à conquista propriamente dita, sabemos pelo sumário preparado
por De Soto que Las Casas se opôs a um direito de conquista no caso de
os índios se recusarem a submeter-se ao cristianismo ou à soberania dos
reis espanhóis. Interpretava as bulas de Alexandre VI, que deram origem a
Tordesilhas, e de Paulo III no sentido de autorizarem apenas a persuasão,
cooperação e aliciamento como instrumentos da expansão cristã e
espanhola. Numa manobra habilidosa, Las Casas não negou um título
justo de soberania dos territórios das Américas aos reis de Espanha. Mas
negou esse título justo quando a ocupação dos territórios se devesse a uma
guerra injusta perpetrada contra índios insubmissos. Las Casas
acrescentava que não tinha dúvidas de que a boa fé, a justiça, o amor, até,
dos Espanhóis seriam lenta mas seguramente recompensados com a
submissão voluntária dos índios.
A abordagem de Las Casas foi desde o início muito inteligente. Sempre
apelando ao rei, e sempre defendendo o poder soberano do rei espanhol,
Las Casas não negou que houvesse um direito de ocupação daquele
território, nem que os índios pudessem ser submetidos à autoridade
política do império. Inteligente porque todas as acusações, muitas e
violentas, que Las Casas sofreu de subversão e sedição caíam por terra por
não terem sustentação na argumentação que ele apresentava. Assim, Las
Casas desarmava por inteiro os colonos interessados na exploração dos
índios. Desarmava também Sepúlveda, que era entusiástico do direito da
Igreja de Roma e da Coroa de Castela de determinar onde começava e
acabava a jurisdição política espanhola, raciocínios que sempre
agradariam ao poder.
Também Vitória sabia bem quão perigosa era a denúncia da injustiça da
guerra que os Espanhóis moviam contra os índios. Quando não eram
fisicamente violentos com os críticos, os peruleros invocavam o Papa e
acusavam-nos de heresia por porem em causa as bulas e as autorizações.
Ou então, invocavam o imperador e acusavam-nos de subversão política
por porem em causa o direito de conquista e insinuarem a ilegalidade dos
actos dos governantes.127 O argumento de Las Casas era até lisonjeador
para o poder do rei. Os índios que fossem vassalos da Coroa por essa
razão não podiam ser propriedade de nenhum outro vassalo (espanhol) do
rei. Quem era afinal diminuidor do poder de Sua Alteza Real? Las Casas
ou os que defendiam a escravatura dos índios e assim subtraíam vassalos
ao rei em benefício dos colonos proprietários desses escravos?
Las Casas protestou sempre que a sua tese de apoio à soberania dos reis
espanhóis fosse uma lisonja hipócrita para escapar à fúria repressora da
autoridade política. Até porque o argumento completo de Las Casas era
muito subtil. Dizia ele que os índios que ainda não se tinham convertido
ao cristianismo voluntariamente não podiam ser sujeitos à autoridade do
império. As bulas papais de Alexandre VI e de Paulo III atribuíam uma
soberania póstuma, por assim dizer. Como o Papa só era o soberano
espiritual de cristãos, não o era dos índios pagãos. Logo, não tinha poder
para conceder soberania temporal aos reis espanhóis. Mas os índios que se
fossem convertendo voluntariamente ao cristianismo ficariam sob a
autoridade espiritual do Papa romano e consequentemente sob a
autoridade temporal do imperador romano-germânico espanhol. E essa
soberania sobre vassalos índios comportava os mesmos direitos e os
mesmos deveres por parte da autoridade política, bem como dos seus
agentes, que se aplicavam aos vassalos espanhóis. Todos eles cristãos,
claro.
Cristandade, Alteridade e Geopolítica
Os que não eram cristãos não estavam vinculados nem à autoridade
espiritual do Papa, nem à autoridade temporal dos reis. E por não estarem
sujeitos à primeira é que não estariam à segunda. Seria esta última
condição temporária até que a pregação apostólica baseada na caridade e
na benevolência produzisse os seus efeitos sobre os índios? Porventura,
seria assim na expectativa de Las Casas, se os conquistadores não
tivessem arruinado tudo com a sua avalancha de rapina, violência e
crueldade. Vistas as coisas como elas eram, Las Casas dava o passo que
mais ninguém se atrevia a dar: a única soberania que os reis espanhóis
podiam reivindicar era uma «soberania protectora», ou uma «soberania de
protecção», em que os índios já convertidos seriam governados para sua
protecção dos espoliadores e conquistadores.128 Mas uma soberania
baseada no direito de conquista – presuntivamente consumada por uma
guerra injusta – era inexistente. Ninguém, nem o imperador nem o Papa,
podia reivindicá-la. E, de facto, continuava Las Casas, nem Fernando e
Isabel, nem Carlos V, alguma vez tinham autorizado os conquistadores a
fazer guerra aos índios, salvo quando se tratasse de acção defensiva. Os
governadores e capitães que dominavam a situação no terreno tão longe da
metrópole comportavam-se subversivamente e tinham estabelecido um
«sistema de terror» à revelia da legalidade imperial.129 Assim, com a
descoberta destas populações indefesas diante da rapina dos
conquistadores, o que os reis espanhóis tinham adquirido era, na realidade,
um conjunto de obrigações quanto à sua segurança e liberdade. Las Casas
atribuía ao poder político imperial a responsabilidade, para usar uma
palavra dos nossos tempos, ou o dever de proteger os Índios. O contrário,
pois, do direito de os explorar, ou de dispor deles a bel-prazer do poder
político. A fonte dessa obrigação era o «direito divino». Destarte, o
governante espanhol não podia senão proibir a escravatura dos índios e
punir os infractores. Estava obrigado a fazê-lo.130
Se era invocado o direito divino, então era das Sagradas Escrituras que
se falava. Com efeito, Las Casas recorreu ao Antigo e ao Novo
Testamentos para demonstrar que o poder político estava sob a obrigação
criada directamente por Deus de, primeiro, proteger os frágeis e
desvalidos sob a sua jurisdição; segundo, corrigir a imoralidade e conduzir
à virtude os seus súbditos (neste caso, tal significava impedir que os
Espanhóis pecassem tão gravemente nos abusos cometidos contra os
índios); e terceiro, proteger o poder espiritual da Igreja garantindo em
concreto a acção dos seus pregadores nas Américas, ameaçada pelos
colonos que queriam perpetuar, sem perturbações, as suas violências e
fraudes, e evitar que se defendesse a liberdade dos índios. Os reis tinham,
portanto, a obrigação de direito divino de proteger a liberdade dos seres
humanos, os quais eram livres por direito natural.131 Todas as pessoas, na
sua individualidade racional, eram livres e iguais por natureza.132 E a
liberdade, em Las Casas, era caracterizada em termos impecavelmente
cristãos e admiravelmente modernos:
Entende-se por homem livre aquele que goza da faculdade de usar o
seu livre-arbítrio conforme queira, dispondo da sua pessoa, coisas,
acções e direitos sem necessidade de sujeitar as suas disposições à
vontade de outro homem.133
Os índios, por maioria de razão, estavam protegidos pelo direito divino
e pelo direito natural. E assim o horror à opressão era concluído por uma
teoria da universal liberdade dos indivíduos humanos independentemente
da sua raça ou proveniência geográfica, independentemente dos seus usos
e política ou da sua religião.
Las Casas refutou o argumento da guerra humanitária que Sepúlveda
tinha avançado. Por outras palavras, refutou a ideia de que era lícito fazer
a guerra a quem «injuriava a humanidade inteira»,134 habilidosamente
construída por Sepúlveda, que impressionava os ouvintes com a sua
denúncia do canibalismo, dos sacrifícios humanos e de outras práticas
hediondas levadas a cabo pelos índios. Para começar, Las Casas diminuiu
consideravelmente o número de sacrifícios humanos que eram apregoados
pelos falsos humanitaristas que escreviam a soldo dos colonos. Depois,
Las Casas afirmou que nem Deus atribuiu a nenhum soberano a obrigação,
nem havia um poder temporal legítimo para «remediar os males de outro
reino que não depende do seu governo».135 Além disso, este argumento
especioso de Sepúlveda ignorava que a guerra criava outros tantos
horrores, pecados e barbáries. De nada valia provocar toda essa barbárie
para evitar as barbáries que se denunciavam. Deus julgaria o que teria para
julgar. Não o poder político alheio à jurisdição que agora se descobria. Por
outras palavras, Las Casas condenava a guerra «humanitária» e parecia já
avisar os cristãos a não irem para terras estrangeiras à procura de monstros
para destruir – como Quincy Adams apregoara no século XIX para a
república americana independente.
Las Casas aproveitou para reiterar uma exortação da ética cristã que fora
intensamente discutida durante séculos: não fazer o bem com o mal, ou
não usar meios maus para alcançar fins bons, ou, numa das suas
formulações, «não é lícito fazer coisas más para que estas sejam capazes
de produzir bens». É que «o pecado com que se começa é certo e presente,
mas os bens são unicamente futuros e contingentes».136 Cristalizava-se um
axioma moral que não servia só de crítica à guerra injusta contra os índios
das Américas. Servia um desígnio ético mais amplo: o da crítica da guerra
e do uso da violência enquanto tais. E assim seria, não às mãos ou pela
pena de Las Casas, mas de outros inspirados por ele nas décadas e nos
séculos posteriores. De resto, era uma tensão que percorria toda a tradição
cristã desde as palavras do seu fundador, Jesus de Nazaré,
meticulosamente glosadas ao longo dos séculos.
Las Casas introduziu ainda outro argumento relativo ao problema do
horror moral dos costumes dos índios. Para as nações europeias, os
sacrifícios humanos eram uma prática intolerável, mas entre as nações
exóticas o pecado não era tão horrível como era para os europeus. Afinal
de contas, nas Américas o sacrifício humano era uma prática religiosa de
devoção ao deus em que eles acreditavam. Deus julgava todos os pecados
por igual. Mas os homens tinham de ter atenção às circunstâncias de cada
povo.137
A relatividade do pecado não devia apenas atender ao critério do lugar.
Teria também de atender ao critério do tempo. Las Casas invocava vários
exemplos nas nações da Antiguidade, em muitas e diferentes latitudes, da
prática de sacrifícios humanos como um costume estabelecido. E, talvez
chocando algumas almas, não se esqueceu dos exemplos do Antigo
Testamento, desde logo o sacrifício quase consumado de Isaac às mãos de
Abraão por ordem de Deus. Las Casas apelou, pois, à relativização dos
crimes dos índios. Note-se que o teólogo Vitória não o fez. Para Vitória,
os Espanhóis podiam legitimamente proteger os «inocentes» indígenas das
práticas dos seus costumes homicidas, como os sacrifícios humanos. Por
outras palavras, Vitória relevava, quase como Sepúlveda, o direito de levar
por diante uma guerra «humanitária» contra a «tirania» dos senhores
locais – neste caso particular, dos governantes da Mesoamérica, mas
explicitamente generalizável – independentemente do consentimento ou
hostilidade dos «inocentes» a serem salvos.138
No cômputo geral da questão, vemos como o argumento cristão da
consciência moral, da humanidade do índio e da evangelização, todos
usados por Las Casas, eram indispensáveis uns aos outros. Estavam todos
ligados entre si. De outro modo, estar-se-ia a impedir a opressão dos
índios pelos colonos, mas não a impedir que fosse o rei a escravizar
directamente os índios. Os três argumentos tinham de estar articulados e
harmonizados, não fosse o diabo tecê-las. Foi esta absoluta
indispensabilidade do argumento cristão que fez Las Casas na década de
1540 avançar para o argumento papalista.
O ultramontanismo invocado pode causar repugnância no leitor
contemporâneo laicizado que vê com repúdio qualquer interferência das
igrejas nos assuntos temporais. Mas atente-se num paralelismo
interessante com a discussão dos nossos tempos. Naquele tempo, um
problema global clamava por uma jurisdição global também. Ora, o Papa
era essa jurisdição, que passava por cima das jurisdições políticas
imperiais e nacionais. Pelo menos, quando estavam envolvidos povos
cristãos. A supremacia da autoridade espiritual do Papa sobre toda e
qualquer autoridade temporal era, para Las Casas, a instância
indispensável para derrotar qualquer veleidade de escravização dos índios:
dos governantes e dos colonos cristãos, porque estavam sujeitos à
autoridade espiritual do Papa; e do Papa, porque este estava sujeito ao
direito divino e ao direito natural, que, como vimos, protegiam os índios.
A globalização do direito, por assim dizer, implicava a sua sediação no
Vaticano.
Las Casas não duvidava da universalidade da verdade revelada. Daí,
porém, não concluiu a licitude da sua imposição unilateral aos bárbaros ou
aos incréus. Estes tinham as suas formas religiosas próprias,
evidentemente falsas. Mas nem por isso menos protegidas pelo respeito
que lhes era devido pelos crentes na religião verdadeira. Esse respeito era-
lhes devido por serem crenças de seres humanos racionais. A humanidade
dos índios fundava-se na sua racionalidade – o terem sido criados à
imagem e semelhança do seu Criador. O que o género humano tinha em
comum era precisamente a sua racionalidade. E aos índios, dizia Las
Casas, não podia ser negada a sua racionalidade. A racionalidade de cada
um, bárbaro ou europeu, cristão e incréu, constituía o fundamento do
respeito que era devido à sua integridade corporal, à protecção da sua
família e da sua propriedade, extensível às suas formas sociais e
religiosas. A partir do seu catolicismo, Las Casas inaugurava uma
concepção da convivência entre crenças religiosas assentes no respeito
mútuo. Assentes num respeito que abrangia a interdição da imposição
unilateral, ou de conversões forçadas, sem ter de reconhecer que as
crenças eram todas igualmente verdadeiras ou falsas. O consentimento de
cada um, a conversão voluntária e informada, era a única condição
aceitável da expansão da verdadeira religião. A contrapartida era o
reconhecimento de um estatuto de forma religiosa tolerável às práticas e
crenças dos bárbaros. Era a ética do reconhecimento avant la lettre.
Mas havia mais. Sem essa verdade universal, que não era posta em
causa por Las Casas, o fundamento dos imperativos éticos que se
impunham ao Europeu na relação com o Outro tornar-se-ia muitíssimo
mais precário. Não teria sequer havido a consciência dos limites à
instrumentalização do outro. O que o tremendo debate entre Las Casas e
Sepúlveda fez notar foi que, se o Outro fosse radicalmente outro, não
havia limites à sua desumanização. Mas foi o cristianismo dos colonos, e
sobretudo dos missionários e padres, que proporcionou uma plataforma
comum, um chão comum de uma humanidade comum, para Espanhóis e
índios. À primeira vista, esta condição epistémica para reconhecer a
humanidade do outro parecerá ser a muitos demasiado redutora e em certa
medida desumana. Hoje, queremos reconhecer a humanidade do Outro
sem quaisquer pré-condições.
Mas tentemos ver isto pelos olhos dos protagonistas cristãos do século
XVI, que não tinham os precedentes, que eles próprios tiveram de criar, e
de que hoje podemos beneficiar mais ou menos conscientemente. A lição
é interessante, porque mostra que a abertura ao Outro não se fez a partir de
um reconhecimento de uma alteridade radical – esse era, como vimos, o
caminho para a sua desumanização, mesmo quando excluíamos os vis
motivos da ganância e do desejo de poder. Vimos isso quando os
Espanhóis encontraram índios com culturas tão diferentes que alguns
acabaram a duvidar finalmente que fosse possível convertê-los ao
cristianismo.
E também não se faz a partir da negação da nossa própria condição
histórica. A diferença de condições históricas entre as figuras que se
encontravam era, de facto, abissal. Mas o encontro de Las Casas fez-se na
base da assunção plena da sua própria condição – a mais plena das
assunções, podemos dizer, inclusivamente contra muitos dos seus
contemporâneos espanhóis. Foi a consciência e afirmação muito
aprofundada de si mesmo que permitiu a pelo menos alguns espanhóis
salvarem a consciência moral nesse grande encontro com um Outro. Um
nada não negoceia nem dialoga com um Outro. Em abstracto, pode tornar-
se inteiramente no Outro que acaba de encontrar. Em concreto, tudo se
bloqueia, porque esse nada cultural é inviável e o aniquilamento de si
resulta as mais das vezes de uma construção cultural bem particular nem
sempre assumida.
O grande encontro com o Outro no Novo Mundo foi travado por Las
Casas sob o signo do Outro enquanto semelhante. Seguir-se-ia um
trabalho histórico de não muito tempo que desembocaria no sentimento
humano de semelhança, que, tal como Tocqueville se encarregaria de dar
conta, faria o espírito da democracia. Era como que uma nova tomada de
consciência do que era o bárbaro para o civilizado. Afinal de contas, o
bárbaro era o que, quando falava na sua língua estranha, proferia sons
ininteligíveis aos ouvidos gregos, ouvidos que só conseguiam reter um
bar-bar.
Mas, como vimos, o sentimento de semelhança aparecia em Las Casas
por via de uma fonte particular. Uma fonte religiosa, cujo fundador fora
filho de um humilde carpinteiro de aldeia, pregara no deserto descalço e
com fome, seguido por pescadores pobres. Seria executado como um vil
escravo criminoso, sofrendo uma morte horrível depois de uma
humilhante tortura. Fora este homem que os cristãos anunciaram como o
próprio Filho de Deus, um Messias que viera triunfar sobre a morte, e pela
sua doutrina e pelo seu exemplo viera dar consolo aos inferiores, aos
vexados e aos oprimidos. Viera também exortar ao amor fraternal como o
princípio fundamental de ordem, reflectindo o amor essencial que Deus
Pai tinha pelas suas criaturas.
O Padre António Vieira e os Índios do Brasil
Num capítulo sobre os Descobrimentos e o encontro com os índios, num
livro sobre a geopolítica europeia, não podemos deixar completamente em
branco o contributo histórico português. Do lado português, na história do
encontro com o Outro encontramos uma figura seiscentista de grande
relevo e um dos nossos maiores vultos literários: o padre António Vieira.
Foi aos ombros dos dois gigantes espanhóis, Francisco de Vitória e
Bartolomeu de las Casas, e de outros que se lhe seguiram, que o jesuíta
António Vieira, na segunda metade do século XVII, ou mais de cem anos
depois do Debate de Valladolid, fez a defesa dos índios que ele conheceu
directamente no Brasil português. Talvez a sua articulação mais clara da
defesa dos direitos dos índios tenha ocorrido durante a controvérsia com
os colonos de São Paulo, que, à semelhança dos colonos que acabámos de
conhecer nas Caraíbas e na terra firma das Américas espanholas,
reivindicavam direitos de submissão dos índios.139 Num texto enviado ao
rei, e escrito em 1694, poucos anos antes de morrer, Vieira deu o seu
parecer sobre a veleidade dos moradores de São Paulo de governarem
directamente as aldeias dos índios e de procederem às infames «entradas»
com vista à captura de escravos, apesar da proibição imposta pela lei do
reino de 1680. Nessa provisão, a administração das aldeias era concedida
aos Jesuítas e a escravatura dos índios proibida. Ora, tal como acontecera
nas Américas espanholas com os Dominicanos, os Agostinhos e os
Franciscanos, no Brasil português os colonos tinham perdido a paciência
com os Jesuítas. Houve sempre, é certo, como houve em São Paulo,
membros das ordens religiosas que alinharam publicamente pela posição
dos colonos esclavagistas. Mas os colonos sabiam identificar os seus
inimigos. De resto, a revolta não era exclusiva a São Paulo. Vieira já
conhecia, e bem, a controvérsia de outras regiões do Brasil colonial.
Tal como Las Casas, Vieira denunciava sem ambiguidades a violência e
a crueldade com que os índios foram sujeitos ao poder daqueles colonos.
Depois, Vieira também imitou Las Casas ao descrever a vida dos índios
anterior à chegada dos Portugueses como «livre» e em domínio «natural»
pleno das suas terras. Possuíam, pois, um direito de «liberdade natural» e
gozavam de imunidade relativamente à jurisdição política do rei de
Portugal. Os seus argumentos eram recapitulações dos espanhóis
quinhentistas. Os índios não eram escravos, porque não tinham sido feitos
prisioneiros numa «guerra justa». Pelo contrário, as violências dos
Portugueses eram radicalmente injustas. Não podiam ser reduzidos à
escravatura, porque os índios de São Paulo não eram radicalmente
inferiores, nem incapazes de se governar por si. Como poderiam sê-lo se
viviam em aldeias, cultivando a terra metodicamente? E não eram
vassalos da Coroa portuguesa, pois já tinham as suas jurisdições políticas
anteriores à chegada dos navegantes portugueses. Nem os colonos nem os
reis portugueses podiam sujeitá-los às suas leis, aos seus tributos, e muito
menos coarctar as suas liberdades naturais. Para que os índios estivessem
sujeitos à administração portuguesa, em conformidade com o direito, seria
necessário o «consentimento» «expresso, voluntário e livre» dos índios e
«totalmente sincero e livre».
Vieira atirava dois deveres para a consciência dos reis de Portugal.
Devolver os índios à sua «liberdade natural» e punir os colonos que os
violentavam, desobedecendo inclusivamente às leis da metrópole,
dificuldade que já conhecemos da experiência espanhola de colonização
no século anterior. É certo que tantas referências à liberdade solicitavam
uma sua definição mais detalhada. E Vieira não fugiu a essa solicitação.
Bebendo do direito romano, que já era fonte desde há séculos na tradição
católica, Vieira apresentava, sem originalidade, a liberdade como a
capacidade natural de cada um fazer o que quer de si mesmo e dos seus
próprios interesses. Vieira explicava: cada um podia dispor da sua própria
pessoa e das coisas que possuía. Tudo isso fora negado aos índios
escravizados, roubados e mortos. Tal como em Las Casas, uma crítica da
opressão colonizadora terminava, e tinha de terminar, com uma
articulação, se não com uma teoria, da liberdade.
As religiões constituem elementos geopolíticos de primeira ordem, e o
cristianismo não foi, nem é, excepção. Na geopolítica europeia, o
cristianismo foi, e é ainda, um elemento central. Com Las Casas e os seus
companheiros dominicanos, franciscanos e agostinhos, vemos que o início
da expansão imperial europeia foi coincidente com o seu fim. Ou melhor,
a fundação do império ultramarino europeu foi quase coincidente com a
inauguração da sua crítica, e com ela a edificação do horizonte europeu
pós-imperial. Foi no preciso momento da euforia europeia com as suas
possibilidades que nasceu a consciência ética dos seus limites. É verdade
que a expansão prosseguiria por mais três ou quatro séculos. Mas não sem
a fustigação da consciência. E isso trouxe consequências que se
manifestaram muito antes do século XX. No século XVIII era já um lugar-
comum repetido por toda a Europa denunciar aquilo que em Espanha
ficaria conhecido por a Lenda Negra. No século XX cairiam impérios
europeus e cristãos por toda a parte. O da Espanha ruiu poucos meses
antes de o século XX começar. O cristianismo fora uma força geopolítica
de primeira ordem no levantamento desses impérios, da sua apologia, da
sua crítica e do seu derrube. Agora, é, pois, altura de analisarmos a queda
do primeiro império cristão.
113
Antonio Cánovas del Castillo, Historia de la Decadencia de España, 2.ª
edição, Madrid, Librería Gutenberg de José Ruiz, 1910, p. 17.
114
Aristóteles, Política, 1253b32-1255b15.
115
Juan Ginés de Sepúlveda, Demócrates Segundo, o de las justas causas de
la guerra contra los indios, Marcelino Menéndez y Pelayo (ed.), Boletín de
la Real Academia de la Historia, t. 21 (1892), edição digital: Clásicos de
Historia, 2016, p. 28.
116
Sara Rodicio García, «Aportaciones al estudio del pensamiento de
Hernán Cortés», Quinto centenario, 15, Madrid, 1989, pp. 268-71;
Francisco Cuena Boy, «El Tratado sobre la materia de los indios que se han
hecho esclavos de Bartolomé de las Casas. Análisis Jurídico», UNAM,
Instituto de Investigaciones Jurídicas, Revista Mexicana de Historia del
Derecho, XXVIII, p. 41.
117
Bartolomeu de las Casas, Controversia entre el autor, y el doctor Juan
Ginés de Sepúlveda, cronista del emperador Carlos-Quinto, seguida en
presencia del consejo de Índias sobre los títulos de conquista y retención de
la soberania de América, Obras de D. Bartolomé de las Casas, 2 tomos,
Paris, Rosa, 1822, T. I, pp. 416-35.
118
Francisco de Vitória, De bello contra Indos (1539).
119
Francisco de Vitória, carta a Miguel de Arcos, Salamanca, 8 de
Novembro de 1534, in Vitória, Political Writings, Anthony Pagden, Jeremy
Lawrance (eds.), Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 332.
120
Summa Theologiæ, I, q. 92, art. 1, ad. 2; I, q. 96, art. 4.
121
Summa Theologiæ, II-II, q. 10, art. 10.
122
Papa Alexandre VI, bula Inter Cætera, 4 de Maio de 1493.
123
Institutas, I.2.1.
124
Antón de Montesinos, El sermón, https://www.dominicos.org/500-
sermon-montesino/sermon/.
125
Julián Garcés citado em Hugh Thomas, The Golden Empire: Spain,
Charles V, and the creation of America, Nova Iorque, Random House,
2010, edição epub, p. 833.
126
Papa Paulo III, bula Sublimis Deus, 29 de Maio de 1537.
127
Carta a Miguel de Arcos, 8 de Novembro de 1534, pp. 331-32.
128
Bartolomeu de las Casas, Controversia, T. I, art. 3, p. 485.
129
Bartolomeu de las Casas, Sobre la libertad de los indios que se hallaban
reducidos a la classe de esclavos, T. II, p. 6.
130
Bartolomeu de las Casas, Sobre la potestad soberana de los reyes para
enagenar vassalos, pueblos y jurisdiciones, T. II, p. 55.
131
Sobre la potestad soberana, T. II, p. 65.
132
Sobre la potestad soberana, T. II, pp. 56-58.
133
Sobre la potestad soberana, T. II, p. 57.
134
Bartolomeu de las Casas, Controversia, T. I, art. 1, p. 430.
135
Controversia, T. I, art. 1, p. 430.
136
Sobre la potestad soberana, T. II, p. 15.
137
Controversia, T. I, p. 431.
138
Vitória, q. 3, art. 5, §15.
139
António Vieira, «Voto do Padre António Vieira sobre as dúvidas dos
moradores de São Paulo acerca da administração dos índios» [1694], in
Padre António Vieira, Escritos sobre os Índios, Ricardo Ventura (ed.),
Lisboa, Temas e Debates, 2016, pp. 274-84.
VI
BÁRBAROS DENTRO DE PORTAS
Roma, 410
A Queda de Roma
No segundo século da era cristã, o império de Roma abrangia a mais
bela parte da terra e a porção mais civilizada do género humano. As
fronteiras dessa extensa monarquia eram guardadas pela reputação
antiga e pela bravura disciplinada. A influência suave, mas ponderosa,
das leis e das maneiras tinha cimentado gradualmente a união das
províncias. Os seus habitantes pacíficos gozavam e abusavam das
vantagens da riqueza e do luxo. A imagem de uma constituição livre
era preservada com uma reverência decente: o Senado romano parecia
ter a autoridade soberana e que devolvia aos imperadores todos os
poderes executivos do governo. Por um período feliz de mais de 320
anos, a administração pública era conduzida pela virtude e capacidades
de Nerva, de Trajano, de Adriano e dos dois Antoninos.140
Foi com estas palavras que Edward Gibbon abriu a sua monumental
obra sobre o declínio e queda de Roma. Quis começar do seu ponto mais
alto, do máximo do seu poder, da sua expansão, da sua benignidade, da
sua glória, ponto atingido aquando da morte do imperador Marco Aurélio,
para melhor poder descrever a decadência. O processo de declínio e queda
de Roma era, segundo Gibbon, que escrevia no final do século XVIII, uma
«revolução que seria recordada para sempre e que ainda é sentida pelas
nações da Terra». Por outras palavras, um terrível acontecimento
geopolítico que tinha abalado, e continuava a abalar, o mundo inteiro.141
No último quartel do século IV da nossa era, os povos bárbaros que
habitavam as planícies na margem norte do rio Danúbio estavam
irrequietos. Em 376, do outro lado do Danúbio, os Romanos viram-nos
pedir asilo. Eram dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças
espalhados ao longo de vários quilómetros da margem do rio. A nossa
melhor testemunha, Amiano Marcelino, falou de uma multidão que
contava 200 mil guerreiros. Gibbon atreveu-se a especular o número de
um milhão de almas no total. Queriam autorização para atravessar o rio e
passar para a margem sul, já dentro das fronteiras do Império Romano.
Desejavam a segurança do Império. Em troca prometiam lealdade,
obediência às leis romanas e tornarem-se eles as sentinelas das fronteiras
imperiais. Nem todos os bárbaros o fizeram. Divisões internas entre as
tribos tinham levado os Godos Tervíngios a romper com a confederação
gótica, liderada por Atanarico.
Vale a pena sublinhar que este episódio foi apenas um dentre centenas
de outros exemplos em que o ímpeto genocida definia o sentido dos
grandes movimentos populacionais. Não sem uma considerável
melancolia, somos forçados a reconhecer aquilo que as presentes
discussões políticas ao sabor de ideologias da subversão, ou de
moralismos ingénuos, não querem reconhecer: que a História da
Humanidade foi uma sequência ininterrupta de limpezas étnicas e de
genocídios. Convém não esquecer que, se os Godos dominavam os
territórios na margem norte do Danúbio junto ao mar Negro, vindos das
florestas da Polónia, tal devia-se a uma pura migração de conquista – no
século III da nossa era – que tinha destruído e sujeitado os povos indígenas
que lá viviam antes da sua chegada. E assim sucessivamente. Até que a
consciência do Outro, com todas as consequências que daí seriam
extraídas e aumentadas, formaria a nova espiritualidade europeia de
Bartolomeu de Las Casas em diante – ainda que a política concreta
demorasse uns séculos a actualizar-se.
Regressemos ao final do século IV. Roma, ou o Império do Oriente,
anuiu aos pedidos dos Godos Tervíngios. Valente e a sua corte julgavam
que tinham acabado de recrutar um exército leal de muitos milhares de
soldados ao serviço do imperador. Mas o imperador excluiu os pedidos
dos Godos Greutungos, o que aponta para a suspeita de que o imperador
foi forçado a gerir a situação segundo outro critério além do
engrossamento das suas legiões. Os Greutungos não se fizeram rogados e
atravessariam o rio de qualquer modo. Em breve seriam imitados por
outros povos bárbaros. Era o início da Völkerwanderung, o grande
movimento dos povos germânicos e outros, uma combinação de
migrações, invasões, em movimentos de refugiados, colonizadores e
saqueadores. Alanos, Taifalos e Sarmacianos – nem todos estes povos
eram inimigos de Roma. Pelo contrário. Com a excepção dos Hunos, eram
há muito clientes do Império. Há décadas que forneciam soldados às
legiões romanas. Os Hunos eram um caso diferente. Sendo nómadas
provenientes das estepes eurasiáticas, procederam ao longo de anos a uma
migração para oeste, que, como vimos, fascinaria no século XX homens
como Halford Mackinder. As deambulações dos Hunos, povo incivilizado
e temível, tinham-nos levado até à Península da Coreia a leste – os
Chineses construíram uma Grande Muralha para se protegerem das suas
invasões – e a oeste até às portas do Império Romano e da Europa. Essa
migração seria uma força terrível de desestabilização da vida das tribos
góticas e germânicas que viviam fora das fronteiras do Império. Segundo
as (pouquíssimas) fontes romanas de que dispomos – em particular, o tal
historiador Amiano Marcelino –, foi o medo dos Hunos que converteu os
Godos em refugiados. À sua passagem, os Hunos devastavam tudo e
matavam toda a gente, com crueldade e selvajaria. O terror que
inspiravam aos Godos alimentava os inevitáveis mitos sobre as suas
origens. Dizia-se que as bruxas da Cítia, a região que ia desde a actual
Ucrânia até ao canto mais oriental do actual Cazaquistão, uma vez
expulsas da sociedade pela sua perversidade, tinham praticado sexo com
espíritos infernais, e desse contacto tinham nascido os horríveis e
deformados Hunos.142
Foragidos do terror huno, e depois explorados vilmente pela ganância
dos prefeitos e comandantes locais romanos, os Godos abririam caminho
pela força para se instalarem nos Balcãs. Esmagaram o exército romano
em 378 numa batalha terrível em Adrianópolis, onde o imperador do
Oriente, Valente, não escaparia à morte. Pouco tempo depois, o retor de
Antioquia, Libânio, diria que a causa da derrota romana estivera na
«indignação dos deuses»,143 uma observação directamente ligada ao
assunto que irei explorar com Agostinho de Hipona. E rezam as crónicas
que um chefe bárbaro, depois de se confessar cansado de tanta
mortandade, terá pregoado que um povo que fugia como um rebanho de
ovelhas não podia reclamar o domínio de tesouros e territórios. Doravante,
as relações entre os Romanos e os Godos seriam marcadas por retaliações,
crueldades e tentativas de apaziguamento. Se os Godos tinham pesadelos
com os Hunos, os Romanos teriam doravante com os Godos.
Seis meses após a morte de Valente, Teodósio, dito o Grande,
proveniente da Hispânia, seria escolhido para imperador do Oriente. Com
Teodósio veio uma política de uniformização religiosa. Teodósio impôs a
aceitação do credo niceno, adoptado no primeiro Concílio Ecuménico de
Niceia ainda no reino de Constantino, o primeiro imperador convertido ao
cristianismo. No ano 380, depois de receber o baptismo, Teodósio
proclamou o édito de Salónica, juntamente com Graciano, imperador do
Ocidente. Com esse édito era imposta a todas as seitas cristãs, e com um
enfoque muito particular no arianismo, o acolhimento de uma ortodoxia
dogmática: a consubstancialidade das três pessoas do Deus triúno – Pai,
Filho e Espírito Santo. O único cristianismo ortodoxo passava a ser o
trinitário, e o uso da força imperial era uma ameaça lançada a todos os que
resistissem à nova disciplina religiosa. Quem não acatasse o dogma da
Santíssima Trindade receberia, nas palavras do édito imperial, «o
ignominioso nome de herético». Constantinopla, a capital do Império no
Oriente, era, na época, uma cidade dominada nos templos e nas ruas pelos
sacerdotes do arianismo, que dogmaticamente sustentava que Deus e Filho
não eram consubstanciais, nem se situavam no mesmo plano hierárquico
celestial.
Ao mesmo tempo, Teodósio procedeu a uma extirpação dos ritos,
templos e práticas pagãs pré-cristãs com uma intensidade e violência até
então desconhecidas. Os deuses que tinham vivido em Roma desde as
suas origens e que tinham escoltado os seus exércitos vitoriosos por toda a
bacia mediterrânica eram agora escorraçados como impostores. Roma fora
fundada, vivida e expandida com virgens vestais que guardavam o fogo
sagrado; com áugures que liam os voos das aves e descodificavam as
entranhas dos animais sacrificados; com pontífices que preparavam e
ritualizavam esses sacrifícios; com quindecênviros que guardavam os
livros sibilinos e neles liam o futuro; com os epulões que organizavam os
banquetes e os festivais públicos; e com templos que eram morada de
deuses – centenas de templos só na cidade de Roma. Todos eram agora
denunciados como uma mentirosa superstição que devia dar o lugar ao
reino do verdadeiro e único Deus. Mais, eram proibidos por autoridade
imperial. Os sacerdotes eram devolvidos à irrelevância, os sacrifícios
impedidos, os templos encerrados, os adornos da idolatria confiscados. A
Roma antiga, tanto a republicana como a imperial, nunca conceberia
separar a religião da política. Os deuses eram deuses da cidade, e esta,
durante as suas conquistas, tinha importado muitos deuses de outras
paragens para o seu panteão. Tinha-lhes conferido uma espécie de
existência cívica própria, ao lado dos outros deuses.
Até quase à época de Teodósio, o venerável Senado em Roma, a mais
importante instituição política da cidade desde a sua criação, e que fora
sobrevivendo mesmo à centralização do poder na figura do imperador –
esta, sim, uma criação relativamente recente na história da cidade –,
reunia-se sob a égide do altar da Vitória, uma deusa, evidentemente. Era a
sua magnífica estátua alada que dominava a sala da reunião dos senadores.
O juramento a que todos os senadores estavam obrigados era feito nesse
altar. A deusa romana da Vitória era a análoga da deusa grega Niké – que
serviu de inspiração no século XX para uma famosa marca desportiva. A
cultura agónica dos Gregos, que competiam pelo primeiro lugar em tudo,
e multiplicavam guerras e concursos desportivos, proporcionava uma boa
casa para uma deusa da Vitória. Com os Romanos não seria muito
diferente. Povo de guerreiros que acumulou um império grandioso que
dependia da superioridade militar, os Romanos também precisavam de
uma deusa que os bafejasse com vitórias sobre os seus inimigos.
Legionários, capitães e imperadores: todos lhe prestavam culto. A estátua
que presidia à sala da Cúria, e que tanto incomodaria os imperadores
cristãos, fora lá posta pelo primeiro dos imperadores, César Augusto.
Depois de ter sido removido pelo imperador Constâncio II (337-361), o
altar regressara por ordem de Juliano (361-363), dito o Apóstata, o tal que
queria precisamente restaurar a religião pagã. Mas Graciano (367-383),
imperador do Ocidente, retirara-o outra vez, apesar de dois imperadores
cristãos que o antecederam não lhe terem tocado. É provável que a
influência de Santo Ambrósio, bispo de Milão, tenha pesado nessa
decisão. Os senadores pagãos, que tanto quanto é possível discernir
constituíam a maioria no Senado, decidiram, então, encarregar Quinto
Aurélio Símaco, o maior retor latino do seu tempo, de liderar uma
delegação e pedir ao imperador o regresso do altar. Tinham a seu favor no
pleito o rol infindável de vitórias militares em que esta religião pagã tinha
sido parte valorosíssima. Fora aquele culto, dizia Símaco, que vergara o
mundo às leis de Roma. Os senadores pagãos queriam conservar a religião
dos seus antepassados, os maiores, entidade portadora da maior autoridade
tradicional. O culto dos deuses era parte integrante do mos maiorum, do
more parentum, do costume ancestral, que tinha valor por si. Queriam
guardar a grandeza de Roma. Símaco dizia até que não havia
incompatibilidade de cultos, pois todos «procuravam a verdade e não
h[avia] uma só estrada para um segredo tão vasto».144
Porém, a comitiva dos senadores pagãos seria repudiada por Graciano.
De resto, o imperador morreria assassinado alguns meses depois. Mesmo
antes da ascensão de Teodósio ao trono oriental era Valentiniano o
imperador no Ocidente, cristão tal como o seu antecessor. Os senadores
pagãos interpretaram o assassinato de Graciano e a ascensão ao trono de
um imperador de tão tenra idade como uma oportunidade para voltar à
carga. Decidiram designar Símaco para redigir uma petição dirigida a
Valentiniano. Por seu lado, os senadores cristãos também fizeram uma
petição – com o teor contrário, naturalmente. A petição pagã foi derrotada
desde logo por Ambrósio, um dos conselheiros do imperador, tanto de
Graciano, como de Valentiniano, não obstante o ódio que a mãe deste lhe
reservava. Ambrósio tornar-se-ia célebre para a posteridade ao baptizar
Santo Agostinho três anos após esta controvérsia, e por ter excomungado
temporariamente o próprio imperador Teodósio na sequência do massacre
de Salónica, num momento simbólico imorredoiro da autonomia e do
ascendente da Igreja face ao poder político. Ambrósio era um grande
orador, de boas famílias, e gozava de imenso prestígio pessoal. Tinha uma
vasta experiência e alguma doutrina no tema das relações entre o Estado
político e a Igreja Católica. Oitocentos anos depois, ainda seria uma
autoridade venerável para teólogos e doutores como Tomás de Aquino,
por exemplo.
Neste debate ficariam definidos os grandes termos da polémica posterior
de Agostinho com os pagãos após o saque de Roma em 410. De um lado,
a acusação pagã de que o cristianismo enfraquecera o império e que o
repúdio dos deuses tradicionais trouxera grandes desgraças. Do outro, a
resposta cristã da debilidade dessa superstição romana e de como ela
paradoxalmente lançava luz sobre a grandeza e a pequenez do Império
Romano. Em particular, Ambrósio lançaria a suspeita, tal como Agostinho
poucos anos mais tarde, de que os pagãos eram infantilmente
supersticiosos, recusando-se a ver as causas humanas e materiais de
fenómenos humanos e materiais como era o fenómeno político. Era quase
infantil querer atribuir causas sobrenaturais às conquistas de Roma,
omitindo tudo o resto. Ambrósio não se coibiria de ridicularizar as
práticas romanas de querer ler «as palavras de Deus em animais
mortos».145 Sobretudo, Ambrósio conseguiria iniciar o argumento de
esvaziamento do poder do imperador nos assuntos religiosos, algo
impensável para o paganismo romano. Dizia Ambrósio a Valentiniano que
todos os habitantes das províncias do império eram seus súbditos, mas ele
era súbdito de Deus. O patrocínio do paganismo era incompatível com
essa essencial sujeição. Ao contrário dos assuntos militares, os assuntos
religiosos obrigavam o imperador a consultar os representantes de Deus –
os bispos. Mas sobre a resposta cristã aos críticos pagãos terei
oportunidade de me debruçar uns parágrafos mais abaixo.
Poucos anos depois da ascensão ao poder imperial de Teodósio, um
chefe guerreiro de nome Alarico tomava a liderança de um grupo de
godos. Acabariam por rumar a Itália. Seria desta liderança que se formaria
o reino visigodo, um dos primeiros a emergir das ruínas do Império
Romano do Ocidente, juntamente com o dos Vândalos e dos Borgonheses
em diferentes geografias. No entanto, nos primeiros anos do século V,
Alarico ainda não era rei.
O impacto da desestabilização não morreria no último quartel do século
IV. Quando Flávio Honório já imperava no Ocidente, entre 405 e 413,
novas migrações de salto da fronteira imperial ocorreriam nos Alpes e no
Reno rumo à Gália e a Itália. Vândalos, Alanos, Suevos, Borgonheses,
Alamanos forçaram a passagem, nalguns casos até o que é agora a
Espanha – ficando os Alanos com a cobiçada Lusitânia. Neste caso, os
bárbaros que não tinham qualquer relação com o império eram os Alanos.
Teodósio sustivera o império depois do desastre de Adrianópolis. Com
Teodósio, os Romanos chegaram a vários entendimentos pacíficos com os
Godos e a outras tantas vitórias militares. Os Godos foram em larga
medida subordinados, ou clientelizados, sem serem escravizados.
Milhares foram integrados nos exércitos romanos. Mas depois da sua
morte, em 395, a situação agravou-se muito. Se uma grande parte dos
Godos, por gratidão e resignação, se tinha ajustado à condição de guardas
do império e/ou do imperador, também é verdade que uma parte nunca se
sentiu confortável nesse lugar. Nesse mesmo ano, os Godos pegaram em
armas. Agora que se tinham convertido em mercenários do império,
acabavam por ter o império seu empregador à sua mercê. Filósofos como
Sinésio ainda apelaram ao imperador para que reinstituísse o serviço
militar da população romana e diminuísse a dependência dos mercenários
bárbaros. Sem qualquer efeito. Alarico seria designado magister militum,
uma posição destacadíssima de capitania militar na província de Ilírico (no
território hoje ocupado pela Croácia e pela Bósnia-Herzegovina). Com
Alarico como o seu chefe, os Godos pilharam e massacraram as
populações da Trácia, Dácia, e também da Ática e do Peloponeso. As
agora decadentes cidades de Atenas, Esparta, Argos e Corinto, em tempos
potências militares temíveis, e desde há muito dentro das fronteiras do
Império Romano, eram engolidas pela fúria gótica. Promovido por Roma
à categoria de grande comandante de guerra, com a sua fama a espalhar-se
em virtude das suas conquistas, Alarico uniria uma grande parte dos
Godos, até então desavindos, e seria proclamado em cima de um escudo
como o primeiro rei dos Visigodos. E, no entanto, Alarico não desistiria de
alcançar algum tipo de acomodação com os Romanos, que, ao contrário
do acordo posterior à passagem do Danúbio, em 376, reconhecesse
plenamente a sua liderança militar e política, com um cargo na hierarquia
do império a condizer e a subsidiação da população que ele liderava. O
que significava o reconhecimento de uma entidade não-romana quasi-
independente no seio do Império Romano. Os Romanos, porém, não
dariam seguimento a tais veleidades no tempo de vida de Alarico. Só mais
tarde, em 418, quando os Godos já tinham alcançado a Gália e a sua força
militar era demasiado grande para os recursos militares romanos é que
Roma, por fim, cedeu.146
Entretanto, Alarico e os seus homens tinham-se cristianizado. Aderiram
a uma seita provinda do Oriente, como quase todas as outras, o arianismo,
assim conhecida pelo nome do seu fundador, Ário. O arianismo foi nesta
época provavelmente a mais poderosa das heresias trinitárias. Afirmava a
supremacia de Deus Pai e a subordinação do Filho por este ter sido gerado
pelo Pai no tempo, não sendo por isso co-eterno com ele. Ironicamente, as
conquistas de Alarico pelos territórios do império foram destruindo o que
restava do paganismo. Não apenas dos seus artefactos e templos
destruídos e pilhados pelos Godos, mas também do prestígio dos seus
deuses.
Quando, depois do fracasso da invasão da coligação bárbara chefiada
por Radagaiso, Alarico decidiu aterrorizar a Itália, o imperador Honório
em Milão não lhe fez frente e fugiu. A fuga deixou a descoberto a
vulnerabilidade de Milão e faria este imperador e os seus sucessores
escolherem uma nova capital do Ocidente na cidade de Ravenna, na costa
do Adriático. Tal como fugiram com as suas riquezas para a Sicília e para
o Norte de África os romanos mais abastados. Não que a incursão não
tivesse conhecido os seus reveses. Mas no final Alarico chegou a Roma.
Quando Alarico pilhou e incendiou Roma, quase setecentos anos tinham
passado desde a última vez que a cidade estivera insegura. Segundo o
censo da época de Teodósio, Roma contava 48 382 casas e provavelmente
entre cerca de 500 mil habitantes, se recorremos a comparações com a
densidade populacional de Pompeia e Óstia147, e, nas avaliações mais
convencionais, cerca de um milhão de habitantes, contando com os
escravos. Gibbon avançava o número de 1,2 milhões de habitantes.148 Na
realidade, Alarico foi a Roma três vezes demonstrar o seu poder. Na
primeira, em 408, Alarico cercou a cidade e fez a fome mais horrível
torturar a população e provocar grande mortandade. Segundo algumas
crónicas, e como por vezes tristemente sucede em ocasiões tão
desesperadas, praticou-se o canibalismo. Roma cedeu e pagou um resgate
avultado, além de libertar milhares de escravos godos. Foi então que o
imperador Honório voltou com a palavra atrás e não cumpriu tudo o que
Roma tinha prometido a Alarico, incluindo a sua nomeação para
comandante do exército romano no Ocidente. Alarico voltou a atacar
Roma tendo em vista o repúdio de Honório como imperador e a sua
substituição por um senador romano da sua confiança, e prefeito da
cidade, chamado Átalo.
Fracassada esta nova abordagem, mas nem por isso confiando em
Honório, Alarico atacou Roma pela terceira vez no dia 24 de Agosto de
410. Desta feita, entrou pelos portões traiçoeiramente escancarados das
muralhas da cidade e autorizou os seus homens a pilharem todas as suas
riquezas. No entanto, exortou-os a poupar a vida de todos os romanos que
não resistissem e a respeitar como santuários as igrejas de Pedro e de
Paulo. Tendo este episódio em conta, Agostinho desafiaria os pagãos
romanos a encontrarem um outro exemplo de reverência e devoção
religiosa que pusesse em sentido um exército bárbaro no meio de uma
orgia de pilhagem e licenciosidade. Convenientemente, Agostinho não
recordaria os leitores de que muitos dos godos invasores já eram cristãos,
ainda que arianos. Outros não deixariam de o notar. Além disso, até que
ponto é que essa contenção se verificou permanecerá uma incógnita.
Sabemos que a matança da população civil foi terrível. As violações das
mulheres e as vinganças dos escravos encheram os três dias do saque com
um horror redobrado. Roma não foi poupada à destruição típica de um
saque por um exército furioso, nem as suas incontáveis obras de arte que
embelezavam a cidade. Para os romanos reduzidos à escravatura ou
convertidos em refugiados miseráveis noutras províncias era natural que
se tomasse a queda da cidade como o fim do império e da própria
civilização.
Na realidade, o Império Romano sobreviveria por muito mais séculos
depois do saque de Roma, em 24 de Agosto de 410. Mesmo o Império
Romano do Ocidente sobreviveria mais umas quantas décadas. Não foi
este saque que ditou o desmoronamento do império – nem no Oriente,
nem no Norte de África, nem nas extremidades ocidentais onde vigorava a
lei de Roma. Mas os bárbaros acabariam por ocupar e colonizar todos
esses territórios, sobretudo no Ocidente e na parte ocidental do Norte de
África, formando reinos próprios e separados uns dos outros. Vândalos e
Alanos não se contentariam com chegar à Hispânia e, em 429,
atravessariam o Mediterrâneo.
As Queixas dos Pagãos
O que sobreviveria do império depois de Justiniano, a partir do século
VII, seria, efectivamente, uma sombra da grandeza de Roma. Ficaria o
cristianismo, que era também uma realidade histórica romana, com este
ónus terrível de ter destruído Roma e a sua grandeza? O sucesso político
de Roma durante séculos dever-se-ia ao favor dos deuses? E o que haveria
nesta nova religião que poderia minar os fundamentos do império? Roma
teria um imperador que adoptaria esta interpretação da decadência de
Roma e procuraria levar a cabo a sua inversão, com a reintrodução do
culto dos deuses pagãos. Por alguma razão ficaria conhecido pela tradição
cristã como o Apóstata. Depois de Juliano, a nova vaga de historiadores
de Roma iniciada por Maquiavel no início do século XVI, e que contaria
com nomes tão distintos como Montesquieu e Edward Gibbon,
ressuscitaria esta acusação – a de que o cristianismo destruíra as fontes
anímicas do sucesso de Roma. De resto, a obra monumental de Gibbon, na
esteira de Maquiavel e de Montesquieu, era uma sentença condenatória da
interpretação que Santo Agostinho faria dos ominosos acontecimentos e
que quero tratar neste capítulo.
Roma julgava-se protegida pelos seus deuses. Se agora caía face à
humilhação infligida por bárbaros que tinham descido das florestas da
Germânia até às portas da civilização, foi por uma inclinação
compreensível à luz das antigas crenças que os Romanos concluíram que
tinham sido abandonados pelos deuses. Mas porque é que os deuses
decidiram abandonar Roma depois de mais de mil anos de protecção
indefectível? Porque os deuses tinham sido expulsos da cidade. Tinham
sido expulsos da cidade para dar lugar a um novo deus, trazido do Oriente,
de uma das províncias dominadas pelo poder militar romano. Foi assim
que nasceu a tese de que a queda do Império Romano se deveu à
introdução do cristianismo.
Mas houve um romano que, logo após o saque de Roma e os protestos
pagãos que ela suscitaria, ousaria tomar nas suas mãos a defesa do
cristianismo diante dessas acusações. Foi Agostinho de Hipona, conhecido
na história da Igreja Católica como Santo Agostinho e uma das suas
principais figuras no final destes primeiros dois mil anos, quem procedeu
à mais eloquente defesa do cristianismo contra os pagãos. Ora, essa defesa
forçou Agostinho a examinar as causas anímicas do sucesso político e
imperial, e com isso a ponderar os fundamentos da geopolítica do império.
Agostinho foi romano antes de ser cristão. Nasceu cidadão romano nos
territórios do Norte de África, mais exactamente onde agora está situada a
Argélia moderna. Até bem dentro da sua idade madura não aderiu ao
cristianismo, nessa altura uma religião já preponderante, ainda que não
totalmente hegemónica, em todo o império. Tinha uma mãe cristã devota,
a quem a Igreja também iria reservar um lugar na comunidade dos santos,
e um pai pagão. E só se converteria, baptizado por Santo Ambrósio,
quando estivesse a viver na Península Itálica, primeiro em Roma e depois
em Milão, onde Ambrósio era bispo. E não sem antes ter experimentado
as filosofias e os misticismos da época, com destaque para o também
oriental maniqueísmo.
Agostinho corporizou o grande facto geopolítico do Império Romano
pós-Constantino: Roma tornara-se simultaneamente a capital de um
império secular e a sede de uma religião universal. Com a inauguração do
cristianismo no mundo, e, seis séculos depois, a irrupção do islamismo, as
novas religiões passaram a ser um factor geopolítico de primeira ordem na
Europa. Não apenas por serem portadoras de um ardor evangélico sem
precedentes. Era o ardor historicamente novo de trazer a boa nova ao
mundo, e de assimilar como dever de primeira ordem converter todos os
seres humanos à palavra revelada de Deus. Mas eram também factores
geopolíticos primaciais igualmente por serem portadoras de uma moral em
muitos aspectos nova e configuradora de uma política diferente.
Vimos que o encontro com o Outro no índio americano é
incompreensível sem percebermos o cristianismo, os seus fundamentos,
propósitos e tensões internas. E muitos outros exemplos poderiam ser
invocados. É por isso que a confrontação da inauguração do cristianismo
com a sede política do mundo europeu de então é tão luminosa. E
Agostinho foi a sua mais brilhante testemunha.
Agostinho foi um escritor prolífico como poucos. Deixou dezenas de
obras, e no seu conjunto foi talvez o autor cristão mais influente de toda a
história do cristianismo, a par de S. Paulo, que deixou menos de uma
quinzena de epístolas dirigidas a algumas comunidades cristãs recém-
fundadas, e espalhadas pela bacia do Mediterrâneo Oriental, poucas
décadas depois da pregação de Jesus Cristo na Palestina. Quando Roma
foi saqueada em 410 e lhe chegaram as críticas dos pagãos, Agostinho fez
o que fazia como ninguém: lançou-se à escrita de uma obra imortal.
Escreveria durante anos, enquanto escrevia outros livros e sermões, ao
mesmo tempo que exercia as suas funções pastorais como bispo de
Hipona. Daí resultaram cerca de 300 mil palavras, todas juntas intituladas
Da Cidade de Deus contra os Pagãos.
O Cristianismo ou a Geopolítica do Amor
Que Jesus tenha sido o Filho de Deus que pregou a compaixão e o amor
seria determinante na atitude adoptada por Bartolomeu de las Casas e
pelos seus aliados na questão dos índios. A religião da compaixão inserira
uma forma de relacionamento humano com os mais fracos e os mais
vulneráveis, que, não obstante todas as intromissões políticas, sociais e
das paixões humanas, deixara na consciência europeia uma inquietação
que não era facilmente silenciada. Se Jesus se humilhara voluntariamente,
como é que a consciência europeia podia deixar imperturbada a soberba, a
ganância, a crueldade dos marinheiros e dos colonizadores no seu
relacionamento com gente indefesa e inocente? O cristianismo foi
decisivo para alterar radicalmente a atitude diante dos mais fracos e dos
vencidos – uma atitude que vinha de longe no tempo, de todos os lugares e
civilizações, directamente das profundezas das paixões humanas da
vontade de poder, do desejo de domínio, da desumanização do outro na
sua diferença.
Porém, nos primeiros séculos romanos após a fundação do cristianismo,
a religião da compaixão não aparecia como uma elevação nas
possibilidades humanas, mas antes como uma sua degradação.
Estupefactos, Judeus e Romanos viam os cristãos adorarem um homem
que morrera a mais horrível das mortes, à vista de todos, na cruz como um
escravo revoltoso. Tivera a morte do membro mais vil da sociedade em
que viviam. Fazer desse homem um deus era para Judeus e Romanos,
ainda que por razões diferentes, uma obscenidade e uma blasfémia. Nos
primeiros tempos, até os cristãos se mostravam reticentes em exibir a cruz
como o topos da Paixão, recusando-se a ilustrar visualmente a
crucificação. Só a partir do século V, quando já o Império Romano era
cristão, depois de a crucificação ter sido proibida por Constantino como
forma de punição, é que a representação artística da cruz passou a ser
comummente aceite.149
Os Romanos, pelo contrário, não se tinham tornado no povo mais
poderoso do mundo conhecido escutando pregações de humildade,
compaixão pelos fracos e abnegação. Roma, julgavam os Romanos, fora
construída pela grandeza de alma, pela coragem no campo de batalha, pelo
desejo de vitória. Um florentino grande admirador dos Romanos,
escrevendo no início do século XVI quando Roma já não era mais do que
uma distante memória, corporizada nas ruínas que salpicavam o
continente, e o cristianismo estava no auge da sua hegemonia e da unidade
que em breve ia perder, expôs esse contraste de forma admirável e
subversiva. De facto, Maquiavel deixaria uma formulação tão bem-
sucedida desta tensão interna romana com o aparecimento da nova religião
que seria recorrentemente glosada até ao século XX.
Tudo começou pela procura de Maquiavel de uma resposta a um
enigma: porque é que nos tempos antigos os povos amavam mais a
«liberdade» do que na sua própria época? Liberdade significava aqui
sobretudo apego ao regime popular ou republicano. O contrário de
liberdade neste contexto seria viver sob uma forma política não-
republicana. Para Maquiavel, o que desvitalizara o amor à liberdade
republicana fora o cristianismo, que educara os homens a depreciarem as
«honras do mundo». Para os pagãos da Antiguidade, as «honras do
mundo» eram o «mais elevado bem», e por isso eram mais «ferozes» e
«vigorosos» nos seus actos. Para o cristianismo, o mais elevado bem era a
«humildade, a abjecção e o desprezo pelas coisas humanas». De um lado,
a «humildade» nos sacrifícios religiosos; do outro, a «magnificência». Os
sacrifícios aos deuses pagãos eram feitos com «ferocidade» e com «muito
sangue», envolvendo a matança de muitos animais. Este espectáculo era
um acto educativo. Tornava os homens «ferozes» e «vigorosos». Os
homens consagrados pela religião antiga eram precisamente aqueles que
se tinham coberto de «honras do mundo», como os chefes militares ou os
governantes. Já o cristianismo consagrava e elegia como objecto de
admiração homens «humildes e contemplativos». A educação cristã
tornava o homem um estranho no mundo sublunar e convidava-o ao
«sofrimento». A dos pagãos apostava tudo na «grandeza de alma e na
força do corpo». Apostava tudo naquilo que fazia os homens fortes. A
conclusão de Maquiavel era devastadora para o cristianismo. Tornara o
mundo «fraco» e entregara-o como «presa fácil aos criminosos». Estes
tinham a via aberta para dominar, porque tinham pela frente seres
indefesos e mais dispostos a humildemente sofrer as injúrias dos maus do
que a defender-se deles. Afinal de contas, essa era a recomendação para
chegar ao paraíso. O cristianismo tornara o «mundo efeminado» e o «céu
desarmado».150
Nas décadas seguintes até ao século XIX não haveria voz fervorosa do
republicanismo que não acabasse por repetir o essencial da tese de
Maquiavel e alimentar esta polémica com a novidade política trazida pelo
cristianismo. As costas largas do cristianismo ainda seriam
suficientemente largas para transportar outras queixas, que seriam
apresentadas em nome do republicanismo viril e patriótico. Mas no caso
desta queixa de Maquiavel – porque era mesmo de uma queixa ou de uma
reclamação que se tratava – vemos que o florentino reflectia muito
fidedignamente as queixas dos pagãos romanos do século V da nossa era.
Agostinho registou-as e procurou refutá-las na sua Cidade de Deus contra
os Pagãos.
Das sucessivas acusações da efeminação do mundo como o principal
efeito da inauguração do cristianismo, vemos que muitos dos acusadores
não enxergaram um ponto essencial na história da geopolítica europeia
que aqui quero traçar. Não enxergaram que seria essa religião de escravos,
como alguns dos seus detractores lhe chamaram, que proporcionaria a
consciência moral ajustada ao encontro com o Outro que vimos em
Bartolomeu de Las Casas. O cristianismo não veio acabar com a
escravatura. Até vimos como coexistiu com ela durante séculos, ainda que
com esforços permanentes para amenizar o sofrimento e a humilhação do
escravo. Mas na geopolítica europeia é difícil vislumbrar como essa
consciência do Outro enquanto semelhante podia desenvolver-se por
outras fontes não-cristãs e desabrochar no século XVI em Las Casas.
Além daquela queixa pagã, uma outra reclamação geopolítica foi
apresentada ao longo dos séculos contra o cristianismo. A unidade do
cosmos como criação de Deus e a consequente unidade do género
humano, trazidas pelo cristianismo, por elas mesmas não tinham de criar
problemas políticos específicos. Mas quando eram combinadas com a
promessa da vida eterna no mundo celeste, que seria a única
verdadeiramente feliz, o caso mudava de figura. Na medida em que a
política vivida nas comunidades políticas concretas solicitava um conjunto
de lealdades, deveres, responsabilidades e sacrifícios, o cristianismo
cindia a unidade da política assim que descrevia a vida terrestre como uma
peregrinação, isto é, como um estar de passagem. Os seres humanos
estavam temporalmente de passagem para a eternidade, o que sugeria
imediatamente uma hierarquia rígida entre a vida sublunar e a vida celeste.
No estoicismo tardio aparecia já a disjunção entre a pátria
política/terrestre e o cosmos. Como pessoa, Marco Aurélio, imperador
romano (161-180) e um dos grandes intérpretes da fase mais tardia do
estoicismo, pertencia a dois domínios distintos: «como Antonino, tenho
Roma como pátria; como homem, o mundo».151 Inaugurava-se o conflito
entre o cosmopolitismo do homem como ser natural, racional, espiritual,
cujo horizonte se abria muito além das fronteiras políticas da comunidade
onde vivia, sempre mais ou menos moralmente arbitrárias; e o patriotismo
como atitude indispensável do cidadão leal e responsável pela cidade. No
estoicismo de Marco Aurélio, essa tensão só seria vivida por um grupo
muito restrito de pessoas, os sábios estoicos. Além disso, no estoicismo a
tensão nunca seria insuportável, até porque a ordem cósmica a que o sábio
estoico pertencia não era ainda uma cidade, ou uma comunidade.
Cícero escreveu menos de duzentos anos antes de Marco Aurélio. Por
várias razões, que teremos de ignorar neste livro, Cícero sentiu-se forçado
a reapresentar, criticar, mas também a reformular, algumas das teses do
estoicismo anterior, ainda integralmente grego. Numa dessas
reformulações, Cícero abordou a tensão que aqui discutimos. A ideia
essencial do cosmopolitismo, isto é, do homem como um cidadão do
cosmos – um kosmopolitês –, é, como quase todas as outras ideias
fundamentais, grega na sua origem. Não custa seguir a tradição e atribuía-
la Diógenes, o Cínico, contemporâneo de Platão, de Aristóteles e de
Alexandre, o Grande. Também ele propôs que o ser humano, como ser
social e racional, conhecia círculos concêntricos de sociabilidade que
decorriam das suas inclinações naturais. Começando pela família e pelos
amigos mais próximos, Cícero avançava para a pátria política, a
comunidade humana alargada de pertença, que constituía de resto o
objecto principal dos conselhos destinados ao seu filho Marco com vista a
educá-lo para uma vida política regrada pela justiça e pela grandeza de
alma. Contudo, Cícero alargou a sua meditação para propor a existência
de uma societas generis humani, que transcendia as fronteiras políticas,
abrangendo todo o género humano. Cada pessoa humana enquanto pessoa
humana era um membro dessa comunidade (societas). Por analogia com a
comunidade política particular, a societas humana era também regida por
um «laço de parceria» que fundava uma «lei natural» (lex naturæ),
impondo a todos determinados deveres que, apesar de não tão detalhados,
não podiam ser revogados pelas leis, interesses e conveniências das
comunidades humanas anteriores, como a pátria política ou a família.152 A
lei natural aparecia em Cícero como uma fonte normativa que contrastava
com a lei civil, e até com o direito consuetudinário, vinculava todos os
povos do mundo (ius gentium) e definia padrões mínimos de conduta para
todos os seres humanos. Mas a existência da lei natural decorria da
existência de duas sociedades ou comunidades humanas: uma, local ou
particular – a pátria política; a outra, universal. Por aqui se vê que Cícero
concebeu a tensão entre o cosmopolitismo e o patriotismo em termos
muito mais políticos do que sucederia com Marco Aurélio. Todavia,
Cícero não levou suficientemente a sério a sua analogia política. E quando
estivessem as duas sociedades em contradição? O que deveria aquela
pessoa que pertencia a ambas fazer? Este problema não se colocava com
uma acuidade insuportável em Cícero. Mas o cristianismo veio radicalizar
o problema.
O cristianismo trouxe consigo o universalismo mais extremo, se é que a
expressão é lícita. Todos os seres humanos eram filhos do mesmo Deus e a
salvação era oferecida aos seres humanos, a todos os seres humanos. Não
que todos fossem salvos. Nada disso. Mas aqueles que seriam salvos não o
deveriam a factos que neste mundo garantiam superioridade e redenção
sociais: riquezas possuídas, local de nascimento ou de residência, etnia ou
tribo a que se pertencesse, sexo, inteligência, beleza, bonomia. Todos
poderiam ser salvos na sua qualidade de filhos de Deus e nada mais.
Ninguém seria salvo por ser romano, por contraponto a bárbaro.
Tampouco se seria salvo por se ser judeu, membro da nação escolhida por
Deus para exprimir a sua glória, como era, de facto, a inclinação do
nacionalismo monoteísta judaico.
Foi com a analogia política das duas cidades – a Cidade de Deus e a
Cidade Terrestre – que Agostinho resolveu esclarecer a nova e complexa
relação do cristianismo com a vida temporal, onde se incluía naturalmente
a vida política. Na realidade, a ideia geral das duas cidades era anterior a
Agostinho. Cícero intuiu o dualismo, mas não o polarizou no reino dos
céus. No diálogo De Legibus, a personagem Ático, um amigo real de
Cícero, muito seduzido pelo epicurismo, interpelou Marco (o próprio
Cícero) a propósito de este ter dito que teria duas pátrias: Arpinum, a terra
(municipium) donde era originário, e Roma, a grande pátria. No diálogo,
Marco confirmou que tinha duas pátrias e duas cidadanias, ainda que que
a de Roma fosse «maior» e abrangesse a primeira.153
Encontramos a ideia das duas cidades no grande apóstolo do
cristianismo, S. Paulo. Na Carta aos Efésios, Paulo pregava a dissolução
das distinções essenciais entre judeus e gentios, estando todos os homens
chamados à mesma vocação. E concluía dizendo aos membros destas
comunidades de cristãos formadas no mundo helenizado «já não sois
estrangeiros, nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros
da casa de Deus, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas,
tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus».154 Paulo encontrava na
analogia política a melhor descrição da nova irmandade fundada por Jesus
neste mundo e, sobretudo, no outro. Aos Filipenses, Paulo escreveu: «É
que, para nós, a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde
certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.»155 A verdadeira
pátria estava no outro mundo. Era a pátria celestial por contraponto à
falsa, ou a ilusória, pátria terrestre. Além de Paulo, Agostinho encontrou
uma outra fonte de inspiração num obscuro teólogo donatista, chamado
Ticómio. Apesar de Agostinho repudiar por inteiro e até às últimas
consequências a heresia donatista, tinha uma relação de profundo respeito
por Ticómio.
Não cabe neste livro o exame em profundidade das fontes de Agostinho,
nem sequer a sua teologia política. Tem de bastar a seguinte consideração.
As duas cidades relacionavam-se segundo uma ordem hierárquica, o que
tornava os «valores» da cidade inferior inferiores aos da cidade superior.
Neste caso, registava-se uma acentuada desvalorização dos valores
políticos, tão valorizados pelos pagãos romanos: patriotismo, busca da
glória política, gratificação do desejo de governar/dominar, combater os
inimigos da pátria – tudo isto era radicalmente relativizado, quando não
condenado, sub specie æternitatis. O simples alargamento do horizonte da
existência social do homem para além da cidade, ou da pátria terrestre,
não tem necessariamente de desvalorizar os valores da política. Mas, no
caso do alargamento cristão desse horizonte, a desvalorização seria
inevitável quando a nova interpretação da vida humana era comparada
com a total devoção existencial à política que marcava o paganismo
romano. Também é importante salientar que o cristianismo, mesmo no
tempo de Agostinho, não era homogéneo na redefinição das atitudes face à
política. Agostinho não fazia parte daquele grupo de cristãos que
desvalorizaram por completo a política, por esta ser vã e constituir uma
estrutura insuperável de pecado. Por seu lado, Agostinho não via a política
como um produto do pecado original, como apesar de tudo a propriedade
privada o era. O domínio de homem a homem, sim, era produto do pecado
original, não a política enquanto tal. Daí que houvesse tarefas políticas
valiosas que um cristão não podia declinar. Porém, todas se situavam num
grau inferior de valor e deviam ser consideravelmente relativizadas.
O cristianismo trouxera uma promessa universal de salvação. Esta vinha
da fé e era concedida por um Deus Pai, Criador de todas as coisas e, como
se via, Redentor. No caminho da salvação era a fé de cada pessoa que
contaria na adesão a um exemplo deixado por Jesus, e gravado em
palavras, e a uma doutrina proclamada e preservada pela Igreja que Jesus
fundara. Deixava de contar a nação de origem, o sexo que se tinha, o
estatuto social que se ocupava. A Igreja recebia no seu seio todos os que
viessem movidos pela fé. Era um lugar de reunião, tal como o seu nome
grego ekklesia indicava. Por mais perspectivas de análise que se
adoptasse, a Igreja era uma nova comunidade que se abria a todos e que
ocupava um lugar central na comunidade política pré-existente. É bom de
ver que essa comunidade era sagrada. A comunidade política não o era.
Não quer isto dizer que o cristão não estivesse sob o dever grave de
cumprir a ordem da legalidade política. Mas também queria dizer que esse
dever estava condicionado ao cumprimento das obrigações para com Deus
e para com a sua noiva, a Igreja. Como a Igreja formava uma comunidade
espiritual, a que as pessoas pertenciam pelo veículo da fé, era-lhe
permitido libertar-se das restrições materiais que os outros tipos de
comunidade impunham. «A verdadeira circuncisão», anunciava S. Paulo,
não era aquela «que se manifesta exteriormente na carne.»156 Sendo uma
comunidade espiritual, a Igreja desvalorizava os laços humanos criados ou
condicionados pela geografia e pela política. Dir-se-ia que, sendo uma
comunidade espiritual, a Igreja desvalorizava a geopolítica da vida
humana.
Era, de facto, um problema geopolítico novo. Quanto mais perfeita fosse
a fé do cristão, mais diluiria o amor por este mundo e, «em primeiro lugar,
o amor pela cidade». O cristão era de todas as pátrias e em todas se sentia
estrangeiro, como avisava Tertuliano, um dos grandes Padres da Igreja
nos séculos II-III.157 A Igreja e o cristianismo não vinham abolir a política,
nem as circunstâncias concretas e diferenciadoras de cada um. Não vinha
pregar a abolição do governo político, das fronteiras políticas, da
hierarquia social. Limitava-se a desvalorizá-los e inevitavelmente a
desvitalizá-los ao abrir o horizonte da aspiração humana – ao apontar para
o horizonte da eternidade. Contudo, com a sua pretensão de universalidade
e com a sua exigência de lealdade dirigida a cada pessoa, formando-se
como uma sociedade no seio da sociedade política, e admitindo-se a
possibilidade de um conflito de lealdades entre as duas sociedades, era
inevitável que a Igreja se convertesse num agente político próprio.
O cristianismo também acabaria por formar a sua geopolítica própria. E
tal tornou-se perfeitamente evidente quando o cristianismo deixou de ser
uma religião perseguida pelo Império Romano. A relação com o Império
Romano, ou com qualquer outro regime político, passou a ser uma questão
decisiva para o cristianismo. Até chegarem Eusébio de Cesareia e a
conversão de Constantino havia muita ambivalência entre os cristãos
quanto à bondade ou à malignidade do Império Romano. Eusébio de
Cesareia cortou todas as amarras, apenas para criar outras novas. Já não
era apenas a função histórica do domínio político romano na economia da
salvação, mas a celebração de Constantino como a imagem do Logos, e de
Roma como a imagem do reino de Deus. Porquanto Constantino era a
unificação imperial em combinação com a unificação religiosa.
Constantino tornava-se representante da soberania política de Deus e a
Igreja representava a Sua acção redentora.158
Eusébio de Cesareia fora discípulo de Orígenes, o homem que, mais
claramente do que os seus antecessores, interpretou o papel histórico de
Roma como a facilitação da pregação da palavra divina. Orígenes
procurou aproximações e compatibilidades. Ao fazê-lo, não exprimiu
nenhuma opinião consensual. Orígenes apontava para o facto de Jesus ter
nascido súbdito do primeiro imperador romano, unificador da
fragmentação do mundo político, obstáculo evidente à actividade da
pregação. Mas era perfeitamente natural que muitos cristãos tivessem a
opinião contrária, vendo em Roma uma sede satânica. A memória das
terríveis perseguições ficara gravada. Mas, à medida que as perseguições
terminavam e eram substituídas pelo favor e pelo privilégio aos cristãos, a
má opinião ia-se esbatendo.
A alternativa a renunciar à cidade política era cristianizá-la. Parecia que
essa podia ser uma solução definitiva. Mas o tempo encarregar-se-ia,
como Agostinho bem o sabia, de mostrar que apenas se substituíram uns
problemas por outros. Foi esse o passo dado por Constantino. Seria
sempre problemático quando o papel da Igreja fosse tornar-se a
consciência ético-política do Império Romano. Mas dessa experiência se
tornaria óbvio que a tensão não era específica do Império Romano. Era
uma tensão que permaneceria sempre entre as exigências e a vocação da
Igreja, por um lado, e as responsabilidades e tarefas da cidade política – de
qualquer cidade política –, por outro. A Igreja queria-se autónoma do
Estado político, mas via-se dotada de um poder espiritual, por natureza
superior ao poder político. O que seria da Igreja, cujo reino não era deste
mundo, quando tinha de assumir responsabilidades políticas? Em
contrapartida, o Estado político assumia a responsabilidade pela
articulação total da sociedade, onde a Igreja agia de todos os modos que a
participação numa sociedade sempre implica, e cedo ou tarde acabava por
revestir o papel ou de protector da Igreja contra os seus inimigos, ou de
seu director, usando-a segundo a sua própria conveniência.
Para muitos cristãos, a cristianização do Império Romano era obra
directa e inequívoca da Providência. A sociedade universal dos cristãos
podia finalmente ser construída com o trampolim do poder político de
Roma, que unificara e pacificara o mundo removendo assim obstáculos
incómodos no caminho para a conversão das almas. E, quem sabe, o poder
de Roma podia ser mobilizado para proteger a Igreja dos seus inimigos.
Não por acaso, nas Igrejas Ortodoxas, Constantino teve durante séculos o
título de Isapostolos – «Igual aos Apóstolos».159 O cristão podia enfim
amar Roma, como os patriotas pagãos em tempos a amaram? Podia, mas
não como os pagãos. Podia amar Roma por ser cristã, não por ser romana.
Mas eis que Roma caiu. A perplexidade não podia ser maior. Coube ao
maior dos cristãos do seu tempo aliviar a perplexidade.
Com a cristianização de Roma houve um grande entusiasmo em torno
da nova missão do império: levar a verdadeira religião aos quatro cantos
do mundo. O domínio político de Roma deslizara para coincidir com a
universalidade geográfica da Igreja. A tentação foi grande para se juntar o
destino da cidade política de Roma à tarefa colocada à Igreja de cuidar da
salvação das almas. Daqui era apenas um pequeno passo para sacralizar o
Império Romano como instrumento divino da evangelização do mundo.
Eusébio de Cesareia foi o mais famoso desses entusiastas. Mas agora que
Roma mostrava as suas terríveis vulnerabilidades perante bandos de
bárbaros, a perplexidade era grande. Roma não tinha qualquer missão
divina. Caso contrário, Deus não a teria deixado cair. Ou então, blasfémia
das blasfémias, o Deus que substituíra os deuses afinal não o era.
Agostinho teve de desarmar ambos os lados, tanto os dependentes da tese
de que Roma era o agente político imprescindível da redenção do mundo
como os que viam na queda da Roma cristianizada a demonstração que o
Deus dos cristãos era um ídolo de barro incapaz de proteger a sua capital.
Não havia dúvidas de que a Roma política fora determinante na
extirpação do paganismo e na expansão da acção da Igreja, o que
certamente servia os desígnios de Deus. Além disso, a conversão do
império, que outrora perseguira ferozmente o cristianismo, ocorrera com
uma velocidade impressionante. Não haveria também aí uma
demonstração da vontade de Deus no uso de Roma como uma boa agência
histórica? Agostinho concederia muitos destes pontos. Porém, Agostinho,
sobretudo depois do saque de Roma de 410, acabaria por desvalorizar a
conversão cristã de Roma. Não alterara a natureza da cidade, que
permaneceria uma Babilónia, nem modificara a relação da pessoa cristã
com a vida política.
Agostinho percorreu as acusações dos pagãos uma por uma. Em síntese,
podemos dizer que apontou as contradições de Roma como cidade e como
ideia, descreveu as suas insuficiências e recordou que era uma obra
humana que não pertencia à ordem da eternidade. Ao mesmo tempo,
Agostinho fez questão de corrigir a caricatura do cristianismo que emergia
das acusações pagãs, assim como de introduzir inovações que
aperfeiçoariam a doutrina cristã à luz dos desafios geopolíticos de então,
entre as quais podemos assinalar as seguintes. À acusação pagã de que o
bom cristão – note-se que a acusação contra o cristianismo não era, como
seria mais tarde, a da hipocrisia cristã, ou que os cristãos não viviam à
altura do que pregavam – seria sempre um mau cidadão, Agostinho
respondia que o bom cristão era pura e simplesmente o melhor dos
cidadãos. Se os pagãos apontavam para um certo cosmopolitismo cristão
que negava relevância às particularidades de cada comunidade política, às
particularidades que precisamente conferiam aos olhos dos seus cidadãos
um valor especial e que proporcionava a base concreta da coesão cívica, já
Agostinho confirmava os deveres de cidadania e as responsabilidades de
governação que cabiam a todos os cristãos. Mas não faltavam dificuldades
quando o amor cristão mais sublime e autêntico era pelo Deus que
aguardava cada um na vida depois da morte e abolia a distinção entre
amigo e inimigo, a qual distinção fora sempre configuradora do
entendimento tradicional da política e da coesão cívica.160
O cristão não era um pacifista radical. A guerra e o conflito humano
eram, com efeito, consequências do pecado original. Mas a resposta às
manifestações do pecado não era sempre linear. É certo que grandes
autoridades do primeiro cristianismo, como Tertuliano, Orígenes e
Lactâncio, apelaram a algo que podemos classificar como pacifismo
radical. Proibia-se o uso das armas pelo cristão e vedava-se-lhe a vida
castrense. Em geral, qualquer uso da violência era pecaminoso. O
Salvador ensinara que se dava a outra face.161 São Paulo objectara à
resposta clássica de que se pode, e talvez deva, responder ao mal com o
mal, ou à violência com a violência.162 E reservara a vingança e o castigo
por males sofridos a Deus. Mais, Jesus pregara o amor ao inimigo e
exortara a que se rezasse pelos algozes, o que ultrapassava todas as
medidas e todas as expectativas.163
Evidentemente, Agostinho não negava a doutrina estabelecida. Mas
respondia habilidosamente, juntando-se a outros Padres importantes como
Atanásio e Ambrósio. O que vinha nos Evangelhos era essencialmente a
proibição do desejo de vingança e do prazer com o sofrimento alheio. Nos
Evangelhos não se amputava o dever inequívoco de restringir os efeitos e
o alcance do pecado. Nessa medida, Agostinho salvaguardava a acção
coerciva do Estado político quando este agia em prol da punição e
prevenção do crime. Salvaguardava até a possibilidade de um certo tipo de
guerra, a guerra justa. Para Agostinho, a perfeição do cristianismo residia
não em proibições absurdas, mas em insuflar o amor ao próximo em todos
os actos, mesmo aqueles que para restringir o pecado mobilizavam a
violência. A acção coerciva devia ser levada a cabo com a motivação, ou
com a intenção, correcta – proteger os inocentes e evitar o mau uso da
liberdade pelos prevaricadores, com amor a Deus e ao próximo.
Daqui vinha a sequência para a admissão da guerra justa. Em primeiro
lugar, Agostinho garantia o lugar aos cristãos nas fileiras das forças
armadas. Não era a vida castrense como serviço público que impediria a
possibilidade de salvação da alma. Agostinho refreava as expectativas
mundanas excessivas da era cristã da Humanidade. Continuaria a haver
guerras e inimigos da ordem. Os cristãos fariam bem em compreender a
natureza da vida política e os efeitos do pecado original nela. As guerras
perdurariam e teriam de ser combatidas. Agora, o sábio só combateria
guerras justas. Se fosse injusta, não podia ser empreendida.164 Tal como
sucedia no uso da coerção ao abrigo da legalidade no seio do Estado
político para punir criminosos, o uso da violência nas relações externas
também precisava de verificar determinados requisitos, ou critérios, para
se poder considerar justo. Vimos que Ambrósio, Atanásio, mas também
Eusébio de Cesareia, já tinham, antes de Agostinho, legitimado a guerra
no quadro do cristianismo. Ambrósio não aceitava, porém, que a guerra
levada a cabo por um governante cristão fosse ipso facto justa. Daí ter
aparecido a exigência de condições de verificação da justiça da guerra,
que fossem tão independentes das crenças religiosas do governante quanto
possível.
Agostinho levou mais longe do que qualquer outro antes dele essa
metodologia. Depois de Agostinho, a doutrina cristã da guerra justa nunca
mais prescindiu de elencar critérios necessários, não opcionais, para a
certificação de uma guerra justa. Segundo Agostinho, a guerra tinha de
ser, em primeiro lugar, defensiva. Tinha de se inscrever na óptica da
legítima defesa para evitar males maiores. E aqui Agostinho incluía a
extinção do Estado na lista imaginária de males maiores a evitar por acção
defensiva. Era a «iniquidade da parte adversa que impõe ao sábio que
empreenda a guerra justa».165 Em segundo lugar, a guerra ofensiva só
podia ser justa se o seu fito fosse a obtenção de indemnizações e
compensações que tivessem sido rejeitadas pela outra parte após esta ter
infligido danos ou roubado propriedade. Em terceiro lugar, o direito de
declarar uma guerra justa cabia apenas ao governante legitimamente
constituído, não a sectores da sociedade, nem a sacerdotes. Em quarto
lugar, os soldados tinham o dever de lhe obedecer, concordassem ou não
com o seu julgamento. Objecções de consciência não valiam como
interposição. Em compensação, por esse dever de obediência, estavam
isentos de culpa de homicídio no campo de batalha, bem como no caso de
a guerra ser de justiça duvidosa. Essa responsabilidade estava por inteiro
associada ao direito que assistia ao governante legitimamente constituído.
As guerras justas com propósitos políticos e/ou religiosos travadas pelos
poderes supremos legítimos faziam do uso coercivo da força nada mais
censurável do que a execução da lei na cidade para punir as acções
maldosas.
Simultaneamente, Agostinho removia as expectativas excessivas que se
poderia alimentar quanto às possibilidades salvíficas das guerras justas. A
guerra era sempre uma miséria humana, apesar de empreendida de acordo
com um dever criado pela «iniquidade» alheia. Esse dever cumpria-se
com «dor na alma», caso contrário, o cristão caía numa «desgraça».
Finalmente, sendo a guerra justa um castigo, ou uma punição, podia dar-se
o caso de os inocentes sofrerem juntamente com os culpados, uma
linguagem bem mais realista do que a nossa contemporânea dos danos
colaterais. Um dos grandes riscos para a alma do cristão que a doutrina da
guerra justa não podia dilatar residia no facto de a acção punitiva tender a
deslizar para a vingança e a conquista. A coberto da justiça da punição,
muitas iniquidades seriam cometidas no calor da violência e no prazer
secreto de dominar o outro. A justiça da guerra, mesmo da guerra
declaradamente justa, era sempre uma justiça aproximada. O realismo de
Agostinho recomendou-lhe frequentes recordatórias deste jaez.
Bartolomeu de Las Casas, como notámos, não esqueceu a lição.
Vimos como um dos pontos fundamentais da defesa de Agostinho
consistia em recordar que Roma não era uma cidade eterna. Era uma obra
do sæculum, condenada a morrer como todas as coisas do sæculum. Roma
era como que uma Babilónia, e Babilónia fora como que uma Roma.166 Se
Roma caíra, tal se devia aos vícios de que Roma indubitavelmente
padecia. Os pagãos diziam que Roma caíra porque se convertera em
cidade, em império, cristão. Agostinho devolvia a acusação: Roma caíra
porque se tornara uma cidade pagã decadente. Isto é, uma cidade que já
nem sequer estava à altura das semivirtudes outrora vividas, sempre
elogiadas, mas já não praticadas. Essas semivirtudes pagãs – não virtudes
autênticas, mas imagens ou reflexos de algumas virtudes autênticas –
entretanto esquecidas e repudiadas, como a coragem, a boa-fé, o
patriotismo, a continência, tinham sido responsáveis pela grandeza de
Roma. Agora que se tinham sumido e sido trocadas por vícios pagãos,
prova mais cabal da decadência romana, Roma caíra.
Agostinho daria um enquadramento geopolítico às origens dessa
decadência para demonstrar a fragilidade da cidadania pagã, e assim
desviar com sabedoria retórica a atenção das vulnerabilidades da
cidadania cristã. Na realidade, esse enquadramento geopolítico era um
lugar-comum republicano de séculos, mas que agora podia ser usado com
um propósito polémico. Agostinho recordou a famosa controvérsia em
Roma sobre o destino a dar à arqui-rival Cartago na última das guerras
púnicas. De um lado, Catão, o Censor, inflexivelmente a favor da
destruição total de Cartago. Do outro, Cipião Africano, favorável à
clemência com o propósito de manter de pé o perigo que mantinha os
Romanos em sentido e, portanto, bons cidadãos. A coesão romana, no
entender de Cipião, dependia do «medo» e da ansiedade do perigo que
espreitasse perpetuamente. A cidadania disciplinada e venturosa dos
Romanos não advinha do amor à justiça, mas do medo.167
Como sabemos, Catão venceu e Cartago foi cruel e drasticamente
arrasada, deixando de constituir qualquer ameaça ao poder romano.
Assim, e seguindo o lugar-comum republicano, Agostinho concluía que na
destruição de Cartago estava a origem do declínio moral e político dos
Romanos. Para trás ficavam as virtudes cívicas da abnegação, da
austeridade, da boa-fé, da contenção. A remoção da tensão que a
existência de Cartago colocava em todos os nervos, todas as fibras morais,
todas as células cinzentas dos Romanos, amolecera-os sem remissão.
Agostinho podia compor este diagnóstico com o apoio de autoridades
republicanas pagãs indiscutíveis, como o filósofo Cícero e o historiador
Salústio. Os «bons romanos» que não se «assanhassem» contra ele,
portanto.168 Daqui às sangrentas guerras civis foi apenas um passo. E os
tais deuses que os pagãos adoravam não os protegeram das misérias
naquela altura. A libido dominandi – o «desejo de dominar» – podia agora
reinar sem freios dentro de fronteiras, pois já não havia inimigos externos
a temer. O império era fruto dessa libido dominandi, produto directo do
pecado original, e só podia ser mantido pelo terror e pela ansiedade. Não
eram os fundamentos mais salutares de uma cidadania, havia que
reconhecê-lo. E se fossem esses os fundamentos indispensáveis da
manutenção de um império exorbitante, então havia que tirar a conclusão
mais sábia e consequente. A humanidade não tinha forçosamente de viver
sob um império mastodôntico para ser feliz e, sobretudo, para prosseguir o
caminho para a redenção. Afinal de contas, «afastada a justiça, que são, na
verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões?»169, devolvia
Agostinho aos pagãos.
Em última análise, para o cristão concentrado na salvação da alma, e na
vontade de ser cidadão da Cidade de Deus, Roma era um fragmento da
Cidade Terrestre – precisamente aquela cujos cidadãos estavam unidos no
amor de si mesmos até ao desprezo de Deus, no amor do terrestre até ao
desprezo do celeste, no amor do corpo até ao desprezo do espírito, no
amor do diabo até ao desprezo do Pai.170 Se o contraponto místico à
experiência histórica de Roma era a Cidade de Deus, não seria preciso um
grande esforço de associação para enfraquecer a lealdade cívica e militar
do cristão para com a cidade. Se a recomendação era «suportar com
paciência» as tentações, provações e fardos que a vida cívica impunha,
então podia-se perdoar os pagãos por verem com amargura desaparecer o
ardor patriótico que fizera a força e a grandeza de Roma no passado.
Comparar a finalidade celeste e eterna com uma finalidade terrestre e
meramente temporal, logo finita por mais inspiradora e gloriosa que
pudesse ser, era comparar o zero com o infinito. Para o cristão, Roma era
instrumental num desígnio incomensuravelmente maior. Não era um fim
em si mesmo.
Deus falava aos homens com as palavras que foram reveladas. Mas
falava também com actos. E com uma sucessão de actos a que podíamos
chamar uma História Providencial. Todos os momentos eram efeito da
intervenção infinitamente complexa de Deus. Não restavam dúvidas de
que havia um sentido querido por Deus na História da Humanidade. O seu
desígnio providencial era indesmentível. Outra coisa bem diferente era
discernir o sentido de cada acontecimento particular, como a queda de
Roma, por exemplo, na economia da salvação. Através da Bíblia, tanto do
Novo como do Antigo Testamento, os profetas inspirados e o próprio
Filho de Deus tinham interpretado certos acontecimentos. Mas para tudo o
que aconteceu depois precisávamos de meditar longamente de modo a
compreender o que por vezes parecia ser incompreensível, irracional e
absurdo. E mesmo uma longa meditação podia ser insuficiente para a
razão humana. Na verdade, depois da Encarnação, e enquanto não
chegava o Fim da História, a Humanidade navegava na pura interrogação,
sem grandes pistas quanto ao sentido dos marcos do tempo. Essa incerteza
era compensada pela certeza de que esse sentido providencial existia, pela
certeza do seu conteúdo e da sua orientação. Mas não havia profecias para
este tempo e ninguém podia dizer o que a queda de Roma traria consigo.
Para tentar compreender o sentido da queda de Roma convinha começar
por estudar com afinco as épocas históricas anteriores, tal como eram
explicadas na «história sagrada» contida na Bíblia. Convinha sobretudo
perceber isto: os Romanos no ano 410 viviam na época histórica
inaugurada pela Encarnação, pela vinda de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Com Ele veio a promessa da salvação de uma humanidade degenerada e
manchada pelo pecado original do primeiro Adão. Aos homens já fora,
portanto, revelado o essencial da mensagem de Deus, embora a natureza
decaída fosse ainda o quadro geral da conduta humana. O mundo histórico
era o mundo do pecado. Deus intervinha segundo um plano providencial,
onde as consequências desse pecado incorrigível, e invencível sem um
dom gratuito de Deus – a graça –, faziam parte e ajustavam-se ao sentido
de consumação do tempo por Ele criado. A história do sæculum fora
marcada pelas consequências da primeira desobediência, e pela
danificação da natureza humana boa que Deus criara. Chegaria à sua
consumação com a segunda vinda de Jesus, desta feita para reinar sobre os
justos. A redenção ocorreria com a última fase da existência humana, já
não no sæculum, na corrupção, degeneração e morte, mas na vida eterna
em que os justos, os escolhidos, gozariam da plena beatitude repousando o
seu coração em Deus. À luz da eternidade, o tempo histórico – o sæculum
onde cada pessoa, onde todos os milhões e milhões de pessoas, tinham
vivido, respirado, comido, e praticado as acções normais de uma vida
finita – era essencialmente temporário, provisório. Cada um de nós
passava por aqui, pelo sæculum, como um peregrino.
O fim dos tempos era o Fim da História, selado pela Encarnação. Era o
Fim da História num sentido literal, na medida em que deixaria de haver a
disjunção fundamental entre o sæculum e a eternidade. O mundo do tempo
morreria para dar lugar à pura existência eterna. Mas era também o Fim da
História num sentido já conhecido pelo leitor deste livro: chegaria um
certo momento depois do qual já não haveria nada de fundamentalmente
novo a esperar no sæculum. No fundo, um Fim da História que encerrava
a História da Humanidade. O Fim da História chegava como a morte
redentora à pessoa que nascera, crescera e envelhecera. Naquele início do
século V tornara-se quase um lugar-comum invocar um mundo
envelhecido – senectus mundi – do qual Roma era a capital e o centro.171
Pudera! Na cronologia lendária, mas que era oficial no império, quando
Alarico e os Visigodos saquearam Roma, a cidade fazia 1169 anos.
Roma, porém, não era velha. Era realmente uma herdeira de outros
fautores da geopolítica europeia mais velhos do que ela, e relativamente a
quem ela sempre se sentiu inferior.
140
Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman
Empire, J. B. Bury (ed.) com introdução de W. E. H. Lecky, 12 vols., Nova
Iorque, Fred de Fau and Co., 1906, Vol. I, 1.1.
141
Gibbon, Vol. I, 1.1.
142
Gibbon, Vol. II, 26.2.
143
Citado em Gibbon, Vol. II, 26.4.
144
James J. Sheridan, «The Altar of Victory – Paganism’s Last Battle»,
L’antiquité classique, vol. 35, n.º 1, 1966, pp. 186-206.
145
Ambrósio, Ep. XVIII.
146
Peter Heather, Empires and Barbarians. The Fall of Rome and the Birth
of Europe, Oxford, Oxford University Press, 2010, edição epub, pp. 442-55.
147
Glenn R. Storey, «The Population of Ancient Rome», Antiquity, vol. 71,
1997, pp. 966-78.
148
Gibbon, Vol. II, 31.3.4
149
Tom Holland, Dominion. The Making of the Western Mind, Londres,
Little, Brown, 2019, ediçao epub, pp. 20-21.
150
Maquiavel, Discorsi, II.2
151
Marco Aurélio, Meditações, VI.44.
152
Cícero, De Officiis, III.69.
153
Cícero, De Legibus, II.5.
154
Efésios, 2:19-20.
155
Filipenses, 3:20.
156
Romanos, 2:28.
157
Étienne Gilson, Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, Paris, Vrin,
1952, edição epub, pp. 33-34.
158
R. A. Markus, Sæculum: History and Society in the Theology of St.
Augustine, Cambridge, Cambridge University Press, 1970, p. 50.
159
Charles Matson Odahl, Constantine and the Christian Empire, Londres,
Routledge, 2004, p. 241.
160
Ernest L Fortin, Classical Christianity and the Political Order, (trad.
inglesa), Lanham, Rowman & Littlefied, 1996, edição epub, pp. 126-27.
161
Mateus, 5:39.
162
Romanos, 12:17.
163
Mateus, 5:44.
164
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, (trad. portuguesa: J. Dias Pereira),
5.ª edição, 3 vols., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, XIX.7.
165
Agostinho, A Cidade de Deus, XIX.7.
166
Agostinho, A Cidade de Deus, XVIII.2.
167
Agostinho, A Cidade de Deus, II.18-19.
168
Agostinho, A Cidade de Deus, III.17.
169
Agostinho, A Cidade de Deus, IV.4.
170
Agostinho, A Cidade de Deus, XIV.28.
171
Markus, Sæculum, pp. 23-26.
VII
O PRIMEIRO IMPÉRIO DEMOCRÁTICO
Milos, 416 a. C.
Mais Uma História de Duas Cidades
A Guerra do Peloponeso foi terrível, sangrenta e prolongada. Para o seu
grande cronista, foi a maior de todas as guerras. Pôs em confronto as duas
maiores potências da Grécia no auge do seu poder. Todas as partes da
Hélade foram envolvidas e a ninguém seria permitida a neutralidade. O
leitor de Tucídides lê com horror a descrição das maiores atrocidades, as
operações militares mais injustificadas, a abjecção dos cantos mais negros
da natureza humana. Vê o movimento hiperbólico das paixões, das
jogadas de bastidores e dos projectos políticos desenfreados. Mas também
lê narrativas que permitem reflectir, como em nenhum outro livro, sobre a
grandeza de alguns homens, a sua visão, a sua generosidade e a sua
coragem.
Agostinho narrara a História da Salvação com a analogia política de
duas cidades. No século V a. C., a guerra na Grécia foi travada entre duas
cidades terrenas: Atenas e Esparta. Estudando este conflito que atravessou
toda a civilização grega, da Sicília à costa ocidental da Ásia Menor,
podemos escavar mais um pouco o estudo da guerra. Até porque esta foi
porventura a primeira – certamente a primeira de que temos um registo
detalhado de uma sucessão de guerras até hoje – entre regimes políticos.
Lutaram pela sua sobrevivência a democracia ateniense e a oligarquia
mista tradicionalista espartana. E essa luta não podia deixar de ser
acompanhada pela respectiva justificação moral e intelectual, ou pela
justificação ideológica, dos regimes em confronto.
Ambas se reivindicavam como regimes da liberdade, embora a
entendessem de modo distinto. De um lado, Atenas, que tinha chamado à
cidadania integral todos os homens autóctones a partir da sua maioridade.
Nem sempre fora assim, e a democracia ateniense não se fundou de um
dia para o outro. Depois de expulso o último tirano, várias reformas
político-constitucionais foram aprofundando e alargando a democracia em
Atenas até chegarmos à sua experiência mais radical de Efialtes e Péricles
em diante. Sólon e Clístenes são os dois nomes mais célebres na lista de
«fundadores» da democracia, mas na verdade foram dando passos, cada
um mais largo do que o anterior, rumo à constituição de uma cidadania
participativa.
A liberdade, tal como a oligárquica Esparta a entendia, significava o
oposto de escravatura, o que, em termos políticos, no plano externo
indicava o contraste entre sujeição a um conquistador estrangeiro – por
exemplo, os Persas no século V, ou os Macedónios no século IV – que lhe
negasse a autonomia ou a capacidade de tratar dos seus assuntos internos
sem interferências externas de acordo com o seu próprio nomos. No plano
interno significava o contraste entre o governo arbitrário e o governo dos
nomoi. A democrática Atenas não discordava, mas levava o conceito de
liberdade (eleutheria) mais longe, em conformidade com instituições
políticas que a cidade aprofundara e que antecederam a própria
democracia. Por exemplo, antes da democracia na Grécia já havia a
prática de as magistraturas serem exercidas por mandatos limitados no
tempo, estando essa duração estabelecida por lei. A democracia também
aprofundou uma prática anterior de escrutínio da acção política e
administrativa dos magistrados cessantes. E, claro, levou até ao limite o
recurso ao sorteio para escolher os magistrados e os titulares de todo o
tipo de cargos – excepto os strategoi, ou os generais. Tudo isto era
anterior à democracia ateniense, e esta expandiria e aprofundaria a sua
aplicação e alcance.172
Mas havia mais. A democracia ateniense era isonomia – havia igualdade
perante a lei. Na verdade, no famoso diálogo dos Persas narrado por
Heródoto, o partidário da democracia referia-se a esta forma de governo
como isonomia, até porque tanto quanto sabemos o uso da palavra
democracia dificilmente seria corrente antes da década de 60 do século V

a. C., muito depois da data em que este fictício diálogo teve lugar.173 Para
haver igualdade perante a lei era preciso que a isonomia fosse também
igualdade na formação da lei. E esta igualdade na sua dupla dimensão não
seria efectiva se não houvesse participação directa e universal nos
assuntos políticos da cidade. Daí que a efectividade da isonomia
dependesse da isegoria, ou a igual faculdade de tomar a palavra na
Assembleia onde todos os cidadãos tinham assento. Com isto não só se
quebrou o poder reservado aos nobres, como se atribuiu ao povo ateniense
o poder supremo de decisão, revisão e julgamento na polis. O poder cabia
ao povo como agente colectivo, mas a radical democratização do acesso
aos cargos políticos e magistraturas judiciais fazia com que cada um dos
cidadãos livres, rico ou pobre, fosse chamado a exercer de alguma forma o
poder político directo durante o seu período de vida. Ao contrário da
democracia moderna, a de Atenas deliberadamente procurava dispensar
(ou inconscientemente ignorava?) o recurso a representantes do povo. De
mais a mais, isegoria também remetia para uma certa concepção de
igualdade de oportunidades.174 Poder tomar a palavra na ekklesia reflectia
já a igual oportunidade de se dirigir aos seus concidadãos, ao ser notado
por eles, de brilhar nesse espaço público, de exibir a sua areté e de ser
admirado pelos pares. Era igualmente a igual oportunidade de envolver-se
e influenciar o rumo dos assuntos públicos da polis. Norman Rockwell
exprimiu na perfeição este aspecto originariamente ateniense no seu
quadro a óleo de 1943, Freedom of Speech.
Igualdade e liberdade eram os valores democráticos por excelência. Tal
é precisamente sublinhado em múltiplos discursos, peças de teatro,
comentários de filósofos e até em diatribes dos críticos da democracia. Ao
mesmo tempo, para os partidários da democracia em Atenas e noutras
cidades gregas, a liberdade teria de apontar para a superação da relação de
mando e domínio que caracterizava a vida política tradicional. E isto de
dois modos paralelos, mas que na mentalidade democrática estavam
estreitamente ligados. Primeiro, a liberdade era «governar e ser governado
alternadamente», contrariando relações políticas de
subordinação/superordenação perpétuas. A participação política directa e
tão equitativa quanto possível nos assuntos políticos da cidade era a
institucionalização deste aspecto da liberdade democrática. Segundo, a
liberdade democrática era «cada um viver como quiser».175 Se bem que o
contraste com quem vive «como quiser» era proporcionado pelo escravo,
não restavam dúvidas de que a liberdade democrática se afirmava por uma
certa ideia de escolha na concepção de felicidade pessoal e na adequação
da conduta de cada um a essa escolha. Daí que não seja forçada a
interpretação de que a democracia ateniense fundou uma distinção entre a
esfera pública (to koinon) e a esfera privada (ta idia) onde se movia – no
seu deme, na sua corporação, na sua família, nos seus sacrifícios pessoais
aos deuses – a pessoa privada, o idiotes.176 É verdade que seria forçado e
anacrónico, isso sim, fazer a polis grega corresponder à distinção liberal
entre Estado e sociedade civil. Mas, apesar das enormes diferenças, é
possível e útil para a compreensão aceitar a existência de uma esfera
privada e a possibilidade, moralmente censurável, de uma retirada para ela
por contraponto ao envolvimento cívico, como, de resto, décadas mais
tarde escolas filosóficas, como a dos epicuristas e a dos cínicos,
preconizariam. Não por acaso, as cidades democráticas, com Atenas à
cabeça, eram descritas pelos filósofos daquela época como uma feira de
diversidade nos modos de vida. Na República de Platão, Sócrates
procurava abolir essa esfera privada na cidade justa que estava a construir
com palavras, esforço duplamente absurdo se ela não existisse na
realidade quotidiana ateniense. A abolição da privacidade, proibindo que
se fechassem as portas de casa, a abolição da propriedade privada e a
abolição da família celebrizaram a cidade que Sócrates edificou no
diálogo para discutir o problema da justiça na alma e na cidade.
Regressando à Atenas real e concreta, é preciso recordar que a igualdade
democrática não alcançava a esfera económica, embora abundassem as
invectivas dos democratas mais radicais contra os ricos, explorando as
tensões sociais, e nalguns casos aparecessem exigências de transformação
socioeconómica.
Por sua vez, Esparta era conservadora, austera e rigorosa. Isso valia para
os costumes e a mentalidade dos seus habitantes, como para a vida
económica e política. Nesse sentido, o modo de vida espartano,
reconhecido enquanto tal na sua distinção durante séculos e séculos, era
mais distintivamente grego do que o ateniense, que já continha traços que
nos são familiares no nosso próprio modo de vida tardo-moderno. A partir
de um certo grau do seu desenvolvimento, Atenas abraçou os prazeres dos
luxos, por exemplo, ou do entretenimento, ou da privacidade. Esparta
jamais o faria. Esparta, nas exigências terríveis da educação dos seus
meninos, na lendária circunspeção, na resistência ao apreço pela
individualidade da existência, é muito mais estranha ou estrangeira aos
nossos olhos do que a Atenas de Péricles. Até do ponto de vista das outras
cidades gregas suas contemporâneas, Esparta tinha o modo de vida mais
estranho e mais distintivo de toda a Hélade. Mas durante muitos séculos
foi tão admirada pela consciência ocidental quanto as maravilhas
produzidas pela democracia ateniense. Era o regime da eunomia – das
boas leis. Não foi por acaso que, até ao início do século XIX, o
republicanismo europeu moderno manteria sempre um laço de afinidade
com a austeridade espartana, com a sua simplicidade, a sua pobreza, o seu
patriotismo inflexível e o seu respectivo desdobramento para a vida
castrense.
Em Esparta, a cidadania também pertencia a todos os homens livres. Tal
como em Atenas, estavam excluídos os escravos e as mulheres. Contudo,
a oligarquia mista espartana não estreitava a cidadania a uma parte da
população masculina. Todos eram cidadãos. Daí chamarem-se a eles
mesmos os hoi hómoioi – os iguais ou os pares. Eram iguais num sentido
muito concreto: cada cidadão recebia do colectivo da cidade um lote de
terra pública da mesma dimensão para garantir um sustento mais ou
menos igual. No entanto, essa cidadania não tinha a mesma importância
política, nem conferia a mesma possibilidade de intervenção pública que
havia em Atenas. Um conjunto significativo de cargos determinantes,
como os dois reis (basileîs), os éforos e o conselho dos anciãos (gerousía),
embora interligados entre eles, não estavam sujeitos a qualquer escrutínio
– até porque cabia a esses cargos escrutinar intensamente a vida de cada
um dos cidadãos –, nem eram limitados no tempo. O cidadão anónimo não
tinha, como em Atenas, o direito de se levantar e tomar a palavra, nem de
exercer o seu voto intransmissível em todas as questões politicamente
relevantes.
Esparta era a negação das tentações privatistas e a afirmação da
prioridade da polis sobre as considerações individuais. A educação era
pública, e a partir dos sete anos as crianças eram retiradas aos pais, ricos e
pobres, para serem sujeitas à mais feroz preparação militar. Eram
entregues a um «bando» – agélé – de meninos da mesma idade.
Aprendiam a sobreviver sozinhos, com pouca comida – e daí terem de
roubar, apesar do risco de castigos corporais terríveis se apanhados em
flagrante delito – e completamente expostos ao frio e ao calor. Eram
postos a combater em lutas de treino e a competir em provas de atletismo.
Mas também praticavam as danças tradicionais e memorizavam a poesia
espartana. No fundo, as crianças eram educadas para ser guerreiros que
lutavam até à morte pela polis. Até as relações entre marido e mulher
podiam adquirir algo de clandestino e não havia nada remotamente
parecido com a família burguesa em que marido e mulher partilhavam um
espaço, uma actividade, um tempo, uma vida. Célebres ficaram também as
refeições em comum num refeitório – o sussitíon. Os Espartanos
praticavam sistematicamente o infanticídio. Não como controlo do
crescimento da população, mas como técnica eugénica. Não podiam
sobreviver em Esparta os recém-nascidos com deformações ou debilidades
físicas.
A actividade económica era rigidamente regulada por proibições do
comércio e limitações aos artesãos. Os cidadãos com menos de 30 anos
não podiam entrar na ágora comercial da cidade. Muito dependia da
exploração esclavagista da imensa população de hilotas, os quais, segundo
as estimativas possíveis, excediam em número os seus senhores por
factores de 4, 5 ou até 6. A condenação dos luxos e da acumulação de
riqueza era um ponto de honra. As leis sumptuárias eram rispidíssimas
para reprimir toda e qualquer ostentação de luxos. Eram proibidas as
deslocações ao exterior e a entrada de estrangeiros. Todas as saídas e
entradas careciam de autorização pública. Em Esparta não se cunhava
moeda. Como meio de troca usavam-se lingotes chatos de ferro. E houve
períodos em que se proibiu a posse privada de prata e de ouro.177
Em Esparta cada cidadão livre cobria-se de deveres que não eram
necessariamente compensados com direitos, muito menos com direitos
reivindicáveis contra a cidade. No entanto, a busca da imortalidade
pessoal através da boa fama póstuma, e evitando a má reputação, era
igualmente importante. Na famosa Batalha de Termópilas, o rei de
Esparta, Leónidas, decidiu ordenar aos aliados que retirassem. Ficou ele
com os seus 300 soldados para enfrentar os Persas numa luta até à morte.
Para a sua motivação contou tanto o desejo de fama heroica como a
informação de que um oráculo previa ou o extermínio da Lacedemónia,
ou, se um rei de Esparta morresse, a vitória espartana na guerra contra os
Persas.178 A glória pessoal era atribuída pela cidade e estritamente
dependente da sorte da cidade. No final, era a sobrevivência e a vitória de
Esparta que importavam. O heroísmo da obediência e a lealdade à cidade
valiam mais do que o brilho pessoal. Tirteu, o grande poeta espartano, não
cantou outra coisa.
Com a imensa multidão de escravos que sustentava a república, não
admira que os Gregos apontassem para o medo, e para a desconfiança do
estrangeiro, como os aguilhões das decisões dos Espartanos de ir para a
guerra ou de proceder a movimentos bruscos na sua orientação política.
Não de um medo físico da morte no campo de batalha. Pelo contrário, na
situação de guerra, o que havia era o medo da vergonha da cobardia. Na
estratégia política geral, o que havia era um medo estratégico, se é lícita a
expressão. Afinal de contas, havia uma multidão de rebeldes em potência
à espreita de uma oportunidade. E havia também um terror do castigo dos
deuses. Em Esparta, a religião educava cada cidadão a cumprir
devotamente a tradição política, a obedecer às leis e a dar a sua vida pela
cidade com a ameaça da fúria dos deuses sempre presente.
Se a Atenas democrática era a turbulência ruidosa das suas assembleias
e a inconstância das suas decisões e as lutas intestinas, Esparta era a
ordem e a estabilidade. Se Esparta era o repouso, Atenas era o movimento.
A coragem militar de ambas distinguia-se também por aí: a do soldado
espartano caracterizava-se por ser a coragem de quem não arreda pé, a
coragem defensiva; a do soldado ateniense era a da ousadia orientada para
o exterior, a coragem agressiva.179 Nessa medida, e além do modo de vida
disciplinado ao modo militar, o regime espartano era associado à
moderação. No entanto, o conservadorismo e tradicionalismo espartanos
também a inibiam e limitavam nas grandes escolhas e nos riscos da
guerra. Atenas levava a melhor na arte da guerra porque alimentava
politicamente, isto é, democraticamente, a propensão para o risco.180
Até à Guerra do Peloponeso, Esparta preservara o seu regime intacto
durante quatrocentos anos. Podia apelar à sua tradição política como
nenhuma outra cidade grega. Atingira o auge do seu poder na viragem do
século VI para o século V a. C., quando Atenas ainda não era o império
talassocrático que viria a ser quando ambas as cidades se confrontaram.
Mais, depois de dominar os seus rivais no Peloponeso, Esparta cobriu-se
de um imenso prestígio por ter «libertado» várias cidades gregas – com a
excepção das longínquas cidades gregas em Itália e na Sicília – de
governos tirânicos. Com efeito, os nobres ou os agathoi de cada uma
dessas cidades pediam ou convidavam Esparta para efectuar essa
libertação, substituindo o tirano local por um governo oligárquico baseado
nas leis e nos costumes. De resto, em 510 a. C., Esparta libertaria Atenas
da «tirania» dos descendentes de Pisístrato, momento que seria sempre
visto pelos democratas atenienses como decisivo no caminho para o
triunfo pleno da democracia como forma de governo em Atenas, algo que
só ocorreria na sua versão mais consolidada em plena guerra contra os
Lacedemónios. A expulsão dos tiranos em Atenas abriria caminho à
ascensão de Clístenes, que instauraria a democracia sucessivamente
aprofundada até ao período de Efialtes e de Péricles. Por todas essas
razões, poucos anos antes do início das hostilidades, quando a Hélade teve
de enfrentar a ameaça mais terrível de extinção vinda da Pérsia, Esparta
fora a cidade líder da aliança de cidades gregas que heroicamente lhe
resistiu. Ora, se, muitos anos antes, Esparta livrara a maioria das cidades
gregas dos tiranos que as governavam, incluindo Atenas, é preciso
acrescentar que Esparta jamais fora governada por um tirano.
A política de Esparta de derrube das tiranias não tinha propriamente
como propósito substituí-las por oligarquias. A sua preferência era por não
interferir directamente na política das cidades libertadas. Por vezes,
favoreciam as nobrezas locais e fomentavam a edificação de oligarquias.
Daí resultava uma grande autoridade e prestígio de Esparta sobre as outras
cidades, em particular sobre as cidades do Peloponeso, o que conferiu aos
Espartanos o controlo político do vasto território da Lacónia e da
Messénia. A pacificação política do Peloponeso, e a grande aliança que
propiciou a reunião dos recursos das outras cidades do Peloponeso
liderada por Esparta, traduzia-se também em força para decidir os destinos
da Hélade.181 Mais tarde, durante a guerra que a opôs a Esparta, o
espartano Brásidas proclamaria que a causa que mobilizava Esparta
«desde o início da guerra» era a de libertar toda a Grécia das garras de
Atenas.182 As palavras de Brásidas em Acanto proporcionariam o essencial
do programa contra-imperialista que configurou a geopolítica europeia
tanto quanto a sua veia imperial.
A história da Guerra do Peloponeso é também a história de uma
escalada – de uma escalada nos objectivos de cada uma das partes,
escalada na violência e nas atrocidades cometidas, escalada na crueldade e
na destruição. Falar-se de uma escalada da guerra é inevitavelmente falar
de uma degeneração. Com a escalada na guerra vem a degeneração dos
escrúpulos, da prática da justiça, da honestidade na argumentação e
persuasão, da constância da lealdade, no respeito pelos deuses, e por aí
adiante. No fundo, é a narrativa de uma descida para as possibilidades
mais rasteiras da vida política e da conduta individual.
Um dos sintomas e consequências dessa escalada e dessa degeneração
foi este: a multiplicação das guerras civis. A Guerra do Peloponeso não foi
apenas uma guerra entre gregos. Foi uma guerra civil que acendeu os
focos da guerra civil em cada ponto da Hélade, em cada aliado, em cada
cidade.
Impérios e Armadilhas
Depois da Batalha de Salamina em 480 a. C., com a derrota dos Persas,
a frente unida de Esparta e de Atenas tinha-se desfeito. A primeira seria a
grande potência militar em terra. A segunda no mar. Ambas foram criando
aquilo a que hoje se chama esferas de influência. Esparta garantia que os
regimes dos seus aliados eram oligárquicos para que a afinidade política
cimentasse a lealdade e a subordinação. Atenas optou por construir um
império de tributos e de garantia da protecção – na condição de o aliado
prescindir das suas próprias forças militares. Nestas empresas paralelas
cresceu incomparavelmente mais em poder o empreendimento audaz e
democrático – Atenas.183
Como Péricles deixou bem claro na sua oração fúnebre, o império
ateniense era um empreendimento livre e conscientemente escolhido.
Tucídides observou que Atenas sob Péricles era nominalmente uma
democracia, mas de facto estava sob o mando do seu líder natural, o «mais
capaz [entre os atenienses] de discursar e de realizar».184 Péricles morreria
ainda no início da guerra, pouco depois do segundo aniversário das
hostilidades. Mas deixou-a no cume do seu poder. Depois dele viria a
rampa deslizante da degenerescência interna até à derrota final na guerra.
No famoso discurso que proferiu de homenagem aos caídos em combate,
Péricles deixou um testemunho inevitavelmente propagandístico da
vitalidade democrática de Atenas e dos propósitos gerais da sua liderança
política. Entre as maravilhas da vida da cidade de Atenas, o império que
tinha adquirido, e por cuja manutenção e crescimento lutava agora nesta
guerra titânica, era um dos seus feitos maiores, se não o maior. De acordo
com o discurso de Péricles, o homem que era o primeiro dos atenienses, o
seu primeiro político e o seu primeiro general, o império era o fruto mais
nobre de um regime político e de um modo de vida peculiar. Por outras
palavras, era o fruto da democracia ateniense em que o desenvolvimento
de cada um ia a par com a sua devoção ao bem da cidade. Aquilo que para
nós pode parecer paradoxal, Péricles enunciava com suficiente clareza: o
império, que implicava a opressão das paragens conquistadas, era um
produto da liberdade de que cada ateniense gozava na sua cidade. O
ateniense era um autarkes soma – um indivíduo que toma conta de si
mesmo.185 Péricles atribuía um movimento muito peculiar para explicar a
fonte da expansão imperial ateniense: a sua generosidade para com as
cidades amigas. Presume-se que esta benfeitoria tinha a sua origem na
liderança ateniense na luta contra o Império Persa. Derrotados os Persas, o
resultado fora a libertação de muitas cidades gregas do jugo oriental. Em
que é que esta generosidade se ia converter em concreto no episódio de
Milos é algo que iremos examinar já de seguida. Mas antes tomemos em
consideração com um pouco mais de atenção esta justificação do império.
Quando Atenas experimentou os primeiros reveses na guerra, e os seus
cidadãos as primeiras perdas trágicas, Péricles caiu momentaneamente do
pedestal. Havia muita contestação e as pessoas responsabilizavam-no por
ter empurrado Atenas para a guerra. Ainda que antes o tivessem apoiado
entusiasticamente, agora, com a devastação dos campos e das aldeias fora
da cidade, com a peste e com as baixas entre os soldados, o povo mostrava
a sua fúria. Péricles decidiu falar à Assembleia para a aplacar. E pareceu-
lhe que seria conveniente revelar aos Atenienses o valor do império que
não podiam perder e pelo qual valia a pena lutar.
Tudo o que alguns cidadãos tinham perdido – as suas casas e as suas
terras – podia ser «facilmente» recuperado, dizia Péricles, se a «liberdade»
de Atenas, isto é, se o seu império fosse preservado. Em contrapartida, se
os Atenienses permitissem que o império fosse destruído, então não
recuperariam o que os exércitos espartanos tinham devastado. Além disso,
Péricles recordava-lhes que os pais dos atenienses vivos tinham construído
o império do nada, ao passo que os contestatários eram herdeiros dessas
aquisições. Tinham, por isso, uma responsabilidade: conservar o que
haviam recebido. Seria uma desonra fatal perder o que se tinha, bem maior
do que «falhar em obtê-lo». A seguir, exortou os Atenienses a terem
confiança na sua «superioridade» sobre os Espartanos – a sua inteligência
ou a «capacidade de raciocínio para dominar os adversários». Com essa
confiança, com essa fundamentada consciência da sua própria
superioridade, os Atenienses poderiam enfrentar os Espartanos com
aquela coragem que desliza para o desprezo do inimigo.186
Atenas não se expandiu para obter ganhos, continuava Péricles. Apenas
para socorrer os amigos. A mancha que macula todos os impérios é o da
injustiça – por mais democrático que um império seja, há sempre a
suspeita de que várias injustiças foram perpetradas e agora estão
disfarçadas pela vitória na guerra, que esmaga os injustiçados, e pela
propaganda, que cria novas verdades. Neste caso, a liberalidade ateniense
excluía qualquer injustiça do imperialismo ateniense.187 Além disso, o
império era uma obra nobre. Qual era a nobreza específica do império
ateniense? O império aparecia como um espaço de realização da glória – a
glória de cada ateniense, um bem incomensurável que ninguém podia
obter na sua vida privada e que não dependia dos caprichos dos deuses.
Uma glória que compensava as invejas e os ressentimentos que a
superioridade imperial sempre inspirava, e sobretudo que recompensava
todas as perdas e trabalhos que eram inevitáveis para a adquirir.188 Quanto
ao ressentimento, fica a dúvida de se para os Atenienses tal se devia ao
sofrimento causado por eles aos derrotados, se à inveja dos derrotados que
gostariam de estar na pele dos opressores e ter outros como oprimidos. Se
a origem do ressentimento fosse a segunda, até que ponto é que o triunfo
imperialista ateniense seria injusto?189
Porém, à medida que o discurso de Péricles prosseguia, as razões que
ele apresentava para persuadir os Atenienses a suportar a morte e a peste
que assolava a cidade, e a manter o rumo da guerra em defesa do império,
sofreram uma sensível alteração. Péricles afirmava sem rodeios que a
opção de evacuar o império seria equivalente à ruína mais completa. Tudo
se perderia. E o que era este tudo? Era a segurança e a liberdade dos
Atenienses. Dizia Péricles: «(...) o que agora tendes [isto é, o império] é
uma tirania, que talvez fosse injusto ter sido criado, mas que é certamente
perigoso eliminar.»190
Aqui, Péricles chegava a admitir que era a injustiça da aquisição do
império que não autorizava hesitações quanto à sua manutenção. As
origens do império, como vimos, estão sempre maculadas de uma forma
ou de outra. Mas, como os imperialistas em apuros de todas as épocas
sabem, os maus senhores – aqueles que adquirem uma tirania, por assim
dizer, para usar as palavras de Péricles – só podem esperar o pior quando
ficam à mercê dos seus inimigos. Ora aí está um cenário que manteve
perseverantes na luta os Atenienses e outras sedes de impérios que o
mundo conheceu. Num mundo de impérios que vão e vêm, num mundo de
impérios rivais e de vítimas desses impérios, o império vive cercado de
predadores. Péricles recordou os Atenienses de que eles não tinham
escolha senão lutar por manter o império.191 Quais são os limites exigidos
pela mera manutenção do império por contraponto à sua expansão? Na
prática, parecem não existir. Não haver alternativa é a sujeição mais geral
à necessidade natural. Ademais, afirmava Péricles, quem domina os outros
tem de estar preparado para «sofrer e ser odiado». Os bens que se
adquiriam com esse domínio eram reais – liberdade, riqueza, beleza – e
compensavam o ódio, que de resto, mais cedo ou mais tarde, era
substituído, como se percebeu, pelo desejo de imitação e pela inveja.192
Uma das perguntas fundamentais que se colocou a esta guerra, como, de
resto, se coloca a outras guerras com esta importância histórica, foi a que
interrogava as suas causas. Quem a começou? Por que razão começou? De
quem foi a culpa? Não era coisa de somenos. Não apenas para determinar,
se é que podemos determinar, a justiça ou injustiça dos beligerantes – a
sua culpa e a sua inocência. Mas também para compreender como é que,
depois de terem sido aliadas uma geração antes na épica guerra contra o
gigantesco Império Persa, as duas cidades se tornaram inimigas mortais.
O padrão de queixas estava no tratado entre ambas após a conquista da
Eubeia. Durante trinta anos, o tratado fora respeitado. Mas, a certa altura,
começaram as queixas de violação do tratado. Queixas sobretudo vindas
dos Espartanos. Contudo, havia razões muito fortes para Atenas atirar a
Esparta a responsabilidade primária pela violação do direito inerente a um
tratado. Tucídides, porém, queria ir mais fundo. A intenção de Tucídides é
compreensível, na medida em que cabe sempre perguntar porque é que um
tratado com trinta anos é finalmente violado. Se Esparta violou o tratado,
constituindo essa violação uma causa da guerra, a pergunta mais decisiva
do ponto de vista geopolítico é saber por que motivo Esparta violou o
tratado? Qual foi a causa da causa?
Dentre as várias queixas e acusações que foram feitas pelas partes
beligerantes, e que ecoaram por tantos anos na boca dos respectivos
partidários, Tucídides respondeu que tinha como a «mais verdadeira» das
respostas a que dizia que «os Atenienses, ao tornarem-se grandes,
provocaram o medo dos Lacedemónios, o que os forçou a declarar a
guerra».193 A culpa caía nos ombros atenienses, porque não deixaram
alternativa a Esparta senão ir para a guerra. Dessa culpa haveria
consequências além de um diletante julgamento moral dos leitores de
Tucídides no século XXI? Sabemos que nas atrocidades cometidas por
ambas as partes parecia que Atenas ia sempre mais longe na violência e no
despudor da injustiça. Haveria uma predisposição (imperialista?) dos
Atenienses para expulsar os escrúpulos do exercício da vontade de poder?
É duvidoso. Fosse como fosse, para alguns Atenas seria punida pelos
deuses com a mortífera peste que matou uma grande parte da sua
população e o seu líder Péricles. Talvez os deuses a tenham punido
também com a derrota final. Mas desde quando é que os deuses gregos
eram assim tão escrupulosos no cumprimento das regras da moral e do
direito?
Vejamos outra questão mais próxima das preocupações geopolíticas do
nosso tempo. O medo da ameaça futura do inimigo pode ser uma desculpa
para as violações materiais do tratado de paz? Pode ser uma atenuante?
Ou, pelo contrário, é irrelevante para determinar a justiça da guerra?
Ponderar se o inimigo não se está a tornar rapidamente tão poderoso que
no futuro será irresistível não apressará a conclusão de que mais vale fazer
a guerra já? No centro desta reflexão está o seguinte problema geopolítico:
no contexto de uma rivalidade entre duas potências com um alcance
geopolítico mais ou menos equivalente, o imperialismo ascendente de
uma delas suscita, ou força, uma resposta preventiva da outra. A
responsabilidade ateniense pela guerra era a responsabilidade do império
democrático ascendente. Isto não é o mesmo que dizer que houve uma
vontade imperialista de guerra. Vale antes por dizer que a guerra foi a
consequência de um desenvolvimento imperialista.194
No século XVI, Maquiavel dizia que nunca se adia uma guerra por
hesitações e pretextos. Isso seria, dizia Maquiavel, meio caminho andado
para a derrota. Mas, independentemente das recomendações de
Maquiavel, existe uma interacção estratégica discernível entre, por um
lado, um poder crescente de uma cidade, e, por outro, uma reacção receosa
– talvez de pânico – da cidade rival? A esta interacção estratégica,
Graham Allison, um professor de política internacional da Universidade
de Harvard, atribuiu a designação «armadilha de Tucídides».195 A palavra
armadilha sugere que o desfecho é inexorável. Daí a preocupação
horrorizada quando esta designação é aplicada à relação entre os EUA e a
China no nosso tempo. Na realidade, Allison estava sobretudo preocupado
em analisar a relação dos EUA, a potência (ainda) hegemónica, e a China,
a potência mundial em ascensão.
Mas a imagem da armadilha também pode sugerir uma queda acidental.
Se a armadilha está montada, não é inexorável que caiamos nela. Cair na
armadilha depende de factores de certo modo incontroláveis e
imprevisíveis. A imagem da armadilha remete para a incerteza –
maximizada em situações de tensão geopolítica graves. Tucídides não via
a situação de tensão entre Esparta e Atenas como tendo conduzindo
inexoravelmente à guerra. Mas não duvidava do seu poder de
condicionamento. Uma simples faúlha pode incendiar um pinhal, mas
apenas se o mato estiver seco e o ar quente e ventoso. Assim, a armadilha
é «a tensão estrutural aguda gerada quando uma potência em ascensão
ameaça derrubar a potência reinante».196 No fundo, há uma armadilha, ou
uma tensão sufocante e propiciadora do conflito aberto, quando uma
potência em ascensão se torna um perigo para a segurança, a hegemonia,
ou esfera de influência, da potência que finalmente se consciencializa
desse perigo. Só quando a potência dominante receia a outra em ascensão
é que se gera tensão política aguda. Ao mesmo tempo, o optimismo, a
ambição, a contemplação de horizontes futuros cada vez mais amplos,
fazem com que a potência em ascensão não consiga, nem queira, evitar
provocar o receio da potência incumbente. Até porque a potência em
ascensão deseja o reconhecimento da sua grandeza, da sua autoridade
mundial, dos seus direitos. Ora, esse reconhecimento não é independente
do medo que consiga inspirar nos outros, inclusive na potência dominante.
Nessa senda pelo reconhecimento, a potência em ascensão também tem
um grande receio: o de que a potência dominante a sufoque nas suas
ambições e veleidades. É racional esperar um ataque preventivo da
potência dominante, já que é mais fácil vencer quem ainda não se tornou
tão forte quanto está destinado a ser no futuro próximo. Essa expectativa
reforça o medo até ao ponto da paranóia, o que, por sua vez, intensificará
as circunstâncias e os actos de provocação de medo junto da potência
dominante. A ignorância sobre o que o rival fará neste jogo de interacção
estratégica, a ansiedade que a ignorância provoca, e o cortejo
incontrolável de acontecimentos aleatórios que vai agravando a incerteza
– tudo conspira para aumentar a tensão a um nível explosivo. Resta dizer
que a armadilha de Tucídides de Allison, por muito iluminadora que possa
ser, já pouco tem que ver com Tucídides, Esparta ou Atenas em meados
do século V a. C., e tudo com os EUA, a China e a situação em que
vivemos nesta terceira década do século XXI. E convém não supor que a
armadilha de Tucídides pode fazer as vezes de uma «lei de ferro» da
política internacional. Muito menos autoriza a concluir que o destino da
confrontação entre os EUA e a China está selado, como o próprio Allison
reconheceu.197 As lições de Tucídides são, afinal de contas, mais subtis do
que as de Allison.
O Primeiro Império Democrático na Primeira Pessoa
Se o medo forçar uma cidade a ir para a guerra, até que ponto podemos
dizer que ela é culpada? Somos culpados, ou moralmente responsáveis,
pelas escolhas que fazemos livremente. Ora, o medo é uma paixão que nos
condiciona radicalmente. Serve como atenuante para inúmeras
circunstâncias acompanhadas de actos violentos ou de justiça duvidosa.
Vale a pena notar, porém, que os Espartanos não invocaram o medo como
o seu móbil para partirem para a guerra. Em público, os Espartanos não
quiseram escudar-se atrás dessa consideração geoestratégica para justificar
os seus actos. Sim, porque o medo, segundo o processo da armadilha de
Tucídides, resulta de uma consideração geoestratégica de primeira ordem.
Esparta agiu preventivamente, não defensivamente. Por outras palavras,
tudo resultou de uma outra consideração geoestratégica de primeira ordem
que não o medo.
No início da Guerra do Peloponeso, um grupo de atenienses justificava
o império de Atenas junto de uma assembleia de espartanos do seguinte
modo: não fora a força bruta, mas a indisponibilidade de Esparta para
reorganizar a Hélade depois da retirada do exército persa de volta às
fronteiras do império. Restara a Atenas acolher os pedidos das cidades
gregas que lhe pediram protecção e liderança. O império fora oferecido a
Atenas. Fora oferecido, é certo, porque Atenas era mais forte, e era uma
lei da natureza humana que o mais fraco cedia a primazia ao mais forte.
Mas a superioridade de Atenas não se impusera pela conquista das
restantes cidades. E este último ponto parecia, aos olhos atenienses,
crucial na justificação do império democrático. Assim como a avaliação
evidentemente parcial de que Atenas tinha sido mais justa com os seus
fracos aliados do que era exigido pela situação de superioridade de que
gozava.198 Seria esta particularidade, que distinguia o império de Atenas
dos restantes impérios, um efeito do regime democrático, ou seria uma
decorrência da natureza do povo ateniense?
Para começar a responder a esta pergunta é preciso tecer algumas
considerações sobre a forma política imperial. O império é uma forma
política que a Europa importou da Ásia, a região dos impérios por
excelência. A Europa, o que antes do século V a. C. correspondia à
atrasada e primitiva região a oeste do Helesponto, era demasiado pobre e
despovoada para constituir impérios. Os seres humanos viviam como
viviam na maior parte da superfície terrestre: em famílias, em clãs, em
aldeias, em tribos ou em hordas. Na Europa, mais concretamente na
Grécia, formou-se a forma política própria que temos visitado, a polis, e
que reunia de um modo muito particular a comunidade da família e da
aldeia num mesmo espaço cívico e numa jurisdição governativa original.
Se é verdade que no longo curso da história a polis não resistiu às
transformações históricas e praticamente se extinguiu do mapa político, o
império revelou ser muito mais resistente. Gregos e não gregos adoptaram
durante dois séculos a forma política da polis num período de tremenda
criatividade e energia civilizacional com poucos paralelos na História da
Europa. O Império Macedónio a oriente e o Romano a ocidente
encarregaram-se de destruir a autonomia das poleis e, com o tempo, a
própria realidade política que as caracterizava. Nos escombros do Império
Romano do Ocidente, e nos interstícios dos reinos bárbaros que se foram
formando, as cidades independentes com instituições e identidade cívica
própria regressaram e vicejaram até ao final do Renascimento. No Norte
de França, nas províncias holandesas e sobretudo em Itália a norte de
Nápoles, a cidade politicamente autónoma marcou o seu tempo e acabaria
por travar um conflito perdedor com os sempiternos impérios, de um lado,
e com o emergente e pujante estado nacional, do outro. Antes da polis,
antes do estado nacional, depois da polis e veremos se também depois do
estado nacional, sobrevive o império.
A nossa palavra império vem do latim imperium, que originariamente,
ainda por inteiro num contexto republicano, designava um comando
militar supremo entregue a um magistrado, normalmente o(s) cônsul(es).
Designava, pois, uma prerrogativa puramente militar, não política, ainda
que suprema. Com o tempo e o uso republicanos, imperium passou a ser
alargado a prerrogativas eminentemente políticas, como, por exemplo,
convocar o senado. Quando Roma se tornou uma entidade política com
um vasto território, fruto de sucessivas conquistas e alianças, imperium
romanum referia a jurisdição, poder e controlo político da república sobre
um determinado território afastado do território da cidade de Roma. Nesse
último século antes da nossa era, a república estava a ruir e acabaria por
ser substituída pelo «principado» de César Augusto. Octaviano era o
princeps, nominalmente mantendo um equilíbrio institucional pseudo-
republicano plasmado na célebre fórmula SPQR – senatus populusque
romanus. Dos cônsules, Augusto, que já era o sumo pontífice, recebeu o
imperium. E, por sua vez, atribuiu-o artificiosamente ao povo romano no
seu conjunto. O imperium romanum era o imperium populi Romani.
Com a demorada duração do império, tanto nos territórios a oriente,
como sobretudo na imaginação europeia, as tentativas de ressurreição do
Império Romano, designadamente com a coroação de Carlos Magno pelo
papa Leão III e, mais tarde, de Frederico Barbarossa pelo papa Adriano V,
o domínio político a que se aspirava, a forma política consagrada, era a do
império. A aspiração imperial, que podemos não confundir com a vontade
imperialista, nunca mais abandonaria a imaginação política europeia.
Mas o que diferencia um império de qualquer outra forma política? À
partida, dir-se-ia que um império estende o seu alcance jurisdicional e o
domínio político por uma porção anormal de território através da
conquista militar. Atendendo ao precedente europeu de Roma, talvez
pudéssemos acrescentar que se trata de uma forma política autocrática,
que singulariza a figura do governante – o imperador. Porém, rapidamente
percebemos que tanto um como o outro critério são insuficientes ou
mesmo enganadores. O primeiro é acidental na medida em que o império
se caracteriza não apenas pela extensão territorial, nem sequer pela
diversidade linguística, étnica e cultural que está mais ou menos implícita
na vastidão territorial. A diversidade dentro das fronteiras de um mesmo
governo é importante para compreender a forma imperial. Afinal de
contas, a vocação imperial romana só se tornou consciente com a
afirmação política de um imperium orbis terræ, depois da conquista de
povos não-italianos. Mais decisivo para diferenciar a diversidade que pode
estar contida dentro de fronteiras de formas políticas não-imperiais é o
facto de o império pôr em contacto povos e culturas que antes da acção
imperial não tinham contactos, ou não os tinham com frequência. O
império junta povos que se desconhecem e cuja existência muitas vezes é
mutuamente ignorada. Mais, a acção imperial que junta sob uma mesma
jurisdição e governo povos e culturas sem um historial de relacionamento
é repentina. Por outras palavras, a reunião desses povos e culturas é feita
num período de tempo muito rápido, tão pouco gradual e tão inesperado
que é impossível de prever antes de ter ocorrido. De resto, o grau de
dependência da conquista militar em sentido estrito varia muito. Basta
pensar na primeira formação do Império dos Habsburgos, que deveu
muito a casamentos e alianças estratégicas que consolidaram poder e
territórios na mesma casa real.199 Convenhamos que, segundo este
primeiro critério, dificilmente Atenas seria um império.
No que respeita ao segundo critério, há que dizer que cingir a noção de
império a formas políticas autocráticas acaba por ser redutor à luz da
nossa experiência histórica. Os impérios podem ser autocráticos,
oligárquicos – isto é, governados por um grupo minoritário de pessoas – e
democráticos, como era o caso de Atenas. No Capítulo IV vimos a
ascensão da república imperial que veio a dominar a era contemporânea:
os Estados Unidos da América. Ambos tinham sistemas complexos de
governo, que não podem de modo algum ser descritos como autocráticos,
mesmo que se exagere a preponderância política do presidente dos EUA,
sobretudo a partir de Franklin D. Roosevelt, ou a supremacia de Péricles
na democracia ateniense no século V a. C. Os impérios, é certo,
centralizam o poder numa estrutura política que esvazia as autonomias
políticas locais, mas não são necessariamente autocráticos.
Acresce que, e apesar de não caber neste livro uma tipologia de
impérios que, em grande medida, está por fazer na literatura especializada,
é importante para os meus intuitos sublinhar a pluralidade das formas
imperiais. Do império militar persa, governado por um líder tido por
superior aos meros mortais, à primeira democracia imperial ateniense, aos
impérios ultramarinos das monarquias centralizadas pós-Descobrimentos
até à primeira república imperial com sede em Washington. Desde logo
reparamos na distinção que os grandes geógrafos geopolíticos do início do
século XX estabeleceram entre o império controlador de massas
continentais – o nosso já conhecido Halford Mackinder, por exemplo – e o
império marítimo, em que o controlo do território está estritamente
dependente do controlo das rotas marítimas por uma metrópole e pela
respectiva afirmação e imposição da superioridade naval – teorizado e
elogiado como superior ao seu concorrente terrestre pelo almirante
americano Alfred Mahan. Por exemplo, o Império Português no Índico,
nos séculos XVI e XVII, pode inscrever-se num tipo do segundo género.
Cada um daqueles impérios recorreu a proporções muito diferenciadas
de conquista militar, de alianças militares assimétricas, de controlo de
rotas comerciais, financeiras e marítimas, de ascendente cultural, de
hierarquização étnico-linguística, de integração geográfica na formação da
sua elite governante, e por aí adiante. Não devemos subestimar as
diferenças. Do ponto de vista das liberdades individuais e do respeito pela
dignidade humana, incluindo do ponto de vista da autonomia e liberdade
das partes enquanto partes que integram o império, não há qualquer
comparação entre um império republicano americano e um império
soviético, por exemplo. Hoje há quem defenda que a União Europeia
assumiu uma forma imperial numa variante «neomedieval», marcada pela
fluidez das fronteiras, pela heterogeneidade de prerrogativas, direitos e
políticas locais, num quadro institucional de poderes e lealdades
geográfica e juridicamente diferenciadas.200 Um império republicano, ou
democrático, contém factores internos de inibição potentíssimos que não
podem ser simplesmente ignorados. Desde logo, os valores públicos do
regime limitam as possibilidades imperiais e imperialistas. Sendo o valor
da democracia republicana a igualdade de todos os seres humanos, como
veremos, o risco de hipocrisia fatal está sempre aberto em todas as suas
acções imperiais.
E o império de Atenas? Este seria diferente de todos os outros impérios
seus contemporâneos, ou que o tinham antecedido, porque o seu sujeito
principal era o próprio povo cidadão – o demos. Seria o demos a exigir o
empreendimento mais arriscado de toda a guerra e que muito contribuiria
para a derrota final, a expedição à Sicília. Foi o eros do demos por essa
aventura que a pôs em marcha.201 O eros pelo império deslizava sempre
para o eros pelas conquistas – realizadas ou ainda futuramente possíveis –
do império. Seria o demos quem mais facilmente seria persuadido por
demagogos como Cléon, que apelava sempre à radicalização da guerra,
tanto nos objectivos – expansão ilimitada –, como nos meios – repressão
sem hesitações dos rebeldes. O demos era sempre mais favorável a quem
apelava a mais guerra do que a quem apelava à contenção. Era o demos
quem admoestava, julgava e punia os comandantes malsucedidos nas
acções militares e assim condicionava os cálculos e as condutas de quem
tinha de as liderar. Atenas travou uma guerra democrática, com o demos
sempre envolvido nas deliberações, votações e escolhas directas dos
magistrados e dos comandantes.
Em segundo lugar, como Péricles sugeriu na Oração Fúnebre, Atenas
tinha no coração do seu modo de vida o desejo de glória e o amor pela
beleza. Ambos os amores inspiravam-na e aos seus cidadãos a agir com
nobreza e a deixar uma marca de grandeza na memória de toda a Hélade.
Isso valia para a paz e sobretudo para a guerra. Até que ponto esse desejo
de glória e de nobreza ditou a doutrina proclamada pelos Atenienses de
que havia um direito natural de agir em conformidade com a necessidade
natural reflecte bem a tensão entre uma coisa e outra na pulsão imperial.
Como se o demos estivesse sempre oscilante entre o amor pelo nobre e
pelo belo, por um lado, e a conveniência e o interesse cru, por outro, a sua
volubilidade, traduzida em vagas sucessivas de euforia e de pânico,
constituía a representação democrática viva da tensão inerente à pulsão
imperialista. Se um desejo é evidentemente superior ao outro, é bom que
se perceba que o primeiro (o desejo de beleza) é irresistivelmente
universalista, ou imoderadamente expansionista. Em termos geopolíticos,
não aceita limites territoriais à sua satisfação. O segundo (o interesse
próprio nu e cru) na sua crueza, na sua evidente imoralidade até, define
alguns limites. É um princípio imoral de uma certa contenção ao
movimento.
Atenas daria um passo em frente nas suas justificações. Seria um passo
típico de uma cidade com tantos filósofos e sofistas. As razões
contingentes tinham sempre algo de insatisfatório. Uma grande teoria seria
sempre preferível. A justificação residiu na universalização do impulso
imperial. Não que Atenas defendesse que todas as cidades desejavam o
império – mandar nos outros, explorá-los, dominá-los. Atenas sustentava
com maior subtileza que todos desejariam o império sempre que fossem
aliciados pelas riquezas e pelo poder a ele associado. Por outras palavras,
as cidades e os Estados que recusaram a expansão imperial nunca o
fizeram por razões de justiça, mas por impotência.
Além disso, os Atenienses também confundiram a sua liberdade com o
império que a protegia. Se Esparta ameaçava o império, defendê-lo e
expandi-lo, como afirmou o general Hipócrates na preparação para a
batalha contra os Beócios no Inverno de 422 a. C., era proteger a
liberdade. Eram impelidos a defender e a expandir o império para
salvaguardar a liberdade democrática.202 O imperialismo ateniense
aparecia, assim, justificado por uma combinação de motivações, as «três
motivações mais poderosas»203: o medo, o prestígio e o interesse.
Inicialmente, foi o medo de uma nova invasão persa. Depois, seria o medo
de perder a superioridade imperial e, porventura, de sofrer as represálias
da outra potência grega. Que a segunda não constitua uma justificação
moral cabal do império, é algo que não precisa de surpreender ninguém.204
Nem os próprios Atenienses! Foram eles que o disseram: «(...) foi sempre
o modo do mundo que o mais fraco seja rebaixado pelo mais forte.»205
Quando já tinham passado dezasseis anos desde o início da guerra com
Esparta, Atenas assediou Milos. Esta pequena ilha, colonizada por
espartanos, e que tinha procurado gerir a sua situação estratégica frágil
evitando comprometer-se com um ou com o outro lado da guerra, via-se
confrontada com a ameaça da poderosa Atenas. Uma ilha invulgarmente
bela, formada em torno de uma caldeira vulcânica, rodeada por um mar
sedutor, Milos fica situada no lado ocidental da cintura meridional do
arquipélago das Cíclades, no mar Egeu. Seria este o quadro onde se
desenrolaria uma das cenas mais famosas da Guerra do Peloponeso.
Aquando da invasão dos Persas, com o destino da Grécia e de Atenas
em dúvida, Milos enviara embarcações de guerra para guerrear os Persas
na Batalha de Salamina, que visitaremos no próximo capítulo. Por agora,
basta dizer que sessenta e quatro anos antes do episódio em Milos que
agora iremos visitar, a pequena ilha-cidade integrara a coligação das
cidades gregas que se opuseram ao poderoso Império Persa, com dois
penteconteres, lutando e morrendo lado a lado com os Atenienses.
Em 416 a. C., os Atenienses desembarcaram uma força expedicionária
na ilha. Antes de iniciarem a operação de destruição, os enviados de
Atenas falaram directamente aos cidadãos de Milos. Na verdade, o que
teve lugar a seguir foi um diálogo. Houve uma troca de argumentos entre
as duas partes como se de um debate filosófico se tratasse. E qual foi o
tema desse diálogo? Segundo os cidadãos de Milos, além da sua própria
segurança, o tema devia ser a justiça – a justiça do assédio ateniense vs. a
justiça da defesa meliana. Milos acreditava que era a justiça que regrava
as relações internacionais, ou que estas deviam estar sujeitas a normas de
justiça acatadas por todos os que as reconheciam. Através de um debate
racional, as partes podiam reconhecer essas normas de justiça e agir em
conformidade.
Mas os Atenienses tinham outra concepção do fundamento estratégico
das cidades e dos Estados. O poder diferenciado levava a melhor sobre as
normas de justiça. Daí que para os Atenienses não existisse qualquer
contradição no facto de o diálogo se iniciar debaixo da ameaça terrível de
uso da força militar contra os Melianos. A justiça dos fracos tinha de ceder
ao poder dos fortes. E isto mesmo antes de se chegar a qualquer conclusão
política definitiva. Isto é, a cedência da justiça ao poder condicionava até a
apreciação da situação estratégica de cada um. A formulação dos
embaixadores atenienses ecoaria pelos séculos da história europeia.
Disseram eles:
Quanto a nós, não vamos usar frases pomposas, como a de que temos
direito ao poder, porque derrotámos o Medo [isto é, o Persa], ou a de
que agora vos atacamos porque fomos vítimas de injustiças, dando
uma série não fiável de razões, nem esperamos de vós que nos digais
que, embora colonos dos Lacedemónios, não entrastes com eles na
guerra, pensando que assim nos convenceis, ou então que em nada nos
fizestes mal; esperamos que em vez disso analiseis o que é praticável,
dentro do realismo que anima o pensamento de cada um de nós, pois
sabeis como nós sabemos, que o que é justo na vida humana só é
avaliado em circunstâncias equivalentes, e que os mais fortes fazem o
que podem, enquanto os mais fracos fazem o que devem.206
Note-se que, ao contrário do que tantas vezes se diz, os Atenienses não
atiraram a justiça para um buraco negro nem afirmaram que só o poder
dos mais fortes existia. Disseram algo mais subtil. A superioridade do
argumento de justiça dos Melianos cedia, ou dava lugar, à superioridade
da força dos Atenienses. Mas isto apenas porque as partes eram desiguais
em força. Se fossem iguais em força, aí haveria espaço para os
argumentos de justiça. A justiça dependia da igualdade de poder entre os
beligerantes. E tal não era manifestamente o caso na ilha de Milos naquele
ano de 416 a. C.
A grande fragilidade da posição dos Melianos era a de que a justiça
dificilmente faz executar as suas normas. O que é o mesmo que dizer que
o mais forte, quando viola a justiça, fá-lo impunemente. Apesar de tudo,
Milos disse aos Atenienses que, quando Atenas caísse – porque todos os
impérios acabavam por cair –, a injustiça flagrante cometida virar-se-ia
contra ela no pior dos momentos. Quem cometia grandes injustiças
quando era forte sofria terríveis vinganças quando era fraco. Era o modo
de Milos apelar não ao sentido de justiça dos Atenienses, que estavam
dispostos a destruir o «bem comum», mas ao seu interesse. Se Atenas não
se coibia de praticar uma injustiça por devoção à justiça, ao menos que se
inibisse de o fazer por consideração ao seu próprio interesse. O problema
era que se tratava de um interesse de longo prazo. A queda de Atenas não
seria certamente amanhã. E quem atendia a interesses senão aos de
curtíssimo prazo, ou aos benefícios imediatos?
De resto, os Atenienses não se deixaram atemorizar com a perspectiva
da sua queda futura. Porquanto na ponderação entre, de um lado, a acção
de um putativo vencedor sobre o império ateniense, que seria sempre
pautada pelo seu interesse, e não pelo sentido indignado e vingativo de
justiça, e, do outro lado, a tolerância a actuais, não futuras, cidades
súbditas que se envolvessem em insurreições contra o império, os
Atenienses davam prioridade a punir os rebeldes ou até aqueles que
suspeitosamente queriam permanecer neutros, como os Melianos,
minando a hegemonia de Atenas.207
De qualquer modo, os Atenienses desvalorizaram essa distinção entre
rebeldes e neutros. O que fez Atenas agir contra Milos foi a sua
insularidade, e nessa medida a ameaça potencial que cidades-ilhas que
destoassem da hegemonia ateniense era tão relevante como a de cidades-
súbditas que estivessem em revolta. Além disso, os Atenienses passaram
um atestado de suprema inocência – ou ignorância – aos Melianos quando
os admoestaram por estes acreditarem no socorro espartano. Milos
acreditava no apoio espartano se não pelo sentido de justiça de quem tinha
uma aliança defensiva com eles, então pelo menos pela vergonha de
deixar em aflição um povo do seu parentesco.208 Os Atenienses
denunciaram a «loucura» ou a insensatez de tais crenças e explicaram que
os Espartanos eram muito nobres e devotos da justiça nos seus assuntos
internos. Mas quanto a todos os outros estrangeiros, ou, na nossa
linguagem actual, nas suas relações internacionais, os Espartanos, tal
como os restantes povos do mundo, encolhiam as exigências morais e de
nobreza. Preferiam agir segundo outras equivalências, a saber, «o que é
agradável é nobre e a justiça é o que lhes convém».209 Numa palavra, os
Espartanos seguiam a mesma orientação de conduta política que os
Atenienses. Estes não reivindicavam para si direitos especiais, que se
aplicavam apenas a eles, na subjugação dos mais fracos. Esparta fazia o
mesmo e Atenas compreendia-os muito bem. Afinal de contas, Esparta
formara um império no Peloponeso antes de Atenas formar o seu no Egeu.
E os impérios não se formam com vinculações rígidas às regras da justiça.
Numa palavra, a política internacional é regida pelo diferencial das
relações de poder e pela interpretação do que é conveniente para cada um
dos actores. A justiça fica num difuso segundo plano. Num segundo plano
quer dizer que não desaparece. Note-se que o direito natural do mais forte
proclamado pelos Atenienses não era o direito de agir arbitrariamente.
Era, antes, o direito de agir segundo as imposições da necessidade natural,
isto é, a diferença de força compelia o forte a subjugar o fraco, se isso
fosse da conveniência do primeiro; e o forte não tolerava ameaças ou
desobediências dos mais fracos sem pôr em risco a sua integridade. No
fundo, conveniência era essencialmente segurança, ou pelo menos a
conveniência de uma cidade nunca ignorava a sua segurança.
Como a situação dos Melianos demonstrava, e o discurso dos
Atenienses apontava, na política internacional só quem tem os meios – e,
em última análise, excluindo o auxílio divino, esses meios são militares –
é que pode ter a veleidade de agir com justiça ou com nobreza. Ao
agitarem a bandeira da justiça ou da nobreza moral, os fracos estão apenas
a ser «loucos» ou suicidas, o que conduz ao mesmo. Resta saber se os
fortes que têm os meios indispensáveis à acção política justa ou nobre
usarão a superioridade da força nesse sentido, ou se, pelo contrário, como
o discurso ateniense revela, a superioridade da força funciona como uma
autorização para agir à revelia da justiça e da nobreza moral.210 A sujeição
política da cidade (ou do país) à necessidade natural era uma parte central
da tese ateniense. No século XVI, Maquiavel não se esqueceria da lição.
Até que ponto o argumento, ou a ameaça, dos Melianos era verificável,
é difícil de dizer. É verdade que Atenas perderia a guerra. Mas é duvidoso
que tenha sido pelo mal horrível que infligiram a Milos. Os crimes dos
Atenienses em Milos foram vingados por alguém? Não consta que o
tenham sido. Sabemos que Atenas perderia a guerra, mas, segundo o relato
de Tucídides, o desenlace deveu-se a erros próprios dos Atenienses, e não
à punição por injustiças cometidas.
De resto, Atenas não se deixaria impressionar por este argumento e
conduziria os Melianos à mais extrema sujeição: a morte dos homens e a
escravatura das mulheres e crianças, como era costume naquela época
entre os gregos. Mais, Milos não foi capaz de explicar porque havia um
«bem comum», nem o que era esse «bem comum», que uniria Milos e
Atenas em relações de justiça. Pelo contrário, foram os Atenienses os mais
hábeis em unir Milos e Atenas num interesse comum, a saber, a rendição
de Milos era do interesse de ambas as partes: de Atenas, porque ganharia
um aliado; de Milos, porque evitaria a sua total destruição. A comunidade
dos interesses seria, segundo a lógica ateniense, formada pela superior
força do mais forte, e não pelas normas de justiça, que, recordemos,
protegeriam a paz e a inocência da neutralidade de Milos. Recapitulando,
na tese ateniense eram as realidades do poder que ditavam a comunidade
de interesses, não as normas de justiça.
As escolhas estratégicas das duas partes tornavam-se, assim, mais
claras. Para os Melianos, existia uma escolha entre lutar pela liberdade –
correndo o risco da aniquilação – ou, por iniciativa própria, a sujeição aos
atenienses – incorrendo num acto vergonhoso. Para os Atenienses, e isso
fazia parte da sua estratégia, os Melianos não deviam iludir-se com
escolhas, mas analisar a sua situação estritamente à luz das necessidades
do poder. No final, os embaixadores atenienses refutaram os Melianos,
perguntando se a vergonha mais vergonhosa não era a que resultava da
estupidez – neste caso, da estupidez de decidir combater quando o
opositor era esmagador e não tinham qualquer possibilidade de vencer. A
honra dos fracos dependia por inteiro do reconhecimento da sua própria
fraqueza, ou da superioridade dos fortes. Só assim é que a honra dos fortes
podia responder na mesma moeda e assumir-se como o respeito por essa
honra dos fracos enquanto reconhecimento da própria fraqueza. Era, sem
dúvida, uma estratégia de condicionamento, mas não era mentirosa nem
exclusivamente manipulativa. Os Atenienses viam-se a eles mesmos como
forçados por uma necessidade, e não como agentes que escolhiam
livremente – a necessidade de manterem o seu império, de se imporem
pela força, sem sombra de escolha, aos outros, o que excluía tolerar
cidades neutras que podem cair para o lado do inimigo.
O Primeiro Império Democrático na Terceira Pessoa
Porque era a democracia ateniense imperialista? No Verão de 424 a. C.,
quando a Sicília discutia ardentemente a guerra a Oriente e travava as suas
lutas intestinas segundo linhas que em grande medida coincidiam com as
que demarcavam Esparta e Atenas, Hermócrates, filho de Hérmon,
dirigiu-se a uma assembleia que reunia as várias cidades gregas sicilianas.
Tinham-se reunido em Gela, e esse siracusano falaria exemplarmente.
Segundo Tucídides, foi o mais esclarecido dos oradores nessa assembleia
e levou a melhor sobre os restantes delegados.
Hermócrates alertou para o perigo que vinha de Atenas. Não tinha
dúvidas de que Atenas acabaria por desembarcar nas costas da Sicília para
vergá-la ao seu domínio. Em face dessa ameaça comum, propunha ele,
todas as cidades sicilianas deveriam unir-se e terminar o estado de conflito
interno em que tinham recaído. Alertava ele para que, ao contrário do que
os gregos sicilianos supunham – que as ambições de Atenas eram apenas
uma preferência «racial» pelos Jónios como ela em detrimento das cidades
dórias –, Atenas queria apoderar-se da riqueza da Sicília. Hermócrates não
censurava o desejo de domínio de Atenas. Reprovava, sim, a disposição
submissa daqueles que corriam para o seu regaço. Era uma lição da
«natureza humana» prever que sempre se manifestava o desejo de dominar
o subserviente, embora a mesmíssima «natureza humana» nos levasse a
resistir ao agressor.211 Assim, segundo Hermócrates, o desejo de
engrandecimento não era específico de Atenas, e, por maioria de razão,
não era específico da democracia. Era inerente à natureza humana e
encontrava como obstáculo o que estava igualmente inerente à natureza
humana: a resposta dos que recusavam ser dominados, dos que não eram
subservientes. A tese ateniense era aceite pelos seus inimigos com essa
importante qualificação.
Anos mais tarde, no Verão de 415 a. C., nas vésperas da invasão
ateniense da Sicília, já com a imponente frota a caminho, os siracusanos
reunidos deliberaram. Hermócrates tomou mais uma vez a palavra para
dizer que os rumores da iminente chegada da armada ateniense com um
corpo expedicionário confirmavam os seus avisos anteriores. Mas, quando
ele se calou, Atenágoras tomou a palavra. Atenágoras era o líder do
partido democrático em Siracusa, um temível orador no pior estilo do
demagogo. Atenágoras desmentiu todos os rumores. Não haveria qualquer
invasão. Era mais um truque dos oligarcas de Siracusa para manter a
população em sentido. Os Atenienses não seriam assim tão estúpidos ao
ponto de começar uma nova guerra quando o destino do conflito com a
Liga do Peloponeso estava ainda tão periclitante. O verdadeiro inimigo,
dizia Atenágoras, estava dentro de portas – o partido oligárquico com os
seus desígnios tirânicos que só conseguia levar por diante recorrendo a
fake news. Eram os oligarcas sicilianos que mereciam punição. A
democracia era superior à oligarquia, porque nesta o povo tinha de
partilhar os perigos, mas via serem-lhe subtraídos os benefícios pelos
oligarcas, que recolhiam para eles o exclusivo das vantagens.212 A
assimetria denunciada reconduzia imediatamente à sua solução segundo
um critério de justiça política. Se o demos, que constitui a totalidade do
povo da cidade, estava sujeito aos perigos, então devia poder pronunciar-
se como um todo sobre como fazer face a esses perigos e sobretudo como
distribuir os benefícios da vida colectiva.
O discurso de Atenágoras é interessante ainda noutro plano. Atenágoras
mostrou que não compreendia a democracia ateniense. Esta invadiria
realmente a Sicília contra todos os padrões de racionalidade, tal como ele
os entendia. Atenágoras ignorava os discursos do ateniense Alcibíades,
que fora um dos principais instigadores da operação que viria a revelar-se
tão desastrosa para a cidade de Atenas. Alcibíades persuadira o demos de
Atenas, contra homens como Nícias, a apoiar a expedição à Sicília. O
magnífico Alcibíades, que poucos meses depois estaria foragido de Atenas
e a entregar-se a Esparta para trair a sua cidade, convenceu o demos de
que todos os impérios tinham de intervir quando os seus aliados estavam
envolvidos, sem poder dizer que não. Um império nunca podia estar
inactivo. A inactividade conduzia à atrofia. Tinha de estar em acção
permanente para acumular poder e mais poder. Só em tensão permanente o
império estaria seguro e a gozar a sua glória. O império era expansão
permanente. Sobretudo, o império ateniense. Porquê? Porque Atenas,
dizia Alcibíades, era movimento. A cidade não podia contrariar a sua
natureza sem se desfazer.213 Mais tarde, Alcibíades revelaria que o plano
de Atenas era vergar os gregos da Sicília, depois os gregos da Itália, a
seguir o Império Cartaginês, conquistar a capital desse império e tomar
todo o Peloponeso. O objectivo era o mundo grego por inteiro. Não havia
limites.214
Donde vinha o movimento conatural à cidade de Atenas? Do seu
carácter democrático. Veremos a ascensão desse movimento no próximo
capítulo com a preparação de Temístocles na guerra contra os Persas. Por
ora, regressemos a Atenágoras. Conheceria ele Alcibíades? A ignorância
da dimensão imperial da democracia ateniense, e a concomitante
desrazoabilidade do seu impulso dominador, podia ser proveniente de
duas fontes. A pura ignorância dos factos e a suspeita típica do homem de
facção de que o aviso contrário de Hermócrates era um truque da
oligarquia para enganar o demos de Siracusa. Ou a visão mais inocente da
democracia como regime em acção decorria de o próprio Atenágoras não
ser mais do que um líder de facção, com poder de agitação, mas sem poder
efectivo de governação, sem experiência das realidades do poder, como
alguém que não era posto aos comandos do poder.
O demagogo homólogo de Atenágoras em Atenas era um homem
chamado Cléon. Também ele era um orador muito eficaz e também ele era
líder da sua facção, a mais popular na orientação política. Aristófanes, o
grande comediante desta época, mais conservador na orientação política e
partidário da facção oligárquica, denunciava-o constantemente nas suas
peças como um elemento maligno, corrupto e belicoso que conduzia
Atenas para o desastre. Mas havia uma grande diferença entre Atenas e
Siracusa. Atenas era efectivamente uma democracia. Cléon tinha genuíno
poder para fazer a cidade enveredar por esta ou por aquela via concreta.
Cléon aparecia invariavelmente a propor os castigos mais severos aos
aliados mais reticentes e a persistir na guerra independentemente das
consequências. A sua obstinação na continuação do conflito com Esparta
seria uma espécie de imagem de marca. No Verão de 427, a guerra
decorria há quatro anos, Cléon discursou na Assembleia de Atenas quando
uma delegação de Mitilene, cidade que se tinha revoltado contra o
domínio ateniense, veio implorar clemência. A democracia ateniense tinha
agora de decidir que punição exercer sobre Mitilene. Inicialmente, a
Assembleia dos cidadãos decidira matar todos os homens mitilenos e
escravizar as mulheres e as crianças. No dia seguinte, os Atenienses
recearam que a decisão anterior fosse excessiva. Cléon quis mantê-los
fiéis à cruel decisão prévia. Dizia ele que não podia haver escrúpulos
morais e compaixão quando estava em causa a gestão de um império.
Seria uma democracia imperial uma contradição nos termos, então? Cléon
sugeria, antes, que uma democracia tinha dificuldade em gerir um império
devido a uma fraqueza democrática específica, a saber, a volubilidade das
suas decisões colectivas. Hoje o povo queria uma coisa; amanhã queria o
seu contrário. A indecisão no caso de Mitilene revelava a fonte dessa
volubilidade. O povo tendia a projectar nas decisões colectivas da cidade a
sua experiência individual quotidiana. Como cada cidadão não tinha de
desconfiar do seu vizinho nas relações quotidianas, acabava por considerar
que Atenas não tinha de desconfiar dos seus vizinhos e aliados. Era uma
certa ingenuidade democrática que transcorria da doçura da vida
democrática quotidiana dentro de portas. Seria um erro gravíssimo, que
exporia Atenas a grandes perigos, se nas relações externas com os aliados
houvesse grande lugar para diálogos equitativos e esforços de persuasão,
ou para a compaixão quando erros tivessem sido cometidos. O império
democrático tinha de se impor como qualquer outro império. Pela força.
Havia outra inclinação da democracia para se perder em indecisões e
tibiezas. Com muita facilidade, a cidade democrática abstraía-se dos
perigos concretos, mas por enquanto invisíveis, quando se perdia nos
vários «concursos de discursos» ou «concursos retóricos» dos seus
políticos. Os cidadãos democráticos habituavam-se a assistir a debates
públicos e a interpretar o mundo ao sabor desses debates travados entre
oradores profissionais. Eles «gostam de ser espectadores de discursos e
auditores de acções». A política democrática convertia-se num
espectáculo, literalmente falando, o que construía um plano artificial
sobreposto à realidade concreta e que a tornava invisível à cidade.
Como espectadores de um espectáculo, os cidadãos democráticos
deixavam-se seduzir por qualquer paradoxo e resmungavam com tudo o
que fosse cansativamente familiar. Todos os cidadãos gostariam de ser
oradores, mas, como nem todos conseguiam sê-lo, envolviam-se
emocionalmente no despique entre dois retores. Todavia, não era à toa que
não se conseguia ser orador. O orador incompetente que existia em cada
cidadão democrático era também incompetente para acompanhar os
discursos dos que eram oradores profissionais. Ficavam ansiosos por
antecipar o argumento antes de ele ser pronunciado e eram lentos a
deduzir as suas consequências. O resultado era que os cidadãos
democráticos estavam sempre à procura de «um mundo diferente daquele
em que vivem» e eram incapazes de interpretar sensatamente as
circunstâncias que lhes são dadas. O próprio movimento democrático
criava um ambiente político interno – um espectáculo – não só propenso à
indecisão, como sobretudo propício à produção da irrealidade. Essa
encenação permanente desligava a consciência da cidade da realidade
concreta que a envolvia, fechando-a à noção clara dos perigos e riscos e
abrindo-a aos projectos que se apresentassem com arrojo, novidade e
habilidade. É como se o espectáculo permanente em que a política
democrática se tornava correspondesse a um desejo profundo de
distracção do povo democrático, e por sua vez alimentasse esse desejo. A
política democrática distraía os cidadãos, entretendo-os, o que muitas
vezes significava prender a atenção colectiva a ninharias e futilidades,
desviando-a do que era crítico e urgente. Como se vivia num espectáculo,
a realidade concreta seria objecto de atenção se se tornasse visível,
patente, estimulante, em suma, se ela se convertesse num espectáculo
também.215
Curiosamente, era o demagogo democrático Cléon quem queria desfazer
esses «hábitos» junto dos cidadãos atenienses. Percebe-se porquê. Era a
condição para conciliar a democracia com as exigências do império. Neste
caso, a exigência imperialista era simples. Deixar Mitilene impune por
compaixão, por vontade de justiça ou por outra razão moral, seria
multiplicar o número de insurreições e assim multiplicar os actos
necessários de crueldade que Atenas teria de praticar para disciplinar os
aliados, para já não falar do dinheiro que teriam de consumir nessas
empresas. Compaixão e equidade, a par da obsessão com o espectáculo
dos debates argumentativos – eis o que era mais prejudicial para a
preservação de um império.216 Mas isto também forçava a tomar em
consideração que o povo democrático não queria ser pura e simplesmente
distraído. Queria manter os seus escrúpulos morais e o seu sentido de
justiça. Ora, isso, disse-lhes Cléon, era incompatível com o império. Não é
preciso procurar muito mais para compreender o interesse que Maquiavel
teve no estudo do livro de Tucídides.
A alternativa era a de Brásidas em Acanto, e a geopolítica europeia
sempre a incorporou. O desejo de liberdade mobilizava os Gregos contra o
império, como o fizera umas décadas antes contra os Persas. No tempo de
Brásidas, porém, o grito pela emancipação dos que Atenas queria reduzir à
escravatura dirigia-se contra um império democrático. Esparta jurava que
não queria destruir o império ateniense apenas para substituí-lo pelo seu
próprio domínio. O intuito era o de libertar todos e todos deixar à
autonomia de cada um. No entanto, um projecto de emancipação das
trevas de um império militar tem forçosamente de ser militar na sua
natureza. Para ser eficaz, o contra-império tem de obedecer aos mesmos
imperativos que o império. Brásidas avisou Acanto de que, se não se
juntasse a Esparta e aos seus aliados para devolver a liberdade de todas as
cidades gregas, ele teria de derrotar a cidade sem quaisquer hesitações,
nem escrúpulos. Quem não se juntava à causa da liberdade alimentava a
suspeita de não ser seu amigo. Mas mais do que isso, o bloco da liberdade
tinha os mesmos requisitos de unidade e de coesão que o bloco imperial.
Não toleraria dissensões quando o que estava em causa era uma matéria de
vida ou morte.217 A geopolítica europeia nunca perderia de vista este
aspecto trágico.
Nos nossos tempos, apesar das frequentes acusações extra-europeias de
imperialismo democrático mais ou menos encapotado, a democracia
mobiliza-se para servir de contra-império. Mas sabemos como o contra-
imperialismo não nos livra de escolhas difíceis, nem das tragédias em que
a política é pródiga.
172
Mary Beard, The Classical World: an Epic History of Greece and Rome,
Londres, Penguin Books, 2006, p. 90.
173
Miguel Morgado, A Aristocracia e os Seus Críticos, Lisboa, Edições 70,
2008.
174
Mogens Herman Hansen, «Was Athens a Democracy? Popular Rule,
Liberty and Equality in Ancient and Modern Political Thought», Historisk-
filosofiske Meddelelser, n.º 59, Copenhaga, Det Kongelige Danske
Videnskabernes Selskab, 1989, p. 24.
175
Por todos, Aristóteles, Política, 1317b2-3, 12-13; Platão, República,
557a-562a.
176
Hansen, pp. 10, 18-19.
177
Paul A. Rahe, The Spartan Regime. Its Character, Origins, and Grand
Strategy, New Haven, Yale University Press, 2016, p. 9.
178
Heródoto, 7.220.2-4.
179
Ann Ward, p. 107.
180
Leo Strauss, The City and Man, Chicago, The University of Chicago
Press, 1976, p. 146.
181
Rahe, pp. 116-23.
182
Tucídides, IV.85-86.
183
Tucídides, I.18-19.
184
Tucídides, I.139.
185
Tucídides, 2.41.1.
186
Tucídides, II.62.
187
Clifford Orwin, The Humanity of Thucydides, Princeton, Princeton
University Press, 1994, p. 18.
188
Tucídides, II.64.
189
Orwin, p. 22.
190
Tucídides, II.63.
191
Tucídides, II.63.
192
Tucídides, II.64.
193
Tucídides, I.23.
194
Jacqueline de Romilly, Thucydide et l’imperialisme Aténien. La pensée
de l’historien et la genèse de l’œuvre, Paris, Les Belles Lettres, 1947, p. 27,
n. 3.
195
Graham T. Allison, «Thucydides Trap: Are the U.S. and China headed
for War?», Atlantic Monthly, Setembro, 2015,
https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/united-states-
china-war-thucydides-trap/406756/; Graham T. Allison, «Destined for
War?», The National Interest, Maio/Junho, 2017, pp. 9-21.
196
Allison, p. 11.
197
Graham T. Allison, Destined for War. Can America and China Escape
Thucydides’s Trap?, Boston, Houghton Mifflin Harcourt, 2017, Apêndice
n.º 2, pp. 560-64, edição epub. Ver a crítica de Richard Hanania, «Graham
Allison and the Thucydides Trap Myth», Strategic Studies Quarterly, vol.
15, n.º 4, 2021, pp. 13-24.
198
Tucídides, I.75-76.
199
Charles S. Maier, Among Empires: American ascendancy and its
predecessors, Cambridge, Harvard University Press, 2007, p. 36; María
Elvira Roca Barea, Imperiofobia y leyenda negra. Roma, Rusia, Estados
Unidos y el Imperio español, Madrid, Siruela, 2016, pp. 30-41.
200
Jan Zielonka, Europe as Empire. The Nature of the Enlarged European
Union, Oxford, Oxford University Press, 2006.
201
Tucídides, VI.24.
202
Tucídides, IV.95.
203
Tucídides, I.74.
204
Tucídides, I.75; Strauss, The City and Man, p. 183.
205
Tucídides, I.76
206
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, (trad. portuguesa: Raúl
Rosado Fernandes), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, V.89. Os
itálicos são meus.
207
Tucídides, V.91.
208
Tucídides, V.104.
209
Tucídides, V.105.
210
Strauss, The City and Man, pp. 189-191.
211
Tucídides, IV.59-65.
212
Tucídides, VI.35-40.
213
Tucídides, VI.18.
214
Tucídides, VI.90.
215
Tucídides, III.36-38.
216
Tucídides, III.39-40.
217
Tucídides, IV.87.
VIII
O NASCIMENTO DA GEOPOLÍTICA
EUROPEIA
Atenas, 480 a. C.
No início do século V a. C., o Império Persa era o centro do mundo. A
riqueza, o poder, a submissão de dezenas de povos, línguas e deuses sob
um mesmo governante conferiam à Pérsia um império incomparável.
Desde as fronteiras da Índia ao Afeganistão, dos desertos da Península
Arábica à nascente do Nilo (hoje território do Sudão), o império chegava
às margens orientais do mar Egeu (actual Turquia) e ao outro lado do
Bósforo, com algumas colónias e aliados na Trácia (actual parte oriental
da Grécia, Turquia Ocidental e Sul da Bulgária). As dezenas de ilhas que
polvilhavam o Egeu, e as cidades gregas que nelas despontavam,
formavam uma imensa heterogeneidade política, segundo a forma política
que os Gregos legaram ao mundo – a polis.
Nos primeiros anos do século V a. C., em grande medida atraído para as
lutas intestinas das cidades-ilhas, nas quais se destacavam Naxos e Mileto,
o império decidiu iniciar uma gigantesca expedição de punição e
submissão de todas aquelas poleis. Juntando-se numa frágil coligação, as
cidades e ilhas gregas da Ásia Menor banhadas pelo Egeu tinham iniciado
a Revolta Jónica e o seu lema era a liberdade – contra o domínio Persa.
Terra e Água
Atenas era uma cidade do mar. A sua lenda fundadora fala-nos da
competição entre Posídon, o deus dos mares, e Atena, a deusa da
sabedoria. Segundo esse mito, que nos chegou pela tradição em mais do
que uma versão, Posídon e Atena competiram para obter o favor dos
habitantes de Ática. Quem agraciasse Ática com a melhor dádiva venceria.
Posídon espetou o seu tridente e imediatamente jorrou uma fonte de água.
Mas a água era salgada, o que não matava a sede nem de pessoas, nem de
animais, nem de plantas. Atena respondeu oferecendo a primeira oliveira.
Esta proporcionaria sombra para protecção do sol abrasador. Mas daria
também a azeitona com a qual os habitantes poderiam fazer azeite e
vendê-lo por toda a Hélade. E com o lenho poderiam aquecer-se no
Inverno, fazer todo o tipo de objectos, como casas e barcos.
Quem venceria? Na assembleia votaram homens e mulheres. Como
havia mais uma mulher do que o total de homens, Atena venceu. Mas
Posídon tinha mau perder. Agitou as águas dos oceanos provocando vagas
gigantescas e inundações terríveis. Para o apaziguar, os agora Atenienses
decidiram punir as mulheres. Elas tinham sido a parte que derrotara os
homens na votação para a melhor dádiva divina. Como represália, veriam
vedada a cidadania; nunca mais poderiam votar. Um segundo castigo
determinou que os varões atenienses não poderiam ficar com o nome das
mães, adoptando-se o sistema patrilinear da descendência.
Fora as mitologias, Atenas no final do século VI a. C. era uma cidade
pequena e eminentemente rural. Talvez pareça implausível, dada a história
posterior da cidade e a sua proximidade ao excelente porto do Pireu. Mas
quando o Império Persa invadiu a Europa para punir Atenas foi em
batalhas campais que os nobres hoplitas atenienses, ombro a ombro com
outros gregos, mediram forças com os soldados persas. Atenas mudaria
muito num curto intervalo. Mudaria politicamente, inventando a
democracia, e mudaria estrategicamente, tornando-se a grande potência
talassocrática do mundo grego.
Foi Temístocles quem operou a viragem decisiva. Foi obra sua aquela
viragem em que os Atenienses deixaram de ser mais um povo situado
perto do mar, mas não plenamente marítimo, para passar a ser uma
potência marítima – uma talassocracia. Temístocles, cujo nome significa
literalmente a glória da lei, ou talvez aquele justamente glorioso218, não
podia reivindicar origens sociais nobres. Mas dizia-se que desde pequeno
demonstrara uma vocação para a vida pública, para falar em público, e
preparava-se com afinco e perseverança para ser um homem de acção.
Ansiava pela reputação que os Atenienses atribuíam aos grandes homens
de Estado que se notabilizavam pela dedicação aos assuntos públicos. Era
o velho desejo de ser o primeiro, que já Homero cantara a propósito de
Aquiles – mas desta feita não no combate propriamente dito, mas na
elevação da sua cidade a um novo patamar de glória. Toda a vida teve um
adversário político na pessoa de Aristides e dir-se-ia que Atenas só tinha
lugar para um: para ele ou para Aristides.
Temístocles mal tinha chegado à idade adulta quando Atenas
inesperadamente venceu o poderoso Império Persa na Batalha de
Maratona, no ano 490 a. C. Foi uma vitória tão formidável que convenceu
o «David» Atenas de que vencera definitivamente o «Golias» Pérsia.
Todos os Atenienses se deixaram embalar por essa euforia. Todos menos
Temístocles. Quando a generalidade dos Atenienses, ofuscada pelo brilho
de uma vitória sem precedentes, não via outra coisa além do despontar de
uma nova superioridade colectiva, Temístocles antevia já os perigos
futuros. Nessas circunstâncias, teria de ser ele a liderar uma cidade mais
míope do que ele. Quem vê mais longe no futuro preenche um requisito –
mas apenas um requisito – da liderança no presente e no futuro.
Aconteceu que Atenas por essa altura, poucos anos após a Batalha de
Maratona, obtivera o controlo das minas de prata em Laurion. Ainda sem
o saber, Atenas estava a iniciar o seu império. Mas a discussão que se
colocou na Atenas protodemocrática consistia em determinar o uso a dar a
esta nova riqueza que lhe vinha das minas de prata. Aristides propôs que o
dinheiro fosse dividido pelo conjunto do povo ateniense. Temístocles
contrapôs que tudo fosse investido na expansão da frota de guerra.
Primeiro, com o pretexto da guerra contra Egina, uma ilha rival situada ao
largo de Atenas, que em 491 a. C. se submetera ao jugo imperial da
cidade. Na verdade, Temístocles estava já a pensar na resistência a um
segundo golpe futuro dos Persas. Sabia, porém, que não conseguiria
aliciar o povo eleitor de Atenas com perigos distantes e sobretudo
invisíveis. Melhor seria apontar para aquilo que era concreto e mais
próximo: a velha rivalidade com Egina e os benefícios da sua submissão
ao poder ateniense. Assim foi. O povo ateniense apoiou a luta contra
Egina, e para a travar foi investir o dinheiro adquirido na produção de
dezenas de trirremes – aquelas que seriam pouco tempo depois cruciais
para salvar Atenas da segunda investida dos Persas.
Heródoto induz-nos ao desfecho das coisas, dizendo que foi o despontar
da guerra contra Egina que salvou a Hélade ao «forçar os Atenienses a ir
para o mar».219 No final, os navios contruídos para defrontar Egina não
chegariam a ser usados nesse conflito entre gregos. Mas salvariam a
guerra contra os Persas. Temístocles, com argúcia, fez os Atenienses
abraçarem definitivamente o mar como a sua avenida para a expansão e
para a glória, renunciando a um bem imediato e que lhe teria conquistado
o favor fugaz do povo, com vista à preparação de uma resposta a um
perigo que ninguém, além dele, enxergava no horizonte. Fez Atenas
abraçar o mar não sem a oposição de Milcíades, o grande general de
Maratona, que via no abandono da lança e do escudo, próprios da guerra
da infantaria, e associados na mentalidade ateniense à mais elevada
nobreza, uma degradação infame. Afinal de contas, abraçar o mar
significava virar as costas a terra. Os Atenienses deixariam de ser viris
soldados hoplitas, lamentava Milcíades, para passarem a ser vis
remadores.220
Temístocles apresentou aos Atenienses uma visão futura do poder
indomável da marinha de guerra, que com a estratégia adequada
alcançaria não só o domínio dos mares, mas da terra também. Uma cidade
pequena e pobre como Atenas só poderia resistir ao maior poder terrestre
– o do Império Persa – se exponenciasse a sua força militar através do
mar. E com tudo o que isso exigia: mobilização política das (poucas)
riquezas para esse propósito, edificação da construção naval em grande
escala e o treino sistemático de marinheiros de guerra nativos. Com efeito,
aquando da segunda invasão dos Persas no ano 480 a. C., seria o poder
marítimo de Atenas a infligir a derrota histórica – mais uma – do
invencível império terrestre da Pérsia.
Finalmente, a segunda invasão chegou, tal como Temístocles previra.
Chegou poderosa e avassaladora. Falava-se de um exército de um milhão
de homens, algo nunca antes visto. E ainda que possamos desconfiar da
inclinação para a hipérbole dos cronistas gregos, devemos aceitar que se
tratava de um exército colossal. Heródoto pôs-se a fazer uns cálculos e
estimou a força invasora em 2 317 610 combatentes persas. Se
somássemos os soldados recrutados na Europa, os auxiliares, os criados e
pessoal ocupado com os abastecimentos do exército e frota invasores,
Heródoto dizia que chegaríamos à estonteante cifra de 5 283 220
homens.221
Num primeiro instante, o pânico apoderou-se dos Atenienses. Ninguém
queria assumir o comando das tropas. Por fim, Temístocles avançou.
Começou por recusar a rendição. Depois negociou e formou uma grande
aliança das várias cidades gregas, que, até então, se entretinham a
guerrear-se mutuamente, e agora estavam à mercê dos Persas. Era sua
convicção que os Atenienses, e os Gregos em geral, só tinham uma
possibilidade de vencer os Persas – no mar. Inicialmente, os Atenienses
resistiram ao plano de Temístocles, mas à medida que as notícias
provindas dos avanços persas em território grego se confirmavam, cresceu
a disponibilidade para seguir aquela estratégia. Depois das derrotas nos
combates terrestres travados mais perto de Atenas, incluindo a derrota dos
famosos 300 espartanos na passagem de Termópilas, a cidade sabia que as
suas muralhas seriam inúteis. Mais valia tomar uma decisão já. Não sem
dissensões, o plano acabaria por ser o de Temístocles. E a sua liderança o
elemento agregador da frágil coligação de recém-aliados gregos, e nalguns
casos inimigos de décadas, nesta guerra épica.
Com a aproximação dos Persas, Temístocles tomou a decisão mais
dramática. Arriscou tudo. Um risco pensado, premeditado, mas
determinado pelo perigo extremo. Perante a incredulidade de muitos
Atenienses, Temístocles decidia evacuar a cidade e transportar toda a
gente para Salamina, uma ilha bem à vista do porto do Pireu e onde tinha
nascido o grande dramaturgo Eurípides – e, nos mitos dos poetas, o herói
Ájax. Não para fugir do invasor e nunca mais regressar, como tinham feito
os Focídios e alguns atenienses derrotistas agora propunham. Mas para
combater os todo-poderosos Persas em condições mais vantajosas.
Salamina é uma pequena e rugosa ilha com pouca área de terra arável e
onde, antes da evacuação de Atenas, não viveriam mais de 5000 pessoas.
Do outro lado do Pireu, Salamina dista menos de dois quilómetros do
continente, formando o estreito que proporcionaria a circunstância
geoestratégica decisiva para Temístocles derrotar os Persas. Da costa
nordestina de Salamina, 100 mil Atenienses puderam avistar com dor e
com raiva o fumo dos incêndios ateados pelos Persas na sua orgia
saqueadora quando entraram na cidade praticamente vazia. Casas, quintas,
templos, tudo destruído num espectáculo testemunhado por cada um dos
Atenienses, temporariamente a salvo pela água do mar e pela frota
ateniense, o que redobrou o ódio aos Persas, emoção parcialmente
catártica do terror que toda a cena inspirava.
Mas antes daquele mês de Setembro de 480 a. C., na preparação para a
evacuação, muitos atenienses ainda não queriam acreditar que iriam
abandonar as suas casas e os templos dos seus deuses à fúria destrutiva
dos Persas. Incrédulos ou não, assim que a frota ateniense regressou de
Artemísio, Temístocles fê-los embarcar. Evacuou todos os homens com
idade para combater, incluindo os metecos – os estrangeiros residentes que
não eram cidadãos. As mulheres e as crianças foram levadas, na sua
maioria, para Trezena, a terra mítica do herói fundador de Atenas, Teseu;
outras seguiram para Egina, onde foram acolhidas como refugiados
provisórios. Muitos dos mais velhos foram deixados para trás, assim como
os doentes e debilitados, entregues a um destino certo às mãos dos Persas
– ou das suas espadas –, destino partilhado pelos habitantes das aldeias
mais afastadas de Atenas e mais renitentes ao plano da evacuação. Ainda
houve espaço para levar a bordo algumas das estátuas dos deuses,
incluindo a de Atena, padroeira da cidade, feita de madeira. Para os
animais domésticos não essenciais não houve lugar. O cão de Xantipo, pai
do futuro grande Péricles, que lideraria Atenas contra Esparta cinquenta
anos mais tarde, nadaria atrás da trirreme do dono até à outra margem na
terra firme de Salamina, apenas para aí morrer de exaustão.
Nunca uma cidade grega fizera algo desta envergadura. Atenas era a
maior cidade grega – certamente com mais de 100 mil habitantes, talvez
150 mil – e as evacuações que outras invasões persas tinham provocado
no passado ocorreram em cidades bastante mais pequenas, e nem sempre
com grande sucesso, como sucedera em Foceia. E a grande diferença não
era de envergadura. É que neste caso Temístocles pretendia criar uma
cilada – a mãe de todas as ciladas.
O Nascimento da Geopolítica Europeia
Como os Atenienses se mantinham firmes na incredulidade, Temístocles
decidiu fazer o que vários estadistas da Antiguidade, e depois dela,
fizeram. Manipulou sinais divinos, presságios e mensagens oraculares,
explorando a credulidade do povo ateniense nas mensagens dos deuses
que contrastava com a sua incredulidade na autoridade de Temístocles
como estratega. Fez os sacerdotes falarem ao povo com as interpretações
politicamente mais convenientes. Quando os Atenienses ainda estavam
hesitantes quanto a abandonar Atenas, as suas casas, as suas terras, o seu
ganha-pão, rumo a Salamina, Temístocles lembrou-se de usar a deusa
Atena, a Protectora da Cidade, em seu favor. Dizia-se que no santuário de
Atena na Acrópole vivia uma enorme serpente animada pelo espírito da
deusa. Nunca ninguém via a serpente, excepto os sacerdotes e sacerdotisas
do templo. Havia o costume de, uma vez por mês, deixar um bolo de mel
que, segundo as guardiãs do templo, era invariavelmente comido pela
serpente. Mas eis que, na altura de todas as decisões, a sacerdotisa
anunciava aos Atenienses que o bolo tinha permanecido intocado.222 A
interpretação do pseudo-acontecimento foi devidamente engendrada,
segundo Plutarco, por Temístocles: Atena já tinha abandonado a cidade
rumo ao mar; estava na altura de os Atenienses fazerem o mesmo.223
Antes da chegada dos Persas a Ática, o oráculo em Delfos avisara os
Atenienses que tinham ido consultar a Pítia de que a cidade de Atenas se
salvaria por detrás de um muro de madeira. Como sempre, as profecias
oraculares expunham-se a várias e díspares interpretações. Houve quem
dissesse que o oráculo recomendava que se retirassem para a Acrópole,
que nessa época estava rodeada de arbustos. Um punhado deles acreditou
até à chegada dos Persas à cidade que a paliçada de madeira à entrada da
Acrópole os salvaria. Os Persas não os poupariam, nem aos templos, que
incendiaram.224 Esta profanação infame dos templos, os Atenienses não
perdoariam, e juntariam à luta pela sobrevivência a vingança dos seus
deuses ofendidos também. Depois desta destruição, seria Péricles quarenta
anos mais tarde que procederia à edificação sublime do complexo de
templos e santuários cujas ruínas podemos hoje admirar. Outros, mais
imaginativos ou mais astutos, leram nas palavras do oráculo a estratégia
de Temístocles. A começar pelo próprio Temístocles, evidentemente.
Nesta interpretação, que seria aprovada publicamente, o muro de madeira
era constituído pelos cascos dos navios atenienses.225 A marinha ateniense
era o seu verdadeiro poder e o único que poderia vergar os Persas.
Temístocles não ficou por aqui no ardil e na astúcia, tantos foram os
truques de contra-informação que praticou na preparação para o grande
confronto em Salamina. O mais famoso de todos foi este. Temístocles
tinha um escravo bárbaro que lhe era leal ao ponto de ser o tutor dos seus
filhos. Chamava-se Sicino e, como falava a língua dos Persas, além do
grego, Temístocles confiou-lhe uma perigosa missão. Fez com que Sicino
passasse por um informador dos Persas e enviasse uma mensagem
evidentemente falsa sobre os planos dos Atenienses. Temístocles queria
precipitar o ataque persa, dada a crescente tensão e medo entre os gregos
concentrados em Salamina que queriam fugir do local. Até entre os seus
Atenienses estava cada vez mais isolado na decisão de travar os Persas no
mar no estreito de Salamina ao invés de cerrar fileiras em terra no istmo
de Corinto. Temístocles estava confiante, mas tinha de acender essa
confiança em conterrâneos e aliados cépticos. Dizia ele, exprimindo a
confiança na sua estratégia:
(...) quando os homens planeiam segundo aquilo que é provável, os
acontecimentos normalmente sucedem-se de acordo com os seus
desejos; mas quando os planos são improváveis, nem deus está
disposto a apoiar as suas intenções.226
Temístocles ainda ameaçou os aliados – vinte e uma outras cidades
gregas – com a debandada da frota ateniense para Itália se eles o
abandonassem e retirassem para o istmo de Corinto, como propunham
Espartanos e Coríntios. A ameaça foi eficaz por algum tempo. Mas o
tempo corria contra os Atenienses. De resto, entre alguns dos comandantes
de Xerxes havia a nítida consciência da precariedade da coesão grega e
dos abastecimentos à frota inimiga. Artemísia, rainha de Halicarnasso,
proporia ao imperador essa abordagem: deixar o tempo correr contra os
Gregos, não os enfrentando no mar.227
Foi por isso que Temístocles enviou Sicino para que este persuadisse o
imperador de que os Atenienses e os seus aliados se achavam em total
discórdia e queriam sair a todo o custo do estreito de Salamina.
Temístocles admitiria depois ao seu arqui-rival Aristides: «Como os
Helenos não queriam combater, acabou por ser necessário levá-los para o
combate contra a sua vontade.»228 Como os Persas se entusiasmassem com
a ideia de apanhar os navios inimigos encurralados no estreito, dividiram a
frota para impedir todas as passagens em regime de vigilância
apertadíssima, extenuando os homens, que não puderam dormir.229 E como
a frota persa não ficou igualmente distribuída nessa tarefa de vigilância e
bloqueio, Temístocles atacaria onde ela estava mais vulnerável e onde
havia concentração maior de navios persas pesados e pouco manobráveis.
A ideia de Temístocles era anular a vantagem da escala persa. Era
preciso combater no estreito para diminuir a vantagem persa em alto-mar
com uma frota mais numerosa e mais rápida. No estreito, toda aquela
massa de navios teria muito mais dificuldade em manobrar e os navios
mais pesados dos gregos poderiam superiorizar-se. Pensado e feito. No
estreito de Salamina, Temístocles, com uma marinha bem treinada e
coordenada, encurralou e destruiu a marinha persa muito mais numerosa,
mas menos flexível e com mais dificuldades de manobra. Foi uma das
maiores batalhas navais da Antiguidade. Pouco depois, o imperador
Xerxes regressava à Ásia para lamber as feridas. Apesar de o perímetro
urbano da cidade de Atenas ter sido pilhado e destruído, a vitória no mar
fora esmagadora.
Quando consideramos a liderança de Temístocles, corremos o risco de
perder de vista uma mudança muito significativa que ocorrera. Enquanto a
decisão de Xerxes de punir Atenas fora tomada solitariamente, e por
influência de sonhos que interrompiam o sono do imperador, a decisão de
Atenas tivera lugar numa deliberação ao ar livre. Resultara de um debate
tenso e aguerrido, envolvendo todo o povo de Atenas, com muitas
opiniões proferidas. Todos os cidadãos foram chamados para se
pronunciar sobre a mais grave das decisões. Todos se tornaram
responsáveis pelo destino colectivo da cidade. E foi essa totalidade que
determinou a escolha feita. Não foram as autoridades tradicionais – nem
os anciãos presentes na assembleia, nem os guardiões dos templos, nem os
manteis ou videntes – a tomar a decisão, entregando-se os restantes à
passividade da submissão. Em boa verdade, os especialistas na decifração
dos oráculos favoreciam a retirada da cidade para se refugiarem noutro
território longínquo, como forma de escapar à fúria dos Persas, e eram
contra os preparativos para uma grande batalha naval. Falaram nesse
sentido e procuraram persuadir a multidão dos cidadãos. Alguns foram
convencidos. Mas não a maioria.
Durante um breve período, Temístocles seria tratado como um deus. O
seu prestígio cresceu de tal maneira que a sua superioridade se tornou
insuportável para a democracia ateniense nascente. E poucos anos depois
foi-lhe aplicada a punição para lidar com alguém que se tornara incómodo
para a igualdade democrática: o ostracismo, ou a expulsão da cidade por
dez anos em resultado de um voto na assembleia de cidadãos. Vale a pena
dizer que o mesmo tinha sofrido, antes dele, o seu grande rival Aristides.
A fama de Temístocles era helénica no seu alcance. Décadas mais tarde,
na véspera do início da guerra entre Esparta e Atenas, ainda se dizia que
Temístocles, pelos serviços que prestara a toda a Grécia, fora o estrangeiro
mais homenageado de sempre pelos Espartanos.230
O herói Temístocles foi acusado de passar a colaborar com os Persas e
daí em diante foi um foragido dos agentes da cidade de Atenas, que
queriam levá-lo de volta à cidade para ser julgado pelo tribunal
democrático. Incrivelmente, Temístocles concluiu a sua fuga prestando
vassalagem ao imperador da Pérsia, Artaxerxes, o filho do imperador
defunto que ele enfrentara no estreito de Salamina. Tornar-se-ia
imensamente influente junto do imperador, despertando até a inveja de
muitos membros da corte persa. Anos passados, porém, Temístocles,
apesar de rico e prestigiado, longe da sua terra e melancólico com tudo o
que sucedera, suicidou-se na sua casa com veneno.
Esta história está repleta de ironia. Porquanto os homens mais
conservadores, e menos amigos da democracia, nunca deixariam de
responsabilizar Temístocles e a vinculação que ele impusera da cidade de
Atenas ao mar, e ao porto do Pireu, como a origem da radicalização da
democracia ateniense e da morte da oligarquia nobre tradicional dos
agathoi. As vozes oligarcas diziam que «o império marítimo foi a mãe da
democracia».231 Menos de cinquenta anos depois de Salamina, Péricles
referia o lugar-comum geopolítico mais comum que havia em Atenas: «o
que importa é o domínio do mar».232 Ora, esta associação do império à
democracia desembocaria na chamada Guerra do Peloponeso contra
Esparta e, após três décadas, numa derrota trágica.
Porém, o inverso também é plausível. Isto é, a democracia ateniense
pode muito bem ter sido a mãe do império posterior, e não a sua filha.
Desde logo, por uma razão política e organizacional. As tiranias e as
oligarquias receavam sempre ter o povo em armas. Precisavam de se
rodear de uma guarda pretoriana e de força armada a cargo de
mercenários, de preferência estrangeiros. O povo podia deslizar para a
insatisfação e a impaciência com o governo de minorias tão exíguas na
cidade. Convinha, portanto, que não se achasse armado. Contudo, o
projecto político de manter uma extensa marinha de guerra em actividade
permanente supunha que os marinheiros seriam, em larguíssima medida,
os próprios cidadãos. E só uma democracia podia fazer cidadãos de tanta
gente – cada trirreme podia acomodar até 200 marinheiros: 170
remadores, 10 soldados e 4 archeiros.233 Só uma democracia podia conferir
tanto poder militar ao povo comum sem semear instabilidade e violência
insuportáveis, e sem arriscar a sua própria sobrevivência como regime. O
povo em armas, não como um gesto de aflição adequado a uma
emergência, mas organizado e institucionalizado, num exército ou
marinha permanentes, é uma possibilidade democrática. Não era uma
possibilidade para as oligarquias estreitas, nem para as tiranias. Contudo, é
preciso acrescentar que um exército e/ou uma marinha em permanência é
um instrumento de império imprescindível.234 O balanço de Heródoto da
vitória de Salamina permanece um guia sólido:
Nesta altura, os Atenienses tornaram-se muito mais fortes. Isto
demonstra como o igual direito de falar na assembleia (isegoria) traz
benefícios a muitos níveis: enquanto os Atenienses foram governados
por tiranos, não foram melhores na guerra do que quaisquer outros
povos seus vizinhos; mas assim que se viram livres dos tiranos,
tornaram-se de longe os melhores de todos. Assim, é evidente que eles
foram deliberadamente amolecidos quando estavam sob repressão, já
que trabalhavam para um senhor, mas, depois de se tornarem livres,
dedicaram-se ardentemente ao trabalho duro para alcançarem grandes
feitos que cada um deles queria realizar para si mesmo.235
Esta tese teria uma longuíssima e gloriosa carreira. Muitos imitariam
Heródoto e a sua ideia de que Atenas prosperou quando se livrou da
família do tirano Pisístrato. Encontramo-la, por exemplo, no historiador
romano Salústio, que escreveu sobre as guerras civis e os golpes de estado
nos últimos anos da decadência republicana. Roma só fora grande depois
de expulsar os seus reis, o que é o mesmo que dizer, depois de se tornar
republicana.236 No Renascimento italiano, Maquiavel corroborou-o
entusiasticamente.
A democracia ateniense era vista pelos Atenienses como sendo um
regime construído pelos próprios homens, e não um acidente ou um dom
dos deuses. Uma auto-interpretação política deste género conferia uma
confiança inaudita nas suas próprias possibilidades. Atenas podia
finalmente ser posta em movimento. Podia finalmente ser movimento. É
certo que sabemos como terminou esse movimento. Atenas seria
ingloriamente derrotada na Guerra do Peloponeso. No entanto, é preciso
não esquecer que a democracia imperialista de Atenas seria também a era
de ouro de Péricles, Sócrates, Aristófanes, Fídias e Apolodoro.
Assim, é legítimo inferir que o desenlace da guerra contra os Persas não
foi independente do facto de Atenas ser uma democracia. A deliberação
colectiva sobre a preparação da guerra, a execução da guerra e a
mobilização dos cidadãos devem ser lidas como práticas resultantes da
acção especificamente democrática, irreproduzíveis noutros regimes
políticos. No mesmo sentido, a motivação e a razão para Atenas se
defender, ao invés de se render ao Império Persa, não se reduzia ao puro
desejo de sobrevivência. Era também um desejo de liberdade. Quando os
Gregos enviaram embaixadores a Siracusa para persuadir o tirano Gelão a
juntar-se a Esparta, a Atenas e às demais cidades, apelaram à defesa da
liberdade da Hélade. Note-se que os embaixadores tinham sido enviados
por cidades que não eram democráticas, como Atenas, mas que nem por
isso se interpretavam como negações da liberdade. Esparta era o caso mais
sintomático, como vimos.
Destarte, os enviados gregos convocaram Siracusa, uma tirania patente
governada por um tirano que abominava as classes populares, a juntar-se
aos outros Gregos na defesa da liberdade. Da liberdade de Siracusa
também? Na verdade, o perigo que os enviados invocaram para sublinhar
o interesse de Siracusa em se juntar à força militar não foi o da perda da
liberdade. Esse seria o perigo para Esparta e Atenas. Era mais conforme
com a situação política siracusana, e com o interesse do seu governante, a
protecção contra o perigo de, uma vez caída a Hélade no Oriente, ser uma
questão de tempo até o Império Persa chegar à Hélade do Ocidente. Com
o tirano Gelão apelou-se ao interesse próprio da sobrevivência política,
não ao desejo de liberdade.237 E com razão. Gelão não seria sensível a
qualquer apelo à defesa da liberdade.
Gelão era um tirano. Mas Esparta, desde sempre, e Atenas, com a
democracia, abominavam a tirania. Depois de Salamina, o persa
Mardónio, em nome do imperador, tentou aliciar Atenas com vista a partir
a aliança dos Gregos. Prometeu-lhes as suas terras, a sua autonomia e até
ajuda para reconstruir os templos destruídos e, no fundo, a amizade
política do império. Os Atenienses recusariam a oferta da Pérsia. Aos
Espartanos, inquietos com a perspectiva de perderem Atenas para o lado
persa, e assim, após tantos sacríficos, arriscarem perder a guerra, os
Atenienses tranquilizaram-nos com a garantia de que não haveria paz com
quem tinha destruído os templos sagrados e ofendido os seus deuses.
Haveria, sim, vingança. Afiançaram-lhes ainda que não havia bem terreno
algum que pudesse corrompê-los e os levasse a medizar e escravizar a
Hélade, numa palavra, a trair aqueles que com os Atenienses partilhavam
uma língua, os laços de parentesco, os deuses e até um modo de vida.
Finalmente, quando os Atenienses responderam ao mensageiro persa
portador da proposta de aliança, avisaram-no de que jamais cessariam de
combater o império por «devoção à liberdade».238
Em 479 a. C., depois da Batalha de Plateias contra os Persas, que os
expulsaria definitivamente da Hélade, a coluna serpentina seria erguida
em Delfos com os nomes das 31 poleis gregas que tinham combatido os
invasores. Em Plateias, Pausânias, um dos reis espartanos que comandara
o exército grego nessa batalha, faria o sacrifício de agradecimento pela
vitória a Zeus Eleutherios – o Zeus da Liberdade. Tudo batia certo. Afinal
de contas, na véspera da batalha de Salamina o oráculo tinha profetizado
que «o clarividente filho de Cronos» (Zeus) e a deusa Vitória (Niké)
trariam a aurora da «Liberdade da Hélade».239
Mais do que qualquer outro acontecimento, Salamina consolidou a
fronteira entre o Oriente e o Ocidente, entre a Ásia e a Europa, que no
mito fora levada da Ásia para Creta por um Zeus metamorfoseado em
touro. Com Xerxes, o Império Persa invadiu a «Europa», e não apenas a
Grécia, segundo Platão.240 Quando Ciro, o grande fundador do Império
Persa no século VI a. C., conquistou em 546 a costa ocidental da Ásia
Menor, povoada por cidades gregas, os Espartanos fizeram os Persas saber
que assumiriam a responsabilidade pela independência das cidades gregas
em «terra grega». Assim, Esparta traçava uma fronteira geopolítica clara
entre a Ásia e a Grécia, não obstante toda a costa asiática ocidental que
fora ocupada pelos Persas ser grega linguística e culturalmente.241 Décadas
mais tarde, depois da vitória em Salamina, Temístocles, ao falar aos seus
homens, disse-lhes que tinham sido os «deuses e os heróis» a vencer
naquele dia os Persas, porque os deuses não queriam que um mesmo rei
mandasse simultaneamente na Europa e na Ásia.242
Antes da batalha, muitos tinham sido os gregos que se renderam ao
império. Afinal de contas, parecia fútil resistir. Os Atenienses chamavam a
esta prática e a esta tentação medizar, numa referência depreciativa aos
Medos, um povo ariano que fora derrotado por Ciro e passara a integrar o
Império Persa. Mas Atenas e os seus aliados – desde logo, Esparta –
resistiram. Xerxes não enviou arautos a Atenas nem a Esparta para lhes
exigir as ofertas de terra e água, os símbolos tradicionais de submissão dos
vassalos do império. O seu pai Dario fizera-o na primeira invasão, e os
Atenienses, assim como os Espartanos, tinham-nos matado. Agora, o
objectivo do imperador era a redução à escravatura de todos eles. Em
Atenas, como vimos, não faltava quem objectasse à opção de resistir. Mas
na hora H foi Temístocles quem liderou a cidade. E desta vitória resultou o
maior ponto de viragem da história europeia.
Se os Gregos tivessem sido derrotados em Salamina, o Império Persa
teria escravizado as cidades gregas resistentes, e porventura eliminado
muitas delas, até ao extremo sul do Peloponeso. Atenas e Esparta
provavelmente teriam sido destruídas. Xerxes tinha o desígnio
verdadeiramente imperialista de unificar o mundo sob o seu jugo,
uniformizando as partes dissonantes, eliminando a diferença, desfazendo a
particularidade.243 A conquista, a expansão, a negação do outro (país,
cidade, nação, povo) era o movimento interno dos Persas desde a
fundação do império por Ciro. Tal como Xerxes diria aos nobres persas
que tinha convocado para escutarem da sua boca os planos para a invasão
da Grécia, o objectivo era «estender a fronteira do território persa até ao
reino celeste de Zeus».244 E acrescentaria a formulação geopolítica do
imperialismo universal: «O sol não contemplará nenhuma terra fronteiriça
com a nossa, porque depois de eu, juntamente convosco, ter atravessado
toda a Europa, faremos de todas as terras um único país.»245 Afinal de
contas, o imperialismo universal o que na verdade faz é converter o
particular (a particularidade persa) no universal. Contudo, por aqui
vislumbramos a contradição do imperialismo. Se o imperialismo repudia o
repouso e faz da política um movimento incessante traduzido na negação
da diferença no espaço externo às suas fronteiras, o que sucederia quando
o império tivesse conquistado o mundo inteiro e fosse efectivamente
universal? Não seria isso um regresso ao repouso repudiado?246
Com uma derrota em Salamina, os Atenienses muito dificilmente teriam
capacidade para cumprir a ameaça que Temístocles fez aos aliados antes
da batalha e fugir para a Itália grega. Sem a Atenas fulgurante do século V
a. C., sem Esparta para pô-la em tensão, a civilização clássica pura e
simplesmente não teria existido. Escusado é dizer que a experiência
democrática imperial que fez a grandeza de Atenas não chegaria a
protagonizar o palco da História Universal.
Com a vitória em Salamina e a expulsão dos Persas, as pequenas
cidades gregas puderam sobreviver com a imensa vitalidade que delas
escorreria, em vez de serem sufocadas por um império monolítico. A
jovem democracia ateniense pôde adquirir uma confiança inaudita em si
mesma, aprofundar-se e até radicalizar-se, com todas as consequências
que se conhecem. Com os Persas teríamos filósofos, pintores, artistas,
como sucedeu com Anaximandro, Heráclito e Hecateu, homens que
viveram em cidades gregas sob o domínio dos Persas.247 E as cidades
gregas do Mediterrâneo Ocidental teriam provavelmente sobrevivido na
sua independência. Mas Atenas teria sido certamente destruída e extinta
da História. Recorde-se que Xerxes enunciou a destruição de Atenas como
o propósito mais imediato da sua expedição. E os grandes tesouros da
intensíssima vida ateniense ter-se-iam provavelmente perdido, ou nunca
chegariam a existir. Os Persas não sabiam o que era a cidadania, nem a
liberdade, por exemplo. Pior, os Persas, originariamente um povo
guerreiro dedicado à pastorícia e à caça, um povo de criadores de cavalos
e indisposto para as artes ou para as letras, nem se sentiam confortáveis na
vida urbana tipicamente ateniense. Uma vez constituído o grande império,
o imperador era o Grande Rei, que governava com o favor do deus Mazda,
Senhor da Luz, absolutamente incontestado, e referia-se aos súbditos
como os seus «inferiores», que os Gregos se apressavam a traduzir por
«escravos».248 Era a personificação da Justiça e o mundo a sua propriedade
privada. Dario, pai do Xerxes que invadiria a Europa, daria ao seu império
o nome bumi, a palavra persa para mundo.249 Do que sabemos pela
arqueologia, Dario tinha uma concepção cósmica do seu império, o que
não era infrequente na Ásia, nem no Egipto. É verdade que Alexandre, o
Grande, macedónio como era, também cedeu à tentação de universalizar o
seu império. Mas o espírito histórico que levou consigo nas suas
conquistas foi o da helenização, infinitamente mais forte que os devaneios
pessoais – que fora, na interpretação de Ésquilo, o célebre dramaturgo
trágico grego, a motivação de Xerxes para a invasão que levou a cabo.
Seja como for, foi mais tarde com a figura de alguns imperadores romanos
que a tentação alexandrina regressou à Europa.
Mais do que qualquer outra cidade grega, mais do que Esparta, foi
Atenas que derrotou os Persas. A liberdade de todas as cidades gregas foi
garantida por Atenas. Ora, convém não esquecer que somos ainda hoje
herdeiros de Atenas. Com Atenas aprendemos a pensar e a duvidar, a rir
da sátira e a expurgar as paixões da tragédia nas artes performativas, a
fazer política com facções partidárias, discursos públicos, campanhas
eleitorais, rivalidades pessoais e ideologias, com a participação mais ou
menos mediada das grandes massas. Aprendemos a viver com a primazia
da racionalidade na filosofia, na política, na arte e nos valores morais.
Aprendemos a acreditar que podemos compreender a infinita
complexidade do mundo. Que podemos construir um mundo também ele
infinitamente complexo. Os Atenienses ensinaram-nos a opor a autonomia
à obediência a instâncias superiores transcendentes do imperador-deus. O
que nasceu em Atenas no século V a. C. foi algo de verdadeiramente
«novo e diferente».250
O que era novo e diferente foi o que mais tarde se chamou a «cultura
ocidental». Foi nova e diferente a criação da individualidade e da
«personalidade europeia», mas também a unidade histórica do género
humano. Foi nova e diferente a vontade de universalidade. Foi nova e
diferente a descoberta do humanismo. Não do «humanismo» estafado dos
nossos dias, que múltiplos atentados de moralina converteram em nada
mais do que uma vazia palavra de ordem política. Aos Gregos que
inventaram a paideia devemos o humanismo originário e autêntico ou a
«educação do homem segundo a verdadeira forma humana, com o seu
autêntico ser». Mais do que a pessoa, os Gregos inventaram a pessoa
genérica como ideia com a sua «validade universal e normativa». Foi
novo e diferente porque era um modo de existência singular que se
exprimia no mundo e ecoaria pelos séculos.251
Tudo o resto viria daqui: o refinamento de Roma, da sua república e do
seu império; o cristianismo paulino e dos seus descendentes cristalizados
no Concílio de Niceia, convocado por Constantino, o fundador da cidade
grego-romana de Constantinopla; o Renascimento, que não é sequer
concebível sem o século V ateniense; o ideal democrático recuperado no
final do século XVIII, e daí universalizado até aos nossos tempos. Esses
tesouros foram os produtos de um mundo grego específico. De um mundo
grego que era essencialmente a «união de liberdade com o amor da
beleza».252 E não teria sobrevivido na sua superlativa especificidade e
sublimidade sem a independência política das suas pequenas cidades.
O omnipotente e elefantino império fora derrotado por uma aliança de
cidades pequenas como formigas. O mar e a inteligência estratégica, a
dinâmica política e a audácia que ela induziu na acção colectiva, foram
pouco mais do que suficientes para travar o movimento natural do gigante
e empurrá-lo de novo para as suas outrora indefiníveis fronteiras. Atenas
foi o vulcão que entrou em prodigiosa erupção e durante séculos e séculos
fertilizou toda a Europa com a lava que derramou. Mas a ignição dessa
erupção foi Salamina.
218
John Moles, «Herodotus and Athens», in Egbert J. Bakker, Irene J. F. de
Jong, e Hans van Wees (eds.), Brill’s Companion to Herodotus, Leiden,
Brill, 2002, pp. 44-45.
219
Heródoto, 7.144.
220
Plutarco, Temístocles, IV.3.
221
Heródoto, 7.184.1-7.186-2.
222
Heródoto, 8.41.2-3.
223
Plutarco, X. Heródoto deixou por determinar quem veiculou essa
interpretação. Mas sugere que foi de toda a conveniência para o esforço de
persuasão de Temístocles.
224
Heródoto, 8.51.2-8.53.2.
225
Heródoto, 7.141-143.
226
Heródoto, 8.60.
227
Heródoto, 8.68.γ-8.692.
228
Heródoto, 8.80.1.
229
Plutarco, XII; Heródoto, 8.75.1-8.76.3.
230
Tucídides, I.74.
231
Plutarco, XIX.4.
232
Tucídides, I.143.
233
Barry Strauss, The Battle of Salamis. The Naval Encounter that Saved
Greece – and Western Civilization, Nova Iorque, Simon and Schuster,
2005), edição epub, pp. 16-17. As trirremes persas transportavam um total
de 40 soldados e archeiros. Heródoto (7.184.1) cifrava a capacidade média
dos navios persas em 200 homens para calcular a dimensão humana da frota
invasora total.
234
Josiah Ober, «“I Besieged that Man”. Democracy’s Revolutionary Start»,
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