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ANA BEATRIZ RIBEIRO CAMPANA

AS RELAÇÕES ENTRE O SAMBA CARIOCA E O


MOVIMENTO MODERNISTA BRASILEIRO
Considerando a complexa relação entre o Modernismo Brasileiro e a cultura
popular, é necessário tecer uma reflexão sobre a incorporação - ou não - dos
personagens e contextos dessas manifestações ao movimento modernista, bem
como sobre a concepção de arte que norteou a criação artística da esfera social
analisada. Dessa forma, busca-se compreender como ocorreram os encontros,
desencontros, exclusões, apropriações e inspirações que permearam essa relação.
Para isso, a dinâmica em que se encontrava a população negra após a
abolição da escravatura no Brasil é um tema crucial para a compreensão das
estruturas sociais e políticas da sociedade brasileira, em especial no que se refere à
cultura popular e à música. Nesse sentido, Florestan Fernandes (2008) argumentou
que os fatores estruturais que limitaram o acesso desse grupo social, recém-inserido
no contexto capitalista de trabalho, e a falta de atenção e políticas públicas que
mediassem esse processo caracterizam-se como os elementos fundamentais que
levaram à precarização das condições de vida dos negros e, por consequência, ao
aumento de comunidades habitacionais multitudinárias e miseráveis.
Assim, a inacessibilidade aos recursos econômicos e políticos, além da
segregação racial, a discriminação no mercado de trabalho, a exclusão social e a
violência policial, como resultado de um processo histórico que se perpetuou nas
relações sociais e políticas do país, passam a manifestar-se de maneira aguda nas
áreas urbanas, como é o caso das comunidades onde o samba carioca se
desenvolveu.
A história das primeiras favelas do Rio de Janeiro, advindas das reformas
urbanísticas promovidas por Pereira Passos, revela uma intrincada relação entre a
precarização das condições de vida das camadas populares e o surgimento do
samba carioca enquanto expressão cultural. Sob o olhar de Hermano Vianna (2002)
em "O Mistério do Samba", entende-se como as primeiras ocupações urbanas em
morros e encostas foram um efeito colateral das políticas de higienização do espaço
urbano, que atingiram de forma mais contundente as populações negras e mestiças.
Concomitantemente, Paulo Dias (2001) corrobora com essa interpretação ao
destacar como a segregação racial e social do Rio de Janeiro da época resultou em
espaços de convivência onde as práticas culturais de matriz africana, como o
candomblé, o semba, as umbigadas e congadas, puderam ser mantidas e
reinventadas. Nesse contexto, a troca entre tradições ibéricas, africanas, novas
manifestações oriundas dos ex-escravizados vindos da Bahia e outras regiões do
nordeste traz às comunidades cariocas a presença marcante das Tias e das grandes
festas, onde o samba de composição coletiva recebe sua gênese.
Assim, podemos afirmar que a manifestação musical analisada nasceu em
um contexto de intensa circulação cultural, no qual as tradições africanas se
mesclaram com as experiências urbanas da população marginalizada. Além disso, o
processo de construção dessa nova expressão musical se deu em um meio
marcado pela resistência à opressão, pela solidariedade comunitária e pela inovação
criativa. O resultado disso foi uma música profundamente enraizada nas práticas
populares - as danças sincopadas e os batuques do candomblé, por exemplo - e nas
vivências cotidianas, que se tornaria um dos principais símbolos culturais do Brasil.
(DIAS, 2001)
Todavia, a trajetória do samba como manifestação popular foi acompanhada
por um processo de embranquecimento, no qual suas origens negras e periféricas
foram, de certa forma, diluídas no processo de incorporação pela cultura
hegemônica e na adaptação aos padrões estéticos e culturais de uma classe branca
e financeiramente abastada. Essa integração se deu por meio de diversos
mecanismos, como a assimilação do gênero por uma indústria cultural - na época,
principalmente, fonográfica -, a exploração turística do carnaval e a valorização
destes como elementos tipicamente brasileiros, mas desprovidos de suas origens
contestadoras e de caráter socialmente expressivo. Em suma, a apropriação do
samba pelo contexto mercadológico representou um processo de domesticação e
despolitização de uma produção cultural que, em suas origens, era profundamente
conectada com as questões mais urgentes da sociedade brasileira. (VIANNA, 2002)
Nesse sentido, o autor Paulo Dias (2001) destaca a tensão entre a cultura
popular e a elite intelectual e artística da época, que muitas vezes olhava para o
samba com preconceito e desdém. Segundo o autor, essa elite costumava
considerar o samba como uma manifestação cultural inferior e sem valor artístico, o
que gerava um conflito entre a cultura popular e a cultura erudita. Além disso, Dias
também destaca que muitos sambistas, em resposta a essa marginalização,
passaram a se organizar em escolas de samba e a utilizar deste como uma forma de
afirmar sua identidade e resistir à opressão cultural.
Contudo, a ótica da elite brasileira em relação ao samba sofreu
transformações significativas ao longo do tempo. A princípio, essa expressão
artística era considerada como um desdobramento cultural estigmatizado pela
associação com a malandragem, o que culminou em uma perseguição constante
pelas forças policiais (VIANNA, 2002). Entretanto, como o autor aponta, a percepção
do samba sofreu uma metamorfose quando este foi absorvido pelo mercado e
convertido pela indústria cultural em uma nova formatação agradável ao paladar da
elite, a fim de ser transformado na principal expressão musical da cultura brasileira.
Tal processo é bem evidenciado no escrito de Vianna:
“Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e enclausurado nos
morros cariocas e nas "camadas populares". Num segundo momento, os
sambistas, conquistando o carnaval e as rádios, passariam a simbolizar a
cultura brasileira em sua totalidade, [...]". (VIANNA, 2002. pág 28)
Apesar do crescente interesse pelo universo cultural popular, o autor
evidencia o olhar exótico que permeia não somente o samba, mas todo o contexto
que o envolvia. Contudo, ainda que o fascínio pelo samba fosse manifesto, as
classes mais abastadas permaneciam alheias e distantes da realidade que
circundava a música e seus compositores.
Consoante à narrativa, no caso do emblemático sambista Sinhô, é patente a
ambiguidade na recepção de sua obra pela elite brasileira. Em verdade, embora o
artista tenha sido saudado por figuras proeminentes da literatura como Manuel
Bandeira, que o elegeu como o "traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas,
a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana" (BANDEIRA, 1937
apud VIANNA, 2002, p. 118), é irrefragável que se manteve afastado do círculo
social de notáveis que se compraziam em apreciar sua música, à revelia do contexto
social em que a mesma estava situado.
Em uma perspectiva com enfoque no Modernismo, entende-se que a relação
do movimento com o samba se estabeleceu por meio de um processo similar ao
apresentado. O interesse manifesto dos modernistas pela tradição cultural popular,
visando encontrar o autenticamente nacional e brasileiro, passou a nutrir-se, tanto
literal como figurativamente, do que as camadas populares possuíam como
expressões culturais. Nesse sentido, autores como Anita Malfatti se engajaram em
aprender a preparar a feijoada, bem como apreciar bebidas alcoólicas de produção
nacional (VIANNA, 2002). Mário de Andrade, por sua vez, enfatizou em diversas
ocasiões a importância do samba para o projeto modernista e, por extensão, para a
sociedade brasileira como um todo. (KEHL, 2012)
Em sua essência, o Modernismo Brasileiro tinha como objetivo principal
romper com os padrões estéticos e culturais vigentes, buscando uma linguagem
própria e autenticamente brasileira. Nesse sentido, segundo o autor Renato Ortiz,
em seu livro “A Moderna Tradição Brasileira”, o movimento pode ser compreendido
não só como uma reflexão estética-cultural, mas também como um projeto
nacionalista em busca de uma nova identidade para o Brasil. No entanto, essa
identidade foi formada a partir de uma apropriação seletiva da cultura popular, que
reproduziu as hierarquias e as desigualdades sociais vigentes na sociedade.
Ademais, o Modernismo buscou romper com o passado e se desvincular do sistema
vigente, mas manteve estruturas de poder excludentes, deixando de lado os grupos
sociais marginalizados.
Nesse sentido, entende-se que a relação entre o modernismo brasileiro e o
samba carioca se deu de forma complexa e multifacetada, envolvendo diálogos,
tensões e desavenças ao longo do tempo. Apesar das tensões, o samba carioca
acabou sendo incorporado pelo modernismo - a título de exemplo, salienta-se
Villa-lobos, compositor branco e advindo de uma família abastada, que torna-se um
sambista renomado - e se tornou uma das principais expressões da cultura
brasileira no século XX. Vianna (2002) destaca que essa incorporação se deu de
forma seletiva, privilegiando elementos do samba considerados convenientes ao
grupo de intelectuais brancos e de uma classe social divergente a da maioria dos
sambistas. Assim, embora tenha havido momentos de diálogo, as relações entre o
Modernismo e a cultura popular foram marcadas por processos de apropriação,
exclusão e manipulação.
REFERÊNCIAS

● Dias, Paulo. "A outra festa negra". In: Reis, João José, and Franco, Sérgio.
Festa: cultura & sociabilidade na América portuguesa. Vol. 2. EDUSP, 2001,
pp. 859-887.

● Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol 1.


São Paulo: Editora Globo, 2008.

● Kehl, Maria Rita. A preguiça na cadência do samba. 2012. Arte &


Pensamento, Disponível em:
https://artepensamento.ims.com.br/item/a-preguica-na-cadencia-do-samba/.
Acesso em: 06 abr. 2023.

● Motta, Nelson. Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais.


Editora Objetiva, 2000.

● Neto, Lira. Uma História do Samba, Volume 1. Companhia das Letras, 2017.

● Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira. Editora Brasiliense, 1995.

● Vianna, Hermano. O Mistério do Samba (4a ed.). Jorge Zahar Editor; Editora
UFRJ. 1995.

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