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INÊS249
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CARTA AO LEITOR
NELSON ALMEIDA/AFP
A BELEZA
INÊS249
DE VIVER MAIS
1|4
A VIDA ETERNA é um desejo irrefreável do ser huma-
no. Há 2 000 anos, o imperador Qin Shi Huang, o pri-
meiro da dinastia Qin, na China, tentou alcançar a imor-
talidade ao ingerir pílulas de mercúrio. Ironicamente,
morreu envenenado. No século XVI, o conquistador es-
panhol Juan Ponce de León (1460-1521) navegou em su-
cessivas expedições que buscavam a fonte da juventude.
Como se sabe, ele não a encontrou. Nos últimos 100
anos, contudo, com a descoberta da penicilina, a melho-
ra no saneamento básico e os espetaculares avanços da
medicina e da alimentação, houve saltos extraordiná-
rios. Em 1900, a expectativa média de vida nos Estados
Unidos era de 47 anos. Hoje é de 78 — no Brasil, está em
77. O país mais longevo é o Japão, com expectativa de
84 anos — em 2100, chegará a 94 anos. Em um século,
o ganho global foi de trinta anos.
Pelo ritmo atual do desenvolvimento da medicina do
metabolismo, não seria espantoso que, no decorrer do sé-
culo XXI, a sobrevivência com bem-estar fosse acrescida
de mais sessenta anos — o que levaria a idade média para
bem mais de 100 anos. Isso é possível? Do ponto de vista
puramente biológico, há um limite quase intransponível
para o horizonte final da existência (fala-se em 120 anos).
Quando se põem na equação a nanotecnologia e a possi-
bilidade real de transferir certos processos bioquímicos
do corpo humano para microscópicos engenhos digitais
implantáveis, abrem-se fronteiras hoje inatingíveis.
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Mas há algo muito palpável — a possibilidade de vi-
ver mais e melhor, com amigos, dignidade e alegria. Es-
sa condição é tema da reportagem de VEJA que começa
na pág. 60. A partir de recentes dados demográficos e
de minúcias dos progressos científicos, o texto faz um
detalhado voo em torno de um assunto fascinante — e
que ganha relevo por já não ser apenas um olhar para o
futuro. É o aqui e agora, a oportunidade da maturidade
sã. Como mostra uma série de muito sucesso na Netflix,
Como Viver Até os 100 — Os Segredos das Zonas Azuis,
já existem hoje grupos de pessoas que ultrapassam um
século de vida e conseguem manter a agilidade mental e
física, o sonho ancestral da humanidade.
Vale lembrar, como antiexemplo, de uma galeria de
personagens pouco conhecida de As Viagens de Gulli-
ver, clássico da literatura do irlandês Jonathan Swift, de
1726. São os struldbrugs, ou imortais. Quando um dos
anfitriões de Gulliver pede a ele que imagine como se-
ria a vida de um struldbrug, o aventureiro inventa uma
narrativa maravilhosa. “Que espetáculo nobre e encan-
tador não seria ver com os seus próprios olhos as deca-
dências e as revoluções dos impérios, a face da Terra
renovada, as cidades soberbas transformadas em cida-
des burguesas.” Ao fim da prédica de Gulliver, uma das
autoridades pede a palavra e faz o relato real, e amargo,
do cotidiano da turma que não morre. Revela que, aos
80 anos, eles são isolados em um lugar chamado hospi-
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tal dos imortais. “Quando, porém, atingem 90, é ainda
pior: todos os dentes e cabelos caem; eles perdem o pa-
ladar e bebem e comem sem prazer algum; perdem a
noção das coisas mais fáceis de reter, e esquecem o no-
me dos amigos e às vezes o próprio.” Viram párias. São
imortais biológicos, mas já morreram para o convívio
social. A ciência e as pesquisas mostram que não preci-
sa (e não deve) ser assim — ao menos para aqueles que
procuram se cuidar, seguem hábitos alimentares saudá-
veis e permanecem ativos na busca de uma longevidade
produtiva e feliz. ƒ
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ENTREVISTA MÓNICA BALTODANO
ARQUIVO PESSOAL
FALTA VEEMÊNCIA
Ex-líder sandinista critica setores da esquerda e
cobra uma condenação contundente do governo
brasileiro em relação à Nicarágua, uma ditadura,
segundo ela, violenta e corrupta
LEONARDO CALDAS
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MÓNICA BALTODANO foi uma das três mulheres nomea-
das comandantes da revolução sandinista, que, em 1979, der-
rubou a ditadura de Anastasio Somoza na Nicarágua. Ex-guer-
rilheira, ela ascendeu ao poder ao lado de Daniel Ortega, que
agora — em sua segunda passagem pela Presidência, iniciada
no longínquo ano de 2007 — é acusado pela antiga compa-
nheira de luta de comandar um regime ditatorial, transformar
o país numa imensa prisão e perseguir adversários políticos,
muitos dos quais sujeitos a torturas e estupros. Em razão desse
quadro, Mónica é crítica da postura do presidente Lula, que
conheceu quando ele ainda era sindicalista, e de boa parte da
esquerda brasileira e latino-americana, que, por razões ideoló-
gicas, não repreendem de forma veemente Ortega nem exigem
o exercício pleno da democracia na Nicarágua. Ela chega a elo-
giar a postura de Jair Bolsonaro enquanto faz ressalvas à pos-
tura “ambígua” do petista. A seguir os principais trechos da
entrevista da ex-comandante, que, como outros opositores de
Ortega, teve a nacionalidade cassada, os bens confiscados e se
viu obrigada a morar em outro país (Costa Rica).
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truindo um regime em que o poder se tornará hereditário,
passando para sua esposa e filhos, formando assim uma di-
nastia. Mas também há algumas diferenças importantes.
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torturas, de estupros de homens e mulheres. Práticas como
arrancar as unhas das pessoas foram registradas. Relatos
também mencionam estupros de meninos e meninas, nos
quais foram introduzidos tubos metálicos de fuzis. Há, in-
clusive, um herói da luta contra Somoza que morreu na pri-
são e que era amigo de Daniel Ortega. Não deram nenhuma
explicação sobre como ele havia morrido na prisão.
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Ortega dispor de quase a mesma quantidade de recursos que
todas as exportações da Nicarágua forneciam, sem passar pe-
lo Orçamento da República. Mas ele utilizou esse dinheiro pa-
ra enriquecer a sua família e enriquecer pessoas próximas a
ele. Hoje em dia ele tem mais dificuldade porque não dispõe
mais do empréstimo venezuelano e já não entram os mesmos
recursos de antes, embora a corrupção tenha se multiplicado.
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ma ditatorial. Há setores de esquerda que condenaram es-
ses crimes e essas violações. Mas há setores, inclusive den-
tro do próprio PT, que não agem assim e fazem parte do es-
forço de repetir a narrativa mentirosa que justifica Ortega,
fechando os olhos para o que está acontecendo. Há posições
como a de Gabriel Boric, que não deixa de falar desse tema
em distintos espaços, e há posições antigas, como as que
dão respaldo a Venezuela e Cuba. Lula estará nessa segunda
situação enquanto ele não romper claramente com o regime
de Ortega. Nesse ponto, Jair Bolsonaro contribuiu mais.
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externas. O que domina hoje a Nicarágua é o “orteguismo”,
que representa um desvio significativo desses princípios.
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IMAGEM DA SEMANA INÊS249
PASSANDO A MOTOSSERRA
LUIS ROBAYO/AFP
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Milei para mostrar seu ímpeto de botar abaixo tudo o que
é identificado como status quo. A lista é extensa — vai de
impostos, gastos do governo e políticos chorros (ladrões)
ao sistema público de educação, o Banco Central e a
própria moeda do país, que ele quer trocar pelo dólar.
“Viva a liberdade, carajo!”, bradou em meio a apoiadores,
que já sabem: o ápice de suas aparições é quando agita a
tal máquina sobre a cabeça. Os atos são particularmente
efusivos nas províncias, já que o interior conservador e
agrário foi quem assegurou as votações mais expressivas
à extrema direita nas prévias de agosto. Todas as
pesquisas de opinião vêm colocando Milei na dianteira, à
frente do postulante peronista, o atual ministro da
Economia, Sergio Massa, e da representante da ala
macrista, Patricia Bullrich — isso tanto no primeiro turno
da eleição, em 22 de outubro, como numa eventual
segunda rodada, em novembro. Conhecido por exóticas
idiossincrasias (fala com um cão morto por meio de
médiuns, é adepto do sexo tântrico), Milei e seu “plano
motosserra” ainda não esbarraram com nenhum lance de
marketing à altura no campo adversário. Com a inflação
em disparada e a pobreza se alastrando, os argentinos
parecem dispostos a apostar no político demolidor. Resta
saber o que ele pretende fazer para reconstruir uma
nação sugada por crises. ƒ
Ricardo Ferraz
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CONVERSA PEDRO PARRA
“CLIMA JÁ AFETA
O TERROIR”
Consultor de vinícolas em vários países, o chileno diz
que o aquecimento global pode transformar o cenário
do setor, favorecendo a produção em novas regiões
INSTAGRAM @ACMEWINE
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As mudanças climáticas já estão afetando a produção
de vinhos? Estão afetando muito. Os efeitos começaram
a ser percebidos, sem dúvida, em 2015. Sabíamos que ha-
via algo diferente, mas não sabíamos ainda a extensão dos
efeitos. Desde então, passaram-se oito anos, e os proble-
mas se acumulam. Hoje, vivemos uma época muito atribu-
lada, mas também de oportunidades. Produtores que fo-
ram muito famosos podem não continuar tão famosos.
E produtores não tão conhecidos hoje em dia podem co-
meçar a ser em breve.
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ter um som próprio, com tensão, complexidade e equilíbrio.
Quando trabalho com vinho, cada garrafa deve ter comple-
xidade, equilíbrio, tensão. São as mesmas palavras.
André Sollitto
3|3
DATAS
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Seria difícil fazer frente à inauguração, em 1984, do
sambódromo desenhado por Oscar Niemeyer — a Mar-
quês de Sapucaí emoldurada por concreto, que substi-
tuía a tradição da Avenida Presidente Vargas. E então,
no início de março, a Mangueira entrou na pista ao
amanhecer da segunda noite, com o enredo Yes, Nós
Temos Braguinha, em homenagem ao compositor de
clássicos como As Pastorinhas e Chiquita Bacana.
“Carnaval! O povo vibra de alegria / ao cantar a tua
poesia / será que hoje tudo já mudou? / O Arlequim tão
sonhador? / Chora Pierrô, chora se tua Colombina foi
embora.” O bonito enredo acordou as arquibancadas,
mas o espantoso mesmo, à luz do dia, foi o estilo barro-
co dos carros alegóricos imaginados pelo carnavalesco
Max Lopes, campeão pela primeira vez — a verde e
rosa não ganhava desde 1973.
Não por acaso, dado o esfuziante trabalho (somado a
um ineditismo — quando as regras de contagem de
tempo eram outras — de as alas terem chegado à apo-
teose para retornar na “contramão”), Max, cuja criativi-
dade só era menor que seus bigodes, foi logo apelidado
de “o mago das cores”. Ele voltaria a vencer pela Impe-
ratriz Leopoldinense, em 1989 (Liberdade, Liberdade!
Abra as Asas sobre Nós), e novamente pela Mangueira
(Brasil com Z É pra Cabra da Peste, Brasil com S é Na-
ção do Nordeste), em 2002. Morreu em 24 de setembro,
aos 74 anos, em decorrência de um câncer na próstata.
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ITALIAN CARABINIERI PRESS OFFICE/AFP
O PODEROSO CHEFÃO
O mafioso Matteo Messina Denaro é acusado de ter parti-
cipado de alguns dos mais hediondos crimes da Cosa Nostra,
a máfia italiana nascida na Sicília. Em 2002, ele foi condena-
do e sentenciado à prisão perpétua por ter matado pessoal-
mente ou ordenado o assassinato de dezenas de pessoas.
Apelidado de “Diabolik” ou “U Siccu”, o Magro, em dialeto
siciliano, Denaro prosperou nos negócios tortos alimentados
pelo pai, criador de um império ilícito na indústria de coleta
de lixo, energia eólica e varejo. Ele passou mais de trinta anos
foragido, até ser preso em janeiro deste ano. Morreu em 25
de setembro, aos 61 anos, em L’Aquila, de câncer no cólon.
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A POLÍTICA COMO ARTE
No sistema parlamentarista que rege a Itália, o presidente
sempre apareceu como personagem de presépio, sem po-
der. Não foi o caso de Giorgio Napolitano, que assumiu a
Presidência de 2006 a 2015. Ele fez história por ter sido o
primeiro a ser reeleito ao cargo, mas representou muito
mais. Formado, na juventude, pelo Partido Comunista, na
maturidade ajudou a fundar uma outra agremiação, os De-
mocratas de Esquerda. Afeito a muita conversa e reconci-
liações, tinha um jeitão pacato. Definido pelo jornal Cor-
riere della Sera como um “anglo-saxão num país de sangue
quente”, lidou com a grave crise da dívida de 2011 — e, si-
multaneamente, em gesto rápido e preciso, colocou Mario
Monti à frente de um governo de tecnocratas para substi-
tuir Silvio Berlusconi, envolvido em um de seus sucessivos
escândalos. Disse o papa Francisco, que esteve no velório:
“Lembro com gratidão das reuniões pessoais que tive com
ele, durante as quais apreciei sua humanidade e visão ao
tomar escolhas importantes com reti-
dão, especialmente em momentos de-
licados para a vida do país”. Morreu
em 22 de setembro, aos 98 anos. ƒ
PATRICK HERTZOG/AFP
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FERNANDO SCHÜLER
A ESCOLHA
DE CADA UM
A MINISTRA Rosa Weber fez um discurso na semana
dizendo que a internet foi ocupada por “agentes do ódio”.
Na sua visão, aquele espaço, que deveria ser uma arena
democrática, acabou nas mãos de pessoas perigosas, dis-
postas a “manipular o pensamento”, enquanto o “jorna-
lismo profissional” luta para defender a verdade. Faltou
enaltecer o papel do Estado, funcionando como uma es-
pécie de grande maestro do debate na sociedade. Se a mi-
nistra estiver certa, o Brasil está em um ótimo caminho.
Foi correto generalizar a censura prévia, de modo a ma-
tar a desinformação mesmo antes que ela aconteça, e tu-
do que vimos no país por estes anos. De minha parte,
suspeito que as coisas sejam bem mais complicadas. Mo-
cinhos e bandidos trocam de papel a todo momento, o
jornalismo profissional está longe de ser o guardião da
verdade e, pasmem, os juízes não são infalíveis. Infeliz-
mente, o ódio digital não é apenas a ação de alguns
“agentes”, e o preconceito e a raiva que vêm de muitos
“lados” da sociedade, como bem vimos nesta semana. E
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que tudo remete à natureza da revolução tecnológica, que
marca a nossa época e vem dando o tom do debate públi-
co em nossas democracias.
Em algum momento, de fato, se imaginou que a internet
promoveria a “ágora global”, aproximando as pessoas, mas
a verdade é que isso há muito se perdeu. Minha hipótese é
que isto aconteceu em algum momento em torno da virada
para a década de 2010. Há muitos sinais nessa direção. Um
deles é o declínio da saúde mental, em especial dos adoles-
centes, na última década, que vem sintomaticamente junto
com a generalização do uso das redes sociais. Luca Braghie-
ri e outros pesquisadores publicaram um amplo estudo, na
American Economic Review, mostrando o impacto negativo
da popularização do Facebook nas universidades america-
nas. O estudo relata 83% de aumento de casos de depressão
entre jovens de 18 a 23 anos, entre 2008 e 2018. É o mesmo
que mostra o Centro de Controle e Prevenção de Doenças,
dos Estados Unidos, com 57% de aumento dos sentimentos
de “tristeza” e “desesperança” entre meninas adolescentes.
O Brasil não está distante disso, com um aumento de 81%
na taxa de suicídios entre adolescentes.
Também parte importante da mídia, na última déca-
da, migrou para um inédito “universo de negatividade”.
Foi o que o cientista de dados David Rozado, da Nova Ze-
lândia, encontrou analisando 23 milhões de manchetes
de 47 veículos de mídia pop americanos, entre 2000 e
2019. Até 2010, ele diz, “há uma tênue dianteira dos sen-
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FRUSTRAÇÃO A tecnologia da internet: ágora global
que ainda não funcionou
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“Uma geringonça deu
liberdade para as
pessoas mostrarem
o que são”
as redes sociais. O mundo pode não ter piorado em nada,
mas a nossa percepção, sim. E talvez venha daí um bom
pedaço do mau humor contemporâneo.
Vale o mesmo para a radicalização política e retórica
em torno da “justiça social”. O cientista político Zach Gol-
dberg pesquisou a frequência do uso das expressões “racis-
mo ou racismo estrutural”, ou “sistêmico”, em quatro dos
maiores jornais americanos (The New York Times,
Washington Post, Los Angeles Times e The Wall Street
Journal), dos anos 70 até hoje. O mesmo padrão se repete.
Nos primeiros trinta anos da mostra, a frequência é basica-
mente estável. A partir de 2010, há um crescimento de
700% a 1 000% no uso desses termos. “A mídia foi incor-
porando a agenda woke”, diz Goldberg. Os sintomas disso
todos conhecemos: generalização dos “cancelamentos”, as
“microagressões”, as guerras culturais opondo “identitá-
rios” e “conservadores”. E todo mal-estar do qual muitos já
estão cansados.
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Vai aí um paradoxo de nossa época. Ao mesmo tempo
que avançamos na sociedade de direitos, tendemos a perce-
ber o mundo como se estivéssemos deslizando à beira de
um abismo. De onde veio tudo isso? Não há uma explicação
simples, mas certo consenso que a rápida expansão das re-
des sociais e sua cultura tóxica têm muito a ver com isso.
Com alguns detalhes especialmente marcantes. Em 2009, o
Twitter contratou Chris Wetherel, um jovem roqueiro e pro-
gramador, para desenvolver uma nova ferramenta: o botão
de retweet. No início, diz ele, achou ótima. Pensou que seria
uma boa maneira de “dar voz a comunidades sub-represen-
tadas”. Depois mudou de ideia. A ferramenta logo se tornou
a forma mais comum de assédio digital e de disseminação
de notícias “sem pensar duas vezes”. “Colocamos uma arma
nas mãos de uma criança de 4 anos”, diz o bom roqueiro ho-
je em dia. A culpa não é dele, claro, e é possível pensar que
sua pequena geringonça deu apenas mais liberdade para que
as pessoas mostrem o que são de verdade.
Há muita coisa perigosa e fascinante nisso tudo. Uma de-
las é que estamos todos metidos em um grande “experimen-
to” que veio para ficar. É evidente que há muitos “agentes do
ódio”, como diz a ministra Weber, mas a verdade é que o
problema é muito mais amplo. Uma pesquisa mostrou que
os “radicais”, no espectro político, somam 14% da socieda-
de, mas conseguem dar o tom do debate digital. E que o
ecossistema que produzem condiciona diretamente a “mídia
profissional”. Por vezes pela tentação da ideologia, por vezes
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apenas como estratégia de mercado. Afora isso, é algo cons-
trangedor perceber como, mesmo nas entrelinhas do discur-
so de nossa ministra, os “agentes do ódio” não por acaso
costumam ser aqueles cujas visões de mundo não comparti-
lhamos. Para saber disso, basta quinze minutos circulando
por uma rede social no Brasil de hoje.
Não recomendo que ninguém faça isso. Sugiro, aliás, que
todos desliguem um pouco. Somos filhos de uma época de
ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma so-
ciedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um po-
der inédito para revelar quem somos. Uma mecânica que
ninguém pode mudar, mas que nos permite uma tomada de
posição individual. A decisão sobre como cada um de nós
irá se comportar diante disso. Podemos entrar no jogo. Po-
demos nos “algoritmizar” e depois esperar que o Estado as-
pire o pó da “desordem informacional”, em regra feita das
ideias que não suportamos. Mas podemos ser melhores do
que isso. Cada um pode escolher. E na mágica dessa escolha
exercer o poder irredutível que cada um possui para definir
a si mesmo, em última instância. ƒ
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SOBEDESCE
SOBE
MENSALIDADE ESCOLAR
A maior parte das escolas
particulares vai praticar um
ajuste médio de 10% na taxa em
2023, o dobro da inflação oficial
prevista para 2022.
BYD
Recém-chegada ao Brasil, a
montadora chinesa vem batendo
recordes de vendas e foi
responsável em agosto por mais
da metade dos veículos elétricos
comercializados no país.
ROTEIRISTAS
DE HOLLYWOOD
Os profissionais encerraram a
greve após os estúdios
aceitarem reivindicações como
o aumento de remuneração.
1|2
DESCE
ANIELLE FRANCO
A ministra utilizou de forma
desnecessária um avião da FAB
e foi obrigada a demitir uma
assessora flamenguista que
debochou dos torcedores rivais
na final da Copa do Brasil.
LUISA MELL
A ativista terá de pagar uma
indenização de 20 000 reais
por danos morais à tutora de
um cão que estava com câncer
e não sofria maus-tratos.
CARGILL
A multinacional foi condenada
por práticas de trabalho infantil
e análogo à escravidão em
plantações de cacau de seus
fornecedores. Cabe recurso.
2|2
VEJA ESSA
FINE ART IMAGES/ALBUM/FOTOARENA
1|4
“Faço questão de sempre dizer isso: o
Exército não tem que ser enaltecido por
cumprir a lei. É obrigação. Não tem mérito.”
TOMÁS PAIVA, comandante do Exército
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“Meus pais estão casados
há 50 anos e eu realmente queria
que isso tivesse acontecido comigo.”
GISELE BÜNDCHEN, a respeito do divórcio de Tom
Brady, o supercampeão da NFL, com quem tem dois filhos
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“Existe um tabu
que a família tem
que ser perfeita.
E a minha
família não é
perfeita, ela é
como a de todo
mundo.”
CLEO PIRES,
depois de ter
dito que seu
pai, Fábio Jr.
“foi péssimo
para sua mãe”,
a atriz Gloria
Pires
INSTAGRAM @CLEOPIRES09
4|4
RADAR
ROBSON BONIN
1|6
A outra, por causa do risco disse que quer ficar quieto”,
de golpe. É reflexo do que diz um general.
houve no governo anterior.”
Acaba neste ano
Otimista, apesar de tudo A avaliação, na caserna, é
O general avalia, no entanto, que Alexandre de Moraes, do
que a instituição segue forte STF, está próximo de con-
na sociedade: “Estamos há cluir as investigações contra
meses nas manchetes, so- o bolsonarismo golpista.
frendo desgaste, e ainda as-
sim caiu pouco a popularida- Mais leve
de nas pesquisas. Perto de Moraes, diz um grande amigo
tudo o que houve, foi pouco”. dele, começou a reduzir o rit-
mo da cruzada judicial contra
Nada de provas o bolsonarismo: “Está voltan-
O comandante diz que não do para a normalidade”.
há registro, no Exército,
da reunião do golpe dela- Inventário do golpe
tada por Mauro Cid: “É a Mensagens de celular de pe-
Presidência que deveria lo menos quatro ex-ministros
ter documentado”. de Bolsonaro vão mostrar,
em breve, novos detalhes do
Me deixa golpismo no governo.
Freire Gomes, o chefe do
Exército na tal reunião do Dois lados da história
golpe, pediu aos colegas Nas semanas f inais de
que evitem procurá-lo. “Ele 2022, três ministros troca-
2|6
ram mensagens de celular Naval de Aratu passa por
temendo um golpe e mos- um banho de loja de quase
trando contrarie dade 3 milhões de reais em suas
diante da postura de Bol- instalações privativas.
sonaro de não reconhecer
a vitória de Lula. Um Tudo encaminhado
quarto ministro, conheci- Flávio Dino conversou
do pelo jeito exótico, pe- duas horas com Lula nesta
dia o golpe. semana. A um auxiliar, dis-
se que nem precisou falar
Auxílio periculosidade de STF. “Só não será minis-
O segundo tenente do tro se não quiser”, diz um
Exército Cristiano Mesqui- auxiliar palaciano.
ta assumiu recentemente
uma função de alto risco: Ocupando espaços
ajudante de ordens de... Esperando pelo ministério
Bolsonaro. de Dino, o PT acaba de co-
locar Wadih Damous na
Ninguém se entende presidência do Conselho
Além de toda a encrenca Gestor do Fundo de Defesa
na Justiça, Jair Bolsonaro de Direitos Difusos.
enfrenta crises de ciúmes
entre seus advogados. Guerra fria
Durou menos de uma se-
Férias de luxo mana o clima de união en-
Tradicional refúgio praia- tre Lula e Arthur Lira ence-
no de Lula na Bahia, a Base nado em Nova York.
3|6
Alta milhagem O piloto sumiu
Antes de ser exonerada pelo Ninguém do Ministério dos
post sobre a torcida do São Povos Indígenas procurou
Paulo, Marcelle Decothé Rodrigo Pacheco para evi-
aproveitou bem o cargo no tar a votação do marco tem-
governo: viajou a Portugal, poral no Senado. A ministra
Espanha, Colômbia, África Sonia Guajajara, por exem-
do Sul, Angola e Estados plo, passou os últimos dias
Unidos como assessora de fora do Brasil.
Anielle Franco.
Esqueletos no armário
100% alinhados A CGU achou desvios milio-
Rodrigo Pacheco e Luís Ro- nários da gestão Bolsonaro
berto Barroso voltaram a num contrato de 82 milhões
conversar nesta semana, em de reais do Ministério do
São Paulo. Vão trabalhar para Desenvolvimento Regional
aplacar a ação da oposição, para fornecimento de car-
que tenta jogar a pauta do ros-pipa no Nordeste.
Congresso contra o Supremo.
Passagem discreta
Sem braços Levantamento do STF
O Cade pode parar por falta mostra que, em quatro anos
de quórum já em novembro. de PGR, Augusto Aras le-
Quatro conselheiros estão vou à Corte 29 inquéritos.
em fim de mandato e o go- “É a força do silêncio em
verno até agora não indicou números”, ironiza um mi-
os novos nomes ao Senado. nistro do tribunal.
4|6
DIVULGAÇÃO/TSE
VOTO TSE: novas urnas eletrônicas já chegaram
a onze estados do país
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dernas já produzidas —
despachadas para onze esta-
dos. As eleições de 2024 te-
rão 220 000 aparelhos do
novo modelo.
A inocente
Sereia de novela, Isis Val-
verde postou nas redes uma
INSTAGRAM @ISISVALVERDE
6|6
BRASIL PODER
ABORTO
Deputada Priscila
Costa (PL-CE)
PELA PÁTRIA E
PELA FAMÍLIA
Tropa conservadora do Congresso reage ferozmente à
iniciativa do STF de colocar em pauta temas como aborto
e drogas, em movimento que volta a mobilizar a direita
em torno de bandeiras importantes para manter acesa a
chama dessa força política no pós-bolsonarismo
VICTORIA BECHARA E VALMAR HUPSEL FILHO
1 | 17
CRUZADA MORAL
Direita usa temas polêmicos em ofensiva
no Congresso e nas redes sociais
BANHEIRO UNISSEX
NAS ESCOLAS
Senador Sergio Moro
(União-PR)
CASAMENTO GAY
Deputado Pastor
Eurico (PL-PE)
REPRODUÇÃO TV SENADO; ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
2 | 17
MACONHA
3 | 17
Deputado Osmar Terra (MDB-RS)
4 | 17
FRENTES DE BATALHA
As ações de grupos conservadores contra
o que consideram agenda progressista
O F E N S I VA L E G I S L AT I VA
MOBILIZAÇÃO NA RUA
C O N S U LT A P O P U L A R
O ex-ministro bolsonarista Rogério Marinho
(PL-RN), líder da oposição no Senado, conseguiu
as assinaturas necessárias para fazer tramitar
proposta de plebiscito nacional sobre o aborto
5 | 17
BRIGA NA JUSTIÇA
A Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e
em Defesa da Vida entrou com um mandado
de segurança para impedir o julgamento da
descriminalização do aborto no STF
CA M PA N H A
TURBINADA
Parlamentares de direita impulsionam
conteúdos pagos nas redes sociais com
mensagem antiaborto e contra o marco
temporal de terras indígenas
ELEIÇÃO QUENTE
Políticos como Michelle Bolsonaro, Carla
Zambelli, Nikolas Ferreira e Bia Kicis estão
fazendo campanha para candidatos
conservadores nas eleições dos conselhos
tutelares no domingo, 1
6 | 17
para dar caráter de urgência ao projeto de lei que cria o
Estatuto do Nascituro. Também apresentou uma PEC pa-
ra alterar o artigo 5º da Constituição de modo a incluir o
termo “desde a concepção” no trecho que garante a invio-
labilidade do direito à vida (veja o quadro).
A luta contra o aborto figura como a principal bandei-
ra da reação conservadora, mas não é a única frente de
batalha. Alguns alvos, aliás, são como os moinhos de ven-
to de Dom Quixote, ou seja, só existem na imaginação dos
setores mais retrógrados da sociedade. Na última semana,
por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi acio-
nada para desmentir bolsonaristas que divulgaram que o
Planalto iria obrigar escolas a instituir banheiros unissex.
Fora desse campo mais delirante, o grupo unido no Con-
gresso se esforça para aprovar um despropositado projeto
de lei que acaba com a equiparação da união homoafetiva
ao casamento entre homem e mulher, algo que é reconhe-
cido pelo Supremo desde 2011. Também há uma mobili-
zação para anular os efeitos de um julgamento no STF so-
bre a descriminalização do porte de maconha para uso
pessoal — até agora são cinco votos a favor e dois contrá-
rios à flexibilização. “É uma estratégia de sobrevivência
política de um campo que depende dessa mobilização pa-
ra se autopromover”, afirma o deputado e pastor Henri-
que Vieira (PSOL-RJ), vice-líder do governo.
De fato, a mobilização, embora guiada por temas nobres
como a defesa da família e da infância, embute uma estra-
7 | 17
EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO
8 | 17
EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO
9 | 17
Nunes, cientista político e diretor da Quaest. O entorno
de Lula monitora tudo com preocupação. Qualquer con-
fusão no Congresso teria o potencial de atrapalhar o go-
verno, que precisa aprovar pautas importantes, como a
reforma tributária e a MP do programa Desenrola Brasil,
que caduca no dia 3. Também estão previstas para este
semestre as votações da Lei de Diretrizes Orçamentárias
e do Orçamento para 2024.
O sinal amarelo já havia acendido para Lula há algum
tempo. Ele veio com a aprovação em julho da resolução 715,
do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que propõe a descri-
minalização do aborto e da maconha. A gritaria mais inten-
sa partiu dos evangélicos, que formam a maior frente do
Congresso, com 210 deputados e 26 senadores, e que sem-
pre foram próximos a Bolsonaro. Parlamentares influentes
do grupo, como o deputado Marco Feliciano e o senador
Magno Malta, ambos do PL, fazem campanha pesada para
grudar em Lula as pautas que afastam os religiosos. Embora
o governo tenha apenas seis cadeiras no CNS, de um total de
48 assentos, tentou-se emplacar a narrativa de que a resolu-
ção tinha o dedo do Palácio do Planalto. “Mesmo quando o
governo não propõe diretamente essas mudanças, ele pode
ser responsabilizado por não se posicionar claramente ou
por não tomar medidas para impedir”, diz Malta. Na firme
estratégia de evitar divisões, o governo tenta construir pon-
tes com esse segmento por meio de ministros como Alexan-
dre Padilha (Relações Institucionais), Geraldo Alckmin (De-
10 | 17
ZACK STENCIL/PL
11 | 17
O campo de batalha para o qual o governo foi levado
não é simples. Por um lado, precisa lidar com as pressões
de grupos de direitos humanos e da esquerda, que alimen-
tam a expectativa de que a volta de Lula ao poder é a
oportunidade de levar adiante temas mais liberais nos
costumes. Por outro, precisa administrar a sua frágil base
no Congresso, em grande parte formada por parlamenta-
res conservadores. Para o cientista político Vinicius do
Valle, do Observatório Evangélico, há um sentimento na
direita de que a eleição de Lula criou um clima político
para se avançar em pautas desse tipo, ainda que não seja
por iniciativa do governo, e que há um “rolo compressor”
passando nesse sentido. “Isso contrasta com a posição do
governo, que não tem investido em pautas que batem de
frente com ideais evangélicos”, avalia.
De fato, o recrudescimento da discussão em torno des-
ses temas ocorre em cima de muito proselitismo religioso
e, não raro, de demagogia política. O senador Sergio Mo-
ro (União-PR), por exemplo, que foi eleito com bandeiras
relacionadas à corrupção, mostrou um súbito interesse
pela pauta de costumes ao postar que o “governo Lula
impõe banheiro unissex para todas as escolas públicas do
país” — o que não é verdade. Outro ex-ministro, o depu-
tado Osmar Terra (MDB-RS), que se notabilizou por es-
palhar teses negacionistas sobre a Covid-19, decidiu fazer
o mesmo em relação à maconha, ao divulgar, entre ou-
tras sandices, uma fake news que associa a flexibilização
12 | 17
WALLACE MARTINS/FUTURA PRESS
13 | 17
FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
14 | 17
Conteúdos foram impulsionados por parlamentares e par-
tidos, como o Republicanos, ligado à Igreja Universal, que
pagou anúncio contra o julgamento no STF: “A partir de
hoje, matar pode não ser crime no Brasil”, diz a peça.
A direita também se organiza para levar o movimento
para fora da internet. Políticos estão convocando a “Mar-
cha da Família” nas ruas do país no dia 12 de outubro, fe-
riado de Nossa Senhora Aparecida. A convocação evoca
um episódio de triste memória, a Marcha da Família com
Deus e pela Liberdade, uma passeata de inspiração con-
servadora, em março de 1964, que desembocou no golpe
militar. Em paralelo, a direita busca ainda aumentar a in-
fluência nos conselhos tutelares, cujas eleições para
30 000 vagas nos municípios ocorrerão no dia 1º de outu-
bro. Os conselheiros são eleitos por voto popular, e se tor-
nou comum encontrar candidatos “a favor da vida e da fa-
mília”. A campanha mobiliza caras conhecidas do bolso-
narismo, como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, a
senadora Damares Alves e os deputados Carla Zambelli,
Bia Kicis e Nikolas Ferreira. Igrejas como a Universal e a
Assembleia de Deus também têm atuado. “Essa movimen-
tação da direita é mais recente, principalmente após a der-
rota na eleição”, afirma Cláudio Vieira, secretário nacio-
nal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Alguns temas não são fáceis de discutir, nem no Brasil
nem nas democracias mais avançadas do mundo. Os Estados
Unidos deram um inesperado cavalo de pau em junho de
15 | 17
ARQUIVO/AG. O GLOBO
16 | 17
A discussão no Brasil também mostra que será difícil.
A ação que pede a descriminalização do aborto foi apre-
sentada pelo PSOL ao Supremo em março de 2017 — des-
de então, 54 entidades se inscreveram para fazer parte do
processo, entre elas associações de mulheres, grupos de
direitos humanos e frentes religiosas. Apenas Rosa We-
ber, relatora do caso, votou — a favor. O processo poderá
voltar à pauta pelas mãos do novo presidente da Corte, o
ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu o cargo em
meio ao fogo cerrado dos conservadores.
Um país democraticamente maduro como o Brasil pre-
cisa, de fato, ter coragem para enfrentar debates difíceis.
Quase um terço da população carcerária está presa por
crimes previstos na Lei de Drogas, sendo que 59% dos
réus portavam até 150 gramas. Em relação à interrupção
da gravidez, a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021,
apontou que 10% das mulheres já abortaram e que 40%
delas fizeram isso com o uso de medicamentos, assumin-
do um risco enorme. No Brasil, o aborto só é permitido
nos casos de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia —
exceções que o movimento em andamento defende abolir.
A despeito de o Brasil ser uma nação conservadora, situa-
ção que se consolidou com a expansão evangélica, é pre-
ciso que o princípio de separação entre igreja e Estado ba-
lize as reflexões sobre esse e outros temas — e não o fun-
damentalismo ideológico ou religioso, que só serve para
criar cortina de fumaça e obscurecer o debate. ƒ
17 | 17
BRASIL JUSTIÇA
O DIFÍCIL PONTO
DE EQUILÍBRIO
A complicada tarefa de escolher um procurador-geral
capaz de exercer as funções de defensor dos interesses
do cidadão e que não crie dificuldades para o governo
LARYSSA BORGES
AGENCIA BRASIL
1|9
NOS ÚLTIMOS ANOS, pelo menos de 2013 até os dias
atuais, o Brasil tem vivido uma intensa polarização na po-
lítica, fenômeno que provocou retrocessos na condução
do país e ataques covardes à nossa democracia. Todas as
vezes em que o fanatismo prospera, a razão perde — e as
consequências são terríveis. Infelizmente essa divisão não
se restringe apenas às redes sociais e grupinhos de What-
sApp. Ela acabou permeando diversos órgãos de Estado,
levando a irracionalidade na condução da coisa pública ao
paroxismo. Em vez da defesa de princípios e valores, car-
gos poderosos da República atuaram a favor de pessoas e
partidos. Na última década, a Procuradoria-Geral da Re-
pública também entrou nesse indesejável Fla-Flu, alter-
nando momentos de ativismo e inação — de acordo com
os interesses de quem a PGR procurava apoiar ou atacar.
Tal comportamento, evidentemente, chamuscou a ima-
gem da instituição e a distanciou do seu propósito funda-
mental: atuar com ponderação e equilíbrio na proteção do
estado democrático de direito (e não de alas radicais de
um lado ou outro do espectro político).
A boa notícia é que o presidente Lula tem agora a oportu-
nidade de romper esse ciclo vicioso. Na terça-feira 26, termi-
nou o mandato de Augusto Aras, o procurador-geral escolhi-
do por Jair Bolsonaro. Ele divulgou um balanço sobre sua
gestão. Em quatro anos, a PGR realizou 37 acordos de cola-
boração premiada, o que resultou na recuperação de 1 bilhão
de reais aos cofres públicos. O relatório, recheado de núme-
2|9
ros, mostra que foram
apresentadas 1 480 de-
núncias contra pessoas
que cometeram algum
tipo de crime — ressalte-
se que, desse total, 1 409
são acusações contra os
manifestantes que parti-
HORACIO VILLALOBOS/CORBIS/GETTY IMAGES
3|9
espera do Ministério Público. O procurador é acusado de
omissão durante a pandemia diante do desdém do governo
Bolsonaro em relação às vacinas. Para alguns observadores,
os ataques de 8 de janeiro também poderiam ter sido evita-
dos se tivesse ocorrido uma ação mais enérgica da PGR con-
tra as pregações golpistas que antecederam a manifestação.
O procurador ainda deixou em segundo plano a apuração
de denúncias graves, como a que envolveu o ex-presidente
do Congresso, senador Davi Alcolumbre, com a prática de
rachadinha. Essa aparente inapetência em relação às investi-
gações contra políticos, aliás, pode ser atribuída a um efeito
colateral de um remédio para outro problema.
Antes de tomar posse no cargo, Aras deixou claro que
uma de suas tarefas seria exatamente o de descontinuar
aquilo que foi definido em certos setores como um “proces-
so de criminalização da política” — um estigma herdado por
causa dos métodos dos procuradores que conduziram a La-
va-Jato. Aras foi alçado ao cargo como um antagonista a
Rodrigo Janot, o procurador-geral que esteve à frente das
investigações que descobriram esquemas importantes de
corrupção, mas que, com seus exageros e atropelos, bagun-
çou os cenários jurídico e político do país. Ao contrário de
Aras, Janot foi escolhido com base em uma lista tríplice ela-
borada pelos próprios procuradores. Por ser um antigo mili-
tante de esquerda, a então presidente Dilma Rousseff acre-
ditava que ele blindaria o governo dela (não o de Lula) con-
tra eventuais investidas de opositores. A Lava-Jato implodiu
4|9
LEOBARK RODRIGUES/STF
5|9
I NA Ç Ã O
Indicado por Jair Bolsonaro, Augusto Aras
estabeleceu duas metas para sua gestão:
apurar as falhas da Lava-Jato e pacificar a
relação da Procuradoria com a classe
política. A primeira missão foi bem-sucedida.
Sob sua batuta, a Operação foi totalmente
enterrada. As boas relações com os políticos
também foram retomadas, mas a um custo
alto, que, para muitos, beirou a omissão,
especialmente em denúncias que
envolveram Bolsonaro
6|9
REPRODUÇÃO
7|9
AT I V I S M O
Indicado por Dilma Rousseff, Rodrigo Janot foi
procurador-geral da República de 2013 a
2017. Sua gestão foi marcada pela Operação
Lava-Jato, que começou em Curitiba, mas
ganhou dimensão em Brasília, após ele
denunciar dezenas de deputados, senadores,
ministros e até o presidente da República.
Janot era aplaudido nas ruas. Cheios de
falhas jurídicas, vícios e imprecisões, os
processos mais importantes acabaram
arquivados ou anulados
8|9
somente para o presidente, qualquer que seja ele ou ela, é al-
go temerário”, diz o cientista político da FGV Sérgio Praça.
Aliados dizem que o presidente busca um nome que pos-
sa representar um meio-termo entre o ativismo e a inação —
e, claro, que não crie deliberadamente qualquer tipo de difi-
culdade ao governo. Nas poucas vezes em que falou sobre o
assunto, a única pista que Lula deu sobre a escolha foi que,
desta vez, não se orientaria pela lista tríplice do Ministério
Público, como havia feito nos dois mandatos anteriores.
“Era uma das instituições que eu idolatrava. Depois dessa
quadrilha que o Dallagnol (Deltan Dallagnol, ex-chefe da
força-tarefa da Lava-Jato) montou, eu perdi muita confian-
ça. Eu perdi porque é um bando de aloprados, que achavam
que poderiam tomar o poder, estavam atacando todo mun-
do ao mesmo tempo, atacando o governo, o Poder Executi-
vo, o Legislativo, a Suprema Corte”, disse ele, que chegou a
ser condenado e preso na Operação Lava-Jato. E sobre a ex-
pectativa em relação ao futuro PGR? “Eu não quero esco-
lher alguém que seja amigo do Lula. Eu quero escolher al-
guém que seja amigo desse país, alguém que não faça de-
núncia falsa, alguém que não levante falso sobre o outro”,
acrescentou. E quais seriam as virtudes necessárias para o
candidato? “Um cidadão que seja decente, digno, de muito
caráter e que seja respeitado pelos bons serviços prestados
ao país”, resumiu. Que assim seja. ƒ
9|9
BRASIL POLÍTICA
DOIS PASSOS
À FRENTE
Parlamentares do MDB e do PSD se articulam para
comandar a Câmara e o Senado — movimento que pode
minar a aproximação do Centrão com o governo
LEONARDO CALDAS E MARCELA MATTOS
1|9
TODA MUDANÇA na cúpula dos poderes da República
provoca uma onda de especulações e articulações políticas.
Quanto maior o cargo em questão, maiores são as ambições
que ele desperta. É o que está ocorrendo agora com a apo-
sentadoria da ministra Rosa Weber, presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF). Há meses, diferentes grupos de in-
teresse tentam convencer o presidente Lula a indicar deter-
minado nome para a mais alta Corte do país. Setores da es-
querda querem emplacar uma mulher negra no posto, o que
seria inédito na história do tribunal. Alas do PT trabalham
para a nomeação de um nome da confiança do partido e
principalmente do presidente da República, repetindo a es-
tratégia adotada com a escolha de Cristiano Zanin para o
STF. E há também os lobbies de caciques políticos. Um deles
reúne os senadores Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) e
Renan Calheiros (MDB-AL), que se enfrentaram na disputa
pelo comando do Senado em 2019, além do mandachuva do
PSD, o secretário de Governo do Estado de São Paulo, Gil-
berto Kassab. Próximo ao Palácio do Planalto, o trio quer
aproveitar a dança de cadeiras no Supremo para, entre ou-
tras coisas, enfraquecer o grupo político do presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o que pode gerar um proble-
ma para o governo.
O roteiro traçado envolve, além do Supremo, as duas Ca-
sas do Congresso. O ponto de partida é a indicação para a
vaga de Rosa Weber do ministro do Tribunal de Contas da
União (TCU) Bruno Dantas, que fez carreira pública sob as
2|9
AGÊNCIA SENADO
3|9
Pacheco terá de disputar um
novo mandato parlamentar
em 2026 e, segundo seus
próprios aliados, não terá vi-
da fácil no eleitorado de Mi-
nas Gerais. A eventual re-
núncia dele ao Senado obri-
garia a Casa a realizar uma
nova eleição para a presidên-
ANDRE RIBEIRO/FUTURA PRESS
4|9
priria o mandato-tampão e depois ainda teria o direito de
concorrer a mais dois mandatos consecutivos, exatamente
como já fez Rodrigo Maia na Câmara, após a queda de
Eduardo Cunha. Ou seja: em vez de liderar o Congresso por
quatro anos, Alcolumbre poderia comandá-lo por cinco
anos. Nas articulações sobre o tema, Kassab sugeriu a Re-
nan a possibilidade de Alcolumbre trocar o União Brasil pe-
lo MDB. O PSD perderia o controle do Senado com a even-
tual ida de Rodrigo Pacheco para TCU, mas seria compen-
sado em outra frente: a Câmara dos Deputados.
É justamente nesse ponto que a articulação pode se tor-
nar um problema para o governo. Numa conversa recente
com Kassab, Renan Calheiros disse que o MDB pode apoiar
o líder do PSD na Câmara, Antonio Brito, para suceder a
Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Casa. Renan traba-
lharia inclusive para convencer a bancada de deputados do
PT a apoiar Brito contra os outros concorrentes — entre eles,
o líder do União Brasil, Elmar Nascimento, candidato apa-
drinhado por Lira, que é rival do senador no estado de Ala-
goas. Os petistas, de fato, têm certa simpatia por Brito. E Re-
nan, de fato, quer fazer o possível e o impossível para enfra-
quecer Lira. Como de costume, falta combinar com Lula.
Após as eleições, o mesmo Renan tentou convencer o presi-
dente da República a lançar um candidato para impedir a
reeleição de Lira na Câmara, mas o petista não aceitou a su-
gestão, ao perceber que não teria como derrotar um dos ex-
poentes do Centrão. Nada indica que Lula deixará esse
5|9
WALLACE MARTINS/FUTURA PRESS
6|9
arestas com Elmar Nascimento, que durante a campanha
eleitoral do ano passado chamou o petista de corrupto. Nas-
cimento quase virou ministro, mas acabou preterido, segun-
do a versão corrente em Brasília, graças a um veto do chefe
da Casa Civil, Rui Costa, de quem é adversário político na
Bahia. Depois de ter a demissão pedida por Arthur Lira,
Costa procurou o presidente da Câmara e Elmar Nascimen-
to para conversar. Em busca do armistício, o ministro disse,
entre outras coisas, que não há veto da parte dele à candida-
tura de Elmar Nascimento ao comando da Casa. Parlamen-
tar mais poderoso do país, Lira dá como certo que elegerá o
aliado. Qualquer sinal de resistência da parte do Planalto te-
ria o condão de dificultar a relação com o Centrão, que, ape-
sar de tantas concessões, ainda é bastante conturbada.
Procurado por VEJA, Antonio Brito disse que é cedo pa-
ra antecipar o debate sobre a elei-
ção para a presidência da Câma-
ra, mas não desperdiçou a
oportunidade para tentar
mostrar, com fotos e vídeos,
O AZARÃO
Brito: petistas não
escondem simpatia
pelo deputado
7|9
que é bem relacionado com todos os partidos da Casa. Pre-
sidente da Comissão de Seguridade por três vezes, o deputa-
do falou com orgulho da boa relação que tem com petistas
históricos, como a deputada Benedita da Silva, e com bolso-
naristas notórios, como a deputada Bia Kicis (PL-DF). Ele
também destacou seu bom relacionamento com o governa-
dor da Bahia, Jerônimo Rodrigues, e mostrou uma foto tira-
da com Lula durante a 78ª Assembleia Geral da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU). Já o entorno de Arthur Lira
adota silêncio quando o assunto é a sucessão de 2025. Cien-
te de seu poder, o deputado afirma que só vai começar a tra-
tar do tema a partir de agosto do próximo ano e classifica
como um “tiro na água” qualquer especulação sobre even-
tual derrota de seu candidato. Por dois motivos. Primeiro,
porque Lira, mantido o cenário atual, deve ser o principal
cabo eleitoral da votação, mais influente até do que Lula. Se-
gundo, porque ele está fazendo o
que pode para dar protago-
nismo a Elmar Nascimento,
que vem assumindo a rela-
AINDA É CEDO
Nascimento:
sucessão só será
discutida no fim do
ano que vem
FLICKR @UNIAOCAMARA44
8|9
toria de projetos relevantes, participado de reuniões com fi-
gurões do PIB e buscado desde já o apoio dos principais lí-
deres partidários.
Para o grupo do presidente da Câmara, o deputado
Antonio Brito não tem o apoio dos principais líderes do
Congresso, é um candidato “fraco” e tido como um “pau
mandado” do cacique de seu partido, Gilberto Kassab. “O
Arthur vai sair e será substituído por alguém que tem che-
fe? Não faz sentido. Nenhum deputado vai terceirizar a li-
derança dele para ser liderado”, diz um aliado do coman-
dante da Câmara. Calejado por derrotas em seus manda-
tos anteriores, Lula costuma dizer que não cabe ao gover-
no se meter nas eleições do Congresso. Faz sentido, ainda
mais quando a disputa pode gerar fissuras em sua claudi-
cante base parlamentar. ƒ
9|9
MURILLO DE ARAGÃO
O CENÁRIO DE
FIM DE ANO
Há mais sinais positivos do
que negativos no horizonte
1|3
de pilotar uma economia complexa, sofisticada e plena de
desafios. E está se saindo muito bem.
Para o final do ano, temos mais sinais positivos do que
negativos. Começamos pelas perspectivas de crescimento:
a equipe econômica prevê 3,2% de crescimento do PIB pa-
ra este ano. Caso isso seja atingido, é um número excepcio-
nal, especialmente pelas expectativas modestas do início
de 2023. O PIB cresce pela força do agronegócio, pelo im-
pacto do programa Desenrola, que favorece a negociação
de dívidas, e, ainda, pela queda da inflação. Destaco tam-
bém a retomada de investimentos em infraestrutura, que
aponta um ciclo virtuoso de investimentos.
O cenário só não é de “céu de brigadeiro” por causa da
desconfiança com a questão fiscal no ano que vem. O mer-
cado, de forma generalizada, não acredita que o déficit fis-
cal será zerado em 2024. Para tal, haveria que se obter arre-
cadação de quase 170 bilhões em receitas extras, o que, no
“Zerar o
déficit fiscal
em 2024 seria
mais do que a
cereja no bolo”
2|3
momento, parece improvável. Muitas das receitas previstas
são incertas e ainda dependem de aprovação de leis no Con-
gresso. Existem também dúvidas com relação ao Orçamen-
to e à arrecadação esperada com decisões do Carf.
Para o investidor, porém, descumprir a meta não é gra-
víssimo. Obviamente, zerar o déficit fiscal em 2024 seria
mais do que a cereja no bolo das boas expectativas. O Bra-
sil daria um salto de qualidade que repercutiria positiva-
mente no apetite para investir no país. Caso não ocorra o
déficit zero prometido, o mercado observará se a curva de
endividamento está sendo reduzida de forma consistente.
Politicamente, a minirreforma ministerial ainda não ter-
minou. Continua um jogo de xadrez misturado com truco,
no qual se promete muito e se entrega pouco. De lado a la-
do, o que termina por gerar alguma tensão política. Os po-
deres Executivo e Legislativo, porém, estão olhando na
mesma direção no que se refere ao crescimento com alguma
responsabilidade fiscal. Vale destacar que a presidência de
Luís Roberto Barroso no STF, que ora se inicia, tem uma vi-
são de buscar um bom ambiente para investimentos no país
e de segurança jurídica. Enfim, o Brasil do final do ano é
bem melhor do que parecia ser — nem mar revolto nem céu
de brigadeiro, mas com evidentes sinais positivos. ƒ
3|3
BRASIL CONGRESSO
MUITO BARULHO
POR NADA
A Câmara encerra de forma melancólica quatro CPIs,
entre elas a da Americanas, que investigou uma fraude
bilionária e terminou sem indiciar ninguém
SÉRGIO QUINTELLA E BRUNO CANIATO
1 | 10
CRIADA no Rio de Janeiro em 1929, a quase centenária Lo-
jas Americanas se tornou uma das maiores e mais conhecidas
marcas do varejo brasileiro. Comandada a partir da década
de 80 pelos empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e
Carlos Alberto Sicupira, três dos mais conhecidos bilionários
do país, a companhia deixou perplexos o mercado financeiro,
os acionistas (em especial os pequenos) e o meio empresarial
ao anunciar “inconsistências contáveis” de mais de 20 bilhões
reais — uma fraude, na verdade, que desembocou em um pe-
dido de recuperação judicial.
Enquanto a Americanas buscava proteção judicial contra
cobranças de mais de 43 bilhões de reais, inquéritos foram
abertos na Polícia Federal e no Ministério Público para apu-
rar, como é necessário, as responsabilidades cíveis e crimi-
nais. Em outra frente, o Congresso achou que seria uma boa
gastar energia no assunto e criou uma CPI. No pedido, o de-
putado André Fufuca (PP-MA), hoje ministro do Esporte, diz
que o objetivo era “zelar para que casos como o da America-
nas sejam escrutinados com a devida responsabilidade”. Não
foi o que ocorreu. Após quatro meses, a comissão termina de
forma melancólica, sem elucidar os meandros da fraude, sem
ouvir nenhum nome relevante da companhia e sem indiciar
ninguém pelo rombo.
A trajetória errática da CPI teve a contribuição decisiva da
disposição em bloco dos diretores e ex-diretores da compa-
nhia de não falarem. Sete executivos foram convocados e to-
dos conseguiram decisões judiciais que lhes permitiam faltar
2 | 10
ao depoimento ou ficar em silêncio. O único ouvido, mas co-
mo convidado, foi Sergio Rial, que era o CEO da empresa
quando o rombo veio a público — foi ele próprio quem denun-
ciou o problema e, em seguida, renunciou ao cargo. Outro ex-
CEO, Miguel Gutierrez, que dirigiu a companhia por vinte
anos, mandou apenas uma carta, no início de setembro, na
qual afirmou que os três bilionários sabiam da fraude. Nem
com isso, porém, o presidente da CPI, Gustinho Ribeiro (Re-
publicanos-SE) se animou a pautar a convocação do trio.
A confirmação do vexame veio na quarta-feira 27, com o
relatório de Carlos Chiodini (MDB-SC). No documento, ele
até reconhece o envolvimento criminoso de pessoas que inte-
gram ou fizeram parte do corpo diretivo da Americanas, mas
afirma não ser possível atribuir autorias que pudessem emba-
sar uma citação individual das condutas, sobretudo pela falta
BLINDAGEM
Sicupira (à
esq.), Lemann
(no centro) e
Telles: o trio
escapou da
convocação
3G CAPITAL
3 | 10
de tempo (veja o quadro na pág. ao lado). “É claro que não
conseguiram apontar os responsáveis, pois o presidente e o
relator não convocaram os verdadeiros responsáveis pelo
rombo”, afirma Alfredo Cavalcante (PT-SP), que elaborou um
relatório paralelo, elencando culpas e culpados, mas não con-
seguiu votos suficientes para levar sua papelada à apreciação
dos pares. “É o relatório da blindagem. O Brasil passou vergo-
nha com essa CPI”, esbravejou João Carlos Bacelar (PL-BA)
no plenário da Casa.
Os responsáveis pelo desfecho têm, claro, uma justificativa
para o vexame. O presidente da CPI diz, por exemplo, que a
ideia da maioria dos deputados “foi tentar preservar a empre-
sa, do ponto de vista do CNPJ”, e sugerir soluções legislativas
para punir futuramente pessoas e companhias que praticam
fraudes. Ele se refere a quatro projetos de lei que visam a pro-
porcionar mais recursos à Comissão de Valores Mobiliários
(CVM) — entidade fiscalizadora do mercado —, além de apri-
morar o sistema de vigilância patrimonial e criar uma tipifica-
ção penal de infidelidade patrimonial. Tudo isso, no entanto,
poderia ser feito por meio do mero trabalho legislativo, sem a
necessidade de uma CPI, que consumiu tempo, dinheiro e
energia do Congresso. “As CPIs têm papel do ponto de vista
propositivo e não servem para transformar oitivas em tribu-
nais de inquisição”, defende-se Gustinho Ribeiro.
O desfecho não foi o único a espalhar frustração no Con-
gresso. Outras três comissões encerram os seus trabalhos
com resultados muito aquém da expectativa. A CPI do MST,
4 | 10
A CRONOLOGIA
DE UM FIASCO
Comissão não ouve nenhum dos
principais envolvidos no escândalo
NA DA A D EC L A R A R
A comissão convoca sete diretores e
ex-diretores da empresa, mas nenhum
deles presta depoimento. Com base em
decisões do STF, faltam à convocação
ou vão e ficam em silêncio
A M A IO R O M I S S Ã O
As convocações dos acionistas de
referência Jorge Paulo Lemann, Marcel
Telles e Beto Sicupira não foram nem
pautadas pelo presidente do colegiado,
Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE)
5 | 10
D EN ÚN CI A I GNOR A DA
Em carta no dia 5 de setembro, Miguel
Gutierrez, CEO da Americanas por 20 anos,
acusa o trio de ter conhecimento das
fraudes. Mesmo assim, a comissão
decide caminhar para o final
FI M M EL A NC ÓL IC O
Relatório apresentado pela CPI sugere
quatro mudanças na legislação para
aperfeiçoar o monitoramento contábil
das grandes empresas, mas não
indicia ninguém pela fraude
A C O NCLU S Ã O
6 | 10
por exemplo, a quinta comissão a investigar o movimento
desde 2003, fez tanto alarde quanto as quatro anteriores e
acabou da mesma forma — pedidos de indiciamento de inte-
grantes do grupo sem-terra (nenhuma grande liderança), pro-
postas legislativas de blindagem do agronegócio (que nunca
vingaram em outras ocasiões) e nenhum avanço sobre a ques-
tão agrária. Pior: o relatório de Ricardo Salles (PL-SP), eivado
de proselitismos ideológicos, nem foi votado.
Outra comissão que surfou no noticiário e morreu na praia,
a CPI da Manipulação do Futebol também encerrou suas ati-
vidades sem votar o relatório de Felipe Carreras (PSB-PE) ou
sequer ouvir os acusados de repassar valores estratosféricos a
jogadores no maior esquema de máfia esportiva até agora re-
velado no país. Uma das oitivas mais aguardadas era a de Ed-
naldo Rodrigues, presidente da CBF, mas ele escapou duas
vezes do depoimento. Rodrigues se livrou, ainda, de compa-
recer à CPI das Pirâmides Financeiras, que deixou como “le-
gado” a participação de Ronaldinho Gaúcho —o astro do fu-
tebol negou relação com uma corretora de criptomoedas acu-
sada de fraudar clientes — e a quebra de sigilo bancários dos
atores Cauã Reymond e Tatá Werneck, que fizeram publici-
dade para a corretora Atlas Quantum, investigada por estelio-
nato de 2 bilhões de reais em bitcoins. No final, a CPI tentou
pegar carona em um assunto da moda, a empresa 123milhas,
que lesou milhares de clientes ao suspender a emissão de pas-
sagens aéreas promocionais e entrar com pedido de recupera-
ção judicial na ordem de 2,3 bilhões de reais.
7 | 10
GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO
8 | 10
MATEUS BONOMI/AGIF/AFP
9 | 10
despeito da motivação nobre — investigar os distúrbios gol-
pistas em Brasília —, começa a se perder na mesma falta de
foco e no mesmo Fla-Flu ideológico da última disputa eleito-
ral, como ficou claro no depoimento do general Augusto
Heleno, ocorrido na última terça, 26, quando bolsonaristas
e governistas bateram boca por diversas vezes.
Transformar as comissões num mero palanque eletrôni-
co, como mostram os recentes acontecimentos, contribui
para o descrédito desse instrumento tão caro à sociedade.
“Quando exercem seu papel de fiscalizar o Executivo e coo-
peram para punir crimes, as CPIs fortalecem a democracia”,
avalia José Álvaro Moisés, professor da USP. Um fator que
contribui para o descrédito é a banalização e o seu uso para
fazer agrados nos bastidores político. “Uma CPI conquista
relevância pública quando é ligada à corrupção no governo
ou atinge diretamente o presidente. Essas últimas não ti-
nham esse apelo e não produziram fatos importantes”, ava-
lia Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
A relevância também pode ser dada pelos resultados
que a CPI produz ao conduzir o seu trabalho de forma téc-
nica. Terminar investigações sobre graves suspeitas de ir-
regularidades sem apontar culpados é absolutamente de-
sastroso. Dizia-se que uma CPI no Brasil sempre acaba em
pizza. No caso das últimas comissões, como a da America-
nas, os parlamentares nem sequer conseguiram produzir
uma massa consistente de denúncias digna de ser levada
ao forno. Um vexame. ƒ
10 | 10
CRISTOVAM BUARQUE
DAR O EXEMPLO
Lula trouxe o Brasil de volta ao mundo,
mas só discurso não basta
1|3
Sabem que essa péssima média esconde a tragédia da de-
sigualdade conforme a classe social da criança. Eles são
informados de que sucessivos governos das últimas déca-
das não tentaram corrigir essa realidade; e, por experiên-
cia histórica em seus países, sabem que a educação de ba-
se com qualidade para todos é o caminho para superar a
pobreza e a desigualdade.
Para consolidar sua liderança, Lula precisa convencer
o Brasil de que a desigualdade social é produto da desi-
gualdade escolar, e de que a distribuição de renda passa
por educação de qualidade igual para todos. O Bolsa Fa-
mília reduz a penúria e tira o Brasil do mapa da fome, mas
é uma solução sem impacto estrutural sobre a concentra-
ção de renda, como pode ser observado nos quase 25 anos
desde sua adoção inicial no Brasil. Basta governo insensí-
vel ou inflação para trazer a fome e a penúria de volta. Só
“O presidente precisa
mostrar que a
desigualdade social
é fruto da
desigualdade escolar”
2|3
com educação de base com qualidade para todos — o mo-
rador da periferia em escola de máxima qualidade equiva-
lente ao morador dos condomínios — será possível dispor
de estrutura social distributiva.
O presidente trouxe o Brasil de volta ao cenário mun-
dial, mas seu carisma não é suficiente para manter sua li-
derança. Precisa não apenas defender boas causas, mas
também inspirar o mundo com boas práticas. Precisa ser
aplaudido pelo discurso e respeitado pelo exemplo: iniciar
a implantação de estratégia para a construção de um siste-
ma nacional de educação de base com qualidade e equida-
de, independentemente da renda e do endereço. Ele não te-
rá tempo para fazer essa revolução em todo o país, mas
pode mostrar que está executando, por cidades, a estraté-
gia que levará o país a contar, dentro de alguns anos, com
um Sistema Nacional de Educação de Base que atenda
igualmente a todos os brasileiros. Nos três anos que faltam
de seu mandato, ele pode implantar esse sistema nacional
em até 500 pequenas cidades.
O mundo verá que, além de denunciar a desigualdade,
ele executa política pública que encorpa seu discurso. Caso
contrário, a fala cairá no vazio, tanto quanto as falas de
presidentes americanos falando de paz e, simultaneamen-
te, promovendo guerras. ƒ
3|3
BRASIL SÃO PAULO
ESTRANHO
NO NINHO
Novato no Poder Executivo, Tarcísio de Freitas sofre para
administrar vaidades no Palácio dos Bandeirantes e
enfrenta dificuldades na articulação política do governo
LAÍSA DALL’AGNOL
ISAAC FONTANA/EFE
1|5
DISCRETO BUROCRATA com passagens pelas gestões
de Dilma Rousseff e de Michel Temer, Tarcísio de Freitas
ganhou os holofotes depois de um elogiado trabalho pelo
Ministério da Infraestrutura de Jair Bolsonaro, a ponto de o
chefe indicá-lo para a disputa do Palácio dos Bandeirantes.
Vencedor improvável do pleito, dada a inexperiência, a falta
de maiores vínculos com São Paulo e o domínio de duas dé-
cadas do PSDB no estado, ele vem tentando imprimir ao
governo um perfil técnico. Quer ser reconhecido como “to-
cador” de obras importantes, viabilizador de grandes pri-
vatizações e administrador eficaz da máquina pública. A
poucos meses de completar um ano de mandato, tem apro-
vação de 63,4% entre os paulistanos, segundo levantamen-
to recente do instituto Paraná Pesquisas.
Essa lua de mel com o eleitorado não se repete no meio
político, algo que pode comprometer o futuro do governo e
até mesmo de Tarcísio, visto como favorito a ocupar o espa-
ço da direita no pleito presidencial de 2026. A avaliação é a
de que o governador se revelou pouco hábil até aqui na ne-
gociação e na articulação política, o que acende o sinal ama-
relo diante da necessidade de tirar do papel algumas das
grandes promessas de campanha.
Na chegada ao Palácio dos Bandeirantes, Tarcísio já car-
regava o peso de orquestrar uma ampla aliança. Além do
Republicanos, que é o seu partido, fazem parte dela o PSD,
sigla do vice Felicio Ramuth e do cacique Gilberto Kassab, o
PL, o PP e o Podemos. Ocasionalmente, somam-se a essas
2|5
GILBERTO MARQUES/GOVSP
3|5
ANDRE RIBEIRO/FUTURA PRESS
4|5
Na teoria, a inexperiência de Tarcísio seria compensada
pela presença do tarimbado Gilberto Kassab, que ocupa o
posto de secretário de Governo. Ocorre que Kassab disputa
espaço no Palácio dos Bandeirantes com outro homem de
confiança do governador, Arthur Lima, secretário da Casa
Civil. Ambos negam publicamente qualquer atrito (“Nossa
relação é a melhor possível”, garante Lima), mas aliados co-
mentam que há hoje uma confusão a respeito de quem man-
da de fato por ali e reclamam de que Tarcísio tem dificulda-
de em arbitrar o caso.
Segue sem solução também o enrosco relacionado à lide-
rança do governo na Alesp, a cargo do deputado Jorge Wil-
son (Republicanos), alvo de muitas críticas. Mas, nesse caso,
ao contrário do embate entre Kassab e Lima, há uma tentati-
va de solução a curto prazo. Uma das possibilidades envolve
a exoneração do secretário do Turismo, Roberto de Lucena,
e sua substituição pelo atual líder da bancada do Republica-
nos, Altair Moraes. A troca abriria espaço para o suplente
da legenda assumir uma vaga na Alesp: Danilo Campetti,
policial federal que atuou na prisão de Lula na Lava-Jato e
que, neste ano, foi afastado do cargo pelo Ministério da Jus-
tiça. Campetti foi assessor especial de Tarcísio entre janeiro
e junho deste ano e é tido como um nome de confiança e que
“entregaria resultados”. E resultado é tudo de que Tarcísio
vai precisar nos próximos anos para manter seu prestígio
em alta junto ao eleitorado. ƒ
5|5
ALIMENTAÇÃO ESPECIAL | OFERECIMENTO
ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
UMA POTÊNCIA
EM ALIMENTOS
Por que o Brasil vai desempenhar um papel
cada vez mais relevante e estratégico no
abastecimento global de produtos agropecuários
LEANDRO STEIW
1 | 13
O
Brasil já é um dos maiores expor-
tadores de alimentos do mundo.
Em quantidade, é o primeiro em
soja, carne bovina, aves e, mais
recentemente, milho — acabou
de ultrapassar os Estados Unidos, até então
líderes mundiais em vendas desse cereal.
Abastece parte substancial do mercado glo-
bal de café, açúcar e suco de laranja. Nos
próximos 10 anos, o Brasil deve superar o
Canadá e se tornar o terceiro maior expor-
tador de carne suína.
Os números demonstram a força do
agronegócio brasileiro. Em 2000, o setor
exportava 20 bilhões de dólares. Em 2022,
foram 160 bilhões. Os produtos brasileiros
chegam a cerca de 150 dos 193 países do
planeta. Os analistas veem ainda um gran-
de potencial de crescimento nas vendas de
frutas, hortaliças, oleaginosas, lácteos e pescados. Uma con-
dição está dada: a população mundial deve passar dos atu-
ais 8 bilhões de habitantes para 8,9 bilhões em 2032 e 9,7 bi-
lhões em 2050, segundo estimativa da Conferência das Na-
ções Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A
explosão populacional se dará principalmente nos países da
Ásia — que não são autossuficientes em alimentos e conti-
nuarão dependendo das importações.
2 | 13
ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
O CAMINHO ATÉ
A FORÇA AGRÍCOLA
Em 1980, o que hoje é reconhecido como agronegócio era
um horizonte quando o empresário Wilson Ferrarin, então
com 39 anos, embarcou em um Fusca no Rio Grande do Sul e
se mudou para Mato Grosso. Foi quando começou a acreditar
que o Brasil se tornaria uma potência agrícola. “Não me sur-
preende ver o Brasil de hoje porque eu sempre acreditei muito”,
diz Ferrarin, aos 81 anos. “Muitos brasileiros, como eu, joga-
ram as suas vidas no Cerrado. Comecei com arroz de sequeiro,
porque não tinha água. Era muito difícil naquela época. Abría-
mos estrada com facão. Hoje ser lavoureiro é um luxo. Tem
carro, colheitadeira e trator com ar-condicionado e muita ofer-
ta de serviços de tecnologia e meteorologia.”
O Grupo Ferrarin, que atua com produção, comércio, ar-
mazenamento e distribuição de grãos, além da venda de insu-
mos e máquinas e serviços financeiros, fatura 5 bilhões de re-
3 | 13
ais ao ano. Do 1,3 milhão de toneladas de grãos de soja recebi-
dos nos armazéns da empresa, 65% vão para o mercado exter-
no, principalmente para a China.
A força do agronegócio brasileiro é evidenciada pelo cresci-
mento de gigantes como a JBS, maior produtora e processado-
ra de carne bovina do mundo. De acordo com um levantamen-
to da Fipe, somente a JBS e as cadeias produtivas ligadas a ela
movimentaram, em 2021, o equivalente a 2,1% do PIB brasi-
leiro e contribuíram para a geração de 2,73% dos empregos do
país. A empresa possui unidades em mais de 130 municípios
brasileiros e emprega cerca de 145 mil pessoas no país.
O perfil exportador do agronegócio brasileiro se ancora em
uma série de fatores. Os mercados internacionais se abriram a
partir dos anos 1990. A população mundial, principalmente
na Ásia, entrou em ciclo de crescimento. A renda per capita em
países como a China e a Índia aumentou, impulsionando a de-
manda por alimentos. E, decisivamente, nos últimos 20 anos,
a China tem sustentado o comércio internacional de grãos e
alimentos. “Esses são os grandes fatores que explicam a potên-
cia e a competitividade do agronegócio brasileiro”, diz o con-
sultor Elisio Contini, que foi pesquisador da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) por 45 anos.
Geraldo Barros, coordenador científico do Centro de Estu-
dos Avançados em Economia Aplicada da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo,
lembra que o crescimento focado na industrialização urbana,
basicamente entre as décadas de 1930 e 1980, não foi suficien-
4 | 13
te para criar empregos para toda a população que migrou do
campo para as cidades. Nesse período, a indústria ocupou, no
máximo, 20% da força de trabalho. Os migrantes do meio ru-
ral se empregaram predominantemente no setor de serviços,
recebendo salários inferiores aos pagos pela indústria.
Levou algum tempo até o setor agropecuário crescer mais
do que o industrial. De 1950 até 1980, período marcado pela
substituição de importações, a indústria teve taxa média anual
de crescimento superior à da agropecuária (8,6% a 4,3%). A
tendência se inverteu depois de 1981 e se manteve desde então.
O processo de desenvolvimento da chamada agricultura
tropical, principalmente para a ocupação da região do Cer-
rado, veio acompanhado da criação de centros de pesquisa
em ciência agrícola. A produtividade dependia de um mode-
lo de agricultura adaptado às condições climáticas e am-
bientais do Brasil. Fundada em 1973, a Embrapa é uma das
personagens importantes dessa rede de conhecimento cien-
tífico, ao desenvolver sementes e técnicas adequadas ao ma-
nejo do solo brasileiro.
Na opinião do pesquisador Pedro Abel, da Superintendên-
cia Estratégica da Embrapa, não foi só pela geração de conhe-
cimento e de tecnologia. “O grande papel da Embrapa foi fazer
a articulação entre o setor privado e a academia, entre o setor
produtivo e a ciência”, afirma. Ele observa que, enquanto a
produtividade agrícola cresce à taxa média de 1,5% ao ano nos
países de clima temperado, no Brasil cresce 3,5%. “Sem mo-
déstia ou vaidade, nós somos muito bons na agricultura.”
5 | 13
ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
PERSPECTIVA POSITIVA,
COM DESAFIOS
Para o Brasil, a perspectiva continua positiva. O cresci-
mento da produtividade dos principais grãos é uma realida-
de desde a década de 1970 (veja quadro). Elisio Contini acre-
dita que o país pode aumentar ainda mais a eficiência e pro-
duzir 500 milhões de toneladas em 20 anos e 800 milhões
de toneladas em 30 anos — se a demanda internacional se
mantiver em alta.
Para alcançar esse potencial, não são poucos os desafios pe-
lo caminho. Geraldo Barros cita alguns: desigualdade e pobre-
za no Brasil, desmatamento e mudanças climáticas, concentra-
ção das exportações em poucos produtos, gargalos na logística,
entre outros. Também haverá pressões externas dos países con-
correntes, como barreiras tarifárias, à medida que aumentar a
participação dos produtos brasileiros no mercado internacional.
6 | 13
Em relação à emergência das mudanças climáticas, o
crescimento da produção deverá centrar-se na produtivida-
de, sem ocupação de novas áreas de floresta e com o reapro-
veitamento de áreas degradadas. Nesse cenário de abundân-
cia de alimentos, a distribuição de renda é fundamental para
garantir a segurança alimentar e nutricional dos brasileiros.
Os movimentos externos também influenciam o desem-
penho, uma vez que o Brasil é um grande importador de in-
sumos químicos para a agricultura. Em 2022, por exemplo,
os produtores brasileiros gastaram 24,7 bilhões de dólares
com a compra de fertilizantes — 9,1% do valor de todas as
mercadorias que o país comprou do exterior. Com isso, a
safra 2022-2023 foi uma das mais caras para o produtor. A
restrição no fluxo de insumos começou com a pandemia de
Covid-19, em março de 2020, e se agravou com a guerra
entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022.
“Commodities são como vasos comunicantes: o que
acontece nos Estados Unidos, na China e no Brasil rever-
bera para todos os cantos”, diz Marcos Rubin, fundador da
consultoria Veeries, especializada em agronegócio. “Tive-
mos uma mudança no fornecimento de matérias-primas
porque boa parte dos insumos químicos que o Brasil utili-
za nos defensivos agrícolas e nos fertilizantes vem da Chi-
na, um dos países mais afetados pela pandemia, e da Rús-
sia, envolvida na guerra.”
A pressão de custos aconteceu em um momento de pre-
ços elevados de commodities agrícolas, como soja e milho, o
7 | 13
que ajudou o produtor brasileiro a absorver a alta dos insu-
mos e ainda manter uma margem de lucro razoável. A par-
tir do primeiro trimestre de 2023, os preços dos insumos ca-
íram, mas a cotação das commodities também. “A safra que
passou foi muito cara. A próxima safra será um pouco mais
barata, mas houve também uma queda muito grande dos
preços das commodities”, diz Rubin.
Esses ciclos são tradicionais no agronegócio. Segundo o
consultor, nos últimos 20 anos, os mercados de soja e milho
passaram por três momentos de margens operacionais su-
periores a 60%. Em cada uma dessas fases, com duração de
dois a três anos, aumentou-se a adoção de tecnologia nas
propriedades e na capacidade produtiva. Passada a bonan-
ça, vieram as crises. O setor entrou agora em um desses ci-
clos de ajuste. As margens de 2021 e 2022 despencaram em
2023, passando de 60% para abaixo de 30%.
“Estamos em uma fase de ajuste de rentabilidade, mas
com uma agricultura muito mais resiliente e com o produtor
muito mais profissionalizado e preparado para o próximo
ciclo, que não se sabe exatamente quando vai ocorrer”, afir-
ma Rubin. Os dados mostram que, nos últimos dez anos, o
Brasil foi responsável por 75% do crescimento das exporta-
ções mundiais de soja, milho e trigo. “Quando pensamos
nos próximos dez anos, eu diria que a expansão das expor-
tações brasileiras de alimentos será muito similar à do pas-
sado recente”, diz Rubin. Previsões otimistas, sem dúvida,
mas com os pés no chão.
8 | 13
O SALTO DA EFICIÊNCIA NO CAMPO
Evolução da produtividade brasileira nas principais culturas
(em quilogramas por hectare)
7.000
6.366
6.000
5.000
4.000
CRESCIMENTO DE 339%
3.000
ARROZ FEIJÃO
1974 2020
Fonte: IBGE/Embrapa
9 | 13
5.779
3.260
2.707
CRESCIMENTO DE 279%
CRESCIMENTO DE 134%
CRESCIMENTO DE 113%
1.525 1.531
1.157
ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
10 | 13
LADEIRA ACIMA
Safra recorde e exportações devem manter o ímpeto
do setor responsável por 25% do PIB brasileiro
CHIARA QUINTÃO
11 | 13
chegando a 1,142 trilhão de reais — a agricultura deverá contri-
buir com 804 bilhões e a pecuária, com 338 bilhões de reais. A
safra 2022-2023 é estimada em 322,8 milhões de toneladas —
um avanço de 18,4% em relação à safra passada, segundo o le-
vantamento mais recente da Companhia Nacional de Abasteci-
mento (Conab).
“A tendência é que os preços, em 2024, estejam menores
do que os deste ano, mas ainda superiores ao patamar pré-
-pandemia”, afirma Roberto Rodrigues, professor da Fundação
Getulio Vargas (FGV) e ex-ministro da Agricultura. Para ele, o
Brasil terá um papel cada vez mais importante não somente
para a segurança alimentar, mas também para as questões cli-
mática e energética.
No horizonte de dez anos, as projeções para o agronegócio
brasileiro são positivas em função das exportações, de acordo
com Marcos Jank, professor de agronegócio no Insper e coorde-
nador do centro Insper Agro Global. “O Brasil responde por 8,4%
das exportações mundiais do agronegócio, nas quais tem cresci-
do mais do que os concorrentes”, diz Jank. Segundo ele, o país
poderá até ultrapassar os Estados Unidos no embarque de boa
parte dos produtos que exporta atualmente.
Os especialistas apostam que o agronegócio brasileiro
continuará a ter crescimento muito mais ancorado no aumen-
to da produtividade do que na expansão de áreas ocupadas.
“De hoje até 2035, o Brasil responderá por, no mínimo, 25% do
aumento da produção de alimentos no mundo”, prevê Men-
donça de Barros.
12 | 13
ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES
13 | 13
RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ
1|3
por isso, houve atraso nas eliminação de pendurica-
entregas. Entre maio de lhos que onerem os cofres
2021 e agosto do ano passa- federais. A contenção de
do, 22 apartamentos não fo- gastos é essencial para re-
ram liberados para os pro- duzir o risco fiscal do país.
prietários no prazo prometi-
do. O atacante Dudu, do No último minuto
Palmeiras, chegou a fazer O Grupo Pão de Açúcar
uma reclamação na Justiça. reduziu em 20% o volume
de alimentos que seriam
Nem um centavo a mais destinados a aterros sani-
O ministro da Fazenda, tários depois da criação de
Fernando Haddad, afirmou uma plataforma de geren-
ao deputado Danilo Forte ciamento de preços de
(União Brasil-CE), relator produtos que estão perto
da Lei de Diretrizes Orça- da data de validade. Os
mentárias, que está preocu- descontos variam de 10%
pado com a possibilidade a 80%, a depender da pro-
de o Congresso Nacional ximidade do vencimento.
acrescentar ao texto da
LDO medidas que aumen- A cana é doce
tem os gastos públicos. O presidente Lula foi
aconselhado a apontar,
Parceiro nos encontros com chefes
De seu lado, o parlamen- de Estado, o etanol brasi-
tar sinalizou que está ali- leiro como protagonista
nhado com o ministro na da renovação da matriz
2|3
energética global. Um im- Apetite voraz
portante representante do Enquanto negocia a fusão
setor lembra que Lula fo- com a Tok&Stok, a em-
mentou a produção e o presa de móveis e artigos
uso do combustível em para decoração Mobly tem
seu primeiro mandato. outro negócio na mira: a
compra do braço brasilei-
O cacique liberou ro da alemã Westwing,
As lideranças indígenas que atua no mesmo ramo.
do povo Mura, da cidade
de Autazes, no Amazonas, Resistência
aprovaram a implantação A possibilidade de inte-
de um projeto de explora- gração das operações das
ção de potássio na região. empresas de energia Ele-
trobras e Furnas enfrenta
Terra valiosa resistência no Congresso.
Uma das interessadas em Deputados estão organi-
explorar a área é a empre- zando audiências públi-
sa Potássio do Brasil, que cas em Minas Gerais e
enxerga no lugar um po- Brasília contra possíveis
tencial para extrair 2,2 cortes de pessoal nas em-
milhõ es de toneladas presas. ƒ
anuais do produto, o equi-
valente a 20% do consu-
OFERECIMENTO
mo do país. O investimen-
to previsto é de 2,5 bi-
lhões de dólares.
3|3
ECONOMIA ORÇAMENTO
ANDRESSA ANHOLETE/BLOOMBERG/GETTY IMAGES
UMA BOMBA-RELÓGIO
A promessa do governo de zerar o déficit das contas
públicas em 2024 está cada vez mais distante
da realidade. Sem cortar gastos, o equilíbrio fiscal
do país ficará seriamente ameaçado
PEDRO GIL
1 | 11
N
a literatura fantástica, os elementos centrais das
narrativas não possuem correspondentes na reali-
dade e surgem a partir da imaginação fértil e sem
limites de seus autores. Um dos principais repre-
sentantes da vertente, o escritor britânico J.R.R.
Tolkien consagrou o estilo na monumental saga O Senhor
dos Anéis, que elevou à categoria de heróis os hobbits dota-
dos de espírito puro e com pendor para a amizade. “A fan-
tasia é escapista, esta é a sua glória”, disse Tolkien ao justifi-
car o sucesso de seus livros. Se na ficção os devaneios são
bem-vindos, na vida real eles costumam trazer problemas,
uma vez que podem ser usados para falsear a verdade. No
Brasil, a promessa do governo de zerar o déficit público —
ou seja, não gastar mais do que arrecada — a partir de 2024
parece, até agora, mais uma obra inventada do que algo
realizável. “O orçamento está no campo da literatura fan-
tástica”, disse o economista Alexandre Schwartsman, ex-
diretor do Banco Central, em entrevista para o programa
VEJA Mercado. “Faltam só os orcs e os elfos.”
As ilusões permeiam o discurso do governo, mas a dura
realidade é bem diferente. Há no horizonte um risco consi-
derável de o país extrapolar suas metas fiscais, o que pode
colocar em xeque o próprio crescimento econômico. O peri-
go se agravou nas últimas semanas com uma série de pautas
que, em boa medida, levarão à explosão inevitável dos gas-
tos públicos. A bomba-relógio está aí para quem quiser ver.
No último dia 12 de setembro, o Senado aprovou por unani-
2 | 11
midade uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que
incorpora servidores de antigos territórios de Rondônia,
Amapá e Roraima ao quadro da administração pública fe-
deral. O custo estimado é de 6,3 bilhões de reais por ano.
Não foi apenas isso. Recentemente, sob a liderança de
Arthur Lira, a Câmara aprovou um socorro a estados e mu-
nicípios, que reclamam perda de arrecadação causada pela
desoneração de combustíveis e energia feita pelo governo
65
POSITIVA
46
24
11
NEGATIVA
JUL SET
Fonte: Genial/Quaest
3 | 11
de Jair Bolsonaro. Foi liberado não só o ressarcimento de
27 bilhões de reais acertado com o Supremo Tribunal Fede-
ral, como também as unidades federativas poderão anteci-
par neste ano 10 bilhões de reais que seriam pagos em
2024. Montantes extras serão ainda destinados a fundos de
participação dos estados e municípios. Também na Câma-
ra, discute-se a ampliação do limite anual de faturamento
do microempreendedor individual (MEI) e uma nova faixa
de alíquota para o Simples Nacional, o que certamente pro-
vocará impactos bilionários nos cofres federais.
Os programas de aumentos de gastos se sucedem, ao
feitio dos governos petistas. Antigos pleitos dos municí-
pios, o parcelamento de dívidas da previdência e a elimi-
nação de cobrança de multas e juros para os valores em
atraso, têm boas chances de seguir adiante. O efeito de ini-
ciativas como essas seria desastroso. “Além da própria in-
certeza que o governo trouxe com seu pacote fiscal, o Con-
gresso andou com pautas que podem ter impacto muito
significativo sobre a arrecadação”, diz Jefferson Bitten-
court, economista-chefe da gestora Asa Investments e ex-
secretário do Tesouro Nacional. Não à toa, os índices de
aprovação do trabalho de Fernando Haddad no Ministério
da Fazenda estão em queda
O maior risco fiscal, de fato, tornou-se o principal moti-
vo para o fim da lua de mel entre o mercado financeiro e
Haddad. O divórcio é compreensível: a mera sinalização
de descompromisso fiscal leva, entre outros danos, à que-
4 | 11
A CONTA NÃO FECHA
Enquanto a arrecadação federal cai…
(em trilhão de reais)
1,54 1,53
O GOVERNO DISCUTE UM
NOVO REFIS (PROGRAMA DE
RECUPERAÇÃO FISCAL) PARA
DÍVIDAS PREVIDENCIÁRIAS DOS
MUNICÍPIOS, O QUE ADICIONARIA
BILHÕES DE REAIS EM DESPESAS
5 | 11
da de confiança, ativo indispensável para qualquer país
que deseje transmitir credibilidade. É consenso entre eco-
nomistas e gestores que as expectativas fiscais do governo,
baseadas nas regras definidas pelo arcabouço, são quime-
ras. Os números mostram por que o equilíbrio das contas
parece distante. Segundo a ministra do Planejamento e Or-
çamento, Simone Tebet, o governo precisará de 168 bi-
lhões de reais em receitas extraordinárias para fechar as
contas no ano que vem. O objetivo está longe de ser alcan-
çado por uma série de motivos.
Em primeiro lugar, há pouco tempo disponível — 2024,
afinal, está quase aí. Além disso, o governo depende de
apoio significativo do Congresso para promover alterações
constitucionais capazes de levar a novas receitas. Mas, pos-
sivelmente, esses movimentos serão objeto de questiona-
mentos na Justiça, em disputas entre contribuintes e a União.
A conclusão: o aumento da arrecadação está firmado em
bases pouco sólidas. A própria Tebet reconheceu que a meta
é “audaciosa”, e que talvez não se realize. “Se as principais
medidas de receita não forem aprovadas, é óbvio que tere-
mos de repensar a meta”, afirmou, em audiência no Senado.
No âmbito interno, técnicos da equipe econômica já es-
tão debruçados sobre a possibilidade de revisão do resulta-
do primário. Isso deve ocorrer se as receitas não estiverem
subindo até o começo do ano que vem. “É matemática: ou
ajusta a meta, ou reduz despesas”, disse a VEJA uma fonte
graúda do Ministério do Planejamento. Ao fim de 2024, o
6 | 11
DÚVIDA Tebet: a
ministra admitiu que o
objetivo de zerar o déficit
é “audacioso” e que talvez
não seja cumprido
LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL
7 | 11
MAIS CARO
Arthur Lira:
Câmara vai analisar
alguns projetos que
podem aumentar
ainda mais os
gastos do governo
MARINA RAMOS/CÂMARA DOS DEPUTADOS
8 | 11
MEL 2030. Mais uma vez, fi-
ca evidente que zerar as
PEÇA DE FICÇÃO
O mercado financeiro não
contas já no ano que
crê que o governo cumprirá
vem é um sonho quase a meta de resultado
inatingível. primário (em %)
A meta “audaciosa”,
para usar o adjetivo es- 95%
colhido por Simone Te- NÃO ACREDITAM
bet,
4 6 exige do governo NA POSSIBILIDADE
uma capacidade de ar-
recadação fora de seu
alcance.
24 O governo diz
que aumentará as recei-
tas com medidas já
anunciadas, como a ta-
xação de fundos offsho-
ET
re e de apostas esporti-
vas, entreuaest
outras iniciati-
vas de baixo impacto.
5 %
ACREDITAM
Somadas, tais investidas
dificilmente ultrapassa- Fonte: Genial/Quaest
9 | 11
MIGUEL PERFECTTI/GETTY IMAGES
10 | 11
A estabilidade fiscal é um sonho distante da realidade
brasileira. Desde 1989, os gastos federais crescem em ritmo
superior ao da expansão da economia. Por isso, a carga tri-
butária saltou de 22% para 34% nas últimas três décadas,
um movimento que penaliza o desempenho das empresas e
o bolso dos cidadãos. Para piorar, mesmo com impostos em
alta, o endividamento do país chegou a quase 90% do PIB,
e há o risco de aumentar. Se o time econômico comandado
por Fernando Haddad não fizer a lição de casa, pelo lado
das despesas, a chance de o cenário mudar é nula. Na eco-
nomia, não existem milagres: sem equilíbrio fiscal, não se
avança. Portanto, é preciso desarmar a bomba-relógio an-
tes que seja tarde demais. ƒ
11 | 11
INTERNACIONAL UCRÂNIA
REPRODUÇÃO
DISPUTA
Ataque ao QG
da Marinha russa
no Mar Negro:
tentando reabrir a
rota bloqueada
SINAL DE
ALERTA
Primeiro país a prestar ajuda aos ucranianos após
a invasão russa, a Polônia revê sua posição, indício
de abalo no apoio incondicional de Europa e
Estados Unidos a Kiev
CAIO SAAD
1|5
D
esde que invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022,
Vladimir Putin sonha com o momento em que a pé-
trea aliança ocidental em torno de Kiev, liderada pe-
los Estados Unidos, começaria a dar sinais de des-
gaste. Sendo ele dono e senhor inconteste da Rússia e
dispondo de recursos infinitamente maiores, esse soluço se-
ria, na sua avaliação, o começo do fim da tenaz resistência
ucraniana. Trazida para a realidade, a relação de causa e efei-
to provavelmente será menos inexorável do que Putin deseja-
ria. Mas que o abraço dos aliados afrouxou, afrouxou, quando
a Polônia, parceira de primeira hora, anunciou quase simulta-
neamente a proibição da importação de grãos vindos da Ucrâ-
nia, uma fonte de renda crucial para o país, e a suspensão do
envio de armas para seu Exército. “Nossa preocupação agora
é repor nosso arsenal com armamentos mais modernos”, jus-
tificou o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki. A reação
imediata do bloco pró-Kiev foi botar panos quentes, atribuin-
do as medidas a questões pontuais, mas o fato é que o presi-
dente Volodymyr Zelensky começa a ter mais trabalho para
garantir o apoio incondicional de que dispôs até agora.
A origem da rixa está na competição de preços de cere-
ais, afetada pela entrada no mercado polonês dos produtos
ucranianos mais fartos e baratos — uma briga que se repete
na Hungria e na Eslováquia. A União Europeia, acatando a
preocupação dos três países, havia determinado que o cor-
redor permaneceria aberto, mas sem vendas para eles.
Agora, suspendeu a proteção e a Polônia decidiu desafiar a
2|5
TIMOTHY A. CLARY/AFP
3|5
B. SADOWSKI/BLOOMBERG/GETTY IMAGES
4|5
dos produtores rurais, parcela motivada e atuante do eleito-
rado. “Conquistar os votos deles é essencial para que o PiS
tenha chance de se manter no poder”, diz Maciej Onasz,
professor da Universidade de Lodz. Ecoando o sentimento
popular, um comício recente da ultradireitista Confedera-
ção, legenda nanica que pode se tornar fiel da balança no
novo Parlamento, lançou duras críticas aos gastos da Polô-
nia com a guerra, em meio a cartazes proclamando: “Paga-
mento: zero. Gratidão: nenhuma”.
Zelensky tratou com ironia as queixas de ingratidão e
qualificou as medidas polonesas de “teatro político” do
qual Putin será o maior beneficiário. Ele vem de uma via-
gem difícil aos Estados Unidos, onde não teve a recepção
triunfal do passado nem na Assembleia Geral da ONU, nem
no Congresso americano. Nas Nações Unidas, não demo-
veu de sua posição em cima do muro os países do chamado
Sul Global, onde se situa o Brasil. Na Câmara de Represen-
tantes, atualmente refém de um grupo de trumpistas-raiz
que ameaça (de novo) bloquear recursos para o governo se
ele não cortar gastos, aí incluídos 12 bilhões de dólares de
ajuda militar à Ucrânia, não foi convidado a falar ao plená-
rio. Da Casa Branca, saiu com o renovado compromisso do
presidente Joe Biden de total apoio e um vale-consolação
de 225 milhões de dólares. Mas se a contraofensiva militar
ucraniana em curso não apresentar resultado significativo,
pode ser que o pior — a confirmação das esperanças de Pu-
tin — comece a acontecer. ƒ
5|5
GENTE
VALMIR MORATELLI
NEGÓCIOS À PARTE
INSTAGRAM @CAROLINAFERRAZ
1|5
SEM PERDER A MAJESTADE
Em visita oficial à França, a rainha CAMILLA, 76 anos, deparou-
se na agenda com um compromisso um tanto inusitado. Ela foi es-
calada para uma partida de tênis de mesa com a primeira-dama
BRIGITTE MACRON, 70, em um centro esportivo nos arredores
de Paris. Em um dos mais animados lances do duelo, a bola ia de um
lado ao outro, em bela cadência, quando Brigitte deu uma potente
cortada, cravando o ponto e tirando a concentração da monarca.
Camilla não conseguiu mais acertar o saque. Adolescentes que
acompanhavam a partida eternizaram o momento em seus celula-
res, até que a francesa, aos risos, lhes pediu: “Parem de filmar, es-
tão nos desconcentrando”. Os respectivos maridos, o rei Charles e
o presidente Emmanuel Macron, torciam cada qual para sua espo-
sa. Tudo à base de muita diplomacia.
SAMIR HUSSEIN/WIREIMAGE/GETTY IMAGES
2|5
ESPANTANDO A CLIENTELA
Tudo o que TAYLOR
SWIFT, 33 anos, queria
era desfrutar um momen-
to a sós com o Travis Kel-
ce, 33, o jogador de fute-
bol americano com quem
vive aquela fase de princí-
pio de namoro. Poderiam
ter ficado no hotel, mas
preferiu surpreendê- lo
JASON HANNA/GETTY IMAGES
3|5
VAI ACABAR EM PIZZA?
Franco favorito na disputa pela vaga de candidato à presidência pelo
Partido Republicano, DONALD TRUMP, 77 anos, esnoba os deba-
tes e, no lugar, sempre arranja um jeito de atrair os holofotes — até
mesmo quando foi clicado em um debochado mugshot, foto tirada
quando ele se apresentou à Justiça em um dos incontáveis casos em
que está enroscado até o último fio do topete. Desta vez, o ex-presi-
dente surpreendeu os comensais de um pub na cidade de Betten-
dorf, em Iowa, onde tradicionalmente se realiza a primeira rodada
das primárias americanas. Com uma bandeja à mão, ele servia pizza
a todos, bem confortável no papel de garçom. “Quem quer uma?”,
oferecia. Depois de forrar o estômago do eleitorado, pediu votos co-
mo gorjeta. Sobre a pilha de processos, nada disse.
JABIN BOTSFORD/TWP/GETTY IMAGES
4|5
VILÃO EM DOSE DUPLA
O semblante de bom moço sempre conduziu ÂNGELO ANTÔNIO,
59 anos, àqueles papéis envoltos em altas doses de sofrimento
nos folhetins. Pois agora veio a hora da virada que tanto ambicio-
nava — ele exibe seus dotes de vilania não uma, mas duas vezes.
Um de seus cruéis personagens no ar é o
alcoólatra Andrade, que agride fisica-
mente a mulher na trama global das 9,
Terra e Paixão. Como se não bastasse,
5|5
GERAL DEMOGRAFIA
CHRIS WILLSON/ALAMY/FOTOARENA
1 | 13
R
eza a lenda que o Japão nasceu no longínquo século
III a.C., quando o então imperador chinês despa-
chou uma expedição em alto-mar com o objetivo
de encontrar a fonte da imortalidade. O alquimista
e comandante da ambiciosa empreitada, Xu Fu, te-
ria levado a bordo milhares de crianças até três montanhas
sagradas para suplicar aos deuses que lhes concedessem o
elixir da vida eterna. Sem ser atendido, Xu jamais retornaria
à terra natal, fincando bandeira, ao lado de seus jovens com-
panheiros de jornada, em um arquipélago do Pacífico onde
hoje se situa o território japonês. Pois o país que teria emer-
gido da ânsia humana em vencer a finitude soube, à base de
uma combinação de hábitos saudáveis e notáveis avanços no
campo da medicina, esticar a existência como nenhuma ou-
tra nação do planeta. Segundo um recém-divulgado relató-
rio, quase um de cada três habitantes ali cruzou a fronteira
dos 60 anos e 10% já contam oitenta velinhas sobre o bolo.
É um marco inédito, mas não despregado da realidade glo-
bal. A população mundial envelhece em passo acelerado,
compondo um contingente que configura o mais extraordi-
nário fenômeno demográfico do século XXI.
O mais fascinante no prolongamento da vida observa-
do em nossa era é que ele, não raro, vem conectado a um
elevado bem-estar — as pessoas não estão apenas cele-
brando aniversários em série, como muitas o fazem com
entusiasmo, cercadas de planos e afeto. A ciência já deci-
frou as raízes do envelhecimento, processo que resulta do
2 | 13
acúmulo gradual de danos celulares, levando à perda de
capacidades e ao aumento do risco de doenças. O corpo,
tal qual uma máquina, se desgasta com o uso.
A trilha percorrida agora pelas maiores autoridades
no tema se volta justamente para os caminhos para frear
os efeitos da passagem do tempo, o que envolve desco-
bertas valiosas no terreno da engenharia genética.
“O grande desafio é aprender como redesenhar a biologia
humana, reprogramando células para trabalhar a favor
CAMPEÕES EM LONGEVIDADE
Os países com a maior expectativa de vida (em anos)
3 | 13
da saúde, o que começa a acontecer”, diz o biólogo João
Pedro Magalhães, da Universidade de Birmingham, no
Reino Unido. A transferência de genes de uma célula a
outra já pode turbinar, por exemplo, a defesa do organis-
mo de um paciente com câncer, técnica já empregada in-
clusive no Brasil. “A medicina personalizada, capaz de
chegar a tratamentos baseados na genética de cada um, é
promissora”, disse a VEJA o israelense Aaron Ciechano-
ver, dono de um Nobel de Química.
O saber acumulado sobre o envelhecimento também re-
vela que o cultivo disciplinado de bons hábitos é essencial
à longevidade. Há certo consenso de que a genética res-
ponde por 20% da expectativa de vida, enquanto os outros
80% são definidos pelo ambiente e por escolhas feitas no
dia a dia. O pesquisador americano Dan Buettner decidiu
investigar quais são essas opções que se desdobram em vi-
da longa. Para isso, foi àqueles pontos do globo com a mais
alta concentração de centenários — as chamadas blue zo-
nes. Passou duas décadas dissecando a rotina nesses lo-
cais, o mais vasto trabalho de campo realizado na área que
tanto intriga especialistas e leigos. Além de sete livros,
produziu a bem-sucedida Como Viver até os 100 — Os Se-
gredos das Zonas Azuis, série da Netflix que entrou para o
rol das dez mais assistidas. “O percurso para uma existên-
cia longa e saudável não é de curta distância, mas uma ma-
ratona embalada por práticas saudáveis adotadas desde os
40, 50 anos”, disse Buettner a VEJA.
4 | 13
ALEKSANDAR NAKIC/GETTY IMAGES
5 | 13
ARQUIVO PESSOAL
RUMO AOS 100
A aposentadoria jamais paralisou Ricardo Giordani,
hoje com 93 anos. Ele, que mora sozinho, ocupa muito bem
o tempo. “Estou sempre com a família, leio de tudo e ainda
pinto e escrevo poesia”, orgulha-se
6 | 13
envolvendo em trabalhos manuais. Aos 83 anos, a enérgica
Maria Amélia Pascoa, que trocou Portugal pelo Brasil há seis
décadas, relata: “Não largo meu orquidário, um tesouro que
plantei no terraço de casa e me deixa estimulada e ativa”.
O capítulo da alimentação é outro que ajuda a contar a
história desses oldest olds — os mais velhos na população
já idosa. Nas zonas azuis, mais de 60% do cardápio é com-
posto de itens de origem vegetal, principalmente feijão,
soja e lentilha. Nenhum dos centenários ouvidos faz dieta,
a rigor, mas sustentam o bem-vindo hábito de encerrar a
refeição quando se sentem saciados, sem nunca se empan-
turrar. “Em geral, as pessoas comem mais do que preci-
sam, o que sabidamente acelera o envelhecimento”, alerta
Eric Ureña Sala, do Instituto de Envelhecimento Saudável
da University College London.
Neurocientistas da Universidade de Madri tentam des-
vendar o enigma da longevidade observando mais de
1 000 homens e mulheres que ultrapassaram os 80 anos
com uma idade biológica de adultos de 50. A pesquisa,
publicada no prestigiado Lancet Healthy Longevity, assi-
nala que eles possuem mais massa cinzenta em regiões-
chave do cérebro. Os autores confirmam que a genética
contribui, sim, mas sustentam que suas experiências de
vida tiveram o mesmo peso em prol desse retrato tão pri-
vilegiado de mentes envelhecidas. Ao mergulhar na rotina
do grupo, constatou-se que eles preservam elos de amiza-
de, nunca pararam de aprender, aderiram à atividade físi-
7 | 13
ca desde cedo e dormem bem. “Escrevo poesia, pinto, gos-
to de conversar e não posso ficar sem saber o que está
acontecendo no mundo”, conta o elétrico aposentado Ri-
cardo Giordani, de 93 anos, que mora sozinho.
Já está provado que o ambiente à volta das pessoas pode
funcionar como potente alavanca à vida longa. “A forma co-
mo as cidades se organizam ajuda as pessoas a viver bem
por mais tempo”, enfatiza Buettner. Um caso exemplar de
lugar pensado para estimular os idosos é Singapura, uma
20
15,9
15
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Fonte: IBGE
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zona azul onde a longevidade alcançou impressionantes
83,2 anos. Não é obra do acaso. Ali, os pedestres têm total
preferência, uma vez que os salgados impostos sobre carros
e gasolina foram aplicados em um robusto sistema de metrô.
Resultado: a vida é a pé. Além disso, o governo subsidia ali-
mentos saudáveis, que saem mais em conta, e fornece incen-
tivos fiscais a filhos que moram perto dos pais, para que se
sintam menos sós. No Brasil, a cidade número 1 em idosos é
Veranópolis, a 170 quilômetros de Porto Alegre, que cha-
mou a atenção nos anos 1990 por apresentar expectativa de
vida dez anos maior que a média nacional. Um bom empur-
rão veio de uma parceria com a Organização Mundial da
Saúde (OMS), que desembocou em um plano para a turma
de cabeça branca — da adequação das calçadas para evitar
quedas à formação de grupos de convivência em que fortes
vínculos sociais foram estabelecidos.
Uma questão que atormenta a espécie gira em torno de
até quanto, afinal, se pode esticar a existência. Um estudo
recente, publicado na revista Nature Communications, indi-
ca que a vida humana alcança 150 anos — a francesa Jeanne
Calment, que morreu aos 122, em 1997, é até agora dona do
recorde. Outra corrente sugere que o número tende a ser
bem mais generoso. “Na teoria, sabemos que é cientifica-
mente possível retardar em boa medida o envelhecimento”,
observa o biólogo Magalhães.
Um olhar sobre a história mostra que o Homo sapiens
vem sempre encontrando maneiras de driblar o relógio. Na
9 | 13
ARQUIVO PESSOAL
EM CIMA DO SALTO
Com uma agenda repleta de aulas de pilates e caminhadas
com amigos, Hilda Silveira, 83 anos, adora se arrumar.
“Meus filhos têm medo quando uso salto alto, mas
conheço bem os meus limites”, diz
10 | 13
ra dobrar até 2050. “A fatia que mais cresce é a que passou
dos 80, uma novidade para a qual devemos atentar”, pontua
o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves.
A adaptação a um cenário com menos jovens é objeto
de debate e políticas públicas, sobretudo na porção mais
desenvolvida do globo, que encabeçou a chamada transi-
ção demográfica. Ela traz uma realidade em que há menos
braços ativos do que crianças e velhos, equação que come-
ça a afetar o Brasil, com um nó adicional: enquanto países
desenvolvidos acumularam riqueza antes do envelheci-
mento de sua pirâmide etária, os brasileiros marcham ru-
mo à mesma situação sem ter atingido um elevado grau de
bem-estar. Significa um peso sobre os sistemas previden-
ciário e de saúde e coloca à mesa a necessidade de fazer
mais com menos gente e prolongar a permanência das pes-
soas no mercado. Para tal, é preciso haver incentivos — no
Japão, quase 15% dos trabalhadores já sopraram setenta
velinhas, ou mais. “Se pudesse ser contratada, ainda esta-
ria na ativa. Minha independência é meu bem maior”, diz a
professora aposentada Hilda Silveira, 83 anos. Bem resol-
vida com a idade que tem, ela não se vê alvo de preconcei-
to, como outros de sua faixa, e faz coro com as palavras de
Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), o estoico (e influente) filósofo ro-
mano: “Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheia de
prazer se soubermos como usá-la”. ƒ
11 | 13
COMO ENVELHECEM OS HOMENS
Uma viagem pela história da humanidade, dos sumérios, lá pelos
anos 2 700 a.C., até os dias de hoje, mostra quanto a velhice mas-
culina vem sendo percebida sob os mais diferentes ângulos.
Os idosos eram tão valorizados na Grécia Antiga que foram eles
os criadores de leis no Senado, onde se fincaram as primeiras
estacas da democracia, um conceito
que sobreviveu a todas as eras. No
Renascimento, sob o reflorescer das
artes e das ciências, Leonardo da
Vinci (1452-1519) escolheu um corpo
centenário para dissecar e estudar o
funcionamento da espécie, entenden-
do residir ali a chave para uma série
de indagações que o atormentavam.
Até o capítulo da Revolução Industrial,
no século XIX, a velhice era associada
ao conhecimento e à sabedoria, A INVENÇÃO DA
quando justamente aí passou a ser VELHICE
vista de forma negativa, já que a pas- MASCULINA,
sagem do tempo fazia as pessoas de Valmir Moratelli
menos produtivas para girar as en- (Ed. Matrix; 224
grenagens do progresso. É esse pas- páginas; 53 reais)
12 | 13
seio que promove o recém-lançado A Invenção da Velhice Mas-
culina, do jornalista Valmir Moratelli, colunista de VEJA. “Mesmo
aqueles que eram enaltecidos na sociedade em que viveram
foram alvo de preconceito em algum grau”, observa Moratelli.
No decorrer do livro, o autor se detém na representação
dos mais velhos em hieróglifos, esculturas e pinturas sublimes.
A observação de homens cravados nas telas pelos grandes
mestres revela figuras excessivamente enrugadas e curvadas,
apoiadas em bengalas — um reflexo do que eram. “Para ter
uma ideia, Tomás de Aquino escreveu, no século XIII, que os
homens aos 40 eram lentos demais para a guerra”, ressalta.
Isso mudou, e Moratelli partiu a campo, colhendo depoimentos
de mais de 200 pessoas acima dos 60 anos para decifrar co-
mo vêm atravessando tal etapa. Escolheu a ala masculina por-
que as ciências sociais acumularam pouco saber sobre o gru-
po. Uma das conclusões é de que eles sentem o peso de uma
concepção de masculinidade associada a força, virilidade e
poder. Obrigados a seguir o script, muitos se frustram e se fe-
cham, caminhando rumo à solidão. Outros se veem exuberan-
tes, mais afiados do que nunca. “Sempre achei bonita a ideia
de envelhecer com inteligência”, diz o ator Antonio Fagundes,
um dos entrevistados. Os sábios do passado, gente que soube
usar o tempo a seu favor, já pensavam assim.
13 | 13
GERAL HISTÓRIA
QUANDO TUDO
COMEÇOU
Ponto de virada do século XX, o ano de 1947 — pouco
lembrado — teve eventos fundamentais que ainda hoje
reverberam pelo mundo, na construção da guerra e da paz
ALESSANDRO GIANNINI
NOVO
VISUAL
O bar suit de
Christian
Dior: modelo-
símbolo do
New Look
HELEN H. RICHARDSON/TDP/GETTY IMAGES
1|5
EXISTEM ANOS, ao longo da
história do século XX, que nem
mesmo precisam ser sublinha-
dos, dada a estridência dos fa-
tos que os iluminaram. Em
1917, uma greve de operários
em Petrogrado iniciou a revolu-
ção bolchevique na Rússia dos
czares. A quebra da Bolsa de
Valores dos Estados Unidos,
em 1929, abriu caminho para a
Grande Depressão. Em maio
de 1968, o protesto de um gru-
po de estudantes da Universi- 1947, de Elisabeth Åsbrink
dade Paris-Nanterre transfor- (tradução de
mou a capital da França em um Leonardo Pinto Silva;
campo de batalha e, então, a Âyiné; 280 páginas;
“imaginação chegou ao poder”, 129,90 reais)
como anunciava um dos slo-
gans da turma. Em 1989, a queda do Muro de Berlim repre-
sentou o fracasso do sistema autocrático e da economia dos
satélites da União Soviética, resultando no desmanche do co-
munismo no leste da Europa. Há, contudo, um período de
doze meses discreto, do qual pouco se fala — o ano de 1947.
Dois anos depois do fim da II Guerra, o mundo — a Eu-
ropa, em particular — estava devastado, mas ainda havia
esperança. O Tratado de Paz de Paris seria assinado no
2|5
GAMMA-KEYSTONE/GETTY IMAGES
3|5
LEEMAGE/AFP
4|5
nista e filósofa francesa Simone de Beauvoir embarcava pa-
ra os Estados Unidos, onde percorreu alguns estados fazen-
do palestras e combinando encontros. Um deles, com o es-
critor (e amante) americano Nelson Algren, em Chicago,
marcaria profundamente sua vida e a inspiraria a escrever
O Segundo Sexo, marco do início do feminismo moderno.
Vivia-se a rede de mudanças debaixo das garras afiadas
dos Estados Unidos e da União Soviética, como se o planeta
fosse explodir no dia seguinte. A Doutrina Truman, declara-
ção de política externa americana que prometia apoio à Gré-
cia e à Turquia na resistência aos movimentos comunistas,
pôs calor na Guerra Fria. O Plano Marshall, que canalizou
milhões de dólares em ajuda aos países europeus para re-
construírem as suas economias, fez a balança se mexer. E
como convinha não passar uma borracha no passado, ata-
lho para o futuro, um advogado polonês especializado em
direito internacional, Raphael Lemkin, cunhou o termo ge-
nocídio para tipificar o crime de mortes em massa. “Tantas
coisas aconteceram...”, resume Elisabeth Åsbrink, com a
simplicidade dos grandes raciocínios.
E agora, como ver 1947 aos olhos de 2023? A paz é uma
quimera, Dior ainda ecoa com elegância, 1984 está presente.
O feminismo de Simone cresceu e apareceu, como convém,
e genocídios ainda acontecem. Vivemos melhor, sem dúvi-
da, do que há 76 anos, sobretudo em virtude dos avanços
promovidos pela inclusão digital, mas a história do século
XXI anda, e andará, de mãos dadas com o ontem. ƒ
5|5
GERAL AMBIENTE
BACTÉRIAS DO BEM
Microrganismos geneticamente alterados
dão alguma esperança para a correta
decomposição do plástico, cujo uso e
abuso é um nó LUIZ PAULO SOUZA
TANYA SID/GETTY IMAGES
1|5
EM 1869, estimulado pelo concur-
so lançado por um empresário que
temia o fim do marfim utilizado por
ele na fabricação de bolas de bilhar,
REPRODUÇÃO
jogo que se tornara febre nos Esta-
dos Unidos e na Europa, o inventor TEMPO... Anúncio dos
americano John Wesley Hyatt de- anos 1950: louvação do
senvolveu o celuloide, substância material, em postura
derivada do algodão. Nascia a pri- que hoje soa uma
meira versão de um plástico para evidente aberração
uso industrial, inflamável. Ele se es-
palharia com velocidade em fábricas e lares, como padrão, até
o surgimento do polietileno, em 1933. Leve, flexível, barato e
resistente, o polímero revolucionou a sociedade. Nos anos 1950,
anúncios celebravam a mágica dos sintéticos, em diversas mo-
dalidades, como o celofane, que apareciam até em propagan-
das envolvendo bebês, como símbolo de segurança e eficácia
(veja ao lado). Vê-los, agora, é um anátema. O passar do tempo
e a infeliz capacidade de poluição dos plásticos — alguns preci-
sam de 1 000 anos para serem absorvidos pela natureza (leia
no quadro da pág. ao lado) — inauguraram uma outra postura,
de rechaço. E já há algumas décadas busca-se uma solução, al-
go que substitua o material ou o faça ser diluído.
Brotou, recentemente, uma empolgante novidade, embora
ainda seja preciso investigação mais aprofundada. Cientistas
da Universidade de Illinois e do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) desenvolveram um método orgânico ca-
2|5
O TAMANHO DO ESTRAGO
O plástico revolucionou a indústria, mas
se tornou uma dor de cabeça ambiental
14 MILHÕES
DE TONELADAS SÃO JOGADOS NO OCEANO POR ANO
3|5
paz de destruir completamente o plástico, sem deixar resíduos.
São duas bactérias modificadas geneticamente que trabalham
em conjunto para digerir as substâncias tóxicas que surgem da
degradação do tipo plástico mais produzido no mundo, o PET,
e simultaneamente gerar moléculas inofensivas que podem vir
a ser utilizadas na fabricação de novos produtos. “Com o re-
curso da biotecnologia, equipamos os microrganismos com
circuitos genéticos capazes de transformar o lixo”, disse a VE-
JA Ting Lu, autor de um dos artigos publicado na reputada re-
vista Nature Communications. Nos últimos anos, a busca por
micróbios naturais que consomem o plástico foram descritos,
havia ansiedade por sucesso, apesar dos resultados tímidos.
Agora, sim, brotou empolgação. Seria um extraordinário passo
para uma tendência incontornável, por ser respeitosa ao am-
biente — o upcycling, a reciclagem que aproveita resíduos e
materiais para a manufatura de um produto com valor igual
ou maior do que o dos itens que o originou. Soa bonito no mun-
do ideal, mas há imensos obstáculos do ponto de vista prático.
Hoje, a indústria plástica, avaliada em 590 bilhões de dóla-
res anuais (70% maior que a indústria dos videogames, por
exemplo), produz cerca de 380 milhões de toneladas de plásti-
co a cada doze meses — gerando, ressalve-se, uma quantida-
de ainda mais obscena de gases do efeito estufa. No Brasil,
apenas 23,1% dos resíduos são reciclados, enquanto todo o
resto dos plásticos de uso único, como as garrafas de água e
refrigerante, as sacolas e os canudos, encontram seu destino
nos mares e nos lixões.
4|5
Eis o grande e assustador nó. O upcycling e os biodegradá-
veis seriam uma solução, mas exigiriam, como premissa, o
descarte correto do lixo, o que não ocorre. A Política Nacional
de Resíduos Sólidos brasileira estabeleceu a responsabilidade
compartilhada: enquanto os usuários deveriam descartar cor-
retamente o lixo, os municípios ficaram responsáveis pela co-
leta seletiva e as empresas, pela restituição e tratamento da
sujeira produzido pelos seus produtos. É movimento que dei-
xaria os plásticos longe do intestino de peixes e tartarugas e
permitiria sua reutilização. Não é assim que funciona, contu-
do e infelizmente. “Se todos seguissem as responsabilidades
acordadas, teríamos melhora”, diz Paulo Teixeira, presidente-
-executivo da Associação Brasileira da Indústria do Plástico.
Há alguma evolução, mas ela é tímida. Em 2020, o gover-
no brasileiro se comprometeu a recuperar metade de todas as
embalagens produzidas no país até 2040. O cenário ainda es-
tá muito distante dessa quimera, e seria preciso uma revolu-
ção de comportamento para alcançá-la. “Os diversos tipos de
plástico pertencem a uma classe de materiais que, em um cur-
to período de tempo, passou a estar totalmente incorporada
em todos os setores da sociedade”, diz Talita Martins Lacer-
da, professora do departamento de Biotecnologia da Escola
de Engenharia de Lorena da Universidade de São Paulo
(USP). “A melhor alternativa é, sem dúvida, repensar os hábi-
tos de consumo”. Enquanto eles não mudam, e é realmente
difícil mexer com o que está consolidado, as bactérias do bem
desenvolvidas em laboratório representam um alento. ƒ
5|5
GERAL SAÚDE
1|6
“ELE DOMINOU o planeta por 190 milhões de anos e
matou com uma potência inabalável durante a maior
parte de seu reinado de terror (...) ao longo das eras, im-
pôs sua vontade à raça humana e determinou os rumos
da história”, escreve o professor americano Timothy Wi-
negard em Mosquito (Intrínseca), um livro protagoniza-
do por aquele que, “mesmo diante da ciência moderna,
se mantém como o animal mais nocivo para a humani-
dade”. O tom do historiador soa apocalíptico, mas, com
as mudanças climáticas e o aumento da temperatura glo-
bal — evidentes nas recentes ondas de calor —, é de es-
perar que não tenhamos refresco com esses insetos, tão
perigosos por causa dos microrganismos que carregam e
disseminam entre nós.
Doenças propagadas por mosquitos, especialmente o nos-
so conhecido Aedes aegypti, foram um dos principais temas
do Congresso Brasileiro de Infectologia, em Salvador. Os nú-
meros da dengue, a principal mazela viral provocada pela pi-
cada do inseto no país, atingiram índices alarmantes. Em
2022, estima-se que tenham ocorrido 1,5 milhão de casos e
mais de 1 000 mortes pela doença. E, neste ano, só até agora,
foram outros 1 000 óbitos registrados — nunca se morreu
tanto de dengue por aqui. Com a urbanização descontrolada,
a destruição ambiental e as transformações climáticas, o in-
seto se alastrou por todas as regiões, e já se encara como im-
provável sua eliminação. O tempo, pelo contrário, está propí-
cio para ele. “Com os extremos de temperatura, e o calor, o
2|6
QUEM PEGA CARONA
Três patógenos transmitidos pelo Aedes
que atormentam os brasileiros
DENGUE
C H I K U N G U N YA
ZIKA
3|6
ROBERTO SUNGI/FUTURA PRESS
4|6
ALESSANDRO BUZAS/FUTURA PRESS
5|6
de males distribuídos pelo Aedes, ainda constam o vírus
da zika (preocupante para gestantes, devido ao perigo da
microcefalia em bebês) e o da febre amarela.
A ameaça da dengue e seus comparsas tampouco se
restringe ao Brasil. Fez soar um alerta da Organização
Mundial da Saúde (OMS), que bate na tecla da influência
das mudanças climáticas na circulação do mosquito.
Com um adendo: hoje, metade da população do globo es-
tá na zona de risco para a doença. E antes a encrenca se
resumisse ao Aedes aegypti. Um “primo” dele, o Aedes
albopictus, tem ganhado terreno no Brasil, sendo tam-
bém capaz de nos bombardear com as tais arboviroses.
“Era um inseto mais restrito às matas, mas que está avan-
çando sobre os centros urbanos. E, diferentemente do
Aedes aegypti, voa em nuvens”, diz Luz. Não por acaso,
as descrições dos experts evocam pragas bíblicas.
É claro que não dá para ficar de braços cruzados com
um quadro catastrófico como esse. E, de fato, muitos
cientistas têm quebrado a cabeça buscando formular va-
cinas e novas estratégias para deter os mosquitos em si.
Mas não adianta mirar o micro e se esquecer do macro:
cuidar da saúde do planeta é indissociável do controle
dessas moléstias. Moléstias que, ao lado da malária (esta
transmitida por outro mosquito, o Anopheles), já tiram o
sono de autoridades na Europa e nos Estados Unidos.
Afinal, se o clima continuar esquentando, vai voar mos-
quito para tudo quanto é lado. ƒ
6|6
GERAL ARQUEOLOGIA
REDESCOBERTA
ASTECA
Artista holandês reconstrói virtualmente o mítico
império, transformando a tecnologia 3D
em uma ferramenta de conservação da memória
e do patrimônio histórico VALÉRIA FRANÇA
1|6
A ARQUITETURA, a cultura e os costumes dos povos
originários da América Central ainda são pouco divulga-
dos mundo afora. Um dos principais motivos é que, para
impor sua dominação, a colonização espanhola destruiu
monumentos e artefatos das sociedades oprimidas a fim
de substituí-los pelo padrão europeu — um fenômeno que
também ocorreu no Brasil com os portugueses. No caso
da civilização asteca, a falta de informações sobre a re-
gião central do México, chamada no período pré-hispâni-
co de Tenochtitlán, e uma grande curiosidade sobre aque-
la época levaram o artista digital holandês Thomas Kole a
recriá-la digitalmente. Durante um ano e meio, ele mer-
gulhou em pesquisas históricas e arqueológicas a fim de
reconstruir um patrimônio da humanidade soterrado pelo
tempo e pelos conquistadores.
O trabalho foi árduo, a começar pelo fato de haver pou-
cos especialistas no tema aptos a conceder relatos e expli-
cações. A título de curiosidade: no curso de história da
Universidade de São Paulo (USP), a melhor da América
Latina, só existem professores que se debruçaram sobre
essa civilização na pós-graduação, e não na graduação.
Mas, de tijolo em tijolo documental, Kole conseguiu mon-
tar um retrato do conglomerado urbano dos astecas. Era
um local organizado, planejado e suntuoso, bem diferente
da imagem pintada pelos colonizadores. “Aprendemos na
escola que os nativos e as civilizações pré-colombianas
eram primitivos”, diz Kole. Porém, quanto mais avançava
2|6
SOBREVIVENTES
DA COLONIZAÇÃO
Apesar da destruição
promovida pela invasão
hispânica, algumas pirâmides
resistiram para contar história
T E N AY U C A
Descoberta em 1925, acredita-se que
serviu de base para a construção do
Templo Maior dos astecas
S A N TA C E C Í L I A
ACAT I T L A N
Local onde eram cultuadas as
divindades mais importantes entre
eles: Huitzilopochtli (deus supremo)
e Tlaloc (deus da chuva e do trovão)
CHOLULA
Situado em região vulcânica,
tornou-se um importante centro
religioso, o mais extenso na
região mexicana
3|6
em seus estudos, mais ele se surpreendia com o que via e
podia reproduzir na tela.
Mesmo sem nunca ter visitado a América Central, o
holandês conseguiu dar vida à capital e a outras cidades
astecas com riqueza de detalhes. O grupo que habitava
Tenochtitlán, genericamente chamado de Império Asteca,
era formado por três cidades: México Tenochtitlán, Tex-
coco e Tlacopan. Em seu trabalho de recuperação virtual,
Kole pavimentou calçadas, lagos, bulevares e monumen-
tos, entre eles o Templo Maior, considerado o mais impor-
tante dessa civilização, além de ser um exemplo de como
a cultura indígena sofreu um processo de apagamento.
O primeiro prédio do monumento foi erigido por volta de
1325. Passou posteriormente por seis reformas de amplia-
ção, até ser destruído pelos espanhóis, em 1521. Sobre as
ruínas, os conquistadores elevaram construções nos mol-
des europeus. Só na década de 1980, o governo mexicano
autorizou escavações no local, que permitiram resgatar
mais de 7 000 objetos, hoje reunidos em um museu. A co-
roação dessa saga vem agora com os pixels da tecnologia
3D. “Esse trabalho é uma forma de resgatar e valorizar o
rico trabalho das sociedades indígenas”, diz a historiadora
Glaucia Montoro, da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ).
De fato, o recurso se transformou numa ferramenta re-
levante para resgatar a arquitetura de povos antigos e
conservar sua memória. E já tem bons precedentes. Há
4|6
doze anos, a mesma tec-
nologia levou o sérvio Da-
nila Loginov a começar a
coleta de imagens da Ro-
ma Antiga, com a ajuda
de dois sócios especializa-
dos em imagem digital.
Juntos, criaram o Projeto
História em 3D, por meio
TWITTER @THOMASKOLETA
do qual reconstruíram o
Império Romano com to-
da a pompa e circunstân-
cia da época — trabalho DE TIJOLO EM TIJOLO
que consumiu uma déca- Kole, o artista holandês:
da. Ao final, o trio produ- recriação minuciosa
ziu um vídeo que permite
às pessoas fazer um tour virtual por pontos históricos, co-
mo o Coliseu. Nessa levada, na França, a reconstrução da
catedral Notre-Dame de Paris, destruída em parte por um
incêndio em 2019, só foi possível devido a um desenho di-
gital do prédio feito quatro anos antes pelo historiador
Andrew Tallon — ele chegou a usar um scanner a laser
para obter imagens com precisão milimétrica.
No Brasil, tecnologias como essas também vêm sendo
abraçadas para resgatar nossas heranças. Tomado pelo
fogo em 2018, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, guar-
dava 20 milhões de itens históricos. Graças à existência
5|6
de um inventário digital de tudo o que havia dentro do
prédio, boa parte das peças já foi recuperada. “É funda-
mental absorver novos recursos para auxiliar na preser-
vação do patrimônio”, diz Leandro Grass, presidente do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan). Na sede do Iphan, em Goiânia, atualmente há
uma exposição intitulada Goiás: 11 000 Anos, com peças
do sítio arqueológico do município de Serranópolis, onde
foi encontrado um esqueleto de 12 000 anos. Com o apoio
de óculos 3D, a mostra ganha interatividade: os visitantes
fazem um passeio virtual pelas grutas, onde conseguem
visualizar pinturas rupestres e câmaras que já serviram
de moradia para os povos originários, além de artefatos
que revelam seu modo de vida. Nesse ambiente recriado,
de inegável relevância histórica, até mesmo quem poderia
achar a visita árida e maçante costuma se surpreender
com o aspecto lúdico — diversão que, para as crianças,
lembra até um jogo de videogame. De Serranópolis a Te-
nochtitlán, a tecnologia se consolida como uma grande
aliada do passado. ƒ
6|6
GERAL ESPORTE
A TURMA
DO FAZ-TUDO
Muito além do contrato, empresários passam a
atuar na gestão das finanças, da imagem e
até da família dos atletas, postura que combina
com novas regras da Fifa DIEGO ALEJANDRO
ARQUIVO PESSOAL
JUSTIN TALLIS/AFP
1|6
AO PENDURAR as chuteiras pelo Santos, em 1974, Pelé
convocou uma auditoria para fazer um balanço de sua si-
tuação financeira, incompatível com a dimensão do eter-
no craque. Revelou-se o caos, com dívidas que consu-
miam 40% do salário do rei. Era resultado de anos de des-
caso e oportunismo de alguns de seus parceiros de negó-
cios. O mais folclórico foi José Ozores Gonzales, o Pepe
Gordo, empresário desde o tempo de calças curtas do gê-
nio, que tomou decisões invariavelmente tortas.
NOVAS POSTURAS
Em meio à mudança nos regulamentos da Fifa,
empresários se reinventam e vão além da
negociação de contratos
COMUNICAÇÃO EFICAZ
2|6
A presença de agentes ao estilo de Pepe Gordo ao lado
de futebolistas foi, desde sempre, comum como a demora
do VAR nos lances decisivos. A boa-nova: eles parecem
ter os dias contados. A partir de outubro, começam a vi-
gorar, a ferro e fogo, as regras estabelecidas pela Fifa para
controlar e pôr ordem em um mundo repleto de desvãos
— o das transações em torno dos esportistas. Os cartolas
de Zurique, em gesto correto, estabeleceram regras rígi-
das. Os representantes dos atletas receberão, nas transa-
ções, compra e venda, um teto de 5% do salário do joga-
dor, nos casos de vencimentos de até 200 000 dólares
anuais. Para soldos acima desse patamar, a limitação é de
3%. Pode não parecer tanto, mas o mercado é bilionário
— os empresários da bola, em todo o mundo, faturaram o
GESTÃO FINANCEIRA
3|6
equivalente a 3 bilhões de reais só em 2022. Sem conside-
rar, é claro, as permanentes brigas na Justiça. Se a Fifa fi-
zer valer as normas, e tudo indica que sim, ganha relevân-
cia um novíssimo tipo de profissional.
Bem-vindo, portanto, ao universo dos agentes que não
pensam apenas em cifras — mas que, evidentemente, não
rasgam dinheiro. Adeus a personagens que só fazem con-
tas e miram apenas as porcentagens. Adeus ao interesse
restrito a assinaturas de contratos e pouca coisa mais. O
agente moderno faz de tudo, como se reinventasse o ofí-
cio. Preocupa-se com o presente, com as finanças, sem
dúvida, mas também com a imagem nas redes sociais, o
contato com a imprensa, a vida familiar, os aspectos psi-
cológicos atrelados a competições de alto nível etc.
SAÚDE
4|6
A Magnitude, uma agência estabelecida no Rio de Janei-
ro, diz oferecer um trabalho em “360 graus”, ao lidar com
jovens da base dos clubes de futebol e outros já consagrados.
Zela pelo pacote completo — o que inclui ensino de idiomas
e apoio no exterior. Acompanha até a relação dos contrata-
dos com seus familiares, sugerindo, muitas vezes, aparições
públicas com os filhos, como acontece com o zagueiro Rob-
son Bambu, do Vasco da Gama, que invariavelmente entra
no gramado com um pequeno no colo. “A possibilidade de
um atleta ter um ponto de contato, e a partir dele saber o que
fazer, quais decisões tomar, é um conforto”, diz Raphael Fra-
ga, sócio-fundador da Magnitude. “A manutenção de con-
tratos a longo prazo é um modo de poder acompanhar a
evolução e os bons resultados esperados.”
A D M I N I S T R A Ç Ã O FA M I L I A R
5|6
ARQUIVO PESSOAL
SERVIÇO COMPLETO
Sócios da Magnitude
(abaixo) e Robson Bambu: a
gestão envolve até a família
6|6
GERAL ESTILO
NOS PÉS DA
CIVILIZAÇÃO
O apelo atemporal dos tênis faz grandes marcas
vasculharem seus acervos em busca
de clássicos esquecidos e aquecerem um mercado
de 150 bilhões de dólares MARÍLIA MONITCHELE
ADIDAS X GUCCI
1|5
E SE OS TÊNIS FALASSEM? Contariam uma das mais
interessantes trajetórias de consumo do nosso tempo — a
de uma revolução que começou silenciosa, um tanto de-
sengonçada e sem graça, e que a partir dos anos 1980 do
século passado ergueu um edifício de comportamento.
Estima-se que o mercado de calçados esportivos — e que
invariavelmente não são usados para a prática de esportes
— tenha movimentado algo em torno de 152,4 bilhões de
dólares em 2022. Há quem o chame de “subcultura”, mas
o uso do elemento designativo de inferioridade, o “sub”,
soa indevido. Há, em torno de grifes conhecidas e outras
nem tanto, uma real cultura, com C maiúsculo. A era do
tênis, que associa praticidade e elegância (ou não, tanto
faz) a um jeito de ser, a manifestos políticos, talvez seja
uma das mais fortes marcas da passagem do século XX
para o XXI. Como revelou o filme Air — A História por
Trás do Logo, de Ben Affleck, a emergência da onda ex-
plodiu em 1984, com um certo modelo de um certo Mi-
chael Jordan, o melhor jogador de basquete de todos os
tempos — e mais nada precisa ser dito. Contudo, eis aí
uma novidade: os últimos meses aceleraram uma tendên-
cia sem limites, e convém agora iluminá-la. Parece não
haver dúvida: quando as futuras civilizações olharem pa-
ra a época atual, verão um par de pisantes, o rei incontes-
tável das ruas, seu território sagrado e inescapável.
Dá-se a permanência do fenômeno com o relançamen-
to de clássicos que não perdem o charme. Um exemplo
2|5
DIVULGAÇÃO
3|5
RICH FURY/GETTY IMAGES
4|5
REPRODUÇÃO
ÍCONE Will Smith calça um Air Jordan: hit nos anos 1990
5|5
PRIMEIRA PESSOA
PC PEREIRA/FACEBOOK @EDUARDOSUPLICY
1|4
PRECISO DE PAZ
Aos 82 anos, o deputado estadual Eduardo Suplicy fala do
uso de Cannabis para frear os sintomas de Parkinson
2|4
Iniciei o tratamento convencional em fevereiro, com remé-
dios conhecidos. Mas comecei a pesquisar cada vez mais e, ao
escutar o depoimento de pessoas que foram beneficiadas por
medicamentos à base de Cannabis, decidi experimentar, sem
abandonar a via tradicional. Na adolescência, nunca fumei mui-
ta maconha, nem tabaco. Era esportista — jogava futebol, vôlei,
basquete, tênis e pratiquei boxe dos 15 aos 21 anos. Cuidava da
saúde. Quem me deu o impulso decisivo para buscar o trata-
mento alternativo foi um grande amigo, envolvido em projetos
para que a Cannabis medicinal possa ser utilizada no Brasil para
certos tipos de doença, como autismo, Alzheimer e outras. Ele
que me levou a conhecer a primeira mãe de São Paulo a conse-
guir autorização na Justiça para plantar Cannabis em casa. Tu-
do para tentar dar uma vida melhor à filha, de 20 anos, que teve
mais de 600 convulsões até os 9. Aos 10, iniciou o tratamento e
começou então a falar, brincar e andar. Visitei também uma as-
sociação terapêutica em Franca, onde as mães falavam com
emoção dos benefícios desse tipo de tratamento para os filhos.
Conversei bastante com meus médicos antes de decidir
seguir esta trilha, e eles não foram contra. Tomo cinco gotas
de óleo de Cannabis no café da manhã, mais cinco no almo-
ço e outras oito no jantar. Acho importante que todos pos-
sam ter acesso a esses medicamentos, inclusive pelo SUS, já
que a versão industrializada é bem cara — uns 1 200 reais o
frasco. Produto similar, é verdade, se produz em cooperati-
vas no Brasil, e custa 180 reais. Acabei me envolvendo tanto
com o assunto que virou uma causa. E assim resolvi marcar
3|4
uma reunião com a Anvisa. Acredito que a agência esteja
sensível à questão. Sou um paciente disciplinado. Tenho
acompanhamento com uma neurologista e sigo as orienta-
ções à risca. Faço aulas de ginástica com uma personal trai-
ner três vezes por semana para me manter sempre ativo. Es-
tou me sentindo bem melhor. A dor na perna sumiu e cami-
nho com mais firmeza. Se seguro um copo, o tremor nas
mãos ainda está lá, mas mais suave. Executo bem as tarefas
do dia a dia e continuo trabalhando intensamente.
Outro dia, viajei à Coreia do Sul. Não é um traslado fácil
— são dois dias de ida, mais dois na volta, entre aeroporto e
avião. Fui ao Congresso Internacional da Renda Básica e
aproveitei para visitar túneis subterrâneos da época da guer-
ra civil com 1 quilômetro de extensão. Era um percurso ín-
greme, tinha de subir e descer uma ribanceira, e precisava
estar em bom estado físico. Dois dias depois de voltar, já es-
tava em Brasília. É isso o que me move. Tenho pedido a Deus
e aos orixás que eu possa ter a boa saúde pelo tempo neces-
sário para ver a renda mínima algum dia implantada no país.
Agora, acrescentei a defesa da Cannabis medicinal ao meu
rol de bandeiras. O número de convites para palestras só au-
menta — três ou quatro por semana. Falei por uma hora e
meia numa faculdade, fui aplaudidíssimo e me pediram até
para cantar. Escolhi Blowin’ in the Wind, do Bob Dylan, que
me traz paz. É disso que eu preciso. ƒ
4|4
CULTURA ENTRETENIMENTO
MAGIA CENTENÁRIA
Enquanto celebra 100 anos de sua criação,
a Disney enfrenta novas crises — um teste
de resiliência que ela já superou no passado
RAQUEL CARNEIRO
MATT STROSHANE/WDW
1 | 10
PHOTO12/AFP
CRIADOR Walt Disney e o Mickey original:
rato lucrativo na recessão
W
alt Disney (1901-1966) tinha um apego por
personagens que, apesar das condições des-
favoráveis, davam a volta por cima alcançan-
do sonhos impossíveis. Os clássicos do estú-
dio fundado por ele atestam essa predileção:
do boneco de madeira que almeja se tornar humano até a
sereia que faz de tudo para ter pernas, os sonhadores “aza-
rões” são um denominador comum na mitologia da Disney
— sendo seu próprio fundador um deles. De origem humil-
de, vivendo de bicos e morando de favor na casa de paren-
tes, Walt Disney desafiou as circunstâncias ao unir ilustra-
2 | 10
ção e cinema, duas formas de arte que mal conversavam
nos primórdios de Hollywood. Sem conseguir emprego
num grande estúdio, o artista de veia empreendedora não
se deu por vencido: em 16 de outubro de 1923, na garagem
de um tio em Los Angeles, Walt e seu irmão Roy O. funda-
ram o Disney Brothers Cartoon Studio. A empreitada foi a
centelha fundadora do império que aprendeu, como ne-
nhum outro, a monetizar a diversão: ao longo dos anos, a
Disney se expandiu em parques, resorts, cruzeiros, produ-
tos licenciados, canais de TV e, recentemente, chegou ao
streaming e aos games — um conglomerado que hoje vale
estonteantes 148 bilhões de dólares.
Cem anos após a sua criação, o gigante do entreteni-
mento, contudo, celebra o marco em tom anticlimático: em
2023, a Disney teve perdas financeiras significativas em
bilheteria de cinema, além de queda no fluxo de visitantes
de seus parques e no número de assinantes da plataforma
Disney+. Isso enquanto apertava os cintos para enxugar
5,5 bilhões de dólares de seus gastos anuais. Não bastas-
sem tais dissabores, virou alvo do governador de extrema
direita da Flórida, Ron DeSantis, que travou uma guerra
ideológica e cultural contra Mickey e sua turma. Em segui-
da, a greve de roteiristas e atores em Hollywood atrasou
projetos, criando um efeito dominó na agenda do estúdio.
Mas, se existe uma empresa que entende de montanhas-
-russas, é a Disney — e não só aquelas que atraem enormes
filas de turistas em seus parques. Ao longo de sua história
3 | 10
DISNEY ENTERPRISES
HISTÓRICO
Acima, Halle Bailey
como A Pequena
Sereia; à esq.,
Pato Donald
contra Hitler:
fases da
sociedade
GALERIE BILDERWELT/GETTY IMAGES
4 | 10
de altos e baixos, ela sobreviveu a duas terríveis recessões,
uma guerra mundial e uma pandemia, fora fatores políticos
e sociais que exigiram posicionamentos e mudanças dra-
máticas — renovações às quais a Disney se adequou com
um sorriso no rosto e música melosa ao fundo, sem perder
de vista o escapismo, sua matéria-prima essencial.
Nesse espírito, o cômico ratinho Mickey Mouse fez a
Disney passar pela Grande Depressão, da década de 1930
— não apenas de forma simbólica, com suas aventuras cati-
vantes, mas também financeiramente. O rato de orelhas re-
dondas virou mina de ouro nas mãos do marqueteiro Kay
Kamen, contratado por Walt em 1932: em menos de dois
anos, Mickey fez mais de 30 milhões de dólares estampan-
do de embalagem de doces a roupas, acessórios e material
escolar — início da famigerada cultura de merchandising
que hoje domina o setor. O lucro não só fez a Disney passar
pela crise, como serviu de investimento para outra inova-
ção: nasciam assim os filmes de animação. Branca de Neve
e os Sete Anões foi o primeiro longa-metragem da história
feito com desenhos coloridos e falas — antes, havia só ex-
perimentações no cinema mudo em preto e branco. O filme
foi uma das muitas revoluções artísticas e mercadológicas
inescapáveis inventadas pela Disney (veja o quadro).
Em retrospecto, os momentos de crise se revelaram pro-
líficos para a empresa. Nos anos 1940, em plena II Guerra,
a Disney emprestou sua maior arma — a magia que con-
quista corações e mentes — à luta contra o nazismo, com
5 | 10
direito a um feroz Pato Donald antagonizando Hitler. Na
década seguinte, quando os Estados Unidos mostravam os
primeiros sinais de recuperação após o conflito, Walt idea-
lizou a Disneylândia. Começava ali a maior empreitada fi-
nanceira da companhia, que prometia fazer do reduto na
Califórnia o “lugar mais feliz na Terra”. Atualmente, a Dis-
INOVADORA
E RADICAL
Confira quatro
momentos em
que a Disney
revolucionou o
mercado de
entretenimento
6 | 10
ney ocupa os sete primeiros lugares do ranking de parques
temáticos mais visitados do mundo, somando 100 milhões
de pessoas por ano. Além de lucrativos, os resorts que re-
criam cenários de filmes e exploram seus personagens e
narrativas em brinquedos retroalimentam a popularidade
dos títulos da casa, num looping sem fim. Não à toa, o cres-
P ONTO
TURÍSTI C O
Com seis resorts que abrigam
doze parques temáticos no
mundo, a Disney fez de seu
universo de entretenimento um
destino de férias. A primeira
Disneylândia, na Califórnia,
abriu em 1955 como um
projeto escapista
pós-guerra
7 | 10
cimento dos parques está diretamente ligado à variedade
de universos da companhia — o que explica a voracidade
da Disney por grifes do entretenimento, que levou à aquisi-
ção de marcas como Pixar, Marvel e Star Wars.
Em pronunciamento na semana passada, o CEO Bob Iger
anunciou uma injeção de 60 bilhões de dólares nos parques
OL HA R
G LO BA L
Bem antes do streaming
e sua globalização de séries,
Walt Disney já flertava com
públicos de outros países.
A exemplo do papagaio
brasileiro Zé Carioca,
fruto de uma passagem
do animador pelo Rio
em 1941
8 | 10
A B S ORÇÃO
DE MA RCA S
Nos últimos 15 anos, a
Disney passou a adquirir marcas
conhecidas, como Pixar, Marvel
e Star Wars. Entre altos e baixos, a
controversa tática monopolista fez da
empresa o maior conglomerado de
entretenimento do mundo
FOTOS DIVULGAÇÃO/WDW; DISNEY/MARVEL
9 | 10
nos próximos dez anos. A expectativa é de que boa parte
desse investimento seja direcionada para o Disney World,
em Orlando, na Flórida. Mas isso , claro, será afetado pelo
cenário político por vir. De olho na eleição presidencial ame-
ricana, DeSantis deve aumentar o cerco à empresa — a qual
acusa de doutrinação liberal de crianças e de privilégios fis-
cais. Em resposta, a Disney processou o político.
Curiosamente, por décadas a Disney esteve do lado
oposto do espectro político a quem DeSantis a acusa de fa-
vorecer. Walt era um cristão conservador que nunca se pri-
vou de retratar sua visão de mundo nos filmes. Sua contri-
buição ao soft power dos Estados Unidos é imensurável. O
cenário começou a mudar recentemente, sob as pressões
de uma sociedade hiperconectada, que deu vazão a movi-
mentos como o feminismo e o antirracismo. Saem de cena
as princesas loiras para dar espaço a garotas empoderadas
de diferentes etnias e cores de pele — um exemplo foi a es-
colha de Halle Bailey para interpretar A Pequena Sereia.
No ano passado, a animação Mundo Estranho se tornou a
primeira do estúdio com um protagonista gay. Mais que
posicionamento ideológico, a diversidade traz ganhos:
uma das maiores bilheterias da casa é a de Pantera Negra,
de 1,3 bilhão de dólares. Recentemente, o estúdio deu ao
ator negro Anthony Mackie o uniforme do principal herói
da Marvel, o Capitão América. Mudar é preciso — e a Dis-
ney conserva, assim, sua magia centenária. ƒ
10 | 10
CULTURA PERFIL
O SHOW DAS
EXPOSIÇÕES
Ex-motorista, Rafael Reisman tornou-se produtor
de mostras imersivas de sucesso e, de olho em
um novo projeto do tipo, acaba de arrematar relíquias
de Freddie Mercury FELIPE BRANCO CRUZ
BAÚ DO ROCK
Reisman posa ao
lado da capa, da
coroa e do terno
rosa de Freddie
Mercury: compra
ARQUIVO PESSOAL
milionária
1|6
EM MEADOS de agosto, a casa de leilões Sotheby’s ofe-
receu um coquetel em Londres para exibir centenas de
peças do cantor Freddie Mercury a possíveis comprado-
res. Entre eles, estava o brasileiro Rafael Reisman, de 53
anos. Num certo momento, o estranho no ninho conse-
guiu se aproximar de Mary Austin, herdeira de Mercury
— e perguntou qual item da memorabilia do cantor ela
achava mais importante. Disfarçadamente, Austin apon-
tou para um terno rosa usado pelo músico no clipe de
The Great Pretender. Reisman sorriu e anotou a preciosa
dica — afinal, ela havia sido namorada de Mercury e, se-
gundo o próprio, a única mulher que amou na vida. Dona
do incrível acervo desde a morte do cantor, em 1991,
Austin decidiu vendê-lo num leilão sem precedentes no
rock e reverter parte da renda para instituições que aju-
dam vítimas da aids, doença que vitimou o ex. Dali a al-
guns dias, quando o pregão finalmente ocorreu, lá estava
Reisman — que arrematou o terno rosa favorito de Aus-
tin. Mas essa nem foi a peça mais simbólica e valorizada
que adquiriu: em parceria com um grupo de investidores
estrangeiros, ele comprou o inconfundível conjunto de
capa e coroa usado por Mercury nos shows, num total
equivalente a 6 milhões de reais.
O sucesso no leilão joga luz sobre uma figura em fran-
ca expansão nos bastidores do showbiz nacional. Avesso
aos holofotes da fama, Reisman diz que a compra não é
um mero capricho de fã, e sim investimento num negócio
2|6
que tem se mostrado lucra-
tivo: as mostras imersivas.
“Eu sabia que sem a capa e
a coroa não conseguiria fa-
zer uma exposição e estava
disposto a pagar o preço
que fosse para tê-las”, afir-
ma. Reisman sabe do que
está falando: nos últimos
anos, ele se tornou um dos
maiores produtores desse
tipo de exposição no país,
com mostras de imagens
em alta resolução que vão
de quadros de Van Gogh
ao acervo de Elvis Presley
e à história da Nasa.
A trajetória do empre-
sário é curiosa. Brasileiro
de origem judaica, ele se
mudou nos anos 1980 de
ILPO MUSTO/SHUTTERSTOCK
3|6
ARQUIVO PESSOAL
4|6
DIVULGAÇÃO
5|6
peças do rei do rock. Para isso, teve de convencer a viú-
va, Priscilla Presley, a liberar o material. E conseguiu: ele
fez a exposição sobre Elvis em São Paulo, em 2012, na
primeira e única vez que os 500 itens saíram de Grace-
land, atraindo 150 000 pessoas. Com a expertise, Reis-
man passou a fazer mostras como a de Van Gogh, que já
atraiu mais de 1,2 milhão de pessoas — e que acabou de
estrear uma nova versão em 8K em São Paulo e Maceió,
usando equipamentos de projeção de última geração.
Sempre em sociedade com o grupo DCSET, de Dody Si-
rena, ex-empresário de Roberto Carlos, já explorou de
Frida Kahlo a Banksy.
No leilão de Freddie Mercury, Reisman adquiriu roupas,
sapatos, acessórios, fotografias e a coleção de LPs do músi-
co. Seu próximo desafio é convencer a banda a liberar as
músicas e obter autorização de Mary Austin para usar a
imagem do cantor em uma mostra. Ao se aproximar da
herdeira dele no leilão, Reisman já deu um passo. O sho-
wman das grandes exposições não brinca em serviço. ƒ
6|6
CULTURA CINEMA
LATIDOS PARA
MAIORES
Sátira dos filmes fofinhos sobre bichos,
Ruim pra Cachorro investe em humor apimentado
e nas cenas de pastelão para confirmar que a comédia
adulta voltou com tudo às telas THIAGO GELLI
CHUCK ZLOTNICK/UNIVERSAL PICTURES
1|4
O MELHOR AMIGO do homem é quadrúpede, late e
gosta de ter a barriga coçada — ou ao menos é o que di-
zem filmes como Sempre ao Seu Lado e Marley & Eu. A
julgar pelo iconoclástico Ruim pra Cachorro, porém, tal
sentimentalismo já está batido. Sem o charme de Ri-
chard Gere ou Owen Wilson naqueles dois longas de su-
cesso, o dono da vez é um cafajeste incorrigível e em-
briagado, que prefere passar os dias em autoindulgência
do que cuidar de seu parceiro canino, o qual maltrata e
abandona. O protagonista de quatro patas, Reggie (du-
blado por um sempre histriônico Will Ferrell), descobre
então a companhia de outros vira-latas pelas vielas e,
gradualmente, chega à conclusão vingativa mais lógica
possível: ele deve se unir a seus novos amigos para ar-
rancar o pênis do homem que o desprezou.
Vulgar e absurdo, Ruim pra Cachorro satiriza um dos
últimos bastiões da pureza no cinema: os cãezinhos in-
defesos. Com um misto de efeitos especiais e animais de
verdade, o filme exibe desventuras caninas do mais bai-
xo calão, recorrendo a tiradas fálicas, acidentes psicodé-
licos e escatologia. Assim, a produção se soma a outros
lançamentos recentes que confirmam: a comédia adulta,
que teve um reinado forte nas telas nos anos 1980 e 1990
com o uso de piadas tão picantes e explícitas quanto in-
fantilizadas, está de volta de forma triunfal.
Para verificar a extensão do fenômeno, não é preciso
buscar muito longe. Em julho, Que Horas Eu Te Pego?,
2|4
com Jennifer Lawrence, se tornou o exemplar mais bem-
sucedido do gênero nos últimos anos, arrecadando mais
de 80 milhões de dólares ao redor do globo ao mostrar a
estrela como uma mulher adulta decidida a tirar a ino-
cência de um jovem. Logo depois, Loucas em Apuros di-
versificou o filão com seu protagonismo asiático. No mo-
mento, Bottoms — ainda sem título ou data de estreia
por aqui — colhe êxito no circuito indie americano gra-
ças ao humor focado na astúcia de duas adolescentes lés-
bicas que desejam perder a virgindade.
Ao longo da década passada, o gênero já havia se tor-
nado raridade no circuito de distribuição mundial, rele-
gado a lançamentos no streaming ou a fracassos totais
— salvo exceções como Bons Meninos (2019). A ressur-
gência ocorre embalada por alguns fatores. Divorciadas
da liderança masculina de outrora, as comédias que hoje
encantam e chocam o público apelam para novos pontos
de vista, fazendo piada com pautas que vão da crueldade
animal até o racismo. Além disso, 2023 é um ano anêmi-
co de blockbusters fantasiosos, tanto pelo esgotamento
criativo quanto pelos adiamentos causados pela greve
em Hollywood. A escassez abriu alas para a ascensão do
filme de orçamento médio, aquele que suscita reações
com as quais a indústria do cinema pode sempre contar:
riso e medo.
Nesse cenário, não é de estranhar que o humor adulto
volte a marcar território nos cinemas, com suas tramas
3|4
cheias de palavrões e o olhar voltado para personagens,
vá lá, imperfeitos. Em Ruim pra Cachorro, o pacote vem
com elenco de luxo: na versão original, cães revoltados,
humanos terríveis e até sofás ganham as vozes de Jamie
Foxx, Isla Fisher, Josh Gad, Sofía Vergara e Randall
Park. No Brasil, eles são substituídos por nomes da co-
média stand up como Bruna Louise, Fábio Rabin e o
grupo Os Quatro Amigos. Em inglês ou português, lati-
dos para maiores não faltam. ƒ
4|4
WALCYR CARRASCO
COMO UMA
ONDA NO MAR
Nossa existência tem caminhos
imprevisíveis — e isso é viver
1|3
clos para saber a hora certa de entrar, ops..., e também de
sair. Mais que tudo, há de se saber nadar. E, quando final-
mente a gente consegue ficar de pé na prancha e surfar,
existe um outro que foi mais rápido, um terceiro que caiu e
tomou um caixote. Se conseguir chegar até o final, para-
béns, você já pode voltar a furar as ondas em busca de ou-
tra oportunidade de se erguer. Sabendo que o inesperado
pode acontecer. A amiga que era atriz vive hoje na selva
amazônica dentro de uma comunidade indígena. O garoto
indígena pode se transformar em um modelo nas passare-
las internacionais. Uma prima se formou em língua inglesa
na UnB, conseguiu um estágio em Washington D.C., fez
uma especialização na área da saúde e hoje é a principal
responsável pelas pesquisas do departamento da América
do Sul na ONU. O que vivemos hoje pode ser apenas um li-
vro que estamos lendo para saber no que vamos nos tornar
3|3
CULTURA VEJA RECOMENDA
TELEVISÃO
GEN V (disponível no Prime Video)
Dotada de um estranho poder que lhe permite manipular
o fluxo sanguíneo das pessoas, a órfã Marie só tem um
sonho: entrar na Universidade Godolkin, se formar super-
-heroína e virar a primeira negra dos Seven, a equipe de
elite de super-heróis da Vought, empresa de combate ao
crime e produtora de Hollywood. A vida da caloura, en-
tretanto, é bagunçada pelo assassinato de um professor da
faculdade por um aluno exemplar, obrigando a jovem a se
aliar com colegas problemáticos para desmantelar uma
organização criminosa dentro da própria Godolkin. Com
1|8
VOLTANDO A LER MAFALDA
(disponível no Disney+ e Star+)
Nos anos 1960, o cartunis-
ta argentino Quino criou a
curiosa menina Mafalda
para uma peça publicitária
de uma marca de eletrodo-
mésticos, mas a campanha
PODEROSA foi cancelada abruptamen-
Marie (Jaz Sinclair, te. Pouco depois, o artista
à esq.) em Gen V: emplacou sua primeira tiri-
spin-off do sucesso nha de Mafalda em um jor-
BROOKE PALMER/PRIME VIDEO
2|8
VOZ
PODEROSA
Corinne: cantora
INSTAGRAM @CORINNEBAILEYRAE
britânica foge
do pop e investe
no jazz
DISCO
BLACK RAINBOWS,
de Corinne Bailey Rae (disponível
nas plataformas de streaming)
O novo álbum da britânica Corinne
Bailey Rae passa ao largo do sucesso pop fofinho de Put
Your Records On, que fez sua fama em 2006. O novo tra-
balho traz à tona uma faceta mais jazzística da cantora. O
resultado é um vibrante coquetel musical em que mistura
o gênero ao rock indie e pós-punk. Em Earthlings, ela mes-
cla o som de sintetizadores com guitarra jazzística. Na
afrofuturista He Will Follow You With His Eyes, a artista
fala das armadilhas dos padrões de beleza e celebra seu
cabelo crespo e a pele negra. ƒ
3|8
OS MAIS VENDIDOS
CULTURA OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 É ASSIM QUE ACABA
Colleen Hoover [3 | 109#] GALERA RECORD
2 A BIBLIOTECA DA MEIA-NOITE
Matt Haig [2 | 57#] BERTRAND BRASIL
4 1984
George Orwell [4 | 129#] VÁRIAS EDITORAS
6 VERITY
Colleen Hoover [7 | 75#] GALERA RECORD
7 IMPERFEITOS
Christina Lauren [9 | 8#] FARO EDITORIAL
8 TUDO É RIO
Carla Madeira [8 | 55#] RECORD
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
4|8
NÃO FICÇÃO
1 NAÇÃO DOPAMINA
Anna Lembke [3 | 15#] VESTÍGIO
2 ELON MUSK
Walter Isaacson [1 | 2] INTRÍNSECA
3 MANIFESTO ANTIMATERNALISTA
Vera Iaconelli [8 | 2] ZAHAR
8 EM BUSCA DE MIM
Viola Davis [7 | 55#] BEST SELLER
INFANTOJUVENIL
5|8
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 LIDERANÇA E GESTÃO DE ALTA PERFORMANCE
EM VENDAS Camely Rabelo e Ricardo Okino [0 | 1] GENTE
7 ESSENCIALISMO
Greg McKeown [5 | 22#] SEXTANTE/GMT
9 HÁBITOS ATÔMICOS
James Clear [7 | 24#] ALTA BOOKS
6|8
INFANTOJUVENIL
1 O PEQUENO PRÍNCIPE Antoine de
Saint-Exupéry [2 | 389#] VÁRIAS EDITORAS
4 MENTIROSOS
E. Lockhart [5 | 47#] SEGUINTE
6 AS AVENTURAS DE MIKE
Gabriel Dearo e Manu Digilio [8 | 10#] OUTRO PLANETA
10 DIÁRIO DE UM BANANA
Jeff Kinney [9 | 15#] VR
7|8
[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas
o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
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Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza, Saraiva, Shoptime, Sinopsys, Submarino, Vanguarda,
WMF Martins Fontes
8|8
JOSÉ CASADO
O DRAMA DE LULA
LULA ATRAVESSOU a campanha eleitoral em autoen-
gano sobre as dores que sentia no quadril — e não passa-
vam. “A verdade é que estou com essa dor desde agosto do
ano passado”, contou na terça-feira (26/9). “Naquela cena
(de campanha) que vocês me viam pulando no carro de
som, vocês não sabem a dor que eu sentia.”
Foram várias encenações do gênero, antes, durante e de-
pois das eleições. Ele diz que era para “animar as pessoas”,
mas seu histórico sugere outra coisa, bem mais pessoal e na
fronteira daquilo que paira como uma dramática impossibi-
lidade para os humanos: a tentativa de fuga da biologia.
Quatro primaveras atrás, na sexta-feira 8 de novembro,
Lula deixou a prisão em Curitiba e apresentou-se à sétima
candidatura presidencial em vídeo direcionado ao público
das redes sociais: “Quero dizer para vocês que eu sou um se-
nhor muito jovem. Eu tenho 74 anos do ponto de vista bioló-
gico, mas tenho 30 anos de energia e 20 anos de tesão. Tá?
Só para vocês ficarem com inveja desse jovem que está fa-
lando com vocês... Quero dizer para vocês que tô livre para
ajudar o Brasil a sair dessa loucura que está acontecendo”.
Venceu a eleição, ajudou a sepultar a estrambólica quar-
1|4
telada bolsonarista, estabilizou o governo com a incorpora-
ção do Centrão, mas não conseguiu suplantar as sequelas do
Tempo. Se tudo sair como previsto pela junta médica, é pos-
sível que celebre os 78 anos, na sexta-feira 27 de outubro, al-
ternando muletas e andador, depois de ganhar um novo
quadril no lado direito com a troca de articulações corroídas
por peças de metal e plástico. O risco cirúrgico é considera-
do baixo, mas a recuperação é reconhecida como complexa.
Lula é um paciente com prontuário pontuado por crises
recentes: hipertensão, em 2010; câncer de laringe, em 2011;
Covid e forte rouquidão, em 2020 e 2022; e pneumonia, em
2023. Mesmo com dores constantes, resolveu desafiar-se
numa maratona de viagens por dezenove países nos últi-
mos oito meses, num ritmo que evoca a inquietude de Isido-
ro Vidal, personagem do escritor argentino Adolfo Bioy Ca-
sares, para quem o cansaço já não servia para dormir e o
sono já não servia para descansar.
No começo do ano foi obrigado a adiar por duas semanas
uma viagem à China por causa de um diagnóstico de pneu-
monia. As dores impediram-lhe de comparecer ao ritual de
oito recepções no exterior e impuseram mudanças abruptas
nos roteiros das visitas. Na África do Sul, por exemplo, as-
sessores adotaram a prévia contagem de passos para limitar
suas caminhadas. Em Angola e Cuba viu-se forçado a redu-
zir o número e o tempo dos discursos. Na Índia transferiu
reuniões para o hotel em que estava acomodado. Em Nova
York, falou na ONU e antecipou o retorno a Brasília.
2|4
“O pós-operatório
será relevante para
todos os interessados
na eleição de 2026”
Lula segue emoldurando o próprio espelho, aparentemen-
te cada vez mais preocupado com retoques na imagem públi-
ca da sua capacidade de continuar a empreender, governar e
desejar. “Eu tenho 77 anos e me sinto um menino”, repetiu na
semana passada. “Quando você tem uma causa e briga por
ela, o tempo não passa. O tempo passa para quem não tem
uma causa. Quem vive da luta do dia a dia não envelhece.”
Alguns interpretaram como afirmação de amor à vida de
um paciente, outros decodificaram mensagem de apego ao
poder numa etapa de vulnerabilidade pessoal. A ambigui-
dade tem sido a força de Lula desde a estreia no chão da po-
lítica, há 41 anos, quando atravessou o calçadão da Rua das
Flores até a Boca Maldita, onde a tradição curitibana reco-
menda o exercício da liberdade de falar mal de tudo e de to-
dos — a começar pelos amigos. Naquele maio de 1982 era
uma figura barbuda pouco conhecida, em cortejo animado
por uma banda, acenando para desconhecidos entre faixas
de um ignorado Partido dos Trabalhadores, com apenas oi-
3|4
to semanas de existência reconhecida pela Justiça Eleitoral.
Seis meses depois disputou o governo de São Paulo e, numa
proeza, ficou com 10,7% dos votos.
Ao passar o tempo renegando o Tempo (“me sinto um
menino”; ou “vocês não vão me ver de andador, de muleta,
vão me ver sempre bonito, como se eu não tivesse sequer
operado”), informa sobre a permanência do encanto com o
poder, mas também indica preocupação com o futuro — a
possibilidade de o governo desandar na avidez de ministros
candidatos à sua sucessão, quando estará com 81 anos. Lula
continuará a ser o principal candidato de Lula, caso as con-
dições políticas e de saúde sejam favoráveis. Por isso, o ciclo
pós-operatório no Palácio da Alvorada será relevante para
todos os interessados na rodada eleitoral de 2026. ƒ
4|4
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DE CONTEÚDO VEJA 2 861 (ISSN 0100-7122), ano 56/nº 39. VEJA é uma publicação semanal da Editora Abril. Edições anteriores:
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