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DOI: 10.1590/0103-11042022E602
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 6, P. 25-28, Dez 2022
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deve servir de base para a procura de respostas (Abrasco) marcou o sentido do que seria daí
coletivas na perspectiva de dar maior solidez para frente chamado de saúde coletiva. Nas
e consequência aos achados da medicina e das palavras da autora:
ciências biológicas. Neste sentido, a incorpo-
ração do conhecimento gerado pelas ciências Em lugar das tradicionais dicotomias – saúde
sociais deve estar presente em todas as etapas pública/assistência médica; medicina curati-
desse processo de construção. Essa mesma va/medicina preventiva; e mesmo indivíduo/
condição se estende também para as questões sociedade –, busca-se uma nova compreensão
ambientais, da informação e comunicação. na qual a perspectiva interdisciplinar e o debate
É interessante o reconhecimento da autora político em torno de temas como universalida-
acerca das importantes contribuições para o de, equidade, democracia, cidadania e subjeti-
debate sobre interdisciplinaridade e trans- vidade aparecem como questões centrais1(12).
disciplinaridade na saúde coletiva. É bem
escolhido o destaque dado à obra de Naomar Não há dúvida de que esse marco foi im-
Almeida Filho, autor que dispõe de vasta pro- portante para consolidar o campo e para di-
dução no campo da epidemiologia e que tem recionar a orientação dos programas de saúde
sido um defensor incansável da integração dos coletiva que, desde a criação da Abrasco, têm
diversos campos do saber com as bases coleti- se multiplicado por todo o País, mantendo
vas. Toda essa reflexão lhe permitiu pensar a uma coerência assegurada pelo título e tudo
construção intertransdisciplinar tão necessária que a ele se conecta. Contudo, como é bem
para a geração de soluções integradoras para desenvolvido por Nísia, nessa formação do
o enfrentamento da pandemia: campo, “o papel da interdisciplinaridade, em
sua constituição e desenvolvimento, está longe
Nesse contexto atual de intensa disputa retó- de haver um consenso”1(12–13).
rica e renhida luta teórica, a singularidade e Seria natural que, por força do trabalho
complexidade da atual pandemia da Covid-19 interdisciplinar, uma agenda própria tendo
sem dúvida representa rica oportunidade para este como pressuposto daria sustentação para
realizar de modo efetivo a construção inter- o enfrentamento da pandemia de Covid-19,
transdisciplinar tão necessária para a geração como já havia acontecido no País em relação
de soluções integradoras, pertinentes e cui- à epidemia da Aids e de outras mais recen-
dadosas ante os problemas complexos que tes como a de zika, as quais suscitaram uma
emergem nos diversos planos e dimensões potente produção de pesquisas disciplinares
dessa grave crise sanitária2. e interdisciplinares. É marcante o quanto as
revistas nacionais da área tiveram que lidar
Com essa construção teórica, Almeida-Filho3 com a oferta volumosa de artigos durante
nos traz material para a reflexão sobre o pro- o período pandêmico. Seria interessante,
cesso de enfrentamento da pandemia no Brasil contudo, analisar o quanto esse esforço real-
e o compara ao que foi feito em outros países. mente resultou em uma real integração entre
Os possíveis caminhos elencados por Nísia, as áreas e se, como bem alerta Nísia, com uma
de fato, inauguram um diálogo inovador de incorporação das ciências sociais indo além da
como fazer ciência no campo da saúde coletiva. visão das epidemias apenas como processos
Como ela própria coloca, a definição da área biológicos, não incorporando todo o processo
no Brasil se deu mediante um processo de social dinâmico e intrínseco de cada situação
negociação e “formação de consensos”1(12), sanitária específica.
tendo o movimento da reforma sanitária Ainda relevante é a referência feita no
como protagonista do processo. Criada em artigo sobre a condição de vulnerabilidade
1979, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva global que favorece a disseminação de novas
ou antigas doenças infecciosas, a partir do uso a população, e a outras epidemias que possi-
predatório de recursos naturais acentuado velmente virão.
pela densidade e mobilidade populacional,
criando um campo fértil para o aparecimento De forma brilhante, a conclusão do artigo é
de pandemias. Nessas condições, como afirma um apelo de que, para superarmos a crise atual,
a autora, torna-se “praticamente impossível temos que estar preparados para futuras emer-
dissociar as dimensões biológica e social”1(14), gências sanitárias. Nesse sentido, é necessário
o que implica que, para além dos campos espe- fortalecer as pesquisas interdisciplinares que
cíficos do conhecimento, é preciso ultrapassar se dediquem, em especial, aos sistemas natu-
as barreiras de cada disciplina para entender o rais e sociais. Nessa lógica, entende que cabe
contexto complexo ambiental e social. Nesses à saúde coletiva papel destacado para definir
aspectos, os dois conceitos sociológicos desta- uma agenda científica e proposta de políticas
cados, e muito bem desenvolvidos pela autora, públicas advindas da interdisciplinaridade.
são relevantes: o do fato social total proposto Em suas palavras:
por Mauss e o de interdependência apontado
por Elias. Nessa lógica, a pandemia trouxe Tal esforço deve valorizar a diversidade de
como questão central o estudo das desigual- conhecimentos teóricos e tradições discipli-
dades sociais e a necessidade de explorar os nares, mas, ao mesmo tempo, desafiá-los a
conceitos de ‘risco’ e ‘vulnerabilidade’. um empreendimento mais amplo; uma agenda
Ainda de forma clara, o texto destaca que científica coerente com as grandes questões
a pandemia expõe a relação entre os Estados do presente e de um futuro com ainda um grau
Nacionais, o que, no Brasil, fez com que o maior de incertezas1(21).
Complexo Econômico e Industrial da Saúde
se tornasse parte constitutiva e crucial para Pensar uma agenda interdisciplinar para
um desenvolvimento socioeconômico susten- o controle da Covid-19 significa lutar por um
tado, o que exige, segundo a autora: “combinar mundo menos desigual com justiça e cida-
poder de compra do Estado, capacidade de dania. E aqui eu acrescentaria que a saúde
transferência tecnológica e acesso aos pro- coletiva brasileira, por seu compromisso com
dutos por meio do Sistema Único de Saúde a defesa do direito universal à saúde, tem um
(SUS)”1(18). Houve, de fato, uma rápida resposta acúmulo político grande para explorar uma
por parte da ciência no desenvolvimento de interdisciplinaridade que nos traga possibili-
vacinas contra a Covid-19. No entanto, isto dades novas de integração de conhecimento.
não foi acompanhado de uma distribuição Esse movimento pode fazer muita diferença
igualitária entre países. Como bem destacado neste contexto político tão adverso em que
no texto, e remetendo a Carlos Gadelha4: se encontra o País e servir de exemplo para
outras áreas do conhecimento.
[...] a ativação e priorização de um complexo
médico industrial da saúde, adequadamente
desenhado e implementado, pode ser parte Colaboradora
da solução, trazendo dinamismo econômico e
melhorando a capacidade de resposta a pro- Silva GA (0000-0001-8734-2799)* é responsá-
blemas sanitários existentes, que prejudicam vel pela elaboração do manuscrito. s
Referências