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MANUEL QUERINO ENTRE LETRAS E LUTAS – BAHIA: 1851-1923

Maria das Graças de Andrade LEAL


Universidade do Estado da Bahia
galleal@terra.com.br
Era Quarta feira de cinzas, 14 de fevereiro de 1923. Todos rezavam pela alma do defunto.
Ao centro da sala jazia Manuel Raymundo Querino. Em um esquife modesto, ladeado por diversas
flores, aquele homem franzino, de pele negra, cabelos brancos, vestido com o inseparável e
impecável terno escuro, descansava, entregando-se ao futuro, à história.

Iniciava-se uma nova etapa da história do pranteado autor de tantos escritos sobre a vida do
negro trabalhador, o cotidiano da cidade do Salvador, a herança africana nos costumes brasileiros,
sobre artistas e operários, entre outros assuntos, que soube, com a sensibilidade do artista, a
competência do pesquisador e escritor, registrar em páginas polêmicas, suas angústias, decepções e
esperanças.

Não obstante todas as pressões sobre o negro brasileiro, Querino se movimentou na


sociedade baiana, marcando a sua presença nos mais variados espaços de sociabilidade. Nas ruas,
nas associações artísticas, operárias, abolicionistas, nos partidos políticos, nas instituições
intelectuais e de ensino, nos botequins, nas festas, nas igrejas ou nos terreiros, passeou, se instalou,
se acomodou, provocando diversas interrogações sobre o lugar em que ocupou para interpretar e
sugerir outros caminhos para aquela sociedade imperfeita, porém viva. Consolidou-se e permanece
ativo na história da Bahia.

Brasileiro afro-descendente, nascido em Santo Amaro da Purificação no recôncavo baiano a


28 de julho de 1851, órfão desde os 4 anos de idade, viveu intensamente acontecimentos
significativos da história do Brasil, e da Bahia em particular, que marcaram os anos finais do
Império e iniciais da República. Militante das causas dos trabalhadores livres e escravos e de outras
questões sócio-políticas que afetaram diretamente os interesses das classes artísticas e operárias,
transitou pelos salões das elites letradas e experimentou a vida dos humildes trabalhadores
excluídos, convivendo em um campo de tensões que gravitava em torno do mundo dos negros e do
mundo dos brancos, dos pobres e ricos, dos “bárbaros” e “civilizados”.

Querino sintetizou, em um único sujeito, diversas possibilidades para a compreensão das


muitas dimensões que constituíram a vida de um homem e da sociedade em que viveu. Por isso,
impõe-se no roteiro das biografias. É uma possibilidade de dar-lhe voz e sentido histórico, ao

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esmiuçar as suas interferências nos processos sociais, militando na política partidária, reivindicando
direitos sociais e políticos aos trabalhadores, negros, africanos, brancos, mulatos, atuando nos
campos de luta como artista, professor, político e intelectual e movimentando-se na sociedade
baiana interpretando e reintepretando experiências produzidas por outros sujeitos com os quais
conviveu.

Estudar a vida de Manuel Querino significa retirar do anonimato a história de sujeitos


sociais incógnitos que são trazidos à luz do conhecimento histórico através do seu testemunho. A
sua individualidade foi caracterizada pela complexidade de ações que empreendeu na sociedade, o
que o distinguiu entre tantos outros sujeitos sociais que viveram e interferiram nos rumos sociais,
políticos e culturais da Bahia de meados do século XIX e primeiros anos do XX. Período em que a
sociedade brasileira e baiana em particular conviveu na tensão entre escravidão e liberdade; tradição
e “civilização”; atraso e progresso.
Da sua base operária, Querino enveredou pelo mundo da política partidária, na medida em
que desenvolvia o seu talento de artista, diplomando-se em desenho e cursando arquitetura. No
Império, militou no trabalhismo, criando a Liga Operária Bahiana e, na República, foi um dos
fundadores do Partido Operário, a partir do qual foi conduzido ao Conselho Municipal, assumindo o
cargo de Conselheiro por duas legislaturas (1891-1892 e 1897-1899). Desligou-se da política
partidária e iniciou uma outra militância, dedicando-se ao magistério e à produção de
conhecimento. Pelo trabalho intelectual que produziu, Querino se consolidou na sociedade baiana,
garantindo prestígio nos meios intelectual e operário. “Ilustre escritor e artífice baiano”,
“professor-pesquisador-historiador”, “precursor do design brasileiro”, “ícone do design baiano”
são alguns atributos consagrados ao militante e político engajado nas causas da liberdade e da
inclusão social de trabalhadores, artistas, operários e do povo em geral.

A sua produção intelectual, realizada entre os anos de 1903 e 1922, é priorizada por
considerá-la auto-biográfica. É tratada como referência significativa para compreender o autor na
sua relação com o mundo do trabalho, com o viver de negros escravos, africanos e nacionais,
homens pobres, trabalhadores em geral, em um cotidiano experimentado, observado, ouvido,
interpretado e registrado em forma de texto “memorialístico” por este sujeito-autor.

Testemunhou as transformações que se operaram no contexto da institucionalização do


trabalho livre e do regime republicano. Refletiu e registrou inquietações próprias de um homem que
se posicionou, expressando-se com indignação diante de questões que o afligiram ao longo da vida,
a exemplo da situação do povo trabalhador em sua existência política, social e cultural. Foram

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preocupações que refletiram, de uma forma ou de outra, a sua própria trajetória de vida, por ter
experimentado diversas situações difíceis, as quais puderam ser identificadas a partir do seu próprio
discurso e da luta que realizou ao longo da vida, cujos elementos centrais refletiram a sua condição
de negro e pobre.

A trajetória deste sujeito histórico vista no emaranhado da sua escritura se constitui em


diretriz que faz florescer pessoas comuns que integraram eventos marcantes da história da Bahia,
vistas pelo observador, interpretadas, escritas e inscritas em sua produção intelectual. Enquanto
produto de vivências e observações, Querino procurou a sua uma origem ancestral e demonstrou a
diversidade das influências culturais para a formação da identidade nacional, “recordando-nos que
nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-ministros ou generais”[1].

Com o propósito de recapturar a origem de Manuel Querino a partir do seu próprio testemunho,
bem como dos seus silêncios, pode-se destacar três aspectos que lhe preocuparam ao longo da vida:
a tragédia africana e a negação da importância desta matriz cultural para a constituição da nação
brasileira; a educação como fator de libertação social, a partir da sua formação profissional de
artista e inserção no meio intelectual; e a sua luta contra o esquecimento, ao resgatar a tradição
popular no campo de tensões do regime republicano, que pretendia apagar da memória nacional o
povo, o negro, o pobre, o trabalhador nacional.

Querino testemunhou as transformações que culminaram na República. Sobre elas, registrou


em seus escritos inquietações próprias de quem experimentou dificuldades para movimentar-se nos
diversos espaços e desafiou as estruturas sociais baseadas no preconceito de classe e raça. O negro,
órfão e pobre moveu-se na sociedade escravista buscando caminhos que garantissem a realização de
suas crenças baseadas na justiça, na liberdade, na igualdade para todos. Acreditou na República
como expressão política das garantias democráticas. As barreiras foram se solidificando e as
dificuldades transformadas em decepções. Contudo, não se calou. Posicionou-se, expressou a sua
indignação diante de questões que o afligiram ao longo da vida, a exemplo da situação do povo
trabalhador em sua existência política, social e cultural.
Alguns dos elementos considerados críticos por Manuel Querino no programa republicano,
que incluía a urgência higiênica e estética de destruir o passado e construir, sobre os seus
escombros, uma nova estética baseada no progresso, na modernização e civilização, foram aqueles
relacionados à situação de penúria que sofria os trabalhadores e o povo em geral. O seu
posicionamento crítico baseou-se no conteúdo de classe presente no ideal civilizador, tendo em
vista ser aspiração elaborada pelas elites, ao observar enganos e despropósitos dados à

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modernização. Assim ele desabafava:
Nenhuma região do país tem suportado o peso do despotismo republicano, como a Bahia;
talvez estejam castigando-lhe a altivez de outrora, com as maiores provocações.
Desprestigiam-lhe o valor, deturpam-lhe o merecimento, fizeram-lhe representar o humilde
papel de comparsa, em farrancho político, conservando-se estacionária e abatida, por
ingratidão de seus filhos.
Sucedem-se os empréstimos e a cantilena é sempre a mesma: o prurido enganoso do
progresso material que não chega.
Idéias e programas políticos desapareceram; pululam as personagens que as circunstâncias
do momento bafejam.[2]
A indignação o acompanhou durante toda a sua vida e o desejo de legitimar-se no seio social
e político da Bahia ficou registrado nas letras que denunciaram e ao mesmo tempo resgataram
valores desprezados pelas elites “brancas”. Rememorou o passado e afirmou ter sido o “colono”
africano o principal alicerce que sustentou e garantiu a construção do país. Manuel Querino foi um
brasileiro e como tal requisitou insistentemente posicionamentos políticos das bases trabalhadoras
no âmbito da construção do novo regime.

Procurando compreender a sua origem, a sua ancestralidade de matriz africana, Querino


enveredou pelas ruas de Salvador, pelos candomblés, oficinas de negros artesãos escondidas nas
ruelas da cidade, nos botequins, em todos os lugares onde pudesse encontrar africanos, na tentativa
de salvar o que sobrevivia na memória de homens e mulheres em seus saberes clandestinos e
misteriosos. Assim procurou resgatar a sua origem, através da tradição guardada de velhos africanos
que sobreviviam nas franjas da sociedade baiana, guardando segredos das tribos na condição de reis
e rainhas, de nobres que, “na terra natal... ocuparam posição social elevada, como guias dos
destinos da tribo, ou como depositários dos segredos da seita religiosa”, e que haviam sido
“subjugados à tirania da escravidão, criada pela opressão do forte contra o fraco”.[3] Pesquisou, na
sua tarefa de etnólogo, o mundo africano, e resgatou valores culturais, sociais e políticos ameaçados
de extinção da memória nacional através da política de “branqueamento” proposta pela civilização
tropical republicana.

Manuel Querino emprestou a sua voz na escrita, registrando qualidades do africano e


descendentes, até então desprezadas pela sociedade elitista, excludente. Ressaltou valores, força,
crenças, sonhos, lutas manifestadas pela capacidade de trabalho, pela obstinação nos combates pela
liberdade, pela resistência em preservar valores subjetivos originais que o cativeiro não chegou a
destruir. Assim, Querino passou a colher informações preciosas

de velhos e respeitáveis e que nô-la (sic) deram sem reservas nem subterfúgios, porque em
nós estas pessoas não viam mais do que um amigo de sua raça, ou quem, com sincera

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simpatia sempre respeitou e soube fazer justiça à gente que o cativeiro aviltou, insultou e
perseguiu, mas que não logrou jamais alterar-lhe as qualidades inatas, afetivas. [4]
Meio distante e meio próximo, Querino foi ao encontro da sua ancestralidade, de seu pai e
sua mãe, pouco ou nada referenciado através de seu próprio punho e nem citados em necrológios ou
notas biográficas elaborados por alguns contemporâneos seus. O que registrou sobre si ficou restrito
ao currículo profissional. Ao escrever relatos biográficos de artistas e operários que contribuíram
para o desenvolvimento das artes na Bahia[5], participando da vida produtiva como pintores,
escultores, músicos, pedreiros, ferreiros, desenhistas, etc., incluiu-se neste rol, no capítulo dedicado
à pintura, indicando apenas ter nascido “a 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro da
Purificação”.[6]

Diferentemente de negros contemporâneos que se destacaram no cenário nacional pelas lutas


abolicionistas, como Luis Gama, José do Patrocínio, Cândido da Fonseca Galvão - Dom Obá, os
quais chamaram a atenção para sua origem escrava, Manuel Querino se calou. Preferiu o silêncio
sobre a sua origem, filiação, infância, sobre a sua vida privada e a divulgação das suas conquistas
profissionais, políticas, sociais. A sua origem foi apresentada por ele ao incluir-se no universo das
outras existências, identificando-se e buscando-se. Traduziu-se ao privilegiar em seus estudos o
povo, o africano e descendentes, o trabalhador.

Sua origem aos poucos é revelada ao contar a história do africano, como parte importante na
constituição de uma nacionalidade, cujas páginas ainda estavam muito mal escritas. Manuel
Querino resolveu escrevê-las. Resgatou o valor do outro, justificando a sua origem e o seu valor de
negro nascido no Brasil, neste sentido brasileiro afro-descendente, e que sofria, na pele, os
significados do preconceito e discriminação social e de raça.

Para Querino, o trabalho, além de se constituir em esforço produtivo que enriqueceu os


senhores e construiu a nação, também se caracterizou em ação que conduziu à liberdade muitos
escravos e a outras conquistas sócio-políticas de seus descendentes pela manifestação da
criatividade, da competência, do talento, das lutas pelos direitos civis e políticos. Foi com este
sentimento que produziu a sua obra, ressaltando o valor da arte, do trabalho, de artistas e operários
nas suas variadas expressões.

Enquanto estudava no banco escolar do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e depois da


Academia de Belas Artes, aprendia sobre a situação da classe trabalhadora naquele ambiente
propício em que o trabalho era o foco das atenções e tema que mobilizou o período que se seguiu
desde o movimento abolicionista até a implantação da República.

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Um órfão de descendência africana emergia no cenário sócio-cultural e político daquela
Bahia conservadora, arraigada nas tradições coloniais e que almejava civilização e progresso. A sua
reputação de intelectual de profunda cultura clássica, conhecedor das línguas portuguesa, latina e
grega e suas respectivas literaturas e que, certamente, conhecia a língua francesa, favoreceu
algumas possibilidades que deram sentido à sua atuação política, relacionada ao movimento
trabalhista, na condição de militante permanente. Foi considerado “uma das primeiras lideranças
classistas do movimento operário baiano”[7] ou ainda “pioneiro do Trabalhismo no país”[8], ao se
envolver na criação da Liga Operária Bahiana (1876) e da Academia de Belas Artes (1877) e nos
movimentos abolicionista e republicano.
A década de 1870 foi, para Manuel Querino, um período de aprendizados e exercícios nas
quatro áreas de conhecimento e ação em que se ocupou – trabalho artístico, educação, política e
produção intelectual. Após ter servido por mais de um ano ao Exército Brasileiro na Corte, durante
a Guerra do Paraguai, retornou a Salvador carregando na sua bagagem experiências vividas no
contexto de grandes manifestações sociais e políticas no Império brasileiro.[9]
A conjuntura da Guerra proporcionou alterações consideráveis no modo de pensar a
sociedade, especialmente por parte das camadas populares e escravas. Contexto que se revelou
provocativo em direção a ideais de liberdade e democracia. Comparava-se a América livre da
escravidão e republicana com o Brasil monárquico e ainda escravista – elementos antagônicos às
idéias de civilização, progresso e liberdade. Possivelmente, Querino regressou motivado a se incluir
na luta pela liberdade e igualdade, partindo do pressuposto de que o aperfeiçoamento profissional e
intelectual, além de garantirem a sua sobrevivência, seriam guias preferenciais para a emancipação
social, política e profissional individual e coletiva.

O jovem e talentoso Querino continuou a aperfeiçoar suas habilidades, cultivando as letras e


as artes. A sua presença no circuito educacional e associativo tornava-se progressivamente
marcante. Nada foi fácil para o negro que desejava auferir garantias sociais, políticas e
profissionais. Como artista, diplomado desenhista pela Academia de Belas Artes, em 1895 foi
preterido ao cargo de Professor da cadeira de Desenho Linear, para a qual fora empossado o antigo
colega e professor do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia Agripiniano Barros. Em requerimento à
Congregação, Querino manifestou a sua frustração, sentido-se prejudicado.[10]

Possivelmente, em virtude dos desafios que enfrentou no interior da Academia, Querino


dedicou-se ao ensino de desenho industrial no Colégio dos Órfãos de São Joaquim e no Liceu de
Artes e Ofícios da Bahia. A partir daí produziu trabalhos didáticos sobre desenho linear e
geométrico (Desenho Linear das Classes Elementares – manual didático - 1903 e Elementos de

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Desenho Geométrico - 1911), os quais podem ser considerados precursores do que atualmente
conhecemos por design.

Querino se empenhou para conquistar o reconhecimento intelectual e profissional. E para


isto, ainda estudando arquitetura, em 1883 elaborou para o Congresso Pedagógico do Rio de Janeiro
um plano “Modelos de casas escolares adaptadas ao clima do Brasil”, a partir do qual o Jornal de
Notícias lhe atribuiu “artista de merecimento”, elogiando o primeiro trabalho de arquitetura do
referido estudante, o que revelava “a sua aptidão para ela”. Assim o jornal a ele se referiu:

Todo esse trabalho do sr, Querino há de, sem dúvida, merecer a aprovação do Congresso
Pedagógico, a quem o apresentará um dos seus membros, o nosso distinto comprovinciano
o professor Bahia, que se acha habilitado para fazer valer como ele merece.[11]
A princípio, este projeto arquitetônico de casas escolares pode ser considerado a primeira
produção intelectual apresentada a um público intelectualizado no evento do Congresso Pedagógico
do Rio de Janeiro e na imprensa local. Seu nome passou a ser citado, o que se constituiu em passo
essencial para os desdobramentos futuros, nesta área de atuação.
A forma de inserção no universo intelectual e produtivo da época se dava pela integração em
associações de classe, pela participação em exposições anuais abertas ao público, especialmente as
realizadas pelas principais instituições artísticas de Salvador - o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e
a Academia de Belas Artes -, e pelo acesso às principais páginas da imprensa. Eram estratégias de
promoção de profissionais e políticos na sociedade, tendo em vista serem os veículos possíveis para
alguém se tornar conhecido numa esfera mais ampla da sociedade, atingindo um público
diversificado – desde os analfabetos até a aristocracia letrada.

Foi o que ocorreu com Manuel Querino. Como sócio da Liga Operária, distinguiu-se no
meio operário. Como aluno e depois expositor das principais instituições educacionais abertas ao
público modesto – Liceu de Artes e ofícios da Bahia e Academia de Belas Artes -, conquistou
prêmios com medalhas de bronze, prata e ouro assegurando reconhecimento profissional.[12] Como
escritor, tornou-se jornalista, participando com artigos sobre a questão abolicionista e operária na
Gazeta da Tarde e em outros jornais, chegando a fundar dois periódicos – A Província, que circulou
ainda no império, criado em 20 de novembro de 1887 e extinto em 1888, e O Trabalho, fundado na
República em 03 de fevereiro de 1892 e extinto no mesmo ano, o que o tornou público e respeitado
politicamente, participando, ativamente, de eventos coletivos de operários e de pleitos eleitorais que
o levaram a ocupar o Conselho Municipal por duas legislaturas – 1891-1893 e 1897-1899.

A sua inserção nos diversos espaços de sociabilidade era conquistada gradualmente, a partir
do reconhecimento do seu valor profissional e intelectual. Entre os anos de 1893-1897, período em

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que esteve afastado do Conselho Municipal, Querino continuou na sua marcha de vida, buscando
garantir trabalho para a sua sobrevivência e a de sua família, bem como os prestígios político e
intelectual. A luta pela existência ficou mais ostensiva, pois possuía uma família de quatro filhos,

com o último nascido em 1894. Integrou a Guarda Nacional como 1o tenente na cidade do Salvador
e ingressou como auxiliar de desenhista na Repartição de Obras Públicas (1893). Foi nomeado
professor de desenho industrial no Colégio dos Órfãos de São Joaquim; pleiteou nomeação de
professor da cadeira de desenho linear na Academia de Belas Artes.

Como professor de desenho, Querino passou a garantir também prestígio junto à


intelectualidade da época. Em 3 de maio de 1894, Manuel Querino participou da fundação do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Como sócio efetivo fundador, depois honorário, esteve
envolvido no seu funcionamento, fazendo-se presente nas sessões e integrando Comissões, bem
como publicando, a partir de 1905, diversos artigos na Revista do Instituto.

Querino marcou sua presença nas associações beneficentes e irmandades religiosas. Estas se
constituíam em espaços que também garantia um certo grau de importância e prestígio para a vida
dos associados. Muitos artistas e operários apareciam com freqüência, simultaneamente associados
a mais de uma Sociedade, como foi o caso de Manuel Querino: apareceu, no Império, na Liga
Operária Bahiana (1876), na Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Tororó (1884 – como
escrivão) e, na República na Sociedade Monte Pio dos Artistas (1894), no Liceu de Artes e Ofícios
(provavelmente anterior a 1893), na Sociedade Protetora dos Desvalidos (1877 e readmitido em
1894) e na Sociedade Beneficente Auxílio Fraternal (Presidente da Assembléia Geral – 1898).
Certamente, este fato, além de lhe garantir acesso aos auxílios, também lhe garantia mais prestígio e
oportunidade de reunir aliados políticos.

Artista, político, professor, funcionário público e intelectual – Manuel Querino reuniu em si


as diversas vocações que o caracterizaram homem plural, múltiplo e fiel aos princípios
democráticos e igualitários. Como crítico contumaz, arregimentou à sua volta desafetos que lhe
causaram prejuízos políticos e profissionais. O que mais ilustrou as dificuldades que experimentou,
foi a sua trajetória de funcionário público na Secretaria da Agricultura, Viação, Indústria e Obras
Públicas.

A sua passagem pela Secretaria foi marcada por perseguições de cunho político, o que lhe

provocou a permanência no cargo de 3o oficial, sem conseguir promoção, e o afastamento


compulsório do serviço público, pela reforma administrativa de 1916. A partir de então dedicou-se
exclusivamente ao magistério, ao Instituto Histórico e à produção de conhecimento. O ano de 1916

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foi intenso para Querino. Entre frustrações e realizações, colheu diversos frutos. Publicou dois
trabalhos que revelaram a sua capacidade de pesquisador, historiógrafo, etnólogo e escritor que
denunciou, criticou, provocou política e intelectualmente os rumos da produção de conhecimentos
nas áreas de história, sociologia, antropologia e etnologia, revelando a temática popular e do negro.
Querino debruçou-se, de 1916 a 1922, sobre os estudos etnológicos e antropológicos no
universo dos costumes e cultura popular e africana. Relacionou-os ao processo da “civilização” e do
progresso no jogo que se estabeleceu entre o esquecimento e a negação das tradições colonial e
imperial e aquelas de matriz africana e ao preconceito de raça. Recuperou, a partir da oralidade e da
observação, as heranças culturais dos remanescentes africanos saídos da escravidão, que
sobreviviam às margens da sociedade, ao desenvolver um estudo descritivo e ao mesmo tempo
crítico, articulando o valor da educação, do trabalho, das crenças e ritos como referenciais que
produziram a construção da pátria. Dedicou-se a estudar e narrar a vida do povo e seus costumes,
como expectador e participante das mudanças culturais observadas nos primeiros anos do regime
republicano.
A sua literatura respondia criticamente aos valores projetados para a implantação da Bahia
“civilizada”, constatando, historicamente, a necessidade de considerar os elementos populares
representados pelos trabalhadores, africanos e afro-brasileiros como essenciais na construção da
civilização brasileira. A sua pergunta de fundo era o porque desprezar as raízes culturais e sociais
que pesaram sobremaneira na constituição da sociedade brasileira e tentar infiltrar valores europeus
que destoavam do pulsar cultural da população. Hábitos e costumes franceses foram registrados por
Querino como incompatíveis ao clima da cidade, por exemplo. Entre tantos elementos que destacou
sob a ótica do oprimido, denunciou o quanto a cultura popular estava sendo rapidamente
obscurecida sob as luzes da civilização e do progresso.

Manuel Querino realizou-se através da multiplicação de publicações que argumentavam


contra aquela atualidade de obsessão pela modernidade, pelo progresso, pela civilização, baseada
nos valores brancos, europeus, elitistas. Foi o limite possível a ele proporcionado pela
intelectualidade da época, pois foi através do Instituto Histórico e de algumas articulações com
periódicos e gráficas locais que conseguiu veicular e perpetuar suas idéias. Discutiu, debateu,
polemizou..

Querino demonstrou a necessidade de não enterrar o passado. Para ele, o exercício de


lembrar se tornou importante para re-fazer o percurso de uma experiência que haveria de ser
apagada pela luz do progresso. Registrando seus sentimentos, deu existência escritural à fala de
quem assistiu, ouviu, aprendeu e experimentou a sua própria trajetória no circuito de tantas outras

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que por ele passaram. Fez registrar o que tinha significado nas entrelinhas de uma leitura própria de
um cronista, de um artista, de um poeta que, em seu sentimento fez desabrochar uma ira, uma
vergonha, uma decepção! Nada foi salvo! O progresso matou, porém não haveria de sepultar a
memória de quem, com astúcia e agudeza, imprimiu em seus escritos a passagem da “era da
penumbra” para outra dita “das luzes da civilização”.

Como criador e intérprete, Querino enobreceu um mundo inscrito na sua memória, numa
interdependência entre o vivido e o narrado. Reconheceu-se no universo construído por quem
desejava ressuscitar o que teria ficado no esquecimento. Desta forma, Querino “[lembrou] para
continuar vivendo e tomar consciência de si”, conforme Burgos.[13]

A obra de Querino, memorialística, autobiográfica, é um produto histórico que ultrapassa o


valor de documento histórico e psicológico, ao apresentar-se como texto literário. Assim, evocando
o passado a partir do presente, o autor aproximou e enfrentou a distância do passado da recordação
e o presente da escrita, se apropriando da memória com o objetivo de “encontrar o tempo perdido e
fixá-lo para sempre.”[14] Aquele baiano negro, nascido no tempo da escravidão, testemunhou e
conseguiu impregnar de sabores, gestos, ritmos, atitudes um ambiente vital, que excedeu a
individualidade ao caminhar ao encontro da história de grupos sociais incógnitos.

NOTAS

[1] SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo em BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. S.P.: Ed. Da
UNESP, 1992, p. 60.

[2] Querino, A Bahia de Outrora, 1916, p. 44-45.

[3] Manuel Querino, A Raça Africana e seus Costumes na Bahia in Costumes Africanos no Brasil. 2. ed. Recife: Editora
Massangana, 1988, p. 22-23.

[4] Grifos meus. Idem, ibidem.

[5] Querino, As Artes na Bahia, 1. ed. 1909 e 2. ed. 1913; Artistas Bahianos, 1. ed. 1909 e 2 ed. 1911.

[6] Querino, Artistas Bahianos, 1911, p. 146-149.

[7] Foot Hardman, Francisco. Cidades Errantes: representações do trabalho urbano-industrial nordestino do século XIX. Ciências
Sociais Hoje, 1988, pp. 75/76.

[8] LEITE, José Roberto Teixeira. Pintores Negros do Oitocentos. São Paulo: Edições K; Motores MWM, 1988, p. 91.

[9] Serviu no exército como inferior por um ano, um mês e dez dias – de 28 de julho de 1869 a 6 de setembro de 1870.

[10] Atas da Sessão da Congregação de 21/11/1894 e 07/01/1895.

[11] Querino, Artistas Bahianos, 191, p. 147/148, transcrevendo a notícia da edição do Jornal de Notícias de 29 de maio de 1883.

[12] Idem, ibidem.

ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 01: História e Cultura Afro-brasileira e
a contribuição das populações de matrizes africanas no Brasil. 10
[13] BURGOS, Elizabeth. Meu nome é Rigoberta Menchú, apud JOSEF, Bella. “Auto)Biografia”: os territórios da Memória e da
História, p. 298.

[14] JOSEF, Op. Cit., 301.

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