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Iniciava-se uma nova etapa da história do pranteado autor de tantos escritos sobre a vida do
negro trabalhador, o cotidiano da cidade do Salvador, a herança africana nos costumes brasileiros,
sobre artistas e operários, entre outros assuntos, que soube, com a sensibilidade do artista, a
competência do pesquisador e escritor, registrar em páginas polêmicas, suas angústias, decepções e
esperanças.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 01: História e Cultura Afro-brasileira e
a contribuição das populações de matrizes africanas no Brasil. 1
esmiuçar as suas interferências nos processos sociais, militando na política partidária, reivindicando
direitos sociais e políticos aos trabalhadores, negros, africanos, brancos, mulatos, atuando nos
campos de luta como artista, professor, político e intelectual e movimentando-se na sociedade
baiana interpretando e reintepretando experiências produzidas por outros sujeitos com os quais
conviveu.
A sua produção intelectual, realizada entre os anos de 1903 e 1922, é priorizada por
considerá-la auto-biográfica. É tratada como referência significativa para compreender o autor na
sua relação com o mundo do trabalho, com o viver de negros escravos, africanos e nacionais,
homens pobres, trabalhadores em geral, em um cotidiano experimentado, observado, ouvido,
interpretado e registrado em forma de texto “memorialístico” por este sujeito-autor.
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preocupações que refletiram, de uma forma ou de outra, a sua própria trajetória de vida, por ter
experimentado diversas situações difíceis, as quais puderam ser identificadas a partir do seu próprio
discurso e da luta que realizou ao longo da vida, cujos elementos centrais refletiram a sua condição
de negro e pobre.
Com o propósito de recapturar a origem de Manuel Querino a partir do seu próprio testemunho,
bem como dos seus silêncios, pode-se destacar três aspectos que lhe preocuparam ao longo da vida:
a tragédia africana e a negação da importância desta matriz cultural para a constituição da nação
brasileira; a educação como fator de libertação social, a partir da sua formação profissional de
artista e inserção no meio intelectual; e a sua luta contra o esquecimento, ao resgatar a tradição
popular no campo de tensões do regime republicano, que pretendia apagar da memória nacional o
povo, o negro, o pobre, o trabalhador nacional.
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modernização. Assim ele desabafava:
Nenhuma região do país tem suportado o peso do despotismo republicano, como a Bahia;
talvez estejam castigando-lhe a altivez de outrora, com as maiores provocações.
Desprestigiam-lhe o valor, deturpam-lhe o merecimento, fizeram-lhe representar o humilde
papel de comparsa, em farrancho político, conservando-se estacionária e abatida, por
ingratidão de seus filhos.
Sucedem-se os empréstimos e a cantilena é sempre a mesma: o prurido enganoso do
progresso material que não chega.
Idéias e programas políticos desapareceram; pululam as personagens que as circunstâncias
do momento bafejam.[2]
A indignação o acompanhou durante toda a sua vida e o desejo de legitimar-se no seio social
e político da Bahia ficou registrado nas letras que denunciaram e ao mesmo tempo resgataram
valores desprezados pelas elites “brancas”. Rememorou o passado e afirmou ter sido o “colono”
africano o principal alicerce que sustentou e garantiu a construção do país. Manuel Querino foi um
brasileiro e como tal requisitou insistentemente posicionamentos políticos das bases trabalhadoras
no âmbito da construção do novo regime.
de velhos e respeitáveis e que nô-la (sic) deram sem reservas nem subterfúgios, porque em
nós estas pessoas não viam mais do que um amigo de sua raça, ou quem, com sincera
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simpatia sempre respeitou e soube fazer justiça à gente que o cativeiro aviltou, insultou e
perseguiu, mas que não logrou jamais alterar-lhe as qualidades inatas, afetivas. [4]
Meio distante e meio próximo, Querino foi ao encontro da sua ancestralidade, de seu pai e
sua mãe, pouco ou nada referenciado através de seu próprio punho e nem citados em necrológios ou
notas biográficas elaborados por alguns contemporâneos seus. O que registrou sobre si ficou restrito
ao currículo profissional. Ao escrever relatos biográficos de artistas e operários que contribuíram
para o desenvolvimento das artes na Bahia[5], participando da vida produtiva como pintores,
escultores, músicos, pedreiros, ferreiros, desenhistas, etc., incluiu-se neste rol, no capítulo dedicado
à pintura, indicando apenas ter nascido “a 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro da
Purificação”.[6]
Sua origem aos poucos é revelada ao contar a história do africano, como parte importante na
constituição de uma nacionalidade, cujas páginas ainda estavam muito mal escritas. Manuel
Querino resolveu escrevê-las. Resgatou o valor do outro, justificando a sua origem e o seu valor de
negro nascido no Brasil, neste sentido brasileiro afro-descendente, e que sofria, na pele, os
significados do preconceito e discriminação social e de raça.
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Um órfão de descendência africana emergia no cenário sócio-cultural e político daquela
Bahia conservadora, arraigada nas tradições coloniais e que almejava civilização e progresso. A sua
reputação de intelectual de profunda cultura clássica, conhecedor das línguas portuguesa, latina e
grega e suas respectivas literaturas e que, certamente, conhecia a língua francesa, favoreceu
algumas possibilidades que deram sentido à sua atuação política, relacionada ao movimento
trabalhista, na condição de militante permanente. Foi considerado “uma das primeiras lideranças
classistas do movimento operário baiano”[7] ou ainda “pioneiro do Trabalhismo no país”[8], ao se
envolver na criação da Liga Operária Bahiana (1876) e da Academia de Belas Artes (1877) e nos
movimentos abolicionista e republicano.
A década de 1870 foi, para Manuel Querino, um período de aprendizados e exercícios nas
quatro áreas de conhecimento e ação em que se ocupou – trabalho artístico, educação, política e
produção intelectual. Após ter servido por mais de um ano ao Exército Brasileiro na Corte, durante
a Guerra do Paraguai, retornou a Salvador carregando na sua bagagem experiências vividas no
contexto de grandes manifestações sociais e políticas no Império brasileiro.[9]
A conjuntura da Guerra proporcionou alterações consideráveis no modo de pensar a
sociedade, especialmente por parte das camadas populares e escravas. Contexto que se revelou
provocativo em direção a ideais de liberdade e democracia. Comparava-se a América livre da
escravidão e republicana com o Brasil monárquico e ainda escravista – elementos antagônicos às
idéias de civilização, progresso e liberdade. Possivelmente, Querino regressou motivado a se incluir
na luta pela liberdade e igualdade, partindo do pressuposto de que o aperfeiçoamento profissional e
intelectual, além de garantirem a sua sobrevivência, seriam guias preferenciais para a emancipação
social, política e profissional individual e coletiva.
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Desenho Geométrico - 1911), os quais podem ser considerados precursores do que atualmente
conhecemos por design.
Todo esse trabalho do sr, Querino há de, sem dúvida, merecer a aprovação do Congresso
Pedagógico, a quem o apresentará um dos seus membros, o nosso distinto comprovinciano
o professor Bahia, que se acha habilitado para fazer valer como ele merece.[11]
A princípio, este projeto arquitetônico de casas escolares pode ser considerado a primeira
produção intelectual apresentada a um público intelectualizado no evento do Congresso Pedagógico
do Rio de Janeiro e na imprensa local. Seu nome passou a ser citado, o que se constituiu em passo
essencial para os desdobramentos futuros, nesta área de atuação.
A forma de inserção no universo intelectual e produtivo da época se dava pela integração em
associações de classe, pela participação em exposições anuais abertas ao público, especialmente as
realizadas pelas principais instituições artísticas de Salvador - o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e
a Academia de Belas Artes -, e pelo acesso às principais páginas da imprensa. Eram estratégias de
promoção de profissionais e políticos na sociedade, tendo em vista serem os veículos possíveis para
alguém se tornar conhecido numa esfera mais ampla da sociedade, atingindo um público
diversificado – desde os analfabetos até a aristocracia letrada.
Foi o que ocorreu com Manuel Querino. Como sócio da Liga Operária, distinguiu-se no
meio operário. Como aluno e depois expositor das principais instituições educacionais abertas ao
público modesto – Liceu de Artes e ofícios da Bahia e Academia de Belas Artes -, conquistou
prêmios com medalhas de bronze, prata e ouro assegurando reconhecimento profissional.[12] Como
escritor, tornou-se jornalista, participando com artigos sobre a questão abolicionista e operária na
Gazeta da Tarde e em outros jornais, chegando a fundar dois periódicos – A Província, que circulou
ainda no império, criado em 20 de novembro de 1887 e extinto em 1888, e O Trabalho, fundado na
República em 03 de fevereiro de 1892 e extinto no mesmo ano, o que o tornou público e respeitado
politicamente, participando, ativamente, de eventos coletivos de operários e de pleitos eleitorais que
o levaram a ocupar o Conselho Municipal por duas legislaturas – 1891-1893 e 1897-1899.
A sua inserção nos diversos espaços de sociabilidade era conquistada gradualmente, a partir
do reconhecimento do seu valor profissional e intelectual. Entre os anos de 1893-1897, período em
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que esteve afastado do Conselho Municipal, Querino continuou na sua marcha de vida, buscando
garantir trabalho para a sua sobrevivência e a de sua família, bem como os prestígios político e
intelectual. A luta pela existência ficou mais ostensiva, pois possuía uma família de quatro filhos,
com o último nascido em 1894. Integrou a Guarda Nacional como 1o tenente na cidade do Salvador
e ingressou como auxiliar de desenhista na Repartição de Obras Públicas (1893). Foi nomeado
professor de desenho industrial no Colégio dos Órfãos de São Joaquim; pleiteou nomeação de
professor da cadeira de desenho linear na Academia de Belas Artes.
Querino marcou sua presença nas associações beneficentes e irmandades religiosas. Estas se
constituíam em espaços que também garantia um certo grau de importância e prestígio para a vida
dos associados. Muitos artistas e operários apareciam com freqüência, simultaneamente associados
a mais de uma Sociedade, como foi o caso de Manuel Querino: apareceu, no Império, na Liga
Operária Bahiana (1876), na Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Tororó (1884 – como
escrivão) e, na República na Sociedade Monte Pio dos Artistas (1894), no Liceu de Artes e Ofícios
(provavelmente anterior a 1893), na Sociedade Protetora dos Desvalidos (1877 e readmitido em
1894) e na Sociedade Beneficente Auxílio Fraternal (Presidente da Assembléia Geral – 1898).
Certamente, este fato, além de lhe garantir acesso aos auxílios, também lhe garantia mais prestígio e
oportunidade de reunir aliados políticos.
A sua passagem pela Secretaria foi marcada por perseguições de cunho político, o que lhe
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foi intenso para Querino. Entre frustrações e realizações, colheu diversos frutos. Publicou dois
trabalhos que revelaram a sua capacidade de pesquisador, historiógrafo, etnólogo e escritor que
denunciou, criticou, provocou política e intelectualmente os rumos da produção de conhecimentos
nas áreas de história, sociologia, antropologia e etnologia, revelando a temática popular e do negro.
Querino debruçou-se, de 1916 a 1922, sobre os estudos etnológicos e antropológicos no
universo dos costumes e cultura popular e africana. Relacionou-os ao processo da “civilização” e do
progresso no jogo que se estabeleceu entre o esquecimento e a negação das tradições colonial e
imperial e aquelas de matriz africana e ao preconceito de raça. Recuperou, a partir da oralidade e da
observação, as heranças culturais dos remanescentes africanos saídos da escravidão, que
sobreviviam às margens da sociedade, ao desenvolver um estudo descritivo e ao mesmo tempo
crítico, articulando o valor da educação, do trabalho, das crenças e ritos como referenciais que
produziram a construção da pátria. Dedicou-se a estudar e narrar a vida do povo e seus costumes,
como expectador e participante das mudanças culturais observadas nos primeiros anos do regime
republicano.
A sua literatura respondia criticamente aos valores projetados para a implantação da Bahia
“civilizada”, constatando, historicamente, a necessidade de considerar os elementos populares
representados pelos trabalhadores, africanos e afro-brasileiros como essenciais na construção da
civilização brasileira. A sua pergunta de fundo era o porque desprezar as raízes culturais e sociais
que pesaram sobremaneira na constituição da sociedade brasileira e tentar infiltrar valores europeus
que destoavam do pulsar cultural da população. Hábitos e costumes franceses foram registrados por
Querino como incompatíveis ao clima da cidade, por exemplo. Entre tantos elementos que destacou
sob a ótica do oprimido, denunciou o quanto a cultura popular estava sendo rapidamente
obscurecida sob as luzes da civilização e do progresso.
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que por ele passaram. Fez registrar o que tinha significado nas entrelinhas de uma leitura própria de
um cronista, de um artista, de um poeta que, em seu sentimento fez desabrochar uma ira, uma
vergonha, uma decepção! Nada foi salvo! O progresso matou, porém não haveria de sepultar a
memória de quem, com astúcia e agudeza, imprimiu em seus escritos a passagem da “era da
penumbra” para outra dita “das luzes da civilização”.
Como criador e intérprete, Querino enobreceu um mundo inscrito na sua memória, numa
interdependência entre o vivido e o narrado. Reconheceu-se no universo construído por quem
desejava ressuscitar o que teria ficado no esquecimento. Desta forma, Querino “[lembrou] para
continuar vivendo e tomar consciência de si”, conforme Burgos.[13]
NOTAS
[1] SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo em BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. S.P.: Ed. Da
UNESP, 1992, p. 60.
[3] Manuel Querino, A Raça Africana e seus Costumes na Bahia in Costumes Africanos no Brasil. 2. ed. Recife: Editora
Massangana, 1988, p. 22-23.
[5] Querino, As Artes na Bahia, 1. ed. 1909 e 2. ed. 1913; Artistas Bahianos, 1. ed. 1909 e 2 ed. 1911.
[7] Foot Hardman, Francisco. Cidades Errantes: representações do trabalho urbano-industrial nordestino do século XIX. Ciências
Sociais Hoje, 1988, pp. 75/76.
[8] LEITE, José Roberto Teixeira. Pintores Negros do Oitocentos. São Paulo: Edições K; Motores MWM, 1988, p. 91.
[9] Serviu no exército como inferior por um ano, um mês e dez dias – de 28 de julho de 1869 a 6 de setembro de 1870.
[11] Querino, Artistas Bahianos, 191, p. 147/148, transcrevendo a notícia da edição do Jornal de Notícias de 29 de maio de 1883.
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[13] BURGOS, Elizabeth. Meu nome é Rigoberta Menchú, apud JOSEF, Bella. “Auto)Biografia”: os territórios da Memória e da
História, p. 298.
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