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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

BRUNO OLIVEIRA ARONI

Oloniti kalorese: sobre chicha, flautas e relações entre os Haliti

RIO DE JANEIRO
2021
Bruno Oliveira Aroni

Oloniti kalorese: sobre chicha, flautas e relações entre os Haliti

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários para obtenção do
Título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural).

Orientadora: Profa. Doutora Els Lagrou

Rio de Janeiro
2021
ARONI, Bruno Oliveira. Oloniti kalorese: sobre chicha, flautas e relações entre os
Haliti / Bruno Oliveira Aroni. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2021.
298 f. il ; 21x29,7cm.
Tese (doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2021.
Referências Bibliográficas: f. 262-270
Orientadora: Professora Doutora Els Lagrou
1. Chicha. 2. Flautas. 3. Música. 4. Haliti. I. Lagrou, Els. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia. III. Oloniti kalorese: sobre chicha, flautas e relações
entre os Haliti.
“OLONITI KALORESE: SOBRE CHICHA, FLAUTAS E RELAÇÕES
ENTRE OS HALITI”

BRUNO OLIVEIRA ARONI

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia


do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em CIÊNCIAS
HUMANAS (Antropologia Cultural).

Aprovada por:

______________________________________________________________
Profª. Drª. Elsje Maria Lagrou (Els Lagrou), PPGSA/IFCS/UFRJ

______________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Gonçalves, PPGSA/IFCS/UFRJ

______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto, MN/UFRJ

______________________________________________________________
Profª. Drª Rosângela Pereira de Tugny, UFSB
______________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Ochoa Gautier, Columbia University

______________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Lino da Silva Costa, PPGSA/IFCS/UFRJ (SUPLENTE)

______________________________________________________________
Prof. Dr. André Luis Campanha Demarchi, UFT (SUPLENTE)

Rio de Janeiro
março/2021
Dedicatória

Dedicado à todos os mestres de saberes Haliti e a arte de imortalizar-se através das palavras.
Agradecimentos

Uma pesquisa de doutorado é, sobretudo, uma jornada de conhecimento, uma aventura


desdobrada no espaço e no tempo, que neles se inscreve e é refletida. Envolve deslocamentos,
desbravamentos e intercâmbios, em todos os sentidos que os termos podem comportar. Por mais
solitário que o processo aparente ser, a arte dos encontros, com os outros e consigo mesmo, é
intensamente estimulada e lapidada. Não seria possível, viável, nem tampouco cativante, que
essa jornada não fosse amparada por uma extensa rede de apoiadores e colaboradores, que
inspiraram, cada um a seu modo, as etapas deste longo processo. Este é o espaço para
homenagear cada fractal de subjetividade e agência, de forma nominal, pela contribuição direta
ou indireta que fizeram à esta jornada científico-criativa. Assim dito, expresso aqui minha
sincera gratidão: À Profa. Dra. Els Lagrou, minha orientadora, pela maestria inspiradora desde
o início do trabalho com os Haliti. Ao Prof. Dr. Marco Antonio Gonçalves, pela confiança e
apoio ao início da relação com o povo Haliti. À Profa. Dra. Ana Maria Ochoa Gautier, pelo
apoio e confiança ao desenvolvimento das atividades de pesquisa durante o Doutorado
Sanduiche. À Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que me concedeu o afastamento integral
de minhas atividades laborais, possibilitando a dedicação exclusiva à pesquisa de tese durante
quatro anos. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pela
concessão da bolsa de Doutorado Sanduíche. À Columbia University, pelo total suporte às
atividades de pesquisa durante o Doutorado Sanduíche em Nova Iorque. Ao Centro de
Etnomusicologia da Columbia University, pelo acolhimento durante esta etapa da pesquisa. Ao
Museu do Índio (MI-FUNAI) e toda sua equipe, em especial José Carlos Levinho, pelo apoio
institucional ao desenvolvimento das atividades de documentação em território Haliti. Ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGSA-UFRJ), todos seus professores e funcionários, pelo apoio durante toda a
trajetória acadêmica. Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS-UFRJ),
pela receptividade e acolhimento. À todos os integrantes do Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa
Etnológica (NAIPE-UFRJ), pela partilha e cumplicidade intelectual. Ao povo Haliti como um
todo, por me permitirem adentrar seus territórios topográficos e de conhecimento, em especial:
João Titi Akonozokae (em memória), João Batista Zoloizomae (em memória), Justino
Zomoizokae, Anézio Zezonezokemae, João Daniel Zanezokae, Maurinho Nezokie, Fernando
Omoizokie, Joãozinho Akonozokae, Benedito Anizokai, mestres de saberes e grandes
inspiradores desta empreitada. À Joscélio Onizokaece, João Quirino Eazokemae e Lucindo
Nezokemaece, pesquisadores indígenas que sempre acreditaram, contribuíram e influenciaram
positivamente todo percurso desta pesquisa. À toda comunidade da Terra Indigena Formoso,
sem exceção, pelo acolhimento durante minhas repetidas visitas: Agostinha, Auzira, Eliziane,
Elizabeth, Maria Helena, Zilda, Angelina, Luisa, Idalena, Jocélia, Edna, Luciano, Nelsinho,
Benedito, Jurandir, Maciel, Manoelzinho, Ronan, Giovani, Marcelo, Branco, Romério, Antonio
(em memória), Alice (em memória) e toda criançada. À toda minha família, em especial Denize
Cristina de Oliveira e Sideval Francisco Aroni, pelo incentivo e suporte à vida acadêmica dentro
de casa. E a todos amigos(as) e companheiros(as) de caminhada, que durante estes dezessete
anos de idas e vindas acadêmico-indigenistas estiveram por perto, com afetos, ideias e estímulos
para que esta pesquisa fosse concluída.
Resumo

Aroni, Bruno Oliveira. Oloniti kalorese: sobre chicha, flautas e relações entre os Haliti.
Orientadora: Els Lagrou. Rio de Janeiro, 2021. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2021.

O objetivo desta tese é explorar a complexidade do ritual denominado oloniti kalorese,


sobretudo através de uma extensiva imersão em seus textos rituais. Utilizando como fios
condutores as dimensões semânticas e performáticas que se revelam a partir da transcrição e
tradução das diferentes categorias de artes verbais, esta pesquisa busca explorar a elaborada
estética ritual Haliti, para isso conectando os elementos privilegiados por aquela sócio-
cosmologia: as flautas iyamaka, associadas aos espíritos dos antepassados, e a chicha oloniti,
bebida fermentada consumida em grandes quantidades durante o ritual. À luz do renovado
interesse sobre as ontologias relacionais e as estéticas rituais ameríndias, propõe-se uma
reconstrução dos sentidos associados à musicalidade ritual: não somente um meio de
transmissão de uma filosofia ecológica prática, pautada sobre o profundo conhecimento do
território e meio-ambiente e das modalidades de relação ali desempenhadas, mas também o
mecanismo condutor destas formas controladas de interação das quais depende a construção da
vida social Haliti.

Palavras-chave: chicha; flautas; ritual; artes verbais; Haliti.


Abstract

Aroni, Bruno Oliveira. Oloniti kalorese: about chicha, flutes and relations among the Haliti.
Advisor: Els Lagrou. Rio de Janeiro, 2021. Thesis (Doctorate in Human Sciences) – Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2021.

The purpose of this thesis is to explore the complexity of the ritual called oloniti kalorese, by
means of an extensive immersion in its ritual texts. Using as a guide the semantic and
performatic dimensions that are revealed through the transcription and translation of the
different categories of verbal arts, this research seeks to explore the elaborate Haliti ritual
aesthetic, connecting the elements privileged by its socio-cosmology: the iyamaka flutes,
associated with the spirits of the ancestors, and the oloniti beverage, fermented drink consumed
in large quantities during the ritual. In the light of the renewed interest in relational ontologies
and Amerindian ritual aesthetics, a reconstruction of the senses associated with ritual musicality
is proposed: not only a means of transmitting a practical ecological philosophy, based on the
deep knowledge of the territory and the environment and the relational modalities therein
performed, but also the driving mechanism of these controlled forms of interaction on which
the construction of Haliti social life depends.

Keywords: chicha; flutes; ritual; verbal arts; Haliti.


Lista de ilustrações

Quadro 01 – Grupos e subgrupos de cantos zerati conforme formas acústicas e


conteúdos semânticos 49
Quadro 02 – Estrutura dialógica de elementos associados à zolane e iyamaka. 156
Quadro 03 – Fonogramas e textos de tombamento coletados por Roquette-Pinto 216
Figura 01 – Notação musical de canto da flauta Teiru 221
Quadro 04 - Relação de espécies animais presentes no corpus textual analisado 235
Quadro 05 - Relação de espécies vegetais presentes no corpus textual analisado 237
Sumário

INTRODUÇÃO 1

1. SOBRE CHICHA, FLAUTAS E RELAÇÕES: A VIDA RITUAL HALITI 14


1.1. OLONITI: SUBSTÂNCIA E CORPORALIDADE 20
1.2. IYAMAKA: MATERIALIDADE E MEDIAÇÃO 26
1.3. ARTES VERBAIS: LINGUAGEM, SONORIDADE E EXPRESSÃO 36
1.3.1. Fórmulas verbais enunciativas 38
1.3.2. Fórmulas verbais musicais 48

2. OLONITI KALORESE: SEQUENCIALIDADE, PERFORMANCE E


SEMÂNTICA RITUAIS 56
2.1. MOTIVAÇÕES DE OLONITI: BATIZADO, MENSTRUAÇÃO E NOMES 60
2.2. CONVITE DE OUTRAS ALDEIAS E PREPARAÇÃO DOS ALIMENTOS 64
2.2.1. Harekahare manatiya aiymitikwa haretiya haolone fahare (convite
de outras aldeias pelo dono de festa) 72
2.2.2. Olititsezahe ou fetalati (reza para caçada) 78
2.3. OFERENDA DA FESTA E ABERTURA DO TERREIRO 84
2.3.1. Oloniti hiye nidiyaetyaka (oferecimento da chicha da festa) 90
2.3.2. Oloniti fahare manane (recepção dos festeiros) 97
2.3.3. Jihatyoawihaliti (aconselhamento aos convidados) 99
2.4. IYAMAKA NO TERREIRO 100
2.4.1. Iyamaka hiye nidiyaetyaka (oferecimento para as flautas) 105
2.4.2. Iyamaka zerane weteko zeratyaka (cantos das flautas no terreiro) 116
2.4.3. Iyamaka zerane jitsoatyaka (cantos de saída das flautas do terreiro) 150
2.5. ZOLANE DENTRO DA MALOCA 154
2.5.1. Zolane zerane jitsoakore hatyako zeratyaka (cantos de entrada de
zolane na maloca) 158
2.5.2. Zolane hiye nidiyaetyaka (oferecimento para zolane) 164
2.5.3. Zolane zerane idiyaete natxikinyeta wahazatikitya zeratyaka (cantos
de zolane depois da oferenda até meia noite) 167
2.5.4. Zolane zerane ferakwahena mania (cantos de zolane na
madrugada) 187
2.5.5. Zolane zerane hikwatiza (cantos de saída de zolane da maloca) 195
2.6. XIHALI E ZERO 197
2.6.1. Xihali hiye nidiyaetyaka (oferecimento para xihali) 199
2.6.2. Xihali zerane hatyako zeratyaka (cantos de xihali dentro da maloca) 203
2.6.3. Zero hiye nidiyaetyaka (oferecimento para zero) 204
2.6.4. Zero zerane hatyako zeratyaka (cantos de zero dentro da maloca) 205
2.7. CONFRATERNIZAÇÃO, BRINCADEIRAS, OFERENDAS NO PÁTIO E
BANHO DA MENINA-MOÇA 207
2.7.1. Waloko hiye nidiyaetyaka (reza para levantar a espuma waloko) 208
2.7.2. Warekwaho nolone (reza na beira do rio) 210
2.8. SEGUNDA NOITE, BATISMO E ZOKOZOKO 210
2.8.1. Zokozoko zerane hatikyanatse (canto da formiga na entrada da 211
maloca)

3. SOBRE ONTOLOGIAS SONORAS E A MUSICALIDADE HALITI 213


3.1. TRADUÇÃO E TRANSMISSÃO 215
3.2. LINGUAGEM, PERFORMANCE E CONHECIMENTO 224
3.3. NOMES E NARRATIVAS DO TERRITÓRIO E MEIO-AMBIENTE 230
3.4. O SOM COMO SUBSTÂNCIA E MEIO DE RELAÇÃO 244

CONCLUSÃO: SOBRE VOZES INVISÍVEIS E CORPOS SONOROS 256


REFERÊNCIAS 262
APÊNDICES 271
APÊNDICE A – Relação das Gravações de Campo
APÊNDICE B – Estrutura Temática de Iyamaka
APÊNDICE C – Estrutura Temática de Zolane
ANEXOS 288
ANEXO A – Transcrições Musicais de Roquette-Pinto (1917)
ANEXO B – Fotografias dos Instrumentos Musicais (2008)
INTRODUÇÃO

O povo Haliti fala uma língua pertencente à família linguística Arawak e habita desde tempos
imemoriais uma vasta região no noroeste do estado do Mato Grosso, denominada Chapada dos
Parecis. Hoje sua população ultrapassa os 2.000 habitantes e suas aldeias estão localizadas em
diferentes Terras Indígenas distribuídas dentro dos seguintes municípios: Diamantino e Nova
Marilândia (Terra Indígena Estação Paresi e Terra Indígena Uirapuru), Tangará da Serra (Terra
Indígena Estivadinho, Terra Indígena Rio Formoso e Terra Indígena Paresi), Barra dos Bugres
(Terra Indígena Umutina), Pontes e Lacerda (Terra Indígena Juininha e Terra Indígena
Figueiras), Campo Novo do Parecis (Terra Indígena Ponte da Pedra e Terra Indígena Utiariti)
e Sapezal (Terra Indígena Tirecatinga).

Paresi é a denominação através da qual são mais conhecidos, seja através da bibliografia
histórica e acadêmica1, cujos registros datam de mais de um século atrás (nas suas variantes
Paressi e Pareci, também) ou pelas populações vizinhas que com eles mantém relações. De fato,
o termo Paresi foi assimilado pela etnia, porém sua autodenominação nunca deixou de ser Haliti
– que significa “gente” e designa uma relação de identidade e semelhança. Haliti é o próprio
conceito de autoidentificação, que estabelece os limites e fronteiras entre identidade e
alteridade, abrangendo uma série de subgrupos que detêm a condição de identidade Haliti em
comum – principalmente os Kozarini, Enomayere, Waymare, Kaxiniti e Cabixi – em contraste
com outras etnias com quem mantêm relações históricas, como os Nambikwara, Manoki,
Myky, Enawene-Nawe e os “brancos” (imuti)2.

Esta reflexão introdutória se faz necessária e deve ser atualizada, já que durante minha estadia
na aldeia foi-me solicitado por uma professora indígena a “correção” da designação que os
pesquisadores vêm utilizando para se referir textualmente a eles: ao invés de utilizar o termo
composto Paresi-Haliti, solução que acreditava ter encontrado para remediar o embaraço
histórico entre o termo atribuído, mais conhecido e difundido, e a autodenominação, ainda
restrita a poucos conhecedores, a professora me orientou à utilizar a forma Haliti-Paresi, isto é,

1
Para maior aprofundamento ver Roquette-Pinto (1917), Schmidt (1943), Costa, R. (1985), Pereira (1986, 1987)
e Gonçalves (2000, 2001a, 2001b).
2
Veremos adiante, a partir do mito de origem, que se estabelece um maior ou menor grau de identidade para cada
um destes grupos, que, conforme o caso, podem ser considerados subgrupos Haliti imemoriais.

1
uma mudança de ordem dos termos que em sua concepção faria toda diferença. De fato, o termo
Haliti não foi gerado, introjetado, nem tampouco atribuído, consistindo no recurso linguístico
utilizado para designar identificação, proximidade e semelhança. É, portanto, o termo mais
adequado para se referir a eles, atualizando para este caso um movimento mais amplo da
etnologia que é a transição para o uso dos pronomes nominais3. Assim, adotarei a designação
Haliti, buscando dar conta do impasse histórico reproduzido pelos meios acadêmicos.

No contexto histórico, os registros mais antigos que fazem referência aos “Parecís” são de
sertanistas e membros da Coroa portuguesa, durante o século XVIII, evocando a imagem de
um povo “manso, afetivo, fiel e avesso à guerra”4. Esta imagem etnográfica veio se refletir
posteriormente na aptidão dos “índios de Rondon” à assimilação à Comissão e seus projetos
integradores5. Atualmente, observamos que tais imagens foram complexificadas e adaptadas a
outras formas de relações com atores distintos: uma imagem dos Haliti que, se por um lado
confirma seu pacifismo e diplomacia no contato com atores externos – e principalmente na boa
relação com o município que os abriga e com os poderes municipais e estaduais, financiadores
de diversos eventos e projetos que os beneficiam – por outro revela que este pacifismo não
significa passividade, mas sim afirmação e estratégia de luta política. Isso pode ser verificado,
por exemplo, na administração do pedágio em uma estrada que corta a Terra Indígena,
indispensável para o escoamento de grãos do noroeste do estado do Mato Grosso, que vem
sendo há décadas uma fonte de renda fundamental para o grupo; pelo pioneirismo na
implementação do etno-turismo regulamentado em Terras Indígenas; e ainda pelo constante
envolvimento com os fazendeiros produtores locais de grãos, seja na apropriação de seus

3
Viveiros de Castro (1996) observa que “as palavras ameríndias que se costumam traduzir por "ser humano"[...]
não denotam a humanidade como espécie natural, mas a condição social de pessoa, e, [...] funcionam (pragmática
quando não sintaticamente) menos como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posição de sujeito; são
um marcador enunciativo, não um nome. [...] Assim, as auto-referências de tipo "gente" significam "pessoa", não
"membro da espécie humana"; e elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que está
falando, e não nomes próprios” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.125-126).
4
Dos registros históricos, os mais relevantes são do bandeirante Antonio Pires de Campos que, entre os anos de
1718 e 1723, atravessa o que denomina “Reino dos Parecís”, descrevendo seu encontro com a vasta região habitada
pelo grupo. O bandeirante descreve aspectos das moradias, subsistência e costumes, fazendo referência inclusive
à existências das casas de flautas rituais (ROQUETTE-PINTO, 1917, p.11-16).
5
A Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas, que ficou conhecida como Comissão Rondon, tinha como
objetivo central estabelecer a ligação entre Cuiabá e Porto Velho, por meio da abertura de estradas e construção de
estações telegráficas. Nesse caminho, a Comissão se deparou com dois grandes grupos indígenas, os Pareci e os
Nambikwara. Os Pareci tinham contato com não-índios desde o século XVIII e trabalharam como guias e
auxiliares da Comissão Rondon.

2
conhecimentos produtivos ou no trabalho agrícola mecanizado, o que vêm constituindo uma
alternativa ao arrendamento como forma de geração de renda. De fato, os Haliti foram e são
pioneiros na luta pela produção agrícola em larga escala e mecanizada dentro de áreas
indígenas, um tema atual e controverso cuja complexidade não será aqui objeto de ampla
discussão6.

Tal diplomacia, intensificada nos últimos cem anos de relação, confere aos Haliti a maestria de
negociação com o mundo do branco. São seletivos, apropriando-se da cultura exterior sem, no
entanto, deixar dominar-se. Aquilo que os serve, é incorporado; aquilo que não serve,
descartado. Não somente, possuem grande capacidade de liderança, buscando até as últimas
consequências aquilo que os interessa. Tal destreza se reflete no amplo domínio da língua
portuguesa, na capacidade de articulação com governos locais e na intensa relação que
estabelecem com a cidade, seus serviços e mercadorias, formando um relevante mercado
consumidor para os municípios do entorno. Este poder aquisitivo se deve principalmente à
capacidade que construíram ao longo dos anos em gerar renda, através do pedágio e das
parcerias agrícolas.

Frente a grandes mudanças, os Haliti mostram-se hoje preocupados principalmente com a


manutenção de seus costumes, conforme ensinado pelos mais velhos, empenhando-se na
transmissão dos conhecimentos para as novas gerações e na recuperação de aspectos que
consideram importantes para afirmar sua identidade e práticas socioculturais. Paralelamente a
esta forma de resistência cultural, vêm tentando reinventar e encontrar novas formas de
sobrevivência frente ao mundo moderno e capitalista, incluindo estratégias bem-sucedidas de
geração de renda, aprendizado de novas tecnologias e junto a isso um crescente interesse na
gestão ambiental e territorial, visando a preservação e conservação de suas áreas.

Já no contexto de sua sociabilidade interna, encontramos uma subdivisão das aldeias em termos

6
Sobre o tema, cabe destacar que, recentemente, as parcerias agrícolas em Terras Indígenas têm ganhado destaque
na mídia, oferecendo uma imagem de alinhamento com a política oficial do governo atual. Os Haliti assumem a
prática como indispensável para sua subsistência, e tem obtido êxito em sua regularização diante dos órgãos
oficiais, adotando diretrizes como, por exemplo, a utilização de mão-de-obra exclusivamente indígena, a proibição
de utilização de sementes transgênicas e a gradual aquisição de maquinário e capacitação para assumirem
completamente as lavouras. Por se tratar de um tema cujo escopo ultrapassa o objetivo deste estudo, cabe relevar
somente que a complexidade do tema diz respeito à convergência de exploração econômica, preservação do meio-
ambiente e sustentabilidade, num discurso amplamente apropriado pelos Haliti para justificar suas práticas atuais.

3
de pertencimento e identificação aos subgrupos de origem, que é um fator de diferenciação
ainda marcado – hoje em dia, diferenciam-se principalmente entre os subgrupos Waymare,
Kozarini e Kaxiniti, cada um possuindo traços característicos e distintivos. Observamos ainda
uma explícita hierarquização das relações baseadas em papéis sociais, hereditários ou
reconhecidos: até recentemente possuíam um cacique geral vitalício, conhecido como João
Garimpeiro Arrezomae, cuja atuação em prol da demarcação das terras e luta pela regularização
do pedágio lhe conferiram prestígio e designação para tal posição social; há também um grupo
seleto e hereditário de donos de flautas iyamaka; os pajés são os únicos capazes de
desempenharem funções rituais, detentores de tais conhecimentos especializados; e de forma
mais complexa, acusações de feitiçaria, por aqueles que detêm tal capacidade, se torna mais um
fator de diferenciação social. Estas relações se traduzem tanto em potencialidade de conflito,
como na necessidade de se produzir meios que os evitem, o que ocorre principalmente através
da realização das festas de chicha – oloniti kalorese – prática ritual, social e cosmológica que,
mesmo após mais de um século de contato com missionários e agentes externos, continua
reproduzida com vigor. Este evento ritual será o fio condutor desta pesquisa.

A proposta de estudá-los surgiu ainda durante a graduação, estimulada pelo meu interesse
intelectual pelos povos indígenas em geral e, especificamente, pelos usos que fazem de
instrumentos musicais rituais. Nessa época, confeccionava instrumentos musicais em casa,
entre eles um instrumento de sopro chamado didgeridoo7, cuja história remonta aos aborígenes
australianos. Nesta direção, por sugestão de minha orientadora, fui de encontro aos Haliti, já
que parecia oportuna a possibilidade de se aproximar de um grupo que, apesar de muito tempo
de contato, havia sido ainda pouco estudado – as etnografias existentes eram poucas e não
atuais. Não somente, o fato de pertencerem ao que se convenciona chamar na etnologia como
grupos pertencentes ao complexo das flautas das Terras Baixas da América do Sul8 – cuja
elaboração em torno de aerofones rituais é bastante instigante – foi igualmente decisivo para a
escolha dos Haliti para desenvolver uma pesquisa mais ampla. Desde o início, portanto, meu

7
O didgeridoo é um aerofone dos aborígenes australianos, popularmente designado como “o instrumento musical
mais antigo do mundo”, como sugerem pinturas rupestres e achados arqueológicos diversos. Ele consiste num tubo
de madeira, onde o som é provocado pela vibração do ar através dos lábios e vocalizações emitidas pelas cordas
vocais.
8
Termo que se refere à ampla utilização e elaboração em torno de uma diversidade de instrumentos musicais e
rituais de sopro por grupos indígenas da América do Sul. Para maior aprofundamento ver Hill e Chaumeil (2011).

4
interesse de pesquisa esteve relacionado com a música – ou melhor, com a musicalidade9 – em
contextos rituais, mediada por estes instrumentos cuja centralidade para a organização social
dos povos indígenas é bastante instigante.

O início de minha relação com os Haliti se deu dentro das bibliotecas, investigando sua história
e etnografia para a proposição de um projeto de iniciação científica. Após o primeiro contato
com a bibliografia existente, o estudo das flautas rituais Haliti10 se apresentou como o tema
mais instigante, uma possibilidade de pesquisar instrumentos musicais num contexto em que
diversas lacunas etnográficas ainda estavam por ser preenchidas. Ao redor das flautas constituí
meu primeiro objeto de estudo, o qual, sob diferentes olhares, persigo até hoje. Frequentei
assiduamente a biblioteca do Museu do Índio (RJ) buscando absorver todos os materiais
existentes sobre os Haliti, para assim me preparar para um posterior trabalho de campo. O
contato com as etnografias de época, como a de Rondon e Faria (1948), Roquette-Pinto (1917)
e Schmidt (1943) me mostravam como era intrigante a existência das flautas “sagradas” e
“secretas”, dado os mistérios que as envolviam e sua proibição à visão das mulheres. Seria, no
entanto, obrigado a questionar o rigor científico da etnografia de época. Faltavam palavras a
estes etnógrafos para descrever aquele fenômeno social que, por constituir um “tabu”, nunca
fora investigado ou descrito em profundidade. Me propus assim, enquanto novo pesquisador,
buscar observar em campo e entender tais mistérios ao redor das flautas, atualizando e ao
mesmo tempo refinando quaisquer proposições etnográficas em relação aos instrumentos
rituais.

O primeiro contato em campo com os Haliti veio a acontecer em 2010, como parte da pesquisa
de mestrado, viabilizado em grande parte pela minha participação no projeto Progdoc –
Programa de Documentação de Culturas Indígenas, financiado e executado através de parceria
entre o Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE/UFRJ), o NEXT-Imagem, o
Museu do Índio (FUNAI) e a UNESCO, coordenado por Els Lagrou e Marco Antonio

9
A opção pelo termo musicalidade – ao invés de música – tem o objetivo de aproximar esta abordagem ao ato
criativo e performático envolvido na produção musical, entendida essencialmente como uma forma de expressão.
Assim, pretende-se escapar parcialmente do sentido acumulado pelo termo música, que remete mais ao produto
cultural em si, que resulta deste contexto de expressão. Mais adiante o tema será aprofundado, contrastando a
utilização dos termos “musical” e “sonoro”.
10
Os Haliti utilizam o termo iyamaka (ou jararaca) para se referir ao conjunto de aerofones rituais proibidos à
visão das mulheres. Atualmente, este conjunto é formado pelos seguintes grupos de flautas, cuidadas pelos seus
donos em diferentes aldeias: amore, zeratyalo, txeyru, ualalose, tiyrama e imokolo.

5
Gonçalves11. Enquanto coordenador do subprojeto Haliti, fiz minha primeira viagem de campo
à aldeia Formoso. O subprojeto teve início em 2009 e ficou sob minha coordenação até 2011
quando, decorrente de meu ingresso como servidor na Fundação Nacional do Índio, a
coordenação do projeto passou para a pesquisadora antropóloga Lorena França, integrante do
Núcleo de Experimentação em Imagem (NEXT-Imagem/UFRJ).

Neste período de execução do projeto foram desenvolvidas diversas atividades junto à


comunidade Haliti, com foco na capacitação e geração de produtos relacionados à
documentação cultural. Este primeiro contato foi decisivo para se estabelecerem as primeiras
relações em campo e, de fato, influenciou todo o desenrolar de minha pesquisa subsequente,
assim como a minha posição dentro do grupo. Entrei na aldeia como um antropólogo,
pesquisador, mas também como facilitador de um processo de registro e documentação. Entre
as atividades desenvolvidas no âmbito deste projeto, destaco as oficinas de registro e
documentação audiovisual, oficinas de filmagem, fotografia e edição de material audiovisual,
produção de acervos fotográficos, sonoros e fílmicos, finalização de dois filmes curta-
metragem12 e a capacitação aprofundada de Joscelio Onizokaece e Lucindo Nezokemae em
técnicas para documentação cultural, sendo estes contemplados com bolsas de incentivo através
do projeto. Desde então, mesmo com o fim da bolsa, estes pesquisadores continuam realizando
atividades relacionadas a documentação de sua cultura, principalmente através de registro
fílmicos, e se tornaram colaboradores das atividades de pesquisa que são desenvolvidas nas
aldeias.

A pesquisa de mestrado teve como resultado a dissertação “A casa da jararaca: artefatos, mitos
e música entre os Haliti” (ARONI, 2011). Neste primeiro momento, o esforço foi estabelecer
uma interface entre a bibliografia existente e absorvida através das pesquisas documentais e as
observações de campo sobre as flautas e festas de chicha, que timidamente se apresentavam.
Os extensos materiais sobre a mitologia Haliti, publicados por Pereira (1986, 1987) me atraíram
bastante neste momento, delineando horizontes de significação para o que havia sido observado

11
O Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas é uma iniciativa financiada pela UNESCO e
executada pelo Museu do Índio/FUNAI, em parceria com diversos pesquisadores especialistas em linguística e
antropologia. Os projetos têm como uma de suas linhas de ação promover a salvaguarda dos patrimônios culturais
e linguísticos dos povos indígenas no Brasil, através de atividades de documentação participativa.
12
“Towhidi – cestaria Haliti” (ARONI; ONIZOKAECE; NEZOKEMAECE, 2011) e “Apareci – A história dos
Haliti-Paresi” (FRANÇA; ONIZOKAECE; NEZOKEMAECE, 2012).

6
em campo. Se num primeiro momento, de caráter exploratório, consegui avançar na
interpretação das flautas e rituais com base na extensa mitologia já documentada, admito que
não consegui satisfatoriamente descrever seus aspectos musicais, que era um de meus anseios.
A potencialidade analítica derivada daquele contexto era enorme, e estava longe de ser
esgotada, tarefa que assumi desde então, como forma de continuidade, para a proposição de um
projeto de doutorado.

Este veio a se constituir lentamente, em diálogo com pesquisadores indígenas que, por sua vez,
me repassavam as demandas de lideranças em relação à um projeto de documentação sonora
de suas artes verbais13. Preocupados com a rápida transformação cultural, com a idade avançada
dos mestres rituais e conscientes das novas tecnologias disponíveis para o registro, o jovem
pesquisador Joscelio Onizokaece e as lideranças Nelsinho Zaizomae e Justino Zomoizokae da
aldeia Formoso demandavam a proposição de um projeto nesta direção. Permaneci em diálogo
com eles, buscando alternativas que possibilitassem viabilizar a proposta convergindo com uma
pesquisa de doutorado que me possibilitasse retornar a campo – e assim aprofundar a relação
de pesquisa já iniciada, desta vez abrangendo a tão almejada música.

O fato dos meus interesses de pesquisa convergirem com os anseios das lideranças foi
fundamental e oportuno para que elaborássemos colaborativamente um projeto de
documentação sonora, que ampliasse a participação de outras aldeias nas atividades de registro
e promovesse a salvaguarda deste extenso e peculiar patrimônio imaterial musical. Sobretudo,
buscávamos em parceria oferecer respostas tanto à crescente preocupação com a transmissão
do conhecimento tradicional, quanto ao gradual processo de desaparecimento de cantos e rezas,
cuja transmissão aos mais jovens através da oralidade se demonstrava cada vez mais frágil. As
atividades de documentação sonora somadas a uma qualificação profunda deste material que
seria possibilitada pela pesquisa de doutorado, objetivava sobretudo garantir a memória e
oferecer novas ferramentas para o aprendizado destas formas da cultura oral e musical para as

13
Inspirada na elaboração seminal de Bauman (1975), as artes verbais como performance têm um grande
rendimento no universo ameríndio, associado à existência de diferentes modos de fala, utilizados em contextos
específicos e de acordo com finalidades distintas. A acepção do termo sugere uma abordagem do ato da fala para
além de uma ideologia puramente linguística, que subordina e separa dos aspectos sonoros e materiais da voz o
seu conteúdo ou mensagem referencial, entendendo a voz como um índice de presença, autenticidade, agência e
vontade (WEIDMAN, 2015, p.233). Há ainda uma associação entre o som vocal produzido e as imagens
significativas projetadas por tal performance. Desta forma, enquanto performance, as artes verbais constituem uma
equação complicada entre representação e agência (WEIDMAN, 2015, p.238). Para maior aprofundamento ver
Bauman (1975).

7
gerações subsequentes.

Paralelamente à pesquisa de doutorado, desenvolvemos o projeto “Zerati – documentação


musical Haliti”, realizando diversas atividades de documentação da cultura oral, conhecimentos
verbais e musicais especializados cujos detentores são um número restrito de anciãos e mestres
rituais. Mais especificamente, o projeto foi direcionado para gravação de diferentes repertórios
das artes verbais do grupo Haliti, incluindo os cantos das diferentes flautas iyamaka, os cantos
da dança circular zolane, da flauta nasal xihali e da flauta de pan zero, diversas modalidades de
rezas, oferendas e diálogos cerimoniais, além de explicações e depoimentos sobre o tema.

A primeira etapa do projeto consistiu na gravação, transcrição e filmagem de repertórios e


depoimentos junto aos mestres de saberes, e foi realizada no período de maio de 2017 a maio
de 2018, em várias incursões nas diferentes aldeias Haliti. Este processo foi facilitado por mim
e pelos colaboradores Joscelio Onizokaece e João Quirino Eazokemae, e contou com o apoio
técnico do Museu do Índio na disponibilização de equipamentos para gravação audiovisual
(laptop, microfone, gravador, câmera fotográfica e filmadora). Como resultado desta primeira
etapa foram geradas 10 horas de gravações sonoras de cantos e rezas, transcritas para a língua
materna, além da filmagem de depoimentos e exegeses dos mestres de saberes participantes.
Cabe destacar que a Universidade Federal do Rio de Janeiro, através da modalidade auxílio-
campo, também contribuiu para as atividades em questão e que também foram investidos
considerável montante de meus recursos próprios.

Destas 10 horas de gravação, já editadas de modo a permanecer somente o conteúdo principal,


foram produzidas 168 faixas de durações e intérpretes distintos, reunindo amostras das
principais categorias de expressão verbal evocadas durante as festas de chicha: cantos (zerati),
rezas (idyaete), diálogos cerimoniais (manati), oferecimentos (fetatyati) e aconselhamentos
(jiyhatioawihaliti). Algumas categorias, como os benzimentos (fehanati), por exemplo, ficaram
de fora do material coletado, devido às restrições quanto a sua gravação14. Das categorias
principais zerati e idyaete, derivam também subcategorias, que são: iyamaka, zolane, zero e
xihali. E da subcategoria de cantos das flautas, notam-se ainda as seguintes ramificações:
amore, txeyru, zeratyalo, ualalose, imokolo, tiyrama (que são todos nomes de grupos de flautas

14
Veremos adiante como os benzimentos, por constituírem uma categoria restrita, apontam para uma elevada carga
de agência em seu enunciado, que deve ser contextual.

8
distintas). Todo este conjunto foi posteriormente manejado de forma sequencial, visando
reconstituir a ordem de execução conforme desempenhada e executada durante as festas de
chicha. Cabe ressaltar que das 168 faixas, que constituem o acervo de registros, apenas 145
foram transcritas para a língua materna e traduzidas para o português, devido à necessidade de
se priorizar parte do material diante dos limitados recursos disponíveis para realização deste
trabalho (ver Apêndice A). Destas 145 faixas, algumas ainda não produziram transcrições e
traduções satisfatórias, por motivos diversos: parcial incompreensão auditiva, uso de palavras
“científicas” (de conhecimento restrito) ou modalidade de canto difícil de entender.

As gravações durante os rituais mostraram-se ineficazes para se extrair o conteúdo semântico


das formas de expressão verbal, motivo pelo qual foram realizadas gravações “em off” junto
aos mestres rituais. Os rituais, além de dinâmicos e multi-focados, são extremamente difíceis
de gravar, pelo menos com uma estrutura típica que é um gravador e um microfone na mão.
Além dos diversos ruídos que prejudicam a qualidade das gravações e o entendimento do que
está sendo enunciado – gritos, motocicletas, conversas simultâneas, fogos de artifício, vento,
chuva, etc. – diversas coisas ocorrem simultaneamente durante os rituais, como por exemplo,
grupos de flautas caminhando e cantando em direções distintas, o que torna esta empreitada de
gravação praticamente impossível. No entanto, estas modalidades de gravações foram
importantes analiticamente para se extrair a ambiência ritual – “soundscape” – uma camada de
significação que também foi agregada a este estudo. Nada se perde, tudo se aproveita, em certo
sentido.

A segunda etapa do projeto foi realizada entre 10 a 14 de setembro de 2018, nas dependências
do Museu do Índio, e consistiu na edição e finalização dos materiais coletados nas aldeias,
objetivando a produção participativa e colaborativa de materiais educativos que possam ser
retornados para a comunidade indígena. Esta atividade foi conduzida pela equipe proponente
do projeto, contando ainda com o apoio técnico, financeiro e de pessoal do Museu do Índio,
que custeou o deslocamento dos Haliti para o Rio de Janeiro e ofereceu toda a infraestrutura
necessária para as atividades em questão. Foram realizadas oficinas de edição de vídeo,
resultando na finalização de um pequeno filme contendo os depoimentos dos mestres
participantes do projeto, e oficinas de diagramação gráfica, resultando na definição da estrutura
e seleção dos materiais que irão compor a publicação em formato de livro, contendo fotografias,
depoimentos e transcrições do universo musical Haliti. Simultaneamente, os pesquisadores

9
indígenas participantes foram familiarizados e capacitados em relação aos processos técnicos
em questão. Este livro encontra-se em processo de finalização e revisão, para que possa ser
entregue para a comunidade no próximo ano, conforme combinado por todos os participantes
do projeto.

Os mestres rituais, conhecedores dos cantos e rezas, com os quais foram realizados o trabalho
de gravação são: Anézio Zezonezokemae, Fernando Omoizokie, Justino Zomoizokae, João
Daniel Zanezokae, Maurinho Nezokie, Joãozinho Akonoizokae – gravações realizadas em
2017; e João Batista Zoloizomae (em memória) e João Titi Akonozokae (em memória) –
gravações realizadas em 2010. Sou eternamente grato a todos estes colaboradores e mestres de
saberes Haliti, que entenderam, aceitaram, contribuíram e reconheceram a importância do
registro das artes verbais. As narrativas e formas de expressão verbal transmitida por eles,
observadas e registradas em campo através do projeto de documentação sonora, constituíram
uma constelação única de significados e possibilidades interpretativas para esta pesquisa – e o
pano de fundo para explorar as festas de chicha, as flautas e sua música. São estes, portanto, as
categorias, conceitos-chave, ou eixos condutores desta pesquisa: as festas de chicha oloniti
kalorese; as flautas rituais iyamaka; e as formas de expressão verbal e musical associadas a
ambas as categorias anteriores (de forma central os cantos zerati e as rezas idyaete).

É importante ponderar sobre a questão das traduções, que se fez tão presente na trajetória desta
pesquisa. Se a neutralidade é impossível, sendo toda tradução uma transformação, devemos
assumir que toda tradução carrega em si uma escolha. Esta escolha, no entanto, procurou ser o
mais próximo possível de sua significação nativa. Por sua vez, toda escolha é negociada num
contexto intercultural, e demonstra a vontade de refinar os contextos de utilização e significado
de uma certa palavra. A opção por utilizar a denominação flautas iyamaka ou flautas rituais –
evitando, por exemplo, flautas secretas ou flautas sagradas – é uma escolha metodológica,
buscando evitar a carga de sentido que os termos secreto ou sagrado possam transmitir. De fato,
não se aplica às flautas iyamaka nem o caráter sagrado, fruto da oposição sagrado/profano
introjetada pela ideologia missionária, nem tampouco o caráter secreto, já que a existência das
flautas é um valor compartilhado. Sublinhadas estas possibilidades, buscaremos as escolhas que
melhor servirem ao argumento em construção. Da mesma forma, ao utilizar o termo jararaca,
os Haliti imprimem a sua própria conotação às flautas, um modo de fala extremamente
revelador. Pois parece emergir de uma conceitualização tanto mais adequada quanto mais

10
interessante, revelando uma apropriação do nome da cobra mais agressiva e venenosa
encontrada naquela região para designar o grupo de flautas, uma designação, portanto, que
aponta para sua capacidade agentiva. Sabe-se que um dos castigos para a falta de cuidado com
as flautas é a picada por cobras, e que as cobras e outros animais venenosos são guardiões das
flautas. A jararaca, enquanto “hiper-serpente”, aparece como expoente da agência das flautas
sobre os Haliti. O que está em jogo, apesar do sofisticado domínio que os Haliti têm do
português, é um contraste entre a não adequação de alguns dos termos utilizados, que muitas
vezes foram “validados” por agentes externos ao passar dos anos, e a escolha intencional de
termos como “jararaca” para exprimir por analogia características que atribuem àqueles
artefatos. De todo modo, se no trabalho anterior priorizei o termo jararaca, neste opto pela
denominação flautas iyamaka.

Já a categoria oloniti kalorese é traduzida pelo termo composto “festa tradicional”. Em termos
literais, oloniti kalorese significa “chicha grande” (oloniti = chicha e kalore = grande), ou
grande quantidade de chicha, numa associação mais evidente ao conceito que busca exprimir,
já que nestas ocasiões são ofertadas grandes quantidades de chicha aos participantes. Entendo
que o sentido de festa, apropriado pelos Haliti, possui um nexo com o evento em questão;
porém, o segundo termo, tradicional, carrega por sua vez uma carga de sentido indesejável,
fruto de longas relações com agentes externos – Estado, sociedade envolvente, os primeiros
antropólogos, linguistas, e, principalmente, missionários – que queira ou não acabaram por
influenciar os modos e escolhas para a tradução entre línguas. Tradicional, mesmo que
amplamente utilizados pelos Haliti, também não me parece adequado para designar um evento
ritual que se atualiza no presente e que, portanto, não faz parte de uma tradição estagnada
reproduzida sem mudanças ou observada enquanto “tradição” por quem vem de fora.
Tradicional e atual, neste contexto, também não me parece uma oposição profícua, já que o que
aquele evento representa é uma unidade, atualizada e presente. Priorizarei, portanto, o termo
oloniti kalorese ou festas de chicha, depurando os sentidos acoplados ao termo em questão. É
importante apontar que a tradução15 sempre foi uma questão cara à antropologia, que desde

15
A problemática da tradução envolve história, linguística e política. Cada nova tradução atualiza no presente
conhecimentos pré-estabelecidos, conferindo-lhe um novo enunciado. Neste processo, é importante analisar a
correlação entre as diferentes linguagens e suas opções de termos e sentidos. A construção de sentido entre
diferentes visões de mundo implica na transposição de códigos entre contextos distintos e, assim, escolhas. Desta
forma, podemos dizer que é praticamente impossível uma equivalência completa entre os significados de duas
culturas distintas.

11
Malinowski (1922) tem procurado se aproximar cada vez mais dos sentidos originais das
palavras ou dos conceitos expressos. A opção pelos termos nativos aqui constitui uma
oportunidade de relevar e problematizar as escolhas conceituais de traduções anteriores.

Diante da densidade do material coletado, assim como da vontade de apresentá-lo ao público


sem recortes “traumáticos”, esta etnografia pretende demonstrar, através da exegese e descrição
densa, como os textos rituais se articulam com a cosmologia. O que o leitor encontrará nas
páginas que se seguem é, sobretudo, uma descrição densa, que explora a realidade
intersemiótica do ritual oloniti kalorese a partir de sua performance e semântica contidas nas
artes verbais. São os textos rituais, suas traduções e exegeses que vão permitir amarrar os
elementos pivotais desta reflexão – as festas de chicha oloniti e as flautas iyamaka. De fato,
trata-se de uma etnografia colaborativa, em que as vozes dos mestres rituais (anciãos),
tradutores (jovens) e antropólogo convergem propositivamente, buscando deixar transparecer
os sentidos contidos na realização de oloniti kalorese. Nesta metodologia, é importante assumir
o protagonismo dos pesquisadores indígenas, colaboradores desta pesquisa: a negociação entre
as partes – seja na escolha da direção da pesquisa ou na qualificação das traduções dos textos
rituais – envolve tanto crédito como responsabilidades, e, sobretudo, uma posição criativa, onde
a invenção e proposição não deixam de ser coladas ao sentido original (WAGNER, 1975). A
relação entre tradução, criação e sentido deve ser enfatizada, num contexto em que as
mediações e o dinamismo são as próprias engrenagens da construção cultural.

Chamando atenção para este aspecto, sublinho que as traduções exibidas no decorrer desta tese,
que não servem ao propósito da análise linguística formal, são instrumentais e contextuais,
frutos da negociação e de mediações colaborativas; servem à um propósito, que é contribuir à
compreensão do sentido das palavras e discursos, e ao entendimento da própria língua Haliti
em seus contextos de evocação. Neste processo, fruto de um contexto em que os indígenas são
pesquisadores e refletem sobre sua própria cultura, a busca por melhores traduções de sua língua
está sendo qualificada e negociada por relações entre jovens, anciãos e antropólogos. Após mais
de dez anos de relação com o povo Haliti, buscou-se a realização de uma pesquisa colaborativa,
consensual, simétrica e negociada – negociações estas que se imprimem sobre as traduções e
sentidos apresentados.

Pondero que esta é uma etnografia clássica, porém colaborativa, no sentido de que aborda um

12
evento ritual tal como observado em campo, utilizando-se como recursos as traduções e
exegeses do que foi observado/escutado. No amplo horizonte oferecido pela socio-cosmologia
Haliti, foram escolhidas as suas formas poéticas e estéticas específicas, como meios
privilegiados de acesso ao seu conhecimento. Se é através da arte que a ciência de um povo se
revela (LAGROU, 2007), estas formas de expressão não somente codificam e cristalizam
filosofias indígenas, mas também consistem na própria tecnologia de transmissão deste legado.
É nesta chave que, análogo aos conselhos dos anciãos Haliti, esta pesquisa trata de escutar,
refinar e aprender, para poder acessar, entender e repassar.

Por fim, pretende-se com esta tese uma profunda imersão nas formas de expressão Haliti,
sobretudo em sua estética ritual. A complexidade de oloniti kalorese será explorada através de
seus textos rituais, em suas dimensões performáticas e semânticas, reveladas a partir da
tradução e transcrição das artes verbais. As vozes dos antepassados, atualizadas no presente,
emolduram uma filosofia ecológica distinta, uma arte do bem viver baseada no profundo e
elaborado conhecimento do território, do meio-ambiente e das modalidades de relação ali
desempenhadas – sejam estas entre os semelhantes ou entre aqueles que carregam a marca da
diferença. A trajetória de conhecimento aqui proposta busca suas respostas nas sonoridades, a
música que será reconstruída e finalmente incorporada com vigor na trama ritual: um
mecanismo não somente capaz de conduzir meios de interação, mas também formas de
conhecer e conceber o mundo Haliti.

13
1. SOBRE CHICHA, FLAUTAS E RELAÇÕES: A VIDA RITUAL HALITI

Os rituais oloniti kalorese são situações de mediação, onde categorias distintas são postas em
relação. Isso vale para homens e mulheres, parentes próximos e distantes e, em última instância,
pessoas e espíritos. Trata-se de uma situação criada para realizar intercâmbios controlados,
zelando pelas distâncias apropriadas e qualidade das relações. Estes rituais ativam uma
cosmopolítica que é também uma sociopolítica: os espíritos invisíveis, dos mortos, marcados
pela inimizade potencial, são pacificados através de oferendas diversas; estas são, ao mesmo
tempo, consumidas pelos convidados, parentes distantes de outras aldeias que são também
pacificados através da comensalidade. Numa sociedade atravessada por acusações de feitiçaria,
a distância é um índice de desconfiança e conflito. Tanto os espíritos dos antepassados –
marcados pela tensão entre ancestralidade e alteridade, decorrente da ruptura gerada pela morte
– como os parentes distantes, de outras aldeias – que afastados do convívio doméstico se tornam
potencialmente perigosos por questões de feitiçaria – são categorias de “outros” que visitam as
aldeias durante oloniti kalorese, e com os quais se deve estabelecer relações adequadas, de
aliança e pacificação. A eminência do conflito – assim como sua administração – é, portanto,
uma característica de oloniti kalorese. Cabe-nos pensar aqui quais são os idiomas rituais
utilizados para a pacificação destas relações, idiomas estes que representam sistemas de trocas
controladas capazes de equalizar e domesticar o potencial de inimizade eminente contido nestas
diversas categorias de visitantes.

Oloniti kalorese tenta dar conta desta tensão e contradição presente na socio-cosmologia Haliti,
que é a de estabelecerem-se relações de proximidade e aliança com os “outros”, sejam eles
visíveis ou invisíveis. No mundo amazônico, todo aquele com quem não se tem uma relação de
parentesco é um potencial inimigo e por isso diversas são as técnicas, procedimentos e
tentativas de domesticação e estabelecimento de alianças. A construção do parentesco, desta
forma, depende de dinâmicas de englobamento da diferença universalmente dada.

A consanguinidade deve ser deliberadamente fabricada; é preciso extraí-la do fundo


virtual de afinidade, mediante uma diferenciação intencional e construída da diferença
universalmente dada. Mas então, ela só pode ser o resultado de um processo,
necessariamente interminável, de despotencialização da afinidade: sua redução pelo
(e ao) casamento. Este, em suma, é o sentido do conceito de afinidade potencial: a
afinidade como dado genérico, fundo virtual contra o qual é preciso fazer aparecer
uma figura particular de socialidade consanguínea. O parentesco é construído, sem
dúvida; ele não é dado. Pois o que é dado é a afinidade potencial. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2000, p 18)

14
O casamento consiste na técnica mais evidente para constituir tal aliança, assimilando o outro
ritualmente e tornando-o seu parente efetivo, aquele que compartilha consigo a vida doméstica
e relações de proximidade. Entretanto, também são mobilizados, pelo ritual, formas virtuais de
aliança, parcializadas, mantendo-se certo grau de estranhamento entre os pares. Em ambos os
casos, a comensalidade e a coresidência consistem nos índices – ou técnicas – mais relevantes:
ao compartilhar a moradia e o alimento, fortalecem-se as relações de confiança e proximidade,
gerando assim formas de aliança e integração. Durante oloniti kalorese é evidente a ativação de
ambos estes mecanismos, já que a recepção na casa de festa, onde todos compartilham fartura
alimentar preparada para a ocasião, consiste num núcleo de ativação da comensalidade e
coresidência – mesmo que temporária. O alimento constitui um idioma central desta tentativa
ritual de se estabelecerem alianças. Se os espíritos dos antepassados mortos já detiveram a
condição de proximidade e identidade enquanto vivos – isto é, já foram Haliti (“gente com a
gente”) – se tornaram algo distante e distinto após sua morte, que os priva do convívio cotidiano
social. Habitando outros patamares – como aldeias celestes, o mundo subaquático, subterrâneo
ou das matas – os espíritos dos antepassados passam a uma condição ambígua: com eles não é
mais possível compartilhar a vida doméstica e cotidiana, nem tampouco estabelecer relações de
casamento e parentesco. Esta situação ambígua instaurada pela morte, que tenciona
ancestralidade e alteridade, é o dilema de oloniti: como manter relações de proximidade e
produzir sociabilidade junto àqueles cuja condição é a do distanciamento. É nesse contexto que
as alianças virtuais e o problema da afinidade potencial assumem importância central.

Numa sociedade marcada por acusações de feitiçaria, não se pode confiar naquele que não está
próximo ao convívio cotidiano, que habita a mesma aldeia e compartilha o mesmo alimento.
Nesse contexto, a chicha aparece como a substância ritual pacificadora por excelência. Quando
todos os presentes bebem da mesma chicha, preparada para a festa e armazenada em grandes
cochos de madeira, a partilha significa que esta não contém veneno, neutralizando assim a
intencionalidade maléfica da feitiçaria potencial. Esta é uma das chaves de oloniti kalorese: a
complexa elaboração da performance e etiquetas rituais, através, principalmente, do uso do
idioma do compartilhamento alimentar – de maneira central, mas não exclusiva, através do
consumo e oferta de chicha do tipo oloniti – tenta dar conta da tensão que é receber durante as
festas, ao mesmo tempo, os seus parentes distantes e os espíritos de seus ancestrais – neste caso,
os segundos potencialmente “encarnados” nos primeiros. Esta dinâmica ambígua, marcada pelo

15
contraste entre uma consanguinidade imemorial, cristalizada na condição original, e uma
inimizade potencial, atualizada na condição presente, se produz, seja como consequência da
morte, seja como consequência do distanciamento social. Oloniti kalorese é neste sentido um
evento remediador e pacificador, promovendo a diminuição de distâncias através de alianças,
sem no entanto perder de vista as fronteiras que as separam, produzindo assim parentesco num
ambiente de conflitos potenciais.

Nesta direção os Haliti, assim como outros grupos Arawak, posicionam-se com ressalvas diante
do modelo perspectivista da “economia simbólica da alteridade”, aproximando-se com mais
vigor do que se denomina “economia moral da intimidade”: o que parece privilegiado nesta
socialidade é, antes, uma construção do bem-viver através de relações de cuidado e controle,
englobando, através da esfera doméstica e da proximidade aquilo que é tão distante como
necessário. Apesar da inimizade, feitiçaria e potencialidade do conflito consistirem em ameaças
constantes, o ritual não apresenta um idioma da guerra, vingança e predação; ao contrário, a
potencialidade do conflito parece remediada e controlada pela domesticação das relações que
o ritual produz, através da entoação de rezas e da oferta alimentar. As interações controladas
por oloniti kalorese visam sobretudo administrar as distâncias, demarcando fronteiras que não
podem ser totalmente diluídas e devem ser zeladas. A ruptura total de perspectivas, a saída de
si ou “êxtase antropofágico” (SZTUTMAN, 1998, p.8) das cauinagens Tupi não dão o tom
deste ritual, que mantem separado, porém domesticado, o que não pode ser totalmente diluído
no convívio social. Nesta abordagem, a afinidade virtual e a parcial integração que pressupõe,
parece condizer com o contexto do ritual Haliti: “[...] a afinidade potencial, valor genérico, não
é um componente do parentesco (como o é a afinidade matrimonial, efetiva), mas sua condição
exterior. Ela é a dimensão de virtualidade de que o parentesco é o processo de atualização”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2000, p.12).

Reestabelecer a proximidade e produzir a relação são cruciais, seja no caso da descontinuidade


promovida pela morte – quando os espíritos vão habitar outras regiões do cosmos, reconhecidas
e nomeadas pelos Haliti – seja no caso na descontinuidade promovida pelo distanciamento
social entre aldeias e subgrupos. Cabe lembrar que os Haliti são originalmente endogâmicos, o
que explica ainda hoje, mesmo com a grande mistura de casamentos entre os subgrupos, o
reconhecimento de diferenças entre aldeias em termos de seu pertencimento a um determinado
subgrupo. Diferente de outros grupos amazônicos, marcados pela fluidez de seu pertencimento

16
geográfico, mas próximos a outros como os do Alto Rio Negro e o complexo Xinguano, pode-
se dizer que os Haliti são “topógrafos”, no sentido que dão grande importância a pontos fixos
e ancoramentos territoriais. Sua atenção à topografia privilegia assim a relação espacial e
localizada entre os seres, em pontos fixos no espaço e território. Quase todos os lugares de seu
território – rios, morros, cabeceiras, campos, matas – possuem nomes que são conhecidos e
donos invisíveis que lá habitam – e é exatamente nesta proximidade, no adentrar no espaço do
outro, que se dão as relações. A mitologia é profundamente ancorada nestes repertórios de
nomes – de seres e lugares – um vasto repertório nominativo que dá conta, a princípio, de todo
o território imemorial habitado pelos Haliti, desde o surgimento, e que consiste no cenário de
todos os episódios míticos. É notável o conhecimento dos anciãos sobre este repertório de
nomes, que é também um índice de poder. Conhecer o território, em suas faces visíveis e
invisíveis, consiste em poder também compreender a qualidade das relações a que estão
expostos. Se chegam em uma determinada cabeceira de rio, sabem por exemplo que devem
oferecer algo para seu dono ao se aproximar – chicha, tabaco, etc. – de modo a evitar sua
indisposição. Deve-se, em outras palavras, estabelecer uma aliança através da oferenda e
compartilhamento, buscando a pacificação do dono com relação à sua presença.

Esta atenção à topografia territorial também se expressa no seu mundo material e na vida
doméstica da aldeia: hati, a casa tradicional, é alinhada com o nascente e poente do sol, já que
é a única maneira de viabilizar o trânsito dos espíritos protetores por dentro dela; nelas, o esteio
central kotaza é a âncora de ligação entre mundos, rodeado de oferendas nas cabaças e
forquilhas, e onde ficam penduradas as flechas korewayese, índices da agência dos espíritos
protetores; as casas de flautas, no pátio das aldeias, são a residência dos artefatos iyamaka,
índices materiais da agência de poderosos espíritos ancestrais, ancorados nas aldeias através da
coabitação espacial, que possibilita as oferendas, a comensalidade e em última instância, a
atualização de sua agência e existência. Toda a elaboração e interesse que os Haliti têm em se
relacionar com o mundo invisível é materializado em seu mundo sensível, sob formas distintas.
Estas, longe de consistirem em fragmentos de materiais inertes, carregam em si a complexidade
de pertencimento a um mundo cujas faces são múltiplas, e nem sempre perceptíveis aos leigos.
Para os Haliti, a forma e a materialidade são importantes justamente por constituírem meios de
acesso ao mundo que escapa à percepção visível.

As flautas iyamaka são artefatos índices da tensão entre ancestralidade e inimizade potencial.

17
Como vimos, não habitam mais o patamar dos vivos, porém nele estão ancoradas em formas
materiais. Seus espíritos encarnam nas taquaras de que são confeccionadas as flautas, e
perambulam pelas casas de flautas nas aldeias, consumindo a chicha que lhes é oferecida. As
relações de proximidade são assim reestabelecidas, mesmo que parcialmente, numa lógica que
aponta para a importância do cultivo à ancestralidade e da lembrança dos mortos. Ancorando-
os no mundo visível e material, possibilita-se a relação com eles. Não menos interessante, esta
lógica se reflete no fato dos Haliti enterrarem os corpos de seus parentes mortos dentro das
casas tradicionais que habitavam. Ao invés de uma lógica que aponta para o esquecimento,
distanciamento ou apagamento de quaisquer relações com os mortos, tentam lidar, ao menos
em certo nível, com a subversão da descontinuidade promovida pela morte. Os corpos dentro
das casas, enterrados sob as redes de dormir, não são nunca totalmente esquecidos – mesmo
que seus espíritos já tenham ido habitar outros patamares e regiões do cosmos.

São diversas as contribuições etnográficas que iyamaka e oloniti kalorese trazem para dialogar
com grupos do complexo das flautas, merecendo destaque o fato do ritual ser relacionado à
iniciação feminina – primeira menstruação das meninas-moças –, um forte contraste com o
complexo das flautas da Melanésia e Rio Negro, por sua vez associados à iniciação masculina.
Se atentarmos para as considerações acima sobre a produção do parentesco, podemos sugerir
que a despotencialização da afinidade virtual, reduzindo-a pelo (e ao) casamento, pode estar
sendo mobilizada metaforicamente entre convidados-espíritos e a menina-moça: sua condição
de fertilidade, marcada pela primeira menstruação e exaltada durante o ritual, será a condição
para a geração de novos consanguíneos, que receberão seus nomes (isto é, seus espíritos) dos
antepassados que já se foram. Sob a ótica das trocas matrimoniais, oloniti kalorese é também
uma festa de casamento virtual, uma aliança que mobiliza e atualiza a lógica da afinidade
potencial amazônica. A proposição sugere que os nomes a serem atribuídos aos recém-nascidos,
ao invés de capturados num fundo hostil e predatório, são na verdade cedidos pelos espíritos
habitantes das aldeias celestes, numa lógica de troca e reciprocidade; os espíritos, por sua vez,
têm na menina-moça a única e exclusiva condição para perpetuar as alianças matrimoniais, e
em última consequência, a condição para que os espíritos-nomes retornem ao convívio social
Haliti – tornando-se “gente” novamente.

Também é relevante a consideração de que as flautas iyamaka são artefatos mediadores por
excelência, e sua presença-viva e ambígua reflete justamente a problemática que se coloca aos

18
Haliti na construção de seu mundo social: a tensão entre ancestralidade e alteridade. As flautas
estão relacionadas à visita dos seres espirituais às festas de chicha, situação em que
desempenham objetivos específicos. Os seres presentificados pelas flautas precisam (e
intencionam) atingir as mulheres reclusas dentro das casas. Porém, o idioma deste contato é
específico e controlado, e ocorre através do som. Substância etérea, o som possibilita o contato
controlado entre os espíritos de iyamaka e as mulheres, através da emissão e recepção sonoras.
De fato, na perspectiva da reciprocidade evocada por oloniti kalorese, as flautas são tocadas
para as mulheres ouvirem. É neste ponto que uma ontologia do sonoro, inclinada à
relacionalidade, parece ser inevitável para a compreensão do ritual Haliti.

Ademais, a própria substância ritual – a chicha do tipo oloniti – está também entremeada neste
contexto. Se por um lado a chicha consiste no idioma ritual da domesticação e familiarização
dos convidados de fora, na forma de alimento compartilhado, é importante relevar o fato de que
é ela também a substância responsável pelo devir-outro, mesmo que parcial, possibilitando que
os festeiros sejam o suporte que necessitam os espíritos dos antepassados para ascenderem à
festa e desempenharem sua agência – ou seja, é também um veículo de sua manifestação.
Devemos relativizar, entretanto, a concepção da chicha enquanto “anti-alimento” cuja função é
“matar (metaforicamente) por embriaguez”16 (LIMA, 2005; SZTUTMAN, 2008), que não
parece aplicável no caso Haliti. Neste, o tom do controle – tanto do consumo, através da
regurgitação, como das relações promovidas pelo ritual, através das rezas, e as devidas
distâncias necessárias – prevalece sobre o descontrole e ruptura total das perspectivas dos
festeiros. O que está em jogo é sobretudo uma familiarização do outro através da oferta da
chicha, do compartilhamento alimentar com os convidados que trazem consigo a marca da
identidade Haliti somada à uma pequena dose de estranhamento, instaurada pela residência
extra-aldeia – sejam eles de outros subgrupos ou espíritos dos antepassados, marcados pela
condição pós-morte.

Lidar com esta tensão é tão complexo quanto necessário, e é justamente para isso que os rituais
oloniti kalorese existem, assumindo a inevitabilidade da produção da relação. Reunindo formas

16
Lima aproxima as cauinagens dos antigos rituais antropofágicos (LIMA, 2005, p. 253), pelo fato de que, ao se
transformar em cauim, a mandioca torna-se carne humana a ser cozida no estômago daquele que bebe. Entretanto,
não é uma carne-bebida que alimenta e nutre, pelo contrário, é um anti-alimento, que, de acordo com Lima (2005),
Sztutman (1998, 2008) e Viveiros de Castro (1986), mata.

19
de expressão, idiomas e etiquetas rituais capazes de aproximar os mundos visível e invisível,
promovem a pacificação das relações entre aqueles que se distanciaram. Oloniti kalorese tenta
reestabelecer a proximidade topográfica, reunindo os distantes e diferentes em situações de
comensalidade e coabitação. Esta é a maneira encontrada pelos Haliti não só de conceber, mas
de organizar na prática o seu mundo. Numa socio-cosmologia onde tudo é relação e negociação,
os controles rituais acabam por descortinar valores invisíveis que estruturam a sociedade Haliti.

Esta etnografia irá conduzir-nos por um mergulho nos rituais oloniti kalorese, explorando sua
realidade intersemiótica, seus idiomas, tecnologias e mecanismos de manejo das relações. Neste
microcosmo criado e operado pelos Haliti, a chicha do tipo oloniti é a substância fundamental.
Ela consiste num hiper-alimento, o elixir compartilhado neutralizador dos conflitos potenciais.
As flautas iyamaka, por sua vez, são os artefatos fundamentais. São os mediadores por
excelência da agência dos mais poderosos antepassados com eles em relação. Ambos os
elementos estão inseridos numa cadeia intersemiótica de fluxos, gestos e comunicação, entre
homens, mulheres, espíritos, animais, donos, substâncias e patamares, descortinada por estes
rituais onde linguagens verbais e não-verbais interagem de formas complexas. Esta questão
mais ampla – a saber, a tensão entre diferentes formas de linguagem – nos obriga atentar para
todos os fluxos e formas de comunicação que ocorrem durante oloniti kalorese, sejam eles
explícitos ou não. É neste sentido que reconheço nas formas verbais (conjunto de diferentes
categorias de fala) e na musicalidade (ora contida nas falas, ora derivada dos instrumentos e
ambiência ritual) elementos expressivos de suma significância para compreensão deste ritual.
Narrando, convocando, oferecendo ou comunicando, as expressões verbais e sonoras compõem
o fator de liga, o preenchimento significante do espaço ritual. É nesta chave que passamos a
introduzir os conceitos, mecanismos e linguagens rituais contidos em oloniti kalorese.

1.1 OLONITI: SUBSTÂNCIA E CORPORALIDADE

Nas festas de chicha Haliti, diferentes aldeias se reúnem para cantar, dançar e beber grandes
quantidades de oloniti, termo que se refere à um tipo específico de bebida fermentada,
produzida a partir do polvilho torrado da mandioca brava com adição de saliva feminina. Estes
encontros são mobilizados para celebrar e efetivar dois tipos de ritual de passagem – o batizado,
atribuição de nome espiritual à criança recém-nascida, e a menina-moça, final da reclusão das

20
moças púberes – e recebem a denominação oloniti kalorese (que literalmente significa “chicha
grande”). Podem também ocorrer excepcionalmente por ocasião de doenças, buscando
promover a cura dos indivíduos, ou para a celebração da colheita de mandioca nova, mas neste
caso são festas “pequenas”, não recebendo a denominação oloniti kalorese. Dizem alguns mais
velhos, em tom nostálgico, que oloniti kalorese simplesmente “não existe mais”, fazendo
referência às grandes festas que eram realizadas no passado, reunindo todas as aldeias e cujo
ciclo de realização poderia durar até um mês. Nestes rituais são feitas oferendas diversas aos
espíritos protetores, principalmente de chicha, beijus, carnes de caça e peixes defumados e
tabaco, numa dinâmica em que os alimentos consistem em fatores de mediação entre os mundos
visíveis e invisíveis. Estes espíritos são materializados e ancorados relacionalmente no mundo
Haliti através das flautas iyamaka e das flechas korewayese (literalmente, “flecha boa”), que
são artefatos mediadores por excelência. Através destes suportes e de tecnologias rituais
especializadas, gera-se um contexto de mediação, potencializando a relação com diversas
classes de subjetividades espirituais17, que apesar de invisíveis aos humanos, habitam o seu
mundo e desenvolvem com eles diversas modalidades de interação.

Os convidados para festa são denominados “festeiros” (oloniti hoaháre – “aquele que bebe
chicha”) e os que promovem a festa são designados “donos de festa” (harékahare), que serão
os patrocinadores e anfitriões responsáveis por receber com fartura alimentar e generosidade
todos os convidados. Os preparativos destas festas mobilizam trabalhos coletivos e representam
um momento de grande alegria, pois todos os moradores da aldeia anfitriã trabalham lado a
lado capinando, colhendo mandioca, processando-a para transformá-la em grandes quantidades
de oloniti, fazendo massa de beiju, confeccionando cigarros de tabaco, caçando e moqueando
(defumando) carnes e peixes. Ao chegarem à aldeia anfitriã os convidados são recebidos com
chicha e cigarros e se dirigem à casa de festa, onde uma série de cerimônias serão realizadas e
onde irão consumir os alimentos previamente preparados. Hoje, as festas duram

17
“Semelhantes aos Aruaques da Guiana, também os Parecí-Kabisi veem toda natureza povoada por demônios
bons e maus, que têm sua morada nas montanhas, nos rios e em outros pontos particularmente notáveis e atraentes
da natureza” (SCHMIDT, 1943, p.32, tradução nossa). Os Haliti concebem diferentes categorias de seres
espirituais com quem estabelecem relações. A caracterização de suas formas de agência sobre as pessoas é por
vezes ambígua, oscilando entre a atribuição da doença ou restauração através da cura. De todo modo, há um
componente moral em relação a estas formas de agência, relacionado à esfera disciplinadora. As principais
categorias são: utyahaliti (espíritos dos antepassados que auxiliam os pajés na cura dos doentes); wamoti (gente
do morro, considerados perigosos feiticeiros); yákane/yakanero (gente da água, os donos/guardiões originais das
flautas iyamaka); enekonieré/enekonioló (PEREIRA, 1986, p.215) ou gente do mato (conhecidos pela maestria
das plantas medicinais); e Enoharese (espírito dono do trovão, associado à manifestação do espírito-criador
Enoré).

21
aproximadamente três dias, intercalando momentos de descontração com performances rituais
elaboradas. Estes rituais preveem uma etiqueta específica e elaborada em termos de
performance e expressões verbais – danças, cantos, rezas e diálogos cerimoniais – que deve ser
seguida sequencialmente para a festa seja bem-sucedida. Isso porque a execução correta de
oloniti kalorese, respeitando os resguardos e performances, é um fator determinante para que a
festa não cause consequências indesejáveis para os seus donos – o que e sempre um motivo de
ansiedade para eles. Ao escurecer, os homens se reúnem no pátio e começam a soprar as flautas
iyamaka, enunciando oferendas dirigidas a uma série de espíritos protetores: das matas, dos
rios, dos subterrâneos e das aldeias celestes. Dançam, cantam e bebem chicha, enquanto as
mulheres e crianças ficam reclusas em suas casas, impossibilitadas de ver o que se passa do
lado de fora, pois a elas é proibida a visão das flautas. Devem, no entanto, ouvir tudo o que se
passa, numa complexa dinâmica intersemiótica descortinada pelo ritual, em que os sentidos da
visão e audição são fundamentais. O acesso às flautas não é negado às mulheres; pelo contrário,
ocorre de maneira intencionada através da emissão e recepção sonora.

O termo oloniti designa tanto o ritual quanto a bebida consumida, um tipo de chicha forte
produzido com água e polvilho torrado de mandioca brava que, acrescentado da saliva das
mulheres através da mastigação da massa, tem sua fermentação acelerada. A bebida torna-se
“pesada” ao consumo, além de reter uma pequena graduação alcoólica na mistura, tornando-a
difícil de digerir e deixando seus consumidores com o estômago “inchado”. Esta é consumida
apenas em situações rituais e denominada “chicha azeda”, contrastando assim com a “chicha
doce” (kazalo) consumida também no cotidiano e feita a partir da mandioca d’água, sem adição
da saliva feminina. É necessário sublinhar que a chicha azeda é, sobretudo, uma substância
ritual. Coloca-se a questão de saber se a lógica dos rituais de oloniti pode ser comparada à
produção e consumo deste alimento cerimonial que se convenciona nomear na etnologia
amazônica como “cauinagens” (SZTUTMAN, 2008). Estas constituem situações em que se
consome grandes quantidades de bebidas fermentadas, que podem ser feitas de mandioca,
milho, batata ou frutas como caju e abacaxi, e cujos nomes podem variar conforme cada povo
indígena – cauim, caxiri, caissuma ou chicha. No pensamento ameríndio, sugere-se que tais
substâncias, rituais por excelência, podem ser veículos de relação:

[...] concebidas também como a objetivação de certas relações, por exemplo, relações
entre homens e mulheres, entre conterrâneos e estrangeiros, entre humanos e não-
humanos, entre vivos e mortos. Em suma, o que o pensamento ameríndio parece
sugerir é que essas propriedades tidas como objetivas são, antes de tudo, relações.

22
(SZTUTMAN, 2008, p.221)

De fato, este entendimento pode ser reconhecido no contexto de oloniti, ao atentar para a
capacidade que a substância detém de produzir e atualizar diversas modalidades de relação:
entre homens e mulheres (as mulheres produzem a chicha para o consumo dos homens), entre
parentes próximos e parentes distantes (a chicha é compartilhada com os parentes distantes de
outras aldeias), entre humanos e espíritos (a chicha é oferecida à diversas classes de espíritos
dos antepassados, habitantes de outras regiões do cosmos). Se substâncias podem ser
concebidas como relações, a chicha aparece aqui como um elemento mediador, capaz de
aproximar categorias e reduzir o intervalo entre elas.

O fato de a chicha ser uma substância produto da ação transformativa feminina nos permite
complexificar, por exemplo, a qualidade de agência que ela carrega. A saliva feminina, parte
de sua composição, é a substância fermentadora, que torna a chicha “forte” ao consumo dos
homens. Além disso, a própria matéria-prima possui no pensamento Haliti uma elaboração
específica, remetendo à espécie vegetal da mandioca brava que, conforme a mitologia, aparece
como uma das derivações da transformação do corpo da menina-mandioca, filha de Kokotero:
esta possuía a pele cheia de caroços e era desprezada pelo pai; aborrecida com tal situação,
pede à sua mãe que a enterre no mato, dando origem assim à espécie vegetal (BORTOLETO,
2005; PEREIRA, 1986; ARONI, 2011). Trata-se de uma transubstanciação, no sentido em que
uma menina que já foi gente (Haliti), é transformada numa espécie vegetal, que posteriormente
será transformada em alimento cerimonial, através do processo de fermentação, originando a
chicha oloniti. Esta transformação não pode ser explicada em termos de uma criação, já que
envolve, para além de processos materiais, a transferência de propriedades. Como amplamente
difundido no mundo amazônico, “a ideia de criação ex nihilo (“do nada”) é virtualmente
ausente nas cosmologias ameríndias” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.477) que são
marcadas pelo seu caráter construtivo, anímico e perspectivista. Tal constatação é relevante, já
que oloniti remete ao sentido amplamente difundido nas cosmologias amazônicas de que as
coisas e seres do mundo de hoje constituem “anatomias compostas” (VAN VELTHEM, 2003;
SANTOS-GRANERO, 2009; LAGROU, 1998, 2007, 2009), formadas após sucessão de
processos transformativos. Assim como artefatos, substâncias comportam não somente
subjetividade e agência, que as tornam relacionais, mas agregam fragmentos de alteridade que
lhes são constituintes, e que irão determinar o modo como interferem sobre os outros quando

23
em relação. Este fato deve nos manter atentos para o fato da chicha, em seu processo de
composição múltipla, reunir traços tanto do corpo da menina-mandioca como do fluido
corporal feminino responsável por sua maturação – a saliva.

Numa chave relacional e perspectivista proposta por Sztutman (2008) para as cauinagens Tupi,
a chicha enquanto “anti-alimento” é associada à intoxicação, embriaguez, morte metafórica e
troca de perspectivas. A capacidade da substância produzir alterações radicais nos corpos que
a ingerem é associada ao entendimento de que as perspectivas, contidas nos corpos dos sujeitos
– e assim, nas substâncias personificadas – são passíveis de intercâmbios. Nesse sentido, o
cauim Tupi, semelhante ao cipó da ayahuasca Pano (LAGROU, 2007), por exemplo, consistem
em outros seres, que possibilitam o devir-outro – processo transformativo almejado pelo seu
consumo. No caso Haliti, entretanto, tal possibilidade deve ser matizada, já que a preocupação
com o controle da substância e de seus efeitos é muito mais presente do que a total entrega à
sua agência transformativa. Oloniti kalorese nos direciona para uma dinâmica ritual em que o
controle das relações, por sua vez produzidas pela oferta e consumo da chicha, é de fato a
preocupação central.

Isso fica ainda mais evidente se atentarmos para o contraste entre a ingestão de chicha em
grandes quantidades pelos festeiros e a técnica corporal que os permite consumi-la a noite toda:
o ato de vomitar. Por ser rusticamente fermentada, a chicha causa uma sensação desconfortável
de “inchaço” no estômago, que impossibilitaria bebê-la a noite toda. Os festeiros mais
experientes, ao mesmo tempo que bebem toda chicha oferecida, vomitam durante toda a noite,
evitando tal desconforto estomacal. Esta dinâmica é ambígua, já que, por um lado, o ato de
regurgitar a chicha durante os rituais efetiva uma forma de controle sobre a embriaguez,
evitando a morte, a troca de perspectiva ou o conflito eminente decorrente deste estado –
conformando-se assim com a perspectiva de pacificação ou domesticação das relações
promovida pelos rituais. Por outro lado, se admitirmos que o álcool presente na chicha é
absorvido pelo sangue rapidamente quando ingerido, vomitá-la nada mais é que uma técnica
que permite potencializar a embriaguez, e consequentemente, a eminência da transformação
decorrente deste estado. Isso confere um fator de ambiguidade para a substância oloniti,
parcialmente um hiper-alimento, capaz de pacificar as relações ao ser compartilhado, assim
como um anti-alimento, que altera controladamente os corpos dos festeiros e suas perspectivas
para que os espíritos convidados possam ser recebidos, cantar e dançar.

24
Através das exegeses Haliti verificamos que a capacidade e habilidade de beber grandes
quantidades de chicha sem embriagar-se é a condição fundamental para o bom andamento dos
rituais. A ênfase recai muito mais sobre os “vorazes bebedores de chicha” e seu autocontrole,
que devem cantar e dançar por toda a noite sem cessar (isto é, sem embriagar-se ao ponto de
“cair”). Os cantos Haliti enfatizam que, antes dos alimentos cultivados, a chicha era feita de
abacaxi-do-mato – entre outras sementes e frutos de árvores nativas. Esta versão da bebida era
muito forte, “derrubando” rapidamente seus consumidores incautos. Porém, são exaltados os
antepassados que detêm a capacidade de beber esta chicha sem embriagar-se, “bebendo com o
nariz” (numa analogia a virar as grandes cabaças de chicha sobre o rosto) e festejando a por
toda a noite sem prejuízo à execução ritual. Se nas cauinagens Tupi "o cauim é gente, antes de
tudo, porque ele mata os vivos, fazendo-os se aproximar dos mortos” (SZTUTMAN, 2008,
p.236), no caso Haliti parece mais apropriado conceber a chicha como uma substância
mediadora e pacificadora, que possibilita a interação entre afins distantes ao mesmo tempo que
confere à esta relação um tom ameno, pacífico e controlado. Se em ambos os casos a capacidade
de mediação parece fundamental, para os Haliti a subversão das fronteiras é menos interessante
do que sua delimitação, domesticação e controle.

No contexto da socio-cosmologia Haliti, onde as acusações de feitiçaria são as determinantes


dos males e doenças que acometem as pessoas, e que tais acusações recaem sempre sobre
grupos de parentes distantes, é fundamental entender que a chicha possui uma função de
mediação de conflitos. Enquanto índice da comensalidade ritual, a chicha é o alimento
compartilhado por excelência, sem exceção, entre parentes próximos e distantes. Este fato
possui grande significância naquele contexto, pois ao compartilhar da mesma bebida sabe-se
que ela não está “envenenada” – ou, naquele caso, não possui feitiço. Uma das formas de
“passar” feitiço para os outros é exatamente através do alimento. Compartilhar a chicha da festa
é como um pacto, uma aliança social, predizendo a ausência de conflito e intencionalidades que
não sejam pacíficas frente àqueles parentes distantes, potencialmente perigosos. A
comensalidade, neste caso, confere à oferta de chicha um caráter conectivo: beber junto para
não se envenenar.

De fato, enquanto categoria complexa do pensamento Haliti, oloniti nos direciona para uma
investigação das dimensões corporais que estão em jogo durante a execução ritual,

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complexificadas através das diferentes performances e dos dispositivos alimentar e musical,
que operam em tais ocasiões. O corpo aparece aqui como o ponto de convergência das
transformações que o ritual possibilita, centralidade que já foi apontada no clássico artigo sobre
a fabricação ritual dos corpos na Amazônia por Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979)18.
Os rituais oloniti permitem pensar a fabricação ritual dos corpos através de duas chaves
fundamentais: a atribuição de prerrogativas – sociais, morais e simbólicas – e o controle sobre
os fluxos de substâncias incidentes sobre os corpos. O corpo aparece como uma instância
inacabada, performada e praticada, que comporta não somente uma realidade física, mas um
conjunto de incorporações contínuas. Não somente, a linguagem da fabricação dos corpos é a
mesma da continuidade da vida social, onde saúde e fertilidade são elementos indispensáveis.
Ambos os fatores são exaltados por oloniti kalorese: a manutenção da saúde dos corpos vem da
pacificação das relações sociais, que potencialmente agressivas, são desencadeadoras de
feitiçaria e enfermidade; e a celebração da fertilidade dos corpos, das quais são índices as
meninas-moças, é o fator do qual depende a reprodução social.

1.2 IYAMAKA: MATERIALIDADE E MEDIAÇÃO

Quando estive entre os Kozarinis, estes índios me qualificaram a casa de festa [...] de
domicílio do demônio da serpente, da jararaca. (SCHMIDT, 1943, p.53, tradução
nossa)

As flautas iyamaka são os principais atores dos rituais oloniti e sua existência e cuidado no dia
a dia são determinantes para a socio-cosmologia Haliti. Nas aldeias onde se realizam festas é
necessário que haja uma casa de flautas, onde são guardados os instrumentos rituais. Estas
pequenas casas são importantes durante as festas, já que abrigam os festeiros e suas flautas, e
por isso têm de ser sempre mantidas e reformadas. A cada flauta iyamaka se associa uma
identidade específica, uma performance e um repertório de cantos, rico em variações rítmicas,

18
Nas sociedades ameríndias, a concepção de pessoa corresponde e está ligada à concepção de corpo, que por sua
vez se distancia do entendimento hegemônico moderno do indivíduo biológico acabado, dado pela natureza. O
corpo ameríndio, ao contrário, é inacabado, moldável e deve ser fabricado ritualmente e continuamente nas suas
trajetórias de vida e experiência, numa conjuntura em que “a produção física de indivíduos se insere em um
contexto voltado para a produção social de pessoas” (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979,
p.4). Tecnologias e práticas rituais se sobrepõem aos corpos, não apenas socializando-os, mas inscrevendo sobre
eles a sua própria condição ‘humana’, já que o “corpo tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as
sociedades indígenas têm da natureza do ser humano” (SEEGER; DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979,
p.4).

26
melódicas e evocativas de imagens da mitologia, que variam de flauta para flauta. Atualmente
existe um número limitado de mestres, cantores e conhecedores dos cantos relacionados às
práticas rituais, função está associada aos mais velhos e pajés das aldeias.

A distribuição das flautas iyamaka nas diferentes aldeias ocorre de acordo com a família de
seus donos, e sua transmissão é hereditária. Algumas flautas não existem mais, seja pela morte
de seus donos ou pelo abandono por parte de seus familiares. Existem hoje seis grupos de flautas
iyamaka, cuidadas pelos seus donos e distribuídas nas seguintes aldeias: amore (aldeia Kutitiko
e Zatemana); imokolo (aldeia Boa Esperança); zeratyalo (aldeias Kutitiko, Rio Verde, Zanakwa
e Sacre II); txeyru (aldeia Kutitiko, Rio Verde e Estivadinho); ualalose (aldeia Kutitiko e Rio
Verde); tiyrama (aldeia Três Lagoas). A complexidade elaborada pelos Haliti no que diz
respeito a sua expressão ritual é refletida na multiplicidade de suas flautas, cada uma delas
dotada de um conjunto de características sonoras singulares observadas nas suas distintas
execuções músico-performáticas.

Cada flauta possui uma “personalidade” distinta – nome, história de origem, família de donos
associada, temperamento, rezas específicas para se oferecer chicha, ritmo, melodia e forma de
execução dos cantos e performance ritual – diferenças que por sua vez vinculam formas de
agência e temperamento específicas a cada uma delas. Estas diferenças são exploradas pelos
Haliti no contexto de suas exegeses, assim como nas narrativas míticas associadas. Além das
flautas iyamaka, proibidas à visão das mulheres, existem e estão em uso os seguintes
instrumentos musicais: zero (flauta de pan, formada por cinco tubos paralelos, de comprimentos
distintos) e xihali (flauta nasal, composta por dois discos de cabaça colados com cera de abelha),
ambas não proibidas à visão das mulheres. Cabe lembrar ainda que os Haliti possuem outros
artefatos rituais, o que complexifica ainda mais sua percepção sobre a materialidade:
teixikihare (tyaitsikihare, numa variante, a “vara-órfã”), verare e iohohô (varas rituais,
decoradas com penas nas extremidades), todos estes companheiros de iyamaka, alojados
também na casa de flautas; walasé (chocalho do pajé, utilizado para acompanhar os
benzimentos) e korewayese (flecha “sagrada”, veículo da agência dos espíritos curadores), estes
últimos sem relação “direta” com as flautas. Em certo sentido, todos estes artefatos têm relação
com as formas de expressão Haliti e sua complexidade relacional diante do mundo invisível,
possuindo repertórios verbais e práticas rituais associadas.

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Já há algum tempo venho me aproximando da categoria iyamaka através destas duas chaves
conceituais que considero de extrema importância para compreender sua especificidade: por
um lado, sua materialidade, remetendo ao estatuto diferenciado que estes artefatos possuem
naquele contexto – uma “presença-viva” que possibilita diversas modalidades de mediação; e
por outro, sua musicalidade, noção que utilizo para reunir e enfatizar os saberes e técnicas
especializados implícitos na sua condição sonora, ao redor dos quais se elaboram performances
e repertórios de artes verbais e instrumentais. Nesse sentido, a categoria iyamaka nos permite
contribuir com a reflexão sobre a produção material amazônica que, há tempos, desconstrói as
oposições entre pessoa e coisa, sujeito e objeto (VAN VELTHEM, 2009; SANTOS-
GRANERO, 2009), apontando para uma visão nativa, cosmologicamente e pragmaticamente
circunscrita, sobre a materialidade dos artefatos e sua capacidade de mediação, seja nos
processos de sua fabricação ou de utilização ritual. Constitui ainda para uma possibilidade de
ampliar o campo de estudo sobre aerofones rituais através da exploração de suas camadas
verbais e sonoras, a musicalidade aqui entendida como algo que agrega significação a esta
classe de artefatos.

Distintos de outros objetos cotidianos, estes artefatos possuem certo grau de subjetividade,
agência e presença, percepção esta que se reflete em termos pragmáticos, influenciando e
provocando consequências sobre a experiência das pessoas ao seu redor. O complexo
simbolismo que envolve a categoria iyamaka tem como principal referência sua associação com
o termo jararaca – a espécie de cobra mais venenosa e temida daquela região – o que levou
Costa, R. (1985, p.117) a reconhecer em tais objetos uma “mediação ou encarnação de espíritos
predatórios e poderes maléficos da natureza”. No século XIX o viajante Schmidt (1943), por
outro lado, associou as flautas aos demônios, numa clara convergência ao imaginário
missionário de época imbuído de combater os rituais indígenas, acusando-as de serem práticas
diabólicas (SCHMIDT, 1943). Já Faria (1937), dando pouca importância à “presença-viva” das
flautas, atribuiu aos Haliti uma “imaginação fetichista distinta [...] e fértil em ficções” (FARIA,
1937, p.70). Estas tendências interpretativas, refletidas nas atitudes de movimentos
evangelizantes atuais, acabam por restringir a categoria iyamaka ao seu universo simbólico;
mesmo revelando-se em toda sua complexidade, ofusca a possibilidade de questionamento da
“realidade desta (suposta) ficção”, ou ainda, da medida em que esta imaginação é capaz de
produzir realidade, resistindo à anti-idolatria missionária e influenciando os modos de vida
Haliti até hoje, sem praticamente nenhuma alteração significativa nas práticas que os envolvem.

28
Se todo conhecimento é gerado pela imaginação, esta é tão mais importante como atuante, num
cenário em que o embate por visões de mundo hegemônicas é também uma estratégia de
sobrevivência física e cultural.

Superando a oposição entre imaginação e realidade e mesclando uma dose do fato e do feito –
uma composição entre determinação objetiva, imaginação subjetiva e experiência prática
(INGOLD, 2011) – esta suposta imaginação fetichista me parece antes uma realização do fato.
É neste sentido que pretendo aqui escapar das interpretações etnográficas baseadas num sistema
representacional arbitrário de crenças – que reproduziram a designação (inclusive entre os
próprio Haliti) de “flautas sagradas”. Preenchendo lacunas, valorizando uma forma de
percepção nativa distinta, baseada em agências invisíveis e atuantes, mas também em modos
de ação técnica sobre o mundo, reconheço que os meios e tecnologias práticas envolvidas na
produção destes artefatos são capazes de não somente emanar representações culturais em torno
de si, mas também desencadear comportamentos elaborados, amplamente utilizados e
reproduzidos pelos Haliti. A abordagem culturalista, portanto, não é capaz de dar conta deste
fenômeno material.

O problema central que emana de iyamaka diz respeito à sua presença-viva – ao aparente
paradoxo de atribuição de agência, subjetividade e animosidade a coisas que são conhecidas (e
concebidas) como inertes (GAIGER, 2011). Se por muito tempo a vida dos objetos foi
associada a formas de ilusão, projeção, idolatria, fetichismo, magia, histeria ou superstição
(GAIGER, 2011), hoje temos um cenário contrário, que integra as imagens à realidade e admite
que nossas respostas a elas podem ser da mesma ordem de nossas respostas à realidade
(FREEDBERG, 1989). Enquanto sujeitos emaranhados na rede de relações, estimulam não
somente respostas cognitivas diante de sua presença, mas também reações e comportamentos
derivados de sua condição ambígua. O que encontramos nas aldeias Haliti hoje são artefatos
inseparáveis da realidade prática cotidiana e ritual, operantes numa estrutura que ultrapassa a
idolatria fetichista e religiosa e aponta para um sistema de pensamento e ação sobre o mundo.
Mais do que objetos “sagrados”, os Haliti lidam com as flautas em termos de suas capacidades
de mediação e causalidades reais, factíveis, de ordem natural, as quais devem ser administradas
através de práticas para controlar suas influências sobre as pessoas e o ambiente. Por implicar
uma dose de perigo, tais relações devem ser conduzidas com extrema cautela, através de
técnicas de ação que se transmite entre as gerações. Tais técnicas se revelam através dos

29
processos de fabricação, cuidado e utilização ritual.

Todo artefato, para ser reconhecido como uma forma de “espírito” – tema que retomarei ao
final do texto – e considerado como animado, precisa de uma tecnologia ritual específica.
Assim, faz-se necessário suplementar sua materialidade, definindo os princípios que os
vitalizam através do mapeamento das técnicas e processos materiais envolvidos em suas
trajetórias existenciais – buscando assim uma definição da força das coisas em termos dos
fluxos materiais que as compõem:

[...] trazer as coisas para vida será não uma questão de injetá-las com agência, mas de
restaurá-las aos fluxos generativos do mundo de materiais em que surgiu e continuam
a subsistir. Este ponto de vista, que as coisas estão na vida ao invés da vida estar nas
coisas, é diametralmente oposto ao entendimento convencional antropológico do
animismo [...] que implica a atribuição de vida, espírito ou agência a objetos que são
realmente inertes. (INGOLD, 2007, p.12)

Atentando para suas trajetórias existenciais, relacionais e biográficas (KOPYTOFF, 1986),


compreendo que as tecnologias envolvidas nos processos de materialização, de maneira central
a fabricação e a nutrição, permitem produzir artefatos complexos, que apontam para relações
mais amplas com a alteridade. Nestes processos constitutivos, a transferência de propriedade e
domínio (FAUSTO, 2008), assim como a fragmentação e distribuição de subjetividades
(GELL,1998) se fazem elementos centrais, produzindo “objetos quiméricos”19, capazes de
gerar, através de sua presença, certo grau de desconforto e incerteza cognitiva, condensando
relações e contradições envolvidas em suas trajetórias de constituição (SEVERI, 2006; 2015;
LAGROU, 2012).

As relações com as alteridades participantes em suas trajetórias – neste caso, os espíritos de


poderosos antepassados, ancorados em sua materialidade – são por sua vez conduzidas através
de uma técnica suplementar, que podemos designar como verbalização, enunciação ou
simplesmente musicalização (HILL, 1997). Por sua vez, a camada sonora e verbal que orbita

19
Na definição proposta por Severi (2006), uma imagem quimérica condensa ambiguidades e contradições em sua
forma, exigindo a atividade de projeção mental para complementação de seu sentido. Aplicado aos artefatos rituais,
esta definição sugere que tais objetos não se encerram em sua forma sensível e material; pelo contrário, sua
extensão é desdobrada e complementada através das atividades mentais de projeção é imaginação, emanações que
se aderem e fazem parte de sua constituição enquanto artefatos complexos. Lagrou (2011, 2013) mostrará que as
artes ameríndias levam a tecnologia de sugerir mais do que de mostrar ao extremo, resultando numa arte quimérica
eminentemente perspectivista.

30
ao redor de iyamaka sugere um argumento cognitivo a respeito dos processos mentais
envolvidos na transformação de sons em imagens em contextos rituais, assim como sobre a
amplitude das sonoridades sobre o corpo e a percepção humana, que será explorado ao final
desta tese. Por agora, devemos atentar para as dinâmicas intersemióticas, pragmáticas e
cognitivas descortinadas pelos seus processos de utilização.

Conforme a mitologia Haliti, as flautas iyamaka eram originalmente possuídas pela “gente-da-
água” (yakane/yakanero), habitantes dos fundos dos rios que fabricavam e tocavam seus
instrumentos para animação de grandes festas de chicha nos terreiros subaquáticos. A
transmissão das flautas aos Haliti se deu através do modelo da dádiva (MAUSS, 1974), gerando
uma obrigação recíproca a partir de sua doação, o que significa que mais do que um artefato,
transmitiu-se uma prerrogativa – um direito e uma obrigação, que é a necessidade de cuidá-la
conforme técnicas irrevogáveis. Tais técnicas envolvem, em primeiro lugar, a sua
fabricação/materialização e posteriormente sua nutrição/manutenção – a necessidade de
alimentá-las constantemente, a fim de não gerar a sua indisposição diante de seus donos.

A noção de nutrição é fundamental para conceber a categoria iyamaka, já que é através dela
que se possibilita um controle positivo sobre o potencial de agência contido nas flautas. Através
da oferta de alimentos, sua presença-viva e capacidade de agência e mediação é atualizada no
cotidiano da aldeia. Ofertar alimentos na casa de flautas, de maneira central a bebida chicha,
mas também carnes de caça e peixe defumados, beijus de mandioca e cigarros de tabaco, visa
sobretudo acalmá-las (SCHMIDT, 1943; COSTA, R., 1985), constituindo uma técnica de ação
que tem como efeito balancear a causalidade das forças ambíguas encarnadas nas flautas, que
dão e tiram a vida. Tal manipulação objetiva sobretudo evitar doenças, acidentes, infortúnios,
desequilíbrios e, em última instância, a morte de uma pessoa, que na escatologia Haliti
representa a ruptura entre corpo e espírito – transformação para forma espiritual, que passará a
habitar outros patamares – e a transição para condição de alteridade.

A nutrição das flautas constitui uma tecnologia que mobiliza trabalhos tipicamente masculinos
e femininos e é dependente de uma série de processos materiais de transformação e negociações
subjetivas, já que os recursos oferecidos devem ser literalmente “adquiridos”, pois são
concebidos como propriedades de outrem. Por exemplo, a mandioca, espécie vegetal associada
ao corpo da menina mítica chamada Kokotero, deve ser processada para preparação da chicha,

31
envolvendo processos como o plantio, colheita, trituração, secagem, cozimento e posterior
adição da saliva das mulheres, de modo a permitir o processo de fermentação; expedições de
caça, por sua vez, envolvem a negociação com e oferenda aos seres espirituais donos dos
animais de caça, e posterior defumação da carne adquirida para permitir sua conservação; a
compra de cigarros nas cidades próximas, o que hoje se tornou um habito substitutivo do plantio
e secagem do tabaco, também exige um processo monetário de negociação. Após a preparação
material, as oferendas são enfim efetivadas através de rezas proferidas por mestres rituais,
normalmente os mais velhos da aldeia, acrescentando ao contexto de oferta de alimentos uma
dimensão verbal e musical.

De maneira complementar, a fabricação destes artefatos mobiliza também um conjunto de ações


e processos materiais, que devem ser realizados segundo técnicas e permissões específicas. As
flautas iyamaka são fabricadas através da extração da espécie vegetal denominada taquaruçu-
do-seco, que atualmente só pode ser retirada de um taquaral específico, localizado na cabeceira
do Rio Osso, dentro do território Haliti. O denominado taquaral “sagrado” é assim referido para
denotar a exclusividade da fonte da matéria-prima para fabricação das flautas, que é uma
prescrição a ser respeitada. Num sentido mais amplo, há uma referência na história oral Haliti
tanto à criação-transformação da espécie vegetal taquaruçu-do-seco quanto à criação-
transformação do taquaral da cabeceira do Rio Osso. Neste contexto, o ato criativo envolve,
além de processos materiais, necessariamente as noções de transformação, composição,
transubstanciação, negociação e transferência de propriedades (GUSS, 1989; VAN
VELTHEM, 2009).

Tal constatação é importante no caso de iyamaka. A mitologia Haliti confirma um sentido


amplamente difundido nas cosmologias amazônicas de que as coisas e seres do mundo de hoje,
incluindo artefatos, espécies vegetais, animais e corpos humanos, seriam resultado de processos
de fusão e transformação nos tempos primordiais, onde a instabilidade posicional permitiu a
geração de “anatomias compostas” (VAN VELTHEM, 2003), ideia que colapsa as oposições
entre materialidade e personalidade e entre sujeito e objeto. No sentido revelado, objetos
materiais podem constituir-se a partir de transformações de corpos de outros sujeitos,
carregando fragmentos de suas personalidades distribuídas.

De acordo com o mito de origem do mundo, a espécie vegetal taquaruçu-do-seco surge como

32
uma transformação criativa de uma parte do corpo de um ancestral. Nos primórdios, existiam
apenas “os entes superiores, os homens de cima de cabelo branco, a gente da água, a grande
maioria das estrelas, as águas e um montinho de terra” (PEREIRA, 1986, p.30). Miore, um dos
homens de cima, foi criando progressivamente os elementos do mundo, a partir de pedaços de
sua batata da perna:

De novo a batata da perna de Miore ficou estofada. Miore cortou e nasceu o taquaruçu-
do-seco, para a gente da água fazer as suas flautas-secretas. No fim, Miore disse: -
Todos os animais venenosos, que nasceram, vão ser guardas das flautas secretas. A
gente da água pegou os taquaruçus-do-seco que nasceram e levou para o fundo da
água e fez tudo quanto era espécie de flauta-secreta. Depois tocou e dançou. O chefe
da gente da água, Kalaytewé, cantou assim: - O terreiro de areia, escorregadio, no
fundo das águas, é o meu terreiro. (PEREIRA, 1986, p.30)

De maneira complementar à origem da espécie vegetal utilizada pela gente-da-água para


confecção de suas flautas, o antepassado Nahorekasé é o dono do taquaral exclusivo, localizado
na cabeceira do Rio Osso, que os Haliti utilizam para confeccionar seus instrumentos. O acesso
a este taquaral é proibido às mulheres e restrito aos donos de flauta e seus familiares homens.
O fato de o taquaral possuir um dono obriga os donos de flauta, sempre que forem em busca de
matéria-prima para sua confecção, a fazer oferendas para evitar qualquer indisposição de
Nahorekasé. A história deste taquaral é reconstituída através do relato de Zomoizokae,
liderança Haliti:

Nahorekasé habitava uma aldeia e tinha filhos; certo dia, seus filhos se afogaram no
rio e morreram. Nahorekasé então pediu para a gente da água para desenterrarem seus
ossos da areia no fundo do rio; pegou a costela do filho e enterrou na cabeceira do
Osso, onde nasceu a taquara do seco; este é o local onde hoje fica o taquaral de onde
são retiradas as taquaras para as flautas iyamaka; quando mulher vê flauta,
Nahorekasé lança veneno, feitiço nela. (ARONI, 2015, p.33)

De maneira contrastante, temos aqui a associação da matéria-prima tanto a um dono-


controlador-protetor, pronto a lançar feitiço nas mulheres que desrespeitarem a proibição da
visão, como a uma substância/fragmento corporal de um antepassado, neste caso originada a
partir do brotamento – ou criação-transformação – do osso da costela de seu filho morto por
afogamento – em relação, portanto, com a gente-da-água. As múltiplas referências constituintes
da matéria-prima vegetal apontam para uma anatomia complexa que torna a fabricação das
flautas um ato perigoso, já que o conhecimento das entidades, localidades e das relações que as
constituem descortinam uma contiguidade entre pessoas e materiais. Assim, os Haliti devem
respeitar uma série de regras e prescrições específicas para fabricação das flautas, já que a

33
manipulação e transformação de matérias-primas, de modo semelhante ao que propõe Guss
para fabricação da cestaria yekuana, envolveria tanto a "transferência de ‘propriedades’
[ownership]" como uma "conversão de objetos selvagens em objetos domésticos" (GUSS,
1989, p.95). O processo de conversão-domesticação lida não somente com a transformação de
índices materiais da presença dos corpos dos antepassados, mas também com a transferência
de propriedades e prerrogativas entre donos: de um lado, o dono da matéria-prima, que autoriza
e permite que, do outro lado, o fabricante se torne dono de sua nova flauta. Se a manufatura
envolve negociação – e, também, predação, na extração violenta dos índices materiais – todos
os objetos fabricados são, na verdade, campos de força (HODDER, 2012; INGOLD, 2007),
marcados por resistências e permissões específicas que devem ser adquiridas e compostas para
permitir sua produção.

Ambos os contextos de fabricação e nutrição das flautas apontam para um sentido de


propriedade distinto, que está por trás de todas as coisas do mundo e é comum nas ontologias
amazônicas: para os Haliti, tudo tem dono – animais, vegetais, recursos naturais, localidades e
objetos culturais. Neste mundo topográfico de donos, mais do que um sentido de posse, subjaz
uma noção de mediação, controle e proteção, além de relações marcadas pela constante da
oferta alimentar (FAUSTO, 2008; BARCELOS NETO, 2004). Ser dono configura assim uma
relação que implica cuidado e responsabilidade – isto é, condições e habilidades envolvidas na
relação ativa de ser possuidor de algo – e não mera propriedade estática como se aplica o termo
em relação aos objetos materiais – aproximando-se ao sentido sugerido pelo termo ownership
(FAUSTO, 2008). Sejam eles donos de flauta, responsáveis pela condução correta dos
processos envolvidos, ou donos dos recursos, que concedem e ao mesmo tempo os protegem
(BARCELOS NETO, 2004), ambos se encontram implicados em formas de relação que
ultrapassam a posse, envolvendo negociações, técnicas de manipulação e produção material.
Do ponto de vista dos artefatos, poderíamos afirmar que possuir donos constitui uma estratégia
para sua sobrevivência, continuidade e vitalidade.

Sua agência potencial, marcada pela presença-viva e capacidade de produzir reações, reside
justamente na instabilidade posicional que ocupam, na incerteza cognitiva que geram e na sua
multiplicidade anatômica, fatores que determinam uma atenção contínua sobre a camada
relacional que as constitui. Nesse sentido, a posse das flautas pode ser entendida como uma
relação entre sujeitos, onde artefatos têm assegurados sua condição subjetiva e capacidade de

34
agência na rede de relações de que participam (GELL, 1998; GUSS, 1989; BARCELOS NETO,
2004; VIVEIROS DE CASTRO, 2004; FAUSTO, 2008). Devemos ponderar, entretanto, sobre
a extensão desta capacidade de agência e vitalidade, já que existe uma dinâmica de dependência
das flautas em relação aos seus donos: tanto para adquirir sua forma, quanto para perpetuar-se
na vida social e ritual da aldeia, uma flauta iyamaka depende de seus donos. Nesta perspectiva,
poderíamos conceber sua agência como secundária, isto é, subsidiária da ação humana,
aproximando-se do que Erikson (2009) verifica entre os Matis:

[...] as coisas, em vez de serem concebidas como sujeitos independentes, parecem ser
consideradas como subordinados semiautônomos. Em outras palavras, as coisas
parecem ser menos percebidas como sujeitos plenos do que como totalmente
sujeitadas/submetidas. (ERIKSON, 2009, p.187)

Por outro lado, as flautas iyamaka, apesar de fabricadas, alimentadas e cuidadas pelos seus
donos, estão longe de ser dominadas ou sujeitadas às suas vontades. Antes do que “xerimbabos”
mansos e subordinados, continuam sendo o veículo de poderosos seres, cuja agência permanece
continuamente latente – inclusive extrapolando o alcance da presença do artefato material.
Permitindo a presentificação destes hiper-seres, os instrumentos rituais são tanto uma forma de
domesticação ou melhor pacificação20 desta agência potencial, como uma lembrança da
fragilidade e parcialidade deste controle almejado, num contexto em que englobante e
englobado estão suscetíveis à lógica da inversão.

Considerando suas trajetórias de vida e os comportamentos que as envolvem, devemos destacar


ainda o contraste entre seu tratamento cotidiano e ritual. Se no primeiro contexto as flautas,
alojadas e reclusas na casa de flautas hibernam em sono profundo, contidas, adormecidas e
mudas – ou parcializadas e despotencializadas –, durante as festas o que ocorre é exatamente o
oposto: despertadas pelos seus donos e festeiros, são colocadas a movimentar-se pelo pátio da
aldeia extrapolando seus limites materiais, emanando suas “vozes” em pura propagação sonora.
Suas “vozes” se fazem ouvir através do engajamento do sopro humano sobre seus corpos
tubulares, ensaiando uma forma de comunicação não-verbal que se manifesta no mundo
perceptível. Os festivais oloniti propiciam adicionar às flautas dois elementos fundamentais:
voz e movimento, capazes de potencializar seu caráter anímico, comunicativo e relacional,
exacerbando sua potência e capacidade de se desdobrar sobre outros corpos (ou poderíamos

20
Para uma discussão sobre a pacificação estética como alternativa à ideia de domesticação e controle ver Lagrou
(2015, 2019).

35
dizer, fazerem-se ouvidas pelas mulheres). As sonoridades por elas emanadas, no meio etéreo,
desempenham formas de relação que escapam aos olhos – mas que podem, porém, ser ouvidas.

A ambiência sonora produzida ritualmente, através de cantos e sonoridades diversas, evoca uma
constelação de significados e perceptos que tornam o ritual um momento reflexivo e cognitivo,
de efeitos reais sobre os corpos participantes, sendo o alimento e musicalidade idiomas
inteligíveis desta interação (SILVA, M., 1998). Por musicalidade entendo todas as formas de
emanações sonoras e rítmicas, sejam elas produzidas pelas flautas, chocalhos e corpos, sejam
elas a entoação dos cantos zerati. Estes dois dispositivos – oferta alimentar e execução musical
– são suplementos fundamentais para a totalização e potencialização das flautas, que
ultrapassam a função de âncora material. Em sua completude, se tornam corpos artefatuais
mediadores que se alimentam, se comunicam e retribuem cuidados, efetivando uma conexão
entre mundos distintos – sejam eles visíveis, invisíveis ou audíveis.

1.3 ARTES VERBAIS: LINGUAGEM, SONORIDADE E EXPRESSÃO

As artes verbais Haliti constituem-se de diferentes gêneros, ou categorias de expressão verbal,


utilizadas de acordo com finalidades específicas, seja no cotidiano ou durante os rituais oloniti
kalorese. São formas de fala ritualizadas, consideradas, em geral, um conhecimento
especializado, cuja correta execução somente é conhecida pelos anciãos e mestres rituais. Para
os Haliti, estas formas de expressão verbal constituem também um meio de comunicação com
o mundo invisível, onde habitam os espíritos com os quais buscam relacionar-se. Todas elas,
apesar de diferirem em termos de finalidade, possuem um caráter comunicativo e mediador,
sendo utilizadas para se estabelecerem relações entre sujeitos. Entre os idiomas rituais de
oloniti, incluem-se as seguintes categorias de artes verbais: os cantos zerati, os
aconselhamentos jihatyoawihaliti, os diálogos cerimoniais manati, os benzimentos fehanati, as
invocações kawiakere e as rezas fetatyati, fetalati e idyaete. Conforme já ponderado em relação
às traduções, opto pela utilização dos termos correlatos em português para qualificar o
entendimento de suas finalidades, baseando-se também nos trabalhos linguísticos já produzidos
sobre os Haliti (ROWAN; ROWAN, 1978; SILVA, G., 2013).

Todas estas categorias verbais diferem da fala cotidiana por explorar diferentes recursos
expressivos, como a estrutura poética e repetitiva, sonoridade e ritmo, e uma atenção à “forma”

36
de enunciação. Além disso, utiliza-se amplamente de termos e metáforas cuja inteligibilidade é
especializada, normalmente restrita aos mais velhos – sendo possível classificá-las, conforme
descrito pelos Haliti, como “palavras científicas”21. Trata-se de um saber especializado cuja
exploração é instigante tanto em termos de sua riqueza formal e estrutural, como na sua
capacidade evocativa da mitologia, um repertório cujas imagens e metáforas suscitam modos
de conceber e pensar o mundo. Como é comum nas artes verbais indígenas, são instigantes as

[...] possibilidades de perturbação que o texto ameríndio realiza no campo do


português, tendo em vista sua cadência encantatória, sua visualidade e metaforicidade,
sua intensidade paralelística, sua sonoridade circular e reiterativa, sua extrema
condensação e precisão imagéticas. (CESARINO, 2008, p.18)

Os cantos zerati distinguem-se das outras cinco categorias por serem dotados de uma
característica musical explícita. São considerados pelos Haliti sua música, sendo fácil
reconhecer neles elementos como ritmo e melodia. A eles também correspondem performances
de expressão corporal, que poderíamos chamar de “danças”, durante os rituais oloniti kalorese.
Incluem-se nesta categoria os cantos de zolane (dança circular dentro da casa, acompanhada
dos cantos), de zero (dança circular dentro da casa, acompanhada por cantos e pela flauta de
pan zero), de xihali (dança circular dentro da casa, acompanhada por cantos e pela flauta nasal
xihali), de iyamaka (dança em fileiras no pátio da aldeia, acompanhada por cantos e por flautas
tubulares diversas – amore, ualalosé, txeyru, zeratyalo, imokolo e tiyrama) e de zokozoko
(último canto do ritual oloniti, no pátio da aldeia de frente às entradas das malocas). Nesse
sentido, os cantos zerati constituem fórmulas verbais musicais e rítmicas, sendo este o seu traço
distintivo.

As demais artes verbais – aconselhamentos jihatyoawihaliti, diálogos cerimoniais manati,


benzimentos fehanati, invocações kawiakere e rezas fetatyati, fetalati e idyaete – por sua vez,
não ocorrem simultâneas a qualquer forma de expressão corporal que remeta à “dança”,
assumindo uma forma de execução que tende ao ato de proferir ou enunciar: através de um

21
Os Haliti utilizam o termo “palavras científicas” para designar àquelas cujo conhecimento é especializado e
restrito aos anciãos. Explicam que os termos, parcialmente em desuso, fazem parte da linguagem como aprendida
e conhecida pelos anciãos, que hoje é atualizada na transmissão das artes verbais. Os mais jovens, talvez por
desconhecer grande parte dos termos e nomenclaturas contidos na linguagem das artes verbais e rituais, se referem
à estas como linguagem dos antigos. De fato, trata-se de um repertório somente conhecido por um número seleto
de pessoas, cuja exegese depende de longo período de aprendizado e vivência ritual, restringindo-se assim aos
mestres da etnia.

37
corpo parado que verbaliza os conteúdos sem se movimentar no espaço. São linguagens
ritualizadas, assemelhadas às “ladainhas”, que se diferenciam da linguagem cotidiana em sua
forma acústica, conteúdo semântico e finalidade de evocação. Mesmo que acusticamente sejam
bastante semelhantes entre si, são diferenciadas em termos temáticos e finalidades. De toda
forma, vale ressaltar que são fórmulas verbais cujo conhecimento é mais especializado do que
dos cantos, sendo menor o número de seus conhecedores.

Os Haliti dão grande importância à etiqueta e especificidade de cada momento da execução


ritual. Enquanto meios de expressão e comunicação, cuja sequencialidade e finalidades
modelam a execução de oloniti kalorese, devemos aprofundar aqui o entendimento sobre cada
uma destas categorias verbais. Para fins analíticos, dividirei as artes verbais em dois grandes
blocos: os cantos zerati, constituídos por fórmulas verbais musicais – uma classificação
inspirada nos próprios Haliti, já que os cantos são considerados “sua música”; e as demais artes
verbais, constituídas pelo que chamarei de fórmulas verbais enunciativas. A escolha desta
última terminologia é uma tentativa de enfatizar as finalidades expositivas, declarativas e
manifestativas que são comuns a estas formas de expressão verbal, para as quais uma fórmula
é recorrente. Utilizarei também uma terminologia oportuna para descrever traços constituintes
e distintivos das artes verbais: uma característica sonora, que chamarei aqui de sua “forma
acústica”; e uma característica temática, que chamarei aqui de “conteúdo semântico”. Tento
assim remediar textualmente a impossibilidade da escuta destas formas verbais, que
permitiriam facilmente identificar nuances e diferenças entre elas. Antecipo a seguir uma breve
descrição de suas estruturas semânticas e acústicas, assim como de suas finalidades, para
posteriormente investigar os textos rituais delas derivados.

1.3.1 Fórmulas verbais enunciativas

No relato a seguir nos é exemplificado como a delimitação e encadeamento das diferentes


formas de expressão verbal são de fundamental importância para a realização dos rituais oloniti
kalorese. Em referência aos momentos que os antecedem na aldeia anfitriã, quando são
enviados mensageiros para formalizar o convite nas outras aldeias e organizar e direcionar as
caçadas coletivas, que irão suprir a aldeia anfitriã com carne e peixe abundantes para realização
da festa, Zomoizokae explica:

38
Manati é chegando para orientar as pessoas, tem uma pessoa que chega para convidar
as pessoas de outras aldeias, isso é manati. Se ele está levando a cordinha, ele faz um
bolinho de corda desse tamanho, dez dias, ou seis dias, daí cada dia que passa vai
desatando aquela cordinha [...] vai orientando o pessoal, quem quiser participar vai,
vai juntando, perguntando quem vai, quem não vai, porque o dono da festa convidou
todos para ver a festa dele [...] daí o dono da festa pede, eu quero que vocês cacem
pra mim cinco, seis dias [...] quando chega madrugada, ele vai falando da caçada,
rezando pra ficar mais fácil pra matar caça; já é outra, essa reza de noite é pra caça,
parece manati mas é diferente, só pra caça, essa chama kakohakere, essa reza pra caça
de madrugada, aonde tem as cabeceira, lá tem caça boa, vamos lá pra gente caçar, ai
vão juntando a caça, vão preparando, na hora de tirar o fígado, buchada, a tripa delas,
vai cozinhando pros caçadores, ai começa fetatyati [...] significa oferecer, pro dono
das emas e do veado, para ficar mais fácil pra matar caça, pedindo pro dono da caça,
isso é fetatyati, por isso que a gente fala, aquela onça, nós falamos de onça, pra isso
que está oferecendo, porque onça é dona da caça, xini, por isso que quando você vê
rastro de onça você não pode falar, ah é onça, senão ela vai assustar você, caso você
vê rastro de onça, ai você fala, ah, aqui andou Katomorese, daí ele gosta que você
falou dele. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Todas as fórmulas verbais citadas exploram uma estética narrativa e poética, em diferentes
graus de intensidade, conjugando a expressão da fala com recursos acústicos. Em geral, os
temas condensam uma temporalidade abrangente, narrando tanto episódios presentes, que
fazem parte do cotidiano das aldeias Haliti, quanto episódios relacionados ao tempo mítico. Os
recursos sonoros utilizados para enunciação destas categorias verbais – ou seja, a forma como
são verbalizados e soam aos ouvidos – são os mesmos para as categorias manati, idyaete e
fetatyati; outras formas específicas se aplicam às categorias fehanati, kawiakere e
jihatyoawihaliti. Cabe destacar que os conteúdos semânticos e formas acústicas das categorias
fehanati e kawiakere, apesar de específicos, não podem constituir objeto desta investigação
devido à sua restrição de gravação e acesso; assim, exploraremos as demais categorias.

A categoria verbal manati tem uma relação exclusiva com a realização dos rituais oloniti, e na
verdade constitui uma forma ritualizada de diálogo e comunicação entre anfitriões e
convidados. De suma importância, manati tem a função de evocar discursos de teor moral cujo
rigoroso respeito é condição para que o ritual seja bem-sucedido. É uma forma de expressão
cuja finalidade envolve aconselhamento, orientação e direcionamento, mas também um diálogo
ritualizado que busca sobretudo evitar e remediar conflitos que possam estar pendentes ou
mesmo ocorrer por ocasião dos encontros promovidos durante a festa. Conforme explicam os
Haliti, há dois momentos em que manati é realizado: primeiro, quando o mensageiro enviado
pelo dono da festa chega à aldeia a ser convidada e é recebido pelo cacique desta aldeia no
terreiro, estabelecendo uma forma ritualizada de comunicação, através da qual é efetivado o
convite para participação e demandado a superação de quaisquer desentendimentos que possam

39
estar pendentes; segundo, no início da festa, já na aldeia anfitriã, quando os festeiros convidados
chegam ao terreiro e o dono de festa vai aconselhá-los, fazendo uma “palestra” onde reafirmará
a necessidade de superação de conflitos e de boa relação entre os participantes para que a festa
ocorra de maneira satisfatória.

Manati tem duas partes. O festeiro vai pra convidar em outras aldeias, e esse
harekahare [dono da festa] vai ficar dentro da aldeia durante quinze dias, daí ele que
é cantador, quando chega [completa] esses quinze dias, esse harekahare convida
todos que estão no local pra ir para onde vai acontecer a festa, esse manati ele é do
início, pode ser usado, e pode ser usado também na chegada, são duas formas, é assim,
esse manati é um local de convite, mas ao mesmo tempo manati também ele pode
chegar no local que chama os convidados, cantando, pedindo questão de respeito
dentro da aldeia. (ONIZOKAECE, 2017)

Os discursos manati são referidos pelos anciãos como de fundamental importância para a
continuidade dos rituais, já que estão relacionados ao apaziguamento de conflitos,
principalmente desencadeados por acusações de feitiçaria entre indivíduos de diferentes
aldeias. No passado, quando a eminência de conflitos decorrentes da realização dos grandes
rituais oloniti kalorese era muito maior, dizem que através de manati evitavam-se inclusive
mortes que porventura poderiam acontecer durante a realização das festas. Conforme explica
Azomezohero, “manati é aquele ritual que, quando o festeiro vem chegando, aí vem fazer
aquela, tipo assim, uma palestra, mas é um ritual de conquistar, de fazer esquecer as intrigas e
dali pra frente erguer a cabeça e só pensar coisas positivas, coisas boas” (AZOMEZOHERO,
2017). E complementam Eazokemae e Zomoizokae:

Manati tem dois [...], quando o dono da festa vai lá e chega na outra aldeia pra
convidar e aconselhar a comunidade, tudo isso é manati, quando vai fazer o convite,
dando conselho, e quando chega na festa, vai fazer o mesmo processo, vai repetir esse
processo, manati, pra respeitar durante a festa, vai começar a colocar esse
aconselhamento, tanto pros donos da festa, como pra todos os festeiros, pra respeitar,
pra festa ser boa, pra não acontecer nada ruim durante a festa, não brigar um com
outro, não dar desunião, desentendimento, tudo isso. (EAZOKEMAE, 2017)

Quando chega é manati, é quando o dono da festa vem chegando para convidar o
pessoal das outras aldeias, quando ele chega sozinho; esse que dá conselho pro povo,
pro dono de festa não dar muita chicha, se tem algum feiticeiro, dando conselho pra
não acontecer nada. (ZOMOIZOKAE, 2011)

É importante observar a finalidade comunicativa de manati, pressupondo a transmissão de


informações entre dono de festa e convidados principalmente com o objetivo de evitar a eclosão
de conflitos decorrentes do encontro entre parentes distantes promovido pelos rituais oloniti.
Esta forma de comunicação possui originalmente a forma de um “diálogo cerimonial”, já que,

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conforme explicam os interlocutores, pressupunha uma resposta, na mesma medida, ritualizada,
por parte de seus receptores. Esta característica é distintiva de manati, uma fórmula verbal
enunciativa de mão dupla, que gera a expectativa de resposta e estabelecimento de um diálogo.
Hoje em dia, entretanto, este caráter dialógico parece estar sendo gradualmente modificado, já
que muitas vezes o manati é proferido e não respondido pelos seus receptores. Conforme
esclarecem Onizokaece e Zezonezokemae:

Antigamente eu lembro que eles faziam também manati entre festeiro e dono da festa
[...] Pelo jeito da festa ultimamente, eu vejo que não tem mais essa parte de
conversação, porque isso se torna uma conversação, entre festeiro e dono da festa,
eles conversam cantando, porque são várias maneiras de conversa, pedindo a força,
pedindo respeito, que os festeiros sejam respeitados e que seja respeitosos também,
por isso que são várias maneiras de conversar, de canto ou falando normal, o
harekahare que não sabe cantar, não sabe como falar, ele pode falar normal, o
harekahare que sabe cantar, pra conversar também, pode ser também, ele é como se
fosse mensageiro, vai na outra aldeia pra convidar. (ONIZOKAECE, 2017, grifo
nosso)

Manati responde, dono da aldeia tem que sair para responder, quase igual dele, quase
mesma coisa, só cumprimentando ele um pouco e daí já termina. Se você não
responder a reza do dono da festa, daí já não dá certo, tem que responder, de todo jeito
você tem que responder, nem que você não sabe bem, mas tem que responder, ai o
dono da festa vai ficar com vergonha se você não responder, vai dar errado, ele fica
triste, será que eles não gostaram meu manati, não responderam pra mim, ele fica
triste e com vergonha, ai já faz errado, de todo jeito tem que responder.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Outra categoria de expressão verbal, idyaete, é mais abrangente e genérica, se aproximando à


tradução correlata iraiti, que possui os sentidos de “palavra”, “mensagem” ou “história”
(ROWAN; ROWAN, 1978). Se aproxima do sentido de reza ou oração, utilizado para
comunicação com os espíritos invisíveis. O sentido de idyaete denota uma forma de “fala” ou
“conversa” de alcance mais abrangente, pedindo saúde, proteção e bem-estar para a
comunidade, utilizado ainda para grandes oferendas direcionadas aos espíritos. Durante os
rituais oloniti, possuem uma função central, já que é através das rezas idyaete que são oferecidas
as grandes quantidades de chicha e demais alimentos reservados à cada espírito convocado para
festa. É através de idyaete ainda que são solicitados aos espíritos os nomes a serem atribuídos
às crianças, cuja origem são as aldeias dos antepassados. São vários e extremamente longos
durante os rituais oloniti, já que a quantidade de espíritos a quem são dedicadas oferendas
nessas ocasiões é considerável. São proferidos com a finalidade de dedicar e apresentar aquelas
oferendas (principalmente chicha, peixe, carnes de caça e cigarros) aos diversos espíritos
invisíveis, sejam eles donos dos recursos naturais, habitantes das matas, rios e cabeceiras, ou

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protetores da saúde e bem-estar da comunidade. Como explicam os Haliti, idyaete se aproxima
do sentido de uma “oração”, um pedido de proteção associado a oferta de chicha: “Quando
oferece pra flecha, pedindo oração, idyaete, pra iyamaka mesma coisa, é normal que a gente
conversa essa parte, como oração, pedindo pro dono da flecha, pra viver bem, pra não pegar
doença” (ZOMOIZOKAE, 2017); “Idyaete é assim, vem fazer uma reza aqui pra mim, vem
falar aqui pra mim, porque eu estou com essa paciente, minha irmã, minha filha doente, eu
queria que você rezasse, pedisse proteção, melhoria pra ela [...] idyaete é falar, bem alto”
(AZOMEZOHERO, 2017).

Idyaete serve para pedir oração, agradecendo, pra agradecer tudo, como Deus, Enoré,
pra conversar, antes de começar, meio-dia, ele vai falar, eu quero que a minha família
e todos fiquem sadios, não quero que aconteça nada de mal, só do lado bom, pedindo.
Ao mesmo tempo, ele vai falando sobre as crianças, pedindo nome da criança, vai
começar pedindo qual nome vai ser o nome da criança, no idyaete. (ZOMOIZOKAE,
2017)

Quando chega na vez da festa é idyaete [...] tem outra fala quando está repartindo
chicha; o mesmo ritmo, mas tem fala diferente; por exemplo, quando oferece
mandioca nova, conversando com o espírito e oferecendo pra comer, oferecimento,
esse aí é seu [o alimento], mas quem come é o pessoal que tá por ali perto da casa, na
aldeia [...] oferecer é só a fala, depois quem come é quem tá por ali. Os velhos, quando
oferecem, tem que passar meia horinha para oferecer, falando que a comida é de vocês
[dos espíritos]; oferece pra Enoré, utyahaliti, dono da ema, Kokotero, tudinho.
(ZOMOIZOKAE, 2011)

Os discursos contidos nas rezas de oferenda idyaete (e também fetatyati, como veremos à
seguir) fazem referência a um extenso repertório de nomes de antepassados, assim como dos
locais em que habitam estes espíritos, uma maneira de convocá-los nominalmente para aquela
ocasião. As rezas idyaete podem ser direcionadas para uma grande série de “receptores”, que
são evocados através de seus nomes próprios. Entre eles incluem-se as diferentes flautas
iyamaka, o dono do trovão Enoharese, a gente da água yakane/yakanero, os espíritos celestes
utyahaliti, a flecha de curar korewayese, a espuma waloko e a gente do mato
enekonieré/enekonioló. Trata-se de uma forma de mediação como o mundo invisível,
constituindo o recurso comunicativo adequado para efetivar a interação com os seres espirituais.
Cada idyaete, portanto, possui conteúdo temático específico e relacionado com os sujeitos para
os quais são direcionados – sejam eles materializados na forma de artefatos/substâncias ou não.

Categoria de reza similar é fetatyati, que se associa ao verbo correlato fetatya, traduzido como
“oferecer” (SILVA, G., 2013), “dedicar” ou “apresentar” (ROWAN; ROWAN, 1978).
Fetatyati se associa às oferendas aos espíritos preparadas no dia-a-dia, por exemplo, quando se

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caça um animal ou pesca um peixe, de modo a torná-los aptos ao consumo das pessoas,
agradecer aquele recurso disponibilizado, e balancear as relações com seus donos. Desta forma,
diferencia-se de idyaete em termos de “porte”: idyaete são longos, e utilizados para grandes
oferendas durante as festas oloniti, enquanto fetatyati são curtos, utilizados para oferenda no
dia a dia dentro das casas da aldeia. Conforme esclarece Azomezohero:

Fetatyati é para oferecer para o espírito, comida. É oferenda, é oferenda que é


importante, assim pegou um peixe grande, uma traíra, você não pode comer ela à toa,
tem que fazer o beiju, colocar um cigarro, ou só ele com chicha, alguma coisa assim,
oferece primeiro para o dono do que criou, da criatura, do peixe, da caça, oferece pra
Deus, para comer e não acontecer nada, para não dificultar caça, para facilitar, é assim.
(AZOMEZOHERO, 2017)

Já as rezas do tipo fetalati são associadas especificamente realização das grandes festas,
especificamente durante o período de convite de outras aldeias, quando o mensageiro está
organizando as caçadas coletivas. São proferidas durante a madrugada ou durante a caçada,
quando os caçadores acampam nas matas ou campos, definindo os locais e a duração daquela
empreitada e estabelecendo a relação adequada com os espíritos donos dos animais que vão ser
“disponibilizados” para caça, de modo a facilitar e tornar os recursos mais abundantes durante
a caçada.

Daí depois que vai organizar fetalati, que hoje não está mais acontecendo, fetalati
quando você vai marcar quanto tempo o caçador vai ficar lá na outra aldeia, para essa
pessoa organizar a caça, falando com aquela comunidade, convidar aquela
comunidade, para chegar aonde está a festa, isso não está acontecendo mais. [...] Aí
que entra essa reza, antes de começar, manda ir fazer esse fetalati, entra essa festinha,
só os donos da festa que dançam para oferecer, para ter mais caça, para a caça aparecer
para os caçadores, ali que vai entrar esse fetalati, não é uma reza, é só uma forma de
indicação, a data que vai ser a caçada, quantos dias, e fazer, isso é fetalati.
(EAZOKEMAE, 2017)

A forma acústica das rezas idyaete e fetatyati, e dos diálogos cerimoniais manati, ocorrem
intercalando basicamente duas estruturas: frases curtas, as vezes apenas palavras, que são
pronunciadas com a extensão da última vogal; e estrofes longas, cujas palavras são
pronunciadas de maneira contínua, sem pausas ou pontuação, “num único e grande fôlego”
poderíamos dizer, e também com extensão vocal da última vogal. A extensão da última
sílaba produz um efeito vibracional de grande amplitude, perceptível inclusive a longas
distâncias. Tal fato foi-me possível perceber ao escutar uma reza proferida na aldeia,
durante a noite, em outra casa localizada à certa distância do local de oferenda, quando
percebi que somente conseguia distinguir as sonoridades produzidas pela extensão vocal

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das últimas vogais das sentenças, enquanto a pronúncia das palavras e frases era
imperceptível. A reza, desta forma, é percebida de uma maneira diferente de perto e de
longe, sendo de longe seu conteúdo semântico anulado, em benefício de uma percepção
puramente sonora e vibracional. Cabe destacar aqui o sentido espacial atrelado a esta
técnica vocal, cujo alcance é claramente potencializado em sua execução. O sentido desta
forma acústica é delimitar acusticamente a maneira e cadência em que os discursos
semânticos serão enunciados, tal como uma “roupagem sonora”. No exemplo a seguir, um
trecho de manati, o sinal “...” representa a extensão vocal da última vogal e o sinal “,” a
pausa para respiração do intérprete.

Akoyhyehena natyo… Eu estou chegando...


Nonatyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsenae… Meus sobrinhos...
Notxiyetenae... Meus netos...
Akoyhyehena natyo… Eu estou chegando...
Jinyatyolonae, jitsauneronae… Com suas primas e suas cunhadas...
Jityaninyae kakwa… Com seus filhos...
Maitsa natyoreta hare jini mayeminikwatyaka Não sou eu que vou desrespeitar seus terreiros, com
namohena zawenanekwa ozaka owene, zotya seus jovens, eu vim aqui também para fazer convite
zematyaka zamohena jikenekwa halone hatya, para toda a comunidade, quem poderá aceitar meu
jikenekwa harene hatya, owene ozaka convite para ir à minha festa, depende de vocês
mayeminikwatyaka namohena zawenanekwa… agora...
[...] [...]

(AZ_08112017_005)22

Quanto a performance, há um traço que distingui essencialmente manati das rezas idyaete
e fetatyati, que é o direcionamento e expectativa de resposta. Os manati são direcionados
para um público específico e visível, com os quais se espera estabelecer um diálogo
comunicativo, enquanto idyaete (durante os rituais oloniti) e fetatyati (durante o dia a dia)
são proferidos de maneira “solitária” a primeira vista, ao redor das oferendas preparadas

22
Para a apresentação dos textos das gravações transcritas e traduzidas, será adotado o seguinte padrão: 1. Na
coluna da esquerda, o texto transcrito para a língua materna, conforme grafia sugerida pelos colaboradores e
tradutores Haliti; 2. Na coluna da direita, o texto traduzido para o português, conforme grafia sugerida e adaptada
pelos colaboradores, tradutores e pesquisador, de modo a facilitar a apreensão do sentido; 3. Abaixo do quadro, à
direita, referência ao arquivo de origem da peça coletada, transcrita e traduzida, cuja relação completa consta no
Apêndice A, no seguinte padrão de nomenclatura: [sigla do nome do intérprete]_[data de coleta]_[número de
referência]; 4. O sinal “[...]” indica a localização da supressão de trechos do texto original; 5. O sinal “...” ao final
das frases indica o prolongamento da última sílaba durante a execução musical; 6. O sinal “,” indica o ponto de
fôlego/respiração do intérprete durante a execução musical, dividindo as frases da peça; 7. O sinal “Há-a-há-há...
a-há-a-há-há... a-há...” e suas variantes consistem no jogo de prolongamento de sílabas como “índices
onomatopeicos” dos gritos de iyamaka; 8. Pontualmente serão exibidas, entre colchetes e logo após o termo,
traduções ou observações correlatas de interesse conforme exegeses ou definições do dicionário de Rowan e
Rowan (1978) ou Silva, G. (2013).

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aos espíritos. Apesar disso, a finalidade de idyaete e fetatyati é comunicativa, buscando
aproximá-los daquela ocasião para que possam ser receptores das oferendas preparadas.
Após a longa entoação das rezas, as oferendas serão consumidas pelos convidados que
estão ao redor. Porém, devemos sublinhar que, conforme o entendimento Haliti, os
espíritos também irão consumir aqueles alimentos, através dos corpos das pessoas ali
presentes; o diferencial está no convite, na convocação, ritualmente enunciada.

Outra categoria de expressão verbal é jihatyoawihaliti, que possui um sentido de


aconselhamento e está associada principalmente (mas não exclusivamente) à realização dos
rituais oloniti, podendo ocorrer em dois momentos diferentes: na chegada dos convidados, fora
da casa no terreiro, e dentro da casa, de madrugada. O termo correlato ihatyoawihare significa
“falar cantando” (ROWAN; ROWAN, 1978), uma conotação bastante interessante já que
conjuga em uma só definição atributos da linguagem e da música. Sua forma acústica possui
evidente característica musical, como marcação rítmica e delineação melódica, suplementando
a fala “comum” com recursos acústicos que potencializam sua expressão – soando como uma
“narração melódica”.

Quanto ao conteúdo semântico, não é pré-determinado, mas sim improvisado, e pode variar de
acordo com a mensagem que seu enunciador quer comunicar aos presentes, normalmente
relembrando sobre as tradições Haliti e importância de sua continuidade. Assim como manati,
jihatyoawihaliti pode ser proferido por longos períodos e possui também um teor moral na
mensagem comunicada. No entanto, diferente de manati, jihatyoawihaliti não é uma expressão
exclusivamente associada aos rituais oloniti nem presume uma resposta de seus receptores,
podendo por exemplo ser proferido no dia a dia da aldeia por algum sábio ancião.

Ihatioawihare é no começo, no lugar da festa, quando entra aqui dentro da casa, daí
vai falar com o povo que está aqui dentro, com os parentes, falar coisa boa, aconselhar.
É diferente de manati, manati é um, jihatyoawihaliti é outro, é quando você está
conversando diversas situações, manati é aconselhamento numa festa grande,
jihatyoawihaliti é você falando com as pessoas. (AZOMEZOHERO, 2017)

[...] jihatyoawihaliti, qualquer ancião que sabe, pode ser jovem também, que conhece
a realidade da comunidade, vai aconselhar, durante meia-noite, entra no meio da casa
e vai aconselhando. Todos oloniti kalorese tem que ter essas coisas, cada geração vai
passando, vai modificando [...] cada dia, corta um pouco do processo de oloniti
kalorese. (EAZOKEMAE, 2017)

Tanto manati como jihatyoawihaliti trazem em seu conteúdo semântico discursos de teor moral,

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apontando para uma forma socialmente adequada de comportamento em relação as tradições.
Entretanto, o conteúdo semântico de jihatyoawihaliti, por sua vez, é o mais aberto aos
elementos de improvisação e relacionados ao perfil de seu enunciador, de acordo com a
mensagem que almeja comunicar. Manati também possui grande abertura em relação a
improvisação de conteúdo, porém serve à uma finalidade mais restrita, relacionada ao convite
e boa execução da festa tradicional.

Falar cantando, seja no dia a dia ou nas festas oloniti, é um índice de sabedoria, geralmente
associada aos anciãos da aldeia, dotados de conhecimento e experiência adequados para
repassar aos mais jovens ensinamentos e aconselhamentos em relação às tradições Haliti.
Podendo se estender por até mesmo horas a fio, os discursos jihatyoawihaliti são direcionados
para o público presente, não possuindo uma função comunicativa com o mundo invisível, como
é o caso das rezas idyaete, mas sim com os parentes distantes que estão ali presentes. No trecho
a seguir vemos um exemplo de jihatyoawihaliti, cuja duração total da gravação é de
aproximadamente vinte minutos:

Kala wayeze idyaete, kala wayeze idyaete, tyotya eye Assim é uma boa reza, assim é uma boa reza, um
hare kozakerehare, kozakerehare idyaete wayeze, aconselhamento geral, nosso antepassado repassa a
maeha tyauhetere hoka, kalini nidyaehena, maetsa informação, como vivemos com a sua comunidade
wayeze idyaete hakwanae wenakalati kautya kehetere assim vou repassar a vocês, não está mais
hoka, nidyaehena kalini ali, maytsa hozakerehare, acontecendo nas aldeias em geral, estão
watyokoenae nawenane, maytsa kautyakehetere, desaparecendo a cada dia, a cada ano.
metehena hoka nidyaeta.

Kozakereharenae, watyokoenae kawanahyatyoane, O nosso antepassado, os tataravôs, os bisavôs e avôs


kawanahyatyoane kazaloneza herokola najiyeraeho se respeitam quando fazem festa tradicional, quando
nawoza kano,heyehare herokore ajiyeho, nomaka preparavam, eles fazem com muito respeito, eles
tyotehena hoka kalini nidyaeta. fazem caçada, preparação da chicha, todas as aldeias
esperavam aquela programação para ser uma união,
para esquecer o que acontece com as famílias e
parentes.

Maetsa halyekwa, kalini ozakerehare, hozakolohalo Como eles estão desaparecendo, por isso, por essa
nawenane, meta hoka nidyaeta kalini, maetsa aliekwa razão que eu estou repassando para todas aldeias e
hikyaokehena oloniti oliti mokotsehare itsera, zomo caciques e lideranças das aldeias, sobre a festa
kakware tahihitya moka nahalakwa tyajini hitso. tradicional.
[...] […]

(ZOLOIZOMAE, 2010)

Mais restrita, a categoria enunciativa fehanati se associa principalmente aos pajés e são
utilizadas em situações específicas que visam auxiliar na cura de enfermidades e fortalecimento
da saúde das pessoas. Muitas vezes são acompanhadas do chocalho walasé, de uso exclusivo

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dos pajés. O termo fehanatya significa “pronunciar palavras mágicas”, enquanto fehanalitya
(ou fehanalisa) significa “rezar” (SILVA, G., 2013); no entanto, conforme explicado pelos
Haliti, o termo fehanati possui um sentido que mais se aproxima ao de benzimento, conforme
sua finalidade específica, já que são realizados na presença das pessoas e direcionado à elas, de
modo a influenciar sua condição enferma. Fehanati possui portanto agência, e está associado
aos pajés. Conforme explicam, “fehanati é uma voz bem silenciosa, bem baixinho”
(AZOMEZOHERO, 2017).

Fehanati tem vários, benzimento para furúnculo, benzimento pra cortar febre, benzer
chuva, benzer dor de dente, benzimento pra criança nova, pra mãe e o pai poderem
sair fora [do resguardo], benzer pra menina moça pra poder tomar banho, benze na
erva, então, são diversos benzimentos. (AZOMEZOHERO, 2017)

Benzer, para tirar febre, essas coisas, é fehanati. Se está com dor, benze você, com
dor de cabeça, vai acalmando, quanto está bem doente, porque o espírito saiu do corpo
dele, por isso fica assim, daí benze ele, fica bom de novo, chama o espírito dele pra
voltar, com o chocalho [walasé], tem o canto do chocalho pra benzer, walasé é com
fehanati. Para fortalecer as pessoas, ficar bom. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Os benzimentos fehanati constituem um repertório de enunciações cujo grau de restrição é


maior em relação às outras formas de artes verbais. Conhecidos por um pequeno número de
pajés e anciãos, os benzimentos possuem grande poder, eficácia e agência para auxiliar na cura
de doenças e outros males espirituais. É comum que os pajés exijam pagamentos para executar
os benzimentos sobre as pessoas. Por isso, não podem ser utilizados fora de contexto – e não
podem ser gravados – já que sua execução é invocativa e remete aos segredos guardados com
zelo pelos pajés. Este fato nos remete ainda para uma reflexão necessária sobre os regimes de
conhecimento e agência adotados pelos Haliti, já que a impossibilidade do registro gravado
aponta para uma forma de conhecimento que deve ser “incorporado” e para formas de agência
que devem ser contextuais. Entretanto, conversando com alguns mestres rituais, demonstraram
interesse no registro inclusive de alguns benzimentos – interesse este que ocorre na medida em
que a compreensão sobre o processo de documentação é mais assimilada por eles. Esta
compreensão sobre a pesquisa e o processo de registro é crucial, porém extremamente política,
lenta, gradual e progressiva, envolvendo o diálogo e o aprofundamento das relações entre as
partes – comunidade, lideranças, facilitadores e pesquisador. De toda forma, esta pesquisa não
realizou a documentação deste tipo de arte verbal.

A última categoria de interesse é denominada kawiakere, um termo “científico” conhecido

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apenas pelos mais velhos e gradualmente em desuso pelas gerações mais jovens. Derivada do
verbo correlato kawitya (ou kawisa), que possui o sentido de “chamar”, “convidar” ou “gritar”
(SILVA, G., 2013), esta categoria é utilizada em casos específicos em que há uma pessoa doente
necessitando de cuidados urgentes. Associa-se, em termos da sua finalidade de cura, aos
benzimentos fehanati, porém são utilizados em situações em que é necessária a intervenção de
espíritos auxiliares para a recuperação de um doente. O termo é mais explicitamente associado
à “invocação”, uma forma de convocação vigorosa e deliberada dos espíritos para aquela
finalidade. Para isso, quando há alguém muito doente, normalmente são preparadas oferendas
e é proferido o kawiakere. Conforme esclarece Azomezohero, “idyaete você está falando com
os espíritos, kawiakere você está chamando os espíritos pra te ajudar, são duas coisas
diferentes” (AZOMEZOHERO, 2017).

1.3.2 Fórmulas verbais musicais (zerati)

A categoria de expressão verbal zerati conforma um maior número de características musicais


em sua composição – melodia, ritmo, tempo – e remete à performance da dança que idealmente
ocorre simultaneamente à sua execução. É traduzida pelos linguistas como “cântico”, “canto”
ou “canção” (ROWAN; ROWAN, 1978; SILVA, G., 2013). Como já visto, os Haliti optam
pelo uso recorrente do termo “cântico”, designação que carrega uma conotação “religiosa” e
possivelmente aponta para a intenção de designar o seu uso cerimonial. São de fato associados
ao uso cerimonial e ritual, porém não exclusivamente, já que podem ser cantados no dia a dia,
fora do contexto ritual, como forma de descontração. Associado à zerati está o verbo zera (ou
xera), que significa “cantar”, complexificados pelas traduções do verbo derivado zeralitya
(SILVA, G., 2013) ou xeralisa (ROWAN; ROWAN, 1978) – “cantar cerimonialmente para” –
e pelo verbo imamaka – “cantar a história de alguém” (ROWAN; ROWAN, 1978). Conforme
explica Azomezohero, “zerati são nossos cantos, cânticos culturais, qualquer tipo de cantos de
flauta sagrada, zolane, canto de xihali, a cabacinha, zero, tudo isso se inclui em zerati, os
cânticos” (AZOMEZOHERO, 2017).

Apesar de ser uma categoria genérica, é possível identificar dentro de zerati uma série de
conjuntos musicais distintos, caracterizados por formas acústicas e conteúdos semânticos que
diferem entre si. Podemos dividir a categoria zerati em cinco grupos principais, que são: zolane,
iyamaka, xihali, zero e zokozoko. Os grupos iyamaka e zolane são os mais extensos em termos

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de repertório, e contrastam em termos estruturais, possuindo uma série de características que
os distinguem – por exemplo, durante oloniti kalorese, zolane é executado dentro das casas,
enquanto iyamaka no pátio da aldeia; a performance de zolane consiste na dança composta por
homens e mulheres intercalados, em roda, enquanto iyamaka é dançada apenas por homens,
enfileirados. Explorarei as oposições estruturais entre os gêneros mais adiante; por agora, cabe
relevar que os Haliti são extremamente classificatórios, dividindo as categorias de cantos em
grupos e subgrupos, além de sequencias ideais de execução. Ambos os grupos zolane e iyamaka
possuem internamente subgrupos de cantos distintos: zolane é subdividido em cantos de
entrada, cantos de meia-noite, cantos de madrugada e cantos de saída; já iyamaka é subdividido
em cantos das diferentes flautas – amore, zeratyalo, txeyru, ualalosé, tiyrama e imokolo.
Quanto aos grupos xihali, zero e zokozoko são grupos de cantos menores, e não possuem
subgrupos expressivos.

Quadro 01 – Grupos e subgrupos de cantos zerati conforme formas acústicas e conteúdos


semânticos.

Grupos Subgrupos Forma acústica Conteúdo semântico


Zolane Entrada de zolane Específica, dentro da categoria Conjunto específico
dentro da sub-categoria
Zolane meia-noite Específica, dentro da categoria Indistinto, dentro das
Zolane madrugada “Mais lento” em relação a zolane meia-noite categorias zolane (meia-
noite e madrugada) e
iyamaka
Saída de zolane Específica, dentro da categoria Conjunto específico
dentro da sub-categoria
Iyamaka Zeratyalo Específica, acompanhada da flauta zeratyalo Indistinto, dentro das
Txeyru Específica, acompanhada da flauta txeyru categorias zolane (meia-
noite e madrugada) e
Ualalose Específica, acompanhada da flauta ualalose iyamaka

Amore Específica, acompanhada da flauta amore

Imokolo Específica, acompanhada da flauta imokolo

Tiyrama Específica, acompanhada da flauta tiyrama


Zero --- Específica, acompanhada da flauta de pan zero Conjunto específico
dentro da categoria
Xihali --- Específica, acompanhada da flauta nasal xihali Conjunto específico
dentro da categoria
Zokozoko --- Específica Único e específico

Hoje em dia, há um grande repertório de cantos que podem ser executados tanto durante o
zolane (meia-noite e madrugada) como durante as diferentes performances de iyamaka. Este é

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o maior repertório de cantos, já que zolane e iyamaka são executados por até doze horas
initerruptas. O conteúdo temático e semântico é o mesmo, seja executado em zolane ou
iyamaka, variando apenas as formas acústicas de execução em cada grupo/subgrupo – ou seja,
apesar do tema destes cantos ser o mesmo, ele é executado em uma roupagem acústica que se
adequa ao momento ritual corerspondente. Apesar de hoje esta ser uma característica
amplamente assumida pelos cantores, os Haliti apontam para a ideia de que antigamente – ou
originalmente – havia uma lógica sequencial mais rígida no encadeamento dos cantos
conhecida pelos mestres rituais – isto é, “um canto puxava o outro” –, que não é mais praticada
na atualidade. Hoje, parece ser mais flexível a inserção de um canto na sequência ritual,
inclusive com roupagens acústicas distintas.

Esta ampla indistinção temática entre cantos de iyamaka e zolane é balizada parcialmente,
entretanto, pelas subdivisões que formam repertórios de cantos específicos, isto é, que somente
fazem parte e podem ser executados durante a performance daquela unidade ritual. Por
exemplo, os cantos de entrada de zolane contam as “primeiras histórias, de origem, do tempo
do surgimento do povo Haliti”, característica que distingue este subgrupo dos demais. Da
mesma forma, os cantos da saída de zolane são curtos e específicos, remetendo a temas que
sinalizam o final da dança circular dentro da casa, como a chegada do sol e do amanhecer do
dia. Entre zolane meia-noite e zolane madrugada, apesar do repertório de cantos ser indistinto
tematicamente, há uma transição no modo de cantar: “canta-se mais lento de madrugada”, um
recurso acústico que é percebido durante a execução ritual, que é a variação do tempo.

Dentro da categoria iyamaka, o repertório de cantos é indistinto, ou seja, todos os cantos podem
ser cantados “em” qualquer flauta. No entanto, a forma acústica – melodia, ritmo, tempo – e
consequentemente a dança/performance associada a cada flauta traz uma grande variabilidade
dentro desta categoria, em termos de execução. O conteúdo semântico indistinto entre as flautas
é contrabalanceado por formas acústicas cujas diferenças são claramente demarcadas, e que
remetem à especificidade de cada flauta. Por exemplo, a flauta ualalosé canta e dança muito
“rápido e ligeiro” em relação às outras; a flauta imokolo canta “grave e grosso” com o uso das
sílabas “ho, ho, ho” entre as estrofes dos cantos, traço que a distingue das demais. Estas
diferentes roupagens acústicas remetem inclusive à “personalidade” de cada flauta, conforme
explicado pelos Haliti.

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Entre as categorias secundárias, zero e xihali possuem repertórios específicos e curtos, já que
suas execuções durante o ritual oloniti duram apenas “três a cinco voltas dentro da casa”. Algo
semelhante ocorre com zokozoko, que possue apenas um canto específico e associado, e sinaliza
o momento de encerramento do ritual oloniti. As formas acústicas de cada uma destas categorias
também são distintas e específicas. Com exceção de zolane e zokozoko, todos os outros grupos
de cantos zerati são acompanhados de instrumentos musicais impulsionados pelo sopro (nasal
ou oral), elementos acústicos que se aderem à forma com que os cantos são percebidos e
escutados. Elementos vocais (vozes e “gritos”), percussivos (batida dos pés no chão e chocalhos
de perna) e instrumentais (“assovios” das diferentes flautas) determinam a complexa textura
acústica dos rituais oloniti, resultante do encadeamento de diferentes unidades enunciativas e
performáticas.

Quando uso o termo composto “forma acústica”, faço referência ao “que e como se escuta”, ao
que está sendo cantado naquele momento da sequência ritual. A forma acústica de zolane é
basicamente moldada pelas vozes dos cantores e a batida de seus pés no chão enquanto dançam.
Há sempre um “puxador”, que inicia um canto e é respondido estrofe por estrofe pelos outros
cantores, emaranhados na corrente de dança que circula dentro da casa. Iyamaka, por sua vez,
possui diversos outros elementos em sua forma acústica: as vozes dos cantores, em aparente
“uníssono” (problematizarei isso adiante), ocorrem simultaneamente aos timbres emanados
pelos “assovios” das diferentes flautas sopradas pelos participantes, além de acompanhados
pelas batidas dos pés no chão e chocalhos amarrados às pernas dos cantores. Xihali e zero
seguem lógicas semelhantes, porém mais “econômicas”: sua forma acústica é basicamente
composta pelas vozes dos cantores, a batida dos pés no chão e os timbres específicos resultantes
dos instrumentos musicais associados – flauta nasal e flauta de pan.

A fórmula verbal de zolane é reconhecível, normalmente constituída pela sequência de várias


estrofes formadas por cinco frases cada. Entre as frases há uma diferença de entonação, sendo
a primeira, segunda e quarta frases normalmente mais fortes, ascendentes, “para fora”, enquanto
a terceira e quinta frases são mais fracas, descendentes, “para dentro”. Esta é uma variação que
se nota em praticamente todas as estrofes de zolane, revelando uma imagem sonora oscilante
como padrão. No exemplo abaixo podemos visualizar a estrutura básica de zolane: estrofes com
cinco frases, sendo a primeira, segunda e quarta com a “tonalidade para cima” e a terceira e
quinta com a “tonalidade para baixo”:

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Kehalakaetsere wahikwahena, kehalakaetsere Estamos chegando com muita alegria, estamos
wahikwahena, witso wahikwahena, hetatiya chegando com muita alegria, nós estamos chegando,
waulone ki nomana, witso wahikwahena. para nossa chicha primeiro, nós estamos chegando.

Zokalike zamaeye wenolaza, zokalike zamaeye Chicha de abacaxi de Zokarezamaeye, chicha de


wenolaza, ewenolazahana, waedidikwa abacaxi de Zokarezamaeye, para chicha de abacaxi,
wakorehekwahena, witso wahikwahena. tremendo o chão e arrodeando, nós estamos
[…] chegando.
[…]

(JB_26052010_018)

Uma característica que distingue cantos de iyamaka e zolane, além das linhas melódicas
específicas de cada flauta, é a utilização de uma fórmula de execução verbal “repousante”
intercalada entre as estrofes, que possui a seguinte forma básica: “a-haaa, a-haaa, haaaa, a-
haaaa, haaaaa” e consiste no jogo de prolongamento da sílaba “ha”, podendo variar de
diferentes formas. Podem ocorrer variações, como por exemplo na flauta tiyrama, em que a
sílaba “ha” é substituída por “ho”. De toda forma, este recurso aponta para uma forma de
“interjeição abstrata”, em que um sentimento derivado da personalidade daquela flauta está
sendo comunicado. A fórmula verbal de iyamaka não é tão padronizada como a de zolane, e
consiste na sequência de estrofes formadas por três a seis frases, cuja variação tonal depende
do repertório e da melodia de flauta correspondente.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kehalakaetselite witso, kehalakaetselite witso, witso Nós estamos muito alegres, nós estamos muito
wahikwahena, waedidikwa wahikwahena, witso ki alegres, nós estamos chegando, chegando fazendo
wahikwahena. barulho e tremendo o chão, nós estamos chegando
aqui.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aliyauhete weteko, Zomoete weteko, waydidikwa Terreiro Aliyauhete, terreiro Zomoete, chegando
wahikwahena, hetatiya zomana, waulone ki fazendo barulho e tremendo o chão, vamos chegar no
nomana. início, vamos para a chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikyeretiyahena, howenaedikiyare, Vamos dançar no terreiro, gingando no terreiro,
maeyotatalikare, dançando no terreiro, dançando em volta da casa,
wikyero wikyerotiya, wahetsalihena. estamos dançando.
[…] [...]

(JB_26052010_007)

Ainda em relação às formas acústicas, temos, portanto, quatro diferentes “roupagens sonoras”
que são amplamente utilizadas pelos Haliti para sua expressão verbal: 1. uma forma acústica
que agrupa as categorias de expressão verbal enunciativas idyaete, manati e fetatyati, cujas

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variações ocorrem em termos de duração; 2. uma forma acústica correspondente a
jihatyoawihaliti – falar cantando/narrar com melodia; 3. uma forma acústica reconhecível que
agrupa os diferentes repertórios de cantos de zolane, cujas variações ocorrem em termos de
repertório, melodias e pulso/tempo; e 4. uma forma acústica reconhecível que agrupa os
diferentes repertórios de flautas iyamaka, cujas variações ocorrem em termos de repertório,
melodias e pulso/tempo. Há de se notar que esta divisão é bastante evidente e marcada entre
uma flauta e outra.

As diferentes flautas iyamaka podem ser executadas simultaneamente durante os rituais oloniti.
Isso significa que durante a performance de iyamaka há a possibilidade de construção de uma
polifonia no pátio da aldeia, já que diferentes grupos de cantores executam diferentes flautas
iyamaka ao mesmo tempo, com seus respectivos cantos e formas sonoras associadas. Neste
caso, o uníssono perceptível dentro de cada grupo é contrastado pela polifonia resultante da
conjugação de todos elementos acústicos em simultaneidade. Esta é, por exemplo, a resultante
audível pelas mulheres que estão dentro das casas e que não podem ver o que acontece no pátio
da aldeia. Uma dinâmica entre distância/proximidade e amplificação/atenuação da emissão
sonora é perceptível pelas mulheres dentro das casas, que impossibilitadas de ver e se
aproximar, lidam com a espacialidade do som e uma distinta recepção dos elementos audíveis
a que estão submetidas.

As unidades músico-performáticas zolane, iyamaka, zero, xihali e zokozoko possuem um


encadeamento sequencial adequado e ideal, que sempre é respeitado e repetido durante a
execução dos rituais oloniti. O que pode variar nesta estrutura é a presença ou não de
determinado instrumento musical naquele ritual, condição para execução de sua performance.
A unidade mínima fundamental para realização de um ritual oloniti é zolane, que não necessita
nenhum instrumento musical, senão as vozes dos cantores. Há rituais oloniti em que somente é
performado o zolane (e zokozoko no final, que é de praxe). Caso os instrumentos de sopro sejam
trazidos pelos seus donos, adicionam-se à sequência ritual as unidades performáticas
correspondentes à cada instrumento.

Cabe lembrar que a improvisação pode ocorrer durante a execução de quaisquer blocos de
cantos, flexibilizando a noção de execução ritual através da repetição. Este é um tema que exige
especial atenção e será tratado adiante, já que a improvisação remete, em alguns casos, à

53
exaltação da moralidade social, julgando comportamentos de outros indivíduos através de um
tom jocoso autorizado pela verbalização dos cantos zerati. Além da improvisação, é notável a
variação que cada intérprete imprime aos cantos, que apesar de serem reconhecidos como “o
mesmo canto”, variam em termos de sua execução textual e verbal – havendo, portanto, diversas
versões do mesmo canto.

Encanto, metaforicidade, paralelismo, sonoridade reiterativa, precisão imagéticas e


improvisação, são todos estes elementos evocados através destas formas de expressão verbal.
É preciso, entretanto, adicionar um último aspecto em relação a todas as artes verbais Haliti,
que é sua estrutura nominativa, classificatória e topográfica. De modo geral, não só os cantos,
mas todas as outras formas enunciativas narram episódios míticos ou discorrem sobre situações
sociais, entre elas a realização de festas de chicha, que é um tema privilegiado. Nestas
verbalizações, chama atenção a evocação de um extenso repertório de nomes: dos antepassados,
das espécies animais e vegetais, de pontos localizados no território, como cabeceiras de rios,
morros, campos e matas, e de outras regiões de seu cosmos, entre elas aldeias celestes ou
subaquáticas. A estrutura nominativa a qual me refiro, repetitiva e enfática, sugere uma
característica formal que pode ser lida como uma fórmula verbal, um poder musical de
nominação ou ainda, uma manipulação dos nomes das coisas (CESARINO, 2013; HILL, 2011).
O poder evocativo de nomes contrasta com outra característica destas artes verbais, que é a sua
parcial incompreensão pelos mais jovens, ou sua composição através das “palavras científicas”,
diferenciadas da linguagem ordinária. Tal exotismo linguístico está relacionado à utilização de
termos alternativos aos atualmente utilizados para se referir a coisas comuns, mas
principalmente se deve ao extenso repertório de nomenclaturas evocados, que por constituírem
palavras sem “significado”, somente são conhecidas pelos mestres rituais após longo período
de aprendizado da mitologia e vivência ritual.

O interesse Haliti pelos nomes e pelos atos de nominação também se reflete na importância da
nominação dos recém-nascidos, uma das motivações dos rituais oloniti, momento em que são
atribuídos pertencimentos aos terreiros espirituais e consequentemente à uma rede de parentela
específica pós-morte. Este pertencimento é fundamental para, por exemplo, o temperamento e
saúde da criança. Cada nome atribuído confere à pessoa suas prerrogativas e destino no mundo
pós-morte, isto é, a aldeia espiritual que sua alma pertence. As aldeias espirituais, morada dos
espíritos dos antepassados, são referidas através do termo weteko – que significa terreiro,

54
palavra que utilizam para designar as moradas no patamar celeste. Nestas aldeias, sugere-se que
a vida é ritual por excelência, e vive-se num estado perpétuo de abundância e imortalidade.
Conforme explicação de Zomoizokae:

Cada música do Haliti tem um terreiro diferente que eles falam; cada um dos espíritos
do passado, eles falam aonde é o local do terreiro deles, do trabalho, onde eles moram,
onde eles ficam [...] Esses lugares não existem aqui, é em outro lugar, lugar longe –
akwakity – é pra onde vai os espíritos; o dia pra mim ir embora dessa terra, já tenho
lugar certo na outra terra, numa aldeia, num lugar mais lindo, mais bonito; cada nome
tem seu lugar; lá encontra os avós da família; [...] é um lugarzinho lindo, as flores
bonita, rios cheios de peixe, tem caça, chicha, cada lugar tem uma festa que não acaba,
sempre na festa [...] lá o pessoal é espírito. (ZOMOIZOKAE, 2011, grifo nosso)

É nesse sentido que podemos dizer que as artes verbais condensam tanto uma cartologia
cósmica – ou cosmografia, como sugere Cesarino (2013) – como uma genealogia mítica,
intensivamente relacionadas, demonstrando o interesse que os Haliti possuem na localização e
fixação de pontos territoriais (incluindo outros patamares cosmológicos) e, também, na
produção de redes de parentesco e aliança. Este mapeamento cosmológico, intensamente
verbalizado, através da aprendizagem, evocação e manipulação dos nomes, constitui um
repertório extenso e complexo, através do qual os Haliti assimilam a própria cosmologia e seu
modus operandi. Numa tradição tipicamente oral, a questão que se coloca diz respeito à
intensidade, eficácia e alcance desta estrutura verbal em termos cognitivos, acionada
repetitivamente de modo a compor uma memória coletiva cosmologicamente circunscrita.

55
2. OLONITI KALORESE: SEQUENCIALIDADE, PERFORMANCE E SEMÂNTICA
RITUAIS

As questões suscitadas pela introdução às categorias oloniti kalorese, iyamaka e as diferentes


classes de artes verbais Haliti constituem um pano de fundo tão oportuno quanto necessário
para explorar o ritual em profundidade. Nesse sentido, propõe-se a partir daqui uma descrição
densa de oloniti kalorese, dedicando especial atenção ao que denomino sua sequencialidade –
o encadeamento ideal de diferentes unidades rituais, por sua vez exploradas em suas dimensões
performáticas e semânticas.

Por semântica entendo o estudo da significação – a dimensão do sentido – através da


interpretação das sentenças, dos enunciados e da relação entre os termos evocados. É nesta
definição que pretendo contextualizar o sentido de palavras e expressões que o conteúdo
linguístico dos textos rituais evoca. Enquanto aspecto da ação, relacionada aos sujeitos, a
performance é aqui entendida como um conceito englobante, incluindo em seu espectro também
as artes verbais (BAUMAN, 1975). Consideramos os corpos – humanos, espirituais ou
artefatuais – como agentes, desempenhando múltiplas funções rituais; desta forma, a
performance se refere a tudo aquilo que estes agentes fazem, através de ações que modelam a
situação ritual, e também ao que expressam, através de conteúdos verbais e musicais, gestos
meta-comunicativos que ocorrem durante o ritual. As formas de expressão verbal, ou práticas
vocais, condensam-se nas chamadas “artes verbais”, a linguagem em ação, performada,
atualizando os sentidos colocados em jogo pela complexa trama ritual. A descrição densa –
portanto, interpretativa – que aqui se pretende, busca abranger tanto aquilo que os sujeitos
fazem como aquilo que os sujeitos dizem, assim como os aspectos semânticos que emergem
destas observações. Nesta definição, discursos e performances são relevantes enquanto
modeladores da estética ritual de oloniti kalorese.

A escolha metodológica, inclinada à estética, privilegiará dois eixos principais para descrição
e interpretação: os aspectos da ação – desenvolvido a partir das observações de campo e
exegeses dos Haliti sobre os temas relacionados à execução do ritual – e os aspectos da
expressão – explorando as dimensões semânticas evocadas através da performance das
diferentes artes verbais, seus conteúdos, discursos e formas de expressão – neste caso, através
da análise e evocação do corpus textual coletado. Através deste olhar multifacetado pretende-

56
se demonstrar, sobretudo, que a estética ritual somente faz sentido se colocada em ação,
performada e atualizada pelos agentes e mestres de saberes Haliti. Tal estética ritual não
constitui um arranjo simbólico inerte, nem um sistema abstrato, mas antes uma forma de
expressão ativa de uma cosmologia – uma atualização no presente da mito-práxis mundana.

Os conteúdos linguísticos contidos nas artes verbais evocam de forma central, mas não
exclusiva, fragmentos da mitologia, que por sua vez constituem um recurso semântico
modelador da visão de mundo Haliti. Trata-se de compreensões específicas da maneira como
enxergam e agem sobre o mundo, o território e meio-ambiente que habitam. Como já relevado
no capítulo anterior, nesta cosmologia relacional habitada por diversas outras subjetividades,
há a necessidade de se regular as resultantes que advém das interações, através de pactos e
alianças rituais. Estas ocorrem fundamentalmente através da evocação de fórmulas verbais e
sonoras, dotadas de uma característica comunicativa e relacional. Através da execução músico-
performática, as interações são controladas e efetivadas, num contexto em que unidades de
sentido reverberam e agem sobre seus receptores. É importante reafirmar que

[...] junto aos povos indígenas, aquilo que gostaríamos de denominar fatos “artísticos”
forma um modo de ser e gerenciar relações carregadas de afetos entre distintas
sociedades corporais que coabitam os seus espaços. Estas relações existem a partir de
suas qualidades sensíveis plenas. [...] Os atos estéticos [...] servem então
incessantemente a controlar a medida de suas intervenções sobre outros povos que
partilham com eles o seu espaço, a regular as trocas que realizam com diferentes
coletivos. (TUGNY, 2015, p.323-324)

É nesta direção que a descrição densa aqui proposta será guiada a partir das observações de
campo, exegeses e textos rituais coletados, transcritos e traduzidos, dedicando especial atenção
às artes verbais Haliti, expressão plena dos idiomas rituais. A finalidade é estabelecer um
background denso e etnográfico para interpretações subsequentes, que possam dialogar com
aspectos mais amplos da etnologia em geral. Como estratégia metodológica e descritiva, diante
da densidade do material, dividiremos a descrição dos rituais oloniti em unidades analíticas,
cujo nexo sequencial pretende facilitar tal empreitada. Estas unidades serão expandidas e
exploradas a partir de suas particularidades, no entanto, sempre tendo em vista que na verdade
os rituais oloniti constituem um “todo”, uma unidade maior que conjuga todas estas unidades
analíticas numa sequência ideal e operante. Assim é fundamental não perder de vista a relação
constituinte que existe entre tais subdivisões. O mapeamento de oloniti kalorese em unidades
rituais de performance e semântica consiste na estratégia descritiva adotada por esta pesquisa,

57
e será explorado através de sua sequência lógica e ideal de execução, conforme consta
sintetizado no Sumário desta tese.

Ao lidar com conteúdo linguístico transcrito e traduzido da língua materna para o português,
como é o caso, devemos ponderar adicionalmente sobre a metodologia de tradução em geral.
Toda tradução é sempre deficitária, pois envolve uma escolha entre um leque de possibilidades.
Ao se escolher uma palavra em português análoga àquela outra na língua materna, acabamos
por influenciar o sentido que assume no contexto interlinguístico. Como já vimos, os próprios
Haliti, por dominarem extremamente bem o Português regional, mobilizam suas próprias
escolhas ao traduzir uma série de termos privilegiados nesta etnografia: o termo iyamaka por
jararaca ou flautas secretas; a palavra cântico para designar categorias de expressão verbal-
musical zerati; reza para se referir à categoria verbal idyaete; ou festa tradicional para se referir
a oloniti kalorese. Como se sabe, as traduções nunca são neutras, cabendo ao pesquisador e
seus interlocutores indígenas tentar chegar o mais próximo possível do sentido intencionado na
língua de origem. Cada escolha constitui, portanto, apenas uma entre um leque de
possibilidades de diminuir ou aumentar o abismo de significância entre os termos. Tal fato será
percebido em dois níveis durante esta pesquisa: nas traduções das diferentes artes verbais,
através de um mediador-tradutor Haliti; e nas transcrições literais das exegeses dos diferentes
colaboradores Haliti. No primeiro caso, as escolhas de terminologias envolvidas partem de um
diálogo entre jovens tradutores, anciãos e antropólogo; no segundo caso, a vivência que cada
interlocutor possui em relação à língua portuguesa regional refletirá suas escolhas e uso das
palavras para explanações. Nesse sentido, as exegeses serão apresentadas em sua forma
original; já as traduções, serão exibidas conforme produto do diálogo construtivo de que são
resultado. Buscarei diminuir os “gaps” de sentido, quando julgar necessário, através de minhas
próprias interpretações de ambas as formas de tradução, mas também deixarei transparecer
amplamente as escolhas dos interlocutores, conforme a tradução original por eles proposta. Isso
será notado, por exemplo, na utilização dos termos “senhores” para se referir aos antepassados
(problematizando a apropriação do sentido de “respeito”); “sereia” para se referir a gente da
água (problematizando a apropriação da cultura regional); “casa tradicional” para se referir à
maloca (problematizando a apropriação de designações “de fora”); “Deus” para se referir ao
espírito-criador “Enoré”, do qual o ancestral “Enoharese” é a sua manifestação
(problematizando apropriações da terminologia missionária e correspondências terminológicas
às noções do criador e seu filho); ou “rei” para se referir ao sentido de dono (problematizando

58
a relação de maestria/domínio no contexto da apropriação de um termo regional).

É nesse sentido que uma tradução literal das artes verbais é extremamente difícil. Ao traduzir
cantos com os colaboradores desta pesquisa, tivemos que debater, propor, mudar e a todo tempo
escolher termos que melhor se adequassem à ideia ali contida e identificada por nós. E mesmo
assim, muitas foram as vezes que não chegávamos a uma terminologia satisfatória. Vários
foram os “gaps” de sentido, seja pela ampla utilização de palavras “científicas” – palavras que
só os anciãos conhecem, que caíram em desuso entre as gerações mais recentes – seja pelo
grande repertório nominativo e, portanto, sem qualquer tradução possível, que tais artes verbais
condensam em seu conteúdo. Entendo que as traduções, em certa medida e de maneira ambígua,
são tão necessárias quanto parciais: se por um lado é somente através delas que se pode ter
acesso a uma profunda compreensão, em termos de sentido e significado, do que está sendo
mobilizado através destas artes da fala, por outro elas nunca vão representar fielmente ou
literalmente o que está sendo comunicado naquela outra linguagem, que mobiliza outros
processos perceptivos durante sua enunciação – por exemplo, uma diferente sonoridade das
palavras, uma diferente estrutura prosódica, uma diferente estrutura e sequência para construção
de frases e ainda diferentes sentidos agregados às palavras-conceitos. É exatamente aqui que a
fragilidade de nosso trabalho, com todas as suas limitações, deve ser assumida. Mas ao mesmo
tempo, assumindo suas limitações, trata-se de uma escolha metodológica, situada no limiar do
contato etnográfico, que pode gerar interpretações singelas. E acima de tudo, já sabemos que
toda etnografia é sobre o encontro, sobre o diálogo, sobre os equívocos, sobre o contato entre
etnógrafo e nativo: a tentativa de um de compreender o outro, influenciando-se mutuamente.

O extenso material transcrito para a língua materna e posteriormente traduzido para o português
foi processado de forma a reconhecer nele recorrências, estruturas e aspectos formais e
semânticos que possam dialogar com a etnografia Haliti. Neste sobrevoo, cabe aqui trazer os
resultados deste múltiplo e insistente processamento do material, através de fragmentos de
interesse, sem descartar, no entanto, a riqueza do acesso à sua integralidade, que ofereço em
alguns casos no decorrer do texto. Por se tratar de um extenso material, impossível de trazer em
sua completude, opto pela seletividade, ao mesmo tempo oportuna para demonstração de
observações e intepretações e para não privar o leitor do contato “cru” com este material. Assim
pretendo não somente mostrar os aspectos que considero relevantes, mas atentar para
importância da forma através da visualização dos textos integrais. É importante sublinhar que

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os textos transcritos e traduzidos foram filtrados e revisados diversas vezes através do diálogo
participativo com os colaboradores, usando de suporte os dicionários publicados por Rowan e
Rowan (1978) e Silva, G. (2013). Mesmo assim, notar-se-á que as transcrições não possuem
uma padronização linguística formal na grafia das palavras ou na sua aglutinação, sendo uma
opção expô-las da forma em que foram geradas e filtradas pelos colaboradores. Da mesma
forma, as traduções combinam tanto escolhas, como impossibilidades pontuais de se chegar a
termos correlatos, não perdendo de vista, entretanto, o horizonte de sentido contido no material.
Considerando a prioridade dos conteúdos semânticos em relação à análise linguística formal,
considera-se que tal opção é tão viável quanto satisfatória.

2.1 MOTIVAÇÕES DE OLONITI: BATIZADO, MENSTRUAÇÃO E NOMES

Os rituais oloniti kalorese são a expressão máxima da sociabilidade e cosmologia Haliti, sendo
descritos e analisados por Costa, R. (1985) e revisitados por Bortoletto (2005) em seu artigo
que aborda a relação entre mitologia e ritual Haliti. As motivações para sua realização são
associadas a dois fatores centrais, ligados à constituição da pessoa Haliti: o nascimento de
crianças, que neste caso devem ser “batizadas” – atribuição de nome na língua materna –
através da realização do ritual; e a primeira menstruação das jovens púberes – referidas pela
designação menina-moça – que devem ser retiradas do período de reclusão e resguardo através
também da realização deste ritual. Também podem ser motivados em casos de graves doenças
que estejam acometendo uma pessoa, neste caso objetivando sua cura, e por ocasião da colheita
de uma grande roça de mandioca, esta última motivação cada vez mais em desuso. Como
explica Eazokemae, oloniti kalorese possui um caráter integrador:

Oloniti entra todas essas partes, união do povo, batizado, festa da menina-moça,
fortalecimento da pessoa e da saúde, todas essas questões de Haliti dentro dela, numa
coisa única. Quem quiser participar, pode aproveitar essa oportunidade que estão
fazendo, para batizar seus filhos, suas crianças. (EAZOKEMAE, 2017)

Quando as meninas têm sua primeira menstruação, inicia-se um período de resguardo que hoje
em dia dura aproximadamente um mês. Explicam os Haliti que antigamente o resguardo poderia
durar até seis meses, enquanto se preparava uma grande festa para marcar o final do período de
reclusão. O resguardo da menina-moça ocorre através do confinamento num quartinho de

60
reclusão – hitxikwatidyo hana (talala ou wayasalati, em variantes)23 – construído com palhas
de buriti dentro da casa de seus pais ou avós. Lá dentro a menina passa praticamente o dia todo
deitada na rede, evitando o contato com os demais habitantes da casa, apesar de escutar tudo
que se passa ao seu redor. Durante este período, a mãe e a avó serão encarregadas de cuidá-la,
atendendo suas necessidades e dando conselhos para a menina, a quem se aplicam uma série de
restrições. Como explica Zomoizokae, neste período liminar a menina fica exposta a uma série
de perigos, e por isso deve ser protegida:

Na primeira menstruação da menina a mãe cuida dela [...] não pode sair no tempo
[fora da casa], senão vai sentir dor de cabeça, se alguém não benze para ela, vai pegar
espírito mal, daí fica doida, louca. Por isso que até hoje a gente considera tudo isso,
quando tem menstruação, atrai espírito mal, não pode cair na água, tem que benzer,
não pode banhar, resguardo é para proteger de tudo isso, até acabar menstruação não
pode sair daquela casinha, conversar só com a mãe. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Além do relativo isolamento espacial e da limitada comunicação com os demais, a menina-


moça deve seguir uma rigorosa dieta, evitando certos tipos de alimentos, numa sugerida
correlação com a pureza de seu sangue que deve ser mantida durante o período de reclusão:

Não pode comer beiju virado, tem que ser [beiju] de borraio [feito nas cinzas da
fogueira], porque o sangue dela fica limpo, ela não pode comer carne, carne pesada
não pode comer, pode comer mingauzinho, arroz cozido, mingau de polvilho, ela pode
comer. É o tratamento dela, o alimento dela, banana, batata, cará não, ai o sangue fica
limpinho, e o corpo dela vai mudando tudo, fica branquinho, se cuidar ela bem
mesmo, a menina fica igual um papel, branquinha, por isso que até hoje nós sabemos
benzer, essa parte, primeira menstruação nós benzemos ela, resguarda ela, faz a
casinha, explica pra ela, pra mãe, pro pai, ai nós deixa, até fica seis meses, aí vai
preparando a festa dela. (ZOMOIZOKAE, 2017)

23
Conforme detalha Pereira (1986): “Quando uma mocinha tem a primeira menstruação, conta para a mãe. Logo
recolhem a mocinha menstruada (hixikwatiru) ao quartinho de reclusão, feito de palha, dentro da casa da família
da mocinha. Ali fica aos cuidados da mãe. A mocinha só pode comer lá pelo meio-dia. Come peixinho, beiju e
bebe chicha. Não come carne de anta, senão morre. Nem de tatu, senão fica feia e envelhece logo, porque
antigamente o tatu era um velho; nem de veado, a não ser um pedacinho de corça novinha; nem carne de gado,
porque senão aumenta mais o sangue catamenial. A mocinha não pode ficar no escuro. Dorme sempre
acompanhada de uma irmã, para um homem-da-água não vir mexer de noite com ela. Ali mesmo no quartinho de
reclusão, toma banho muitas vezes, sempre com uma cuia, para ficar alva, gorda e bonita. Se não tomar banho,
fica magra. [...] A gente não pode falar muito com a mocinha reclusa, porque senão ela fica fuxiqueira. Para tirar
a mocinha da reclusão, fazem uma festa. A mocinha não pode comer gordura enquanto as mulheres preparam a
chicha da festa, senão a chicha apodrece. No último dia de festa, dois homens acompanham a mocinha até a água,
passam a espuma da batata de jalapa-branca no corpo da mocinha e ela toma banho logo em seguida. [...] Nas
menstruações subsequentes, a mocinha toma banho com uma cuia fora da água. Haliti diz que se a mocinha tomar
banho dentro da água, um homem-da-água flecha e o sangue não para. Também se ela tiver relação sexual nesse
tempo, fica louca. E, se um homem se senta perto de uma mocinha menstruada, fica louco” (PEREIRA, 1986,
p.102).

61
Oloniti kalorese marca portanto o final do período de reclusão da menina-moça e seu retorno
ao convívio social. Já as crianças que ainda não possuem um nome – designadas pelo termo
maiare – também estando, portanto, numa situação liminar, serão “batizadas” durante o ritual,
uma forma de protegê-las e garantir sua saúde. Há uma associação entre o nome e o espírito da
pessoa, que, consequentemente, é condição para manutenção de sua saúde. Na concepção
Haliti, as doenças se manifestam quando os espíritos abandonam temporariamente seus corpos,
sendo a presença do espírito a condição para a saúde da pessoa. Conforme sugere Zomoizokae,
a atribuição de nome dá espírito e proteção às crianças:

Antes de ter nome, a criança não tem espírito, depois que ganha nome, aí fica sadio o
menino, tem alguém que protege ele, por isso que nome é importante [...] se tem
alguém que está precisando trocar o nome, [...] nem que a criança tá assim doente, ela
recupera a saúde através disso. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Como assinalado acima por Zomoizokae e aprofundado adiante por Eazokemae, podem ocorrer
ainda a mudança/troca de nomes durante os rituais oloniti, quando uma pessoa está sendo vítima
de doenças ou infortúnios, ou mesmo quando sua personalidade se encontra em desequilíbrio,
fatores estes que podem estar associados a seu nominador:

Pode também trocar o nome [...] se o padrinho não é uma pessoa boa, quem deu o
nome, se briga, é brabo, por isso a pessoa pode ficar também assim, pode acontecer
isso também. Isso acontece muito, de trocar de nome. Quando eu quase morri, eu
aumentei, alterei meu nome. Meu irmão era muito briguento, também trocou o nome
dele. (EAZOKEMAE, 2017)

Os nomes são atribuídos às pessoas idealmente por um pajé no encerramento da festa, ao


amanhecer, no terreiro. Hoje em dia, entretanto, os anciãos ou mestres da cultura também
podem ser nominadores. A condição para a nominação está relacionada tanto à sabedoria do
nominador quanto ao elemento onírico, que é a capacidade de “sonhar” o nome. É através do
sonho que ele recebe dos espíritos o nome a ser atribuído. Se não é dada a devida atenção ao
processo de nominação, ou uma pessoa qualquer, despreparada, faz o papel de nominador, pode
ocorrer da pessoa nominada ficar doente, não ficar forte, ou mesmo adquirir uma característica
não desejada, como a raiva – “ficar briguento”. Desta forma, o processo de nominação é
especializado e elaborado, já que consiste na atribuição do espírito da pessoa, assim como seu
pertencimento a uma rede de parentesco e a uma aldeia espiritual, localizada no céu e
compreendida como seu destino pós-morte:

62
No final da festa, quando vai batizar as crianças, chama o nome dele, de qual região
que eles são, de qual [região] que vai dar nome pra eles [...] porque Zomoyhete
[terreiro celeste], se ele der nome, é esse mesmo, Zomoyhete é terreiro do espírito, é
daí que o guri vai receber nome [...] se caso fica doente, se ele não aceita o nome dele,
então vai trocar o nome, de outro terreiro, assim que é a parte da festa.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

E ainda é considerado que, entre os terreiros das aldeias celestes, de onde originam-se os nomes,
existem aqueles bons ou ruins, cujos reflexos são incorporados em seu recebedor:

Cada nome tem seu paraíso no céu, por isso que só pajé pode dar nome [...] se qualquer
pessoa dá esse nome, aquela pessoa que recebeu o nome vai ficar doente, não vai ficar
forte, só pajé que sabe esses terreiros, que fala em muitos cantos, só pajé que conhece
os terreiros bons [...] tem terreiro bom e terreiro ruim, as aldeias, como aldeia boa,
aldeia ruim, igualzinho. (EAZOKEMAE, 2017)

Apesar de aparentemente díspares, todas as motivações de oloniti possuem um traço comum,


pois trata-se de receber um nome, procedimento este que influi na constituição da pessoa Haliti,
conforme sintetiza Costa (1985): “[...] [um nome] novo no caso do batizado, reforçado no caso
da iniciação [da menina-moça] e da cura. Assim, este rito tem um papel central na produção
da pessoa, pois para os Haliti o nome ‘é o espírito da pessoa e serve para dar vida’” (COSTA,
R., 1985, p.188).

De múltiplas maneiras e através de diferentes idiomas, os rituais oloniti kalorese tratam da


produção da pessoa Haliti, processo este que necessariamente passa pela transformação dos
corpos através de fluxos neles incidentes. Em primeiro lugar, os nomes atribuídos – que “são o
espírito da pessoa, e servem para dar a vida” – transcendem o caráter de “rótulo”, apontando
antes para uma forma aderente, internalizada e constituinte da pessoa, sintetizada no conceito
de espírito. Em segundo lugar, as próprias motivações de oloniti sinalizam a centralidade que a
capacidade reprodutiva – e a fertilidade associada – assume para os Haliti, marcando a idade
fértil das meninas-moças e o nascimento de novas crianças como momentos centrais e
orientados para a produção de novos corpos e pessoas. E ainda, a complexa associação entre
corpos, nomes, espíritos e saúde, atualizada durante os rituais, revela talvez a inevitabilidade
de sua execução:
[...] porque nesse momento, há o fortalecimento da pessoa e da cultura, por exemplo,
quando o espírito foi embora, muito tempo [...] se deixar de fazer oloniti, o povo vai
morrer, como os brancos falam, “castigo” [...] não podemos deixar, todos tem que ter
atenção para isso. (ONIZOKAECE, 2017)

63
2.2 CONVITE DE OUTRAS ALDEIAS E PREPARAÇÃO DOS ALIMENTOS

Os Haliti distinguem os rituais oloniti pelo tamanho e abrangência, neste caso, medido pela
quantidade de aldeias que serão convidadas e consequentemente pela quantidade de alimentos
que deverão ser preparados para ofertar aos convidados. Antigamente, conforme narram os
Haliti, as festas de chicha eram maiores e eram convidadas praticamente todas as aldeias. Eram
mais frequentes e mais longas, ocupando quase que por completo o calendário anual, um índice
do “bom viver” – da saúde, fartura alimentar e bem-estar geral. Vivia-se quase que
constantemente em função das festas, já que, assim como a reclusão das meninas-moças, a
preparação das festas poderia se estender por meses, dependendo do tamanho da festa e da
quantidade de alimentos necessários para oferendas. Nestas festas grandes – oloniti kalorese –
são reunidas uma série de crianças a serem nominadas, diversas meninas púberes para encerrar
o período de sua reclusão, e ainda eventuais pessoas que necessitem de cuidados em relação à
saúde, para fortalecimento de seus nomes-espíritos. Como esclarece Onizokaece:

Ultimamente está desaparecendo oloniti kalorese, estão fazendo oloniti mais simples,
você caça uma semana, três dias, acabou, já não existe quase mais o dono de festa,
harekahare, convidando todas as aldeias, hoje só convidam os mais próximos [...].
Antigamente juntavam todas as aldeias, convidavam todas, e quase todas chegavam,
participavam, agora hoje é coisa simples, simplificou de repente, não é mais igual.
Algumas aldeias ainda fazem o cocho grande [de chicha]. (ONIZOKAECE, 2017)

O “cocho grande” referido acima por Onizokaece – grandes toras de palmeira buriti escavadas
para armazenamento e fermentação da chicha – constitui um índice da amplitude relacional
gerada pela festa, já que a quantidade de chicha produzida, armazenada e disponibilizada está
diretamente associada à abrangência do convite, número de convidados de outras aldeias e
consequente sucesso no apaziguamento das relações. Nesse sentido, a realização dos rituais
oloniti intensifica as relações entre as pessoas da mesma aldeia (durante a preparação,
incluindo de maneira central o processamento da mandioca para produção de chicha) e amplia
as relações inter-aldeias (durante as caçadas coletivas realizadas nas aldeias convidadas e
durante a realização da festa na aldeia anfitriã), constituindo um evento de caráter notadamente
sociológico.

Os participantes de oloniti podem ser distribuídos em três categorias inter-relacionadas: os


donos (anfitriões e patrocinadores), os festeiros (mestres da execução musical) e os convidados
(consumidores residuais). Nesse sentido, associam-se à estrutura “ternária” de papéis sociais

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assumidos em rituais de outros grupos indígenas, como por exemplo dos xinguanos:

A macroestrutura de identidades sociais responsáveis pela efetivação de todo e


qualquer ritual entre os Kamayurá – semelhante, em parte, às apresentadas por
Carneiro e Dole (1956) para os Kuikuro e por Basso (1973) para os Kalapalo – é
ternária, subentendendo inicialmente uma oposição entre o -yat, 'patrocinador'
(etimologicamente, 'dono') e o maraka'yp, 'mestre de música' – o 'oficiante' por
excelência -, estas duas categorias, por sua vez, contrapondo-se à residual, de kamara,
'participantes', estes também ditos hawat, 'ganhadores'. (MENEZES BASTOS, 1978,
p.220-221)

Os donos (harekahare) correspondem a todos os membros das famílias envolvidas naquela


festa, isto é, os familiares da menina-moça e das crianças a serem batizadas, e têm sobre si
praticamente toda a responsabilidade pelo seu bom andamento, que depende da farta
preparação e oferta de alimentos aos festeiros e convidados, e do cumprimento de resguardos
específicos durante este período, principalmente a evitação sexual. Sobretudo os donos, devem
seguir uma série de prescrições e restrições durante o tempo da preparação. Hoje, a fase de
preparação começa em média uma semana antes da festa (antigamente poderiam levar meses),
quando os donos enviam “mensageiros” encarregados de convidar as outras aldeias e organizar
as caçadas coletivas. Tradicionalmente, estes levavam consigo um pedaço de corda com vários
nós, cada um correspondente a um dia até a data de início do evento, constituindo uma forma
de marcar a contagem regressiva para a ocasião, através do desatamento dos nós. O convite é
formalizado através de uma fórmula verbal denominada manati, um diálogo cerimonial que
ocorre no pátio da aldeia convidada entre o mensageiro e o cacique, ou alguma liderança ou
ancião que esteja ali presente. Durante as madrugadas, o mensageiro também será responsável
por organizar as caçadas coletivas, indicando sua duração, os locais onde serão realizadas,
assim como proferindo outra fórmula verbal ritualizada e específica para esta ocasião, a reza
fetalati, que faz referência aos espíritos donos dos animais de caça. Esta reza tem o objetivo de
facilitar as caçadas coletivas, negociando a disponibilidade dos animais e os locais de caçada,
que irão contribuir com o estoque de carne de caça disponível para a festa. Os mensageiros
são, portanto, os enunciadores destas fórmulas verbais que ocorrem durante o convite da festa.

Durante esta semana, os homens da aldeia anfitriã saem para caçar e pescar, todos os dias, até
atingir uma quantidade de caça suficiente e compatível com o tamanho da festa, não podendo
faltar alimento para os convidados e para oferendas. Já as mulheres se empenham no
processamento da mandioca, preparando grandes quantidades de massa de beiju, chicha do tipo

65
oloniti, feita de mandioca-brava (kete) e do tipo kazalo, feita de mandioca d’água. Os trabalhos
incluem colheita, raspagem, trituração, retirada do caldo, secagem do polvilho da massa,
torrefação do polvilho e cozimento da chicha, repetidos incansavelmente durante todos os dias
da semana. Assim como ocorre com a caça, as quantidades de chicha e beiju devem ser
proporcionais ao tamanho da festa, o que exige um grande esforço de todas as mulheres da
aldeia. A chicha, principalmente, é feita em quantidades enormes, sendo guardadas em tonéis
plásticos ou em grandes “canoas” (cochos) de palmeira buriti, esta última sendo a forma
tradicional de conservá-la.

Durante a preparação, o clima na aldeia é de cooperação e mobilização coletiva, intercâmbios


sociais polarizados pelos trabalhos femininos e masculinos, cujas atribuições são visivelmente
definidas. Em tempos de preparação de festa, homens e mulheres devem manter-se afastados,
não mantendo relações sexuais nem afetivas, o que poderia desencadear o mau andamento da
festa e, mais grave, o azedamento da chicha, que pode ser desastroso. Vários são os casos em
que a chicha da festa “estraga” e a culpa recai sobre o mau comportamento dos donos de festa.
Esta restrição incide sobre os donos antes e durante a realização da festa, e aos convidados
durante a realização da festa. Como enfatiza Onizokaece, “essa parte é bem rigorosa pra
festeiro, pro dono de festa, você não pode dormir com sua esposa durante todo esse tempo de
preparação da festa, até terminar a festa” (ONIZOKAECE, 2017).

Como relatam os anciãos, em tom crítico e nostálgico, as festas de chicha costumavam ser
melhores, pois todos respeitavam as restrições. Dizem que hoje é comum os mais jovens não
respeitarem nem entenderem a importância das restrições, desobedecendo-as. A não
obediência deste tabu entre sexos é considerada a principal causa do mau andamento da festa
e deve ser evitado a todo custo. Se há intercursos entre os sexos, principalmente entre os donos
da festa, a chicha estragará, ficará azeda, e a festa não correrá bem, podendo, inclusive,
desencadear infortúnios de toda ordem. A boa chicha, servida em quantidades suficientes, é
um índice da festa bem-sucedida. Além disso, os donos da festa têm de cultivar boas relações
com todos os convidados, evitando conflitos ou desentendimentos antes e durante a realização
dela, sendo este outro fator determinante, do qual depende o sucesso do ritual.

O grupo dos donos é normalmente marcado pela proximidade, coresidência e consanguinidade,


já que habitam a mesma aldeia (ou aldeias “satélite”), enquanto o grupo dos festeiros e dos

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convidados trazem a marca do distanciamento, pois apesar de parentes (distantes), são
pertencentes à subgrupos distintos – Waymare, Kozarene, Kaxiniti, Enomanyere, Warere,
Kahete –, trazendo a marca a diferença e do estranhamento. Apesar dos subgrupos estarem
amplamente “misturados” em termos genealógicos, a nível do discurso é bastante comum ainda
a identificação da pessoa com determinado subgrupo, seja através de características físicas ou
culturais distintivas, marcando assim sua relativa proximidade ou distanciamento social. Como
os rituais oloniti são abertos aos convidados de outras aldeias, a eminência do conflito é um
fator amplamente assumido, e recai principalmente sobre acusações de feitiçaria, que podem
gerar instabilidades. Por este motivo, há um cuidadoso e ritualizado trabalho de aconselhamento
e “amansamento” das tensões potenciais, através das sábias palavras dos pajés e anciãos.

A administração de conflitos (rivalidades, acusações de feitiçaria, ou mesmo “fofocas”)


potencializados pelo encontro de “parentes distantes” é fundamental para que os rituais oloniti
sejam bem-sucedidos. Nesse sentido, as estratégias rituais são para que os convidados sejam
bem recebidos e cuidados, o que ocorre principalmente através da farta disponibilidade de
alimentos e dos repetidos aconselhamentos rituais proferidos pelos mais sábios. Fórmulas de
expressão verbal são evocadas, capazes de promover a comunicação entre anfitriões e
convidados, progressivamente modelando a relação entre ambos, de modo que a resultante seja
o apaziguamento das tensões e a boa execução do ritual. Conforme explica Onizokaece:

Oloniti kalorese é uma união do povo, por exemplo, naquele momento, se eu briguei
com alguém, se existe rivalidade dentro do povo, todo mundo pede perdão [...]. Então
oloniti kalorese seria a união do povo Haliti, onde eles se encontram, discutem questão
política, onde eles fazem um debate, debate a gente fala cantando, um com o outro,
ao mesmo tempo aconselhamento, as lideranças falam tudo naquele momento, além
disso, os cantos, existe zolane, zero. Além deles, na primeira noite, existe alguns
senhores e senhoras, desde que não tem jararaca, eles começam a conversar enquanto
pessoal está cantando, aí ele vai falar primeiro, convidar; segunda parte, o festeiro vai
responder as palavras sobre o que ele falou. Como se fosse perguntas e respostas,
dessa maneira. Desde a chegada, existe um cantador que já começa a pedir que não
aconteça nada. (ONIZOKAECE, 2017)

A eminência de conflito, tematizada durante o ritual oloniti, decorre do reconhecimento de


“pequenas distâncias e diferenças” dentro do grande grupo de semelhantes, e se reflete na
distinção observada por Costa, R. (1985) entre as categorias fundamentais ihinaiharé
kaisereharé (parentes verdadeiros, legítimos, aqueles que conseguem apontar com exatidão
seus laços) e ihinaiharé sékore (parentes de longe, de consideração, cujas relações são muito
distantes para serem significativas). A relação entre os parentes verdadeiros (IK) é de

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proximidade, baseada em certos direitos e obrigações, como a generosidade na repartição de
alimentos, comensalidade, coresidência, hospitalidade, cooperação nos trabalhos de
subsistência e empréstimo de instrumentos de trabalho, que fortalecem seus laços de
parentesco. Cabe destacar que havia uma preferência de aliança por casamento entre pessoas
classificadas por IK (o que hoje não mais se aplica) e que os nominadores (aqueles que sonham
e dão os nomes às crianças durante o “batismo”) são também pessoas classificadas como IK
(COSTA, R., 1985, p.90-91). Nesse sentido, os Haliti são originalmente endogâmicos, tendo
preferência pelo casamento dentro de seu subgrupo de origem.

Entre os parentes distantes (IS), por outro lado, observa-se um relacionamento mais
formalizado, de estranhamento, marcado pelo distanciamento e cerimônia, onde não ocorre por
exemplo a troca/compartilhamento de alimentos e a cooperação nos trabalhos (COSTA, R.,
1985, p.93). Conforme a interpretação de Costa, R. (1985, p.195), “as categorias de relação IK
e IS formariam o eixo a partir do qual se articulariam as demais relações que se dão nas esferas
sociais do parentesco (relações interpessoais), do trabalho, do casamento, da política e do
ritual”. Esta observação é fundamental, já que a comensalidade constitui uma das estratégias
rituais de oloniti kalorese para se produzir proximidade e parentesco entre parentes distantes.

Apesar de ambas as categorias indicarem certo grau de cumplicidade (o termo ihinái denota
uma relação de companheirismo), note-se que, geralmente, tais classes de pessoas são
concebidas com distinção – como “outros” – influenciando assim os modos de relação e
comportamento que as classes estabelecem entre si – sendo a desconfiança um fator comum.
Durante os rituais oloniti, as fronteiras ficam ainda mais evidentes, já que há uma nítida
oposição entre os donos-anfitriões (IK) e os convidados e festeiros (IS). Nestes rituais parece
operar uma lógica processual, no sentido em que transparecem tanto as diferenças entre as
categorias sociais – marcadas pela desconfiança, pela potencialidade de conflito e hostilidade
feiticeira – quanto uma tentativa de pacificar tais conflitos, experimentando um convívio social
mais próximo e generoso durante os dias de festa. Como complexifica Costa, R. (1985):

É importante registrar que os Haliti dizem que os que comparecem às festas são os
“espíritos” dos mortos da parentela dos membros da aldeia anfitriã. Os espíritos
entram no corpo dos festeiros quando estes chegam na aldeia. São eles (os espíritos)
que bebem chicha, que dançam e cantam. Somente quanto os festeiros vão embora os
espíritos abandonam seus corpos e retornam à aldeia dos mortos. Dizem que é por
isso que quando o anfitrião oferece chicha aos festeiros chama-os pelos termos: abé
(avó), atyó (avô), azé (bisavô). Vemos assim que o ritual congrega os mortos que se

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fazem presentes no corpo dos “outros” (IS); dessa forma estes deixam de ser os
“outros” passando a ser o “nós”, sob a forma dos espíritos dos ancestrais. (COSTA,
R., 1985, p.184, grifo nosso)

Talvez a categoria mais ambígua colocada em cena durante os rituais oloniti seja a dos
“festeiros”, constituindo uma identidade complexa que exige maior atenção. Os festeiros são
designados pelo termo oloniti fahare, que literalmente significa “bebedor de chicha” – em outra
versão, oloniti hoahare, ou “aquele que bebe chicha” – e durante a festa associam-se tanto ao
consumo voraz da bebida fermentada, quanto à exaustiva execução musical. São eles que
bebem, regurgitam, e continuam bebendo grandes quantidades de chicha por toda a noite, se
empenhando nas longas séries de cantos e danças dos repertórios de iyamaka, zolane, xihali e
zero. Os Haliti explicam que os espíritos dos antepassados se fazem presentes nas festas,
exigindo a oferta de chicha, tabaco e alimentos diversos. Desta forma, há uma associação entre
homens e espíritos que ocorre no ritual (COSTA, R., 1985, p.180-184), convergente na
categoria dos festeiros: “quem, de fato, participa da festa são os espíritos: eles bebem chicha,
cantam e dançam” (BORTOLETTO, 2005, p.94).

A discussão da terminologia empregada para designar a categoria dos festeiros é tão produtiva
quanto intrigante. O termo fahare (ou efahare) é ambivalente, possuindo sentidos que, ao invés
de óbvios e correlacionados, apontam para idéias divergentes e conflitantes quando traduzidos
ao português. Os sentidos associados ao termo fahare – utilizado para designar tanto o
“convidado” (oloniti fahare = convidado da festa ou, literalmente, “bebedor de chicha”) como
o “inimigo” ou “assassino, responsável por morte” (ROWAN; ROWAN, 1978) – parecem
apontar para idéias contraditórias, já que, no senso comum, não se convidaria um inimigo para
sua festa. Se “convidado” é uma categoria que remete a modos de relação amistosos e pacíficos,
“inimigo”, por sua vez, remete ao conflito, evitação e distanciamento. No entanto, deslocando
tais significados para dentro dos rituais oloniti, outra leitura se faz possível, apontando para
uma dinâmica que transborda a acepção puramente sociológica das relações em jogo e subverte
assim a aparente contradição. Conforme já visto, os convidados de oloniti kalorese são
marcados pela diferença e estranhamento, um potencial de inimizade que marca a relação em
jogo.

Ao nível das relações com o mundo invisível, também se nota uma hostilidade latente. Os
espíritos dos antepassados, entre os quais incluem-se os donos das flautas iyamaka, são

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potencialmente castigadores dos Haliti, principalmente quando estes são deficitários em termos
de cuidados com os artefatos rituais ou não observam o cumprimento das regras para realização
dos rituais oloniti. A esfera disciplinadora destes espíritos está, portanto, diretamente
correlacionada com a atenção sobre os rituais, e outras práticas deles derivadas. A agência
destes espíritos é devastadora, e pode culminar na morte de um indivíduo. Essa elaboração
corrobora um sentido em que o conflito e a hostilidade são elementos latentes em ambos os
níveis, sociológico e cosmológico.

Entretanto, apesar de potenciais e latentes, tais conflitos são administrados com maestria pelos
Haliti, principalmente através das oferendas alimentares e da realização dos rituais oloniti.
Nestes, seus inimigos potenciais tornam-se convidados de seus banquetes, recebidos com farta
comida e performance musicais – uma estrutura recorrente nos rituais ameríndios. No
entendimento Haliti, os convidados de outras aldeias devem ser recebidos sem que nada os
falte, bem tratados com comida e bebida abundantes. Da mesma forma, os espíritos dos
antepassados, encarnados nos corpos dos festeiros – os performers musicais por excelência –
são recebidos com abundância, satisfazendo-os e assim domesticando sua agência através da
comensalidade. A distância e conflito eminentes são revertidos em proximidade, uma
pacificação da inimizade potencial através da partilha alimentar – sendo a comensalidade a base
para construção do parentesco (COSTA, L., 2013). No nível da produção de parentesco, os
rituais oloniti lidam, portanto, com alianças virtuais, já que, enquanto grupos originalmente
endogâmicos, o casamento entre anfitriões e convidados seria praticamente impossível.

Os rituais oloniti operam, portanto, uma transformação no status das relações entre categorias
de “outros-distintos”, inicialmente marcadas pela inimizade e hostilidade que, ao final, são
revertidas em aliança e cooperação. Operando em dois níveis distintos, porém complementares
– por um lado, humano, visível e sociológico, e por outro, espiritual, invisível e cosmológico –
a dinâmica dos rituais oloniti revela que a atualização destas relações é algo tão necessário
como inevitável para a sobrevivência dos indivíduos e a reprodução social. A potencialidade e
a efetividade das relações são postas em jogo e manipuladas durante o ritual.

Tal associação entre homens e espíritos dos antepassados é complexa, pois além de colocar em
jogo a tensão entre ancestralidade e alteridade, exige um deslocamento conceitual e perceptivo
que permita assumir a sua possibilidade de ocorrência. A descrição do ritual de flautas yakwa

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do grupo indígena Enawene-Nawe, parentes históricos distantes dos Haliti, ilumina em muitos
pontos o ritual oloniti: ao chegar ao terreiro, os pescadores da aldeia representam a
agressividade dos seres subterrâneos, que chegam para a festa “representados” (ou
corporificados) nos corpos humanos com suas flautas, e têm de ser domesticados através da
oferta de alimento. Os anfitriões (ou donos de festa) têm de cuidar para o bom andamento do
ritual, principalmente para que não falte comida aos festeiros-espíritos:

Os anfitriões hari-kare, que se concebem como humanos, ali representam


metonimicamente os Enawene Nawe como um todo. Enquanto isso, os homens que
chegam das expedições [de pesca] representam metaforicamente os espíritos
subterrâneos que invadem agressivamente a aldeia. Pouco a pouco, o grupo dos
anfitriões doméstica o grupo dos espíritos, fazendo com que estes se abaixem e
comam sal em suas mãos. O encontro desses dois grupos é marcado por uma sucessão
de cerimônias que incluem falas ritualizadas, danças, execução de peças cantadas e
instrumentais, sob a responsabilidade exclusiva dos pescadores, representantes da
alteridade. Os anfitriões limitam-se a ficar sentados em torno dos círculos de dança, a
manter acesas as fogueiras que iluminam o pátio e aquecerem os espíritos cantores, e
a cuidar para que não lhes falte comida. (SILVA, M., 1998, p.39)

Em ontologias relacionais, o conceito de “representação” evocado pelo autor não parece ser o
mais adequado; alternativamente, nestes casos, poderíamos pensar em presentificação,
mediação ou corporificação. É interessante notar a observação de que os “representantes da
alteridade” são os performers e executores musicais por excelência, enquanto os anfitriões
lidam com a domesticação através da oferta alimentar. A “domesticação” é operada através de
dois idiomas, entremeados durante a realização de ambos os semelhantes rituais: o alimentar,
através da oferta abundante de alimentos; e o musical, ou “sucessão de cerimônias, que incluem
falas ritualizadas, danças, execução de peças cantadas e instrumentais” (SILVA, M., 1998,
p.39). Há aqui uma relativa equivalência estrutural em termos de relações do tipo
produtor/receptor colocada em cena: enquanto o grupo dos anfitriões é responsável pela
“oferta” alimentar ao grupo dos festeiros-espíritos, que consomem idealmente toda a chicha e
alimentos ofertados, por outro lado, o grupo dos festeiros é responsável pela “oferta” musical
aos anfitriões, elementos sonoros consumidos através da audição dos receptores. É uma
dinâmica de compartilhamento e troca, que resulta no apaziguamento das relações.

Temos dois elementos de interesse mitológico evocados nesta etapa de realização da festa, que
é o convite de outras aldeias e a reza para caçada coletiva. Referente ao conteúdo do convite
manati, temos a evocação da história de origem da mandioca, que é o alimento base para a
preparação da chicha da festa (além de beijus e farinha, também consumidos). Em relação a

71
fetalati (ou olititsezahe), que é uma reza para a caçada coletiva, temos a evocação da história
de origem dos animais de caça, que constituem da mesma maneira a base da alimentação
durante a festa. Temos, portanto, uma temática que resgata a temporalidade da origem mítica
de ambos os elementos, assim como uma referência ao idioma alimentar, já que ambos os
elementos – mandioca e animais de caça – serão consumidos durante a festa que se seguirá. A
estrutura sugerida por esta fase de convite de oloniti kalorese mobiliza, portanto, a origem de
ambos os alimentos cerimoniais privilegiados durante o ritual.

2.2.1 Harekahare manatiya aiymitikwa haretiya haolone fahare (convite de outras aldeias
pelo dono de festa)

A partir da gravação de campo deste manati, vemos que sua estrutura reúne dois temas
principais: primeiro, traz elementos que remetem à formalização do convite, narrando sobre o
andamento da preparação da festa, motivada pelo nascimento de crianças que precisam ganhar
nome, e dizendo que toda a família anfitriã possui a mesma intenção, representada pelo
mensageiro, de receber os convidados para a festa que está sendo preparada. É um tom
pessoalizado de fala, que aparece no início e no final do manati, como vemos a seguir:

Akoeyehena natiyo… Eu estou chegando aqui...


Nonatyorenae... Meus cunhados...
Notyauneronae, nozaitsenae, notxietyonae... Minhas primas, minhas sobrinhas, minhas netas...
Kozaka nozotya zematyaka namohena jitso… Eu já estava lembrando de vocês...
Maitsa natyorotahare jini… Eu não estou vindo sozinho...
Notya zemahena jitso… Lembrar e convidar vocês...
Kozaka owene… Já agora...

Zoare jitahalo jetxiyetyo jityane mawayahokoli Esse convite é das suas sobrinhas, suas primas, suas
atyone kahotse henokware nea zoimya kaitsaniti tias, como elas tem crianças pequenas para ganhar
hiyeta, zotya zematyaka mohena jitso… nome, por isso que eu estou aqui fazendo convite
pessoalmente para vocês...

Nea ho… Foi assim...


Ozaka owene naohetehena, ozaka jikazonyatsera Agora viemos com muito respeito, por isso que
tyaka, jikazaoloni ditse haretyaka, jikatataola tyaka estamos convidando vocês, para não acontecer mais
ozaka naohetehena, jiyeheta ozaka zotya zematyaka desentendimentos com o seu pessoal, com a sua
namohetehena jitso… comunidade...
[...] [...]

(AZ_08112017_025)

E no final:

72
[...] [...]
Hetati zowakia… Desde o surgimento...
Ozaka… Agora...
Kaotya kehenere zowakia… Desde que ela surgiu...
Nonatyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsonae … Minhas sobrinhas...
Notyauneronae... Minhas primas...
Nea ho … Foi assim...
Ozaka owene zotya zematyaka namohena jitso, Agora já estou aqui respeitando seu terreiro, fazendo
maiminikwatyaka zawena nekwa jiwetekone convite a vocês, porque suas sobrinhas, suas tias, suas
namohena ozaka, owene ozaka maitsa natyorota primas estão com os filhos pequenos para ganhar
hare jini, ozaka maika, zaimitikwaharetiyaka nome, elas que demandaram para fazer esse convite
namohena, jitso ozaka wayeize, ozaka jiaetso, pessoalmente a vocês, não é só eu que estou
jityane, ozaka kahotse henokwarene, hamawa convidando vocês, todos os outros também estão
nehalo, hamawa nehare, hiyeta zotyazematyaka convidando vocês...
namohena jitso…
Nonatyorenae... Meus cunhados...
Notyauneronae... Minhas primas...
Nozaitsonae … Minhas sobrinhas...
Aoheta ozaka haolazo tohatse zotokwa Elas já avisaram que vocês podem comer beiju, carne
walokoetyaka, haetxidya zotokwa idyaka haoheta de caça, tomar chicha, que elas prepararam para
jiehiyeta, ozaka zotya zematyaka namohena jitso... vocês, só vocês podem fazer isso por elas...
Nea ho… Foi assim...

(AZ_08112017_025)

Vemos que é recorrente nas diversas formas de artes verbais o uso da parcialidade (são
evocados apenas trechos ou privilegiados alguns elementos dos mitos, que quando narrados
possuem muito mais detalhes) e da repetição (estrofes/conjuntos praticamente iguais, com
pequenas variações) como recursos comunicativos. Esta forma expressiva é reiterativa, e
sugestiva, apontando para uma técnica mnemônica. Este mesmo manati traz fragmentos da
história de Kokotero e Zatyamare, os pais da menina cuja transformação dá origem à mandioca.
De fato, a mandioca é o principal alimento cultivado pelos Haliti, sendo talvez o alimento com
maior grau de “domesticação”: plantam diversos gêneros de mandioca diferentes, não somente
nas roças distantes, mas também ao redor das casas da aldeia. Além disso, em toda aldeia Haliti
há roças de mandioca, pois ela é a matéria-prima para produção da chicha, alimento ritual por
excelência. Os seus múltiplos subprodutos, derivados de seu processamento, consistem na base
da alimentação cotidiana e ritual: da mandioca produzem os diferentes tipos de chicha – kazalo
e oloniti – além de beijus e farinha torrada.

A história de Kokotero, como é conhecida entre os Haliti, me foi contada da seguinte forma:
desde que a filha de Zatyamare e Kokotero nasceu, ela ficou cheia de verrugas. As verrugas no
corpo da menina correspondem ao aspecto físico do caule da mandioca, que possui diversas
protuberâncias em sua superfície. Seu pai, Zatyamare, não dava atenção à filha, o que a deixava

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chateada. Certo dia, a menina pediu à sua mãe Kokotero que a enterrasse. Primeiro, a mãe dela
a plantou no campo, porém ela não gostou do lugar, pois dava muita coceira no seu corpo. Pediu
então que a enterrasse na mata, perto de onde seu avô fazia uma roça, onde tinha queimado pés
de jatobá para isso. Assim foi feito e ela gostou da terra e do lugar. Disse então para sua mãe
Kokotero que ali estava bem, iria ficar ali, e que sua mãe poderia ir embora em paz, porém,
recomendou que quando escutasse o seu grito, que não virasse para trás para ver. Na forma do
manati, a história é verbalizada como se segue:

[...] [...]
Nonatiyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsenae … Meus sobrinhos...
Notxiyetiyonae... Minhas netas...
Nea ho… Foi assim...

E aotseta ozaka, hetati zowakia, ozaka hafitya natyo Então agora, como desde o surgimento, eu falei para
ama Kokote nehena ozaka, babare Zatyamare, você me enterrar, estou muito triste mamãe Kokotero,
babare Aolomenare, maitsa azare natyo aba nomi acho que meu pai Zatyamare, Aolomenare, não gosta
zakore, miyatitata nomani, nehena... de mim, eu o chamo de pai, mas ele não responde
Hetati zowakia… nada, só assobia pra mim...
Nea ho… Desde o surgimento...
Foi assim...

E aotseta ozaka, tawaretse ohitsare tsekinyo, fehena Então agora minha mãe Kokotero, você pode me
Kokotero haytsani mayhano ama malidyetseta enterrar bem embaixo dos pés de árvores, eu não
nokozonidyetse, nototoniditse, hayemyamakwatya gostei daqui, meu seio ficou coçando muito, agora
natyo mahiyare tolyakota nezehena, hayemyamakwa você pode me enterrar na mata aonde meu avô fez
hitiyene… fogo, acho que ficarei bem lá nesse lugar...
E aotseta… Então...
Nea ho… Foi assim...

E aotseta ozaka, hayemyamakwa hitiyene, mahiyare Então agora minha mãe Kokotero, você pode me levar
tolyako, ozaka e aotseta, maitsa nomare hareta, na mata aonde meu avô Iyonoretse fez a roça,
nozamatseno ama, Kokote, nehena hamitikwaheta queimou as arvores de jatobá, lá que vou ficar bem,
nokakoi atyotyo, nitimaotse Iyonoretse nitimaotse, vou falar pra você minha mãe, quando eu gritar você
koloho timenerekoni ozali kerene henaotse nehena… não pode virar pra ver...
Kaotyakene zowakia… Assim ela se transformou...
Nea ho... Foi assim...
[...] [...]

(AZ_08112017_025)

O grito era para a flauta zeratyalo, a varinha iohohô e o chocalho waore, que iriam protegê-la,
e beber sua chicha. A mãe já estava longe quando ouviu o grito de iyamaka, e não respeitando
a recomendação da filha, olhou para trás. Os pés de mandioca eram originalmente grandes,
passando da altura das árvores da mata. Porém, quando Kokotero desrespeitou a recomendação
da filha e olhou para trás, a mandioca abaixou, diminuiu, ficando baixa e pequenina, como é
conhecida hoje. Era um só pé de mandioca, e a menina novamente pediu a sua mãe que tivesse

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cuidado ao tirar suas raízes, que a cortasse devagar. Foi então que certo dia um ladrão, malvado,
quebrou o pé de mandioca bem no meio, despedaçando-o, e todo seu polvilho de dentro de seus
galhos escorreu e grudou em outras árvores que tem leite, como a seringueira e a mangava.
Quando sua mãe voltou para recolher seus pedaços, dividiu seus galhos e plantou-os em
diferentes locais, dando origem à mandioca mansa, mandioca brava, mandioca d’água, e outras
variedades de que os Haliti fazem uso. Assim criaram-se os primeiros mandiocais e
diversificaram suas variedades, ficando a recomendação da filha de Kokotero para que, quando
fizessem seu uso, tomassem cuidado, e oferecessem caça, peixe, que assim ela ficaria ali para
alimentá-los para o resto de suas vidas (ZEZONEZOKEMAE e ZOZMOIZOKAE, 2017).

[...] [...]
E aotseta mitikwaheta ekakwa, fehenene ozali kere Então mamãe Kokotero levou-a na mata, lá ela se
henaotse, e aotseta wainyamaharenika sentiu muito bem, falou para mãe, aqui eu vou ficar,
nozamatsehare ama, Kokote, awaydya ozaka quando eu gritar o grito de flauta Zeratyalo, da vara
aterehokwa hiyaeyehena atxikini maniya itetyaete Iohohô e Waore, não pode virar para ver, vou me
nakawihena neratsehare Zeratyalo Waore Iyohoho transformar em vários tipos de mandiocas, por isso
kawiyala nakawihena tyaete ama Kokote nehena… não pode virar para trás, minha mãe Kokotero...
Ozaka… Agora...
Nonatiyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsenae … Meus sobrinhos...
Malo zoimyanae... Minhas filhas...
Nea ho… Foi assim...

E aotseta babaidya aitsehena zorewa haitsehena, Então quando você chegar fala para meu pai, pra
notiholahaloni maheta, babaidya haitsehena, hozore pescar trairão [usa pra oferecer pra flauta], para usar
haitsehena, notimekitxi maheta, babaidya como minha lenha, matar tatu bola, para eu ter mais
haitsehena, ozaka wamotse haitsehena, hetsenidya raiz na terra, preciso dessas caças pra mim...
nomani, nozaekehehaloni maheta …
Nehena… Ela falou...
Nea ho… Foi assim...

Babaidya haitsehena, hotxika haitsehena, Você manda meu pai pescar peixe piraputanga, para
hetsenidya nomani notxikehehaloni maheta baba eu ficar mais bonita, para ele fazer peneira pra mim,
haitsehena, hetsenidya nomani, babaidya para ser meu banco de sentar-se, preciso dessas coisas
tyomehena hatyoayedya tyomehena, nokahakali minha mãe, pede para meu pai providenciar...
maheta taydya ababa tyomehena, atyoa tiyomehena [...]
nehena…
[...]

(AZ_08112017_025)

A menina-mandioca, ao primeiro sinal de sua existência, realiza o grito de flautas para dizer
quem seriam os seus consumidores privilegiados, ou bebedores de sua chicha, neste caso as
flautas. A mandioca vem a ser um novo elemento a ser oferecido para as iyamaka, já que, antes
da menina-mandioca, as oferendas para iyamaka eram feitas através de outros elementos:

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Quando não existia mandioca, na época, no tempo de Wazare [...] Wazare tava
ouvindo barulho de iyamaka, daí perguntou pro pai dele, chamado Zaulore, papai, eu
preciso iyamaka, eu tô achando ele bonito, toca bonito. E o pai dele falou pra ele, não
meu filho, iyamaka é complicado pra cuidar, nao tem aonde você encontrar comida
pra ele, oferecer, não tem aonde voce encontrar caça pra oferecer. Não papai, eu
consigo, consigo fazer oferenda para ele, eu vou oferecer pra ele veado, ema, as caças
que eu vou oferecer pra ele, eu vou oferecer pra ele água de zotehe, e água de
kaxalawalose, que é uma fruta, daí que começou a receber as flautas.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

A história da filha de Kokotero aparece no manati relacionada à flauta sagrada zeratyalo e à


varinha companheira de flauta iohohô. Esta relação entre a mandioca e as flautas aparece ainda
mediada por duas ações correlatas: o grito da menina enterrada, caracterizado como um “grito
de flauta”, utilizado para convocar e chamar as flautas iyamaka para beber sua chicha (estes
mesmos gritos de flauta são realizados durante o início da performance de iyamaka no pátio
durante os rituais oloniti, com a mesma finalidade, de chamar as flautas para beber a chicha
oferecida); e a visão da mãe da menina, Kokotero, que não respeitando a recomendação da filha
vira e olha para trás quando a menina está chamando as flautas iyamaka. O desrespeito pela
mãe da menina de sua recomendação de não olhar para trás tem como consequência a
diminuição do tamanho de sua filha, transformada na espécie vegetal da mandioca. Sugere-se
aqui uma relação com outra restrição imposta às mulheres, que é a proibição de visão das flautas
iyamaka.

Conforme explicada por Zezonezokemae, as histórias de iyamaka e Kokotero estão


correlacionadas:

Assim que começa, para tratar dessa flauta sagrada, por isso que até hoje a gente tem
que ter sempre mandioca brava, mandioca mansa, mandioca de água, que é a melhor
pra oferenda, kazalo que é a melhor, porque tem vários nomes do kazalo, tem kazalo
simples, tem kazalo que você não pode beber ele sem oferenda, tem até kazalo
sagrado. Assim que é a história de como surgiu para tratar de oferenda pra iyamaka,
porque Kokotero enterrou a filha, aí ficou tudo pra eles... antes dela virar mandioca já
tinha falado pra mãe dela avisando que esses que vão beber minha chicha, meu
polvilho, comer meu beiju, esses que vão comer minha raiz, tem que oferecer tudo de
mandioca, por isso que história de iyamaka e de Kokotero estão juntas.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Antes da possibilidade de fabricação de chicha de mandioca, os antepassados dos Haliti


utilizavam-se da extração de líquidos de outras árvores, frutos ou sementes para a mesma
finalidade, que era consumir e oferecer esta bebida para as flautas. Somente então a partir do
surgimento da mandioca é que passam a fazer a chicha tal como hoje em dia. Conforme narrado

76
pelos Haliti, originalmente, no tempo mítico, a chicha era produzida a partir das sementes de
uma árvore do mato, que é a sumanera (matsayero). Esta chicha, porém, era muito mais forte
para o consumo:

[...] Tomava dois goles e já ficava tonto, não aguentava mais [...], por isso que essas
corujas, esses passarinhos, no passado, começaram a brigar na festa, começaram a
brigar um com o outro, daí viram que não dava certo [...] daí uma menina, Kuymatero,
chegou lá, ela estava com menstruação né, daí lambeu a chicha [...] daí acabou o
líquido dela, abaixou tudo, ficou normal. Agora ficou bom para tomar chicha,
melhorou tudo, se não fosse isso, hoje ninguém toma essa chicha mais, todo mundo
brigava, era muito forte. (ZOMOIZOKAE, 2017)

O “amansamento” da chicha, inicialmente muito forte para o consumo e por isso


desencadeadora de brigas entre os que a tomavam, ocorre através de um aprimoramento do seu
processo de produção, resultado da intervenção de uma menina menstruada, que “lambe” a
bebida tornando-a mais fraca e própria para o consumo. Esse episódio se relaciona à técnica
atualmente utilizada para processamento da chicha oloniti, que tem como etapa a mastigação
feminina que, conforme explicação, serve para limpá-la, ou tirar seu veneno, tornando-a apta
ao consumo:

O polvilho [de mandioca], eles torram ele, bem torrado, daí depois de torrado faz um
mingau, do mingau que vai jogar água, aí ele começa a limpar todinho, limpar a
mandioca, tira o veneno dela, daí acaba tudinho, vai começar a melhorar a chicha, daí
vai mastigar ela com farinha essas coisas, vai limpando, a mulher mastiga, porque daí
tira tudo, limpa tudinho, fica só a água, fica limpinho, pra isso, se você não faz isso,
fica igual melado, fica forte. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Esta elaboração mítica e prática correspondem ao fato científico de que a mandioca-brava,


variedade utilizada para se produzir a chicha do tipo oloniti, contém em sua composição uma
substância tóxica – o ácido cianídrico – que a torna inapta ao consumo em forma crua, conforme
coletada, sem processamento. As técnicas envolvidas na fabricação da chicha oloniti, portanto,
visam retirar o seu veneno e, portanto, torná-la apta ao consumo humano – domesticando assim
suas propriedades venenosas. Trata-se de uma domesticação ao nível das substâncias que se
reflete no nível das relações, já que substâncias aqui são concebidas como gente, e sua
transformação e manipulação presume uma relação entre sujeitos. As mulheres têm um papel
fundamental nesta limpeza e amansamento da chicha, já que é a sua saliva a substância cuja
interação tornará a chicha boa e apta ao consumo.

77
2.2.2 Olititsezahe ou fetalati (reza para caçada)

Durante a estadia do mensageiro na aldeia convidada, durante a madrugada e dentro da casa


onde está sendo recebido, ele proferirá a reza antes da caçada para a festa, uma forma verbal
que tem a finalidade específica de indicar ritualmente os locais – a etimologia do termo remete
ao sentido de “delimitar” (fetalakwa) – onde será realizada a caçada coletiva e assim
consequentemente aumentar a disponibilidade de caça. Durante o fetalati podem ser também
realizadas oferendas de chicha e tabaco para os espíritos donos das caças, de modo a facilitar a
empreitada que se seguirá. O mensageiro pede para os convidados se unirem para a caçada,
indicando os locais para onde irão, e narra o mito de origem dos animais de caça, que
constituem, junto com a chicha, a base da alimentação durante as festas de chicha.

Esta reza conta a história da origem dos animais de caça que vivem nos campos. No início, não
havia animais nos campos, apenas “misturas” que não prestavam, como pó de madeira, areia
vermelha e larvas. Wazare pede então para seus filhos fazerem uma oferenda de chicha de
polvilho, de modo a criar os animais do campo. Os animais são criados-transformados e
mandados a viverem nos campos. Conforme explicação de Zezonezokemae, os animais de caça
são o produto da transformação de pessoas Haliti – “como a gente”, “pessoa nossa” – que, da
mesma forma que a menina filha de Kokotero, sofrem transmutações de seus corpos assumindo
uma forma distinta.

A caça também é a mesma coisa, como veado e ema são a melhor qualidade pra
oferecer [...] veado era pessoa nossa, ema era pessoa nossa, Wazare fez eles virarem
animais, igual Kokotero, que Wazare mandou os filhos dos outros, como ema esticou
o pescoço, esticou a perna, mandou ele pra fazer a oferenda mesmo, pra flauta mesmo,
veado mesma coisa. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

No início, entretanto, não conseguiam caçar os animais com maestria. Eles fugiam e
gritavam/falavam como os Haliti, assustando seus caçadores. Wazare orienta seus filhos então
a utilizar-se de uma mistura de barro (maohe, um tipo de barro, palavra científica) para jogar
na boca do veado e assim transformar também seu grito/voz.

Quando primeiro Wazare mandou filho dele pra matar o veado, com embaya na frente,
quando viu ele correu, aí ele voltou: Papai, eu vi ele correu, tira o embaya, vai sem
embaya nele. Daí tirou o embaya, foram sem o embaya nele, devagar, chegou até no
veado, atirou no veado, acertou, gritou, gritou igual grito de gente, ahhh, ahhhh,
gritou. Ai ele voltou: Papai, eu matei o veado, mas ele grita igual a gente mesmo. Isso

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aí está dando sinal pra acontecer alguma coisa errada pra nós meu filho. Daí jogaram,
não sei como se chama, não sei qual mistura que chama, tal de maohe, jogou na boca
dele, aí fizeram grito diferente, igual cabrito, o grito dele, antes era igual gente.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Em relação às emas, após tentativas frustradas de flechá-las, Wazare orienta seus filhos a fazer
um embaya, um artefato que serve como escudo de camuflagem e permite a aproximação do
caçador ao animal sem ser percebido. Assim, seus filhos finalmente obtêm êxito para matar a
ema.

[...] [...]
Matsekwa zarekwa maheta… Para ter caça no campo…
Ajikyahena… Ele mandou...
Kaholiahe natsetya… Fez o veado...
Katinihe katsetya… Fez a orelha grande…
Ajikeahena … Ele mandou...
Matsekware maheta… Para viver no campo...
E aotseta ozaka ajikyahena hianena hare Então mandou seu filho matar sua criação, que
wiwaikyala hare hatsene nehena, e aotseta, mandou para o campo, mas ele não matou nenhuma
txahenene zakore ozaka, e aotseta zanehena zakore caça, ele tentou flechar, mas não acertou nenhuma
enomana ozaka, e aotseta, ozaka kazaiyakohena caça, assim aconteceu para eles, o pai dele perguntou
nene ozaka tekwa hena, maitsa no aba, tekwaureka pra ele, não tem como meu pai, tentei flechar, mas não
nehena hamazaiakotene ohoka hijakene neaza, matou nada, pode fazer um embaiá para matar essa
zanehitya jahenene zakore ozaka, e aotseta… caça, assim foi que aconteceu...
[...] [...]

(AZ_08112017_003)

A história remete à origem do artefato embaya, até hoje utilizado pelos Haliti.

[...] depois foram pra matar ema, e ele foi sem embaya, daí quase chegando perto ele
correu, aí ele voltou: Papai, ele correu. Coloca o embaya na frente que você chega
nele. Daí colocou o embaya na frente e chegou até perto, matou uma ema, ema, o
usado pra matar e o embaya na frente, veado pode ser só tirar a roupa assim, pode ter
boné vermelho, camisa vermelha, você vai devagarzinho, chega até pertinho, você
mata, ele não corre, com embaya ele não corre. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Wazare aponta as localidades preferenciais onde as caças estão localizadas – nos campos de
mangaba, barbatimão, sambaíba, etc – dizendo que lá podem encontrar os animais frutos da
criação-transformação por ele desempenhada – ema, veado, seriema, tatu peba, perdiz, entre
outros. Orienta seus filhos dizendo que os animais foram criados para serem oferecidos junto
com chicha de polvilho.

[...] [...]
Eaotseta… Então...

79
Ozaka nehena… Já foi...
Aikiyawa hena… Assim ele mandou os animais no campo...
Wazare… Wazare...
Atiyolotihowero henoyere maheta… Para oferecer com chicha de polvilho...
E aotseta… E assim...
Ozaka, e aotseta maika jiehena nomani Agora vocês podem fazer caçadas para mim, para
Atiyolotihowero henoyere maheta, maika jiehena oferecer com chicha de polvilho, podem caçar todas as
nomani, ozaka alawere tyokere, alawere wahere, caças, ema, veado, seriema, tatu peba, perdiz, para
ozaka iyehena nomani, ahiyanare ozaka jiehena fazer oferenda, vocês vão caçar no campo de chumbo
kamolo totoloji iyhena nomani nonatytorenae, [koretse], no campo de mangava, no campo de
nazaitsenae Atiyolotihowero henoyere maheta, barbatimão, nesses campos ficam todas essas caças,
matawa hokwakota, koretsewinyakwata maika meus cunhados, meus sobrinhos, para oferecer com
jiehena nomani... chicha de polvilho...
Nonatytorenae… Meus cunhados...
Eaotseta… Então...
Maika jiehena nomani … Pode pegar para mim...
Atiyolotihowero henoyere maheta… Para fazer oferenda de chicha de polvilho...
[...] [...]

(AZ_08112017_003)

A necessidade de oferecer o alimento caçado é aqui enfatizada, pois entende-se que alguns
animais de caça possuem donos espirituais. Caso não sejam realizadas as oferendas, estes donos
podem indispor-se com os caçadores, enviando quaisquer tipos de castigo. Entre as diferentes
espécies animais, entretanto, há um tratamento diferenciado, conforme explicado pelo
interlocutor:

Ema e veado são os melhores pra fazer oferenda para flauta. Agora esse queixada
[porco-queixada] também [...], queixada é mais perigoso, mais do que outras caças,
agora esse catete [porco-catete] não tem dono, pode você matar e comer ele de
qualquer jeito, agora o queixada, se você matar uma queixada hoje, você não come
nenhum pedaço sem oferenda, pode comer só o bucho, um pouco de pele da nuca, e
só, aí você, o que você tirou alí você coloca tudo, cozinha, moqueia ele todinho,
primeiro você oferece ele, daí você come, porque esse daqui, os donos são Enoharese,
queixada, se você come ele de qualquer jeito, daqui um pouco você tá tomando
choque, dá raio, queixada que é o mais perigoso do mundo, é de Enoharese mesmo.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Os peixes, tem os rios que você pode pegar peixe e você pode comer ele sem oferenda,
ou pode oferecer, tanto faz, não faz mal, agora tem os rios que tem dono, são mais
perigosos, tem que oferecer antes de comer, se você pegou um, pode ser pacu, traíra,
se você pegou, tem que fazer oferenda pra Enoharese primeiro, pro dono, daí você
pode comer [...] tem os rios que são mais perigosos, que desde o início vem com essa
história, ah, aquele rio não é bom pra voce comer de qualquer jeito o peixe, tem que
fazer oferenda, pra você não pegar castigo. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

No final da reza, Wazare manda seus filhos para “dividir e fazer sinais no céu” – enokwa (céu)
fetalakwa (delimitar) maheta (propósito) – isto é, para virarem estrelas, formando desenhos em
diferentes partes do céu – cada um deles virando uma constelação. Cada filho recebe o couro

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de um animal diferente e se transforma em uma estrela ou constelação – como Wazolokware,
que recebe o couro da raposa e vira a estrela que brilha vermelho. Há, portanto, uma interessante
associação trazida por esta reza, entre a origem dos animais de caça e os nomes das constelações
do céu – já que, de fato, as constelações do céu possuem nomes de animais na cosmologia
Haliti, diferentes dos nomes com os quais estamos acostumados (como por exemplo Três
Marias, Cruzeiro do Sul ou Sete Cores) – assim como da origem do artefato embaya.

[...] [...]
Nonatyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsenae … Meus sobrinhos...
E aotseta Wazare ozaka ajikahena enokwa Então Wazare mandou seus filhos para o céu, para
fetalakwa maheta atyatsaninya ajikahena wahazani cada um deles fazer uma constelação no céu, cada um
ajikahena, hiane hena hare enokwa fetalakwa deles recebeu um nome, estrela Três Marias, Estrela
maheta, ozaka hiane hena, ozaka owene, makakiti Cruzeiro do Sul, estrela Sete Cores, todos esses foram
zewahakatyatse maheta, owene himalini parar no céu, cada filho foi virar uma constelação no
hikeyareharene wahakanore mili nehena… céu, e cada um deles recebeu o couro de um animal...
Ajikahenene... Ele mandou...
Wazare tyokoekati… O antepassado Wazare...

Eaotseta ajikyahitya enokwa fetalakwa maheta, Assim ele mandou mais um filho chamado anum
hiane hena enokwa fetalakwa, hare tikyaretsero vermelho para se apresentar no céu, para noite ficar
enokwa fetalakwa maheta, nea owene hikyaeare mais longa, você vai levar couro de um animal, vocês
harene tikare niho hoko, nea ozaka ajikahenene… é que vão se apresentar no céu, dividir o céu em
Zanehitya… constelações...
Enokwa fetalakwa maheta … Ele foi de novo...
Hiane hena hare… Para dividir o céu...
Enokwa fetalakwa maheta… Pode ir meu filho...
Hare Wazolokware… Para dividir o céu...
[...] Filho Wazolokware [raposa]...
[...]

(AZ_08112017_003)

Percebemos que tanto o manati utilizado para o convite quanto a reza fetalati utilizada para
organização das caçadas coletivas evocam as histórias de origem dos principais alimentos
consumidos pelos Haliti e oferecidos aos espíritos, tanto no cotidiano quanto durante os rituais,
sendo inclusive uma condição para realização destes. A associação da mandioca com as flautas
iyamaka sugere que a prática de oferecer alimentos às flautas é indispensável, de modo a evitar
sua indisposição. Em termos temporais, podemos sugerir que os animais de caça surgem depois
da mandioca, já que, conforme narrado no fetalati, uma das condições para seu surgimento é o
oferecimento de chicha de polvilho – atyolotihowero (palavra “científica”) – e que estes, após
criados para viverem nos campos, devem ser idealmente oferecidos junto com este mesmo tipo
de chicha. De fato, está sendo inaugurada a prática do “oferecimento”, de modo a alimentar as
flautas iyamaka, indicando quais são os alimentos privilegiados para se oferecer as flautas: além

81
da chicha de polvilho, os animais ema e veado. Todos os alimentos preferenciais para oferenda
às iyamaka foram “gente”, transformados em espécies animais e vegetais.

Conforme já verificado, as flautas são tratadas através dos termos de parentesco avó (abé), avô
(atyó) e bisavô (azé). Percebemos, entretanto, que no caso Haliti não basta apenas classificá-
las, atribuindo-as um termo de parentesco. Fazem-se necessárias uma série de outras técnicas
de ação que devem ser desempenhadas a fim de familiarizá-las, controlando assim sua agência
(e indisposição) sobrenatural. Há assim um claro interesse dos Haliti em tornar tais artefatos
parentes, familiarizando-os a partir da coresidência (construção e manutenção da casa de flautas
dentro da aldeia), alimentação (através da oferta de chicha e carnes de caça defumadas) e
cuidado/proteção pela família de seus donos/chefes. Somados à classificação como parentes
próximos e verdadeiros (“consanguíneos”), tais práticas apontam para um tratamento que visa
a produção de uma pessoa de fato, inserindo-a no convívio social não conflituoso.

Os alimentos oferecidos às flautas nos dão ainda mais pistas sobre as condições de
familiarização de tais subjetividades. São eles principalmente a chicha do tipo oloniti, feita de
mandioca brava, e as carnes de caça, ambas substâncias potencialmente venenosas para os
humanos, e associadas a subjetividades do tempo mítico, marcado por uma “humanidade
original” e um caráter transformacional (PEREIRA, 1986, 1987). No caso da mandioca brava,
principal gênero de cultivo Haliti (que sempre é cultivado em roças próximas às casas das
aldeias, indicando certo grau de domesticação), há uma associação da espécie vegetal a uma
pessoa, a menina que teria sido transformada após ser enterrada. A manipulação da mandioca
brava para produção da chicha do tipo oloniti reforça a associação das flautas iyamaka com
venenos – sejam eles contidos nos animais, nos feitiços ou nas plantas. Do ponto de vista da
espécie vegetal, a mandioca-brava seria uma planta-feiticeira, já que sua capacidade de “conter”
veneno torna sua agência semelhante à uma pessoa-feiticeira – isto é, capaz de atingir outras
pessoas. O produto bruto da colheita é assim nocivo e venenoso, e deverá ser gradualmente
manipulado de modo a torná-lo apto ao consumo: a mandioca brava deverá ser processada de
modo a retirar seu suco venenoso (ácido cianídrico), posteriormente cozida e fermentada
através da adição de saliva feminina, para assim tornar-se chicha oloniti, própria ao consumo
humano. Por analogia, vemos operam uma série de procedimentos de modo a tornar
gradualmente “mansa” a mandioca “brava”, numa similitude ao processo de extração de
generosidade de um fundo hostil. Estas observações ressoam com outras interpretações

82
amazônicas, como por exemplo entre os Piaroa (OVERING, 2006) e Yekuana (GUSS, 1989),
que tematizam o processamento e controle dos “venenos” para construção da vida social.

Assim como a mandioca brava, as carnes de animais caçados são potencialmente hostis,
podendo causar doenças e morte aos seres humanos. A carne de caça, após abatida, torna-se
potencialmente venenosa, já que o sangue é vertido para fora dos corpos dos animais. Para ser
consumida, deverá ser manipulada através da defumação no jirau, que secará e eliminará o
sangue, tornando-a apta ao consumo. Note-se que aqui é o sangue – paralelamente ao “suco”
da mandioca – a substância venenosa que deve ser gradualmente eliminada para que a carne
seja consumida sem causar malefícios. Se assim como em outros grupos amazônicos o sangue
pode ser uma substância veículo do espírito, a sua eliminação é também a eliminação de agência
– tornando o consumo, que é também uma incorporação e forma de relação, seguro.
Complementarmente, antes de consumida a carne de caça deve ser oferecida aos seus espíritos
donos e antepassados, através de rezas específicas. Se não forem realizados tais procedimentos,
os espíritos “donos” dos animais poderão se indispor, enviando doenças ou malefícios aos
caçadores ou àqueles que os consomem. É importante sublinhar a complexidade e sobreposição
das lógicas sacrificiais e predatórias, já que em ambos os casos as espécies animais e vegetais,
por possuírem “donos”, são negociadas e, portanto, cedidas aos Haliti. Por outro lado, a
extração violenta destas espécies, dispersando seus venenos contidos, é um indicativo de que a
relação possui um caráter predatório, que deverá ser compensado. São, portanto,
complementares as técnicas de processamento alimentar – depuração da chicha e defumação
da carne de caça – e de verbalização – entoação de rezas – para tornar os alimentos não-
venenosos e, portanto, aptos ao consumo – ou, na perspectiva da relação, domesticados e
familiarizados.

Promovendo a comensalidade nos níveis sociais e cosmológicos, que estão imbrincados, e


domesticando aquilo que é distante e perigoso em algo socialmente próximo e consumível,
almeja-se sobretudo a transformação de atos predatórios em atos produtivos – alimento próprio
ao consumo, relação não-conflituosa entre subjetividades e afirmação de parentesco através de
familiarização/domesticação. A fabricação de parentesco é uma lógica operante em diversos
níveis da sociocosmologia Haliti que descortina um ambiente potencialmente conflituoso,
hostil, venenoso, composto por uma série de subjetividades e agências com as quais os Haliti
têm de lidar constantemente, englobando-as e familiarizando-as. Este parece ser o sentido

83
próprio da relação para os Haliti: relacionar-se é, acima de tudo, familiarizar, trazer para dentro,
tornar próximo, projetar naquilo que está distante, no afim potencial, a possibilidade de ser
Haliti. É importante sublinhar, entretanto, que as categorias de “outro” com que se estabelecem
alianças, marcadas pelo estranhamento e, portanto, caracterizando a afinidade potencial, são na
verdade àqueles que já foram Haliti, trazendo consigo a marca da identidade original. Não se
trata de qualquer “outro”, mas sim de um “ex-Haliti”, com quem se atualizam as relações no
presente. Apesar de reconhecer a hostilidade latente do cosmos – personificada nos feiticeiros
(tihanare/tihanalo), espíritos, animais e vegetais – os Haliti não reagem a este fato como se
estivessem em meio à uma guerra. Antes, parecem possuir todos os antídotos para o conflito,
que digerido pelo meio social, torna possível “[...] a construção bem-sucedida da vida diária”
(OVERING, 1999, p. 87)24.

2.3 OFERENDA DA FESTA E ABERTURA DO TERREIRO

No dia de início da festa, dentro das casas, as mulheres dão continuidade ao processamento
alimentar e à preparação das oferendas dentro da casa anfitriã. O alimento é um dos elementos
primordiais para a realização da festa. Com o passar dos dias, acumula-se grande quantidade
de carnes de caça (emas, seriemas, veados, porcos-do-mato, pacas, tatus) e pesca, que vão
sendo defumadas ao fogo durante todo o dia para assim não estragar. Chegam também grandes
quantidades de banana e batata doce colhidos da roça, além de alguns alimentos
industrializados, comprados na cidade, como sucos, balas, refrigerantes, pães, açúcar. Todo o
alimento é reunido em torno do esteio central da maloca (kotaza), pendurados em diversas
forquilhas de madeira (haliare tyoako), aonde vai se caracterizando fisicamente, espacialmente
e esteticamente a oferenda. O esteio central, além de sua importância estrutural na constituição
física da maloca, é o abrigo da flecha de curar (korewayese)25 e das flautas de pan (zero): local

24
Conforme sintetizado por Kelmer (2018) “[...] a construção bem-sucedida da vida diária (OVERING, 1999, p.
87) é feita a partir e contra um fundo de perigo e predação que é o próprio material da realidade tranquila da
consanguinidade. Essa construção deve ser feita a todo instante. O fundo de predação no qual se extrai a figura da
sociabilidade pode facilmente irromper em meio à vida cotidiana, e, quando esse rompimento ocorre, muitas vezes
a afinidade englobada no interior do grupo local pode ser a instância na qual a potência e a predação irão se
manifestar. Ou seja, a (quase) identidade é um esforço constante de extração da alteridade anterior e exterior: toda
consanguinidade é antes uma não-afinidade” (KELMER, 2018, p.7).
25
“Flecha de curar: kore waye; kore: flecha; waye: bonito. Flecha bonita. A flecha de curar não tem ponta [...] fica
dependurada no esteio-chefe e é muito respeitada. Serve para curar e tirar feitiço. Como quase todas as doenças
são atribuídas ao feitiço, ‘flecha de curar’ e ‘de tirar feitiço’ são praticamente sinônimos [...] Como as flautas-
secretas, sempre tem de fazer chicha pra ela [...] É companheira de Enoré. Haliti diz que se a gente sonha com a
flecha de curar, morre” (PEREIRA, 1986, p.76).

84
onde ficam penduradas e onde são feitas as oferendas no dia a dia e durante os rituais.

Constituem a oferenda, antes do início da festa: carne de caça e peixes moqueados, beijus de
mandioca, grandes quantidades de chicha colocadas dentro de cabaças e/ou dentro do cocho
de buriti, bananas, batata doce, além de refrigerantes, sucos, cigarros industrializados, xampus
e sabonetes, roupas e calçados. Antigamente, nas festas ofereciam-se basicamente carne, peixe,
beiju, chicha e tabaco, sendo os outros elementos agregados à oferenda com o passar do tempo.
Esta assimilação de produtos da cidade nas oferendas revela fronteiras fluidas, um sinal dos
longos anos de contato, que se manifesta no discurso ritual. As outras malocas (hati ou “casa
tradicional”) da aldeia também fazem oferendas em torno do esteio central, em menores
quantidades.

Os pajés (waidyatare) e anciãos são presenças indispensáveis durante oloniti. Eles


acompanham a preparação e o andamento do ritual, observando se estão sendo cumpridos os
comportamentos e restrições das quais depende o bom andamento da festa. São eles também o
repositório das tradições, mestres rituais que conhecem as maneiras corretas de se proferir as
rezas, oferendas, diálogos cerimoniais e aconselhamentos, tanto em forma quanto conteúdo,
estando sempre atentos e responsivos para as situações que se desenrolam em torno de oloniti.
O pajé é o responsável pelas oferendas e pela comunicação com os espíritos invisíveis, sendo,
portanto, um especialista. Como hoje em dia são poucos os pajés entre os Haliti, alguns anciãos
cumprem esta função de maestria ritual. Suas presenças na aldeia anfitriã visam garantir que
tudo ocorra bem na fase de preparação. Cabe também aos especialistas a renovação das flechas
de curar korewayese de cada casa, trocando suas penas (uma de arara vermelha e outra de
gavião) e adornos de linha de algodão colorida (que chamam de “gravatinhas”). Este trabalho
somente deve ser feito por pajés ou anciãos, que já detém experiência para tal.

O pajé visita todas as casas que possuem oferenda em torno dos esteios centrais, e ali trata de
oferecê-las aos espíritos protetores através de rezas do tipo idyaete. Diante da grande oferenda
da casa principal, que ocupa grande espaço dentro da casa, o pajé irá oferecer toda a chicha da
festa, uma reza que pode durar várias horas e se estende até o meio da tarde. Neste momento
ele está solicitando aos espíritos protetores que zelem pelo bom andamento da festa e
convocando-os a receber aquelas oferendas, num extenso discurso proferido verbalmente que
evoca uma série de imagens de sua mito-cosmologia – domínios imbrincados e mutuamente

85
constituintes. Sobre esta reza de oferecimento, Zomoizokae explica:

Quando oferece [...] conversando com o espírito e oferecendo pra comer, esse aí é
seu [alimento]; mas quem come é o pessoal que tá por ali perto da casa, na aldeia;
oferecer é só a fala, depois quem come é quem tá por ali; os velhos, quando oferecem,
tem que passar meia horinha pra oferecer, falando que a comida é de vocês [dos
espíritos]; oferece pra Enoré, utyahaliti, dono da ema, Kokotero, tudinho.
(ZOMOIZOKAE, 2011)

Simultaneamente, alguns homens ocupam-se da limpeza do terreiro (weteko), roçando as


gramíneas que possam estar se alastrando e retirando restos de folha, galhos e lixo acumulados.
Outros reformam o telhado da casa de flautas (iyamaka hanã) e cavam buracos profundos para
colocação das duas traves de festa (tanoha), uma barreira preparada com dois esteios e uma
travessa de madeira canela-branca do brejo (timareseró) (PEREIRA, 1986, p. 90), que
demarcam onde será a entrada dos festeiros. Os convidados de outras aldeias já estão nas
proximidades, e ficam aguardando no mato, nos arredores da aldeia. O início do ritual oloniti
kalorese é marcado pela chegada dos festeiros e abertura do terreiro na aldeia anfitriã. Todos
estes momentos são altamente ritualizados e os festeiros não adentram o pátio da aldeia de uma
só vez.

O estouro de fogos de artifício anuncia a aproximação dos festeiros ao terreiro; eles são homens
de outras aldeias que já estavam aguardando nas proximidades junto com suas famílias.
Somente alguns homens se aproximam neste momento, entrando no pátio da aldeia com as
varas-guardas (iohohô)26, batendo repetidas vezes nas palhas que cobrem as casas. Eles gritam
bastante, inquietos, e vêm receber chicha e comida dos donos de festa que prontamente vêm
alimentá-los no pátio. Sempre que a comida é trazida ao terreiro ocorre simultaneamente a
entoação das rezas do tipo idyaete, sempre através de um mestre ritual, normalmente um ancião
da aldeia anfitriã. Os festeiros, após serem acalmados com chicha, carne e tabaco, retornam ao

26
Caracterização deste artefato é feita por autores como Pereira, Roquette-Pinto e Schmidt: “Vara-guarda das
flautas-secretas: yõ’hõhõ. É uma vara muito comprida, com penas de ema amarradas na ponta de cima. Os homens
a usam, quando tocam e dançam com a flauta-secreta” (PEREIRA,1986, p. 80); “O Iohohô é fetiche que os Parecis
ainda conservam muito escondido. Nada mais que uma vara nodosa, guardada religiosamente, a título de amuleto
protetor, durante anos e anos. Quando muito velha, e carcomida pelos insetos, queimam-na e cortam outra; mas a
procura de um novo Iohohô é acompanhada de cerimônias. Enquanto o buscam na mata, e durante o trajeto até a
aldeia, o utiariti, e mais um companheiro, vão cantando sempre, em voz muito alta, monotonamente, duas notas
em som filado... A esse duo chamam grito de Nokauixitá; as mulheres não o devem ouvir” (ROQUETTE-PINTO,
1950, p.130); “En la aldea de Uazarimi de los Kozarinis yo he visto em funcion este palo cerimonial iohohô, de
forma de un latigo. Antes de actuar a la cantiga los índios batiam com el contra las puertas cerradas y contra el
tejado de la casa de domicílio, para manifestar a las mujeres que el demônio de la serpiente, el yararaca, fuese ante
la casa y exigiese chicha para calmarlo”. (SCHMIDT, 1943, p.53)

86
seu acampamento fora do terreiro.

Na hora que chega, essa varinha [iohohô] vai encontrando com eles, cercando-os,
passando perto deles, atravessando, até chegar na casa, daí dá uma chuçada. Daí o
dono da festa vem com um latão de chicha e dá de beber, até ele tomar tudo, aí que o
dono da festa vai falar para o povo dele, vai preparando carne pra ele, (pedaço de)
carne inteiro, vai entregar pra ele, aí ele vai subindo, ele larga varinha dele, vai
arrastando, vai embora, ele sai. Se você dá um pedacinho de carne para ele, só um
pedacinho, ele fica mordido, ele volta de novo, aí ele vai ficar mais bravo, aí ele vai
começar a derrubar a casa mesmo, porque ele não tem dó mesmo. (ZOMOIZOKAE,
2017)

Na segunda vez que descem à aldeia, eles vêm mais agressivos e agitados, quebrando com a
suspensão dos ombros as traves de festa (tanoha) previamente preparadas e decoradas pelo
pajé com tinta de urucum. Os pedaços das traves são guardados na casa de flautas ou jogados
no mato, bem distantes do pátio, para que as mulheres não possam vê-los. Sobre tanoha,
Zomoizokae explica:

Tanoha é enfeitada, se não enfeitar ele também já é outro problema, tem que enfeitar
bem enfeitadinho, se quebrar ele, na hora que entrar por baixo dele pra quebrar, quem
está cuidando ele, pra não arrancar ele, tem que segurar dos dois lados, pra quebrar
ele no meio, esse festeiro, quanto entra, ele tá mais bravo, então ele entra por baixo
dele, vai arqueando e quebra ele, os dois rapazes que estão cuidando ele, já pega e
joga logo no mato, pra nenhuma menina ver ele, porque também é muito sagrado.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

A quebra de tanoha simboliza um importante evento mítico, que foi o fim de uma grande
inundação promovida pela gente da água:

Quando ta chegando na aldeia, [...] daí tanoha... o tempo quando era yakane, mãe de
água, sereia que a gente fala hoje, levantava água, daí quebraram essas varinhas
atravessadas. Daí o que Enoharese fez, no tempo de enchente de água, Enoharese viu
que duas meninas estavam correndo, fugindo, daí viu elas, pegou elas, fez um
jirauzinho lá em cima do kotaza, colocou elas lá em cima, por isso que hoje a gente
usa isso daí, tanoha é essa varinha de quebrar. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Admitindo variações, a história a que Zomoizokae se refere remete ao mito “A grande


inundação” (PEREIRA, 1986), que descreve como, certa vez, os homens da água Tarekolore,
Wayrikare, Wazoterikware e Kalaynamare decidem acabar com o mundo com uma grande
enchente. Para isso, fazem uma represa com paus bem altos, trançados com sucuris, e assim a
terra começa a encher de água, ficando encharcada. “As árvores secas começaram a dar frutos
e flores, as mulheres velhas ficaram grávidas sem homem, e as meninas, menstruadas antes do
tempo” (PEREIRA, 1986, p.294). O pessoal fica preocupado e decide fugir para os morros,

87
porém, havia uma menina menstruada no quartinho de reclusão. Seus pais decidem deixá-la lá
mesmo para virar comida da gente da água, e todos fogem para os morros. “Os homens da água
perseguiam as mulheres menstruadas e as mocinhas menstruadas pela primeira vez”
(PEREIRA, 1986, p.294). Este episódio mítico remete ao tipo de relação de evitação que as
mulheres menstruadas devem ter com a gente da água, já que durante o período menstrual são
impossibilitadas de ter qualquer contato com os rios e cursos d’água. Modelado pelo mito, há
um comportamento socialmente estabelecido baseado na evitação entre mulheres menstruadas
e águas e cursos de rio. Não somente, é importante sublinhar que a exegese sugere que a água,
enquanto índice da agência da “gente” que lá habita, carrega uma capacidade acentuada de
fecundação – fecundando árvores secas e mulheres velhas – sendo, portanto, um ser/substância
marcada pela hiper fertilidade. Esta observação é relevante já que a própria chicha, enquanto
substância composta, constitui-se também de água.

Ainda conforme o mito, o pessoal então decide pedir ajuda a alguns homens mais sábios, que
se transformam em arara, pedem emprestada a borduna de Enoharese e ficam observando de
cima de um pé de buriti. Eles batem com a borduna de Enoharese e fazem sair uma faísca de
raio, que corta a primeira sucuri da represa fazendo-a desabar por completo. As sucuris e a
gente da água descem na corrente de água, e as águas começam a baixar. O pessoal então desce
dos morros e retorna a suas aldeias. Para surpresa da mãe da menina menstruada, a menina
estava viva, na aldeia, fazendo chicha. Ela conta que enquanto chorava com medo, sem saber o
que fazer, o dono do esteio-chefe da casa Wakalamenare apareceu e disse a ela: “Sempre que
você fazia chicha e beiju, você colocava no meu esteio, para eu comer e beber. Agora vou
guardar você. Entre aqui no meu esteio, sobrinha, e você não morre”. Assim a menina foi salva
da enchente, entrando dentro do esteio que virou como uma casa para ela, e todos ficaram
sabendo que o esteio-chefe da casa tem dono (PEREIRA, 1986, p.292-293). Segundo os Haliti,
não se pode talhar este esteio com facão, já que ele, assim como outros objetos, possui um dono
– Wakalamenare.

Através deste mito, podemos inferir que a quebra de tanoha simboliza o fim da grande
inundação e, portanto, o reestabelecimento das condições ideais de vida para as pessoas,
ameaçadas pela gente da água. Esta ameaça parece ser marcada pelo desequilíbrio que a
irrupção da hiper fertilidade, desencadeada pela gente da água, poderia causar. Nesse sentido,
o controle sobre a fertilidade parece uma condição para a reprodução social em equilíbrio – e

88
um objetivo de oloniti kalorese. Sugere-se que o êxito dos antepassados sobre este evento
desestabilizador deve ser atualizado, controlando a potencial ameaça que a gente da água
representa e assim reestabelecendo as condições de vida no presente. Ambos os objetos – o
esteio central da casa kotaza e as traves de festa tanoha – fazem parte do complexo simbolismo
ritual, especificamente da etapa de abertura do terreiro – a quebra de tanoha – e a realização da
grande oferenda da festa – ao redor de kotaza.

Nesta segunda entrada na aldeia, os festeiros vêm com longas varas de madeira utilizadas para
bater e perfurar violentamente as paredes das casas. Quem está dentro das casas já sabe que
isso ocorre, e busca ficar no espaço central, já que a vara, da maneira violenta que é enfiada
através das palhas poderia mesmo machucar pessoas eventualmente desatentas. Esta persona
ritual, que fura as casas violentamente com as varas de taquara, usa originalmente um disfarce
– atualmente em desuso – que consiste em uma saia de penas de ema e uma máscara disforme,
e é chamada de Zekáhatiharese (zekaha=fazer maldade; traduz-se como “pessoa malvada”).
Outros festeiros vêm acompanhando-a e cercando-a com galhos e as varinhas iohohô, um
acompanhamento que tem como objetivo amansar e dispersar sua agência:

Quando está entrando no terreiro, primeiro eles quebram a trava, daí vai chegando
com brabeza assim na casa, pra derrubar a casa, se não tem outra pessoa pra cercar
ele, pra cercar o festeiro brabo, pra não avançar muito na casa, pra não derrubar a
casa, pra cuidar dele e ele chegar manso na casa, por isso tem aquela varinha iohohô,
daí depois vem com a chicha pra dar. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Com o terreiro devidamente aberto, após a segunda retirada dos festeiros e a remediação do
perigo eminente de destruição da casa através das varinhas “amansadoras” iohohô e a oferta
de chicha, os convidados que vêm de outras aldeias – homens, mulheres e crianças – agora
podem ascender à festa. Chegam nos seus veículos ou motos, e são recebidos prontamente no
terreiro com grandes cabaças e jarras de chicha, aglomerando-se ao redor destas oferendas. É
um momento de grande excitação, em que os encontros são finalmente efetivados. É nesta hora
que os anciãos proferem aconselhamentos jihatyoawihaliti e diálogos cerimoniais do tipo
manati com os convidados, orientando-os em relação ao bom andamento da festa, acalmando
os ânimos dos encontros entre parentes distantes, orientando as pessoas para que os
desentendimentos sejam esquecidos, para que não se mobilize o feitiço naquela festa e para
que prevaleça a união do povo Haliti, mesmo com suas pequenas diferenças constituintes.

89
As pessoas entram na casa anfitriã, armando suas redes de descanso, sempre ao redor e próximo
às “paredes”, deixando ao centro as oferendas, o fogo aceso e um espaço em relação ao centro
para a dança zolane, que irá ocorrer na madrugada. As mulheres cuidam para ficar dentro das
casas, pois os festeiros de iyamaka chegarão em breve, desta vez para permanecer no pátio e
realizar o conjunto de cantos e danças com flautas que se estende até a meia-noite. Ao ouvirem
os gritos de iyamaka chegando, as mulheres que ainda estão distraídas no pátio correm para
dentro de casa, fechando as portas prontamente.

2.3.1 Oloniti hiye nidiyaetyaka (oferecimento da chicha da festa)

A reza de oferenda da chicha da festa é extremamente longa, já que sua execução ritual evoca
um extenso repertório de nomes e localidades onde habitam os espíritos. Observaremos aqui, à
título de exemplo, apenas um trecho transcrito e traduzido da reza completa – a parte referente
à Enoharese, o dono do trovão, poderoso espírito protetor que habita no céu – para em seguida
discutir os temas da mitologia suscitados pelas outras partes da reza – Toloa, utyahaliti e
korewayese – através da exegese dos mestres rituais.

[...] [...]
Heautseta... E assim...
Hewetekone... Seu terreiro...
Taikyahekohena... Limpou seu terreiro...
Hikyeakoharetyatse... Seu espírito...
Halatakwa weteko... Terreiro Halatakwa...
Atxihena hihalohalone ozaka ehautse E fincou o pé de sua figueira, já aqui fez seu banco, já
kaukahakalahena hitso, hehautsetaite maikya natyo assim posso ir comendo o que o pessoal da terra
ozaka namayakohena wayeakitiheolo, wayeakitihere, oferece, para ficar bem, o que eles estão oferecendo,
kawanahiyatyoane namaiyakohena hehare amoka assim vai ser sua vida, assim que você ficou...
hawenanekakwa, hitsauhenere... [...]
[...]

(AZ_25052017_037)

O trecho faz referência à Enoharese, o dono do trovão, primeiro ser que habitou a superfície
terrestre, mas que a deixou para habitar o patamar celeste, nas aldeias Halatakwa e Mazarekwa.
Nas suas aldeias, Enoharese faz seu banco embaixo de uma figueira grande (uma árvore
sagrada, conhecida pelo termo halo-halo) onde se senta para comer o que o pessoal da terra
está lhe oferecendo. Ele se transforma em pássaros – “pombinhas” – para que possa descer na
terra e participar das festas para as quais é chamado.

90
[...] [...]
Eaotseta... E assim...
Txihehitya... Passou de novo...
Mazarekwa weteko... Terreiro Mazarekwa...
Taityahekohitya... Limpou de novo...
Hiwetekone... Seu terreiro...
Atxihitya hihalohalone... E fincou de novo seu pé de figueira...
Nea ho... Foi assim...

Heautseta maikya natyo namaiyakohena Assim pode ser eu, vou comer o que as pessoas, que
wayiakitiolo, waiyakitihere, kawanahyatyoane vivem na terra, oferecem para ficar bem, assim eu
maiykya namaiyakohena, natyo maiykya heautseta, vou, assim vou criar asas e me transformar em
kazainhyakwatanetyaka kamalinehena hitso, voador, ter espirito, você pombinha pequena, com ele
watyahatse kidyaneze kakwa kamilinitsaka vai ter espírito bom, para ele voar, você já pombinha
kazaynhakwa tanetyakehena hitsoka toatoali nihena branca, já seu espirito vai ser eu, já assim, o espirito
hitso ozaka hizaiyakoharetyatse maiykya natyo invisível vem comer o que as pessoas que vivem na
eautseta, namaiyakohena wayiakitiolo, terra oferecem, vou comer, você falou assim,
waiyakitihere kawanahiyatyoane, namayakohena cabeceira do rio Heawinhaza, já assim vou descer, fios
heare hitso onetse Heawinhaza ozaka de algodão vermelho vão descer, vou comer, assim
namityilatyoahena, konohe zotyahidyo zema você falou, assim você colocou sua vivencia, você que
namityolatyoahena namaiyakohena heare, hamoka vive no céu...
hawenanekakwa hitso ehauti maniya,
hitsaunehenere...

(AZ_25052017_037)

Na oferenda completa, o foco é ampliado e direcionado aos espíritos protetores e curadores,


aqueles que possuem uma agência positiva e restauradora em relação aos Haliti (e não vingativa
ou disciplinadora, como pode ser o perfil de agência dos espíritos de iyamaka por exemplo).
Conforme explica Zezonezokemae, a estrutura desta reza idyaete possui diferentes “partes”:

São quatro partes [da reza]. Esse foi só a parte de Enoré [Enoharese]. Primeiro é para
os espíritos, utyahaliti, primeiro esse daqui; segundo Enoré, terceiro korewayese, e
último Toloa. Toloa é do mato, ele que faz a parte de remédio, defende as pessoas,
tem folha, raiz, ele tem remédio do mato, quando tiver um pajé, ele já mistura aquele
remédio pra ele, então ele já entende que aquele remédio é de Toloa. Enoré é Deus.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Conforme destacado por Zezonezokemae, a reza completa engloba quatro categorias principais
de espíritos curadores e protetores, com os quais os Haliti mantêm relações através da oferenda:
utyahaliti, que se refere a um grupo de espíritos dos antepassados que encarnam em pássaros e
auxiliam os pajés na cura de doenças; Enoré (Enoharese), o espírito celeste dono do trovão,
manifestação associada “a batida de sua borduna no céu” (é uma subjetividade associada à
“Deus”, transposição de seu grande poder de agência à esta categoria do pensamento ocidental);
korewayese, que se refere ao artefato denominado flecha de curar (ou “de tirar feitiço”),

91
presentificação da agência dos espíritos curadores dentro das casas; e Toloa (“pai do mato”)27,
um espírito habitante das matas, que conhece e é dono das medicinas naturais (neste caso, índice
da agência positiva da categoria abrangente enekoniere/enekoniolo, a gente do mato). A
cosmologia Haliti, desta forma, lida com diversas classes e categorias de espíritos protetores,
que podem ser encarnados em artefatos, em pássaros, em pessoas, ou mesmo serem invisíveis,
habitantes das matas ou manifestadas através de raios e trovões. Estas entidades, entretanto, são
passíveis de relação com os Haliti através de sonho ou mesmo através da “incorporação”,
conforme esclarece Zomoizokae:

Toloa faz curativo, faz levantar, ele chega, passa remédio, daí você se levanta e vai
embora; ele é melhor que doutor, é o cara mais poderoso; ninguém vê ele, só vê ele
em sonho; se você serve pra pajé, ele aparece; mas rápido ele some, ele não demora;
igual utyahaliti; através de seus parentes ele vai falar, pega a voz dos seus parentes e
dá conselho. (ZOMOIZOKAE, 2011)

“Pegar a voz”, como sugere Zomoizokae, se trata de uma “incorporação”, que permitem os
espíritos agirem utilizando os corpos Haliti como suporte. Os espíritos habitam localidades que
são denominadas pelo termo “terreiros” (weteko), associando-se à mesma forma de habitação
espacial Haliti, que são os aldeamentos. Os espíritos vivem como as pessoas, pois são seus
antepassados e têm os mesmos costumes, porém em localidades distintas, cada uma possuindo
um nome que a designa. Estes nomes dos terreiros são evocados durante as rezas idyaete,
conforme esclarece Zezonezokemae:

Utyahaliti que é a maior reza. Esse espírito trabalha assim né, ele vive assim, ele vive
aqui mesmo, vive pra cá, onde nasce o sol, e onde entra o sol, ele vive assim, ele tem
um terreno [terreiro], ele tem um nome, igual esse de Enoré, ele tem um terreno com
nome Zolomo, terreno Alyauhete, Makahete, Talonarehete, tem muitos nomes dos
terrenos deles [...] daí quando você está rezando tem que falar todos os locais dos
terrenos deles, pedindo pra eles, para eles virem participar da festa, participar da
comida que você está colocando, por isso que a casa [hati] é assim, a casa sempre tem
que ser [alinhada] com o pôr do sol, que é por onde eles andam, é assim.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

27
Sobre Toloa, Pereira complementa: “[...] é um homem do mato e é também curador. Mora no oco do pau. É
baixotinho, de cabelo comprido e de um único dente comprido. Puxa a perna para cima e faz um quatro; depois
põe os cabelos na boca e segura com o dente. Não mexe com mulher, nem gosta de quem mexe. Antigamente
Toloa aparecia mais vezes, hoje aparece menos, e se uma pessoa vir, fica louca. Somente os bons curadores veem
Toloa mais frequentemente. A gente escuta Toloa cantar: toló... toló... Toloa é o melhor curador do mundo. Chega
até a levantar um morto de um dia. Para curar e tirar feitiço, passa uma infusão da casca do pematim no corpo do
doente. Toloa é o verdadeiro Dono da tinta vermelha do pematim, e dele é que o Haliti aprendeu o uso dessa tinta.
Toloa também, para curar e tirar feitiço, usa a sua flecha de curar, cheirosa e sem ponta, também. Toloa encarna
em uma pessoa e cura outra. Quando Toloa vem curar, a gente apaga o fogo e prende os cachorros, porque ele tem
medo de fogo e de cachorro”. (PEREIRA, 1986, p.264)

92
Os grupos de espíritos utyahaliti aparecem como os principais aliados dos Haliti e são sempre
lembrados nas oferendas cotidianas. Eles vivem em terreiros específicos, porém visitam as
aldeias e entram nas malocas, cujas portas são alinhadas ao caminho do sol nascente e poente.
Esta é inclusive a explicação para o fato de as casas serem alinhadas com o poente e nascente
do sol: permitir o trânsito dos utyahaliti dentro das casas, para que recebam as oferendas e
tragam proteção. Os Haliti estabelecem relações com eles através de oferendas, evocando-os
seus nomes e locais de pertencimento através de fórmulas verbais idyaete. Entende-se que os
utyahaliti encarnam em algumas espécies de pássaros, chamados xiritoá, waymare e tawiwise.
Quando aparecem no horizonte, são rapidamente identificados pelos Haliti que, em hipótese
alguma, os matam, pois são considerados “gente”, encarnações de seus antepassados.
Conforme explicam Zomoizokae e Zezonezokemae: “Xiritoá, o passarinho, ele é um
passarinho bem pequeno, que canta à noite, que ninguém vê, fala que ele é pequenininho, mas
ele é a pessoa, ele é a pessoa, só voa igual passarinho” (ZEZONEZOKEMAE, 2017).

O tawiwise (pássaro) quando desce no terreiro, não pode mexer com ele. Ele tá
trazendo alma do espírito que tá doente; ele traz doente que tá passando necessidade
pro pajé curar. Meu pai que é pajé que conta isso, se ele tá no terreiro não pode matar
ele, porque ele é gente. A mesma coisa que xiritoá, é pequenininho. (ZOMOIZOKAE,
2011)

Os utyahaliti são bastante poderosos e responsáveis pela mobilidade do espírito dos enfermos,
levando e trazendo-as de um lugar ao outro e assim promovendo sua recuperação. Podem ser
também anunciadores de doenças, aparecendo em forma de pássaros, em sonhos ou mesmo
falando através dos pajés. Na concepção Haliti, quando alguém fica doente – no caso das
doenças “espirituais” – dizem que sua alma abandonou a pessoa; para restabelecer-se, a alma
deve retornar ao “corpo”, sendo estes espíritos responsáveis por esta mobilidade. A causa das
doenças é na maioria das vezes associada ao feitiço28, lançado pelos feiticeiros Haliti
(tihanare/tihanalo)29. É importante notar que os espíritos dos mortos (invisíveis) também têm

28
A substância-feitiço é associada ao mito de origem, especificamente ao pó da pedra que é perfurada para que os
Haliti saiam dos subterrâneos para a vida na superfície terrestre. Este elemento será evocado e detalhado adiante
através do conteúdo das artes verbais.
29
Como complementa Pereira, “Feiticeiro e feiticeira são gente cabeluda, de um olho na nuca e outro no peito. A
cabeça é de gente, e o corpo de tatu-canastra. Moram dentro dos morros e, quando querem matar gente, saem dos
morros e assobiam: swi... swi... swi..., igual as cobras dormideiras. Na construção da BR 364, Cuiabá – Porto
Velho, as máquinas destruíram alguns morros. Os feiticeiros e feiticeiras passaram para outros morros. Matam só
com feitiço e arco e flecha pequenos. A estrela cadente (aynakwa) é um feiticeiro ou feiticeira que cai nos
cemitérios e come os ossos dos mortos. Alguns homens e mulheres Haliti mais velhos são tidos como feiticeiros e

93
a capacidade de lançar feitiços e atingir os vivos (Haliti). Os Haliti reconhecidos como
feiticeiros são geralmente temidos, já que o feiticeiro é o modelo da “anti-pessoa”, responsável
pelo sofrimento e morte de outrem. Agem através do feitiço, que pode tomar a forma de uma
substância-veneno, normalmente ingerida, causando a doença no seu alvo (é comum o feitiço
ser associado ao idioma alimentar, isto é, assumir a forma de um alimento ingerido durante as
festas), ou também de maneira invisível, neste caso forçando o espírito a abandonar aquela
pessoa, que fica doente. Quando ficam doentes, os Haliti buscam em primeiro lugar o pajé, que
os trata através de banhos de folha e rezas. Caso a enfermidade persista ou se agrave, tratam
de realizar grandes oferendas aos espíritos protetores e curadores, buscando obter sua ajuda e
intervenção. Há casos de feitiços em que somente o pajé é capaz de curar – as doenças
espirituais, casos em que não adianta buscar ajuda no sistema público de saúde. Os pajés da
aldeia detêm, portanto, a capacidade privilegiada de relação e comunicação com os utyahaliti
através de sonhos e rezas, evocando sua potência xamânica para a cura dos doentes.

A cura é, em última análise, obra de Wakomoné, Wazulié, Kerakwamã e


Wazolokoyhiraré. Para curar, os quatro irmãos se encarnam em homens ou em
pássaros. Esses homens e pássaros são chamados também de utyahaliti, por extensão
[...]. Com os quatro irmãos moram ainda os entes superiores Wakularé, Zohowitihi e
Zukarezamayé. Haliti não pode matar pomba, batuíra, cabeça-seca e a garça-pequena,
porque às vezes Wakomoné, Wazulié, Kerakwamã, Wazolokoyhiraré, Wakularé,
Zohowitihi e Zukarezamayé podem estar encarnados em alguns deles. (PEREIRA,
1986, p.168)

Os quatro irmãos Wakomoné, Wazulié, Kerakwamã e Wazolokoyhiraré constituem os


principais antepassados curadores utyahaliti. A história deles é amplamente conhecida pelos
Haliti e está associada ao mito de Xinikalôre – a onça grande ou jaguar, morto pelos irmãos
como forma de vingança pela morte de seus pais. Uma versão desta história é narrada no mito
“A vingança contra o jaguar”: os irmãos foram criados pela avó Alawriru; quando adultos,
decidem vingar a morte de seus pais matando o gavião (gavião-rei ou “grande gavião”) e o
jaguar. Conseguem matá-los e depois fogem pelos galhos de uma grande árvore até o céu, onde
Toakayhoré os recebe; a avó pede que seja dado um banho em seus netos, ainda sujos de sangue
da morte do jaguar. Toakayhoré esfrega-os na areia no fundo das águas de sua lagoa, tornando-
os curadores dos povos da terra. (PEREIRA, 1986)

A flecha de curar korewayese (literalmente “flecha boa/bonita”), diferente de kore (flecha

são temidos pelos outros” (PEREIRA, 1986, p.54).

94
comum, de caça), não possui uma ponta. É um artefato ritual e, portanto, agente na rede de
relações. Possui, assim como o esteio-central kotaza onde fica pendurada, um dono, chamado
Kamozorese, para quem são destinadas oferendas a fim de obter proteção e saúde. São por
extensão associadas aos espíritos utyahaliti, conforme explica Zomoizokae:

Kamozorese que é dono da flecha; quando tá cortando, preparando chicha, lembra de


Kamozorese, oferece pra Kamozorese; ele que esparramou [distribuiu] todas [as
flechas de curar]; a flauta veio da água, a flecha não; a flecha, oferece pra utyahaliti
– xiritoá; se é pra deixar mesmo, amanhã ele levanta e anda; se levar, vai adoecer;
quem cura são os irmãos, eles curam através de pajé que usam folhas – o pajé vai
falando, passando o recado: se é pra melhorar mesmo, vai preparar uma chicha, fazer
uma caçada, fazer uma oferenda; se ele cumpriu a palavra dele, vai melhorar o filho
dele; daí oferece pra xiritoá; através do pajé que o xiritoá dá remédio pro doente; se
é pra morrer mesmo, ele fala, não tem mais jeito, não tem como segurar [o espírito]
não. (ZOMOIZOKAE, 2011)

Tanto as flechas quanto as flautas têm de ser constantemente tratadas e alimentadas, pois mais
do que simbolizar os espíritos, são veículos e mediadores de sua agência. Ambas ultrapassam
nossa típica noção de artefato, representando e presentificando ao mesmo tempo a agência de
espíritos invisíveis. Entretanto, as flautas aparecem associadas às cobras e animais venenosos,
que são seus guardiões, e a gente da água (yakane), que são os seus donos originais. Já a flecha
korewayese por sua vez associa-se aos pássaros e espíritos celestes utyahaliti. Conforme o mito
“A flecha de curar” (PEREIRA, 1986), a origem de korewayese está associada a um sonho e
ao antepassado Wazare:

Os caçadores chegaram à aldeia de Wazare e saíram para a festa. Kiwawrezakaharesé


[filho mais velho de Wazare] foi com eles e levava a primeira flecha de curar que
existiu. Wazare fez essa flecha, porque Kiwawrezakaharesé tinha sonhado com a
imagem dela. (PEREIRA, 1986, p.502)

De forma geral, a mito-cosmologia Haliti designa diferentes categorias de espíritos conforme


sua localização no território, todos eles habitantes de terreiros classificados, nominados e
conhecidos pelos Haliti: a gente da água, habitantes do mundo subaquático

95
(yakane/yakanero)30; a gente do morro, que habita seus interiores e subterrâneos (wamoti)31; a
gente do mato (enekoniere/enekoniolo)32; e utyahaliti, antepassados habitantes das aldeias
celestes que encarnam em forma de pássaros. Estes espíritos invisíveis são também associados
aos artefatos rituais, índices de sua agência no mundo material, de maneira mais explícita nas
flautas e flechas sagradas. Sua agência, entretanto, possui certo grau de complexidade, pois
pode ser tanto individualizada (através de um nome-espírito específico) quanto generalizada
através da categoria. O que é amplamente admitido é a inevitabilidade da relação com tais
subjetividades, relações estas que podem ser de cunho predatório (quando roubam, comem ou
destroem as almas dos Haliti) ou restaurador (quando protegem, curam e cuidam, até ficarem
sadios). Conforme explica Zozmoizokae:

Yakane também pega alma dos espíritos das pessoas, leva e cuida bem direitinho,
cuida dele até ficar tudo normal, daí manda servir pra ele, fazer serviço, fazer chicha;
wamoti também faz isso, mas ele mesmo destrói depois, come as pessoas; yakane não,
pega espírito e cuida até ele ficar tudo normal, sadio, aí ele trabalha pra ele; wamoti
destrói; wamoti é ruim mesmo, come gente; agora pai do mato, Kataunalitsi, é
diferente, também come, mas tem curador também, Toloa. (ZOMOIZOKAE, 2011)

Durante as festas oloniti, as oferendas são realizadas principalmente para utyahaliti,


privilegiando assim a relação com os espíritos protetores e curadores (que possuem agência
positiva em relação aos Haliti). Cabe notar, entretanto, que antigamente também se ofereciam
alimentos, tabaco e chicha para as outras classes de espíritos, como wamoti, considerados

30
Conforme Pereira: “Gente da água ou mãe da água. Homem: yuakane, yakane, yaka, indistintamente; mulher:
yuakanenero, indistintamente. A gente da água tem o cabelo preto e comprido. Vive nos grandes rios e lagoas,
viaja pelos córregos maiores e sobre os menores, para satisfazer as suas necessidades. Há gente da água boa e
ruim. Um informante diz que a gente da água boa mora dentro do chão, perto das águas, e a ruim mora dentro da
água mesmo. A gente da água persegue as mulheres menstruadas, sobretudo quando estas vão á água. Quando,
num dia de friagem e de vento, a água aparece suja, é que a gente da água está fazendo casa dentro da água. Quando
a gente da água anda, chove e vem vento. [...] No rio Formiga (Zokozokoreza. Zokozoko: formiga-de-fogo ou
lava-pés ou mija-cão – Solenopsis sp.) é onde existe mais gente da água”. (PEREIRA, 1986, p.22)
31
Como complementam Pereira e Badariotti: “Gente do morro: Wamuti. Tem a cabeça pelada e a boca suja de
sangue. Existe gente do morro boa e má, como na terra há gente boa e má. Mora dentro dos grandes morros. Mata
e carrega a gente ao ombro, de cabeça pra baixo, para os morros, onde corta e come. Existe muita gente do morro.
As vezes a gente do morro é identificada com o feiticeiro. Quando um Haliti fica muito nervoso, os outros dizem
que está com uma gente do morro no corpo” (PEREIRA, 1986, p.55); “Uamoti é inferior em poder a Enoré; não
obstante isso, se esforça por flagelar a humanidade ora com o frio, ora com o calor abrasador. É elle que envia a
fome, a peste, o incêndio e a inundação. A tempestade representa o furor de Uamoti, ao passo que o trovão é uma
ameaça e um aviso de Enoré... Quanto a Uamoti, se limitam a evitar-lhe a influência malévola. Enterram vivo a
quem quer que seja suspeito de fazer feitiços, como acontecera com uma pobre mulher dias antes de nossa chegada
(BADARIOTTI, 1898, p.86)
32
“Gente-do-mato ou pai-do-mato. Homem-do-mato: enekonieré, indistintamente. Mulher-do-mato: enekonioló,
indistintamente”. (PEREIRA, 1986, p. 15)

96
feiticeiros malévolos e temidos, que raptam e comem as almas humanas (possuindo, portanto,
uma agência negativa em relação aos Haliti).

Faz tempo, os antigos, eu vi uma vez um velho, estava oferecendo pra wamoti uma
chicha assim com milho, e tratava eles assim também, que nem yamaka, assim eles
os tratavam também, e hoje ninguém faz mais; porque hoje em diante já tem
conhecimento diferente de outro, oferecia pra yákane, existia isso. (ZOMOIZOKAE,
2011)

Neste universo relacional composto por uma gama de subjetividades espirituais personificadas,
cada uma delas possui um nome e um local de habitação específico. Classificadas segundo os
patamares em que habitam, suas formas de agência ambíguas oscilam entre os polos da
predação e proteção. Trata-se de um dualismo cosmológico em potencial, contrabalanceado
pelo perfil subjetivo de cada entidade, que torna a atuação de cada uma específica e
individualizada. Assim, por exemplo, é o caso de Toloa, homem do mato que essencialmente
atua ajudando os Haliti na cura de suas doenças, enquanto outros homens do mato seguem
capturando e comendo almas humanas, pois são feiticeiros. É através da oferenda que os Haliti
controlam, de maneira produtiva, os efeitos da inevitabilidade de relação com estes seres
invisíveis, seja domesticando a agência negativa de alguns ou direcionando a agência positiva
de outros, conforme as finalidades almejadas. A oferenda constitui assim graus de
aproximação: o “tratamento” a que se referem, através da comensalidade virtual, é capaz tanto
de familiarizar os espíritos bons – atraindo e ancorando sua potência e agência no mundo social
– como de domesticar os espíritos maus, apaziguando sua inimizade potencial e mantendo o
controle sobre as distâncias, fronteiras e formas de agência potencial.

2.3.2 Oloniti fahare manane (recepção dos festeiros)

Após a abertura do terreiro, quando os convidados de outras aldeias chegam dentro do pátio da
aldeia anfitriã, uma segunda forma de diálogo cerimonial manati é realizada entre festeiros e
donos de festa, fazendo recomendações para que ambas as partes sejam bem tratadas e
respeitadas. Trata-se de um discurso verbal dirigido inicialmente dos festeiros para o dono de
festa, e que pode ser respondido em forma de diálogo. Cabe reiterar que as “respostas”, hoje
em dia, estão se tornando cada vez mais raras, conforme explica Onizokaece:

Pelo jeito da festa ultimamente, eu vejo que não tem mais essa parte de conversação,
porque isso se torna uma conversação, entre festeiro e dono da festa, eles conversam

97
cantando, porque são várias maneiras de conversa, cantando, pedindo a força, mas
tem cantando também, pedindo questão de respeito, que os festeiros sejam respeitados
e que seja respeitado também, por isso que são várias maneiras de conversar, de canto
ou falando normal, o harekahare que não sabe cantar, como falar, ele pode falar
normal, o harekahare que sabe cantar, pra conversar também, pode ser também.
(ONIZOKAECE, 2017)

Conforme observado, “eles conversam cantando”, um reconhecimento da importância da forma


musical deste diálogo cerimonial. A estrutura deste manati evoca basicamente o pedido de
respeito e união entre as pessoas, adequando-se com a proposta de verbalmente posicionar-se
de modo a evitar quaisquer conflitos que possam ocorrer entre os presentes. É importante
assinalar o tom de apaziguamento deste texto ritual, já que o diálogo se estabelece entre
anfitriões (donos da festa) e festeiros, associados aos afins potenciais que ascendem à festa,
oriundos de outras aldeias. Os momentos iniciais de oloniti kalorese são marcados, portanto,
por pedidos de união das aldeias e respeito às tradições, que ocorrem através de manati e dos
aconselhamentos jihatyoawihaliti – que, como dizem os Haliti, “autorizam os festeiros” a
iniciar as performances de execução musical. No exemplo abaixo, nota-se o tom do discurso
manati:

Akoyhyehena natyo… Eu estou chegando...


Nonatyorenae... Meus cunhados...
Nozaitsenae… Meus sobrinhos...
Notxiyetenae... Meus netos...
[...] [...]

Nozaitsonae … Minhas sobrinhas...


Notxiyetiyonae... Minhas netas...
Nea ho… Assim foi...

Ozaka owene zaohetatyare zolazo tohatse Como você pensou assim para a gente, para comer
walokehetyaka zawotsetidya kanozola kalaihare seus beijus e suas carnes de caças, que vocês
walokoharetyaka tyare zaoheta, zaoheta atyare, prepararam durante a festa, como vocês convidaram as
jetxidya zotokahetyaka, jekenekwa haloni jekenekwa jovens, como vocês querem que a gente respeite aos
harene, hieta ozaka, zaohetatyare jitalatyowini senhores, vamos respeitar, podemos respeitar, dançar
waeyore zaiminihena jekenekwa halone hatya, com respeito com um ao outro, com minhas sobrinhas,
jekenekwa harene hatya, kanoakoharetyaka minhas netas, minhas primas...
zamohena ozaka nozaitsonae, notxietyonae, Assim foi...
notyauneronae...
Nea ho...

Kozaka owene zahotyalikitsone zamohetya Como vocês pensaram isso, para juntar todas as
zahekoretyaka zamohetita wahetakolo halo, pessoas, podemos respeitar o seu convite, foi assim
wahetako harenae, e aotseka ozaka Zaoloikatse, que nosso antepassado Zaoloikatse, Zonikatse reuniu
Zonikatse, ajityoka hare tyaka kakwane hamalihotse as pessoas, com bom relacionamento com outras
tyaka kakwane natxikini mania otyazematyakakwa aldeias, para fazer essa união com outros...
aimitikwa hare tyakakwa hitita ozaka owene... [...]
[...]

98
(AZ_08112017_005)

2.3.3 Jihatyoawihaliti (aconselhamento para os convidados)

Os aconselhamentos ritualizados podem ocorrer em diversos momentos durante a realização de


oloniti kalorese, principalmente nos momentos iniciais e entre as performances de execução
dos cantos zerati. São basicamente espontâneos e improvisados, podendo ser proferidos por
qualquer homem sábio que esteja presente. Por possuírem um tom de aconselhamento – e
também disciplinador – não é respondido pelos seus ouvintes, como manati por exemplo. É
direcionado para todos os convidados e não à um grupo específico, reafirmando a importância
de manutenção das tradições, dos modos de vida e da realização dos rituais oloniti kalorese, tal
como os antepassados ensinaram. Os aconselhamentos são uma prática comum também no
cotidiano das aldeias, sendo uma prerrogativa dos anciãos e lideranças, de modo a conduzir
seus grupos conforme os ensinamentos dos antepassados.

Kala wayeze idyaeti, kala wayeze idyaeti, tyotya eye Assim é uma fala boa, um aconselhamento geral,
hare kozakerehare, kozakerehare idyaeti wayeze, nossos antepassados repassaram a informação, como
maeha tyauhetere hoka, kalini nidyaehena, maetsa vivemos em comunidade, assim vou repassar pra
wayeze idyaeti hakwanae wenakalati kautya kehetere vocês, não está mais acontecendo nas aldeias em geral,
hoka, nidyaehena kalini ali, maytsa hozakerehare, nossos costumes estão desaparecendo cada vez mais,
watyokoenae nawenane, maytsa kautyakehetere, os nossos antepassados, tataravós, bisavós e avós se
metehena hoka nidyaeta, kozakereharenae, respeitam quando fazer festa tradicional, quando
watyokoenae kawanahyatyoane, kawanahyatyoane preparavam, eles fazem com muito respeito, eles fazem
kazaloneza herokola najiyeraeho nawoza kano, caçada, preparação da chicha, todas aldeias esperavam
heyehare herokore ajiyeho, nomaka tyotehena hoka aquela programação para ser uma união, para esquecer
kalini nidyaeta, maetsa halyekwa, kalini o que aconteceu com as famílias e parentes, como estão
ozakerehare, hozakolohalo nawenane, meta hoka desaparecendo, por essa razão que eu estou repassando
nidyaeta kalini, maetsa aliekwa hikyaokehena oloniti para todas aldeias, caciques e lideranças das aldeias.
oliti mokotsehare itsera, zomo kakware tahihitya [...]
moka nahalakwa tyajini hitso.
[...]

Kalini nidyaeta, zoare mahetazamani kyala, Os jovens de hoje não têm mais essa visão para
kaliolonae maetsa zoare tyomeheteta mahalitihare continuar com a nossa cultura, estamos vivendo dos
manya tyaona, kalinierenae maetsa alio dois lados, estamos acompanhando mais as vivências
zoimyaharenetya, Zauloikyatse, akere ozaka, do não-indígena, nossa cultura é muito importante,
Zonikyatse akeretya idikyohihita kydyakahare, nenhum jovem Haliti não tem esse dom de líder, para
kalinierenae, waye, mahalitihare nolonehare taeta aconselhar o povo, como Zauloikyatse e Zonikyatse,
zoaremahetatya, mahalitihare ezahehe ozaka eles foram líderes muito respeitados, eles que
kawanahyatyoa tihena, zoarema mahetatya maitsa, aconselham todos os povos paresi, para não acontecer
kawezere kakwajini kozakerehare waye hakautsene coisas ruins para nosso povo Haliti, os jovens de hoje
moka, hozekwaka zoimya kaitsaniti, zoimya kaitsaniti estão mais ao lado da vivência dos não-indígenas,
hozekwakita ozankita kautsehena idyaeta watyalita estamos contaminados pelas bebidas alcoólicas, a vida
kidyakahare, waye haherokola moka waye social do povo Haliti está mudando muito, quando a
hajyeraeho waye hakazaloneza moka, maiha gente faz festa tradicional, colocamos muitas coisas
kawezere zemajini, kakazaekyotyakere Enoré dos não-indígenas, envolve bebidas alcoólicas durante
kakazaikyota kozakerehare tyoreakaetere as festas tradicionais, os nossos antepassados não
kawaetyatyatseze waidyatyaremeta kalini, maetsa, usavam isso para fazer as festas tradicionais, Enoré que

99
zoare tyorera kalini ali eyeha cuida de todos processos da vida, as crianças ficam
waedyatyarenamautserahena kalini waedyatyare com muita saúde, está nascendo as crianças, isso é
aukowihenerena, mautserahena ametakihena importante para nosso povo, quando a chega o tempo
kozakerehare, Kamazore kozakerehare, de preparação da festa tradicional, é muito respeitado,
waydyatyare, ametakihena. guarda a dieta tudo certo, bem rigoroso, isso dá força
[...] para toda a população, assim que os espíritos vão
avisar e cuidar daqueles que estão doentes, como
ensinava o grande pajé Kamazore que é adivinhador.
[...]

Kidyakahare ezahe hoka maholahitya, kaloreze meta Como nosso grande avô antepassado chamado Aniba,
ozakerehare, watyokoe, Aniba neahitere, ozaka era um líder muito respeitado, o aconselhamento dos
inityohalitinyae nidyae nemeta kaloreze, nidyae anciãos não existe mais nas aldeias, as pessoas não
nemeta kalinierenae maetsa zala idyaeti fazem mais esse aconselhamento, antigamente nossos
waeyezekakwareheta watyokoena ozankakita tataravôs acordam de madrugada para aconselhar suas
kautsehena haedyaene, kidyakahare maholaeta famílias e suas comunidades, para não ter nenhum
hidikyahitxita no hoka kalini nidyaeta jityotya, acontecimento ruim, para não ter briga entre as pessoas
zatsemeheta idyaeti, wayeze, maheta, nidyaeta no e o povo Haliti, estou falando aqui deixando essa fala
kalini tyotya ezahe jitso, nohinyaeharenae hoka, boa, esse aconselhamento para todos os meus parentes,
zatsemeheta mahalitihare nidyaenekakoete, familiares, comunidades e lideranças das aldeias do
aengriafahetehenahoka zatsemehetehena maheta povo Haliti.
nidyaeta nohinyaehare jityotya jitso, witsaunitere
wenakalati tarenae eyehare idyaeti, watyokoenae
nityaene zatsemehetehena nali.

(JB_JIHATYOAWIHALITI)

2.4 IYAMAKA NO TERREIRO

As flautas rituais Haliti são denominadas através do termo iyamaka ou jararaca. Não há
tradução em português para o termo iyamaka, e a cobra jararaca também recebe outro nome na
língua Haliti (kolonamare). Esta associação das flautas com a espécie de cobra venenosa 33 é
antiga, e remonta tanto aos registros etnográficos como à mitologia Haliti, tema explorado com
profundidade em trabalho anterior (ARONI, 2011). Cabe relevar que a utilização do termo
também se relaciona com a problemática da tradução, envolvendo escolhas de sentido e
expressão construídas pelos Haliti ao longo do tempo. Jararaca é uma espécie de cobra bastante
comum na região, considerada hostil e perigosa, não somente pelo seu veneno mortal, mas pela
sua atitude destemida, que avança e persegue suas vítimas – diferente de muitas outras espécies
de cobras, que fogem ao notar qualquer ameaça. De fato, a jararaca é senão a mais, uma das
mais temidas, pelo fato de ser muito agressiva, e ainda, conforme a mitologia, faz parte do
grupo de animais venenosos designados para serem guardiões das flautas iyamaka. Ademais,

33
Importante salientar que, apesar da jararaca ser a espécie de cobra privilegiada para correspondência nominal às
flautas iyamaka, diversas outras espécies de cobra, como a cascavel, boipeva, e mesmo a sucuri, que não é
venenosa, aparecem a elas associadas. A Anaconda (sucuri), cobra aquática privilegiada na mitologia dos grupos
Pano, por exemplo, aparece para os Haliti associada a gente da água, por sua vez intimamente relacionada às
flautas iyamaka.

100
existem três castigos mais temidos que podem acontecer sobre os donos de flauta e seus
familiares, caso estes não façam o tratamento adequado no cotidiano e durante a realização dos
rituais: um raio cai sobre a pessoa (castigo de Enoharese); ela é picada por um animal
venenoso; ou é vítima de “acidente”. Estes castigos têm um caráter disciplinador, alertando os
donos de flauta e suas famílias para os cuidados que devem manter com os instrumentos. A
associação das flautas aos perigos e ao “veneno” traduz um contingente de agência que permeia
a existência e manipulação destes artefatos, considerados como quase “pessoas” na rede de
interações (ARONI, 2011; GELL, 1998). As flautas são, portanto, poderosos recipientes dos
espíritos dos antepassados, que foram seus antigos donos, mediando sua agência no mundo
visível:

Se caso você tem mandioca nova, arroz novo, milho novo, batata, abóbora, o que
planta, primeiro quando você mexe tem que lembrar a jararaca [as flautas], pra não
acontecer nada; mata ema, mata caça, sempre primeiro tem que oferecer pra ela, na
casa de flauta; assim que dono da flauta tem que fazer; se deixar ele [a flauta] sem
comer, sem oferecer, ele castiga; se você tem alguma coisa [ou seja, se você é dono
de flauta], tem que tratar como igual; se o próprio dono deixa muito tempo sem
oferecer, aí ela chega pra ele, você fez comigo isso, agora é sua vez; se não oferecer
pra ele, vai castigar; vai aparecer mancha, vai quebrar ele, ou vai matar: picada de
cobra, raio, qualquer coisa vai acontecer pra ele, ou machuca; tem muitas histórias
disso. (ZOMOIZOKAE, 2011)

Apesar de conjuntamente possuírem uma denominação comum que as agrega, as flautas


individualizam-se na medida em que suas identidades são múltiplas e marcadas pela
diferenciação de seus nomes, donos, formas materiais e características acústicas. Cada artefato
assume narrativas, personalidades e capacidades distintas: por exemplo, a flauta amore é chefe
de todas as flautas, a mais antiga e de maior tamanho; a flauta imokolo é brava e perigos, traz
chuva e temporal pois foi roubada da gente da água; a flauta zeratyalo era a flauta utilizada
para as guerras e foi com seu poder que os Haliti venceram as batalhas contra os Nambikwara;
as flautas ualalosé, txeyru e zeratyalo têm o nome de velhas mulheres Haliti, anciãs referidas
pelo termo avós; já tiyrama foi feita por um gaviãozinho (kamaikukuye) e tratá-la
inadequadamente atrai todo tipo de cobra venenosa. Apesar de originadas da mesma matéria-
prima, uma espécie vegetal extraída de um taquaral cujo acesso é restrito – comumente referido
como “taquaral sagrado” – diferenciam-se visivelmente nas qualidades que as constituem:
comprimento, espessura, número e tamanho dos orifícios de digitação, cores dos ornamentos
e desenhos aplicados. Apenas as iyamaka de um mesmo grupo, isto é, de mesmo nome, são
confeccionadas identicamente.

101
Cada flauta iyamaka está associada a um dono e, por extensão, a sua família, sendo a
transmissão da posição de dono hereditária, normalmente transmitida para um dos filhos
quando seu dono vem a falecer. A responsabilidade em relação ao cuidado das flautas estende-
se para toda a família do dono, inclusive para as mulheres, que apesar de não poderem vê-las
em hipótese alguma, preparam suas oferendas. Tal fato é importante, reforçando que as flautas
não são exclusividade masculina já que as mulheres desenvolvem com elas diversos tipos de
interação. Apesar de não poderem acessá-las visualmente, possuem conhecimento sobre elas,
cuidam delas e são as receptoras privilegiadas de sua música – que são também suas “vozes”.
A transmissão de iyamaka não ocorre através de qualquer forma de iniciação ou ritual
específico, sendo, ao contrário, sua compreensão e conhecimento associado – tais como a
maneira correta de fabricá-las e cuidá-las, o aprendizado de rezas para oferecer alimentos a
elas, os repertórios de cantos associados, melodias correspondentes e formas de tocar –
dependente do envolvimento voluntário dos jovens aprendizes da família correspondente.
Neste universo restrito de transmissão hereditária, notamos uma distribuição desigual do
acesso aos “segredos” de iyamaka e uma hierarquia em relação à manipulação de seus poderes
associados. Donos de flauta são assim, consequentemente, ocupantes de uma posição social
ambígua que, por um lado, pode ser desastrosa e perigosa, caso não desempenhada
corretamente, mas por outro, lhe confere certo excedente de agência devido à sua proximidade
de tais artefatos sagrados. Como observa Fausto, “No caso ameríndio [...] a posse de objetos
deve ser vista como um caso particular da relação de domínio entre sujeitos, e o artefato-coisa
como um caso particular do artefato-pessoa” (FAUSTO, 2008, p. 335).

A maestria é “uma noção cosmológica que inflete sobre o plano sociopolítico,


remetendo, em termos muito gerais, a essa capacidade de ‘conter’ – apropriar-se ou
dispor de – pessoas, coisas, propriedades e de constituir domínios, nichos, grupos”
[...] e ainda, “na vida social, esse processo [de apropriação] conduz a uma distinção
entre proprietários e não-proprietários, sendo que os primeiros, graças ao domínio
sobre coisas que se agregam ao seu corpo, passam a ter um excedente de agência”.
(SZTUTMAN, 2005, p.261 apud FAUSTO, 2008, p. 335-337)

Pode ocorrer, entretanto, o abandono das flautas pela nova geração, ocasionando o
desaparecimento daquela flauta para sempre. Este tema é controverso e polêmico já que o
abandono da fabricação e cuidado de uma flauta é considerado um comportamento transgressor
e potencialmente desestabilizante, podendo gerar para a família graves consequências, como
qualquer tipo de infortúnios. O fato é que diversas flautas desapareceram, como podemos

102
perceber hoje em relação aos primeiros registros etnográficos, que apontam para a existência
de diversas outras flautas que não são mais encontradas: “Hezo-hezo, Zalaloce, Ualatiare,
Hera-hera-run” (ROQUETTE-PINTO, 1917) e “Hietã, Hwérare, Zolahi, Kaxie, Ayririkwaré”
(PEREIRA, 1986). Estas flautas, apesar de reconhecidas por alguns dos interlocutores mais
velhos, hoje são consideradas “abandonadas” pelos seus donos, o que teria causado o seu
desaparecimento das aldeias34.

Quando convidadas, as flautas iyamaka ainda existentes – zeratyalo, ualalose, txeyru, amore,
imokolo e tiyrama – assim como seus artefatos “companheiros” – teyxikhare, iohohô e verare
– são trazidos à aldeia anfitriã pelos seus donos, e somente participam das festas caso os donos
estejam presentes. A presença dos donos é, portanto, uma condição para que determinada flauta
seja executada durante qualquer festa. É possível que ocorram festas sem a presença de
nenhuma das flautas iyamaka, somente sendo executado o zolane dentro da casa, conforme
esclarece Onizokaece:

Nós temos duas formas de fazer oloniti kalorese: uma que é só festa da flecha [de
curar], só zolane, e a outra é com flauta, com iyamaka. Tanto uma como a outra, são
o mesmo segmento, não muda nada, só muda porque existe o dono [de flauta], não
são todos que são donos, existe os donos que guiam aquilo dali. (ONIZOKAECE,
2017)

As flautas trazidas pelos seus donos permanecem fora da aldeia até a entrada no terreiro,
quando vêm sendo trazidas pelo grupo de festeiros e seus donos. Os donos de festa, por sua
vez, prontamente os recebem com grandes quantidades de chicha, e neste momento é realizada
por um ancião uma reza idyaete específica para oferecer a chicha destinada às flautas iyamaka.

Caso tenha flauta, eles vão começar a cantar até chegar no terreiro, vai parar, aí o dono
da flauta vai chegando, antes de chegar, ele vai estar lá perto da chicha, quando está
chegando na chicha, vai rodeando a chicha primeiro, o dono da flauta vai falando e
orientando a flauta dele, que é sagrado, o que pode, o que não pode fazer.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

Do final da tarde até o início da madrugada, os grupos de festeiros se empenham em executar

34
É importante sublinhar a possibilidade de algumas destas flautas terem sido trazidas por Roquette-Pinto ao Rio
de Janeiro em 1912, sendo depositadas no acervo etnográfico do Museu Nacional. O evento sugere que o abandono
das flautas pode ter sido ocasionado por este motivo, que configura uma exceção às regras de cuidado socialmente
estabelecidas em relação às flautas iyamaka. Na companhia de Marco Antonio Gonçalves e Els Lagrou, um ancião
Haliti, já falecido, visitou estes acervos em meados dos anos 2000, quando teve contato com as flautas ali
depositadas. Os acervos foram completamente destruídos pelo incêndio do Museu Nacional.

103
as séries músico-performáticas correspondentes a cada flauta iyamaka presente. Formam
colunas de homens, lado a lado e defronte à casa da festa, alguns tocando as flautas, outros
cantando energicamente e repetindo as passadas sincronizadas da dança. Dizem que ficam
defronte a casa para que os donos de festa possam ouvir o que está sendo cantado e assim saber
se na festa correu tudo bem. Esta interpretação corrobora o sentido de que durante os cantos
podem ocorrer diversas intervenções espontâneas e improvisadas visando comunicar qualquer
insatisfação dos festeiros-espíritos, na forma de feedback. É necessário notar que, numa
perspectiva da percepção, as mulheres dentro da casa, impossibilitadas de visualize a execução
da performance no pátio, constituem as receptoras por excelência da música que está sendo
produzida pelos festeiros de iyamaka, estando sua atenção direcionada essencialmente para a
forma sonora dos cantos e timbres de iyamaka – isto é, a ênfase recai sobre a audição feminina.
Se a visão é neste momento pouco importante, a audição, por outro lado, constitui a forma
privilegiada para efetivação do jogo meta-comunicativo, construído entre as “vozes” de
iyamaka e as mulheres dentro da casa.

As performances das flautas iyamaka são executadas no pátio da aldeia e cada flauta possui
uma execução idealmente correta e associada, que difere das outras em termos de movimentos
de dança, velocidade, tempo rítmico, linhas melódicas dos cantos e timbres das flautas. Um
ritual oloniti pode receber nenhuma, apenas uma flauta iyamaka, ou mesmo reunir todas elas,
o que depende da presença ou não do “dono” correspondente. Quando há mais de uma flauta,
formam-se diferentes grupos de cantores para executar cada uma delas, ficando enfileirados
lado a lado, alguns deles responsáveis por soprar os instrumentos e outros por cantar os
repertórios associados.

Os movimentos das fileiras de cantores são direcionados às paredes das malocas, ficando
posicionados de frente a elas, lado-a-lado, num vai-e-vem constante e repetitivo. Apenas
mudam este movimento quando se deslocam em direção a outra maloca da aldeia,
aproximando-se das paredes e começando novamente o mesmo movimento repetitivo e de
frente para as paredes de palha da maloca. Os grupos de iyamaka ocorrem simultâneos durante
o período a elas destinado durante o ritual, que vai do pôr-do-sol até meia noite (na primeira
noite) e de madrugada até o nascer-do-sol (na segunda noite de festa). Neste período, pode
haver um efeito polifônico, já que cada grupo cantará repertórios e melodias diferentes,
simultaneamente, no espaço do pátio da aldeia. Internamente, cada grupo canta em uníssono, o

104
mesmo canto, e as melodias das vozes e sons instrumentais das flautas são idealmente
correspondentes. Os instrumentistas tocam melodias que se modulam ao ritmo das vozes; canta-
se em geral num tom bastante grave, que contrasta com os agudos da música que sai das flautas.
O tempo rítmico é marcado pelos pés batidos com força no chão e os chocalhos de perna que
acompanham o pulso ritmado.

A cada bloco de aproximadamente uma hora, dançando de frente para as casas, fazem uma
pausa e se dirigem ao centro do terreiro, onde recebem dos donos de festa cigarros, chicha e
cestos com comidas fartas: beiju, peixe e carne moqueados, frutas, entre outras, acompanhados
da entoação das rezas idyaete de oferecimento. A ambiência é ruidosa e escuta-se o estouro de
fogos de artifício e diversos gritos de exaltação. Porém, por ser ao ar livre, onde os ruídos
dissipam-se com maior facilidade, e também por haver pouca interferência sonora do “público”
enclausurado neste momento do ritual – normalmente somente estão presentes no terreiro os
festeiros e alguns jovens curiosos interessados no aprendizado da performance – o foco parece
ser direcionado integralmente para a execução das performances das flautas (o que não ocorre
durante o zolane, por exemplo, onde há maior distração e diversas atividades ocorrendo
paralelas). Este padrão segue do final da tarde até meia-noite, quando as iyamaka são guardadas
na casa de flautas e os festeiros entram pela porta da frente para dentro da casa, onde estão todas
as mulheres, a fim de iniciar o zolane.

2.4.1 Iyamaka hiye nidiyaetyaka (oferecimento para as flautas)

O início da execução dos repertórios associados às flautas iyamaka tem início com as rezas
idyaete para oferecer chicha às flautas que estão presentes. Caso não tenha nenhuma iyamaka
presente, a chicha será oferecida somente para zolane. Quando as iyamaka vem chegando à
aldeia, os donos de festa prontamente trazem a chicha e demais oferendas destinadas a elas para
o centro do terreiro. Quando há várias flautas presentes, pode-se “incluir” todas as flautas numa
única versão da reza idyaete de oferecimento, porém, existe uma reza idyaete específica e
associada a cada umas das flautas – especificidade referente à temática da peça ritual, sendo a
forma flexível e aberta a interpretação dos mestres rituais. Estas rezas são também utilizadas
fora dos rituais oloniti, no dia a dia, quando se oferece chicha e alimentos para as iyamaka nas
casas de flautas das aldeias. Como explicam os Haliti, as rezas para iyamaka tem a finalidade
de “conversar” com elas, pedindo seu apoio durante a festa. No exemplo a seguir, a reza idyaete

105
engloba diversas iyamaka em uma única versão:

Kala owene... Está bem aqui...


Hitserehena... Você pode tomar...
Iyamaka... Flautas...
Zeratiyalo... Zeratyalo...
Tyaediyo... Txeyru...
Amore... Amore...
Iyohoho... Iohohô...
Hahatsazakazahena... Vocês podem provar...
Kozaka... Já pode...
Hiyekohatseronae kanatseza... Provar a chicha dos seus donos...
Neaho... Falou assim...

Kala owene kozaka ezahe hetati zowakya ezahe Aqui e agora, desde o tempo de surgimento, seus
tyaunehetehena kala owene zotyazematyakeheta donos estão lembrando de vocês, aqui e agora, hoje as
auhenanitehenaha ezahe hehekotsenae famílias estão lembrando de vocês, estão pensando em
hehekohatseronae otyazemahetehena vocês, para cuidar de vocês de novo, são seus donos
kamaneharenenae natxikinimaniya... imortais...
Otyazemahetehenatxitso... Lembrou-se de vocês...
Neaho... Foi assim...

Eautsetaka ozaka tyaunerehety tyaunerehetyhya Seus donos estão pedindo para os senhores cuidarem
nikyahenaureka kala ozaka auhetehena kozaka bem deles, aqui e agora, para ficar com muita saúde,
Ezahé ozaka héhekotsero héhekohatsenae ozaka como vocês são muito poderosos, estão pedindo apoio
auhetehenae kozaka hatalathyakaha aos senhores, o apoio de vocês...
hakazayhotyaka auhetehena ozaka jiyeheta [...]
ozakatyare jitso ozaka mazayzahyityakahare jitso
jitsaunehenatehena...
[...]
(MN_01062017_011)

A reza faz referência às flautas zeratyalo, txeyru e amore, além da vara-guarda de flautas
iohohô, convocando-as a receber a chicha que está sendo oferecida por seus donos. Tratando-
se de uma reza “genérica”, que pode abranger todas as flautas presentes, faz sentido que o tema
evocado seja referente à origem das flautas, neste caso, remetendo ao mito de Nahorekase e seu
irmão Zolorekase, ancestrais donos das taquaras de que são feitas as flautas iyamaka, habitantes
do terreiro chamado Zotyakware.

[...] [...]
Kala jitserehena jitso zotyakwareherenae Então vocês podem tomar, vocês do terreiro
nahurehekatserenae ozaka jitso zolokykatserehenae Zotyakware, os senhores Nahurehekatse e
nahurehekatserehere kozaka ezahé jitso one Zolokykatse, vocês do rio do sangue
Zotyahyiwinhaza etahyikwanehare jitso jitsauna [Zotyahyiwinhaza], podem ficar tranquilos, estamos
eheka zonezala tyaunehetehena hetati zowakyia jitso convidando vocês mesmo, desde o tempo do
ozaka jitso jitsaunehena Nahurehekatse surgimento, vocês vão cuidar bem dos seus donos,
Zotyakwareherenae ozaka jitso jitsaunehetehena ... vocês de Zotyakware, Nahorekase, com muita saúde...
Neaho... Assim foi...

Kozaka auhenahitehena ozaka ehe wahekakuytaidya Eles já estão preparando chicha, eles querem saúde e

106
ezahe hauhetehenaha hatalatyaka hakazaykiyotyaka proteção para todas as famílias, com muito respeito,
nehetehena hetati zowakia... desde o tempo do surgimento...
Eiyeka jitso jitsauna... Assim vocês sugiram...
Jitso kenyiolidyti wakyatehare … Vocês são os donos originais...
Neaho... Assim foi...

(MN_01062017_011)

Nahorekase é o principal sujeito da mitologia associado ao local onde está localizado o único e
exclusivo taquaral de onde são retiradas as matérias-primas para fabricação das flautas iyamaka.
Conforme a mitologia, existem cinco irmãos que são os donos originais de flautas iyamaka e
zelam pelo taquaral de acesso restrito: “Nahorekase, Zolorekase, Zalatihore, Zalomokote e
Zalakixihoko” (PEREIRA, 1986, p.30). Para eles devem ser feitas as oferendas antes de se
retirar as taquaras da espécie taquaruçu-do-seco, apropriadas para fabricação das flautas, já que
por serem os “donos”, “[...] concedem e ao mesmo tempo protegem os recursos” (BARCELOS
NETO, 2004, p.78). Mais do que o sentido de posse, a caracterização dos “donos” dos recursos
naturais envolve um sentido de mediação, controle e proteção, além de ser marcada pela oferta
alimentar (FAUSTO, 2008; BARCELOS NETO, 2004).

Numa versão do mito narrada por Zomoizokae, Nahorekase habitava uma aldeia com seus
filhos e irmãos. Porém, sempre que tentavam sobreviver em algum lugar, um “bicho” da água
(ou gente da água – yakane) chegava e comia seus filhos, levando-os para o fundo dos rios.
Dos filhos afogados só restavam os ossos, que Nahorekase resgatava do fundo do rio e
ressuscitava-os com um remédio especial – chamado ihimatihera – para então mudar e tentar
a vida em outro local. Se passou a mesma situação diversas vezes: mudavam de lugar, mas
sempre quando as crianças iam brincar perto do rio, a “onça da água” comia eles. Foi então
que certa vez Nahorekase não conseguiu mais regatar os ossos de seus filhos. Fez então uma
oferenda – “um pagamento, um presente” – para Kakanotyaholo, uma mulher da água que
também fazia favores para as pessoas, para ver se ela achava os ossos de seus filhos, pois assim
ele poderia fazê-los viver de novo, com o remédio ihimatihera. Depois de procurar bastante,
matar alguns “bichos” da água, os filhos foram novamente resgatados e viveram de novo. Por
fim, os filhos de Nahorekase decidiram ficar em um só lugar, transformando-se em touceiras
de taquara. Foi lá que os filhos de Nahorekase foram “fincados” no chão e começaram a criar
as taquaras apropriadas para fabricação das flautas, que são transformações de seus
corpos/ossos.

107
Nahorekase deixou filho dele ali mesmo, perto da taquarinha, numa tal de cabeceira
Nawihosé, para lá de Cabeceira do Osso, daí do outro lado fizeram o terreiro e
apelidaram Zotyakware, da flauta, assim que é essa história de Nahorekase, lá que
deixou a gurizada dele, as meninadas. (ZOMOIZOKAE, 2017)

O taquaral restrito é considerado um lugar bonito – “parece que foi plantado” – e de certa forma
“encantado” e cercado por grande mistério. Em relação a ele os Haliti contam que certa vez um
trator de um fazendeiro, ao tentar derrubar o taquaral, pegou fogo. Dizem que de longe parece
um capão de taquaras pequeno, mas quando se chega perto e entra no meio delas, tudo aumenta
de tamanho; no local, apesar de não se ver, escuta-se o barulho de gente conversando e
cantando, que se confunde com o barulho das cachoeiras. Caso não se realizem as oferendas ao
dono do taquaral Nahorekase, as taquaras aparecem feias, sujas, esburacadas, secas, impróprias
para fabricação das flautas; se oferecer adequadamente, aparecem verdes, bonitas e brilhantes.
De cada touceira de bambu se fabrica apenas um tipo de flauta, cada uma delas possuindo,
portanto, suas taquaras específicas – e por dedução, associadas cada uma a um filho de
Nahorekase. A localidade possui guardiões e donos invisíveis, que zelam pelas relações corretas
estabelecidas pelos seus visitantes ao adentrar para extrair os recursos naturais. Conforme
explica Zomoizokae:

Lá você escuta voz, canto, essas coisas você escuta lá, você vê marimbondo, em todo
galho, todo tipo de marimbondo, e aquele coró que ferra doído, em cada galho tá
pendurado, por isso que quando eu fui lá, todo mundo ficou em dúvida até hoje
comigo, nunca fiquei doente, o resto que foi comigo ficou doente, eu nunca fiquei
doente, porque brincaram muito com ele, você não pode brincar lá, você não pode
falar mal de frente deles, não pode falar, por isso que eles ficaram desse jeito.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

O terreiro/aldeia denominada Zotyakware é considerada a morada destes espíritos protetores


do taquaral. Nele habitam Nahorekase e seus irmãos, donos de flautas e protetores do taquaral.
Nahorekase é, portanto, um ancestral Haliti, dono e guardião do taquaral originado dos ossos
de seus filhos. Também é “Nahorekase que, quando mulher vê flauta, lança veneno, feitiço
nela” (ZOMOIZOKAE, 2010). A repetida captura de seus filhos pela gente da água aparece
como um desequilíbrio, remediado com a transformação de seus filhos na espécie vegetal
taquaruçu-do-seco, matéria-prima das flautas iyamaka. As taquaras surgem como um
ancoramento material que possibilita aos Haliti a fabricação e renovação de suas próprias
iyamaka, em reação à instabilidade causada pelas repetidas ameaças da gente da água. Assim,
a consubstancialidade entre iyamaka e os filhos de Nahorekase (ossos → taquaras → flautas)
contribui para uma percepção de contiguidade e parentesco entre as flautas e os Haliti, o que

108
também aparece expresso na denominação utilizada para se referir aos espíritos protetores e
donos originais das flautas: avós/avôs. Numa outra versão da reza idyaete “genérica”, que
também inclui todas as iyamaka, as flautas são referidas explicitamente por estes termos de
parentesco – “avós” (abebenae) e “avôs” (atyotyonae) – sendo convocadas para beber a chicha
oferecida.

Eaotseta… E assim...
Hetserehena… Podem beber...
Atyotyonae… Meus avôs...
Abebenae… Minhas avós...
[...] [...]

(AZ_08112017_007)

O tema central desta versão de idyaete é a criação-transformação de diversos elementos


associados às flautas iyamaka: animais perigosos/venenosos para serem guardiões das flautas,
a partir do irmão caçula do ancestral Wazare; e os adornos das flautas (cocares e braceletes), a
partir do algodoeiro e da arara.

[...] [...]
E aotsetaka ozaka, hetati zowakia kono Katyahero Então foi assim, desde o surgimento, o algodoeiro fez
kaitsanihena hihoko kanyo hiolatyali maheta filhos, para fazer os braceletes e pulseiras, para ficar
kaitsanihena, ozaka kono kaitsanihena… bonito, o algodoeiro...
E aotseta… E assim...
Wazare zoimereza hare... Irmão caçula de Wazare...
Kalomayare ... Chamado arara...
Kaitsanihena … Teve filho...
Himyaretya maheta hitsidyhoko maheta Teve filho igualzinho arara, para fazer cocar, para usar
kaitsanihena ozaka e aotseta kalo kaitsanihena na cabeça...
[...] [...]

(AZ_08112017_007)

Os guardiões de iyamaka são espécies animais que possuem o veneno e cuja agência é
disciplinadora. Esta pode ser desencadeada por diversos fatores relacionados ao mal andamento
da festa, seja pelo não cumprimento dos resguardos – de maneira central a evitação entre
homens e mulheres durante a preparação da festa – seja pela falta de cuidado adequados com
as flautas iyamaka. O azedamento da chicha da festa é um sinal de que algum resguardo não
foi cumprido, algo que os Haliti evitam a qualquer custo sob o risco de serem acometidos pela
vingança dos guardiões de iyamaka, que assumem a forma de escorpiões, cobras, lacraias,
aranhas, marimbondos e demais animais hostis/venenosos.

109
[...] [...]
E aotseta kaitsanihitya himini waykyatyo halo, Então teve outros filhos chamados cobra cascavel,
himini waykyate hare, owi kolonamare, owi cobra bico de jaca, para serem guardiões, aqueles que
iyazenamare, kaitsanihena ayalatyalo halo, fazem chicha e deixa estragar, essas cobras podem se
ayalatyare hare, niyahare maheta… vingar dessas pessoas...
Kaitsanihena… Teve filhos...

E aotseta ozaka kaihonore, imerokwa, jana, E assim teve outros filhos, como os marimbondos
wazoloa anya kozaka kaitsanihena himini waykyate, cacunda de ouro, marimbondo apiacá e outros
hare maheta... marimbondos, todos esses para serem guardiões...
Nea ho… Assim foi...

E aotseta kaitsanihitya himini waykatyo halo, himini E então teve mais filhos, como a cobra boipeva,
waykyate hare, watehero nea Kamalokwalo, marimbondo cacunda de ouro, para serem guardiões...
kaihonore kaitsanihena, ozaka...

Himini waykatyo halo, manaha kalore, hozaka Ele teve mais filhos, lacraia, aranha, escorpião, para
kaitsanihena, zakolokwa kaitsanihena jimini serem guardiões, aqueles que fazem chicha e deixam
waykyatyo halo, jiminy waykyate hare, ayalatyolo estragar, esses animais e insetos irão se vingar...
halo, ayalatyare hare nyahare…
Abebenae... Minhas avós...
Atyotyonae… Meus avôs...
Nea ho… Assim foi...

E aotseta kozaka kaitsanihena ozaka jimini Assim ele teve todos esses filhos para serem
waykyatyo halo, katsewetse winikikitse, nea ozaka guardiões, foi assim para não acontecer nada para as
kaitsanihena jimini waykyatyo halo, maheta wehero famílias...
nea ozaka kaitsanihena…
Jikyautyakene zowakya… Assim foi desde o surgimento...
Abebenae... Minhas avós...
Atyotyonae… Meus avôs...
Nea ho… Assim foi...
(AZ_08112017_007)

Na mesma reza, há ainda uma referência ao “chefe” da gente da água, associado à cobra sucuri
e designado pelo nome Zaloka. Assim como os outros animais guardiões de iyamaka, ele
também é criado a partir de um destacamento e transformação do corpo do irmão caçula de
Wazare, sendo assim caracterizados como seus “filhos”. Por associação, Zaloka também está
relacionado ao cuidado e proteção das flautas iyamaka, mesmo não sendo um animal venenoso.

[...] [...]
Zaloka waytere kaitsanihena one niminya maheta, Ele teve filho Zaloka para ser chefe das águas, para ser
kaitsanihena Zaloka kaitsanihena, ozaka respeitado por todos seres humanos, para ser dono das
kaitsanihena, holateza hitxe kaitsanihena one águas...
niminya maheta…
Zaloka waytere… Zaloka...
Wazare zoimereza hare... Irmão caçula do sábio Wazare...
Hakatidya koneta… Criou da batata da perna...
Hakanolya koneta … Do antebraço...
Neaho… Assim foi...
[...] [...]
(AZ_08112017_007)

110
Zaloka (ou Zaluka, numa variante) é associado ao mito da grande inundação, quando a gente
da água decide invadir a superfície terrestre colocando uma “trava” – barragem, represa – nos
rios para fazerem as águas subir. Esta trava é formada por cobras. Conforme a descrição de
Pereira (1986), Zaluka é um dos chefes da gente da água, também guardião das flautas iyamaka,
e possui um corpo serpentiforme, pintado e coberto por desenhos. Aparece como uma
“anatomia composta”, constituído por traços físicos animais e humanos, além de possuir em
sua pele os motivos/desenhos utilizados pelos Haliti em sua cestaria35:

Homem-da-água cobra: Zaluka. Quanto a cabeça e do joelho pra baixo, é gente, e no


meio é uma cobra grande, bonita, toda pintada. Vive enrolado dentro da água. É difícil
de se encontrar, e quando se encontra, precisa benzer, senão a gente morre. O índio
Haliti José Laudino Tuiraré viu esse homem-da-água cobra em Porto do Campo, a
beira do rio Sepotuba (Kozazorezã), abaixo do Palmital. Disse que era um montão,
com todo o corpo cheio de manchas quadradas. O homem-da-água cobra, nessa hora,
fez chover com vento. José Laudino Tuiraré benzeu e o homem-da-água cobra
desapareceu. Como há muito movimento de lancha no rio Sepotuba, esse homem-da-
água cobra não aparece mais naquele rio. Os homens teciam o pacará (tohiri) e
pintavam a cabaça-chata (matoko/wakiki-Lagenaria siceraria), imitando as cores do
homem-da-água cobra. (PEREIRA, 1986, p.26)

Existem também formas individualizadas da reza idyaete que são utilizadas para oferecer à
somente uma flauta específica, seja durante os rituais, quando são as únicas presentes, ou no
cotidiano das aldeias, quando ficam “adormecidas” e guardadas dentro das casinhas de flautas
das aldeias de seus donos. Conforme explica Zezonezokemae sobre as rezas genéricas e
específicas de cada flauta:

Hoje estou incluindo todas elas nessa gravação, zeratyalo, ualalose, txeyru, todas
flautas que usam na festa, porque tem lugar que quando faz festa junta todas essas
iyamaka, é a mesma coisa, eu estou fazendo a reza para todas iyamaka [...], aquele dia
eu fiz individual, a reza de cada uma, mas tem a reza de todas elas juntas.
(ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Vemos no trecho da reza a seguir, identificada como uma versão individual da flauta zeratyalo,
que se assemelha muito à reza anterior, utilizada para oferecer para todas as flautas, narrando a

35
A descrição de Pereira (1986) nos remete à complexa associação entre os desenhos da cestaria – especificamente
os motivos taekwahidyo e matokolidyo –, as peles das cobras e uma forma de agência disciplinadora de iyamaka,
explorada em trabalho anterior (ARONI, 2011): caso seus donos não respeitem os cuidados com as flautas, podem
aparecer em suas peles estes grafismos específicos. Mais adiante, retomaremos esta questão a partir do conteúdo
das artes verbais.

111
história do surgimento do algodão e da arara para fazer os enfeites de iyamaka e, também, dos
animais venenosos guardiões das flautas iyamaka. Conforme explica Zezonezokemae:

Esse é só de zeratyalo, completa, se você entende mesmo, se tem só zeratyalo, voce


reza só isso daqui. Se tem mais iyamakas pode juntar, pra rezar, se tiver bastante,
muitas qualidades, daí voce junta todas as rezas. Mas nessa ele fala de algodão, como
surgiu, e a pena de arara como surgiu [...] agora a parte das outras flautas, ele fala na
formiga, no toco, na boipeva, vai falando tudo aquilo, por isso que fica mais longa a
reza. Esse é meu entendimento, é como eu aprendi, talvez outra pessoa que entende
já faz diferente. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Podemos sugerir que a versão anterior, na verdade, é parcial, e teria incluído o trecho associado
à flauta zeratyalo somente a título de exemplificação. Assim, a narrativa sobre o surgimento do
algodão e da pena de arara seriam elementos associados especificamente à zeratyalo. Já o
surgimento dos animais guardiões de iyamaka seriam um elemento genérico, relacionado a
todas as iyamaka. Conforme sugere Zezonezokemae, para incluir as flautas ualalose, txeyru,
amore, entre outras, a reza anterior deveria ser “aumentada”, narrando os demais episódios e
evocando diferentes elementos temáticos – a formiga, o toco, a boipeva – associados
provavelmente a história destas outras flautas.

Aotseta... Então...
Hetati zowakya… Desde o surgimento...
Kaitsanihena… Gerou um filho...
Kono katyaherotse… Embaixo do pé de algodão...
Hihokokiniyo maheta… Para seu bracelete...
Kono kaitsanihena… Gerou o algodão...
Hiyolatyaoli maheta… Para amarrar sua fita na cabeça...
Kono katyaherotse… Embaixo do pé de algodão...
Kono kaitsanihena... Gerou o algodão...
E aotseta… E então...
Wazare zoimerezahare... Irmão caçula de Wazare...
Kalomaiyare... Arara vermelha...
Kaitsanihena… Gerou um filho...
Hiyokwanene maheta… Para você ficar elegante...
[...] [...]

(AZ_25052017_035)

[...] [...]
Zaloka kaitsinihena… Gerou um filho Zaloka...
Zaloka waitere… Zaloka rei das águas e rios...
Hakatse dyakoneta… Bem da batata da perna dele...
One niminya maheta… Para ser dono das águas e rios...
E aotse… Então...
Ozaka kaitsanihena… Já gerou estes filhos...
Inimini waikiyatehare… Para serem respeitados...
Kaitsanihena… Gerou um filho...

112
Owi kolonamare… Cobra bico de jaca...
Owi ejazenamare… Cobra cascavel...
Kaitsanihena… Gerou um filho...
Inimini waikiyatehare… Para serem respeitados...
Kaihonore … Marimbondo cacunda de ouro...
Himerokwa… Marimbondo grande [que faz casa igual “chuveiro”]...
Jana… Marimbondo apiacá...
Wazoloaniya… Maribondo de lobinho...
Kaitsanihena… Gerou um filho...
Inimini waikiyatehare maheta… Para ser respeitado...
Miyore… Miyore...
Zaloka waitere… Zaloka rei das águas e rios...
Kaitsanihena… Gerou um filho...
Inimini waikiyatehare maheta… Para ser respeitado...
Nea ho... Assim foi...

(AZ_25052017_035)

Podemos confirmar a especificidade da reza de cada flauta através do próximo exemplo, que é
o idyaete utilizado para se oferecer à flauta imokolo. Esta reza irá evocar uma outra narrativa,
formada elementos temáticos distintos que não são os mesmos associados à flauta zeratyalo –
surgimento dos enfeites e animais guardiões. A reza de imokolo evoca a história específica de
surgimento desta flauta que, ao contrário de todas as outras iyamaka – originadas a partir da
oferta/doação do chefe da gente da água Kalaytewe para o ancestral Kaymare – foi apropriada
ou “furtada” por Matinhane, durante um descuido de seus donos-caçadores gente da água, que
estavam na superfície terrestre em busca de caça. Esta elaboração conceitual em torno da
origem de imokolo é um traço distintivo, já que ela não teria sido recebida deliberadamente
como um presente ou dádiva, mas sim apropriada à revelia da gente da água, um indicativo de
relação “conflituosa”:

Por isso que essa iyamaka imokolo é da água né, foi roubado, muitas vezes, você hoje
pega ela pra ir com ela na festa, perigoso quando você sai com ele, já começa a fechar
o tempo, vai começar a chover, porque essa iyamaka é da água, é por isso que ele
causa isso, pode estar no tempo da seca, ele fecha o tempo, começa a esfriar e chover,
porque ela não é igual as outras iyamaka não, ela é roubada da água. (ZANEZOKAE,
2017)

Conforme a narrativa, Matinhane estava caçando debaixo de chuva quando ouviu um barulho
próximo ao rio. Desceu na vargem, quando viu algo pequeno, do tamanho de um lagarto,
empurrando uma anta grande em direção ao rio (outra versão diz que eram duas “onças da
água” que empurravam a anta grande). Não aguentaram o peso e caíram dentro do rio.
Matinhane amarrou uma corda na anta e a prendeu num pé de árvore. Intrigado, ficou
escondido atrás das folhas, observando a movimentação. Quando os caçadores da água

113
voltaram com reforços, voltaram cantando os “gritos de flauta”, com as varas verare e iohohô
e uma flauta pequena, subindo de dentro do rio e tentando puxar a anta novamente. Não
conseguiram, pois estava amarrada, e decidiram partir a anta em pedaços ali mesmo, para cada
um levar um pedaço. Quando estavam repartindo a anta, Matinhane gritou e eles se assustaram.

[…] [...]
Hetati zowakia … Desde o surgimento...
Holawetse … Seu caçador...
Txinitse kazadyre… Jaguatirica pintada...
Aitsehena… Ele matou...
Kotye makalore… A anta grande...
E aotseta ... E então...
Matinha holahenene… Matinhane o amarrou...
E aotseta kenekwa hena… E assim ele foi subindo...
Nea ho... Assim foi...
E aotseta zaneheta tyohitya txini makalore E então ele foi embora, a onça grande voltou,
aitsakakwa hena halakihityene… mataram outra, deixou ali mesmo...
E aotseta ... E então...
Hakenekwa hena ... Você pode subir...
Matinhane… Matinhane...
Kawiyalihena hitso… Gritando para você...
Iyehena hitso … E apanhou você...
Holanae zemere… Por causa de suas caças...
Kotyoenyae zemere… Por causa das antas...
Nea ho... Assim foi...
[...] [...]

(AZ_08112017_013)

Assustados, os caçadores da água largaram a flauta imokolo e as varinhas iohohô e verare ali
mesmo, correram e sumiram para dentro do rio (outra versão diz que Matinhane deu uma
“porretada” neles e eles fugiram para dentro do rio). Foi daí que Matinhane pegou a flauta
imokolo e levou para casa, passando a ser seu novo dono e cuidar dela.

[...] [...]
Kawiyalihena hitso Matinhane iyehena, hitso Assim Matinhane pensou, você apareceu na terra, eu
wayeakiti manya mohena hitso, ozaka kawana apanhei você, agora vou cuidar bem de você,
hiyahena hitso Matinhane, ozaka wayeyakiti manya Matinhane pensou assim...
… Avô imokolo...
Atyo Imokolo… Então você surgiu naquela época...
E aotse hikaotyakene zowakia… Matinhane...
Matinhane… Ele apanhou você...
Iyehena hitso… [...]
[...]

(AZ_08112017_013)

Uma variante conta ainda que os caçadores da água descobriram o ladrão Matinhane e foram

114
atrás dele para vingar a situação. Porém Matinhane contornou a situação oferecendo
pagamentos aos antigos donos, que explicaram como cuidar da nova flauta e a deixaram com
seu novo dono. Essa última variante da narrativa atenua a potencialidade de “conflito” gerada
pelo roubo da flauta imokolo, apaziguando a relação através de uma compensação. De toda
forma, a transmissão de todas as outras iyamaka se deu através de uma única e mesma história,
enquanto imokolo possui uma narrativa particular. A flauta imokolo é ainda considerada mais
“brava” em comparação com as outras: “não pode largar, não pode esquecer, não pode brincar”,
o que de certa forma reforça a marca do conflito gerado em seu processo de incorporação pelos
Haliti. Seu caráter hostil também é reforçado atribuindo-lhe um caráter bélico: “Antigamente
quando brigavam, faziam guerra, levavam imokolo junto, quando iam atrás das outras etnias
[...]”. (ZANEZOKAE, 2017)

No caso da reza idyaete para oferecer à flauta amore, encontramos uma estrutura diferenciada
das versões exploradas até então. Apesar da forma ser reconhecível, pertencendo ao grupo
idyaete, esta versão não narra uma história específica ou de origem relacionada à flauta, como
nos casos anteriores. Ao invés disso, seu conteúdo é direcionado ao ato de oferecer e a relação
entre donos: o enunciador dizendo que está alí para oferecer à flauta os produtos de sua caçada
porque “matou sua criação” – isto é, os animais dos quais amore é dona/controladora. Outro
elemento que deve ser destacado é a referência ao artefato “companheiro” de amore,
denominado teyxikhare – a vara “órfã”.

Kala ozaka owene… Acho que já bem aqui...


Nafetahena humana… Eu vou oferecer para você...
Amoretse… Flauta amore...
Tiyaetxikehare… Teyxikhare [vara órfã] ...
Nafetahena humana… Eu vou oferecer para você...
Hawaeye enomana… Tem que pensar bem...
Kazaikionehare … Seu cuidador...
Numana wahakola hare hena … Você tem que proteger essas pessoas...
Heyekohatsero, heyekohatsenae … Seus donos...
Kakwa ozaka… Com eles já...
Amoretse… Flauta amore...
Tiyaetxikehare… Vara órfã...
Kozaka owene… Já bem aqui...
Nafetaheta humana Eu estou fazendo oferenda para você...
Zolaikiyare hare… Porque matei sua criação...
(…) [...]

(DZ_02062017_005)

115
O artefato denominado teyxikhare consiste numa pequena vara de madeira que acompanha a
flauta amore – ou seja, são guardadas juntas na casa de flautas e participam também juntas da
performance no pátio. Assim como as flautas iyamaka, teyxikhare possui também cantos
associados e recebe oferendas de chicha. Sua designação é associada à uma “criança órfã”,
motivo pelo qual suas melodias são chorosas.

Teyxikhare também canta, é só uma varinha, não sopra, mas canta; ele é pequeno, mas
é safado, muito sem vergonha ele faz manha pra dar de comer pra ele, toma chicha
sem dó, é guloso, come bastante também. Cuida dele igual iyamaka, oferece. Você
vê, a criança quando ele quer comer ele chora, se ele tá sentindo fome ele chora, é
assim, qualquer coisa, você dá pra ele comer. (ZOMOIZOKAE, 2017)

2.4.2 Iyamaka zerane weteko zeratyaka (cantos das flautas no terreiro)

Os cantos de iyamaka no terreiro constituem, assim como cantos de zolane, os maiores


repertórios conhecidos pelos Haliti. Não há fronteiras rígidas em relação a temática dos cantos
pertencentes a uma determinada flauta, podendo qualquer tema ser evocado pela performance
de qualquer flauta – adequando-se, entretanto, à “roupagem acústica” da flauta correspondente.
Isso significa, por exemplo, que mesmo identificados como “canto de zeratyalo” ou “canto de
imokolo” durante as gravações, nada impede que o mesmo canto seja interpretado na
performance da flauta ualalose, adequando-se ao seu perfil acústico de ritmo e melodia. Como
esclarece Zezonezokemae:

Essa música aqui pode cantar no zolane também, pode cantar em todos eles (as
flautas), ualalo, zeratyalo, amore, zolane. Uma música só, pode mudar o ritmo,
mesma letra. O que muda é o ritmo, letra só uma, só aquilo mesmo. Cada um é um
ritmo, cada um diferente. Toda iyamaka é diferente. Buraquinho, tocação [o jeito de
tocar] delas todas são iguais, mas as vozes dele, ritmo dele, cada um dele é diferente
também, nem que você tá tocando, o ritmo já pega, o ritmo que pode você cantar, som
dele. Cada um já é diferente né. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

O aspecto comum, referido como “a mesma letra” (ou conteúdo semântico, referido
anteriormente), é contrastado pelo aspecto variável, referido como o modo de tocar e os
“diferentes ritmos e vozes” (ou forma acústica, referida anteriormente). Mesmo comum, o
conteúdo semântico é explorado de maneiras ligeiramente variáveis e aproximadas, conforme
a versão de cada intérprete. Não somente, os repertórios de cantos de iyamaka no terreiro são
transversais aos repertórios de zolane madrugada e meia-noite: como veremos a seguir, diversos
cantos de zolane e iyamaka são muito semelhantes, as vezes quase idênticos em relação à

116
temática. A transversalidade, por um lado é um aspecto unificador, que relaciona os repertórios
de zolane e iyamaka em torno de temas comuns, por outro lado, notaremos como a
transversalidade é seletiva, já que iyamaka vai priorizar alguns temas em detrimento de outros,
o que acontece também em zolane. Estes padrões serão explicitados a partir da análise temática
dos cantos que se segue.

Para fins analíticos, ao invés de agrupar os cantos conforme a identificação, pelo intérprete, da
flauta correspondente à peça musical no momento de sua gravação, demonstra-se mais
produtivo agrupá-los através de núcleos/categorias temáticas, buscando identificar semelhanças
e especificidades entre os gêneros zolane e iyamaka, tais como os temas privilegiados, os
elementos evocados e a formas linguísticas recorrentes, para assim proceder a sua descrição.
Assim, as categorias temáticas propostas buscam demonstrar, por exemplo, que os cantos de
iyamaka privilegiam a temática relacionada à gente da água – o que faz sentido, se
considerarmos que são eles os donos originais das flautas iyamaka – enquanto zolane meia-
noite privilegia as histórias de origem dos Haliti. A partir destas categorias podemos também
priorizar a exegese sobre os repertórios de nomes evocados, sejam dos sujeitos participantes ou
das localidades em que se desenrolam as ações as quais os cantos se referem.

Dentro do repertório coletado de cantos de iyamaka no terreiro, as seguintes categorias


temáticas – “tipologias” – foram elencadas como de interesse para esta descrição: 1. Cantos de
chegada nos terreiros de festa para beber chicha; 2. Cantos sobre as narrativas de origem (de
animais, vegetais, coisas ou pessoas); 3. Cantos relacionados às flautas iyamaka; e 4. Cantos
relacionados à gente da água – yakane/yakanero. Uma outra categoria de interesse são os cantos
descritos pelos mestres como “cantos dos antigos”, istoé, que remetem a uma forma e conteúdo
ao mesmo tempo bastante apreciado, porém cada vez mais em desuso, devido à poucos serem
seus conhecedores. Outros cantos, por sua vez, tematizam episódios fragmentados da mitologia,
temáticas diversas que reúnem elementos não passíveis de agrupamento. Estes temas são, por
exemplo o ciúme entre irmãos; a construção da casa tradicional; a figueira sagrada; o abacaxi
do mato (ver Apêndice B).

Para além destas categorias, podemos generalizar alguns aspectos relacionados à forma e
estrutura dos cantos zerati. De fato, os cantos constituem idiomas narrativos, que evocam e
comunicam, através de uma estrutura minimalista, isto é, com menos detalhes, as histórias da

117
mitologia que são também transmitidas através da oralidade, na linguagem cotidiana. Isso fica
evidente quando, ao gravar um canto com determinado intérprete e posteriormente a sua
exegese sobre ele, percebemos que a riqueza de detalhes do tema condensado pelo canto é
trazida com maior amplitude através das explicações, através de elementos e detalhes que não
estão presentes na estrutura verbal dos cantos. As narrativas míticas completas não “cabem”
nos cantos, já que são extremamente longas e rica em detalhes. Por outro lado, a estrutura
sintetizante da forma cantada serve a funções distintas da comunicação. Soma-se a este aspecto
o que podemos chamar de função reiterativa dos cantos, que é a repetição de frases, estruturas
e sequências verbais, com pequenas variações, aproximando-se do que Severi (2006) chama de
estrutura paralelística mnemônica. Esta forma, ao invés de atentar para a riqueza de detalhes,
enfatiza núcleos de sentido, que são priorizados, assim como a experiência perceptiva
desencadeada pela redundância. Estes núcleos podem ser elementos como a chicha, os pássaros,
as espécies vegetais e animais, ou mesmo nomes dos antepassados, dos espíritos ou das regiões
cosmológicas. Semelhante ao proposto por Langdon (2015) para os cantos xamânicos, os cantos
zerati:

[...] não devem ser considerados representativos, no sentido de que seu principal canal
de comunicação se baseia na redundância, e não no simbolismo [...] a poética da
repetição e redundância [...] transmite uma experiencia caleidoscópica que privilegia
os sentidos. (LANGDON, 2015, p.49, tradução nossa)

Além do aspecto sintetizante, redundante e reiterativo, notamos também que os cantos possuem
uma função fractal, isto é, na maioria das vezes narram apenas fragmentos ou episódios de uma
história ou contexto mais amplo. É por isso que, por exemplo, a história de Kaymare (o ancestral
Haliti que se transformou na lua), de Xinikalôre (o jaguar), ou da saída da pedra (origem dos
Haliti na superfície terrestre) aparecem fragmentadas em dezenas de cantos, que juntos
constituem a narrativa completa. Mesmo assim, não é uma obrigação ritual cantá-los em
sequência. Adicionalmente, cabe lembrar que os cantos são interpretados de acordo com a
concepção, aprendizado e experiência de cada cantor. Isso significa que o mesmo canto –
relativo à mesma temática – pode ser cantado de diversas formas diferentes, fazendo o uso de
diferentes termos, sequências de fatos, variando a sua duração e mesmo comportando pequenas
variações. Ainda assim, o núcleo de sentido se mantém, mesmo em diferentes versões.

O primeiro grupo de cantos de iyamaka diz respeito ao tema da chegada de sujeitos (que podem
ser antepassados, espíritos ou espécies animais) à um determinado “terreiro”, especificamente

118
para o consumo de chicha. Nesta estrutura que se repete, as variáveis são os nomes dos sujeitos
e os nomes dos locais de onde estão vindo e aonde estão chegando. Novamente vemos que o
repertório nominativo de sujeitos e lugares (aldeias/terreiros), que é variável de canto para
canto, contrasta com uma ação em desenvolvimento, que é sempre a mesma – o ato de consumir
a chicha ofertada. Este grupo de cantos é reiterativo, repetindo-se a estrutura entre as frases e
estrofes. Além desta estrutura, podem também ocorrer a evocação de elementos adicionais,
como por exemplo características que descrevem e agregam maior significação aos sujeitos e
lugares em questão.

Quanto à forma textual, os afixos pessoais de verbos que indicam primeira pessoa do
singular (no-) ou primeira pessoa do plural (wi-) e o sufixo que indica aspecto verbal
progressivo (–hena) são amplamente utilizados, apontando para um aspecto presentificador
da ação. Tal forma distingue deste grupo de cantos e aponta para o que proponho chamar
de uma personificação e incorporação da ação pelos cantores, que neste momento passam
a ser confundidos com os sujeitos evocados pelos cantos. Ambos estão, de fato,
desenvolvendo e performando a mesma ação, já que estão chegando no terreiro de festa,
vindo de outros lugares, para o consumo da chicha ofertada. Os sujeitos dos cantos que
vêm das aldeias celestes, dos terreiros subaquáticos, das matas ou de dentro dos morros –
patamares privilegiados pela cosmologia Haliti – chegam para beber a chicha, enquanto os
festeiros, vindos de outras aldeias, estão ali pelo mesmo motivo. Esta correspondência é
reforçada pela exegese Haliti, que diz que os espíritos chegam à festa “através” dos
festeiros (ou através de suas “vozes”) – uma correspondência entre discurso e ação. Estes
cantos remetem, descrevem e correspondem à própria ação que está sendo desempenhada
pelos festeiros-cantores-espíritos: tomar chicha, cantar e dançar. Apesar de não explicitado
pelos Haliti, entendo, por associação, que este grupo de cantos são idealmente utilizados
no início da performance de iyamaka, quando os festeiros estão chegando ao terreiro de
festa e são prontamente servidos de chicha pelos donos – uma correspondência “de fato”.

Notamos ainda entre a terminologia utilizada a recorrência de algumas formas verbais, que
apontam para correspondência entre a ação “evocada” e a ação “incorporada”. Estes
termos, repetidos por diversas vezes, entre os cantos e no mesmo canto, reforçam a função
reiterativa dos cantos. Por exemplo, o termo wahikwahena – que significa “estamos
chegando” – é o termo que mais se repete neste tipo de cantos, indicando tanto ênfase no

119
aspecto presente, como marcando a origem exógena dos sujeitos que chegam ao terreiro. O
termo oloniti (“chicha”) aparece em diversas formas como “minha chicha” ou “a chicha dele”,
reiterando também a centralidade da substância, assim como fahare natyo (“eu sou bebedor”),
caracterizando a aptidão e capacidade dos que chegam à festa de beber chicha em grandes
quantidades sem embriagar-se36. Os termos aididikwa ou airirikoa (“fazendo
estrondo/barulho/tremendo o chão”) caracteriza a forma de chegada destes sujeitos que
ascendem à festa, assim como o termo kehalakaetsereta (“com muita alegria”). O termo hetati
zowakiya (“desde o tempo do surgimento/desde a origem”) aponta por sua vez para o sentido
de ancestralidade, de um costume antigo que é repetido e atualizado no presente.

Outros elementos também são evocados e recorrentes neste grupo de cantos. São elementos que
fazem referência à mito-cosmologia Haliti, como por exemplo halo-halo (figueira grande),
espécie vegetal que possui elevado valor simbólico na mitologia Haliti e caracteriza os terreiros
das aldeias celestes; Alyauhete weteko (terreiro Alyauhete) e Zomoyhete weteko (terreiro
Zomoyhete), que são os nomes de importantes terreiros celestes, onde habitam poderosos
espíritos dos antepassados que protegem os Haliti; a borduna de Enoharese, o “dono do trovão”,
ancestral cuja “bordunada” corresponde à manifestação do raio/trovão neste mundo e tem um
caráter disciplinador; a substância-feitiço (faquerero, olokomaeho ou xirixiriroré), origem das
doenças, castigos e morte, originada a partir do “pózinho da pedra” aparado quando os pássaros
perfuraram um buraco para os Haliti saírem à superfície terrestre; e a “chicha de abacaxi do
mato”, considerada a chicha “dos antigos”, muito forte, produzida antes de existirem as plantas
cultivadas como milho e mandioca.

Outro elemento de destaque diz respeito à utilização, durante a execução dos cantos de iyamaka,
de recursos sonoros produzidos a partir do prolongamento das sílabas “ha” ou “ho”. Se
atentarmos para o fato de que tais recursos expressivos ocorrem somente nos repertórios de
cantos de flautas, temos um indício que se associam às vozes da gente da água – isto é, um
indicativo de que àqueles cantos estão sendo enunciados “pelos” espíritos donos de iyamaka,
através dos festeiros (um contraste importante em relação às rezas, por exemplo, cujos
enunciados seguem uma direção contrária – isto é, são direcionados “para” os espíritos). Trata-

36
Nota-se que esta ênfase é um aspecto diferenciador de oloniti kalorese em relação às cauinagens Tupi, onde a
intenção é embebedar-se. Este entendimento reforça o aspecto do controle exaltado por oloniti kalorese, seja ao
nível da corporalidade, das substâncias ou das relações produzidas.

120
se, por dedução, dos “gritos de iyamaka” repetidamente enfatizados nas narrativas míticas.
Como observa Von Den Steinen (1940): “Ivacané (yakane), com vastos cabelos, maltratados a
lhe caírem sobre os olhos, está no leito dos rios. Não se vê jamais: ouve-se, fazendo hu, hu ou
hum, hum. Vivem em todos os rios, mesmo nas nascentes, e tem também uma mulher” (VON
DEN STEINEN, 1940, p.564, grifo nosso). Enquanto “índices onomatopeicos” da presença
destes espíritos, os gritos de iyamaka constituem um traço também distintivo desta forma
musical. Complementarmente, a passagem sugere que o ato “ouvir” constitui o principal meio
de acesso a estes espíritos invisíveis, sendo os cantos um meio privilegiado para tal interação.

Diversos exemplos deste tipo de cantos podem ser observados. No canto que segue, o sujeito
da ação é chamado Tiholahihareno e está chegando no terreiro de Wazare – denominado terreiro
da copaíba, ou Zokorehete – vindo de um local chamado Onekinhoneta – “tronco das águas”,
um local debaixo do rio. Tiholahihareno é gente da água, e está chegando de lá para consumir
a chicha de abacaxi, uma chicha muito forte, exaltando sua chegada e gabando-se da sua
capacidade de consumi-la: ele afirma que bebe “água de várias árvores”, ou seja, toma qualquer
tipo de chicha (já que antigamente a chicha era produzida de frutos e sementes de árvores
diversas) e não se embriaga. Tal capacidade, exaltada por Tiholahihareno, é observada e
apreciada entre os cantores durante os rituais oloniti: os bons cantores são aqueles que bebem
grandes quantidades, cantam e dançam sem cessar, durante toda noite, numa clara
demonstração de resistência aos efeitos embriagantes da substância.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Onekinhoneta, natiyo notiyoani, onekinhoneta, natiyo Eu vim debaixo do rio, do tronco das águas, eu vim
atiyo notiyoani, natiyo hatiyo notiyoani. de lá, debaixo do rio, do tronco das águas, eu vim de
lá.
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Oloniti nezaka, nezaka zema, oloniti nezaka, nezaka Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
no ezema, natiyo hatiyo notiyoani. Atrás de chicha, eu vim atrás, atrás de chicha, eu
vim atrás dela, eu vim por causa dela.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wazare weteko, wetekota, Wazare weteko, No terreiro de Wazare, no terreiro dele, no terreiro
Zokoreheteta, natiyo hatiyo no, natyo notiynihena, de Wazare, no terreiro Zokorehete, eu estou, eu
natyo notiynihena. estou indo para lá, eu estou indo para lá.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wenoreza kaheza, kahezahatiyo, wenoreza kaheza, A chicha de abacaxi é muito forte, a chicha de
natiyo atiyo nezaka, nezaka ezema, natiyo hatyo abacaxi é muito forte, eu estou aqui para provar, por
notiyoani, natiyo hatiyo notiyoani. isso eu estou aqui, por isso eu estou aqui.
[...] [...]

121
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Atiyananitsekoza, no noterita, atiyananitsekoza, Eu bebo a água das árvores, eu bebo do figueirão
hatiyo no noterita, noterita no, natiyo nokaealini, grande, eu bebo mesmo, eu bebo, meu nome é, meu
nokaealini Tiyholahiharéno, Tyiholahiharéno. nome é Tiholahihareno, Tiholahihareno.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Natyo nokaeyalini, nokaeyalini, Tiyholahiharéno, Meu nome é, meu nome é Tiholahihareno,
tiyholahiharéno, tidiya no hatyo, natiyo nokaeyalini, Tiholahihareno, esse é meu nome, meu nome.
nokaeyalini.

(FO_20052017_001)

Num segundo exemplo do primeiro grupo temático, observa-se a chegada do sujeito enunciador
junto com diferentes espécies de pássaros, como a andorinha (txiabidiyawata) e o gaviãozinho
(zowenahe) ao redor da árvore figueira (halo-halo ou zamazalo) onde está sendo ofertada a
chicha. Pode-se inferir que o enunciador é ele próprio um pássaro, o que nos leva a crer que se
trata de um antepassado curador, habitante das aldeias celestes, que como já observado na
mitologia, pode “incorporar” na forma de um pássaro. Os pássaros estão chegando juntos,
voando, gingando, arrodeando, fazendo estrondo, com muita alegria, e estão vindo tomar a
chicha. Vemos como o afixo pessoal (wi-), que indica a primeira pessoa do plural, é utilizado
como forma de enunciação da ação. O termo wahikwahena – “estamos chegando” – exemplifica
esta utilização, que localiza a ação no presente através do aspecto verbal progressivo (–hena).

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kehalakaytsereta, wahikwahena, kehalakaytsereta, Bem alegres, estamos chegando, bem alegres, nós
witso wahikwahena, wahikwahena, oloniti enomana, estamos chegando, estamos chegando, para a chicha,
wahikwahena. estamos chegando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hetatya nomana, wauloneky, hetatya nomana, Primeiro para ela, para nossa chicha, primeiro para ela,
wauloneky nomana, wahikwahena. para nossa chicha, estamos chegando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waedydykwa wahykwa, wahykwahena, waedydykwa Chegando fazendo barulho, estamos chegando,
wahykwa, wahykwahena atyo, wahykwahena atyo. chegando fazendo barulho, estamos chegando, estamos
[...] chegando mesmo.
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zowenahe nikiyare, Zowenahe, Txidyo-txidyo Zowenahe [gaviãozinho] assim também, Txidyo
nikyare, Zowenahe nikyare, ekyherotya [andorinha] assim também, Zowenahe assim também,
ekiyherotyahena, ekiyherotyahena. arrodeando, arrodeando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Txiyabi txiabidiyawata, txiyabidiyawata atyolo no As andorinhas, as andorinhas, estão assim também,
nikyare, no ni ekyherotiyoeta, no ni ekeherotiyoeta. arrodeando, arrodeando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Halohalo katyahe, halohaló halohalo katyahe, Embaixo de figueira, da figueira,

122
zamazalo katyahé, wahykwahena, wauloneky embaixo da figueira, embaixo da figueira, estamos
nomana, wauloneky nomana. chegando, para nossa chicha, para nossa chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(FO_20052017_003)

No terceiro exemplo a seguir observamos uma estrutura um pouco diferente, já que não é a
primeira pessoa do plural ou singular que assume a posição de enunciador. O narrador observa
a chegada de Wakomoné, um antepassado curador que aparece descendo do céu, a sua morada,
para beber chicha embaixo da figueira halo-halo. Wakomoné é reconhecido através de
elementos associados à sua pessoa, pois carrega uma borduna com pintura “zigue-zague”
(taekwahidyo) e o “pózinho da pedra” (faquerero, olokomaeho ou xirixiriroré), substância-
feitiço. Ambos os elementos que caracterizam Wakomoné são privilegiados na elaboração
Haliti sobre o feitiço, origem de todos os males que recaem sobre eles. Conforme explica
Onizokaece:

Porque esse pózinho, ele que marca se a pessoa fez algo de errado, por exemplo, eu
fiz uma festa cultural e não cumpri todas as regras, então é quando ele (Wakomoné)
joga esse pózinho, ele é uma praga, é um feitiço que a gente fala […] o pózinho tem
a ver com isso, de esquentar as coisas, esquentar corpo, tudo isso que acontece […]
porque esse pó seria, como se fosse um pó que você carrega e que você poderia jogar
na pessoa e a pessoa passa mal, seria isso, pra você entender. (ONIZOKAECE, 2017)

Não somente o “pózinho da pedra”, mas também os motivos desenhados na borduna de


Wakomoné (e também na borduna de Enoharese), marcam as pessoas que não cumpriram as
regras de realização da festa tradicional, como os resguardos e cuidados adequados com as
flautas. Estes desenhos, privilegiadamente os motivos chamados taekwahidyo e matokolidyo,
associado a pele das cobras (e ao ancestral Zaloka, como já visto), podem aparecer em forma
de manchas na pele das pessoas que não cumpriram com os cuidados para realização da festa
tradicional.

É um desenho que aparece sozinho, não é desenhado nem nada, ele aparece sozinho,
principalmente na perna da pessoa, como se fosse pintura [...] quando fala
taekwahidyo, ele aparece, ele aparece nas cobras, principalmente [...] porque ele é
dono das cobras, é onde ele tem seus assessores que são cobras [...] outro desenho que
aparece também é matokolidyo. (ONIZOKAECE, 2017)

Através destas duas exegeses, dois pontos devem ser destacados: primeiramente, que
Wakomoné, conhecido por ser um antepassado curador, é um depositário da substância-feitiço,

123
sendo sua agência sobre os Haliti, portanto, ambígua. Nesse sentido, o pózinho da pedra e seu
efeito sobre as pessoas aparece associado mais a uma instância disciplinadora do que
simplesmente causadora de malefícios sem “fundamentos”. Wakomoné, desta forma, é um
curador e disciplinador. Em segundo lugar, chama atenção a associação das cobras também
com a esfera disciplinadora, não somente em termos de sua agência “venenosa”, mas através
dos padrões gráficos – os “desenhos da cobra” matokolidyo e taekwahidyo – contidos tanto na
borduna dos ancestrais como na pele daqueles que devem ser disciplinados. Como uma forma
de aviso, por associação podemos sugerir que a “bordunada” de Wakomoné deixa naqueles que
a recebem sua marca, em forma de sinais – “os desenhos da cobra”. A transformação/alteração
corporal em questão é um indicativo da capacidade de afetação que os espíritos invisíveis têm
sobre as pessoas, e poderia ainda ser pensada em termos de uma manifestação física de um
processo involuntário de “incorporação” de subjetividades exógenas.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a, há, há, há... a-há-a-há-há... a-há...
Halohalo katiyahe, zamazalo katiyahé, ezóahena Embaixo do pé de figueira, embaixo do pé de figueira,
waumana. está descendo para nós.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a, há, há, há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatiyotya hatiyotare, hatiyotiya hatiyotare, wikyoke Eles mesmo, eles mesmo, nosso tio Wakomoné, está
Wakomoné, ezóahena waumana. descendo para nós.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Maitsakore jiyaeya, maitsakore jiyaeya, ota Vocês não estão vendo, vocês não estão vendo, a
enatyahola, enatyahola hatyo. borduna, a borduna dele.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Taikwahidyo zaidyerê, taikwahidyo zaidyerê, hatyo A pintura zigue-zague, a pintura zigue-zague, da
enatyahola. borduna dele.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Otóano etyokolita, otóano etyokolita. Está aí no ombro dele, está aí no ombro dele.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Olô olokomaehô, olô olokomaehô, txidy, txidy O pózinho da pedra, o pózinho da pedra,
txidyhô. a borduna, a borduna.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a, há, há, há... a-há-a-há-há... a-há...


Oza ozakerehô, oza ozakerehô, oza etyokolita. É bem velha, é bem usada, bem no ombro dele.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(FO_20052017_005)

124
Notamos que essa macro-estrutura paralelística, nos níveis da temática e da forma de expressão,
é por sua vez contra-balanceada pelas micro-variações – que ocorrem, neste caso, no nível dos
“nomes” dos sujeitos e localidades da ação. Nos exemplos a seguir, observamos a reprodução
desta tipologia através dos seguintes elementos: os três tipos de chicha – chicha de milho,
chicha de polvilho e chicha de abacaxi-do-mato; os nomes dos terreiros Aliauhete, Zomoyhete,
Zotyakware, Hiwezare, Korekwahete, Morekwahete, Kazahete, Kanawilina e Zozasekola; os
nomes das espécies animais “voadoras” – gaviãozinho, andorinha, libélula, pica pau branco,
garça, arara preta e arara amarela; os nomes das espécies vegetais figueira e sumanera; e os
nomes dos ancestrais Zokarezamaye, Kalaemenare, Zokotoahiye, Nahorekase, Kwemace,
Zohowe, Toakayhore e Nare.

Nos próximos cantos, temos a chegada para chicha nos terreiros Zomoyhete e Aliauhete, onde,
além dos pequenos gaviões e andorinhas, estão chegando também as libélulas, com seus cocares
balançando; e a chegada do tio (koko) pica pau branco (tidyaore), que gosta de comer
marimbondo, e da garça (hozoho), que vem para experimentar a chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kehala, Kehalakaetsereta, witso ke wahikiyoahena, Alegres, com muita alegria, nós estamos chegando,
waulone, waulone nomana. para a chicha, para nossa chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Halohalo, halohalo katiyahe, wahikiyahena, witso Figueira, embaixo da figueira, estamos chegando,
wahikiyahena. nós estamos chegando.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waedidikwa, wahikwahena, watxikini, Fazendo barulho e tremendo o chão, estamos
watxikinikwahena, Zomoehete, Aliauhete weteko. chegando, nossos antepassados estão chegando, nos
terreiros Zomoyhete e Alyauhete.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikiyero, wikiyerotiyoaheana, witso hatiyo, witso Gingando, nós estamos, nós estamos chegando, nos
wahikiyoahena, Zomoyhete, Aliauhete weteko. terreiros Zomoyhete e Alyauhete.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zowenahe nikare, ikiero, ikierotiyoahena, ezawali, Os gaviãozinhos assim também, estão arrodeando,
ezawalitsoahena. estão indo embora.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Txiyabi, txiyabidiyawata, ezawali ezawahalitsoahena, As andorinhas, estão indo embora, os gaviãozinhos
zowenae zowenae nikiyatse, ezawali assim também, estão indo embora.
ezawahalitsoahena. [...]
[...]

(JA_10112017_001)

125
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Wiya wahatsakaha, hetatya wahatsa, wahatsaka, Vamos experimentar, primeiro experimentar, estamos
wahatsahazahena. indo para experimentar.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Era witserehena, koko tidyaureza, era wahatsahena, Estamos indo beber, tio pica pau branco,
hetatya, hetatya nomana, wahatsaka, kokozani experimentando a bebida, primeiro para ela,
tidyaure. experimentar, tio pica pau branco.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Eraha, era wahatsakaha, hetatya, hetatya nomana, A bebida, vamos experimentar a bebida, primeiro
eraha, era tidyaureza. para ela, a bebida, pica pau branco.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waedidi, waedidikwa wahikwa, witsera, witserehena Vamos chegar fazendo barulho, tremendo o chão,
erota. vamos bebendo agora.
[...] [...]

(JZ_26062017_008)

Na sequência, o canto da flauta imokolo anuncia a chegada, em primeira pessoa do plural, dos
enunciadores e das libélulas embaixo da figueira grande, localizada nos terreiros Aliauhete e
Zomoyhete, para chicha de abacaxi do ancestral Zokalikizamaye (Zokarezamaye, numa
variante).

[…] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Aliyauhete weteko, Zomoete weteko, waydidikwa No terreiro Alyauhete, no terreiro Zomoete, estamos
wahikwahena, hetatiya zomana waulone ki nomana. chegando fazendo barulho e estrondo, chegando no
início, para nossa chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikyeretiyahena, howenaedikiyare, maeyotatalikare, Estamos arrodeando, com as libélulas, gingando no
wikyero wikyerotiya, wahetsalihena. terreiro, arrodeando e dançando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikyeretiyoahena, Zokalikizamaeye, ewenolazana, Estamos arrodeando e dançando, para chicha de
waedidikwa wahikwahena, wikyeretiyoahena. abacaxi de Zokalikizamaeye, estamos chegando
[...] fazendo barulho e estrondo
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Halohalo katiyahe, aba zalo katiyahe, katxiwero Embaixo da figueira, embaixo da árvore do meu pai,
katiyahe, wikiyero wikiyerotiyoa, wezawalitsoaheta. embaixo da árvore Katxiwero, estamos arrodeando e
[...] dançando em volta da casa.
[...]

(JB_26052010_007)

126
Na versão seguinte de canto da flauta amore, na primeira pessoa do singular, os enunciadores
chegam para a chicha, vindo do tronco das águas (onekinhoneta, um terreiro subaquático). Seus
nomes são Zokotoahiye (dono dos peixes) e Kalaemenare e são gente da água, gabando-se de
sua capacidade de beber a forte chicha das árvores (numa referência à chicha dos tempos
primordiais, produzida a partir da polpa das sementes das árvores). Num segundo momento do
mesmo canto, há uma inversão de perspectiva do enunciador, que passa da primeira para a
terceira pessoa – “falaram assim”.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Onekinoneta, natyo notyoani, onekinoneta, natyo Do fundo das águas, eu vim de lá, do tronco das
natyo notyoani, natyo notyoani. águas, eu vim de lá, eu vim de lá.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kawere zaka, ezaka zema, matsai matsaiyeroza, Fiquei sabendo, eu vim atrás, eu sou bebedor de
matsai matsaiyeroza, fahare natyo. chicha de semente de sumanera.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Ididityoakoteza, fahare natyo, natyo natyo notyoani, Eu sou bebedor de chicha das árvores, eu vim de lá,
natyo notyahakwani, natyo notyoani. eu vim de outro lugar, eu vim de lá.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nea Zokotyohiye, Zokotyohiye, nea Kalaenamare, Assim falou Zokotyohiye, assim falou Kalaenamare,
ezeta ezeta, nekwanehare. estão fugindo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(AZ_25052017_015)

Já o canto da flauta zeratyalo anuncia sua chegada junto com seu “pessoal” da aldeia
Zotyakware (a aldeia do ancestral Nahorekase e seus irmãos, donos do taquaral de iyamaka) no
terreiro Alyauhete para tomar chicha. Semelhante ao canto anterior, também é exaltada a
aptidão dos ancestrais em beber a chicha das árvores – “sou bebedor de água das árvores”.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Owehetala natyio, hatiyo notiyoani, owehetala Eu cheguei bem aqui, eu cheguei bem aqui, eu mesmo
natyio, hatiyo natiyo notiyoani, natiyo notiyoani, que cheguei, eu vim para chicha, eu vim atrás.
oloniti nezaka, nezaka zema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Owehetala natiyo, hetati hetati zowakiya, oloniti Eu cheguei bem aqui, desde o surgimento, eu vim para
nezaka, zema nezaka zema, oloniti neraka, hatiyo no chicha, eu vim atrás dela, eu vim para chicha, atrás
zema. dela.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kehalakaetsereka, wahikwahena, hetati hetatiya, Com muita alegria, estamos chegando, primeiro, para
oloniti nomana, wahikwahena, Alyhauhete weteko, chicha dele, estamos chegando, no terreiro Alyauhete,

127
wahikwahena. estamos chegando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Atiyakoza há, atiyakoza efahare ididitiyakoteza, Assim nós saímos, bebedor de água das árvores, eu
efahare no natiyo, wahikwahena, hetati zowakiya, sou bebedor, estamos chegando, desde o surgimento,
wahikwahena. estamos chegando.
[...] [...]

(MN_01062017_020)

A chicha é de toda forma exaltada como a substância motivadora dos encontros, assim como a
vontade e capacidade de consumi-la. Em outro trecho, os ancestrais Koemace e Zohowe estão
chegando sedentos por chicha, com seus cocares de penas de arara. Chegam para tomar chicha
de polvilho “com a cara, com o nariz”, uma referência à voracidade com que consomem o
alimento cerimonial.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Hatyo wahikwahena, waedidikwa wahikwahena, Estamos chegando para ela, estamos chegando fazendo
hetatiya enomana, wauloneki nomana, witso barulho, chegando primeiro para nossa chicha, nós
wahikwahena estamos chegando.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waiydiya aliazoka, waiydiya aliazoka, tiyotiyoli Assim nós vamos chegar, para não estragar
wiyaulone, kalo hotero niho, kalo jikere niho. [engruvinhar] nosso cocar, de rabo de arara preto,
[...] cocar de rabo de arara amarelo.
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikilhakokakoita, witihokwakakoeta, ite Com nosso nariz, com nossa cara, assim estamos
witserehena, kenaekiya malotsehauza, ite tomando, chicha feita de polvilho, assim estamos
witserehena. tomando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wikilhakokakoita, witihokwakakoita, ite no Com nosso nariz, com nossa cara, assim estamos
wahikwahena, aididikwa wahikwahena, witserehena chegando, fazendo barulho, estamos tomando a chicha.
oloniti.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Neaka Koemaece, neaka Koemaece, Assim falou Koemaece, assim falou Koemaece, dos
tiyokoekatiharenae, aididikwaka wahikwahena, nossos antepassados, fazendo barulho, estamos
Zohowe ka Koemaece. chegando, Zohowe e Koemaece.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aididikwaka ikiyoahena, hamokotse harenatoli, Estão chegando fazendo barulho, com toda sua turma,
harenatoli kakwa, tiyokoekatiharenae, Zohowe ka os nossos antepassados, Zohowe e Koemaece.
Koemaece

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JB_26052010_015)

128
Em primeira pessoa do singular, o trecho seguinte traz a perspectiva da própria flauta ualalose,
que é o sujeito enunciador e está se sentido carente e solitária, lamentando sua solidão e por
isso se engajando para ir tomar chicha de milho, de polvilho e de mandioca d’água nos terreiros
Kazahete, Zomoyhete e Alyauhete.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nozani nozani nozanihena, nozani notera noterehena, Eu estou indo, eu estou indo beber, beber a chicha,
notera oloniti oloniti kia, nozani nozani notera. estou indo beber.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Makani makani kore, nozani nozani noteraha, notera Amanhã, amanhã, eu vou beber, vou beber chicha,
oloniti, oloniti oloniti nozani, nozani noteraha. chicha eu vou beber.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nozani nozani noteraha, notera notera kenaekiya Eu vou beber, beber chicha de polvilho, beber chicha
kiya, notera kenaekiya kiya, nozani jidiyahalo, natiyo de polvilho, eu sou a flauta ualalo, coitada de ualalo,
walaloeyalo, nozani noteraha, natiyo jidiyahalo eu vou beber, eu sou a flauta ualalo, vou beber, estou
walaloeyalo, notera notera oloniti, nozani nozanihena sozinha, eu vou beber chicha, eu vou beber, vou
nozani noteraha, notera kenaekiya kiya, notera notera beber chicha de polvilho, eu vou beber chicha de
kozetozetoza, Kazahetete Kazahete weteko, nozani milho, vou beber chicha, no terreiro Kazahete, eu
notera notera oloniti, notera kozetozetoza. vou beber chicha, chicha de milho.
[...] [...]

Nemerezakakoeta, neaha ka zaneka, zane ka Nós vamos descer, vamos descer, no terreiro
ezoahena, Kazahete weteko, Aliauhete weteko, Kazahete, no terreiro Alyauhete, no terreiro
Zomoehete weteko, wiyane wiyanehe, wiyane Zomoyhete, lá que nós vamos, vamos tomar chicha,
witseraha, witsera oloniti, hetati zowakiya, hetati desde o surgimento, desde o surgimento, lá que nós
zowakiya, wiyane witseraha, witseraha oloniti. vamos tomar, tomar chicha

(MN_01062017_018)

Já no seguinte canto da flauta tiyrama, os antepassados estão indo tomar chicha do chefe
ancestral Toakayhore, um dos primeiros “viventes” que agora habita as aldeias celestes. Estão
indo tomar mingau, chicha e fumar cigarro em Alyauhete, Korekwahete e Morekwahete,
terreiros localizados no patamar celeste.

Zaneka tiyotehena, zanehena, waiyeka nehena, zaneka Todos estão indo, que bom, estão descendo.
ezoahena.

Waiyeka tiyokoekati, zaneka zaneka, zaneka ezoahena, Os antepassados, estão indo, estão descendo, estão
zaneka ezoahena. descendo.

Wiya witseraha, witsera oloniti, witsera kenaekiya, Vamos tomar, tomar chicha, tomar polvilho, tomar
witsera kenaekiya. polvilho.

Hoooo-ho-ho… Hoooo-ho-ho…

Nea zahakore, wiyane witserehe, witsera oloniti, Nós vamos tomar chicha, vamos tomar chicha,

129
witsera kenaekiya. vamos tomar polvilho.

Wikiniyohare nali, Towakaehore nali, witsera oloniti, Vamos ao nosso chefe, lá em Toakayhore, vamos
witsera kenaekiya. tomar chicha, vamos tomar polvilho.

Witsera kozetoza, witserehena erota, witsera Tomar chicha de milho, estamos tomando agora
wihitsera, witsera kenaekiya. também, tomamos chicha de polvilho.
[…] [...]

Ekokorediya zoka, ekokorediya zoka, Korehete Nós vamos ao terreiro Korehete, ao terreiro
weteko, Aliyauhete weteko. Alyauhete.

Wiyane wezoahena, witsera wihitsera, witsera Vamos descer lá, vamos tomar, vamos tomar
herokore, watehoka ajiyeho. mingau, vamos fumar cigarro.

Witsera oloniti, witsera herokore, watehoka ajiyeho, Vamos tomar chicha, vamos tomar mingau, vamos
wikiniyohare nali. fumar cigarro, lá no nosso chefe.

(MN_01062017_005)

E como último exemplo deste grupo, neste canto da flauta amore, canta-se chegando no terreiro
Alyauhete, vindo das aldeias Kanawilina e Zozasekola. A turma de Nare está chegando
animada, da mesma forma como saíram da pedra durante o surgimento, com o chocalho de
perna feito da frutinha do mato chamada zalaiserawa e com a lança de seriema tonohi.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Wahikwahena, witso wahikwahena, wahikwahena Estamos chegando, nós estamos chegando, chegando
Alyaohete weteko, wahikwahena. no terreiro Alyauhete, estamos chegando.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waedidikwa wahikwa, wahikwahena, waolone ki Chegamos fazendo estrondo, estamos chegando, para
nomana, wahikwahena wisto wahikwahena, nossa chicha, estamos chegando, nós estamos
wahikwahena, waedidikwa wahikwa, wahikwahena. chegando, estamos chegando, chegamos fazendo
[...] barulho.
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nokaotyakini hatyo, zowakiyere, Nare ka, Nare ka, Desde que apareci, naquele tempo, com a turma de
zalaezeratse, hatyo za, hatyo, maotyakehena, Nare, com aquele coquinho [para fazer chocalho de
Kanaliwinya hatyo ewetekone. perna], não apareceu mais nada igual, naquele terreiro
Kanawilina.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nare katse emotyola, maotyakehena, nokaotyakini A trança de Nare, não apareceu mais nada igual,
hatyo, zowakiyere, maotyakehena hatyo, Nare he ka, quando eu apareci, naquele tempo, não apareceu mais
hatyo zemotyolatse, maotyakehena. nada igual, a turma de Nare, não apareceu mais nada
igual.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nokaotyakini hatyo, zowakiyere, maotyakehena Quando eu apareci, naquele tempo, não apareceu mais
hatyo, Nare he ka, hatyo etonohidya, maotyakehena nada igual, a turma de Nare, tinha lança de seriema,
kolata, kolata na, etonohidya. não apareceu mais nada igual.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


(DZ_02062017_008)

130
O segundo grupo de cantos de iyamaka é caracterizado por uma temática narrativa – e não
“presentificadora”, como o primeiro grupo – que tematiza as principais histórias de origem dos
elementos do mundo Haliti. Estas narrativas tratam das relações, mediações e transformações
que possibilitam a “criação” – ou composição – dos seres que habitam o mundo, uma gama de
subjetividades distintas composta por pessoas, animais, vegetais, artefatos e formas espirituais.
Nas ontologias ameríndias, sabe-se que as cadeias transformativas narradas pela mitologia
consistem no nexo causal da origem dos seres, recorrentemente originados a partir de
transformações da “forma” de outros sujeitos “humanamente originais”. As transformações –
sejam elas a partir do destacamento parcial de um corpo ou de sua metamorfose total – dão
origem à outras formas de existência no mundo, que por sua vez carregam traços desta
“humanidade original”. Nesse sentido podemos entender, por exemplo, que a espécie vegetal
da mandioca e do milho são na verdade o resultado da transformação corporal de uma “pessoa”,
assim como diversas outras espécies animais, vegetais e mesmo artefatos.

Através destes cantos é possível traçar a temporalidade destas transformações, já que os


episódios ocorrem numa determinada sequência no corpus mítico – sendo a saída de dentro da
pedra para a superfície terrestre o episódio fundante da vida social Haliti. Os episódios, em
geral, são extensos e por isso fragmentados em diversos cantos que juntos reconstituem a
narrativa em sua completude. Diferente do primeiro grupo de cantos “presentificadores”, que
utilizam-se da primeira pessoa do plural e do singular para designar, numa estrutura que se
repete, nomes de pessoas e lugares onde se desenrolam as ações – uma espécie de mapeamento
genealógico e cosmológico – este segundo grupo de cantos utiliza-se de um tom narrativo, em
terceira pessoa, caracterizado pela maior riqueza expositiva dos detalhes, pela identificação de
sequências de ações e pela caracterização de uma “história” que se complementa e desenrola
gradualmente. A estrutura paralelística presente no primeiro grupo de ênfase e repetição,
contra-balanceada pela microvariação, aqui não é tão evidente, já que se trata de cantos cujo
desenvolvimento aponta numa direção de expansão da temática e seus detalhes, mais do que de
retorno e ênfase ao tema único. São assim caracterizados mais pelo “desenvolvimento e
expansão” do que pela ênfase e redundância. Em alguns casos específicos, contrastando com a
característica narrativa em terceira pessoa, nota-se também a utilização da primeira pessoa,
produzindo a correspondência entre as vozes dos enunciadores-cantores e sujeitos das ações
das narrativas – um recurso expressivo relevante. De toda forma, a designação de nomes
constitui também uma característica e recurso formal deste grupo de cantos, desta vez

131
associados aos ancestrais protagonistas da mitologia Haliti. No corpus textual deste grupo,
conforme as características apontadas, destacam-se as seguintes narrativas e seus respectivos
nomes dos ancestrais relacionados (subgrupos): 1. Saída dos Haliti de dentro da pedra
(Enoharese, Wazare, Kamayhie e Nare); 2. Origem do milho e outros alimentos cultivados
(Kolayberone); 3. Mancha de sangue no peito de Wakomoné (Xinikalôre e Wakomoné); e 4.
Jenipapo dos gaviões.

O primeiro subgrupo remete à relação entre cantos que tratam da mesma narrativa – o mito de
origem dos Haliti, quando saíram de dentro de uma pedra, na região hoje referida como “Ponte
de Pedra”. Conforme o mito, no início existiam apenas Enoharese, seu filho Imazahare e sua
filha Zokozokoiro habitando a superfície terrestre. Certa vez as crianças foram buscar água no
rio e escutaram uma “zoada” em suas margens. Intrigados, saíram correndo para avisar seu pai
Enoharese, que foi averiguar. Ao chegar na beira do rio, bateu com sua borduna na pedra de
onde vinha o barulho, abrindo uma pequena rachadura e fazendo todo pessoal de Wazare
desmaiar lá dentro. O urubuzinho (mazazalane) foi o primeiro que saiu da pedra com seu xire
(cesto cargueiro) nas costas para conhecer os campos. Apanhou flores, comeu mariposas e
besourinhos. Sentou-se no galho de várias árvores, que por isso ficaram envergados. Quando
voltou para dentro da pedra, deitou-se na rede entristecido. Os demais, já acordados e cantando
alegres na festa, vieram perguntar a ele o motivo de sua tristeza. Ele disse que estava pensativo,
pois tinha visto muita coisa bonita lá fora. Os outros não acreditaram, achavam que ele tinha
sonhado, pois mesmo Kamayhie, o advinhador, nunca tinha visto nada igual ao que ele contava.

Foi então que ele despejou as flores de seu xire no chão, todas cheirosas, que deixou a todos
intrigados. Decidiram então mandar o pica-pauzinho de cabeça vermelha alargar a rachadura
na pedra, dando para ele um “pagamento” (presente) de algodão – motivo pelo qual ele tem
uma faixa branca em seu peito. O pica-pauzinho quebrou seu bico e não conseguiu rachar a
pedra. Mandaram então o carijózinho (waitatareste), que começou a roer a pedra e pediu para
apararem na cuia o pó que caía da perfuração. Este pózinho consiste na a substância-feitiço que,
por ser retida pelos Haliti, se tornaria na causa de toda doença e morte. O fato sugere que a
condição para habitar a superfície terrestre – ou seja, o próprio requisito da vida social – é
atrelado à necessidade de controle de um “veneno” – a substância-feitiço que passa a existir.
Devidamente armazenado o pozinho, o pessoal de Wazare começa a sair da pedra, sendo os
últimos o pessoal de Nare, que saíram bem animados, com seus cocares balançando, cantando

132
e dançando com a flauta zero. Esta narrativa é exemplificada através dos trechos a seguir, onde
podemos identificar diversos elementos que caracterizam esta história: os nomes dos ancestrais
Wazare e Kamayhie; os pássaros facilitadores da saída da pedra (o pica-pauzinho
Wemolikwema e o urubuzinho mazazalane); a origem do “pózinho da pedra” enquanto
substância-feitiço; assim como as “provas” da existência do belo mundo lá fora, que
mazazalane traz para o pessoal ainda dentro da pedra.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatsetseka nahiti, hatsetseka nahiti, erazoka Meu tio Wemolikema você pode roer na minha
nahikwahena, waeyakitiyahiya, kokozani Wemolikema. frente, para eu sair daqui na terra e conhecer.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nika haeniyakwahena, nika haeniyakwahena, Meu tio passarinho urubuzinho você poderia voar
wikehareneana, kokozani mazazalane, kokozani agora, para nossa alegria.
mazazalane.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoarekore hotoka, zoarekore hotoka, wikeharenekoni, Meu tio passarinho urubuzinho, o que você pegou
kokozani mazazalane, kokozani mazazalane. de presente, para nossa alegria.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hitso kotehalaiya, hitso kotehalaiya, hiyaeyakwatiyano Como você conheceu o campo, outra terra, eu que
mahatse, ezaheharezakore, Kamaehiye wamohaliti, sou adivinhador e pajé nunca vi, nunca conheci
wamohaliti natiyo, maitsa mane nowaiyare, matse esse lugar, acho que você está mentindo, Kamayhie
hatiyo aidyiazekware. é pajé [advinhador] nunca soube disso.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Alitere naukita, nozaetsenae tiyokoekatinae, neazoka Meus sobrinho e tios velhos, estou falando a
hotikihena, motiyotse niyehoko, holoenhaniyehoko, aze verdade, trouxe a prova aqui as flores do campo
kaeya haloniye, nea mazazalane. para vocês acreditarem ao mim.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Alitere zaukita, alitere zaukita, wikiyokejidiyahare, Nosso tio passarinho urubuzinho está falando
koera mazazalane, koera mazazalane. verdade, ele trouxe até prova.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatsetseka nahiti, hatsetseka nahiti, erazoka Meu tio Wemolikema você pode roer a minha
nahikwahena, waeyakitiyahiya, kokozani Wemolikema. frente [a pedra] para eu sair daqui para terra.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Haemiyahenakazare, hihana eno watiyako, eno Meu sobrinho Wazare você pode colher o pó [da
watiyako zeta, nozaeniyani nozae Wazare, nemehena pedra] para seu feitiço, assim falou o pica pau
waitataretse . pequeno.

(BA_29062017_001)

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatsetseka, hatsetseka, hatsetseka nahiti, kokozani, Meu tio pica pau você pode roer à minha frente para
koko nomolikimya, koko nomolikimya, hatsetseka, nós sairmos daqui, pode roer também para todos nós
hatsetseka waheta, era wahikyoahena, wayakitahya. meu tio pica pau, assim podemos sair daqui no outro

133
[...] mundo, vamos conhecer esse mundo.
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nikyahena hihana, hihana watyakone, hamyahena, era Meu sobrinho Wazare, pode pegar o pó que eu estou
natutuhena, nozaeyani, nozaeyani Wazare. roendo para seu feitiço.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JT_04052010_008)

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Koko mazazalane, mazazalane, koko mazazalane, Meu tio passarinho urubuzinho.
mazazalane. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nomizoka hotohareta, zoanaeya hoka, wahikyoahena Eu estou pensando quando vamos sair daqui, é isso
hauka, auka nozaetsenaehe, nomizoka notohareta. que estou pensando meus sobrinhos.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kafakyakazoka nowayakwatya, nowayakwatya matse, Esse dia eu conheci outro mundo, muito bonito e
matse hatyo zolanawekwa, matse hatyo aedyazekware. cheiroso o campo chamado Zolanawekwa.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nomizoka notohareta, anenahe nozaetsenahe. Por isso que estou muito triste meus sobrinhos.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hitsonaeyatyakani hiyaeyakwatya, hiyaeyakwatya Você não consegue conhecer outro mundo, meu tio
matse, matsezani zolanawekwa, kokozani no passarinho urubuzinho.
mazazalane.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Ezahezakore no hyaetse, hyaetse, Kamaehye Você não consegue conhecer outro mundo, como
Kamaehye, wamohalita zakore, amaetsa maetsajini, seus sobrinhos, Kamayhie é adivinhador, nunca
waeyakwatyajini matse hatyo zolanawekwa, matse conheceram este lugar, não existe este lugar minha
hatyo zolanawekwa. gente.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Alitere naukita ane hatyo, ane hatyo tyokoekatinae, Eu estou falando sério com vocês meus parentes,
ane hatyo tyokoekatinae. não estou mentindo meus parentes.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Owaha owaha, owa nakolatita, jiyaeyane, matse Meus sobrinhos é verdade porque eu trouxe flores e
kaeyalokatse, motyotse, motyotse niyehoko, takorena, capim para vocês verem e acreditarem em mim.
takore, takore nyehoko, ane hatyo, ane hatyo
nozaetsenae.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Owa hatyo motyotse, motyotse nyehoko, nakolatya, Eu trouxe as flores e o capim, minha gente.
nako nakolatita.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Matse no, matse no, matse kaeyalokatse, motyotse, Está aqui as flores e capim que eu trouxe para vocês
motyotse niehoko. verem

134
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Holoenya, holoenya, holoenya niehoko, jiayane, Está aqui as flores e capim que eu trouxe para vocês
jiayane mazeta, nakolatya, nako nakolatita. verem.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JT_04052010_007)

A próxima narrativa de interesse diz respeito à história de Kolayberone, um menino cuja


transformação de seu corpo deu origem ao milho e outros alimentos cultivados. A história conta
que três irmãos – Katxiye, Kolayberone e Zolikixiyho – estavam tendo relação sexual
incestuosa com a própria irmã. Os pais descobriram e desaprovaram, decidindo então matar os
próprios filhos. Estes fugiram para casa de Zolikixiho, um dos irmãos, que estava fazendo
oferenda e tecendo um cesto com desenhos “bem bonitos”. Quando foram entrar na casa dele,
a casa pegou fogo – um castigo, pois tinham cometido incesto. Todos fugiram e correram para
longe. Lá na frente viram um passarinho e o irmão mais teimoso decidiu flechá-lo, contra a
vontade dos outros irmãos. Flechou, mas a flecha caiu bem em cima de uma cobra grande, na
sua costela. Quando foram buscar a flecha, a cobra estava esperando muito zangada. Tentaram
dar um cocar para ela como “pagamento”, mas não adiantou. Jogaram então o irmão para ela
comer. Correram e mais à frente o outro irmão, o mais velho, cansou. Pediu para seu irmão
deixá-lo ali mesmo e só derrubar uns pauzinhos em cima dele, para depois voltar na época da
seca e queimá-lo. O último dos irmãos aceitou e foi embora para casa da avó. Ficou sozinho
com a avó, Matserohoko, e voltaram no local onde estava enterrado seu irmão Kolayberone,
conforme ele havia pedido. Queimaram seus ossos e o que restava de seu corpo. Foi aí que
surgiram diversos tipos de milho e outros gêneros cultivados:

[...] do dente criou milho, do saco criou cará, da unha criou amendoinzinho, do sangue
veio o urucum, do olho a cebola que a gente planta, da orelha criou aquele cará que
dá flor no cipó, do nariz aquele amendoim grande, da cabeça criou cabaça, da junta
do braço criou a cana, da ossada de Kolayberone que criou todas essas plantas.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

[...] [...]
Nomihe hatiyo nomihe zakore hiye, maetsa hatiyo Eu falei para vocês, vocês não acreditaram, agora
hatsemare, katozani kato Katxiye, hehotiyoa kato vocês estão vendo, meu irmão Katxiye, meus irmãos.
katorenae. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Enoare hatiyo hitxiyeheta, eye hatiyo hahalakitsa Você pode me levar, você pode me deixar onde tem
natiyo, ozalihe katsekoni, hahalaki hahalakitsa no muito pé de jatobá, meu irmão.
natiyo, katozani kato.

135
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Ite henautseakitihiyeha, eraha eraha Eu posso marcar o tempo [agendar/combinar] para
kautiyakehena. você, você vai vir aqui e vai aparecer.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kozeto kozeto txikiyahero, kozeto kozeto Lá que vão aparecer todos os tipos de milhos.
zokomaeho.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Eye hatiyo ikiyawanehare, neyehare neyehare Aí as pessoas vão falar de mim ou da minha história.
mazeta.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Katozani kato Zomaeyehare, kato Katxiye. Meu irmão Zomaeyehare, irmão Katxiye.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Watsero watsero Matsero, Matsero watsero Nossa vó Matsero, nossa vó Matsero, vai vir aqui com
hokokakwa, ite hiye koaka, hitsoa hakeraheta ela e vai queimar, vão aparecer todos os tipos de milho,
natiyo, idiya idiya kautiyakehena, kozeto kozeto meu irmão Katxiye.
kozeto, katozani katozani Katxiye.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JZ_26062017_010)

Outro subgrupo das narrativas de origem, derivado da da grande história da vingança contra
Xinikalôre (onça grande/jaguar), tematiza a origem da “mancha de sangue” no peito do
ancestral Wakomoné, um dos principais espíritos auxiliares-curadores. Wakomoné tem sua
agência presentificada através de uma espécie de pássaro que possui uma mancha vermelha em
seu peito (pica pau do peito vermelho). Esta característica física do pássaro é aqui interpretada
em termos de sua origem mítica, quando os irmãos Wakomoné, Kerakwamã e Wazolie ficam
manchados de sangue ao fugir de dentro da barriga de Xinikalôre. Após terem sido engolidos
pelo jaguar, quebrado seu coração de pedra e cortado sua costela com uma navalha, os irmãos
conseguem sair de dentro da onça grande, ficando com o peito manchado de sangue.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Nehenaho hatiyo nehena hatiyo, katozani kato Assim foi, meu irmão Kerakwamã, meu irmão
Kerakwamã, katozani katozani Wazolie. Wazolie.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeyaha hatiyo no hatiyo, maetsakore maetsakore Eu o vi, você não viu o peito dele, está cheio de
hiyaeya, timala timala hitikiyola. sangue.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Maetsakore maetsakore hiyaeya, timala timala Você não viu o peito, é cheio de sangue, eles são
hitikiyola, maetsatiya maetsatiya hotitene, hatiyotaha Kerakwamã e Wazolie.
hatiyota Kerakwamã, Wazolie Wazoli Wazoliye.

136
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Hetati hetati zowakiya, txinikiyalo Desde o princípio, que eles mataram as onças
zaetsakazowakiyere, timala timala hitikiyola. grandes, ficaram com esse sangue no peito.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


hatiyo zowa hiyaeya, kaulone kaulone nerakolo, Foi assim, aqueles que fazem chicha, vamos avisar
waeye makakwanea, hezoahena hezoahena waumana. essas pessoas, vamos descer bem na parte da tarde.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatiyo no weteko, ezoahena maetsakore hiyaeya, Ele desceu no terreiro, você não viu o peito dele,
timala timala hitikiyola. está cheio de sangue.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatiyotare hatiyotare, Enoré Enoré Wakomoné, Ele é igual Deus, é chamado Wakomoné vai descer
ezoahena ezoahena waumana. para nós.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


[…] [...]

(JZ_26062017_037)

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Ezoahena, ezoahena waumana, maitsatya, maitsatya Está descendo para nós, vocês não lembraram dele,
zotyitene, wikiyoke, wikiyoke Wakomoné, hoholatyo, nosso tio Wakomoné, com o vento, o espírito dele,
ezainiyakwanehare, ezoahena, ezoahena waumana, está descendo para nós, de noite, à meia-noite.
ma akia, ma akia wahazati.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kazaloza, ezakitse fahare, kazaloza, kazaloza fahare, Ele é tomador de água da mandioca, está descendo
ezoahena, ezoahena waumana, wikioke, wikioke para nós, o nosso tio Wakomoné.
Wakomoné.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Awo kano, herokore fahare, ajiyeho, ajiyeho fahare, Ele é comedor de asa de ema, fumador de cigarro,
ezoahena, ezoahena waumana, wikyioke, wikyioke está descendo para nós, o nosso tio Wakomoné.
Wakomoné.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Mayetsakore, mayetsakore jiaeya, wiikyioke, wikyioke Vocês não estão vendo, vocês não estão vendo, o
hetyikola, timiyala, timiyala hetyikola, Wakomoné, peito do nosso tio cheio de sangue, o peito cheio de
Wakomoné, Wakomoné hetyikola. sangue de Wakomoné, o peito de Wakomoné.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hetatyi, hetatyi zowakere, oloyhatyo, oloytxinikalôre, Desde a época do surgimento, daquela onça grande,
Zaitsaka, zaitsaka zowakere, tyihimala, tyhimala desde que foi causada sua morte, o peito dele está
hetyikola. cheio de sangue.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(AZ_25052017_003)

Como último exemplo deste grupo, o próximo canto narra a origem de características físicas
dos gaviões, neste caso, de suas “pinturas” formadas pelos desenhos de suas penas. As penas

137
dos gaviões são utilizadas para confeccionar as flechas de curar korewayese. Conforme a
narrativa, as cobras matam uma pessoa, o que faz com que os gaviões decidam se vingar. Como
um índice de sua intenção bélica, os gaviões apanham jenipapo para se pintar. O galho da
esquerda era o jenipapo das onças, o da direita o jenipapo dos peixes, e o do meio o jenipapo
dos gaviões. Começam a coletá-los e a se pintar com diversos motivos gráficos diferentes. Neste
processo, alguns gaviões ficam “mal pintados e feios”, e outros “bem pintados e bonitos”, como
ainda são até hoje. Os que foram mal pintados são aqueles que ainda hoje comem as cobras,
pois não ficaram satisfeitos com seus desenhos e ainda travam esta guerra com as cobras em
forma de vingança.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Watomaniya tauna, watomaniya tauna, jininaehe O galho da esquerda, o galho da esquerda, é o
zanane, katore zoimiyanae, katore zoimiyanae. jenipapo das onças, meus irmãozinhos, meus
irmãozinhos.
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Onemaniya tauna, onemaniya tauna, kohatsenae Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
zanane, katore zoimiyanae, katore zoimiyanae. O galho ao lado do rio, o galho ao lado do rio, é o
jenipapo dos peixes, meus irmãozinhos, meus
irmãozinhos.
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Totere no e tauna, kokoeniyae zanane, katore Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
zoimiyanae, katore zoimiyanae. O galho do meio, o galho do meio, é o jenipapo dos
gaviões, meus irmãozinhos, meus irmãozinhos.
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
[...] Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
[…]
(AZ_25052017_009)

O terceiro grupo temático apresenta cantos relacionados ao ancestral Kaymare, cuja


importância está relacionada tanto à “saga” que sua história representa (uma narrativa extensa
e elaborada), como à sua associação à origem das flautas iyamaka e à origem da lua. Kaymare
foi o destinatário/recipiente das flautas iyamaka recebidas da gente da água, seus donos
originais. É Kaymare portanto o primeiro dono Haliti das flautas, sendo ele reconhecido através
da identidade, enquanto um antepassado. Os cantos relacionados a Kaymare recorrem
consequentemente à temática das flautas, revelando e enfatizando principalmente os tabus e
explicações relacionadas aos cuidados específicos que as flautas devem receber como, por
exemplo, comportamentos desaprovados que podem gerar a indisposição de seus donos.

138
A história de Kaymare é também relacionada ao incesto, pois Kaymare teria tido relações
sexuais com sua irmã Oloyalo, escondido, no escuro, enquanto ela dormia em sua rede. Sem
poder identificar seu amante, Oloyalo bola um plano e decide passar jenipapo no rosto do seu
visitante noturno, para descobrir sua identidade. Kaymare é então descoberto através da mancha
persistente da tinta do jenipapo em seu rosto. Por causa do incesto, Kaymare e Oloyalo tiveram
que fugir de sua aldeia, pois seus irmãos queriam matá-los. A narrativa da fuga dos irmãos é
bastante longa e cheia de detalhes. Desbravam o território, percorrendo longos caminhos e
conhecendo novos locais do território. Chega um ponto em que, sem opções e solitários,
decidem subir ao céu, se transformando em “lua”. Vemos no canto a seguir a referência ao
momento da “subida” de Kaymare e Oloyalo ao céu, caracterizando o incesto – e portanto, a
transgressão de uma regra social – como elemento motivador desta transformação.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hehaekwala hiyaeya, hehaekwala hiyaeya, hatxikini Agora você pode virar para trás e ver, agora você
manya, hehaekwala hiyaeya, hatxikini manya, pode virar para trás e ver, minha parente Oloya,
hatxikini manya, nowaikiatyo Oloya, nowaikiatyo minha parente Oloya.
Oloya.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kaidykoni makere, kaidykoni makere, zalawatakonhe Só montanha, só montanha, virou só mata alta,
no, tyauna tidya no hatyo, nowaikiatyo Oloya, minha parente Oloya, minha parente Oloya.
nowaikiatyo Oloya. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Neha ka ahatiyo, neaha aeniyakwahena, hanatyore Assim falou, falou e foi voando, o cunhado falou, foi
no atyo, neaha aniyakwahena, hamatyawalohalo, voando, os safados, Oloyalo com ele, Oloyalo com
Oloyalo ekakwa, Oloyalo ekakwa, hamatahokolia, ele, foi girando, foi girando ficando tonto, assim eles
hamatahokolia, hatyo no eno zane, eno no eno ezane. foram para o céu, foram para o céu.
[...] [...]

Kaiymare tiyokuekaty, Kaiymare tiyokuekati. Antepassado tio-avô Kaymare, antepassado tio-avô


hahahaloka kwano, hahahaloka kwano Oloyalo Kaiymare, com sua irmã, com sua irmã, com
ekakwa, Oloyalo ekakwa. Oloyalo, com Oloyalo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hooooooo... Hooooooo...

(FO_20052017_009)

Outro canto complementa a saga de Kaymare, narrando sobre o momento em que ele convida
Oloyalo para uma pescaria. Kaymare está chamando sua irmã para a cachoeira, pedindo para
ela levar peneira, massa de beiju e ralo de mandioca para pescaria. Eles vão na cabeceira do rio
Canaiva, onde tem a lagoa do Buriti, que tem bastante peixe – porque a lagoa está secando.

139
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Haekiyauretiya haekiyauretiya waolazó, Faz beiju pra gente, faz beiju pra gente, minha parente
haekiyauretiya waulazó, nowaekiyatiyo Oloya. Oloya.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waye no waye makarehena, waye makarehena, O rio está bem sêco, o rio está secando bem.
makarehena.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tonunoako tonunoakohitsenae, kamaewinha Os peixinhos estão na vargem do rio do sol, na vargem
tiyalakwa, kamaewinha tiyalakwa. do rio do sol.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Timare timare hakolatiya, timare hakolatiya, Leva o ralador, leva o ralador para nós usarmos lá.
witiyalamahata. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatiyoadiya hatiyoadya hakolatiya, hatiyoadiya Leva a peneira, leva a peneira também.
hakolatiya, Hakolatiya no atiyo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tohydi tohydi hakolatiya, tohydi hakolatiya, Leva o bacará também, leva o bacará, minha parente
nowaikiatiyo Oloya. Oloya.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zokawe zokawe taetaré, haekiyauretya holazó, Faz farinha de beiju, faz beiju para a gente, minha
nowaikiyatyo Oloya. parente Oloya.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tonunoko tonunokohizena, waye makakarehena, Os peixinhos estão aparecendo, está secando bem, o rio
kalanaza no Kalanaza kalanaza tahiya, etsoye da canaíva, o rio da canaíva, a lagoa do buriti.
hokoloreza. [...]
[...]

(FO_20052017_011)

Outros cantos em que Kaymare é protagonista apresentam a temática das flautas iyamaka de
forma mais evidente. Kaymare (Kaema, de forma abreviada), filho de Wazare, sempre escutava
um barulho vindo de dentro do rio quando ia tomar banho. O barulho, bem bonito, era de uma
flauta iyamaka. Quando voltava para aldeia, pedia à seu pai que lhe desse uma flauta, porém
ele se negava, alegando ao filho que para cuidar de iyamaka teria que preparar chicha, caçar, e
que isso daria muito trabalho. Mesmo assim, Kaymare falou que cuidaria da flauta, que iria
caçar ema e veado para tratar dela. Este canto evoca o cuidado e tratamento das flautas iyamaka,
que devem ser alimentadas com chicha e animais de caça.

140
[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Nojitiyaki aba, iyamakaki aba, abazani Wazare. Eu quero ter flauta só para mim, meu pai Wazare.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Howitihare hare, howitihare hare, iyamakaki hare, Meu filho Kaema, é muito difícil você ter flauta, dá
harezani no Kaema. muito trabalho.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoarekakwaeyakore, zoarekakwaeyakore, Meu filho Kaema, com o que você vai tratar dela?
hakaulatene auka, harezani hare no Kaema? [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zotiyare zotiyare, zotiyare hozerore, Posso caçar veado para eu tratar dela, pode ficar
holomazanakoedi, eye kakoita aba, nakaulatene aba, tranquilo com isso meu pai, meu pai Wazare.
nemehezaekiotene, abazani Wazare, abazani Wazare.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zotehe walomaza, eye kakoita aba, nakaulonezatene, Com chicha de areia amarela posso dar de beber a
howitihare hare, iyamaka ki hare, harezani no ela, é muito difícil de ter flauta, dá muito trabalho,
Kaema. meu filho Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JT_04052010_002)

O tratamento das flautas é o tema também do próximo canto, que enfatiza a necessidade de sua
alimentação adequada, com caça de ema e veado. Sequência e continuação do canto anterior,
este evoca a história de Kaema tentando pescar peixe lambari vermelho (kolomi ou kohase
zotyaihore) embaixo da cachoeira chamada Maeheza, no rio chamado Aliyautokoza, para tratar
suas flautas. Enquanto pescava, a seriema (kolata) o reprimia e não deixava, dizendo que aquele
peixe não servia para tratar das flautas iyamaka, porque era muito fedido, tinha o cheiro muito
forte. Então a seriema falou para Kaema que o alimento adequado para para iyamaka fica nos
campos e não no rio – é a ema e o veado.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoare hamaediyatita, zoare hamaediyatita, O que você está pescando, o que você está pescando,
nozaeiyani no Kaema, nazaeniyani no Kaema meu sobrinho Kaema, meu sobrinho Kaema.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kolomi zotiyaehore, kolomi zotiyaehore, matoko Estou pescando lambari vermelho, lambari
zalaetseta, ezetahe nola, nama namaediyatita, vermelho, no rio buriti, eu estou pescando, para
zohiniyo zohitero, eze ezeta nola, namaediyatita. tratar as flautas com esses lambaris.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kolomi zotiyaehore, matoko zalaetseta, iyamaka he Os lambaris vermelhos, para tratar as flautas, eu
nola, nama namaediyatita, kolomi zotiyaehore, estou pescando lambari vermelho, meu tio seriema.
kokozani kolata.

141
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Kohatse norerekani, kohatse norerekani, iyamaka no Os peixes não sevem, os peixes não servem, para
hauka, olore no tiyauna, nazaeniyani no Kaema, tratar as flautas, esse não é o preferido da flauta, meu
nazaeniyani no Kaema. sobrinho Kaema, meu sobrinho Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tsenehare tiyaona, tsenehare no tiyauna, iyama O peixe tem cheiro muito forte para flauta,
iyamaka, enolare no tiyaona, olore nolore, olore preferidos da flauta são as carnes de ema e veado,
enola, olomazamakoedi, ahiya ahiyanare, eye no esses são preferidos da flauta.
tiyaona, iyamaka enola.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Olorehe enola, kazatiyo enola, olomazamakoedi, A comida preferida da flauta fica só no campo, como
ahiya ahiyanare, eye norere tiyauna, matseareka veado, ema, tatu peba, esses são os preferidos da
tiyauna, matseareka tiyauna iyamaka enola, flauta, meu sobrinho Kaema, meu sobrinho Kaema.
nozaeyani no Kaema, nozaeyani no Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tsenehare tiyauna, tsenehare no tiyauna, Os peixes têm cheiro muito forte, não serve para a
matsenehareyatiya, iyamaka enola, tiyauna tiyauna comida da flauta, meu sobrinho Kaema.
hauka, nozaeyani no Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JT_04052010_003)

Numa variante, Kaymare está oferecendo peixe piraputanga e pacu dentro de um cesto, no meio
do terreiro, para iyamaka. Então seu pai o adverte que iyamaka até pode comer esses peixes,
mas que sua comida preferida fica no campo chamado Zolanawekwa, e que são as caças de ema
e veado. A ênfase recai novamente sobre a necessidade de prover a alimentação adequada às
flautas, com caça de ema e veado. A complementaridade entre os cantos fica aqui mais evidente.
Orbitando ao redor do ancestral Kaymare, estes cantos reafirmam temas correlatos,
suplementados através de episódios e detalhes complementares.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aliterezakore, aliterezakore, iyamaka norere, tiyaona É verdade, é verdade, a flauta pode comer, aquela
hatiyo iyamaka, harezani no Kaema, harezani no flauta pode viver, meu filho Kaema, meu filho
Kaema. Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aliterezakore, weteko meketseta, haehikiyoatiya É verdade, no meio do terreiro, você colocou a
enola, hotxikiyare kaehiyare, harezani hare no comida dela, o peixe pirapuntanga, meu filho
Kaema, harezani no Kaema. Kaema, meu filho Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aliterezakore, koehidi hekoeta, tautseako hekoeta, È verdade, você colocou no cesto, você colocou a
haehikiyoatiya enola, hotxikiyare kaehiyare, harezani comida dela, o peixe piraputanga, meu filho Kaema.
no Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

142
Matse zolanawekwa, tiyaona hatiyo enola, hatiyo No campo Zolanawekwa, fica a comida dela, são
enola, hamere makalore, zotiyare hozerore, harezani aquelas caças, ema e veado, meu filho Kaema.
no Kaema.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JA_10112017_018)

A relação entre Kaymare, as flautas e as mulheres é tematizada em outro canto: Kaymare, muito
desatento (“muito bobo”), deixou as mulheres verem as flautas; por causa disso, a flauta
ualalose e a vara-guarda waore vão voltar para o fundo do rio. A narrativa completa conta que
Kaymare tinha apenas uma flauta e cuidava dela. Certa vez as mulheres roubaram sua flauta e
fugiram para dentro do morro. Kalaytewe, chefe da gente da água, decide presentear Kaymare
com mais flautas, vendo que havia sido roubado. Quando ganhou as flautas de Kalaytewe,
entretanto, Kaymare cometeu o erro de mandar as mulheres o encontrarem na beira do rio para
buscar as flautas, o que desagradou e contrariou Kalaytewe. Por esse motivo, nem todas as
flautas ficaram aqui na terra já que muitas delas retornam para o fundo do rio e lá permanecem.
A proibição da visão das flautas pelas mulheres é reconstituída pelo mito, que enfatiza o
comportamento transgressor de Kaymare, aproximando as mulheres e as flautas e contrariando,
portanto, seus donos. Se atentarmos para o perfil de comportamento de Kaymare revelado pelas
narrativas, percebemos que ele é de fato um transgressor: seja no ato de incesto realizado com
sua irmã Oloyalo, seja no encontro promovido entre as flautas e as mulheres – em ambos os
casos, aproximando o que deve ser se manter separado.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Hikiyahene, hikiyahene kazoka, Walalo, Walalo Por causa disso, a flauta Ualalo vai voltar, a flauta
haikwaheta, Walalo, Walalo haikwaheta. Ualalo vai voltar.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Maotikone harenikya Kaimare, haohidyoza Kaimare é muito bobo, ele viu meu rosto junto com
hajikiyakore kakwa, wahiyakwa tyhotyare no natyo. as mulheres.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hikahene, hikahene kazoka, ha atyo no, atyo no Por causa disso, ele vai voltar, o bracelete preto, a
haikwaheta, hotekala hotekalawaneze, wahaureha, vara sagrada Waore vai voltar.
wahaureha haikwaheta...

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Maotikone harenikya Kaimare, maotikone harenikya Kaimare é muito bobo, Kaimare é muito bobo, ele
Kaimare, waehiyakwa tyhotyare no natyo, haohidyoza viu meu rosto, junto com as mulheres, Kaimare é
hajikiyakore kakwa, waehiyakwatyhotyare... muito bobo, ele viu meu rosto, junto com as
mulheres.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

143
Hikahene, hikahene kazoka, hikiyahene, hikiyahene Por causa disso, por causa disso, ela vai voltar, a vara
kazoka, ha atyo no, atyo no haikwaheta, wahaureha, sagrada Waore vai voltar.
wahaureha haikwaheta...

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Ohidyokakwa wahyakere kani, ohidyokakwa As mulheres não deveriam ter visto, isso que eu
wahyakere kani aukano, aukano natyo, Kaimare, queria, meu tio avô antepassado Kaimare.
Kaimare tyokoyekati...

(AZ_25052017_001)

Por fim, o quarto subgrupo de cantos evoca episódios da mitologia relacionados a gente da água
(yakane/yakanero)37, que são os donos originais das flautas iyamaka e considerados detentores
de grande poder de agência sobre os Haliti. A principal narrativa do desequilíbrio instaurado
pela gente da água, através do mito “A grande inundação” (PEREIRA, 1986), é um exemplo
desta agência, que pode ser potencialmente devastadora. A agência de yakane é temida
sobretudo por àqueles que não respeitam os cuidados com as flautas – já que são seus donos –,
mas também pelas meninas que têm a primeira menstruação, condição que as torna um alvo
preferencial desta agência potencialmente hostil. Entretanto, como a agência dos seres
habitantes do cosmos Haliti é “pessoalizada” – isto é, não generalizável para toda categoria,
mas derivada de “um” nome/espírito e sua subjetividade – a agência destes espíritos que
habitam patamares subaquáticos pode ser também restauradora, como por exemplo trazendo a
cura de doenças. De todo modo, os Haliti buscam manter controlada a indisposição de yakane,
através da manutenção das oferendas e cuidados adequados com as flautas iyamaka.

O primeiro exemplo de canto narra a história de duas meninas, Makwalikwalo e Makuyalo, que
vem fugindo e procurando se esconder da “mãe da água” chamada Himesezaulohare. Enoharese
estava pintando sua borduna debaixo da figueira e vê as meninas chegando. Elas dizem a ele
que a mãe da água acabou com todos, que só sobraram elas, e pedem ajuda. Enoharese então
as coloca no alto de sua casa, em um compartimento semelhante ao jirau, porém mais alto, no
topo do esteio-chefe, e continua pintando sua borduna. As meninas ficam apavoradas vendo a
enchente da mãe da água chegando perto. A água passou por todo lado, mas ao redor de sua
casa passou apenas como “folhas” – numa referência à leveza com que a água passa, incapaz
de danificar a casa. Atrás da enchente veio a mãe da água e Enoharese deu-lhe uma bordunada,

37
O termo yakane se refere ao gênero masculino, enquanto yakanero ao gênero feminino. Em relação às traduções,
os Haliti utilizam diferentes termos para se referir a estes seres, como por exemplo “mãe da água”, “homem da
água”, “rei dos rios” ou mesmo “sereia”.

144
matando-a definitivamente. As meninas, agradecidas por ele ter salvado suas vidas, decidem
ficar morando com Enoharese e preparando chicha para ele como forma de agradecimento.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeya, nowaeya henaha, hatyo nowaeyehena, Eu não estou acreditando no que estou vendo, as
iwaka, iwaka zehokala. pessoas estão fugindo, para as sereias não pegarem
elas.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hali, hatyo Makalikwalo, hali, hatyo Makowiyalo. Está aqui a Makalikwalo e a Makuyalo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoare hea, zoare heatyazoka, hatyo no, hatyo no Meu primo Enoharese o que você vai fazer para nos
notyauwe, eno ho, hatyo no Enoharetse. salvar?

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoare heatya hatyo, nikahena, nikahena no hatyo, Meu primo Enoharese como você vai nos salvar?
notyaune, notyaune Enoharetse. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatyo hatyahehera, neaha, nea mokohenene, neaha Vou esperar eles um pouco, também vou bater neles,
nea mokotene, hatyo, hatyo e enatyahola, com minha borduna, assim eu vou bater com minha
enatyaholakakoita, hatyo nea mokohenaha. borduna antiga.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Neare nehena, zoare hena, zoare hehenaeyartya, Meu primo Enoharese, o que você vai fazer com a
wihawauni, wihawaunita hatyo, notyaunewe, gente, vamos ser devorados pelas sereias.
notyaune Enoharetse. [...]
[…]

(JZ_26062017_006)

Complementar à mesma narrativa da “grande inundação”, em outro canto Enoharese utiliza


novamente a sua borduna para quebrar a “trava da gente da água” (tanoha), a barragem
construída por Zaloka (“homem-sucuri”) para causar a enchente na terra.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waeutiyahareneze, waeutiyahareneze, Zaloka A trava de Zaloka, ele bateu forte na trava, ele
haewerore, mokotiya hatanoha, tanoha quebrou a trava.
taekiyakwatiya.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Iyaka tanohane, tanohahanehe, mokotiya A trava da gente da água, ele bateu, ele quebrou a
taekiyakwatiya, enoharetseyani enatiyaholakakwa. trava, Enoharese com sua borduna.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waeutiyahareneze, waeutiyahareneze, mokotiya O sábio Enoharese bateu forte na trava, ele quebrou a
tanoha, tanoha taekiyakwatiya, Enoharetseyani. trava.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

145
Enoharetseyani, enoharetseyani, enatiyaholakakwa, Enoharese, com sua borduna, com a borduna velha de
txidi txidihokakwa, hozakerehokakwa Enoharese, quebrou a trava.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Iyaka tanohane, waedidikiyare, etanohanehene, A trava das sereias, ele bateu forte, bateu e quebrou a
mokotiya taekiyakwatiya. trava.
[...] [...]

(JA_10112017_021)

Em três versões a seguir, as narrativas sobre o antepassado Ahozay (lobo-guará) também dão
ênfase aos modos de agência da gente da água: Ahozay está pedindo à sua esposa sua borduna
e sua boroca (cesto/bolsa) para poder “descer” na festa da gente da água. A esposa não quer
que ele vá, pois acredita que eles estão fazendo essa festa para devorá-lo. Mas Ahozay insiste,
diz que não é uma pessoa “qualquer”, que é convidado e bebedor de chicha, e que vai bem-
preparado, pois ele tem “pedra na polpa de sua bunda” e consegue “andar com o vento” – uma
referência à capacidade de afundar dentro do rio, alcançando os terreiros de yakane, e de sua
capacidade de fuga, caso necessário. Koytihore é o homem da água que está fazendo a festa e
quer comer Ahozay – uma presa em potencial.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zama ali zama ali, zama ali natiyaholi, zama ali, zama Me dá aqui minha borduna, me dá aqui minha
ali natiyaholi, nezanitiyo, nezanitiyo Kiaulo, nezanitiyo, borduna, minha esposa Kiaulo, minha esposa
nezanitiyo makoeha, eraza, eraza há nozani, nozani, Makoeha, assim posso ir beber, posso ir beber.
nozani noteraha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zama ali zama ali, zama ali natiyaholi, zama ali Me dá aqui, me dá aqui minha borduna, minha
natiyaholi, nezanitiyo, nezanitiyo Kiaulo, nezanitiyo, esposa Kiaulo, minha esposa Makoeha.
nezanitiyo Makoeha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Erati erati natiyahola, erati erati na hojeni, erazoka Minha borduna de beber chicha, minha boroca de
erazoka nozani, nozani nozani noteraha beber chicha, assim posso ir beber chicha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Iwaka iwaka há nolone, iwaka iwaka há nolone, owa Chicha da gente da água, chicha da gente da água,
maetsa owa maetsa ahozae, waeya hatiyo waeya você não pode Ahozay, você pode ser devorado
aliazoka, anezanene Ahozay. pelas sereias, meu marido Ahozae.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hinikiyaka hinikiyaka hanaza, kaulone Eles estão fazendo a festa para devorar você, meu
kauloneahahitaha, ane nezanene Ahozay. marido Ahozay.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nea neahaka, nea walaloyalo. Assim a flauta ualalo falou.

(MN_01062017_003)

146
[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Hatyo eróta, hatyo erótayhyakóre, hánitsa, hánitsa aia Será mesmo, que eles vão me devorar? Não podem
hauká, olonity, olonity faharé, hánitsa, hánitsa aia devorar o convidado bebedor de chicha.
hauká.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Iyaká, iyakátyhá natyo, neazóka, nea ainyakohena, Eu vou lá, ele falou assim, foi voando, o lobo guará,
Ahozae, Ahozae tyokúekaty, zaneká, zaneká ezóahena, o antepassado Ahozay, assim ele foi descendo,
ewakane, meretyonehya kónyha, zaywetyua, desceu bem no meio da gente da água, ele desceu lá.
zaywetyuane kóniyá, zaneká, zaneká ezóhena. [...]
[...]

(AZ_25052017_025)

A descida até os terreiros da gente da água consiste numa “proeza”, já que é necessário
atravessar toda a água do rio sem se afogar. Ao atravessar a zona limítrofe do fundo dos rios,
chega-se à um lugar seco, como aqui na terra, porém localizado abaixo dos rios e córregos. O
acesso de Ahozay ao terreiro subaquático é tematizado pelo próximo canto, que na última
estrofe evoca o sentido de “revelação” – como se fosse uma “cortina se abrindo” e dando acesso
à este outro patamar de existência onde habita yakane.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Hatiyoerota, hatiyoerota hyiakore, hanitsa, hanitsa Acho que eles não vão me devorar, como eles vão
hahiauka, holonity, holonity fahare, nezanityo, devorar um [convidado] tomador de chicha, minha
nezanityo matseka. esposa.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Ehiyaka, ehiyakatiya natyo, ete hatyo, ete Se eles me pegarem, eu posso escapar, com o vento,
notxihehéna, kahohola, kawiniyehe milhako, como aquele que tem vida, como libélula.
maihotata, maihotata milhako.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Neazoka, nea aniakwahena hainiakwahena, neazoka, Assim ele falou e voou, assim ele falou e voôu, meu
nea aniakwahena, Ahozae, Ahozae tyokoekaty, tio avô antepassado Ahozay [lobo-guará], ele desceu
zaneka, zaneka ezohena, iyakana, iyakana konihya. bem no meio da gente da água.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Tsehali, tsehali tyokoliye, kiwaure, kiwaure Com a bunda de pedra, assim ele desceu, o
kwatyhore, zaneka, zaneka ezoahena, Ahozae, Ahozae antepassado Ahozay.
tyokoekaty.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Iwakanae, iwakanae koniya, meretyoane, zaiwetyoane No meio da gente da água, se abriu para ele [se
koniya, olatyoane, olatyoane koniya, zaneka, zaneka revelou], assim ele desceu, o antepassado Ahozay.
ezoahena, Ahozae, ahozae tyokoekaty.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

147
(AZ_25052017_005)

Mais uma vez enfatizando os modos de agência de yakane, o canto seguinte narra a história dos
antepassados Ebaye e Zaulozakare, que são ameaçados pela gente da água por terem matado
uma jaguatirica. A gente da água é “dona” da jaguatirica-pintada, que realiza caçadas para eles;
por esse motivo, decidem “subir” para vingar sua morte. Porém, ambos são salvos por um
benzedor, que consegue remediar o conflito potencial.

[...] [...]
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Txinitseka, txinitseka kazaidyere, txinitseka, txinitseka A jaguatirica pintada era o caçador, a jaguatirica
kazaidyere, haitsareta, haitsareta enike, harezani, pintada, ele matou mesmo, matou mesmo, meu filho
harezani Ebaye, harezani, hareza Zaulozakare. Ebaye, meu filho Zaulozakare.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hekiyahene, hekiyahene kazoka, kenekwaka, Por isso eles subiram para você, por isso eles
kenekwaka homana, hekiyoke, hekiyoke harenaehe, subiram para você, o pessoal de seu tio, por isso a
ewaka, ewakaharenae, harezani, hareza Zaulozakare. gente da água subiu para você, meu filho
Zaulozakare.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Komitahe, komitahe nareka, malakaka, malakae Quase eles arrancaram com você, quase eles
hikyakware, hihaloha, hihalohalone, harezani, hareza arrancaram com você, o pé de sua figueira, meu
Zaulozakare harezani, harezani Ebaye. filho Zaulozakare, meu filho Ebaye.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aretiyaka, aretiyaka no hatyo, hawaye, hawaye Porque você benze bem, porque você benze bem, o
txihatyane, waye no, hihatyaka no hekiyoke, hekiyoke pessoal do seu tio, por isso que eles não devoram
ha, hekiyoke harenaehe, maytsaka, nitsahita hitso. vocês.
[...] [...]

(AZ_25052017_007)

No canto a seguir, em primeira pessoa, o enunciador conta que viu o cocho de armazenar chicha
da gente da água, nos terreiros da sumanera (espécie de árvore) e do jurupará (mamífero da
mesma família do quati), localizados abaixo do fundo do rio. O cocho é grande, alto e comprido,
feito de uma madeira semelhante ao buriti (kazotehe), apropriada para isso. O trecho sugere que
a gente da água também realiza festas de chicha, assim como os Haliti, armazenando a bebida
da mesma forma, num cocho, em grandes quantidades, como em oloniti kalorese.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeya, nowaeyahahenae, terota, iyakanae Eu estou vendo, o cocho da gente da água.
kotiyone.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nikiyare, nikiyarerarekore, iyakanae, iyakanae É desse jeito, o cocho das sereias.

148
kotiyone.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kazotehe, kazotehiniyatsetse, takore, iyakanae Feito de kazotehe [tipo de madeira que parece
kotiyone. buriti], ele é comprido, o cocho da gente da água.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeya, nowaeyahahenae, iyakanae, iyakanae Eu estou vendo, o cocho da gente da água, no
kotiyone, iyolaza, matsaehiyero weteko.. terreiro do jurupara, no terreiro da sumanera.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kazotehe, kazotehiniyatsetse, takore, iyakanae Feito de kazotehe, ele é comprido, o cocho da gente
kotiyone. da água.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JA_10112017_008)

Também em primeira pessoa, o enunciador do próximo canto diz que viu uma “cabeça” da
gente da água dentro da casinha de flautas. A cabeça é de Zaloka, o homem da água meio cobra
meio gente, escondida atrás das folhas de guariroba. Ele está escondido ali pois as mulheres
não podem vê-lo – se elas o virem, todos podem ser castigados e morrer. Este é um canto dos
antigos, que poucos ainda conhecem e que dá ênfase a proibição da entrada das mulheres na
casinha de flautas – um dos modos relacionados ao cuidado adequado com iyamaka.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeyaha Nowaeyaha henaha, nowaeyaha Eu estou vendo, eu estou vendo, a cabeça de yakane.
nowaeyaha henaha, hiwaka hiwakaha tsewedi.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nowaeyaha nowaeyaha henaha, wakolihana hatiyo, Eu estou vendo, escondido atrás das folhas de
zaewiyako nowaeyaha henaha guarirobas, eu estou vendo.
[...] [...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


eye hatiyo eherore weteko, iyolaza hatiyo no weteko, Eu vejo muitos no terreiro, no terreiro do jurupará, eu
nowaeya nowaeyehena, iwaka iwakahare hatiyo estou vendo, eles são yakane.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hatiyotare natiyo nowaeyehena, Zaloka Eu estou vendo, a cabeça do Zaloka, atrás das folhas
zalokehetsedi, wakoli wakolizaeyakota. de guariroba.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(JZ_26062017_034)

Por fim, outra narrativa de interesse evoca a história da menina-moça chamada Kuymatiholo e
sua relação com Kalaytewe, chefe da gente da água. A velha Katyatyanero, feiticeira gente da
água e avó de Kalaytewe, raptou a menina-moça chamada Kuymatiholo e foi levando-a para o

149
fundo do rio, bastante animada pois iria servir-lhe de refeição. Após “matar” a menina, colocou
ela na panela e foi banhar-se no rio. Kalaytewe, atento à movimentação, aproveitou o descuido
da avó e roubou a sua caça – a menina-moça –, levando-a para sua casa e pendurando-a no alto
escondida atrás de uma casa de marimbondos. Enquanto cozinhava sua mangava, a velha
percebeu que a menina não estava mais na panela. Assim, foi indagar com seu neto Kalaytewe
o que teria ocorrido. Quando chegou na casa sentiu o cheiro da menina, escondida atrás dos
marimbondos, e foi averiguar. Os marimbondos ferroaram a velha que saiu correndo e foi
embora com medo. Então Kalaytewe decide ressuscitar a menina: pegou um remédio do mato,
espremeu na sua testa e soprou fôlego dentro dela. Kuymatiholo volta à vida, virando esposa
de Kalaytewe e “preparando chicha para ele” como forma de agradecimento. Semelhante ao
canto que trata das meninas salvas da enchente da gente da água por Enoharese, é importante
sublinhar o caráter compensatório que a preparação de chicha assume em ambos contextos – a
chicha serve como uma forma de “pagamento” ou “presente” delas àqueles responsáveis por
salvar suas vidas.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kala kamahewita noli notxi, kala kamahewita noli Acho que quero comida, acho que quero comida,
notxi, notxihiani, notxiwe Kalaitewe. meu neto, meu neto Kalaitewe.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kala kamahewita noli notxi, notxihiani notxiwe Acho que quero comida, meu neto Kalaitewe.
Kalaitewe.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nali kiyane notiyoeta hauka abe, abezani, abe Eu nunca fui lá minha avó, minha avó
Katiyatiyanero, Abezani, abezani Tseutautserô. Katiyatiyanero, minha avó Tseutautsero [outro nome
da mesma pessoa]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


[...] [...]

(AZ_25052017_011)

2.4.3 Iyamaka zerane jitsoatyaka (cantos de saída das flautas do terreiro)

Esta modalidade de cantos de iyamaka anuncia o fim da execução do gênero musical,


direcionando os festeiros para a casinha de flautas para guardá-las e encerrar sua performance
no pátio. Num primeiro exemplo dos cantos de encerramento, temos uma interessante
associação do enunciador-festeiro com as cobras: em primeira pessoa, ele canta que “já está
indo dormir” numa touceira, embaixo do pé de mangava, para esperar sua caça, o rato de peito

150
branco do brejo. As referências apontam tanto para o local de “dormida” de uma cobra – uma
touceira no mato – como para o seu tipo de “caça” preferido – os ratos da vargem, parecidos
com cotias. Cantando “como se fossem cobras”, os festeiros reforçam mais uma vez esta
associação sugerida por iyamaka, incorporando-as através da agência verbal. Conforme
complementa Onizokaece, a associação de iyamaka às cobras é baseada na “aliança” e
“maestria” – uma relação do tipo dono/mestre, amplamente difundida na cosmologia Haliti:

A jararaca é uma, mas todas são aliados, jararaca é a principal, mas além dela tem
surucucu, cascavel. Jararaca é das mais bravas. Pegamos o nome da cobra pra falar da
flauta. Antigamente a palavra era iyamaka, depois que veio (o uso do termo) jararaca,
porque através dela aparece essa cobra, por isso que é jararaca também, mas o correto
seria flauta sagrada iyamaka [...] a flauta sagrada é o mestre das cobras, então o que
acontece, esse mestre, se não fizer as oferendas corretamente, ele pode mandar as
cobras, os aliados, para fazer os serviços, para castigar, assim que funciona a situação.
(ONIZOKAECE, 2017, grifo nosso)

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nozani no temaka, nozani no temaka, nemaki Agora já vou dormir, agora já vou dormir, estou
kawehena, nolinyae wahatyaka, ewahatyaka kakwa. morrendo de sono, já vou esperar minha caça,
estava esperando minha caça.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kayemalo natsenae. tyalakwa natsenae. ewahatyaka Os ratos do peito branco, que ficam nas vargens, eu
kakwa. nemaki kawehena. iyomatse nozotse, kamalotse estava esperando minha caça, estou morrendo de
nozotse, kalatsero nikyare, nemehene memilihaka, owi sono, meu olho ficou branco, meu olho ficou cinza.
kolonamare, owi iazenamare. fiquei igual mariposa, coro da cobra, cobra
cascavel, cobra bico de jaca.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Nozani no temaka, aihetsetse halinyae, katyolare koni. Agora já vou dormir, no meio de uma touceira da
nozani no temaha, nemaki kawehena, nolinyae mata, debaixo de uma mangava, agora já vou
wahatyaka, rwahatyaka kakwa. dormir, estou morrendo de sono, já vou esperar
minha caça, estava esperando minha caça.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(AZ_08112017_011)

Duas outras versões dos cantos de encerramento constituem uma imagem distinta: a do dia
amanhecendo. Na versão seguinte, o dia está clareando, com muita neblina, nas aldeias celestes
Kanahyhete, Konohyhete e Makahete. Num tom sublime, as aldeias são descritas como campos
bem bonitos e cheirosos, e o amanhecer é encantador. A relação desta temática com a
performance reside na correspondência entre o fim da execução dos repertórios de iyamaka no
pátio – quando as flautas voltam às suas casinhas – e o “retorno” dos festeiros-espíritos para
suas moradas – neste caso, encerrando sua participação naquele momento da festa.

151
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Kanahyhetehenã, Kanahyhetehenã, Lá em Kanahihete, em Kanahihete está clareando o
Txikawakehena no, txikawakehena no, wihiye no dia para nós, está clareando o dia para nós.
wihiye. [...]
[...]

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Konohihétehena, Konohihétehena, kazaekatalaka Em Konohihete, em Konohihete, está bem claro o dia
no, kazaekatalaka no, wihiye no wihiye. para nós, está bem claro o dia para nós.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Makahetehena no, makahetehena no, wihiye no La em Makahete, lá em Makahete, está clareando o
wihiye, Kazaetalakano, morezalo henaha, morezalo dia para nós, cheio de neblina, cheio de neblina.
henaha.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Kanã Kanãhinono, kanahi kanahi no Lá em Kanahihete, lá em Konohihete, está clareando
Kanahiyhetehenã, Konohihétehena, tidiyahatiyo para nós, o dia seguinte chegando, o dia seguinte
wihiye, kamaetalihenaha, kamaetalihenaha, chegando, bem de madrugada, bem de madrugada.
zaulitiyakehena, zaulitiyakehena.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zaulitiyakehena, zaulitiyakehena, kazaetalakano, no Bem de madrugada, bem de madrugada, está
wihiye no wihiye Kanahyhetehena. clareando o dia para nós, lá em Kanahihete.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Waye adyazekware, waye adyazekware, waye É um campo bem bonito e cheiroso, é um campo bem
kehorekware, waye adyazekware. bonito e cheiroso, é um dia encantador.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

(FO_20052017_015)

Em outra versão semelhante, o dia está amanhecendo nas aldeias do povo de Enoré, chamadas
Halatakwa e Zokowikwa. Os espíritos celestes estão muito alegres, de mãos dadas com suas
companheiras, com as “coisas” que ganharam da festa em suas mãos – uma referência ao final
das festas, quando se distribui uma série de alimentos aos convidados para levarem às suas
aldeias – enquanto o dia amanhece bem perfumado (airazero). Como explica Omoizokie,
“Halatakwa é lá no céu, [...] está amanhecendo lá, é aldeia no céu, aldeia de Enoré, Halatakwa
e Zokowikwa, aqui não tem esses nomes pra cá, é no céu, enokwa, lá que ele mora Enoré,
Wakomoné também mora lá né [...]”. (OMOIZOKIE, 2017)

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Keharere, kehareretarnaire, kehareretarnaire, Com muita alegria, com muita alegria, eles estão
Kamaetalihenaha, Kamaetali, kamaetalihénaza, amanhecendo, estão amanhecendo, estão
Kamaetalihenaza, Kamaetalihenaza. amanhecendo, estão amanhecendo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Enorenae, Enorenae makere, kamaetalihenaza, Os deuses [o povo de Enoré], todos os deuses, estão
Kamaetalihénaza. amanhecendo, estão amanhecendo

152
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Zokowikwa, Zokowikwa weteko, Halatakwa weteko, No terreiro Zokowikwa, no terreiro Halatakwa,
kamaetalihenaha Kamaetali, kamaetalihenaha, estão amanhecendo, todos os deuses, todos os
Enorenae makere, Enorenae makere. deuses.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hakanoako, hakanoakorekakwa, Hakanoakorekakwa, Eles estão de braços dados com as suas
kamaetalihenaha. companheiras, estão amanhecendo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Hakanoako, Hakanoakorekakwa, Zakowi Zakowidyo, Eles estão de braços dados com Zakowidyo e
Zakowi Zakowidyo, Zukowidyo, Zukowi Zokowidyo, Zukowidyo, estão amanhecendo, estão
kamaetalihenaza, kamaetalihenaza. amanhecendo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Halatakwa, Halatakwa weteko, Halatakwa weteko, No terreiro Halatakwa, no terreiro Zokowikwa,
Zokowikwa weteko, Kamaetali, kamaetalihenaza, estão amanhecendo, estão amanhecendo, estão
kamaetalihenaza, kamaetalihenaha. amanhecendo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Haydyazeno, Hadyazeharenenae, Hadyazeharenenae, Com perfume, bem perfumados, eles estão, estão
kakwa tidya no hatyo, Kaamaetali, kamaetalihenaza, amanhecendo, estão amanhecendo, eles estão
kamaetalihenaha, kamaetalihenaha. amanhecendo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Halatayhe, Halatayherokaze, Zukowiniyehoko, Eles estão com o que eles ganharam nas mãos,
Zukowiniyehoko, Hakahekwa, Hakahekwarekakwa, estão amanhecendo, todos os deuses, estão
Hakahekwarekakwa, kamaetalihenaha, Enorenae, amanhecendo.
Enorenae makere, kamaetalihenaha.

(FO_20052017_013)

Os modos que iyamaka “fala e se apresenta” no terreiro de festa – isto é, seus cantos e sua
performance – evidenciam algumas características de sua “persona” ritual. Num sentido mais
amplo, enquanto “espíritos invisíveis”, a agência de iyamaka é presentificada e incorporada nos
grupos de festeiros Haliti, que precisam se agrupar, cantar e performar juntos. Juntos, formam
um “corpo” maior e mais denso, apto à veicular a agência de iyamaka no terreiro. As fileiras de
homens são necessárias para que iyamaka se manifeste, imitando o movimento alternado e
ondulatório que remete ao “rastejar” de uma grande cobra no pátio da aldeia – uma “hiper
serpente”. Podemos apreender que iyamaka apresenta uma força transversal e incontida, no
sentido de que não se prende a apenas um suporte material, podendo transitar entre “corpos” e
“artefatos” mediadores de sua agência e presença. Iyamaka manifesta-se nas vozes dos festeiros
em uníssono, assim como na pele das pessoas, em forma de motivos gráficos da cobra. Dispersa
no ambiente e penetrável nos suportes materiais, mestre das cobras e dos venenos, sua agência
é tão complexa como surpreendente. De toda forma, todas as exegeses apontam para um
entendimento de que de fato são os espíritos de iyamaka que cantam, dançam e bebem durante
oloniti kalorese. Seja na utilização da primeira pessoa em diversos cantos, ou na utilização de

153
expressões do tipo “assim falou a flauta [...]”, os recursos expressivos dão suporte à esta
compreensão. Trata-se de uma presença que deve ser administrada, e isso ocorre através de
mediações performáticas específicas.

2.5 ZOLANE DENTRO DA MALOCA

Zolane dança pra Enoré, iyamaka [dança] pra yakane, outro espírito, separado, tudo
separado. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

O zolane constitui uma dança circular realizada dentro da casa de festa, onde participam
homens e mulheres. A menina-moça, que teve a sua primeira menstruação, é “apresentada”
através do zolane, marcando a sua progressiva saída da reclusão. Ela dança a noite toda entre
os cantores e essa é uma prerrogativa – é ela a que “mais” deve dançar durante a festa. Todas
as mulheres, inclusive a menina-moça, estão arrumadas com belos vestidos, enfeites e
maquiagem, e vão intercalando-se na fileira de homens, que puxam as séries de cantos e
danças. Dança-se lado a lado, de braços dados, aumentando a fileira pareada na medida em que
os espectadores se animam e entram na dança.

O zolane constitui um conjunto musical e performático com uma estrutura específica, que é
seguida durante sua execução. É assim subdividido em quatro grupos de cantos, que são: cantos
de entrada, cantos de meia-noite (até a meia-noite), cantos de madrugada (após a meia-noite)
e cantos de saída da maloca ao amanhecer. Além dos cantos, é também delimitado pela
performance o momento da reza de oferecer chicha para zolane – entre os cantos de entrada na
maloca e os cantos de meia-noite. É fundamental e demarcada a divisão de zolane em fases
específicas, conforme explica Eazokemae:

Na primeira entrada na oca, canta normal, histórias, mitos. Depois da entrada na casa,
vai rodar cinco rodadas, e o dono da festa vai dar chicha para os festeiros, vai falar
aquela reza [idyaete]. Depois disso, as damas vão dançar, vão dançar até amanhecer,
com os cavalheiros. Primeira entrada é só homem, depois do oferecimento, aquela
reza, que vão dançar as mulheres, até de manhã. À meia-noite, muda a voz do canto,
só muda a voz. Daí passa um tempão, quando chega de madrugada, daí muda o ritmo
tanto da dança como do canto. Meia-noite tem o canhoteiro, dá duas voltas de “ré”,
dança de canhoto. Madrugada dança para a frente e pra trás, canta um pouco até chegar
cinco, cinco e meia, dança assim até sair da oca. (EAZOKEMAE, 2017)

Durante o zolane a chicha é servida através de cabaças cortadas ao meio, formando grandes
cuias. Após a reza idyaete de oferecer a chicha do zolane, os festeiros bebem, derramam e

154
regurgitam grandes quantidades de chicha (nota-se algumas mulheres convidadas tentando
“salvar” os festeiros, em tom de brincadeira, pegando os baldes oferecidos pelos donos de festa
e despejando ao chão ou fora da casa para que eles bebam menos). Durante todo o zolane, a
chicha é servida em grandes quantidades aos presentes, principalmente aos festeiros, que não
escapam das ofertas e não podem recusá-las. A capacidade e voracidade para beber a chicha é
uma característica dos festeiros. Nesta etapa muita chicha é utilizada, seja bebida ou derramada
ao chão, já que ninguém pode negar o que está sendo oferecido pelos donos de festa (podem
“fingir” que bebem, trazendo à boca e derramando ao chão, mas nunca negar a oferta de
chicha).

A dança de zolane consiste em movimentos pendulares, para frente e para trás, girando ao redor
do centro da maloca em sentido horário e marcando o ritmo com a batida forte e sincronizada
dos pés à frente. Podem ser usados chocalhos nas pernas, que marcam o ritmo no mesmo
compasso da batida dos pés. O sentido horário da dança é invertido por volta da meia-noite,
quando num movimento chamado de “canhoteiro”, realizado apenas por algumas voltas na
casa, indica-se a transição para o zolane madrugada, desta vez com um ritmo “mais lento” e
vozes “mais suaves”. A forma musical é semelhante, no entanto, há uma diferença no tempo
rítmico entre zolane meia-noite e zolane madrugada, sendo a transição marcada pela redução
intuitiva da velocidade da dança e ritmo, indicada pelo “canhoteiro”.

Os cantos de zolane são executados através da dinâmica “puxador-resposta”, em que um dos


cantores é responsável por “chamar” ou “puxar” as estrofes que serão repetidas pelos demais
integrantes da linha de cantores. Entre o final e início de cada canto, são comuns os “gritos” de
exaltação, que seguem por toda noite. Zolane é executado da meia-noite até o raiar do dia na
primeira noite do ritual oloniti, e do pôr-do-sol até a madrugada (por volta das 3 horas da
manhã) no segundo dia de festa. Algumas pausas são realizadas para oferecer chicha e cigarros
aos convidados e festeiros-cantores, porém são breves e a execução é logo retomada. Apesar
de participarem da dança de zolane, intercalando-se com os homens na fileira de cantores, as
mulheres não cantam o zolane. A ambiência sonora de zolane é extremamente ruidosa, sendo
que não há um padrão contemplativo, mas sim interacional do público ouvinte: gritos, risadas,
conversas e todo tipo de expressões sonoras paralelas são amplamente admissíveis e
constituintes do ambiente (mesmo que, normalmente de madrugada, o silêncio do público,
talvez exausto pelas longas horas de festa, pode ser percebido e contrastado com a animação

155
perseverante dos festeiros-cantores). O final de zolane é marcado por uma série de cantos que
fazem referência ao amanhecer e raiar do sol, quando os festeiros saem da maloca indicando
sua terminação.

Zolane conta vários tipos de história. Os próprios cantores falam, que daí você aprende
tanto a história como o canto, e vai repassando. Zolane conta as histórias de origem,
os mitos. Iyamaka são quase as mesmas histórias, só que muda o ritmo do canto. Koko
zolane [tio zolane] é a forma de tratar a pessoa, os festeiros. (EAZOKEMAE, 2017)

Diferente de iyamaka – tratada através dos termos abé (avó), atyó (avô) e azé (bisavô) – os
festeiros durante o zolane são tratados pelo termo koko, que significa tio, indicando um
diferente grau de ancestralidade e parentesco. Apesar de ambos os gêneros musicais “cantarem”
as mesmas histórias, assumindo uma função narrativa – um aspecto que os aproxima – zolane
e iyamaka contrastam em diversos outros aspectos que ultrapassam a performance e a forma
musical, apontando para uma estrutura dialógica. Não somente os “ritmos” variam, mas
também os contextos de realização das performances musicais. Deste modo, os gêneros
musicais refletem conjuntos distintivos, que podem ser reunidos na seguinte composição:

Quadro 02 – Estrutura dialógica de elementos associados à zolane e iyamaka.

Zolane Iyamaka
Dança para Enoré (entes superiores) Dança para yakane (gente da água)
Chicha oferecida para Enoré Chicha oferecida para yakane
Flecha de curar korewayese Flautas iyamaka
Dentro da casa, ao redor do esteio central Fora da casa, no pátio da aldeia
Ênfase nos donos de festa Ênfase nos festeiros
Concentração, dança circular Dissipação, fileiras “dispersas”
Homens e mulheres juntos Homens e mulheres separados
Termos de parentesco koko (tio) Termos de parentesco abé (avó), atyó (avô) e azé
(bisavô)

Todos estes aspectos “concorrentes” das performances rituais de ambos os gêneros são
trabalhados em maior ou menor grau durante oloniti kalorese, demonstrando uma preocupação
tanto por delimitar o contraste entre eles, como também assumir seus intercâmbios. Em relação
ao desenvolvimento da temporalidade ritual enquanto conjunto, como um todo, estas
correspondências podem ser ainda mais problematizadas se levarmos em consideração que
existe uma sequencialidade ideal entre as execuções dos gêneros: primeiro iyamaka, seguido
de zolane, na primeira noite; e primeiro zolane, seguido de iyamaka, na segunda noite. Trata-

156
se em primeiro lugar de um movimento de transformação – um gênero conduzindo os festeiros
para a execução do outro, numa sequência ideal – mas também de englobamento – já que a
realização de oloniti “culmina”, ou tem o seu “núcleo” evidenciado pelo zolane, ao passo que
iyamaka se situa em posição “marginal”, no início (abertura) e final (encerramento) de oloniti
kalorese.

Refletindo esta estrutura performática ao nível da cosmologia, observamos uma estratégia para
lidar com a relacionabilidade exacerbada imposta pelo mundo invisível, um aspecto do qual
iyamaka é o índice principal. Neste sentido, aspectos como a comensalidade e coresidência
trabalhadas durante o zolane – em que a maloca da festa é o índice máximo – são as próprias
estratégias de continuidade do mundo social, e de sua reprodução, através da familiarização do
“outro”. A entidade composta que zolane gera é uma força centrípeta e quimérica, uma
identidade múltipla que conjuga fractais de agência masculinos e femininos no círculo de dança,
e suas resultantes são aquelas demandadas pela reprodução dos corpos e da pessoa Haliti – a
menina-moça, cuja idade fértil é a própria motivação de oloniti kalorese, é liberada de seu
resguardo, apresentada ao mundo social através da participação da dança de zolane, e da
atribuição de um nome suplementar. É o zolane o próprio efeito da convergência entre os sexos,
um reflexo da interação iniciada por iyamaka, intermediada pelo meio sonoro. Iyamaka, por
sua vez, trabalha através de uma força centrífuga, em relação com os outros patamares do
cosmos e materializada nos movimentos “errantes” performados no pátio da aldeia pelos
homens. Esta força exógena e a-social, permeia o mundo de “dentro da casa” e desenvolve com
ele interações. Através das sonoridades que penetram as casas e chegam até as mulheres, os
homens com elas estabelecem uma aproximação parcial, que não é visível, e vai culminar
durante zolane dentro da casa, propiciando a reprodução social. O que parece dramatizado – e
talvez efetivamente trabalhado no nível sutil – pela sequência performática dos gêneros
iyamaka e zolane é a própria fertilidade, aspecto do qual depende a reprodução social de pessoas
e corpos Haliti.

Como observado anteriormente, as temáticas dos cantos de zolane e iyamaka correspondem


majoritariamente, sendo possível interpretar as mesmas narrativas da mitologia em ambos os
gêneros musicais. O grupo de cantos identificado como “cantos de chegada nos terreiros de
festa para beber chicha” é também característico de zolane, variando apenas os nomes de
localidades e entidades à que estes cantos se referem. Através do mapeamento das temáticas

157
podemos observar, entretanto, que o privilégio às narrativas sobre a gente da água, sobre os
cuidados com as flautas iyamaka e temáticas à elas associadas não são privilegiadas por zolane
– mesmo que sejam pontualmente referidas. Apesar de existirem dezenas de permutações entre
iyamaka e zolane, podemos dizer que, em termos estruturantes, zolane prioriza narrativas de
origem diferentes daquelas priorizadas por iyamaka, estas por sua vez associadas muito mais
aos “entes superiores” – espíritos utyahaliti que habitam as aldeisa celestes – do que à “gente
da água”, corroborando a afirmação de que “zolane dança pra Enoré, iyamaka (dança) pra
yakane, outro espírito, separado, tudo separado.” (ZEZONEZOKEMAE, 2017). Os temas
priorizados por zolane, elencados como tipologia de interesse para esta descrição, formam os
seguintes subgrupos: 1. Cantos de chegada nos terreiros de festa para beber chicha; 2. Cantos
sobre histórias de origem das coisas e pessoas; 3. Cantos relacionados aos espíritos auxiliares
(utyahaliti, Enoharese, entre outros entes superiores); e 4. Improvisação/composição.

O último subgrupo – improvisação/composição – diz respeito a um único canto, que se destaca


em relação a todo o conjunto por revelar uma característica da produção musical Haliti até aqui
não evidenciada: a possibilidade de improvisação e criação temática. Trata-se da única peça
musical coletada que foi apresentada nesta configuração, um contraste de interesse em relação
a todos os outros cantos – e que revela, portanto, a flexibilidade da estrutura temática explorada
até então. Como veremos adiante, este canto é inspirado na personalidade de um parente Haliti,
ainda vivo e habitante de uma aldeia, que é problematizada em tom jocoso e de improviso.
Trata-se de o mais longo dos cantos gravados, de duração de aproximadamente 25 minutos.

E de modo semelhante ao apontado em relação aos repertórios de iyamaka, há uma série de


cantos de zolane fragmentados, episódicos e sem uma classificação que permita agrupá-los em
subgrupos de interesse. Em alguns casos, estes cantos fazem referência aos mesmos temas,
inclusive, àqueles abordados no repertório de iyamaka, como por exemplo: o ciúme entre
irmãos; a saudade de um(a) amante; a construção da maloca; a sovina do leite materno; a grande
figueira das aldeias celestes; a chicha de abacaxi do mato; entre outros (ver Apêndice C).

2.5.1 Zolane zerane jitsoakore hatyako zeratyaka (cantos de entrada de zolane na maloca)

Os cantos designados como “de entrada” constituem um grupo pequeno e específico, o que
valida o interesse em explorá-lo em sua totalidade. Temos a seguir uma sequência destes cantos,

158
cujo encadeamento é sugerido pelo intérprete Omoizokie. No primeiro deles, o ancestral
Wakomoné, referido como “nosso tio”, vem chegando sob a luz do luar, à meia-noite, descendo
do patamar celeste para comer e beber chicha na festa. Wakomoné é um espírito utyahaliti, e
aparece caracterizado como um consumidor ávido dos alimentos e bebidas disponíveis na festa.
No mesmo canto, há uma referência pontual à história de Xinikalôre (jaguar) já que Wakomoné
carrega “a mancha de sangue em seu peito”, associada à vingança contra o jaguar.

Zoare ware zomani, ezoahena waumana, ezoahena O que vem descendo para nós, descendo para nós,
waumana, makya wahazati, ezoahena waumana, descendo para nós, meia noite da noite, descendo
hatyota hatyotare, ezoahena waumana, wikoke para nós, aquele mesmo, vem descendo para nós,
Wakomoné. nosso tio Wakomoné.
[...] [...]

herokore fahare, herokore fahare, ajeyeho fahare Bebedor de mingau, bebedor de mingau, fumador
ezoahena waumana, ezoa no, ezoa hena, ezoa no, ezoa de cigarro, descendo para nós, descendo, descendo,
hena, kazaloza fahare, ezoahena waumana, ezoahena bebedor de água de mandioca, descendo para nós,
waumana, awo na awo, awo na mimidyautse, descendo para nós, tutano da ema, comedor de
mimidyautse fahare, ezoahena waumana, ezoahena tutano, descendo para nós, descendo para nós.
waumana. [...]
[...]

maitsakore hiaya, maitsakore hiaya, hetati zowakiya, Você não está vendo, você não está vendo, naquela
zowakyhere tidya, txini txinikalôre, zaitsaka zoakere, época, naquele tempo, da onça grande, tempo que
zaitsaka zoakere timala etikola, timala etikola, timala foi morto, tempo que foi morto, peito
etikola, wikoke wikoke no, wikoke Wakomoné. ensanguentado, peito ensanguentado, peito
[…] ensanguentado, nosso tio, nosso tio, nosso tio
Wakomoné.
[...]

(FO_19052017_001)

O segundo canto faz referência à narrativa de origem da chicha de milho. Conforme a exegese,
diferentes espécies de milho já cresciam no meio da mata – milho vermelho, milho amarelo,
milho fofo, etc. – numa referência ao milho em seu “estado selvagem”. Então Kidyalo, uma
senhora, orienta seu cunhado Kalaitewe, chefe da gente da água, a obter sementes de milho para
que possa fazer chicha. Em tom jocoso, Kidyalo diz que seu cunhado não faz roça, é preguiçoso,
não trabalha, provocando-o a obter as sementes para ela. Pede a ele para bater com uma vara
de negra-mina nas sementes para amassá-las, e assim fazê-las “derreter”, numa referência ao
processo de trituração necessário à produção da chicha. O milho selvagem passa a ser cultivado
neste local, chamado Azamakwa weteko, que faz referência ao local que habita Kidyalo. Esta
história trata tanto da domesticação de uma espécie vegetal de interesse – o milho das matas,
de seu estado “selvagem” para o cultivo doméstico na aldeia Azamakwa – como da
possibilidade de se produzir chicha a partir dela – um tipo de chicha bastante apreciada pelos

159
Haliti.

Hamokokwatya natyo, Hamokokwatya natyo, nohae Bate pra mim, bate pra mim, meu cunhado
no Kalaitewe, nohae no Kalaitewe, azama no weteko. Kalaytewe, meu cunhado Kalaytewe, no terreiro
[...] Azamakwa.
[...]

Kidyalo himatsero, Kidyalo himatsero, Sua sogra Kidyalo, sua sogra Kidyalo, falou que ele
aukare tare no, nomakaionihena, nomakaionihena, não trabalha, é preguiçoso não tem roça.
[...] [...]

Hamokokwatya natyo, nohae no Kalaitewe Bate meu cunhado Kalaitewe, assim está
era kautyakehena, era kautyakehena, kozeto aparecendo, assim está aparecendo, milho normal,
waniyotore, kozeto kolomaiho, era kautyakehena, era milho fofo, está aparecendo, está aparecendo milho
kautyakehena, kozeto kolomaiyho, kozeto txikyahidyo, normal, milho fofo, assim está aparecendo, assim
era kautyakehena, era kautyakehena, kozeto está aparecendo, assim está aparecendo, milho
wainiyotore, kozeto kolomaiho normal, milho fofo.
[...] [...]

(FO_19052017_003)

O terceiro canto da sequência narra a história de Hixikoliakware, o grilo barrigudo que leva os
seus parentes para as aldeias celestes, visitar os antepassados e beber chicha de milho. O grilo
barrigudo está fingindo e afirmando que é um espírito, assim como utyahaliti que encarnam no
pássaro xiritoá. O episódio remete às aldeias celestes, moradas dos espíritos dos antepassados
onde há um estado cerimonial permanente, associado principalmente à disponibilidade de
chicha e à imortalidade38.

Hamokokwatya natyo, zainhakwa nokakoi, zainhakwa Bate pra mim, vocês vão voar comigo, vocês vão voar
nokakoi, jekatseti nakoiya. comigo, no meio do cabelo.

Zainhakaha zainhakaha, zainhaka nokakoi, jekatseti Vocês vão voar comigo, no meio do cabelo, meu
nakoiya, nozae tyokoekatinha, nozae tyokoekatinha. sobrinho, os anciões, meu sobrinho, os antepassados.

Era kautyakehena, era kautyakehena, era Assim está aparecendo, assim está aparecendo, assim
kautyakehena, ane zozaitsenae, nozae tiykoekatinha. está aparecendo, meu sobrinho, os antepassados.

Ainhakwaha nokakoe, eno kalolakware, eno Voaram comigo, no céu cor azul, no céu cor azul,
kalolakware, era witserehena, nokautiyakalihare, assim vamos beber chicha, feito de milho fofo e milho
kozeto koinhotore, kozeto txikiyahidyo. normal.
[...] [...]

Ainhhakware aukowi, hitxikoliakware, Ele fala que voa, o grilo barrigudo, o grilo barrigudo,
hitxikoliakware, ainhakware aukowi, ainhakware ele fala que voa, ele fala que voa.

38
Os Haliti caracterizam as aldeias celestes dos antepassados como um lugar de abundância, fartura, beleza e
felicidade. Lá ninguém adoece e existe uma lagoa cujas águas tornam as pessoas imortais. A vida cotidiana é ritual
por excelência – um estado permanente de oloniti kalorese, em que as pessoas-espíritos vivem dançando, cantando
e consumindo chicha eternamente. O ritual oloniti kalorese, ao reproduzir esse modo de existência
temporariamente, é também uma forma de sua atualização.

160
aukowi.
Ele finge, ele fala que é espírito, ele fala que é
Alakareka hatiyo, otiyaHaliti aukowi, otiyahaliti espírito, o grilo barrigudo, ele fala que é espírito
aukowi, hitxikoliakware, otiyahaliti aukowi. [utyahaliti].
[...] [...]

Kozeto watiytore, kozeto kolomaiho Ele fala que é espírito, ele fala que é espírito, ele fala
otiyahaliti aukowi, otiyahaliti aukowi, jiditua aukowi. que é xiritoá [pássaro].

Aukowi tano hatiyo, hitxikoliakware, hitximokotedi, Aquele grilo barrigudo, ele fala que é espírito.
no otiyahaliti aukowi.

(FO_19052017_005)

O quarto canto completa a sequência de entrada de zolane sugerida por Omoizokie, em que
duas meninas, chamadas Taiwenamalo e Zozolokero, estão chegando numa festa na maloca do
chefe gavião, junto com seu cunhado Zalakiyani (o peixe cascudo, ou jeripoca). Eles estão
entrando em silêncio, devagar, de braços dados, para dançar zolane e beber a chicha da festa.

Wimiyaedyanehareta, wimiyaedyanehareta, witso ke Não podemos falar, não podemos falar, nós estamos
witsuahena, witso ke witsuahena, wiketekwahaneta. entrando, nós estamos entrando, devagarinho.

Wiketekwahaneta, wiketekwahaneta, witso ke Devagarinho, devagarinho, nós estamos entrando, na


witsuahena, namorera hanako, namorera hanako. oca do chefe, na oca do chefe

Zola kokoi hanako, zola kokoi hanako, witso ke Dentro da oca do gavião, Dentro da oca do gavião, nós
witsuahena, nonatiyrenakakwa, nonatiyrenakakwa. estamos entrando, com meus cunhados, com meus
[...] cunhados.
[...]

Witso ke witsuahena, witso ke witsuahena, taiwe Nós estamos entrando, nós estamos entrando,
Taiwemenalo, zozolo Zozolokero, Taiwemenalo e Zozolokero, de mãos dadas.
wikiyanoakorekakwa.

Hatiyolo atiyo hatiyo, Hatiyolo lotsero, Para beber a chicha de Hatiyolo, nós estamos
enomanezahana, witso ke witsuahena, witso ke entrando, nós estamos entrando.
witsuahena,

witso ke witsuahena, namorera hanako, zola kokoi Nós estamos entrando, na oca do chefe, na oca do
hanako, wiketekwahaneta, witso ke witsuahena. gavião, devagarinho, nós estamos entrando.

(FO_19052017_008)

Numa variante dos cantos de entrada, o chefe da gente da água Kalaytewe é novamente
evocado. Ele está chegando no escuro, depois da meia-noite, entrando na oca da festa. Ele tem
um grande nariz vermelho, que parece um cajuzinho do campo. No canto ele é referido como
um parente – nosso tio, nosso genro – o que se conforma, de acordo com um episódio da história
de origem das flautas iyamaka, com o seu casamento com a irmã de Kaymare, a menina

161
Kuymatiholo, que passa a morar com ele nas aldeias no fundo dos rios.

Zoare ware zomani, itsoahena waumana, maikiya O que está entrando para nós, bem a meia noite,
wahazati, itsoahena waumana. entrando para nós.
[...] [...]

Makakwa memereako, makakwa memereako, Na escuridão, na escuridão, está entrando para nós,
itsoahena waumana, kahene harenere, itsoahena ele é bem perigoso, está entrando para nós.
waumana.

Jikiyautse zafakatiya, jikiyautse zafakatiya, zoare Acordem e façam fogo, acordem e façam fogo, o
ware zomani, itsoahena waumana, kahenehare nere. que está entrando para nós, ele é bem perigoso.

jikiyautse zafakatiya, jikiyautse zafakatiya, zoare Acordem e façam fogo, acordem e façam fogo, o
ware zomani, itsoahena waumana, makakwa que está entrando para nós, na escuridão.
memereako. [...]
[…]

Zotiya zotiya ikili, itsoahena waumana, makiya Nariz dele é bem vermelho, está entrando para nós,
wahazati, zotiya zotiya ikili, motiya molazo zona. bem a meia-noite, parece cajuzinho do campo
maduro.

Maetsatiya zotitene, maetsatiya zotitene, hatiyota Vocês nem lembraram, vocês nem lembraram, é ele
hatiyotare, wikiyoke Kalaetewe, itsoahena waumana. mesmo, nosso tio Kalaitewe, está entrando para nós.
[…] [...]

Tene tene kati, tenekatitare, itsoahena waumana, Ele é nosso genro, está entrando para nós, veio ver a
hatxini hatxinitiyo, hatiyolotihowero, emakaeniyaza sua nora, chicha de polvilho, está entrando para nós.
hana, itsoahena waumana.

Hatiyota hatiyotare, tenekatitare, hitsoahena É ele mesmo, ele é nosso genro, que está entrando
waumana, hatxini hatxinitiyo, hatiyolotihowero, para nós, veio ver a sua nora, chicha de polvilho,
emakaeniyaza, itsoahena waumana. está entrando para nós.

Maetsakore jiyaeya, maetsakore jiyaeya, zotiya zotiya Vocês não viram, vocês não viram, o nariz dele é
ikili, motiya molazo zona, ikili itsoahena, hitsoahena bem vermelho, parece cajuzinho do campo, o nariz
waumana, makiya wahazati. está entrando, está entrando para nós, bem a meia-
[...] noite.
[...]

(JA_10112017_023)

Num canto semelhante, a “chegada” para a maloca da festa também é o tema central. Um dono
de flautas está entrando na casa, com sua borduna no ombro que possui a pintura em zigue-
zague – o motivo taikwahidyo, associado à pele das cobras. Ele está chegando no meio da
escuridão, vindo do “lugar das taquaras” – iyanakakware – uma localidade associada a
Zotyakware, o terreiro de Nahorekase. Como vimos, é nesta localidade que habitam os donos
das taquaras de que são fabricadas as flautas iyamaka, matéria-prima associada aos filhos de
Nahorekase.

162
[...] [...]
Nehenaka, makakore miliyako, iyamaka zekohatse, Estou dizendo, no meio da escuridão, sou dono das
natiyoki nitsoahena, natiyoki nitsoahena. flautas, eu estou entrando, eu estou entrando.

Natiyaho natiyaholi, hatiyo no tiyoakoliye, Com minha borduna, bem no ombro, a pintura dela é
taekiyoahidiyo zaedire, imiyazahi tautseze, zig-zag [taekwahidyo], da cor verde.
tiholahitautseze.

Kakoeta nitsoahena, natiyo ki nitsoahena, iyamaka Estou entrando, eu que estou entrando, sou dono das
zekohatse, hetati zowakiya, natiyo ki nitsoahena. flautas, desde o surgimento, eu que estou entrando.

Makakore miliyako, makakore miliyako, natiyoki No meio da escuridão, no meio da escuridão, eu que
nitsoahena, iyamaka iyamaka, iyamaka zekohatse. estou entrando, flautas, sou dono das flautas.

Natiyo ki nitsoahena, hetati zowakiya, natiyaholitse, Eu que estou entrando, desde o surgimento, com
hatiyo no tiyoakoliye, tiholaeyerotautseze, hatiyo no minha borduna, bem no ombro, da cor verde, bem
tiyoakoliye, natiyo ki nitsoahena, iyamaka iyamaka, no meu ombro, eu estou entrando, flautas, sou o
iyamaka zekohatse. dono das flautas.
[...] [...]

(MN_01062017_014)

A evocação da chegada dos ancestrais donos de flauta e da gente da água no início de zolane,
durante a entrada na maloca, sugere uma zona de continuidade entre a performance de iyamaka
– que acaba de terminar no terreiro, quando as flautas são guardadas na casinha de flautas – e
de zolane, através dos festeiros que passarão a performar outro gênero musical. Essa
“transformação” – ou mesmo “transubstanciação” – dos festeiros, assumindo a identidade de
zolane, será efetivada através da chicha de zolane, que será oferecida a seguir em grandes
quantidades aos festeiros. Neste bloco de seis exemplos de cantos de entrada de zolane,
observamos que há um padrão predominante que se repete em quatro deles – cantos que narram
a entrada dentro da maloca, para participar da festa e beber chicha, de subjetividades que são
denominadas através dos cantos. As outras duas versões, por sua vez, apresentam temáticas
distintas, que são a origem do milho para chicha – narrativas de origem – e a visita do grilo
barrigudo às aldeias celestes para beber chicha – uma chegada “invertida”, neste caso, sendo os
espíritos utyahaliti os anfitriões. Apesar de predominar a tipologia de cantos de “chegada para
chicha”, adequando-se à fase que antecede o oferecimento da chicha de zolane, ela não é
restritiva. De todo modo, neste conjunto de cantos de entrada a chicha é o elemento
privilegiado, além de serem trabalhados outros temas que serão predominantes nas outras fases
de zolane, que são os mitos de origem e aqueles relacionados aos espíritos auxiliares, através
da ampla referência aos seus nomes.

163
2.5.2 Zolane hiye nidiyaetyaka (oferecimento para zolane)

A reza de oferecimento de chicha para zolane evoca tanto o próprio ato de oferecer a bebida,
como o episódio mítico de origem deste gênero musical. Esta narrativa se refere à saga de dois
irmãos, bons caçadores que nunca erravam uma flechada: acertavam qualquer passarinho
mesmo que estivessem voando. Eles decidem visitar as aldeias celestes, buscando mulheres
para casar-se no meio do “povo da onça” chamado Xinimaosene – um grupo/família habitante
do patamar celeste. Quando chegaram, o povo da onça resolveu testá-los, pedindo para flechar
uma anta. Colocaram uma anta na frente deles para eles flecharem, porém a anta ficou pequena,
do tamanho de um ratinho.

O primeiro irmão disse que daquele tamanho ele não precisava flechar, era só pelotear que ele
matava. Pegou uma pelota, arremessou e quando bateu no “ratinho”, ele virou uma anta grande
e correu. Foi então que o pessoal de Xinimaosene comeu ele, porque não conseguiu matar a
anta. O outro irmão, porém, conseguiu flechar o “ratinho” e matou a anta, não sendo devorado
pelo pessoal de Xinimaosene, e assim ficou vivendo entre eles. Passado um tempo, o irmão que
sobrou, o morcego (mahiye), estava bem próximo ao rio no porto da aldeia de Xinimaosene,
assobiando uma música bem bonita. Uma senhora chamada Xinimaosero estava descendo o rio
e escutou o barulho, e se aproximou porque gostou muito da música. O morcego falou que
estava assoviando a música que eles sempre cantaram, desde que saíram da pedra. Xinimaosero,
impressionada com a beleza do canto, chamou então o morcego para ir “festar” em sua casa, e
pediu para ele levar seus cunhados e cunhadas.

Foi então que o morcego teve uma ideia, a fim de vingar a morte de seu irmão: “pagou”
(presenteou) a aranha para fazer uma “rede” em volta de toda a casa de Xinimaosene, que estava
cheia, para que eles ficassem cercados sem ter como fugir. Pegou seu pilão de socar, colocou
nas costas e entrou na casa dançando e cantando. O povo de Xinimaosene achou aquilo estranho
e perguntou por que ele trazia o pilão nas costas, que aquilo era perigoso durante a festa; mas o
morcego disse que ele era assim mesmo, que ele gostava de “festar perigoso” – mal sabiam que
era uma emboscada. Foi então que matou com o porrete todo o grupo de Xinimaosene, que não
teve como fugir da emboscada, sobrando apenas uma pessoa, chamada Xinimaose. Esta é a
história do gênero musical de zolane, a música que surgiu a partir do assobio do morcego no
porto do povo da onça. Trata-se de uma história de vingança contra o pessoal de Xinimaosene,

164
por causa da morte de Iyolaware, irmão do morcego. A bela música assoviada pelo morcego
aparece aqui como uma armadilha, a “isca” que atraiu a velha Xinimaosero e sua família para
a vingança. Além de constituir uma armadilha de captura, dá origem ao zolane, caracterizado
por uma relação de continuidade com a música de origem do povo Haliti – já que é “a música
que eles sempre cantaram, desde que saíram da pedra”. Observamos a mesma narrativa
interpretada em três versões da reza de oferecimento à zolane:

Hitserehena... Pode tomar...


Koko zolane... Tio zolane...
Eautseta... E então...
Hikiyautyakene zawakia... Desde a época do meu surgimento...
Koko zolane... Tio zolane...
Nea ho... Foi assim...

Zoare hamiyahazatita wiwaretanakota tami mahiye O que você está assobiando, bem ao lado do nosso
zani nehena... porto, meu sobrinho morcego...
Natiyotitiyano... Estou fazendo a música...
Namiyahazatita... Estou assobiando uma música...
Nake txinimautsero... Minha tia onça sem olho...
Wihikwane zowakiyere... Como quando saímos...
Kani totoneakoreza... Como a semente pequena do pequi...
Nea ho... Foi assim...

Zolane keharere namiyahazatita nake txinimautsero Estou assobiando o canto de zolane, minha tia onça
awitsa maka hoka hitso himazalo wiye sem olho, que canta bem bom, vocês podem ir lá hoje
hinhatiyorenae hetsauneronaekakwa, para vocês cantarem com seus primos, meu sobrinho
tami mahiyezani... morcego...
Nea ho... Foi assim...

Eautseta awitsatiyaete nokaheneharetidiya nake Então hoje vou carregar no meu ombro o socador [de
txinimautsero natiyoakohenatiyaete jinatsedita pilão], minha tia onça sem olho, vou assustar aos
nomazaloharehena nake txinimautsero, senhores, assim vou cantar para vocês, minha tia...
hehenatiyaete nake...
Kaheneharetidiya... É assustador...
Mazalohareta... Está cantando...
Mahiyezani... O morcego...
Nea ho... Foi assim...

Nohekoreharitidiya nomazalohareta nehena Eu falei para sempre eu canto assim, Enozarero


Enozarero kazekanehena Iyokahehokohena apresentou para fazer sinal [avisar], e a onça sem olho
txinimautsenane... pode fazer isso...
Iyokahehokohena... Ele foi devorado...
Katolikwarehetehena... Ele vai se vingar...
Hajimiyarene... Do irmão dele...
Iyolaware kamane... A morte de Iyolaware...
Nikiyaka... Foi assim...
Nea ho...

Ke kahenehare tidiyama mahiyezani mazalohareta O morcego está cantando muito esquisito com flauta
wiye nehena nohekoreraretidiya nomazalohareta tiyrama, assim vou me vingar do meu irmão
nehena mokoehehena txinimautsenae ne Iyolaware, vou dar bordunada na onça sem olho, esse
katolikwarehena hajimiyarene nikaka Iyolaware é meu plano para me vingar do meu irmão.
nikaka katolikwarehena... O morcego...

165
Mahiyezani... Foi assim...
Nea ho...

(AZ_25052017_030)

Kala... Parece que...


Eautsetare... Em um lugar...
Kala hitso hamiyahazatita... Parece que você está assobiando...
Zolane keharere... Uma música boa...
E ozaka hamiyahazatita... Já está assobiando ...
Hiwiyarekwa one tanakota... Bem no cantinho do seu porto...
Nea ho... Assim foi...

Eautseare natiyo namiyahazaita nakiyani Nesse lugar eu vou assobiando minha tia onça, eu vou
txinimiyautsero natiyo namiyahazatita zolane, assobiando uma música boa, assim desde que
keharere hetati zowakiya wihikiyoane zowakiere surgimos na terra eu estava assobiando...
Namiyahazatita… Eu estava assobiando...
Namiyahazatita... Bem no cantinho do seu porto...
Hiwiyarekwa one tanakota... Uma música boa...
Zolane keharere... A água do bambu...
Zalinha kanoeakoreza... O galho do bambu...
Hiyana kanohiyako... Assim foi...
Nea ho...

Kani totoniyakoreza namiahazaeta nakiyani Eu estou assobiando sobre o broto do pequi minha tia
txinimiyautsero awitsaidiya maitsa hoka hitsua onça hoje você pode vir cantar com seus cunhados,
himiyazalohare hinhatiyorenae kakwa, sobrinho morcego...
tamiyani mahiezani... Foi assim...
Nea ho... [...]
[...]

Waiyetiyaete nomi nomazaloharehena txitxikara Assim vou cantar, me dá as raspas da mandioca, assim
watanho nomihenatiyaete nomazaloharehena, vou cantar, vou falar, vou bater, me dá aqui nosso
zamakahane wamatsera, era wamokotene, socador de pilão para podermos bater, assim falou...
Nea ho...

Waiyetiyaete hehenatiyaete weheye tiyaete Vai contar uma coisa [história] bem estranha, coisa
kahenehare, mahiyezani mazalohareta waiyetiyaete bem perigosa, assim o morcego canta aquela época,
hehetehenatiyaete, waiyetiyaete nomihenatiyaete Sempre eu canto assim, vou falar assim...
hohekorehare nomazalohareta, Tia onça...
nomihenatiyaete... Assim foi...
Nake txinimiyautsero... [...]
Nea ho...
[...]

Eautsetaka waiyeka kozakaka eautsetaka Aqui foi, que bom agora, foi aqui no terreiro bom,
Kaiyalinha weteko wiyeka katanolahena, makozore aranha fez sua teia, que bom, assim foi amarrar, foi
waiyeka ozaka olahena waiyeka mokohehetehena... batendo, assim meu tio diz colocando palha...
Kaiyalinha weteko... Terreiro Kayalinha...
Nea ho... Assim foi...

Eautseala ozakala nonatiyorenae nozaitsenae Aqui e agora, meus cunhados, meus sobrinhos, aqui
owene ozaka jitso waiyakahalo waiyakaharenae neste momento, foi vocês que vivem na terra, está
hiyeta ozaka waiye aukarehalo aukarehareta, ezahe vendo, ele quer, ela quer, nós queremos um pouquinho
ozaka wauka, inidiya kaetsere... só...
Nea ho... Assim foi...

166
(FO_19052017_010)

Itserehena... Vocês podem tomar...


Koko zolane... Meus tios cantores...
Nea ho... Assim foi...

Eautseta itserehena hahatsahetehena hetati Então vocês podem tomar e provar desde o
zowakiya... surgimento...
Neaka itserehena... Assim foi, podem tomar...
Waeye heatati zowakiya nehetehena Desde o início vocês podem provar, você que já está
hahatsahetehena kozaka hitso zolane kafakiya no zolane desde ontem pode provar, desde o início...
kazoka nehetehena hetati zowakiya. Vocês podem tomar...
Itserehena... Os participantes e meus tios cantores do zolane...
Kamazo koko zolane... Assim foi...
Nea ho...

Waeye awitsa makazoka hetati zowakiya hitsoa Assim pode vir logo, desde o início para assoviar com
hamiyahazatiya hitsauneronae kakwa suas primas, meus sobrinhos...
hatiyoakonetare ozaka hamiyahazatiya... O morcego falou...
Ane mahiyezani... Assim foi...
Nea ho...

Eautsetaka nehitiya ala hitserehetehena hetati Assim então você pode tomar chicha de polvilho,
zowakiya hamakaeniyaza hitserehetehena kenaekiya desde o primeiro momento, você prova tudo isso para
ozaka itserehetehena hetati zowakiya kamazo koko nós, desde o surgimento, os participantes e meus tios
zolane maekiya hetati zowakiya waye nehetehena cantores de zolane, assim seria muito bom para sua
kala waye takakwa hezahe himokotsehalonae comunidade e seus jovens...
himokotseharenae... Ele já falou...
Kala ozaka... Assim foi...
Nea ho...

Kala eautseta awitsa makazoka atiyokonetareza Então já pode vir logo para assoviar (a música) com
hamiyahazatiya hitsauneronaekakwa awitsa suas primas, pode vir logo, desde o início, a música
makehetahoka nehetehenahoka que você aprendeu...
hamiyahazahetehena hetati zowakiya Assim o morcego disse...
hatiyoakonetare kakwa... Assim foi...
Nea mahiyezani nea ho...
Nea ho...
(MN_01062017_017)

2.5.3 Zolane zerane idiyaete natxikinyeta wahazatikitya zeratyaka (cantos de zolane depois
da oferenda até meia noite)

Entre os cantos designados como zolane “meia-noite” é possível identificar exemplares dos
conteúdos temáticos pertencentes às quatro tipologias estabelecidas anteriormente: 1. Cantos
de chegada nos terreiros de festa para beber chicha; 2. Cantos sobre narrativas de origem; 3.
Cantos relacionados aos espíritos auxiliares; e 4. Composição/improvisação. No caso da
composição/improvisação, como já vimos, trata-se de uma peça única, classificada como zolane
meia-noite quando foi coletada junto ao seu intérprete. Em relação às narrativas de origem –
longas narrativas fragmentadas em diversas unidades de cantos – destacaremos: a história da

167
Ponte de Pedra, que trata da saída dos Haliti de dentro da pedra para superfície terrestre; a
história da vingança contra Xinikalôre, que trata da origem dos espíritos auxiliares utyahaliti;
a história de origem do timbó, substância/veneno entorpecente utilizada para pescaria; e a
história da origem dos desenhos da cestaria. Como de praxe, há neste bloco uma série de cantos
cujas temáticas são isoladas, não passíveis de agrupamento, porém semelhantes a alguns dos
temas abordados nos repertórios de iyamaka.

Os cantos selecionados do primeiro subgrupo – chegada para chicha – têm em comum o fato
de terem sido gravados junto ao mesmo intérprete, um dos mais velhos e importantes mestres
rituais Haliti. Consideramos, portanto, que estes cantos correspondem à forma como os antigos
cantavam, sendo sua estrutura não somente relevante, mas também exemplar deste núcleo
temático transmitido por gerações de cantores. Como já visto anteriormente em iyamaka, a
tipologia é a mesma: utilização de primeira pessoa do plural ou singular, anunciando a chegada
nos terreiros de festa para o consumo de chicha. Nessa estrutura que se repete, os nomes dos
lugares e dos antepassados constituem a variação de canto para canto.

Alguns elementos devem ser destacados: é interessante notar que, em três destes cantos, há
referência tanto ao “chegar voando, arrodeando”, como à diversas espécies voadoras, como por
exemplo as araras e libélulas, indicando que a chegada está sendo realizada por espíritos
voadores, habitantes das aldeias celestes. Outro elemento evocado é a chicha de abacaxi-do-
mato (wenoreza) associada ao tipo de chicha consumido pelos antepassados. Os Haliti dizem
que os antigos eram acostumados a beber este tipo de chicha, porém é considerado muito forte,
muito azedo e agressivo para a garganta – as pessoas quase não aguentam beber. Aparece nos
cantos, portanto, como o tipo de chicha consumido pelos espíritos, nos terreiros celestes, uma
“super-chicha” capaz de derrubar os menos preparados.

Kehalakaetsere wahikwahena, Kehalakaetsere Estamos chegando com muita alegria, estamos


wahikwahena, witso wahikwahena, hetatiya waulone chegando com muita alegria, nós estamos chegando,
ki nomana, witso wahikwahena. para nossa chicha primeiro, nós estamos chegando.

Zokalike zamaeye wenolaza, zokalike zamaeye Chicha de abacaxi de Zokarezamaeye, chicha de


wenolaza, ewenolazahana, waedidikwa abacaxi de Zokarezamaeye, vamos gingando,
wakorehekwahena, witso wahikwahena. tremendo o chão e arrodeando, nós estamos
[…] chegando.
[...]

Aliyauhete korehete weteko, zozoehete zozoehete Terreiros Aliyauhete, Korehete e Zozoehete, estamos
weteko, aliyauhete weteko, waedidikwa chegando tremendo o chão, nós estamos chegando.

168
wakorehekwahena, witso wahikwahena.

Wikiyero Wezawalitsoahena, wikiyero Arrodeando e gingando, arrodeando e gingando,


wezawalitsoahena, hetatiya enomana, zokaliki desde o início para ela, a chicha de abacaxi de
zamaeye wenolazahana, wenolazahana. Zokarezamaeye, a chicha de abacaxi.
[…] [...]

(JB_26052010_018)

Kehalakaetsere wahikwahena, kehalakaetsere Estamos chegando com muita alegria, estamos


wahikwahena, witso wahikwahena, waedidikwa chegando com muita alegria, nós estamos chegando,
wakorehekwahena, witso wahikwahena. tremendo o chão (causando estrondo) e arrodeando,
nós estamos chegando.

Hetatiya wiwenolazahana, hetatiya wiwenolazahana, No início para nossa chicha de abacaxi, nós
witso wahikwahena. chegamos para xixá do abacaxi, nós estamos
chegando.

Waedidikwa wakorehekwahena, witso wahikwahena. Tremendo o chão e arrodeando, nós estamos


chegando.

Halo Zamazalo katiyahe, halohalo Katxiwero Embaixo da figueira, embaixo da figueira de


katiyahe, witso wahikwahena, hetatiya Katxiwero, nós estamos chegando, primeiro para
wiwenolazahana, witso wahikwahena. nossa chicha de abacaxi, nós estamos chegando.
[…] [...]

Katihare Zamazakare, tiyokoekati hare Zamazakare, O sábio Zamazakare, nosso antepassado


aedidikwa ka hikiyoa, haliyaloli eye Zamazakare, Zamazakare, chegando tremendo o chão, ao lado de
nezaka hikiyohena. Zamazakare, estão chegando

(JB_26052010_019)

Kehalata wazalialihena, kehalata wazalialihena, kalo Estamos cantando muito alegres, estamos cantando
hotero niho, kalo hatiyo, kalo kozaza niho, muito alegres, com as penas de arara preta, como
wazalialihena. ararinha, estamos cantando.

Karekalo kare weteko, kalokare kalokare weteko, No terreiro Karekalo, no terreiro Kalokare, estamos
wazalialihena, waeyata waeyata aukowita, witso cantando, cantando como ararinha, nós somos os que
aeniyakwarenae. voam.

Kware aenyiakware na toli, aenyiakware, Eles são voadores, estamos cantando, com ararinha,
aenyiakware na toli, wazalialihena, kalokare kalokare no terreiro kalokare, estamos cantando.
weteko, wazalialihena.

Hatiyo kalo kozaza niho, kalo hatiyo kalo hotero niho, Como ararinha, com penas de arara preta, estamos
wazalialihena, zoloemena zoloemena eyarese, cantando, Zoloemenaeyarece, bem no teto da oca
hanataediyatse holi. dele.
[…] [...]

Zalokeroce nomaneza hiye, Zalokeroce nomaneza Senhora Zalokeroce, senhora Zalokeroce, que fez
hiye, ewenolaza hiye, wazalia wazalialihena, kalokare chicha de abacaxi, estamos cantando, no terreiro
weteko. Kalokare.

Ta waeyata waukowita, waeyata waeyata waukowita, Ela quer nos ver, nós somos os que voam, nós somos
witso aeniyakwarenae, aeniyakware os que voam, estamos cantando.
aeniyakwarenatoli, wazalialihena.

Wazalia wazalialihena, Tazokeroce nomaneza hiye, Estamos cantando como ararinha, na chicha de

169
ewenolaza hiye, witso hatiyo, witso wahikwahena, Tazokeroce, nós estamos indo, no terreiro Kalokare.
kalokare weteko.

(JB_26052010_020)

Neste último exemplo, ao invés das aldeias celestes, a chicha está sendo ofertada em uma aldeia
“dentro dos morros” denominados Zamore e Tiyolore. Apesar da gente-do-morro ser
caracterizada pela capacidade que detém de devorar os humanos e lançar feitiços, a exegese
deste canto sugere que o “dono da chicha da festa dentro do morro” é um espírito bom, que
mantém relações pacíficas com os Haliti através das oferendas – neste caso, associado ao “chefe
das onças” (txininae kiniyohare).

Aliwako wiyane, aliwako wiyane, witsera oloniti, Aonde nós vamos, aonde nós vamos, tomar chicha,
aliwako wiyane, wanitsa zokokoehe. aonde nós vamos, comer a carne seca.

Wanitsa zokokoehe, witsera oloniti, aliwako wiyane, Comer a carne sêca, tomar chicha, aonde nós vamos,
watehoka ajiyeho, wahyioka kanihe. fumar cigarro, comer polpa do pequi.
[...] [...]

Tiyolore ako wiyane, Tiyolore ako wiyane, Zamore Vamos dentro do morro Tiyolore, vamos dentro do
ako wiyane, witsera oloniti, wikiniyohare nali. morro Tiyolore, vamos dentro do morro Zamore,
tomar chicha, lá no nosso chefe.

Wikiniyohare nali, watehoka ajiyeho, wikiniyohare Lá no nosso chefe, fumar cigarro, lá no nosso chefe,
nali, wahyioka kanihe, wanitsa zokokoehe. comer a polpa do pequi, comer a carne sêca.
[...] [...]

Wikiniyohare nali, Zokowiyetse nali, watehoka Lá no nosso chefe, lá em Zokowiyetse, fumar


ajiyeho, Tiyolore ako wiyane, watehoka ajiyeho. cigarro, vamos dentro do morro Tiyolore, fumar
cigarro.

Nea haeniyakwahena, neaza haeniyakwahena, oloniti Assim voaram, assim voaram, os bebedores de
fahare, hawaemakakwaniya, txininae kiniyohare. chicha, bem de tardezinha, os chefes da onça.
[...] [...]

Neaza haeniyakwahena, txini zoterenaehe, txini Assim voaram, onça parda, onça preta, assim
hoteronaehe, neaza haeniyakwahena, oloniti fahare. voaram, os bebedores de chicha.

Oloniti fahare, neaza haeniyakwahena, Os bebedores de chicha, assim voaram, bem de


hawaemakakwaniya, txini hoteronaehe, txini tardezinha, onça parda, onça preta.
zoterenaehe.

(JB_26052010_024)

No próximo subgrupo temático, a história de surgimento dos Haliti é evocada através de um


grupo de cantos cujas similitudes exemplificam partes do episódio da saída da pedra para a vida
terrestre, uma narrativa considerada extremamente longa. No primeiro deles, é narrado o
episódio que antecede e possibilita a saída da pedra, parcialmente referido anteriormente no

170
repertório de iyamaka. Enoharese habitava a terra sozinho com seus filhos, uma menina e um
menino, e não havia mais ninguém sobre a terra. Certo dia, aos buscarem água no rio, seus
filhos escutam um barulho, que motiva Enoharese a averiguar. Decide bater com a borduna na
pedra de onde vinha a zoada. A borduna de Enoharese é um instrumento de poder, associada à
manifestação do raio/trovão. Com a bordunada, a pedra rachou, abrindo uma fenda. Ao olharem
dentro da rachadura, viram um monte de gente desmaiada e ficaram com vergonha, pensando
que a violência do golpe havia matado todo aquele pessoal inofensivo dentro da pedra. Com o
sentimento de culpa, Enoharese decide se refugiar no céu com seu filho e filha, para de lá
ficarem ajudando o povo da terra.

Seu irmão mais velho, Toakayhore, já morava no céu. Enoharese então diz aos seus filhos que
quando o pessoal da terra fizer chicha, caçar animais e oferecer, que lá do céu irão auxiliá-los,
de lá mesmo receberão estas oferendas e ajudarão sempre que for preciso. Através da oferenda,
da chicha, da festa tradicional, Enoharese então passa a ajudar o pessoal da terra. O dia começou
a esquentar e o pessoal desmaiado, dentro da pedra, começa a acordar, levantar. O passarinho
urubuzinho (mazazalane) saiu primeiro da pedra para explorar a superfície terrestre, pela
pequena fresta aberta pela bordunada. Viu que tinhas diversas flores no mato, no campo, muito
cheirosas, e foi tirando e colocando-as no seu cesto. Voltou para dentro da pedra e mostrou as
flores que apanhou nos campos; o ancestral Kamayhie, muito sabido, decide que precisam sair
da pedra e conhecer aquele mundo lá fora. Pede para o pica pau roer a pedra e alargar o buraco,
para que possam sair.

[...] [...]
Kaheneharenere kaheneharenere abazani Enoharetse Meu pai Enoharese, eu não sei o que está fazendo
abazani Enoharetse zoarezomanikala. barulho, bem esquisito.

Zoarezomanikala zoarezomanikala kaheneharenere Eu não sei o que está tremendo bem ao lado de
aididikoita hatiyo wiwarekwahone no. nosso porto, bem esquisito.

Zoareakanizauka zoareakanizauka malo Himazahalo Meus filhos Himazahalo e Himazahare, não tem
hare Himazahare zoareakanizauka. nada aqui, o que é isso.

Wiwawiyehareno wiwawiyehareno witsaunitano Aqui não tem nada, só nós vivemos aqui na terra.
hatiyo waiyakatiyahiya waiyakatiyahiya.

Wimenanehareta wimenanehareta hare Himazahare Meus filhos Himazahalo e Himazahare, só nós


hare Himazahare malo Himazahalo. vivemos aqui há muito tempo.
[...] [...]

Atiyoako atiyoakohena atiyoako atiyoakohena Holoko Pegou sua borduna velha e colocou no ombro, bateu
maiyho hatiyo holoko maiyhotitiya atiyoako na pedra, despedaçou a pedra, trincou a pedra,

171
atiyoakohena txiditxidihore txiditxidihore ozakere despedaçou a pedra.
hotidiya atiyoako atiyoakohena.

Neaka mokohena neaka mokohena Wazare hanaene Assim bateu na pedra, na maloca de Wazare, trincou
hamoko mokohena ezaekiyahenaka no hatiyaeholaiyo a pedra, bateu com borduna velha, a pedra
kakwa txiditxidihoreno ozakerehokakwa hamoko despedaçou.
mokohena.

Wazare hanaene Wazare hanaene hamokotiyaretano Na maloca de Wazare, bateu muito forte, trincou
hezaekiyatiyareta no hamokotiya no muito, despedaçou a pedra, fez isso com sua
hatiyaholaehokakwa txiditxidihore no. borduna velha.

(FO_19052017_012)

Nare é um dos ancestrais Haliti que sai da pedra. Diferente de seus irmãos Wazare, Kamazo,
Kamayhie e Zaloya, Nare sai cantando e dançando animado com sua turma, com a flauta de
pan zero, feita de talos de bambu. Seus irmãos ficam sentados embaixo de uma árvore
observando e admirando a saída de Nare, com muita inveja pois não saíram animados como seu
irmão. O próximo canto detalha um importante evento do mito de origem, que é a divisão dos
subgrupos Haliti, já que cada um destes ancestrais dá origem a uma “linhagem” de subgrupos.
Além disso, a flauta de pan zero, também um artefato performado em oloniti kalorese – e que
também é cuidado através da coresidência e comensalidade – tem sua origem associada a esta
narrativa, diferente de iyamaka e xihali, já que é trazido de dentro da pedra junto a seu dono
original Nare.

[...] [...]
Zero kakoita hikiyoa, tiyoka wahakohena, Com a flauta Zero de talo de bambu, o antepassado
haihikwanekanatse, Wazare tiyokoekati, Kamazo Wazare, o antepassado Kamazo, o antepassado
tiyokoekati, tiyoka wahakohena, Zaloya tiyokoekati. Zaloya, ficaram sentados observando.
[...] [...]

Keharere kaetsere, Nare ke hikwoahena, Com muita alegria, Nare saiu, com sua comunidade,
hamokotseharenae, zolakwalinaekakwa, tocando com a flauta Zero de talo de bambu, Nare
kamotionaekakwa, Nare ke hikwoahena, Zero saiu, com a flauta Zero.
kakoita hikwa.

(AZ_08112017_016)

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...

kehala kaetsereke, Nare ke hikiyoahena, Zero kakoeta O sábio Nare saiu com muita alegria, com zero, ele
hikiyoa, waeye tsabibinea. está tremendo.

Kalowaloza niho, kalo hotero niho, waeye tsabibi nea, O cocar do sábio Nare é de pena de arara preto, e
Nare ke zaulone, Nare ke zaulone. estava balançando muito mesmo.
[...] [...]

Hetatizowakia, nalikiyore notiyoka, natiyo Desde primeiro surgimento, eu vou me sentar para

172
nawahakotiya, Nare ke hihikwane, kiniyoti nihikwane. assistir a saída do sábio Nare.

Maitsa Wazare jini, maitsa Wazare jini, kawe O sábio Wazare não impediu a saída do sábio Nare,
tsemehenaka, kiniyoti nihikiyoane, kawe tsemehenaka. eles estão com inveja com essa saída.

Kawe tsemehenaka, hatiyo tsemehenaka, kiniyoti Eles estão com muita inveja, a saída dessa
nihikiyoane, kawanarekahene, kawe tsemehenaka. comunidade.
[...] [...]

(BA_29062017_02)

A exegese de um intérprete associa a linhagem de Nare ao povo indígena Manoki, vizinhos


localizados ao Norte da Terra Indigena Paresi: “Nós saímos primeiro, eles saíram por último,
eles foram pra um lado e saíram com Zero, nós não saímos com nada [...] Nare saiu diferente,
animado, cantando, dançando, com pessoal dele, esses são os Manoki, mesma coisa [...]”
(ANIZOKAI, 2017). A origem dos subgrupos e de outras etnias circunvizinhas e relacionadas
é um tema presente nas histórias de origem. Consideram, por exemplo, que o povo Nambikwara
surge das cinzas de Xinikalôre, a onça grande (jaguar) que tem sua casa queimada como
vingança pela morte dos pais de Wakomoné e seus irmãos. Contam ainda que os Salumã, hoje
conhecidos como povo Enawene Nawe, também circunvizinhos, saíram junto com os Haliti da
Ponte de Pedra, e o subgrupo Warere, por sua vez, surgiu de outra localidade, de dentro da terra,
mas de outra região próxima denominada Chapada do Itamarati, e não da Ponte de Pedra.

Os Warere saíram da terra mesmo, da Chapada do Itamarati... antigamente existia o


buraco [que eles saíram], hoje em dia fechou [...] fizeram um campo de aviação lá,
quando o primeiro avião aterrissou, teve ventania, caiu no chão, enterrou tudo, rabo
[do avião] e tudo, deixaram pra fora só asa dele assim, morreu não sei quantas pessoas
ali no Itamarati [...] mesma coisa agora, quando começaram a plantar milho, arroz,
soja, daí teve ventania, chuva, acaba com tudo, aquele pedaço ao redor, ninguém não
planta, aonde eles saíram. (ANIZOKAI, 2017)

Numa versão alternativa e complementar da história de Nare, ele não produziu filhos – diferente
da interpretação de Anizokai, que entende que Nare deu origem ao povo Manoki. Os irmãos
que produziram filhos, e consequentemente linhagem de subgrupos são Kamayhie, Wazare,
Zaluya, Kamazo e Koytihore, sendo este último o “mais velho” deles e “pai do homem branco”
com que os Haliti têm relações (uma condição de proximidade e semelhança, já que existe
também o homem branco “inimigo” e, portanto, não pertencente a linhagem de Koytihore). Os
outros deram origens aos subgrupos Kaxiniti, Enomanyere, Warere e Kahete.

Wazare saiu primeiro, Nare saiu por último com zero e dançando, cantando, daí
Wazare ficou triste, como eu saí neste mundo, eu não sai assim tão animado, agora
Nare saiu com festa [...] Nare não teve grupo [descendentes], era pra ter grupo, mas

173
quando começou a fazer filho, os bichos comeram, mudaram de lugar, fez filho de
novo, bicho do rio comeu o filho dele, ai voltou aqui na justa-conta [árvore], foi pescar
na justa-conta, lá o dono daquele terreno de peixe que não é boa pessoa, daí ele
moqueou peixe, comeu peixe sem oferenda, criou barriga desse tamanho, encheu de
peixe, caiu no rio, sumiu vivo, sumiu, desapareceu Nare, ficou só o primo dele, ele
tinha flauta também, daí ele estava sozinho, veio aqui na cabeceira desse [rio] aqui,
enfincou a flauta dele e foi embora pra Ponte de Pedra, entrou sozinho, Nare não criou
filhote, flauta dele é zero. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Percebemos que há várias permutações em torno de um tema comum, que varia conforme o
intérprete e suas exegeses. A experiência social de assimilação de um conteúdo mítico não é
fechada e passa necessariamente pelo que seria uma “construção contínua” e expansiva, mesmo
que com o tempo, a experiência e a maturação dos debates – isto é, com a maturidade do
intérprete-cantor – essa forma vá se delimitando cada vez mais na forma de “versões”
socialmente aceitas. O corpus mítico constitui um repertório de informações que apesar de
conservar um núcleo duro – por exemplo, os nomes dos ancestrais e locais de sua morada – está
sempre passível de interpretação e debate. Isso fica mais evidente ao coletar, como no exemplo
acima, exegeses sobre o “mesmo canto” ou “mesma narrativa” derivadas de diferentes
intérpretes, pertencentes a faixas etárias, subgrupos e gerações distintas, e que também
aprenderam aquele conteúdo de “mestres” diferentes. Vemos que, nestes casos, os mitos
realizam permutações e permitem pequenas variações interpretativas, mesmo sendo
amplamente reconhecíveis quanto à “história” a que fazem referência – principalmente no caso
da longa história de saída da pedra, considerada “quase sem fim”.

Outro subgrupo temático de interesse diz respeito à história de Xinikalôre (a onça grande ou
jaguar), uma extensa narrativa e rica em detalhes, bastante apreciada pelos Haliti. Como já
visto, está relacionada aos irmãos curadores que habitam as aldeias celestes, assim como ao
surgimento de outros “tipos” de gente no mundo, marcadas pela diferença e inimizade potencial
– enquanto os semelhantes, marcados por relações de proximidade, teriam todos saído de dentro
da pedra (“gente como a gente”). De forma resumida e conforme a exegese de diferentes
intérpretes, a narrativa se desenvolve da seguinte maneira: os quatro irmãos Wakomoné,
Wazulié, Kerakwamã e Wazolokoyhiraré (PEREIRA, 1986) foram criados pela avó chamada
Alawiru. Sempre curiosos, foram crescendo e começaram a andar pelo mato, fazendo suas
flechas para caçar e pescar. Certo dia, foram para uma cachoeira parra caçar andorinhas,
deixando a avó preocupada pois era um lugar perigoso. Lá tinha uma folha sagrada, que caia
na água e virava peixe. Com suas flechas, mataram peixes e andorinhas e voltaram. No dia

174
seguinte, os irmãos foram de novo e mataram um calanguinho. Deram o calango para o irmão
mais novo segurar e na sua mão o calango viveu de novo, saltou e fugiu. Os outros irmãos se
zangaram com ele por ter deixado a presa escapar. Ele fugiu chorando para a aldeia da avó e lá
se deitou no terreiro entristecido. Lá o menino escuta a avó chorando e lamentando dentro da
casa: “ah meus netos, vocês não podem sair assim, porque sua mãe, seu pai, quando começaram
a andar no cerrado, o gavião e a onça pegaram eles, mataram eles, não quero que isso aconteça
com vocês...”. O menino voltou correndo para a cachoeira e resolveu contar o segredo para os
irmãos: “eu ouvi nossa vó falando, nós não saímos daquela árvore, nós temos pai e mãe, nossa
vó que não conta pra gente, eles morreram porque a onça e o gavião pegaram e comeram eles”.
Ao retornar para aldeia, os irmãos questionam a avó sobre a veracidade da história. Ela nega,
dizendo que estava fiando algodão e que o menino entendeu errado. Os irmãos ameaçam agredi-
la (ter relação sexual com ela) e ela, acuada e com medo, decide contar a verdade sobre os seus
pais. Os irmãos decidem então vingar a morte deles e perguntam como devem fazer para
encontrar a onça e o gavião.

A avó diz que no tempo da primeira friagem a onça estará dentro de sua casa; já o gavião, diz
que no tempo da castanha amadurecendo ele sai para perseguir a gente. Os irmãos começam a
se preparar buscando taquara e a “navalha” da asa de morcego, para assim vingarem a morte de
seus pais. Primeiro conseguem matar o gavião, que naquele tempo só andava à noite e caçava
gente igual passarinho. Queimam o olho dele e levam partes do seu corpo para mostrar para
avó. Depois foram matar as onças – pois havia uma onça grande macho e uma fêmea. Primeiro
matam a fêmea: entram dentro da boca dela (ela abria a boca como uma armadilha para devorar
suas presas) e lá de dentro cortam seus nervos e sua costela com a navalha do morcego que
carregavam. Derrubam então seu coração, que era de pedra, para fora do corpo, despedaçando-
o e terminando assim de matá-la. Quando saíram, o sangue ficou marcado no peito de
Wakomoné. Levaram a cabeça e o rabo para avó, para provar que a tinham matado. Em seguida,
vão atrás da onça macho e matam-na com uma flechada. Ateiam fogo na maloca de Xinikalôre,
com todos os seus pertences dentro, e saem caminhando em fuga. Wakomoné se dá conta que
esqueceu sua flecha brilhante, chamada wayeholoko, na maloca do jaguar, e decide voltar para
buscá-la – conforme explicação, trata-se de um artefato-sujeito, também cuidado por eles:
“então tem outra serrinha que eles cuidam, wayeholoko, acho que ninguém tem mais, hoje
ninguém mais usa isso aí, igual pedra, igual esmeril, mas é pedra, ele corta igual serrote, esse
daí igual faca que a gente cuida, essa primeira faca do índio” (ZOMOIZOKAE, 2017).

175
[...] Wakomoné subiu num alto e dali viu muita gente pulando no lugar da casa
queimada. Da cinza do urucu saíram os índios Bororo, outros indíos de rosto e peito
vermelho e outros índios desconhecidos. Da fumaça, saíram os civilizados brancos.
Do carvão, os civilizados pretos e uns índios escuros. Das cinzas dos pauzinhos de
fazer fogo, outros índios escuros. Da cinza das flechas velhas, os Nambikwara. Da
cinza das flechas novas, os índios miudinhos Zwimahete e os índios Wazozokase e
uns soldados dando tiros. Da cinza das outras flechas, os Rikbatsa, os Kayabi e os
Apiaka. De outra cinza, uns índios desconhecidos. Wakomoné viu toda essa gente
vindo atrás dele, ficou com medo e voltou correndo. Chegou aonde estavam os irmãos
e disse: Nós matamos o jaguar e tocamos fogo na casa, mas eu vi que isso não adiantou
pra nada, porque da cinza, do carvão e da fumaça saiu todo tipo de gente, e aquela
gente vem vindo aí atrás, para matar todos nós. (PEREIRA, 1986, p.166)

Voltam assustados para a casa de sua avó e contam sobre o ocorrido. A avó percebe que as
coisas estão se complicando e acha melhor seus netos fugirem para o céu. Começa a cantar para
Toakayhoré para que mande descer da grande figueira de cima um fio de algodão vermelho
para que eles possam subir ao céu. Quando chegam no céu Toakayhoré os benze, lavando-os
nas águas de sua lagoa e tirando o sangue do inimigo de seus corpos – purificando-os assim de
seu ato vingativo. Diz para os irmãos que a partir de agora serão seus “empregados”, ajudando
o povo Haliti da terra quando necessitarem. Em seguida, a gente que surgiu das cinzas da casa
de Xinikalôre – muhololo kaiyabo, termo que remete à gente ruim, briguenta, violenta, inimigos
que querem sempre matar os Haliti – começa a chegar na aldeia da avó, derrubando as casas,
flechando, destruindo e queimando tudo o que encontram pela frente. O lobo guará, observando
pensa: “eu que vou ficar na terra agora vou sofrer com essa guerra, eles que foram, não vão
sofrer não”.

Na versão abaixo, podemos reconhecer os elementos narrados na estrutura poética do canto de


Xinikalôre:

Aliyakokane abe, aliyakokane abe, kawetekone abe, Onde é vó, onde é vó, o terreiro dela, onde é vó, o
aliyakokane abe, kawetekone abe. terreiro dela.

Hatiyo txinikiyalore, hatiyo txinikiyalore, Aliyakokane Daquela onça grande, daquela onça grande, onde é
abe, Aliyakokane abe, kawetekone abe. vó, onde é vó, o terreiro dela.

Aliyakokane abe, Aliyakokane abe, kawetekone abe, Onde é vó, onde é vó, o terreiro dela, nós podemos
wakatolikwaretiya, wahatiyokoenaehene. nos vingar da morte de nosso avô.

Tiyokoenaehene, wakatolikwaretiya, Aliyakokane abe, Vamos nos vingar da morte de nosso avô, onde é vó,
kawetekone abe, txinikiyalore abe. o terreiro dela, daquela onça grande.

E notxietenae, ohidiyonatse notxi, idikiyati no notxi, Meus netos, a onça fêmea, podem achar no tempo do
hatiyozowakiya no kamaeka no meketse, ha fogo, naquele tempo, no meio da seca, o seu avô foi

176
hatiyokoenaene, hatiyo kanoliatiya. devorado.

Hatiyo txinikiyalore, hatiyo ohidiyonatse, hatiyo Aquela onça grande, aquela onça grande fêmea,
tiyoka notxi, hatiyoka no miatiya, senta meu neto, ela devorou seu finado avô.
zahatiyokoenaehene.

Zatiyokoenaehene, zahatiyokoenaehene, Com seu finado avô, com seu finado avô, seus avós
Kakanowakehena, kahamaeka zowaka, hatiyoka no foram devorados, no tempo de seca.
miatiya.

Hatiyoka no miatiya, txinikiyalore notxi, Pela onça grande meu neto, vamos vingar a morte de
wakatolikwaretiya, wahatiyokoenaene, abezani nosso avô, avó Alauli.
Alauli.

Jitsonaiyatiyakani, jitsonaiyatiyakani, Tomem cuidado meus netos, vocês não conseguem


kotxitxeratsediyanae, zaitsa txinikiyalore, matar a onça grande, meus netos.
notxi tiyaetsakanae.

Zaheharezakore, zaheharezakore, no nonitsekohi, Como eles são profissionais de caça, como eles são
imokiyo nitsekohi, ozali nitsekohi. profissionais de caça, meu cerne é de aroeira
vermelha, cerne de jatobá.

Ota mokotita, tsekota mokotita, hatsehaliya kakwa, Está batendo de longe com a pedra de caça dele
koiyawitidi kakwa, hatiyo no hitiyakakwa, koiyawitidi [koiyawitidi, tipo de pedra pesada usada como arma
kakwa, hekota tonotita. de caça], está chuçando com sua pedra de caça.

Hekota tonotita, jitsonaiyatiyakani, Até agora está chuçando, vocês não conseguem
kotxitxeratsediyanae, zaitsa txinikiyalore, zauka meus netos, vocês não conseguem matar a onça
notxietenae. grande, meus netos.

Ka notxietenae, wakatolikwaretiya, enokokoini abe, Meus netos, nós vamos conseguir se vingar, vamos
abezani Alauli, abezani Zokamo. matar o gavião do céu, avó Alauli, avó Zokamo.

Zanekwalaha abe, hatiyo enokokoini, hatiyo timiyala Quando estavam caçando, o gavião do céu e gavião
kokoini, hatiyo kolatiyahita, wahatseronahaene. do sangue, levou os nossos antepassados.

Wahatseronahaene, olokolitsenae, hatiyo Nossos antepassados, quando eles estavam tirando


mokotiyakaha, mokotiyaka no heko, hatiyo castanha do bacuri, ali foram devorados.
kolatiyahahita.

Hatiyo kolatiyahahita, hatiyo txinikiyalore, hatiyo Os seus finados avós foram devorados pela onça
enokokoini, ta hatiyokoenaene, hatiyo no kolatita. grande e gavião do céu.

Neazakore abe, timiyala kokoiya abe, enokokoini abe, Assim falou avó, gavião de sangue, gavião do céu,
ikiya hijahenene, hezotse tyiaenhakota. pode flechar bem no canto do olho.

Hatiyo nijahenene, hezotse tyiaenhakota, hitso Vocês podem flechar bem no canto do olho, vocês
diyeyakahane, kotxitxeratsediyanae, zaitsa timiyala não conseguem fazer isso, e matar gavião do sangue.
kokoi.

Ezaheharezakore, ozali nitsekohi, imotiyo nitsekohi, Como seus finados avós, leva lança de cerne da
zahatiyokoenahene, hatiyo no kolatita, olokolitse aroeira vermelha e cerne do jatobá, quando eles
naehe, mokotiyaka no heko. estavam tirando a castanha do babaçu.

Waitsa eno kokoini, waitsa eno kokoini, abezani Nós vamos matar o gavião do céu, nós vamos matar
Alauli, abezani Zokamo, waitsa eno kokoini. o gavião do céu, avó Alauli, avó Zokamo, nós
matamos o gavião do céu.

Jitsonaeyatiyakani, zaitsa eno kokoini, jitso Vocês não conseguem matar o gavião do céu, vocês

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kotxitseratse, kotxitseratsediyanae, zauka notxietenae. são muito pequenos, meus netos.

Hezaheharezakore, imotiyo nitsekohi, hatiyo O gavião leva de longe o cerne da aroeira vermelha,
hiniyatere, tsekota kolatita, hatiyo timiyala kokoi. nunca eles mataram aquele gavião do sangue,

Timiyala kokoi, hatiyo timiyala kokoi, aliyakokane O gavião de sangue, aquele gavião de sangue, onde
abe, txinikiyalore abe, txinikiyalore abe. fica vó, a onça grande, a onça grande e o gavião de
sangue

Ehitya abe, waitsehitiya abe, txinikiyalore abe, Vocês não conseguem matar a onça grande, vocês
jitsonaeyatiyakane, zaitsa txinikiyalore. são muito pequenos.

Owa wakolatita, owa wakolatita, hiyaeyanemazeta, Nós trouxemos o rabo da onça grande para senhora
hatiyo txinikiyalore, hatiyo inihokatse. acreditar.

Hatiyo inihokatse, hatiyo no etseedi, hatiyo Trouxemos o rabo e a cabeça, avó Alauli, avó
wakolatita, abezani Alauli, abezani Zokamo. Zokamo.

Abezani Alauli, owa wakolatita, tolotxikoita notxi, Avó Alauli, trouxemos na boroca, aqui estamos,
owa wakolatita, hiyaeyanemazeta. trouxemos para senhora acreditar.

Abezani Alauli, abezani Zokamo, Jitsonaeyatiyakane, Avó Alauli, avó Zokamo, vocês não conseguem
kotxitseratsediyane, zaitsa txinikiyalore. matar a onça grande vocês são muito pequenos.

Aliyakokane abe, aliyakokane abe, kawetekone abe, Avó onde é, onde é vó, o terreiro da onça macho
txinikiyalore abe, ehenanatse abe. grande.

Enanatse abe, zotehitsekoitare, kawetekone notxi, one Meus netos o terreiro da onça macho fica na terra
holoiwinhaza, halakoiyaza maniya. amarela, no outro lado do rio sagrado.

Taholoitsekoita, kataholoitsekoita, kawetekone notxi, Onde tem muita marmeladinha, ali é o terreiro, meus
ehenanatse notxi, notxi tiyatsakaerianae. netos, do macho.

Bezolo koinhaza, one holoiwinhaza, halakoiyamaniya, Fica do outro lado do rio sagrado, fica o terreiro
hatiyo ehenanatse, kawetekone notxi. daquele macho.

Tiyatsakaerianae, notxi tiyatsakaerianae, wiyanete no Meus netinhos, avó nós vamos matar de novo, avó
abe, ehenanatse abe, waitsehitiya abe. nós vamos matar de novo o macho.

Waitsehitiya abe, waitsehitiya abe, waiytsazakore Vamos matar de novo, a onça grande macho.
abe, ehenanatse abe, txinikiyalore abe.

Waunita waunita, ikiyawareta waunita, Matamos a onça macho, não deu certo, transformou-
initimiyalhautse, imuti no kiyere, kiyawamakere abe. se em homem branco, preto também, transformou-se
em vários tipos de gente.

Ikiyawamakere abe, imuti no kiyere, muhololo Transformou-se em homem branco, preto e


kaiyabo, iniheratahatse, ikiyawa makerehena. transformou em vários tipos de gente ruim, inimigos,
que matam a gente [muhololo kaiyabo].

Makerehena, kiyawa makerehena, iniheratahatse, Transformou-se em vários tipos de gente, e também


waikiyua waikiyuahore, kaiywiya makerehena. em Nambikwara [waikiyuahore], o urucum da onça
macho gritando avó Alauli.

Kiyawa makerehena, kiyawa makerehena, muhololo Avó Alauli, avó Alauli, a onça macho transformou-
kaiyabo kahalona kalona, ehenahitalatse, hatiyo no se em vários tipos de gente, avó Alauli, não vai
kawihena, abezani Alauli. servir para nossa comunidade que vai viver na terra.

abezani Alauli, abezani Alauli, kiyawaneta waunita, Queremos fazer sexo com você, nós vamos fazer

178
enanatse no abe, kiyawa makerehena, sexo com você nossa avó Alauli, nossa avó Alauli,
wimokotseharenae, witiyonakaharenae, nossa avó Alauli
wakahiyeharetiya, abezani Alauli, abezani Alauli.

Abezani Alauli, owa wakolatita, hatiyo hitimalaza, Avó Alauli, trouxe sangue para senhora ver e
wikiyahiye waikiyate, hare notxiyetena. acreditar.

Alikoidiya wiyane, alikoidiya wiyane, ete wiyanehena, Meus netos vão fugir, onde meus netos vão fugir pra
txini txikiyalore, wita witawane, wita witawane, onde, depois que vocês mataram a onça macho.
hatiyo henajikini ane.

Notxiyetenae, ekokolidiyazoka, enoediyare wiyane. Meus netos, podemos fugir para o céu.
Notxi hakanotxi, enotxi hakanotxi, koko.

Witautahana, ezowakaetezoka, eno wiyanehena. Assim que podemos fugir, para o céu.
Eno wiyanehena, ete nakolahena, jita jitawane.

Hatiyo e timalaza, hatiyo inihokatse, Tolotxikoitaete, Nós vamos ao céu, eu vou levar sangue e rabo, o
hatiyo itimalaza. sangue vai ficar na boroca.

Nakolahena, notxiyani Wakomoné, notxiyani Wazolie, Vou levar esses meus netos, Wakomoné e Wazolie,
zaitsa zakore notxi, kiyawaneta waunita. vocês mataram, transformou nessa gente.

Ezowakaite zoka, eno wiyanehena, zahetahare nali, Assim que vamos ao céu, vamos morar no céu, junto
Towakaihore nali, eno wiyanehena. com seus irmãos Towakaihore.

Ezowakaite zoka, makehezakahare, jitawa jitawane, Assim nós vamos, os que vocês mataram, aquele
hatiyo enokokoini, hatiyo txinikiyalore. gavião do céu e aquela onça grande, não vai nos
perceber.

Makehezakahare, eno wiyanehena, notxi Meus netos, sem perceber nós vamos ao céu onde
tiyaetsakaediyanae, zahetahare nali, Towakaihore fica seus irmãos mais velhos, lá com Towakaihore.
nali.

Ezowakaite zoka, makehezakahare, jitawa jitawane, Meus netos, assim ninguém vai perceber que vocês
oloi txinikiyalore, notxi tiyaetsakaediyane. mataram a onça grande.

Wiya nehena, enali rota maikiya, natiheheta jitso, one Nós vamos embora, só lá vou dar banho em vocês
makololiza, milikwaloza kakwa, natiheheta jitso, notxi com água sagrada.
tiyaetsakaediyanae.

Tiyaetsakaediyane, niyokehekwahena, jitawa Meus netos, assim vou riscar com sangue que vocês
jitawane, hatiyo timalaza, niyokehekwahena. mataram.

Niyokehekwahena, kaulone nerakolo, ite Meus netos, quando eu morrer vou fazer risco no
nowainihena, niyokehekwahena, jitawa jitawane, céu, com sangue que vocês caçaram, assim aquelas
hatiyo e timalaza, notxi tiyaetsakaediyanae. pessoas que fazem oferenda vão ver isso no céu.

(JB_26052010_017)

Outras versões do mesmo canto conservam o núcleo temático da narrativa, fornecendo, por
outro lado, diferentes perspectivas interpretativas que se refletem na terminologia empregada
na construção das frases e diferentes detalhes sobre os episódios que integram a narrativa:

179
Waitsazakore abe Waitsazakore abe txini Xinikalôre Avós Alauli E Zokamo, nós matamos a onça grande,
kiyawaneta waunita abezani Alauli abezani Zokamo ela se transformou.
abezani Alauli.

Kiyawaneta waunita kiyawaneta waunita hatiyo no Ela se transformou, a flecha dela se transformou
kiyawehena enokolitareka enokolitareka mololo num tipo de gente inimigo que mata outras pessoas.
ikiyawehena mololo ikiyawehena. [...]
[...]

Initimiyakitxita Initimiyakitxita hatiyo no kiyawehena Avós Alauli e Zokamo, a lenha dela se transformou
imoti no iyomere hatiyo no kiyawehena abezani Alauli no homem negro.
abezani Zokamo. [...]
[...]

Enahitalitare Enahitalitare hatiyo no ikiyawehena Avó Alauli, o urucum dela se transformou em arara
kalo ikiyawehena abezani Alauli. vermelha.
[...] [...]

Owa oware abe oware oware no hatiyo wakolatita Avós Alauli e Zokamo, trouxemos o rabo e a cabeça
hiyaehiya nemazeta hiyaehiya nemazeta iniho iniho para senhoras ver e acreditar em nós, aqui está.
no etsedi no hatiyo hatiyo wakolatita hiyaehiya
nemazeta abezani Alauli abezani Zokamo.

Aliyakodiyahalani aliyakodiyahalani ite wiyanehena Meus netos Wakomoné, Wazolie e Kerakwamã,


jitawa jitawane atiyo no natxikini natxikinimaniya depois que vocês mataram esse bicho, para onde nós
notxi no Wakomoné notxi no Wazolie notxi no vamos.
Kerakwamã aliyakoidiyahalani ite wiyanehena.

Ekoidiyakore hatiyo ekoidiyakore hatiyo ite Nós vamos para o céu aonde seus irmãos mais
wiyanehena enoidiyare wiyane zahetahare nali. velhos moram.

Zahetahare nali zahetahare nali ite wiyanehena ane Vamos morar junto com seus irmãos mais velhos, lá
notxietenae notxi tiyokoekatinha enalirote e maikiya vou lavar vocês para tirar sangue da sua caça, vou
natiheheta jitso jitawa jitawane hatiyo timiyalaza lavar vocês com na lagoa da taquara.
hatiyo natiheheta jitso one koretaloza koretaloza
kakwa natiheheta jitso.

Zokowi zokowi no zokowi taunahiyakota hatiyo jijaka Meus netos, meu tio avô, vocês podem atirar com
natiyo zokola zokola no tiyauli tiyaolitsekoita ane suas flechas bem na ponta uma da outra, bem no
notxiyetenae ane notxiyetenae notxi tiyokoekatinha galho de Zokowi.
notxi tiyokoekatinha

Ezokakaharete ezokakaharete kaulone nerakolo Assim podemos dar aviso para as pessoas que fazem
kauloazo nikiyakolo kauloazo nikiyakolo kauloazo chicha e beiju, dar sinal para essas pessoas, que algo
nikiyakere wahalaiharehena ane notxiyetenae notxi vai acontecer com seus parentes.
tiyokoekatinha.

(FO_19052017_015)

Esta narrativa trata de dois temas importantes da cosmologia Haliti. Primeiro, da história de
origem dos irmãos curadores, espíritos habitantes das aldeias celestes dotados de eficazes
poderes mágicos de cura, cuja agência é recorrentemente acionada através das oferendas. Como
já detalhado, os irmãos são associados à utyahaliti e korewayese. Esta relação é explicada por
Zezonezokemae, caracterizando a diferença subjetiva com que cada irmão age:

180
Os irmãos viraram “empregados” de Toakayhore [...] só Wakomoné que ficou igual
Toakayhore, ajuda a tratar, cuidar dos doentes, agora os outros irmãos, só [servem]
para “brigar” mesmo, porque eles cuidam da festa né, quem não respeita aquela festa,
dá raio, vem cobrar. Wakomoné e Toakayhore trabalham quase juntos, já os outros
podem fazer castigo. Quando reza pra korewaye [flecha de curar] é pra eles todos que
pode oferecer. Trata eles pelo nome de tios, todos tios [...]. (ZEZONEZOKEMAE,
2017)

Em seguida, é relevante a referência da narrativa à origem do conflito e inimizade entre os


povos habitantes da terra, entendida como a “origem das guerras”. Conforme explica
Zomoizokae, foi “aí que eles [os diferentes povos] começaram as guerras, tanto com índio como
com branco, essa é a história de Xinikalôre” (ZOMOIZOKAE, 2017), que marca a irrupção da
diferença radical em meio aos Haliti – já que, nos tempos primordias, só havia “gente como a
gente” habitando a superfície terrestre, uma marca da identidade associada à saída da pedra
como origem comum. Aa diferenças entre os povos, marcadas nas suas origens, é detalhada
através da estética de suas performances, que seriam indicativos destas disparidades:

[...] [a partir daí] virou muitas dessas etnias aqui da nossa região [...] eu já fui muitas
vezes na apresentação destas etnias e quando apresentavam seus rituais, suas danças,
suas brincadeiras, é só de animais que eles apresentam, porque são de origem da onça
[...] agora nós Haliti já é diferente, nossa dança é sobre o nosso histórico, nosso canto
e música, tudo que nós estamos cantando, tudo é nossa história. Cada etnia saiu do
seu lugar. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

É importante ressaltar que a noção Haliti de identidade e proximidade é construída através de


graus de semelhança, atribuídos aos subgrupos e aos povos vizinhos Manoki e Enawene Nawe,
por exemplo, que possuem um mito de origem comum.

Os Enawene Nawe já falam quase igual, parecido com nossa linguagem. A história
deles é parecida, de como surgiram, de Wazare [...] por isso que a gente pensa que
eles são salumã, que é nosso, da gente mesmo, que na época de guerra fugiram,
sumiram, foram viver em outro lugar [...] a língua é igual, só que cada “raça”
[subgrupo] tem sua linguagem diferente, como Enomanyere, Kozarene, Waymare,
Kaxiniti, cada um com sua linguagem diferente, por isso que a gente quase não
entende [um ao outro] [...], por exemplo, kaxiniti fala muito diferente de waymare,
sotaque é diferente, tem pessoa que fala mais ligeiro, tem pessoa que fala mais
devagarzinho [...]. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

Essa gradação contrasta com a marca da diferença radical, fruto de um mito de origem
completamente distinto, como é o caso dos povos que surgiram a partir da morte de Xinikalôre
e que carregam a inimizade potencial. Enquanto transformações da personalidade distribuída e
fragmentada de Xinikalôre – seu urucum, sua flecha e as cinzas da lenha de sua fogueira – os

181
diferentes povos que surgem na terra são marcados pela agência predatória associada ao jaguar:
veículos de sua agência, são também seus “vingadores”. Xinikalôre corresponde ao jaguar das
mitologias amazônicas, assim como seus “descendentes” representam aqui a encarnação da
potência predatória, refletida sobre os povos com que os Haliti travam guerras históricas. Esta
hostilidade latente é corroborada de forma complementar a partir da seguinte exegese, que
reconhece nas manifestações de ordem natural – como a queda de meteoritos ou formação de
arco-íris, por exemplo – índices da agência de Xinikalôre:

[...] quando aquele vermelho aparece lá em cima [uma nuvem vermelha no sol
poente], no céu, é o rabo da onça, os antigos falam que as pessoas que moram na
aldeia já estão perto de morrer [...] aquele colorido, arco-íris, é sinal que as pessoas
boas já estão perto de morrer, isso não é bom [...] outra coisa também é a cabeça da
onça [...] se cair no terreiro, você pode esperar que vai acabar tudo, se cair a cabeça
de onça lá de cima, já aconteceu isso em vários lugares, ali perto do rio Sucuruina,
naquele tempo tinha muita gente, caiu, bem no terreiro, e acabou todas pessoas de
waymare, é cabeça de Xinikalôre, cai do céu, é o fim do mundo, esse daí é perigoso.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

Já em relação aos “brancos” (imuti) há um entendimento específico: consideram que existem


dois subgrupos, ou “tipos” de brancos: os “contra os índios”, isto é, que fazem guerra e agem
com hostilidade e por isso tem sua origem das cinzas da casa de Xinikalôre; e os “que ajudam
os índios”, neste caso tendo sua origem a partir do antepassado Koytihore, que desde o tempo
do surgimento já se relacionava com os Haliti de maneira não hostil – relação baseada, neste
caso, na troca de bens culturais. Koytihore é considerado um “chefe”, modelado pelas relações
de troca – por exemplo de miçangas, ferramentas, alimentos – numa relação considerada
cooperativa, positiva e índice de proximidade. Como explica Omoizokie, “se lembrar da
história da origem da pedra, já tem o imuti dentro da gente sim” (OMOIZOKIE, 2017),
indicando que esta categoria de brancos seria derivada da linhagem de um dos ancestrais que
saíram de dentro da pedra.

Outra narrativa que merece destaque trata da origem do timbó, fazendo referência ao ancestral
Zokowie, um habilidoso pescador e caçador. Certo dia, estava pescando com sua flecha e seu
avô Wayare pediu um peixe para comer. Ele não deu o peixe para o avô, que ficou zangado
com o neto sovina. Wayare decide então preparar uma armadilha para Zokowie (Wayare é um
enganador, pregador de peças, o trickster da mitologia Haliti). Pede para os peixes subirem do
fundo das águas, atraindo eles com uma fruta que cai das árvores na beira do rio. Os peixes
piraputanga, dourado e piava começam a subir aos montes neste rio chamado Onemakoretaza.

182
Zokowie sobe num galho de árvore e começa a flechar os peixes lá de cima. Ia passando um
peixe dourado grande bem na beirada, e ele flecha bem no seu rabo. O dourado foge para o
fundo do rio com sua flecha. Wayare fala para Zokowie ir buscar sua flecha e ele mergulha para
dentro do rio. Nadou bastante procurando sua flecha até que encontrou o “rei” (dono) dos peixes
chamado Kotamohikidyare e perguntou sobre sua flecha. Foi então que todos os peixes –
dourado, piava, piraputanga, tucunaré, mussum – reconheceram ele como um inimigo, que
sempre matava os peixes, e o mataram com um porrete. Antes de morrer, Zokowie avisa que
seu pai irá vingar sua morte: “Vou avisar a vocês, meu pai Zatyamare vai transformar meus
nervos em timbó, que vai matar todos os peixes” (ZOMOIZOKAE, 2017). O pai de Zokowie
pegou só os ossos do filho e os peixes fugiram para o “tronco das águas” (onekinhoneta) com
medo da vingança de Zatyamare. Considerada uma narrativa triste, esse canto remete à origem
da planta entorpecente que é macerada e utilizada para pescaria, conhecida como timbó.
Zokowie se transforma num “veneno” e dá nome a um dos terreiros que são nominados durante
os cantos e oferendas – Zokowikwa weteko.

[...] [...]
Maetsa kore maetsa kore hiyaeya, kohatsenae Você não está vendo, as casas dos peixes estão
kohatsenae he hana, txihotiyoare makere, todas fechadas, só muçum [peixe elétrico] que está
hanolokwahatita hanolokwahatita. nadando aí.

Maetsa kore maetsa kore hiyaeya, kohatsenae Meu sobrinho Zokowiye, você não está vendo, as
kohatsenae he hana, txihotiyoare makere, tamiyani casas dos peixes estão todas fechadas.
tamiyani Zokowiye, tamiyani Zokowiye.

Eyeta hitxiya hikiyanikiyakehena tamiyani Zokowiye. Se você passar daqui você vai ser devorado pelos
peixes, meu sobrinho Zokowiye.

Natiyoerota natiyoerota hiyakahane, nokanikiya Será que eu vou ser devorado pelos peixes, minha
nokanikiya e hauka, nakewe kalowero. tia beija–flor.

Hatiyo notxiya natiyo Zokowiye, Zokowiye Zokowiye Por que vocês estão demorando com Zokowiye,
hekakwa, zaonaha hiwiyaulitita. vamos matar ele logo?

Wifiyahare wifiyaharekakwa, neaha konaho O peixe tucunaré falou para outros, porque que
zotiyalidiyo, nea mokohenene, zaonaha hiwiyaulitita, vocês estão demorando com essa pessoa, ele que
wifiyaharekakwa. acabou com a gente, bateu em Zokowiye, o matou.

Zokowiye Zokowiye hekakwa, Zokowiye Zokowiye Por que você está demorando com Zokowiye? Mata
hekakwa, zaonaha hiwiyaulitita. ele logo.

Hete baba, babare babare Zatiyamare, Zatiyamare ite, Vou avisar a vocês, meu pai Zatiyamare vai
aekiyawaha aekiyawahaheta wiwalahi, aeteheta transformar meu nervo em timbó, vão matar vocês
aetseheta etoli, jitso kohatsetoli. todos, os peixes.

Nea kotamore, kotamore kotamore hidyare, nea Vamos fugir do Zokowiye, se não o pai dele vai
aeniyakwahena, maekiya maekiya witsekwahena matar nós.

183
Zokowiye.

Nae konaho, konahoho wazozorekeliye, nea Assim o peixe tucunaré falou, bateu e matou
mokohenene. Zokowiye.

(JZ_26062017_032)

Como último exemplo das narrativas de origem, destaca-se o canto do ancestral Eheroware,
que faz referência ao surgimento dos desenhos da cestaria. Conta a história que seus netos
queriam aprender os desenhos, então fizeram uma oferenda de peixe moqueado para ele descer
do céu para ensiná-los. Eheroware atende ao pedido de seus netos e ensina os desenhos para
eles, deixando, no entanto, uma única recomendação: que eles comessem dentro das “vasilhas”
que confeccionaram (tohiri, abali e atyoa, bacarás e peneiras), para assim não esquecerem os
desenhos. Apenas Kamayhie comeu na vasilha, e assim nunca mais esqueceu os desenhos da
cestaria. Seus irmãos, que não comeram na vasilha, não lembraram dos desenhos e mesmo
chamando Eheroware novamente com oferendas, ele não voltou para ensinar, dizendo que
procurassem Kamayhie caso quisessem aprender novamente os desenhos. Os Haliti explicam
que o subgrupo Waymare é mais habilidoso com os desenhos da cestaria, justamente por serem
descendentes de Kamayhie, que passa a ser o “dono” dos desenhos.

Hezoaheta autiyakiheta witso, hezoaheta autiyakiheta Meu avô Eheroware, desce aqui e nos ensina de
witso, atiyo no Eherowa, wimiyautiya wimiyauneheta, novo, como fazer os bacarás, todos esquecemos
womane hetseha. como se faz.

Nomi nomi zakore, emanekwa ikiyanakahiye Meus netos, eu falei para vocês comerem na vasilha
ikiyanakwa nomizakolihiye, notxi zakanae. para não esquecerem.

Zoare zoarekakwaeyakani, zoarekakwae Como vou descer aí para ensinar vocês de novo, não
zoarekakwaeyakani, hezoakiheta natiyo, notxiyani, posso mais descer aí meus netos.
notxi tiyaetsakaediyanae, notxiyetenae. [...]
[...]

Nea Kamaehiye, Kamaehiye takita no hatiyo, no otiya Só Kamaehiye decorou todas as pinturas dos
no omati tseha, tohidi abali no etseha, hiyane no bacarás, como se faz bacarás e peneiras, vocês têm
enali. que procurar ele, ele vai ensinar a vocês de novo.

Autiyaki autiyakitsa no jitso, jitsonae hatiyo Só Kamaehiye pode ensinar vocês de novo.
autiyakitsa no Kamaehiye.
(JZ_26062017_023)

Por fim, como exemplo do último subgrupo de interesse de zolane meia-noite, temos um canto
que apresenta uma característica adicional da produção musical Haliti: a possibilidade de
improvisação de conteúdo. Trata-se de um exemplar único, cuja ocorrência permite abrir o
leque de possibilidades criativas em relação à produção musical – contrastando assim com as

184
pequenas variações admitidas pela transmissão, reprodução e interpretação de conteúdo,
processos até aqui privilegiados. É um canto de longa duração que se utiliza de metáforas,
nomes fictícios e tom jocoso para narrar acontecimentos associados à uma determinada pessoa.
Durante a gravação este canto despertou muitas risadas dos ouvintes, entretendo-os em grande
medida porque possibilita-os associar a narrativa “fictícia” aos personagens “reais” – ou seja,
aos parentes distantes de outras aldeias. O canto narra a história de duas irmãs, que conversam
sobre a saudade que sentem de um homem, que as abandonou por serem muito preguiçosas
(entre os Haliti é comum duas mulheres, normalmente irmãs, serem casadas com o mesmo
homem). As mulheres se lamentam e lembram que ele sempre trazia peixe para elas comerem.
Em tom jocoso, ficam lembrando de como era bom comer a cabeça dos peixes, mas na verdade
estão lembrando, metaforicamente, do pênis do marido. O canto trata, portanto, de um
casamento desfeito, fazendo tanto uma crítica ao comportamento social reprovado que motivou
a separação – a preguiça das mulheres – como uma ironia em relação ao sentimento de saudade
– neste caso utilizando-se de uma metáfora para sugerir o quanto sentem falta de seu marido.
A narrativa foi construída pelo intérprete durante a própria gravação e faz referência à um
parente distante – e não a um antepassado ou espírito, como de praxe na grande maioria dos
cantos.

(…) [...]
Zaneheta hatiyo no nezanene hatiyo no Ojibiou Eu estou chorando toda a tarde porque nosso marido
wikiyoke Jenerozo itiyani Owihoko no zeta eye hatiyo Ozebio foi embora para Aldeia Figueira, é filho do
notiyehekwatita waemakakwaniya zazaiyani zazaiyani nosso tio Jenerozo, eu estou com muitas saudades
no Zoiza zazaiyani Zoiza. dele, minha irmã Zoiza.

Zaneheta zaneheta no hatiyo winezanene hatiyo Eu estou chorando porque nosso marido Ozebio foi
Ojibiou wikiyoke no itiyani Jenerozo itiyani eye hatiyo embora, filho do nosso tio Jenerozo, por esse motivo
notiyehekwatita zazaiyani no Zoiza. estou chorando minha irmã Zoiza.

Kehalani natiyoa kohakakoine naenaeharetene Como isso foi acontecer, porque fui eu que o criei,
zaneheta hekakawatiya kohalokitsa no natiyo mas ele foi embora, estou com muitas saudades dele,
Kehalani, wakolahakakoene naenaeharetene zaneheta minha irmã Zoiza.
notiyeta ekawa zazaiyani no Zoiza.

Neaka azaka no boro, natiyo no kehalani Como isso foi acontecer, porque fui eu que o criei,
natiyoakohakakoere ka hatiyoakohazomoka nelitaka mas foi embora, estou com saudade dele, a minha
hatiyakohakakware neaka auka zokotiya nita irmã falou, ela o criou, mas ele não reconheceu isso,
hatiyoako moketere nenaheta hatiyo akohakakwa ele foi embora, ela está falando do menino.
aukere.

Kalakore kalakore kahane eakere heko kaukihitita Ele chega a essas horas com os peixes pra mim,
kaukihititaene hahotxikiyalahoko hakaehareza peixe piraputanga, peixe pacu, eu estou com saudade
hokokakwa nomi no notiyeta. dele.

Alakore alakorekahane eakere hekoiya kaukeheta Ele chega a essas horas com os peixes para mim,

185
kaukehetitaene hahotxikiyalazakakwa akaehareza peixe piraputanga, peixe pacu, eu estou com saudade
akaeharezahokokakwa kaukihititaene. dele.

Nahotiyoatiya nahotiyoatene hatiyo hahalaka Estou chorando porque a essas horas ele chega com
kakware wanitxita ehotxitiyalaha hatiyo hatiyo no os peixes pra eu cozinhar, comemos só as cabeças
etsehedi nohomita hatiyono notiyeta zazaiyani no dos peixes, comemos juntos num prato só, estou
Zoiza. com saudade disso, estou chorando minha irmã
Zoiza.

Alakore alakorekahane alita eyakere ekoiya Ele chega a essas horas com os peixes para mim,
kaukihititaene hawalakohoreza hahotxikiyalahoko no peixe piraputanga, peixe dourado, eu estou com
e ekakwa nomi notiyetita hahalakwa. saudade dele.

Hahalakwarekakware wanitxitaene hehotxikiyala no Eu estou com muita saudade dele porque ele pesca
kaeyehe ewalakoreza no kaeyehe. os peixes, comemos só as cabeças dos peixes
piraputanga e dourado.

Hahalakwa, hahalakwarekakware wanitxitaehane Eu estou com muita saudade dele porque ele pesca
ehotxikiyala ewalakoreza hatiyo no ekaeyehe. os peixes, comemos só as cabeças dos peixes
piraputanga e dourado.

Zokotiya zokotiyanika hotxikiya no tsedi walakore Ela fala da cabeça do peixe, mas ela está falando do
tsedi auketere nonotiyore Ojibiou tsekolonatse pênis do meu cunhado Ozebio, que coloca entre suas
tsekolonatse aheta hotxikiyare kaeyare aukita. pernas, isso que é cabeça do peixe que ela está
falando.

Zokotiya zokotiyanika nonotiyore Ojibiou no hatiyo Ela fala da cabeça do peixe, mas ela está falando do
tsekolonatsemeta hotxikiyare kaehiyare tsehedi kolo pênis do meu cunhado Ozebio, que coloca entre suas
no auketa. pernas, isso que é cabeça do peixe que ela está
falando.

Mahakwala hitiyaha no koli koliani no Boro Minha irmã Boro, você tem que parar de chorar,
tsekwakiya no zaneheta wikiyoke no hitiyani kahene nosso marido foi embora para muito longe, onde tem
kaheneakitiya owihoko no hatiyo ekaeyarene owitoli muitas cobras, um lugar muito perigoso, filho do
etolihitiyoeterekoni no zaneheta nosso tio Jenerozo.

Kahehene kaheheneakitiya zaneheta no hatiyo Ele foi embora para um lugar onde tem muita cobra,
owihoko owi hetolihitiyoterekoniya. um lugar muito perigoso.

Ekokore hatita no ezema hatitakakwa watiyo witsauna Minha irmã Boro, vamos ficar com só um homem,
witsauneheta koli koliani no boro, neaka zazaeka sua irmã falou para ela, sua irmã a consolou.
makere, idiyekakwahena.

Ekokore hatita no ezema witsauneheta koli koliani, Minha irmã Boro, vamos nos casar com só um
koliani no boro koliani no boro. homem.

Owa hatiyo maitsaiya no zaza waiya aliyazoka Eu não vou aceitar sua proposta, você vai falar de
hiyayazemahalohetaiya hatiyia no natiyo ezahehare mim, que eu estava ficando com seu marido, assim
haidiyakonehalotiyan ketanae. eu fico triste, por isso não vou aceitar.

Owa hatiyo owa hamaitsaiya zazaiyani no Zoiza, Minha irmã Zoiza, eu não vou aceitar sua proposta,
waiya hatiyo aliyazoka hiyaeiya zemahalo etaiya no você pode ter ciúmes, eu fico mais triste, vou chorar
enatiyo ezaheharea natiyo muito, você vai falar mal de mim.
hazaidiyakwanehalokitsaiya natiyo.

Neaka zaza no boro zaza no Zoiza, nea hatiyo banana Minha irmã Zoiza falou comigo bem no pé da
kiniyota hatiyoka no tiyoka hahalakware bananeira, bem na minha frente, me falou chorando
hahalakakware neaka tiyahena natserra natserra no no terreiro, na aldeia Formoso, no meio da mata da
weteko taitseko halakwako. aldeia Formoso.

186
Neaka neaka tiyokehena zazanae, zazanae makere, Assim as minhas irmãs se sentaram bem no pé da
banana e katiyahe natserra natserra no weteko bananeira, ela chorou muito no terreiro da Aldeia
taitseko halakwako. Formoso, no meio da mata da Aldeia Formoso.
[...] [...]

(JA_10112017_029)

2.5.4 Zolane zerane ferakwahena mania (cantos de zolane na madrugada)

O zolane madrugada é um conjunto marcado por uma mudança de andamento na performance


e execução musicais. Após o canhoteiro o zolane começa a se desenvolver mais lentamente,
com vozes mais suaves. Nesta etapa, grande parte dos cantos fazem referência aos espíritos
auxiliares utyahaliti, evocando os nomes dos locais onde habitam – como os morros Mayzolo
e Zamore, por exemplo – assim como elementos que os caracterizam – a presença da figueira
grande halo-halo ou a folha-adivinhadora toakahanã. Com menor frequência, encontramos
cantos que fazem referência aos demais espíritos da cosmologia Haliti, como a gente da água,
dos morros e das matas. Essa ênfase nos patamares em relação, subjetividades espirituais e seus
pertencimentos é um dos traços que distingui os conjuntos de zolane madrugada de zolane
meia-noite, este último privilegiando as narrativas de origem.

Na sequência de cantos apresentada a seguir, são evocados os primeiros viventes, entes


superiores que habitaram o patamar terrestre e hoje habitam as aldeias celestes; os espíritos
auxiliares utyahaliti, antepassados que encarnam na forma de pássaros e ajudam na cura dos
doentes; as aldeias celestes em geral, assim como demais locais que estes espíritos habitam;
além de elementos que caracterizam estas subjetividades. O ente superior Toakayhoré, por
exemplo, um dos primeiros viventes do mundo, é conhecido por ser um sábio “adivinhador”,
já que possui a capacidade de interpretar os sinais e adivinhar os acontecimentos que estão por
vir. Sua capacidade de adivinhação é associada a um tipo de folha chamada toakahanã, de uma
árvore que existe somente no seu patamar celeste, que o confere tal habilidade de adivinhar.
Toakayhoré também se associa a um tipo de pássaro, um gaviãozinho que sempre está dentro
do rio porque se alimenta de peixes. Num dos cantos, a menina Ezaulowero está lamentando
para sua mãe Takaza que sente saudade de seu companheiro de dança, Toakayhoré. A menina
está chorando com saudades, mas sua mãe diz que ela não pode se entristecer pois seu parceiro
continua ali, na ponta da fila dançando zolane. Ele tem cocar na cabeça, feito das penas do rabo
desta espécie de gaviãozinho.

187
Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...
Natiyoeyaka nowaini Halitiyaka meho Halitiyaka Se eu morrer, todas as pessoas morrem.
meho.

Natiyoene nowaini natiyoeyaka nowaini Halitiyaka Se eu morrer, todas as pessoas morrem, até o céu
meho enokwayaka zalikwa enokwayaka zalikwa. balança.

Nea neaka hatiyo nea Towakaehore nea Towakaehore Towakaehore falou assim, se eu morrer, todas as
natiyoeyaka nowaini halitiyaka meho. pessoas morrem.

Enokwayaka zalikwa enokwayaka zalikwa enokwaya Se eu morrer, o céu pode tremer, pode até
molokwa natiyoeyaka nowaini natiyoeyaka nowaini. desmoronar.
[…] [...]

Zoare hiyotiyakala zoare hiyotiyakala zoare Towakaehore, o que é seu adivinhador, como que
hiyotiyakala ane Towakaehore zoare hiyotiyakala. você sabe das coisas?
[…] [...]

Towakahanitare towakahanitare natiyo natiyo O meu adivinhador é um tipo de folha chamada


nozotiyakali natiyo nozotiyakali natiyo nozotiyakali Towakahana, esse é meu adivinhador.

Towakahanita no towakahanita no natiyo nozotiyakali Meu adivinhador é uma folha chamada


towakahanita no natiyo nozotiyakali. Towakahana, esse é meu adivinhador

(FO_19052017_023)

Hatiyo zoare hiyotiyakala, nohae no Iherowa, nohae O que é seu adivinhador, meu primo Ehereoware?
no Iherowa. [...]
[...]

Hatiyo no nozotyiakali nohae, nohae Towakaehore, O que é seu adivinhador meu primo Towakaehore?
zoaretiya zoaretiya hatiyo, hitso hiyotiyakala. Aquilo mesmo é o meu adivinhador.

Nowahatiyo nokaeyarehalini, towaka towakahanita, Meu primo Eheroware, meu adivinhador é uma folha
hatiyo nozotiyakali, nohaezani nohae no Iherowa, mesmo, meu adivinhador é a folha de uma árvore
nohae no Iherowa. mesmo.

(JZ_26062017_027)

Kakawakore ama, kakawakore ama, nozakore ki ama, Minha mãe Takaza, eu estou com saudade do meu
amaeiyani Takaza, amaeiyani Takaza. companheiro de dança.
[...] [...]

Txia txiahahita, txia txiahahita, ketehotimaniya, Ele está bem na ponta da fila, dançando bem
ketehotimaniya, txia txiahahita. devagar.

Onezere nahe, onezere towaza, onezere towaza, Ele é da água, ele fica na água.
onezere himetse, onezere himetse.

iniho zauloneze, iniho zauloneze, txiya txiyahahita, Ele está passando, usa um cocar na cabeça igual
notamitxini zate, notamitxini zate. meu sobrinho.

Koitsemazatehare, Koitsemazatehare, hoko kanolihare, Ele é igualzinho Koitsemazate, ele tem braço
hoko kanolihare, hoko katsedihare, hoko katsedihare. bonito e perna bonita.
(…) [...]

188
(FO_19052017_019)

Outros cantos evocam os espíritos utyahaliti que também encarnam na forma de pássaros.
Ninguém consegue vê-los, porém escutam-se os seus assobios durante a noite. É com estes
espíritos-pássaros que os pajés conversam durante os benzimentos, pois ele ajuda na
recuperação do espírito dos doentes – que provavelmente “deixou” a pessoa temporariamente
causando a enfermidade. No exemplo a seguir, os espíritos-pássaros tem uma “taquarinha”
(como se fosse uma flauta) que lhes permitem assobiar de uma forma bem bonita. Eles não
ficam aqui na terra pois são espíritos, mas sempre fazem suas visitas durante a noite. Quando o
pajé escuta os assobios, vai ao pátio da aldeia para conversar com eles. Se tem chicha sendo
oferecida, eles aparecem, arrodeiam a casa; se não tem nada, eles só passam direto.

Wayeta notiyolini, wayeta notiyolini, natiyoki Está bem comigo, está bem comigo.
notiyolini, wayeta notiyolini, natiyoki notiyolini.

Eno tyialakoiyako, eno tyialakoiyako, tiyore tiyore É para assobiar bem no alto do céu, esse é
tiyakala, eno tyialakoiyako, tiyore tiyore tiyakala. assobiador do céu.

Atiyotiyo ki nomane, atiyotiyo ki nomane, tsuwigui Meu avô que fez esse assobiador.
nomane, atiyotiyo ki nomane, tsuwigui nomane.

Hakonoheterali, hakonoheterali, hatyio ki notiyolini, A corda do meu avô, ele que fez tudo isso.
hatiyotiyo ki nomane, tsuwigui nomane.

Kamaezokare tiyore, Kamaekozare tiyore, tsalakozare Esse é assobio de saracura, assobio de Kamakozare
tiyore, Kamaekozare tiyore, tsalakozare tiyore. [outro pássaro].

Tiyore tiyoretiyakala, tiyore tiyoretiyakala, wayeta Isso é para assobiar bem no alto do céu, está
notiyolini, enoetiyalakoeyako, tiyore tiyoretiyakala. comigo.

Hotxika mokoteze, hotxika mokoteze, natiyo ki A metade do peixe piraputanga, isso é para assobiar
notiyolini, enoetiyalakoyaza, tiyore tiyoretiyakala. na parede do céu, está comigo.

Koretalihotsetse, koretalihotsetse, katanakotsetiyaka, É feito de dois pedaços de taquara, juntando uma


natiyo ki notiyolini, natiyo ki notiyolini. na outra, igualzinho a flauta zero, está comigo.
Hojika mokoteze, hojika mokoteze, kaulone nerakolo, A metade do peixe piraputanga, esse assobio é para
kaulazo niniyakolo, kaulone nerakolo. avisar as pessoas que fazem chicha e beiju.

Zatsemakitsakala, zatsemakitsakala, natiyo ki Esse assobio é para avisar as pessoas, para assobiar
notiyolini, enoetiyalakoyaza, tiyore tiyoretiyakala, na parede do céu, assobio de pássaro saracura e
Kamaekozare tiyore, Kamaekozare tiyore, tsalakozare, Kamaekozare.
tsalakozare tiyorene.

(FO_19052017_025)

A referência aos pássaros-espíritos “voadores” – os “que têm cocar na cabeça” – também é


evocada através dos morros Mayzolo e Zamore. São considerados locais de sua morada e

189
referenciados no território Haliti: ficam localizados perto dos municípios de Comodoro e Juína
e próximo ao território Nambikwara/Sararé. Os mais velhos dizem que quando se chega
próximo a esses morros, apesar de não se ver nada, se escuta o barulho de gente socando pilão,
jogando bola, dando risadas e conversando – semelhante ao que ocorre no taquaral “sagrado”
–, um índice desta presença invisível, porém audível. No dia de oferecer a chicha da festa, os
Haliti também chamam os espíritos de Mayzolo e Zamore, já que são considerados espíritos
auxiliares como utyahaliti.

Kazaulone hena, Kazaulone henaza, Kazaulone Tem um cocar, tem um cocar, tem um cocar, todos
henaza, ainiyakware toli, hainiyakware toli. que voam, todos que voam.

Kazaulone hena, Kazaulone nehenaza, Tem um cocar, tem um cocar, todos que voam, eles
ainiyakwaretoli, zamotiya haka, kazaulone nehena. estão imitando, tem um cocar.

Tiyokoekatitoli, tiyokoekatitoli, kazaulone henaza, Todos os antepassados, todos os antepassados, tem um


ainiyakwaretoli, ainiyakwaretoli. cocar, todos eles voam, todos eles voam.

Maitsulonere, maitsulonere, zamore nere, kazaulone Nos morros Mayzolo e Zamore, todos têm cocar, tem
makere, kazaulone henaza. um cocar.

Kazaulone hena, kazaulone makere, kazaulone Tem um cocar, todos têm cocar, todos têm cocar,
makere, ainiyakwaretoli, Zamotiyahaka, kazaulone todos que voam, eles estão imitando, eles querem
hena, kazaulone henaza, tiyokokati toli, tiyokokati voar, têm um cocar, têm um cocar, todos os
toli. antepassados, todos os antepassados.

Ainiyakwaretoli, ainiyakwaretoli, towiye toli, Todos são voadores, todos eles voam, eles estão
zamotiyahakatidiya, kazaulone hena, kazaulone imitando, eles têm um cocar, tem um cocar.
hena.

Maitsulo nere, maitsulo nere, zamore nere, zamore Nos morros Mayzolo e Zamore, todos têm cocar,
nere, iokenere, iokenere atiyo, kazaulone makere, todos eles voam, todos eles voam.
aniyakwaretoli no, aniyakwaretoli no. [...]
[…]

(FO_19052017_031)

Uma referência adicional aos espíritos auxiliares é evocada através do “figueirão grande” (halo-
halo), considerada a árvore “totem” das aldeias celestes. Nos cantos a seguir, é narrada a
emoção da visita à aldeia do avô Kizokare, um antepassado. A beleza de sua aldeia celeste é
marcada pela existência da grande árvore halo-halo.

Nowaiya halohalo, nowaiya halohalo, Eu visitei a figueira, eu vi a figueira, estou chorando


notiyahalohena, azeze babanaehe, hatiyo halohalone. muito, dos meus pais e dos meus irmãos, a figueira
deles.

Nowaiya halohalo, atiyotiyo hare, azeze babanaehe, Eu visitei a figueira, do meu avô, dos meus pais e
hatiyo halohalone, nowaiya halohalo. dos meus irmãos, a figueira deles, eu vi.

Waye himialolita, waye kazeihidita, azeze babanaehe, Ela está bem bonita, bem florida e folhada, dos meus

190
hatiyo halohalone nomi notiyahena. pais e dos meus irmãos, a figueira deles, estou
[...] chorando muito.
[...]

Nimita zomenero, tomoyero zomero, Assim estão dizendo, as mulheres Zomenero e


katiyolaheteronae, zomoyero zomero, nimita Tomoyero, do lugar onde tem mangava [outra
zomenero. aldeia].

(AZ_08112017_019)

Nowaeya halohalo, Nowaeya halohalo, Eu vi o pé da figueira, vou chorar muito, eu vi o pé


notiyahalohena, Nowaeya halohalo, notiyahalohena. da figueira, vou chorar muito.
[...] [...]

Nikiyareharekore, nikiyareharekore, atiyotiyo A assim é a figueira do meu avô Kizokare.


hahatiyotiyo, atiyotiyo Kizokare, hatiyo halohalone.

Waeye kazaehidita, waeye himiyalolita, atiyotiyo Eu visitei a figueira dos meus pais e dos meus
halohalo, nikiyare harekore, atiyotiyo babanaehe, irmãos, as figueiras estão bem bonitas, bem verdes.
halohalohone, waeye nowaeye hena.

Notiyahalohena, notiyahalohena, waye Eu vou chorar muito, a figueira dos meus pais e dos
himiyaloakota, waeye kazaehidita, azeze babanaehe, meus irmãos, estão muito bonitas, bem verdes.
halohalonenae, halohalonehenae.

(MN_01062017_008)

A gente-do-mato também é evocada através da história de Kamalalô, uma moça que foi vítima
de um ataque de Koehalawa – “pai do mato”. A narrativa conta que duas mulheres, uma delas
chamada Zozomaediyo, eram casadas com Koymenare. Certo dia o marido saiu de casa para
uma expedição de pesca, recomendando às suas esposas a ficar em casa e não sair para o mato
sozinhas. Porém, a irmã mais nova foi para a roça colher mandioca e lá viu uma pessoa em
cima da árvore. A árvore estava cheia de frutas maduras, o que motivou a moça a pedir para
esta pessoa lhe jogar uma fruta. A pessoa era na verdade gente do mato, chamado Koehalawa.
A menina o convida para dormir com ela em sua casa, de noite, já que o marido tinha ido pescar
e não voltaria no mesmo dia. Volta para casa bem alegre e começa a preparar chicha. De
tardezinha, escutaram um barulho estranho bem perto da casa: “aaaaaaa-wuuu-wuuuuu-wuuu”
– era Koehalawa anunciando sua chegada.

Já de noite, no escuro, enquanto as moças estavam dormindo na rede, Koehalawa entrou na


casa e se deitou com a mocinha. Ela pensou que ele estava brincando com ela; mas ele a devorou
até o pescoço, deixando somente sua cabeça dentro da rede. No dia seguinte sua irmã se espanta
quando somente a cabeça da moça pula da rede e começa a conversar. Assustada, manda seu
filho chamar o marido para contar o que aconteceu. Tentaram dar para ela peixe, beiju, mas
quando engolia tudo caia no chão novamente. Ficaram tristes e com medo. O marido, quando

191
chegou, disse para ela apanhar uma folha, bem cheirosa, depois mijar na folha e jogar na frente
da cabeça da irmã. Quando a cabeça da irmã passou na folha, o marido benzeu e ela se
transformou no pássaro jaó, saiu voando e foi embora para o mato, de onde fica assobiando.
Foi assim que a moça se transformou em Kamalalô, gente-do-mato na forma do pássaro jaó.

Hihioko hihiokolahare, hezoakitsa hezoakitsa nomani, Você pode descer o resto da fruta que você comeu,
notiyaune Koehalawa. meu primo Koehalawa.

Wiwiyawa wiwiyawa witsaunita, wiwiyawa Estamos morando sozinhas, com minha irmã
witsaunita, zaza hatiyo zaza no Zozomaediyo, Zozomaediyo, você pode vir dormir com a gente
kakwano witsaunita, zane no hatiyo no nezanene, essa noite, nosso marido foi pescar no rio da mata,
taetsekozare, hotxikia hotxikiyare walakore, zane peixes piraputanga e pacu, meu primo Koehalawa,
aetsa waula, awitsaha awitsa makazoka, hitsoaha meu primo Koehalawa.
wihiniyae, notiyaunehe notiyaune Koehalawa,
notiyaune Koehalawa.

Awitsa wiwiyawa witsaunita, zaza hatiyo, zaza no Hoje você pode vir dormir com a gente, estamos
Zozomaediyo, kakwa no witsaunita, awitsa zane no ficando sós, com minha irmã Zozomaediyo, nosso
wezanene, ahaetsa aetsa no waula. marido foi pescar os peixes no rio da mata para
gente comer.

Taetseko taetsekozare zare, hotxikia walakore, zama Ele foi pescar os peixes no rio da mata, peixe
hatiyo ezoakitsa nomani, hihiokolahare, kohomawi piraputanga e dourado, você pode descer a acupari
hiyotoko nezona, notiyaune Koehalawa. [fruta] para mim, meu primo Koehalawa.

(DZ_02062017_024)

Hezoakitsa nomani, hezoakitsa nomani, O meu primo Koehalawa, você pode descer o resto
hihiokolahare, notiyaune Koehalawa, notiyaune da sua fruta para mim?
Koehalawa?

Hezoakitsa nomani, hezoakitsa nomani, Meu primo Koehalawa, você pode descer o resto da
hihiokolahare, notiyaune Koehalawa, notiyaune sua fruta para mim?
Koehalawa?

Hiyotoko hiyoko, hiyotoko nezona, komawiyo nezona, Meu primo Koehalawa, pode derrubar para mim a
hezoakitsa nomani, notiyaune Koehalawa. fruta acupari [fruta]?

Wiwawita witsauta, wiwawita witsauta, zaza no Nós duas estamos morando sós, com minha irmã
Zozomaediyo, hatiyo no ekakwa, hatiyo no witsaunita. chamada Zozomaediyo.

Winezaneneare, Akoemenaeyaretse, zane no Nosso marido Koymenare foi pescar os peixes no rio
aetsahitsa, taetseko no zare, aetsahamazeta, kotxikiya da mata, peixe piraputanga, é muito gostoso.
aediyazeze, kaeyare aediyazeze.

Aetsahamazeta, hatiyo winezanene, winezanene, O nosso marido foi para matar os peixes, meu primo
notiyaune Koehalawa, notiyaune Koehalawa. Koehalawa.

Zokotiya mianikiya, zokotiya mianikiya, Elas não sabem que eu vou comê-las, elas não
hanikiyakahalonae, hatiyo aheteretiya, ahetere hena, pensaram isso, mas vou devorar elas.
holahetiyo kolonae, ahetere hena, hanikiyakahalonae,
hanikiyakahalonae.

192
(MN_01062017_002)

E, por fim, complementando o padrão sugerido para o conjunto de zolane madrugada – a ênfase
nas diferentes subjetividades espirituais – a gente-da-água é evocada através da narrativa da
grande inundação. Conta a história que no passado eram recorrentes as tentativas da gente da
água “invadir” a superfície terrestre para caçar e matar as pessoas, causando chuvas e enchentes
para a água dos rios subir. A narrativa é explorada através de dois exemplares de cantos deste
conjunto, que reúnem elementos comuns: o primeiro narra a história de duas mulheres fugindo
da enchente da gente da água, salvas pela borduna de Enoharese; o segundo narra história
semelhante, quando a borduna de Enoharese arrebenta a “trava das sereias” – referência à
barragem construída pela gente da água para causar a enchente na superfície terrestre.

No primeiro canto, os caçadores estavam na cabeceira de um rio procurando caça para uma
festa. Mataram um veado mateiro, porém comeram sem oferecer. Por causa disso, a “mãe da
água” subiu do fundo do rio e comeu todos os caçadores. Não satisfeitos, a gente da água espera
o anoitecer e vai em direção à aldeia dos caçadores, cantando, dançando e chegando para festa.
As mulheres dentro da casa não conseguiam ver o que estava acontecendo lá fora, pois tudo era
muito escuro e só tinha uma fogueira dentro da casa. A gente da água então entra na maloca e
se deitam nas redes. As mulheres escutam um assobio: “soin-soin-soin-tururu” – igual de um
bicho que tem no mato. Desconfiadas, acenderam uma “taquarinha” – como uma tocha – para
averiguar melhor a situação. Viram que não eram os seus maridos e correram, fugindo para o
mato de noite. Primeiro entraram na casa do marimbondo, que pensou: “Agora vou me casar,
agora tenho mulher!”. O marimbondo joga seu ferrão – “flecha” – na gente da água, mas a gente
da água era mais forte e a flechada não foi eficaz. As mulheres fogem de novo e encontram
Enoharese mexendo num pedaço de pau. Enoharese também pensa feliz: “Agora vou me casar,
agora tenho mulher!”. As moças pedem sua ajuda para não serem devoradas por yakane.
Enoharese bate forte com sua borduna e um “raio” mata toda gente da água.

Ao mesmo tempo que este canto remete à ameaça potencial que a agência da gente da água
pode representar, também sugere um desfecho que representa o controle e superação desta
ameaça, através da aliança com Enoharese, poderoso ente superior. É importante sublinhar as
correspondências entre mito e ritual que a exegese do canto apresenta em relação à execução

193
de oloniti kalorese: a chegada dos festeiros de iyamaka correspondendo a chegada da gente da
água na aldeia; e a proibição de visualizar iyamaka no terreiro correspondendo a
impossibilidade de as mulheres visualizarem a gente da água chegando. Como já vem sendo
demonstrado, ambas as corespondências reforçam a associação das flautas à gente da água.

[...] [...]
Zoare zoare no zoare hehenaiyatyia zoare Como você vai nos salvar, como que você vai nos
hehenaiyatyia hatiyo wihawaunita zoare salvar?
hehenaiyatyia.

Hatiyo notiyaunewe notiyaune notiyaunewe Meu primo Akoimenaeyaretse, como você vai nos
Akoimenaeyaretse Akoimenaeyaretse zoare salvar?
hehenaiyatyia.

Nea reka no nea temaeyakatiya nea temaeyakatiya Assim vou salvar vocês, pode ver agora, vou tampar
hatiyo txihoakatiya hakakwakamoka nea tudo isso, não vai aparecer nada, assim posso salvar
temaeyakatiya hakakwakamoka. vocês.

Kahenehare kahenehare tiyoeta one hokahakware one Meu primo Akoimenaeyaretse, as sereias estão
hokahakware iyakahare toli notiyaune notiyaunewe vindo com tudo, com muita chuva e muita água na
Akoimenaeyaretse. terra.

Haki zakore haki haki zakore nokaeyanitiyohena


nomitareka tidiya nomitareka tidiya iyaka zehokala Eu estava esperando casar-se, de repente apareceram
iyaka zehokala. duas mulheres, estavam fugindo das sereias.
[…] [...]

Nea neaka jiakazakwatiya hatiyo no otiyotidiya hatiyo O marimbondo apiacá atirou a flecha dentro do rio,
jiakazakwahena no hatiyo jiananatsenae assim vou salvar vocês, vou matar todas as sereias.
jiananatsetiyohare.

Kahene no kaheneharetiyoeta iyakahare toli As sereias estão vindo com tudo, muita chuva e
iyakahare toli one hokahakware. muita água na terra.
[…] [...]

Iyaka hatiyo iyaka zehokala iyaka zehokala Eu estava esperando casar mesmo e apareceu duas
nokaeyanitiyokena nomita terotare. mulheres, estão fugindo das sereias.

Zoare zoare no zoare hehenaeyatiya hatiyo Como você vai nos salvar, com o que você vai nos
wihawaunita zoare hehenaeyatiya hatiyo salvar.
wihawaunita. [...]
[…]

Nea neaka neaka mokohena hatiyaeholaehodiya Assim vou salvar vocês, vou bater com minha
txiditxidihore no txiditxidihore no hozakerehokakwa borduna velha, assim vou salvar vocês.
hatiyo no mokohena. [...]
[…]

Ekwazala no ekwarekatidiya no maikiya hitsutaene Nós vamos ficar com você mesmo, acho que você
hazaitsakitsa witso hanikakitsa witso. pode matar todas elas, não vamos ser devoradas
pelas sereias.

Eke eke no zoanitehena hatiyo no notiyaunewe Meu primo Enoharese, você precisa matar logo as
Enoharetse eketidiya no hatiyo anikiyakitsa witso ane sereias, nós vamos ser devoradas pelas sereias.

194
no notiyaune notiyaunewe Enoharetse. [...]
[...]

(FO_19052017_027)

Nowaeyahahena, Nowaeyahahena, iwakanae zonini, Eu estou vendo a pinguela [barragem] das sereias,
zanehena zanaekwa, zanehena zanaekwa. ela foi quebrada.

Nowaeyahahena, Nowaeyahahena, iwakanae zonini, Eu estou vendo a pinguela das sereias.


Nowaeyahahena, iwakanae zonini.

zanehena zanaekwa, Iwakanae zonini, atiyo tanohane, Eu vi a pinguela das sereias, vi também as
atiyo nowaeyaha, iwakaharenae, kahene kazoka, armadilhas das sereias, vocês podem bater em
hamokohena, iwakaharenae, tarekolore, hezotse Tarekolore [homem da água] e amassar ele todo.
tanohane.

Hakatiyahehekwatiya, hakatiyahehekwatiya. Você pode amassar ele todo.

Zonehenetse taekiyoa, onehitse ikiyoa, iwakanae A pinguela da sereia quebrou.


zonini, zonihenetse taekiyoa.

Iwakanae zonini, iwakanae zonini, hatiyo tarekolore, A pinguela da sereia foi toda amassada, o olho de
zotsetiyahene hakatiyahehekwatiya. Tarekolore foi amassado também.

(JZ_26062017_019)

2.5.5 Zolane zerane hikwatiza (cantos de saída de zolane da maloca)

Os cantos deste grupo anunciam o fim da performance de zolane e ocorrem antes do sol nascer.
A referência ao amanhecer do dia é explícita no conteúdo dos cantos, evocando imagens
correspondentes como: o pessoal saindo para tomar banho antes do amanhecer (um costume
ensinado pelos mais velhos para se manter forte e saudável); sobre o beija-flor e as abelhas
(zolozolo) chupando a seiva das flores do urucum pela manhã; sobre o assobio do pássaro
“nambuzinho”, um tipo de pombinha que canta na beira das roças anunciando o amanhecer do
dia; e sobre os pássaros despertando e colhendo seus frutos na cerração do dia amanhecendo.

Nozani nakwahitsa, nozani nakwahitsa, one Vou tomar banho primeiro, vou tomar banho
olotiwiynha, one olotiwiynha, nozani nakwahitsa. primeiro, no rio sagrado, no rio sagrado, vou tomar
banho primeiro.

Natema namitikwa, natema namitikwa, one Vou descer correndo, vou descer correndo, no rio
olotiwiynha, one olotiwiynha, one olotiwiynha. sagrado, no rio sagrado, no rio sagrado.

Kotiyenhae kwahazala, kotiyenhae kwahazala, natema Que já banharam as antas, que já banharam as antas,
namitikwa, natema namitikwa, kotiyenhae kwahazala. vou descer correndo, vou descer correndo, que já
banharam as antas.

Nahitalizawali, nahitalizawali, hotxikerezawali, A touceira de urucum, a touceira de urucum, a


hotxikerezawali, hotxikerezawali. touceira do açafrão, a touceira do açafrão, a touceira
do açafrão.

195
Nokahekwarekakwa, nokahekwarekakwa, natema Eu descendo com na minha mão as folhas, vou
namitikwa, natema namitikwa, natema namitikwa. descer correndo, vou descer correndo, vou descer
correndo.
One olotiwiynha, one olotiwiynha, kotiyenhae
kwahazala, kotiyenhae kwahazala, natema namitikwa. No rio sagrado, no rio sagrado, que as antas
tomaram banho, que as antas tomaram banho, vou
descer correndo.

(FO_19052017_035)

Wya wakwahahena wya wakwahahena, one holokyoza Vamos tomar banho, vamos tomar banho, no rio
one holokyoza, katore zoemyanaehe. sagrado, no rio sagrado, meus irmãos crianças.

Wya wakwahehena wahitalazawali, otxikereza Vamos tomar banho, com as folhas do urucum com
zawalikyakwa kahekware, wya wakwahahena. nossa mão, vamos tomar banho.

Katore zoemyanaehe katore zoemyanaehe, one Meus irmãos crianças, meus irmãos crianças, no rio
holokyoza one holokyoza, wya wakwahahena. sagrado, no rio sagrado, vamos tomar banho.

Wya wakwahahena one hahatyo, one holokyoza Vamos tomar banho, naquele rio, no rio sagrado,
nahitalazawali, wikyahekwarekakwa. com as folhas do urucum na nossa mão, vamos
tomar banho.

Katore zoemyanaehe katore zoemyanaehe, katore Meus irmãos crianças, meus irmãos crianças, meus
zoemyanaehe. irmãos crianças.

(JT_04052010_016)

Kozakare kawaune kozakare kawaune tsuwididi Os nambuzinhos estão assobiando bem na


kawaune tsakare kawaune kozakare kawaune. madrugada.

Zatyama Kokotero Zatyama Kokotero ewaihidiya Na estrada de Zatyama e Kokotero, bem na curva, os
tonoli eko nozatonoli kozakare kawaune. nambuzinhos já assobiaram.

Kozakare horetiya kozakare horetiya zolo zolo Na flor do pé de algodoeiro de Zatyama e Kokotero,
horetiya Zatyama Kokotero eko noza iniye hiye hoko eles já chuparam o líquido da flor.
hiye kozakare horetiya.

Kamaetalihenatsaka Kamaetalihenatsaka kozakare Na flor do pé de algodoeiro de Zatyama e Kokotero,


horetiya zolo zolo horetiya Zatyama Kokotero eko eles já chuparam o líquido da flor, está quase
nozaheniye iniye hoko hiye amanhecendo.

(AZ_25052017_021)

Kozakare kozakare kawaune, kozakare kozakare Já assobiou o pássaro nambu, que canta bem na
kawaune, tsowididi kawaune, jakakare jakakare madrugada para avisar a Kokotero, bem na
kawaune, tsowididi kawaune, waehidiyakwa madrugada.
waehidiyakwa tonoli, kokote kokotero, waehidiyakwa
waehidiyakwa tonoli, kozakare kawaune.

Tsowididi tsowedidi kawaune, kozakare kokote O pássaro nambu já cantou bem na madrugada, o
kokotero, enahitalaniye, hoko hiye ozakare, beija flor já se sentou na flor do urucum que
zolozoretiya kalowero kalowero horetiya, kozakare Kokotero plantou perto da casa.
horetiya, tsowididi jiakakare kawaune, tsowedidi
kawaune.

(DZ_02062017_017)

196
[...] [...]
Kozohitiyo kozohidiyo kozaka jia, kamaetali ferahaka Os calangos já passaram aqui, um pássaro já cantou
wihiye, kozakare kawaune. aqui, está clareando o dia.

Kajiyehena kajiye, kozaka kozakare kawaune hatiyo Um pássaro está cantando, as fêmeas estão
hohidiyanatsenae. cantando aqui

Hatiyoka hikiyoahena nehena noka hikiyoa hatiyo Ele mesmo que está passando, está amanhecendo o
kalowero, kamaetali wiyeye kozakare ferakwa wiyeye. dia, o pássaro está cantando.

(JZ_26062017_042)

2.6 XIHALI E ZERO

Após a finalização dos cantos de zolane e a saída dos festeiros para o pátio, caso estejam
presentes na festa a flauta nasal xihali e a flauta de pan zero, serão executados seus repertórios
dentro da maloca da festa. Os Haliti dizem se tratar de uma flexibilização (ou adaptação) da
execução de oloniti kalorese, já que antigamente xihali e zero não eram performados ao
amanhecer e sim próximo ao meio-dia, antecedendo o momento da oferenda de chicha para
Enoharese no meio do terreiro:

O tradicional era só meio-dia. Hoje em dia já é na sequência do zolane, hoje querem


fazer tudo rápido, saiu da casa já pode pegar zero ou xihali e cantar [...] antigamente,
na regra da festa, começava só depois das dez da manhã. (EAZOKEMAE, 2017)

Tanto zero como xihali possuem donos e são tratados no cotidiano através de oferendas, tendo
também sua parte de chicha reservada durante as festas. A estrutura de performance é
semelhante a zolane, porém reduzida: os festeiros entram na casa cantando e tocando os
instrumentos, dão duas voltas e param para entoação da oferenda de chicha; depois, continuarão
por aproximadamente quinze minutos cantando e dançando circularmente. Trata-se de uma
execução breve, de apenas três a cinco voltas dentro da casa que evoca características e
identidades específicas associadas a cada instrumento musical. Tanto zero como xihali não são
proibidas à visão das mulheres, que podem participar de suas danças – principalmente zero, que
é bastante apreciada por elas. Conforme explicação:

Xihali foi feita de uma cabaça, muita gente fala que é besouro mesmo, verdadeiro,
sopra só com o nariz, sai esse som, e dança meio esquisito, igual besouro mesmo que
anda de ré, esse tocador vai fazer tudo isso, vai quebrando as coisas, atropelando tudo,
o que tiver na frente vai derrubar. Os outros cantores vão dançar normal, igual zolane.
[...] Daí vem zero, mesma situação, mas a dança é diferente, arrastado, bem rápido,
batido. As mulheres podem dançar, tanto zero como xihali. Todos esses momentos

197
têm sua chicha separada, a chicha feita só pra iyamaka, só pra zolane, só pra xihali,
cada um tem sua chicha. (EAZOKEMAE, 2017)

A performance de xihali é descrita com ênfase em dois aspectos de sua agência, incorporados
sobretudo pelo tocador da flauta nasal: desorientação, neste caso mimetizando uma
característica motora dos próprios besouros e cuja consequência é esbarrar, atropelar, derrubar
e quebrar as coisas que estão em seu caminho como panelas, jarras, baldes, em casos extremos
quebrando até mesmo o jirau da casa – e por isso seus caminhos ao redor da casa devem estar
bem livres; e adivinhação, pois dizem também que durante sua performance os festeiros podem
incluir em seus cantos conteúdos reveladores de segredos sobre alguma pessoa –
principalmente em relação a comportamentos considerados desaprovados socialmente. Trata-
se de uma compreensão de que a má conduta moral de qualquer presente pode ser revelada
neste momento. Os donos de festa novamente oferecem chicha em baldes ou cuias e pedaços
de beiju e carne para os festeiros que cantam e dançam com xihali, oferta marcada novamente
pela reza idyaete específica para oferecimento à flauta nasal.

De forma semelhante ocorre com zero, uma flauta de pan composta por tubos de taquara fina,
de comprimentos diferentes para variação tonal, amarrados lado a lado. Ela também possui
repertório de cantos específicos e dança correlata. Sua performance também é breve,
normalmente de três a cinco voltas na casa, porém zero não possui um tom intimidador como
xihali. Sua dança é descontraída, alegre e bastante apreciada pelas mulheres, que também se
juntam aos homens para executá-la. É considerada “uma flauta só para brincar”, sendo menos
rígidas as suas regras de manipulação dentro ou fora da festa. A atmosfera precisa e áspera
durante a performance de iyamaka não é encontrada na execução de zero, postura que remete
à própria origem do artefato – zero é um instrumento familiar desde sua origem, pois já saiu
de dentro da pedra com os Haliti, não sendo, portanto, um artefato de origem exógena, como
são as flautas iyamaka. Assim como xihali, zero também possui uma reza idyaete específica
para oferecer sua chicha, assim como um repertório de cantos associado.

Zero tem muito espalhado por aí, acho que quem quiser pode fazer, ele não é muito
sagrado, é só para divertir mesmo. Zolane não, tem que ser respeitado, é sagrado,
porque ele veio da iyamaka, veio da iyamaka, parceiro da iyamaka que é zolane, xihali
mesma coisa. Agora zero é menos sagrado. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

198
2.6.1 Xihali hiye nidiyaetyaka (oferecimento para xihali)

Como de praxe, a reza idyaete para oferecer a chicha de xihali faz referência ao seu mito de
origem. Xihali é originalmente um velho feiticeiro, cuja sequência de transformações
desencadeada por sua morte irão dar origem à flauta nasal: os besouros que saem do corpo do
feiticeiro serão transformados num artefato cultural por suas filhas, que é a flauta nasal. Esta
continua sendo chamada pelo nome do feiticeiro, que significa também besouro. Conforme
explica o interlocutor, numa variante deste mito de origem, suas filhas conseguiram resgatar
apenas três besouros originados de seu pai, o que explica o fato de xihali ser performado sempre
com grupos de três flautas:

A história de xihali, o besouro [...], mas o besouro era uma pessoa, depois que o genro
dele matou ele, daí saíram voando um monte de besourinho [...] as filhas foram lá para
acudi-lo, mas pegaram só três besouros, daí por isso só tem três xihali de cabaça, só
três porque as filhas dele juntaram só três besouros. (ZEZONEZOKEMAE, 2017)

De acordo com outra versão do mito “A origem da flauta-de-nariz e do timbó” (PEREIRA,


1986), xihali era um feiticeiro que vivia caçando os Haliti, fazendo armadilhas e capturando-
os para comer. Certa vez, capturou Kwerekwamã (ou Kerakwamã, o periquito do peito
vermelho), um antepassado que diante do perigo consegue matar xihali derrubando uma casca
de jatobá em cima dele. Quando cai morto no chão, começam a sair um bando de besouros de
sua barriga, grandes e pequenos. Kwerekwamã, intrigado, deduz que o velho era um feiticeiro
por criar besouros na própria barriga. As filhas de xihali vão procurar o pai no mato e
encontram os besouros saindo de sua barriga. “Pegaram dois besouros grandes e pintaram de
polvilho seco. Os dois besouros grandes viraram a flauta-de-nariz e os outros todos voaram”
(PEREIRA, 1986, p.142).

Hitserehena… Pode beber...


Koko xihali… Tio besouro...
E aotseta hikyaotyakene zowakia tanolahena hitso… Quando você apareceu, você foi pego pela
armadilha...
E aotseta… E então...
Zoynyaotsekoita… Zoynyaotsekoita [nome de um lugar]…
Notxia malu zoimyanae... Minhas filhas eu passei...
Tsayeketxi waye kitxidyo nea ho… A lenha boa é o tronco de sumanera, foi assim...

E aotseta ozaka wikeayanehe aoka winiye Então nós já vamos nos casar, nosso pai besouro
xihalikwatse nea takalatsetyakakwa zanehena falou isso pra mim, minhas irmãs Kamozalikwanero,
Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero… Kamalahitsoanero...

Zanehena… Está indo...

199
Teroahena… Se escondendo...
Maitsa wiyayetene noaba… A gente não o vê, meu pai...
Nea ho... Assim foi...
E aotseta nalioreala teroa zonita malu zoimyanae, E então minhas filhas, acho que ele se escondeu por
nehena zanehetya iyehena Koerekama, nika nokayo aí mesmo, o periquito falou para elas, minhas primas,
jitso notyaoneronae nehena... podemos fazer sexo com vocês?
Koerekamane... Kwerekwama...
Hikyaotyakene zowakia… Quando você surgiu...
Koko xihali… Tio besouro...
Nea ho... Assim foi...

E aotseta nika nokayo jitso hohityonae nehena E então o periquito falou para as primas, quero
zoanaeyakore baba kalo nolakota, nola tsereho nola transar com vocês, mas elas impediram, falaram que
hamokaya hikayo witso nehena, e aotseta kalaikatse os pais dela tem formigas, cupim e outras formigas,
keteho kakwa aoloakohene eneye kotahonolatse mas ele pegou uma ponta de vara, matou todas as
tserehonola, ezoakihena... formigas, depois disso elas aceitaram fazer sexo com
ele, comeram elas todas...

Kozohenahene… Assim ele fez sexo com elas...


Kamozalikwanero... Kamozalikwanero...
Kamalahitsoanero... Kamalahitsoanero...

Nea ho... Assim foi...


Eaotseta ozaka awitsatyaete maka hoka baba E então agora quando anoitecer meu pai besourinho
xihalikwatse ekololohena, hakono hamahanera, e vai queimar cera para nós dormirmos junto com você,
aotseta… e daí...
Wazakolohena hitso… Depois disso vamos dormir juntos...
Iyowehena tyaete… Nós vamos falar, já secou...
Jitso tamarare malo zoimyanae… E vocês mesmo minhas filhas...
Nehena… Falou...
Watsehenatyaete hitso … Vamos cutucar você...
Natyotazakore no koko… Eu mesmo meu tio...
Ohidyonae kaotsenehekoheta kani… Não é hora de mulheres ficarem acordadas...
Nea ho… Assim foi...

E aotseta ozaka makeheta hakono era ekololo hena E então o besourinho já vai queimar seu algodão, suas
xihalikwatse ozaka, e aotseta maidyotse ketehou primas têm semente de caju do mato, meu sobrinho,
hitsaoneronae kilitse nozaiwe, nozaiwe, nehena... meu sobrinho, falou...

Iyo koko nehena... Pode ser tio, falou...


Ityaninyae… As filhas...
Jitso tamarare malo zoimyanae… Vocês mesmo minhas filhas...
Nehena… Falou...
Tsehenahene… Elas o cutucaram...
Mayha no koko… Não meu tio...
Natyo tazakore… Eu mesmo...
Ohidyonae kaotsenehekoheta kani… Não é hora de mulheres ficarem acordadas...
Nea ho… Assim foi...

E aotseta maitsa nikareta hatahare Tiholazare Então seu irmão Tiholazare não é igual a você, o
nehena, e aotseta hiyane hiyaia hitsaonerona periquito peito vermelho rapou o pelo da perna,
tyamenihetidya nea e aotseta hayali katsahe transformou a formiga, para juntar as cobras cascavel,
Koerekama kerahena iakyawahena kamadyalo ozaka cobras bico de jaca, ele falou para sobrinho ir até na
owi kolonamare, owi iazenamare etolihityoahena capoeira das primas, de lá juntou essas cobras, levou
wajimololiako mokoehehena... para o tio, para as primas ele falou, lá tem muita
caça...

Kanohokotya kaoheta… Ele matou muitas cobras e levou para eles...


Kazare zawanika… Lá tem muita caça...

200
Notyaoneronae… Minhas primas...
Tiyaminihitidya... A capoeira delas...
Nea ho... Assim foi...

E aotseta ozaka jiyaya hoka jihalanae zekatsikeheta Então o besouro falou para as filhas, ressuscita nossa
malo zoimyanae maitsa nikare hahetahare criação minhas filhas, seu irmão Tiholazare, não faz
Tiholazare nehena... isso com a gente...

Hiyaneno hiyaeya… Pode ir lá ver...


hitsaoneronae… Suas primas...
Hokozawala… As lagoas...
Nea ho… Assim foi...

Zanehetya e aotseta ozaka tsehali keralitsa Então ele foi lá ver as lagoas, queimou as pedras e
zawahena emakalahena mokoehehena ozaka zaloka jogou nas lagoas, matando todas as sucuris das
kaenane nemeneka kazorenae mokohehena lagoas, pescou muito peixe, levou para casa e falou,
kanohokotya kaokehetehena, e aotseta kazareza tio, para elas tem muito peixe nas suas lagoas minhas
wanika notyaoneronae hokozalanika koko nehena... primas...

Majiaeya hoka… Vocês podem ver...


Jihalanae zekatsekiheta … Ressuscitam sua criação...
Malo zoimyane… Minhas filhas...
Nea ho… Assim foi...

E aotseta hiyane hitsaoneronae wazorekezawala Então o tio dele o mandou de novo para ir ver se tem
hiyaeya nehena, e aotseta zanehitya ozaka frutas no pé de bacaba, foi lá, chegou lá, fez
hiyalahena talahiye natsenae, tore natsenae armadilha, pegou os tucanos e outro pássaro que
karokaro natsenae, hidyalahena kanohokotya come bacaba [tipos de tucano], foi embora, chegou e
kaokeheta kazarezawa nika notyaoneronae falou para o tio e as primas, sua bacaba está bem
wazorekezawala nehena… carregada de frutas...

E aotseta … E então...
Zanehetya… Ele foi de novo...
Jiaeya hoka jihalanae zekatsekiheta … Vocês podem ver, ressuscita sua criação...
Malo zoimyane… Minhas filhas...
Maitsa nikareta… Não pode acontecer isso...
Hahetahare… Seu irmão não era assim...
Tiholazare… Tiholazare...
Nea ho... Assim foi...

E aotseta ozaka wiya hitsaoneronae mitsane Então o tio dele convidou para tirar casca de jatobá,
watotoka nozai nehitya zanehitya hitso kalohareze falou para o periquito peito vermelho ficar embaixo
ekatyahemanya, nozae koerekama nehena, maitsa no para escorar, ele não foi, mandou ele, daí ele foi,
koko hitsotaete ekatyahemanya nea totohena... quando caiu a casca, matou ele, daí que transformou
os pica-paus grandes, batendo, igual gente...

Kaenyalihena... Amassou...
Xihalikwatse… Besourinho...
E aotseta… E assim...
Aikiyawahena… Ele transformou...
Tolomare… Pica-pau...
Waitororonatse… Waitororonatse [nome científico do pica-pau]...
Hekota totohena… Estava bicando o pau...
Tiyoehetehena… Ele foi embora...
Koerekama… Periquito peito vermelho...

E aotseta Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero tema Então as duas irmãs Kamozalikwanero,


zanehena kala maitsa hoka winiye jidyahare aitsa Kamalahitsoanero desconfiaram, ele chegou sozinho,
wonita nehena, e aotseta tema zanehena kala maytsa perguntaram para ele, não contou nada, foram atrás

201
hoka winiye jidyahare aitsa wonita nehena... dos pais delas, quando chegaram lá só o pica-pau
estava batendo no pau, elas acreditaram pensando que
os pais delas que estavam batendo...

Natyoero taeyakore… Eu não posso fazer isso...


Nokayarere hare naitsa zeye... Eu não sou uma pessoa má para matar seus pais...
Mitsa zoloahitya kala kenaikiyana ajikaheta natyo Ele falou para elas, seus pais pediram o raspador de
zeye ozaka jikyakolatyanero makere nomani limpar couro [mitsa] e polvilho para eu levar pra ele,
nokaeyarere hareya naytsa hena jineye zaoka as duas irmãs Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero
nehena, tema txiyehetiya Kamozalikwanero, passaram correndo a procura dos pais, eu não sou
Kamalahitsoanero… uma pessoa má para fazer isso com seu pai, vocês têm
filhos meus não posso fazer isso com vocês...

Hekota totokita... Ele está batendo lá ainda...


Aliterenika aowita wezanene Ele está falando verdade minha irmã...
Hatyoero taeyatya… Não pode ser ele...
Kaeyarere hare… Morte ruim...
Aitsa weniye jidyahare… Ele não pode fazer isso com coitadinho do nosso
pai...

Kozaka wikeakolatyanero makerehena enoma As duas irmãs Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero


nehena Kamozalikwanero , Kamalahitsoanero tema falaram uma para outra, ele não fez isso com nosso
zanehena anyakwahena waitororonatse . pai, nós temos filhos dele com a gente, assim elas
foram atrás dos pais, só voando pica-pau, não achava
os pais delas...

Ozaka… Já...
Aenyakwahena... Estava voando...
Ehotyaliyaka hetehena… Elas juntaram algumas coisas...
Hanamalitse hehotya liheta… Elas juntaram só três bolas...

Weyetero tanikata haitsa wonita wiyaheta As duas irmãs Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero


wakatolikwaretya winiye xihalikwatse nehena tema falaram uma para outra, ele matou nosso pai
tyoheta, Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero… besourinho mesmo, ela correndo rápido, vamos
embora para se vingar do nosso pai...

Hahokozala… Elas na lagoa...


Zawahihena… Jogando...
Kanohena… Amarrando...
Hamitsaneta… E casca do jatobá mesmo...

Nikiyahena koli hakawiahena ozaka Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero, ela falou para


wakatolikwaretya wineye nea noloka hihenazakore irmã gritar muito alto, agora vamos jogar todos,
hamitsaneta Kamozalikwanero, Kamalahitsoanero depois puxamos e vamos matar todos, puxando a
noloka ihetehena eaotse hikiyaotyakene zowakya casca de jatobá, agora nós nos vingamos da morte do
koko xihali nehena… nosso pai, já o matamos meu pai, besourinho meu tio,
desde que vocês surgiram sempre foi assim...

(AZ_25052017_033)

É interessante notar, através da reza, que as filhas de xihali eram “esposas” de Kerakwamã,
por sua vez associado ao periquito do peito vermelho – um dos irmãos curadores responsáveis
pela vingança contra Xinikalôre. A vingança, novamente tematizada, é empreendida contra um
antagonista – o velho feiticeiro que caçava e devorava os Haliti. Não somente, xihali carrega

202
dentro de seu corpo diversas espécies de insetos, como cupins, formigas e os besouros, numa
sutil referência à substância-feitiço que incorpora. De forma semelhante ao mito de Xinikalôre,
onde as cinzas de seus objetos queimados dão origem aos diversos povos “inimigos” dos Haliti,
os restos da morte de xihali, em relação de contiguidade com a sua “persona” anterior, darão
origem à outra ser, agora artefatual: a flauta nasal. Se a personalidade do feiticeiro é estendida
ao artefato, sua agência também o é, o que nos leva a compreender por que xihali é um artefato
companheiro de iyamaka, devendo receber cuidados especiais no cotidiano: assim como a
gente da água, guardiões e donos de iyamaka, xihali também é um mestre dos venenos, com
quem não é desejável qualquer indisposição. Mais uma vez o mito narra a saga da manutenção
da ordem social, através do controle sobre os antagonistas, caçadores e devoradores de gente
– sejam eles feiticeiros, gente da água ou jaguares.

2.6.2 Xihali zerane hatyako zeratyaka (cantos de xihali dentro da maloca)

Em relação aos cantos de xihali, encontramos uma mesma referência à história do jenipapo dos
gaviões em duas versões coletadas em campo. Tratam do mesmo tema que é a chegada dos
gaviões em busca de “pagamentos” (presentes) para compensar o descontentamento com suas
pinturas corporais. Os cantores estão pensando se podem dar de presente para eles os pentes ou
as melhores cuias de cabaça que dispõem. A narrativa está associada ao mito já evocado
anteriormente através de um canto de iyamaka, que diz respeito à vingança empreendida pelos
gaviões contra as cobras: “Os gaviões que foram mal pintados são aqueles que ainda hoje
comem as cobras, pois não ficaram satisfeitos com seus desenhos e ainda travam esta guerra
com as cobras em forma de vingança”. Como forma de evitar a vingança dos gaviões, as cobras
buscam dar-lhes presentes

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aehenahitiyaha, aehenahitiyaha, amore kokoenhahe, Eles vieram de novo, eles vieram de novo, os chefes
amore kokoenhahe. gaviões, os chefes gaviões.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Aehenahitiyaha, aehenahitiyaha, witawaharetiyatse, Eles vieram de novo, eles vieram de novo, estão
witawaharetiyatse, amore kokoenhahe. procurando alguma coisa, estão buscando alguma
coisa, os chefes gaviões.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoareraeyatiyakani, zoareraeyatiyakani, O que vamos dar para eles, o que vamos dar para
wikiyazekanehena, amore kokoeyana, eles, para os chefes gaviões.
wikiyazekanehena,

203
Ekokorediyazoka, ekokorediyazoka, hitxitsa Nós podemos presenteá-los com a melhor cuia que
waeyéahero, halatahakatsero, wikiyazekanehena, temos, vamos presentear os chefes gaviões com a
amore kokoeyanahe, amore kokoeyanahe, melhor cuia que temos.
wikiyazekanehena, hahalatakatse, hitxitsaha [...]
waeyahero.
[…]

(MN_01062017_006)

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Ayehena hityaza, ayihena hityaza, Amore kokoitoli, Eles vieram de novo, eles vieram de novo,
amore kokoitoli. os chefes gaviões, os chefes gaviões.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Witawaharetyatse, witawaharetyatse, Eles querem alguma coisa, eles querem alguma
amore kokoitoli, ayihena hityaza, coisa, os chefes gaviões, eles vieram de novo.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Zoaretakanidyaete, zoaretakanidyaete, O que vamos dar, o que vamos dar, vamos dar para
wikazekanehena, wikazekanehena. eles, vamos dar para eles.

Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há... Há-a-há-há... a-há-a-há-há... a-há...


Makowa harekore, makowa harekore, Gavião Aracauã, gavião Aracauã, gavião Aracauã.
makowa makoware, hekolatyanene. [...]
[...]
(FO_19052017_037)

2.6.3 Zero hiye nidiyaetyaka (oferecimento para zero)

A reza de oferecimento para zero segue o mesmo padrão das demais, fazendo referência à
origem mítica do artefato. Este é associado ao ancestral Nare, o último a sair de dentro da
pedra. O grupo de Nare distingue-se dos outros pois foi o que saiu mais bonito e mais alegre,
enfeitados com cocares de pena de arara, cantando e dançando com a flauta zero – considerada
a flauta de Nare. Por este motivo o ancestral Wazare, que saiu primeiro, ficou inconformado e
com inveja da saída de Nare, “não acreditando no que estava vendo”.

Hetserehena… Pode beber...


Koko zero… Tio zero...
E aotseta hikaotyakene zowakia Wazare tyokoekati E então desde seu surgimento, o antepassado
tyokehena haihekoane kanatse… Wazare se sentou bem na saída do buraco para ver...
Nare hikwahena… A saída de Nare...
Hamokotse harenae … Com sua comunidade...
Zolakwalinae... Zolakwalinae [nome]...
Kamokionae kakwa … Com Kamokionae [nome]...
Hikwahena… Estão saindo...
Nare hikwahena… Nare está saindo...
Hikiyaotyakene zowakia … Desde seu surgimento...

E aotseta Wazare tyoka wahakohena E então o antepassado Wazare se sentou onde saiu

204
haihekwanekanatse matya kekohena, hahikwane natyo para ver, ao mesmo tempo ele falou, eu que fiz esse
zakore naoka hikwati maitsa eakere tanohikwani plano de saída da pedra não pensei nisso antes, falou
nehena Nare hikwa hena hikiyoaka hikaotyakene mal de Nare, que ele fez com a sua comunidade,
zowakiya… desde o surgimento...

Koko zero… Tio zero...


Kehala hare nere… Com alegria...
Nare ki hikwahena… Nare está saindo...
Zolakwalinae… Zolakwalinae...
Kamokionae kakwa … Com Kamokionae...
Hikwa hena … Estão saindo...

Amokotse harenae kakwa Nare hikwa hena hikiyakwa Com sua comunidade Nare foi saindo, desde o
hikaotyakene zowakia Wazare tyokoekati wahakohena surgimento, o antepassado Wazare se sentou aonde
haihekwane kanatse natyo zakore naoka hikwati, ele saiu, ficou observando, falou mal de Nare, eu
maitsa eakere tanohikwani nehena... que planejei essa saída, não pensei nisso, quando
nós saímos com minha comunidade não foi assim...

Matyakekohena… Não acreditava...


Matyakekotyoalo… As mulheres não acreditavam...
Matyakekotyare … Os homens não acreditavam...
Hakakinyo hena … Colocou a mão bem no pé de arvore...

Wazare… Wazare...
Kamazo… Kamazo...
Matiya kekohena haehikwane… Ele não se conformou com sua saída...
Nare hikwahena… Nare está saindo...
Hikiyakwa… Com o senhor...
Koko zero .... Tio zero...
Nea ho... Assim foi...

(AZ_25052017_040)

2.6.4 Zero zerane hatyako zeratyaka (cantos de zero dentro da maloca)

Os cantos de zero coletados apresentam duas temáticas distintas. O primeiro deles corresponde
à oferenda e à origem mítica de zero, relacionada ao ancestral Nare e a beleza de sua saída da
pedra. Wazare e os demais irmãos que saíram antes se sentaram na pedra e ficaram observando
a saída do irmão. Já o segundo canto escapa à esta temática evocando mais uma vez a história
da “invasão” da gente da água – ou mito da grande inundação – numa variante do tema evocado
pelo canto de zolane madrugada visto anteriormente. Cabe ponderar, neste caso, se os mesmos
intercâmbios temáticos admitidos entre os repertórios de zolane e iyamaka podem ser
observados em relação ao repertório de zero, já que, conforme observa Nezokie, não se trata de
um “equívoco” classificatório:

Esse também é um canto de zero [...] tem umas mulheres, estão com medo, correndo,
daí quando acharam esse marimbondo, ah, agora eu vou ficar com você, vou casar
com você [...] a chuva que vem vindo, você não aguenta com ele, a casa deles ficou

205
cheia, ah isso não adianta, foram de novo, quando chegou lá, com Enoharese, ah,
agora vou casar com vocês, [...] a chuva tá vindo muito brava, ah, isso daí não é nada,
vou bater nele, cortar ele todo, daí colocaram ele no meio da árvore que chama halo-
halo também, daí quando as mulheres estavam chorando, a água estava bem aqui,
depressa, nós estamos afogando, não, espera um pouco, quando pegou, bateu, acabou
toda chuva, matou todos, tá vendo, agora não vou ficar com você, dai Enoré, a outra
fez chicha pra ele, a outra faz comida pra ele, daí ficou junto com Enoré, daí
começaram, criando, daí ficou desse jeito, a história de zero. (NEZOKIE, 2017)

Dare rore, dongo rore, dare rore… Dare rore, dongo rore, dare rore…

Kehala kayetserata, kehala kayetserata, Nareki Está bem alegre, está bem alegre, Nare está saindo,
hikwahena, Nareki hikwahena, Zero kakoyeta hikwa, Nare está saindo, ele saiu com zero, ele saiu com
zero kakoyeta hikwa, dongo rore, dare rore… zero, dongo rore, dare rore…

Kalowalo hinihou, kalowalo hinihou... Rabo de arara, rabo de arara...


[...] [...]

Waye tsabibi nea, waye tsabibi nea, Hatyo Está balançando bem, está balançando bem, ele está
nohikwahena, Nare kili zaulone, Nare kili zaulone, saindo, Nare com seu cocar, Nare com seu cocar,
dare rore, dongo rore … dare rore, dongo rore …

Kalowalo hinihou, kalowalo hinihou, wayea tsabibi Rabo de arara, rabo de arara, está balançando bem,
nea, wayea tsabibi nea, Nareki hikwahena, zero está balançando bem, Nare está saindo, saiu com
kakoyeta hikwa, Zero kakoyeta hikwa, dare rore, zero, ele saiu com zero, dare rore, dongo rore …
dongo rore … [...]
[...]

Hakazala harenae, hakazala harenae, kakoyeta hatyo, Com seus convidados, com seus convidados, com
hatyo, hatyono hikwa hena, Nareki hikwoahena, eles, está saindo assim mesmo, Nare está saindo,
Nareki hikwahena, Zero kakoyeta hikwa, dongo rore, Nare está saindo, ele saiu com zero, dongo rore, dare
dare rore… rore…

Maitsa tidyano hatyo, nikaretaka hatyo, nikaretaka Não pode ser assim, porque é assim, eu posso sair
hatyo, hatyono nohikwani, natyoka nohikwani, dare assim mesmo, minha saída, minha saída, dare rore,
rore, dongo rore… dongo rore…

Wazare tyokeokati, Wazare tyokeokati, hamateakeko Antepassado Wazare, antepassado Wazare, não está
hena, no hahikwane, haehikwaneka hatyo, se conformando, não está se conformando, com sua
amatyakeko hena, dongo rore, dare rore… saída, dongo rore, dare rore…

Natyo zakore hatyo, naokare tana hatyo, natyo zakore Eu não queria que fosse assim, eu não queria que
hatyo, naokare tana hatyo, hikwati Waza maitsa fosse assim, não pode ser ele, não poder ser assim,
tidyano hatyo, hatyo nonikareta, natyoka hatyo, como pode ser assim, dongo rore, dare rore, dongo
nohikwane no hatyo, dongo rore, dare rore, dongo rore …
rore …

(FO_19052017_039)

[...] [...]
Akanitehenaete, wikiyaeyanitiyo, wikiyaeyanitiyohena Agora nós vamos nos casar, essas mulheres que as
wimitaehene, wimitaehene wikiyaeyanitiyo, iwakanae sereias espantaram, agora vamos nos casar,
ezehokala, dongorore dare... dongorore dare...

Akanitehena wikiyaeyanitiyo, wikiyaeyanitiyohena Agora nós vamos nos casar, com as mulheres que as
iwakanaehe, iwaka zehokala ezehokala, sereias espantaram, estava esperando isso mesmo,
wikiyaeyanitiyohena wimitahene, dongorore dare... dongorore dare...

206
[...] [...]

Zoarehehenaeyatiya wihawaunita, notiyaune Como você vai nos salvar primo marimbondo? Eles
kojiyatsa kojiyatsani, maitsaterota witiyakekota, estão vindos com muita chuva, dongorore dare...
onenaehe zehokakakwa, hatiyo no tiyoeta toli tiyoeta
toli, dongorore dare....

Nea zoka nea zoka akani, akanitehena, Estamos mesmo esperando para casar e vocês
wikiyaeyanitiyo wikiyaeyanitiyo, nehetiyaka apareceram, como que vocês vão nos salvar meu
kojiyatsani, kojiyatsani nehenahaka, zoare hehena primo maribondo? Assim vou salvar vocês, podem
wihawaunita, notiyaune kojiyatsani, kojiyatsani, ver, agora vou fechar toda minha casa, assim vou
neaka hate ka iyohote, iyoteka mohena hahatetse, salvar vocês, assim você não consegue nos salvar,
maetsaterota witiyakekota, witiyakekota no hitso não vamos ficar com você, dongorore dare...
nohotiyaune, notiyaunezani notiyaune jana, janahare,
dongorore dare...
Estamos esperando para casar mesmo e vocês
Meherezakakoetaka txiyehetaka, akanitehenaete apareceram de repente, meus primos maribondos
wikiyaeyanitiyo, wikiyaeyanitiyohena wimitaehene, como vocês vão nos salvar? Assim vamos salvar
zaore hehenaeyatiya hatiyo, wihawaunita vocês, atiraram com flecha na água, assim vocês não
nohotiyaune, notiyaune jana jana hatiyo, neaka conseguem nos salvar, não ficamos com vocês,
jakazakwahena onenaehe, onenaehe jakazakwatiya, dongorore dare...
kojiyatsani jakazakwatiya, dongorore dare... [...]
[...]
Meu primo Enoharese, como você vai nos salvar?
Zoare hehena wihawaunita, Zoare hehena Assim vou salvar vocês, vou bater com minha
wihawaunita, wihawaunita notiyaune, notiyaune borduna que tem pintura zig zag, vou acabar com
enohare enoharetse, nomihenaeyaure namokokwatiya, todos eles, dongorore dare...
natiyaholi taekwoahidiyo ozaedyorekakoeta,
namokotiya nidikotsekwahetehena, hahatiyo
onenaehe, dongorore dare...
As primas falaram para ele, ficaram com medo,
Neaka zaneka ezoahena, zaneka ezoahena acabe logo com eles Enoharese, ficaram embaixo da
hanatiyolokakwa, hatiyo tiyahalo tiyahalo hena, árvore figueira, chorando e morrendo de medo,
halohalo zamazalo katiyahe tiyahena, eke zoanitehena apressando para Enoharese acabar logo com eles,
notiyaune, hatiyo enoharetse notiyaune enoharetse, dongorore dare...
nomihenaeya txiyawaunita, namokotiya
nemakalatsekwahena ohonenaehe, dongorore dare...

(MN_01062017_009)

2.7 CONFRATERNIZAÇÃO, BRINCADEIRAS, OFERENDAS NO PÁTIO E BANHO DA


MENINA-MOÇA

Após a longa e exaustiva noite de execução dos repertórios, o dia é de confraternização,


descontração e descanso para a próxima noite de festa. Há no entanto uma clara divisão
espacial e de atribuições: alguns convidados descansam em suas redes, outros tomam banho
no rio, enquanto os festeiros se juntam dentro da casa de flautas, onde passam a maior parte do
dia, alojados na pequena sombra, onde recebem oferendas preparadas na casa da festa, que
incluem comida, chicha e tabaco. Ficam comendo, bebendo, cantando, fumando, descansando
e esperando a próxima noite de festa. Os donos de festa, por sua vez, continuam

207
incansavelmente empenhados nos trabalhos de organização da festa, preparando e oferecendo
alimentos aos festeiros e convidados. Nota-se através desta divisão de tarefas que o empenho
com o controle do ambiente ritual permanece ativo a todo momento.

Por volta do meio-dia será realizada uma importante e grande oferenda no pátio da aldeia,
quando são trazidas e enterradas no chão forquilhas para pendurar oferendas diversas de
alimentos e chicha. No meio do terreiro, o pajé ou algum ancião oferece para Enoré
(Enoharese) através de uma reza idyaete específica para esta ocasião, também de longa
duração. Note-se que, numa espécie de inversão, esta oferenda é preparada de forma
semelhante à primeira grande oferenda da festa, dentro da casa, ao redor de kotaza, com a
utilização de forquilhas e em grandes quantidades de alimento e chicha; no entanto, desta vez
é realizada no meio do terreiro, novamente colocando em jogo a dinâmica da transição espacial
e alternância entre interior da casa e pátio da aldeia.

2.7.1 Waloko hiye nidiyaetyaka (reza para levantar a espuma waloko)

Dentro da casa de flautas, os festeiros e mais velhos preparam a espuma waloko39 para o banho
ritual da menina-moça e das crianças que estão sendo batizadas. Waloko é produzida a partir
da maceração das raízes da “jalapa-branca” (PEREIRA, 1986, p.77), misturadas com água e
agitadas dentro de um balde, produzindo grande quantidade de espuma, como se fosse “sabão”.
Este trabalho é acompanhado de uma reza específica para fazer a espuma “levantar”. Ao ficar
pronta a mistura espumante, um ancião leva a mistura para a beira do rio e outros dois rapazes
vão buscar a menina-moça dentro de sua casa, onde ficou em reclusão por mais de um mês.
Pelos braços, levam-na correndo até a beira do rio, enquanto as crianças a serem batizadas
também são trazidas. Para desempenho desta função, é necessário que sejam rapazes de boa
moral e respeitável conduta social, para que não haja prejuízo à menina-moça ou às crianças:

Na hora de saída vai fazer a espuma daquela raiz, daí primeiro dois rapazes, que nunca
tiveram brincadeira com uma pessoa, que nunca fizeram mal a uma pessoa, que vai
levar ela para dar banho nela [na menina-moça], essas pessoas que levam essas
meninas no rio pra dar banho nela, que acompanham. (ZOMOIZOKAE, 2017)

39
A espuma é feita a partir da maceração e agitação da “batata da jalapa-branca” (PEREIRA,1986, p.77). “Ualocô
– Banho que os Parici usam quando sofrem mágoas e reveses e o qual é preparado com água, na qual se faz o
decôcto de várias substâncias vegetais” (RONDON e FARIA, 1948. p.65).

208
A mãe da criança [a ser batizada] vai escolher uma pessoa que nunca adoece, que
nunca brigou com as pessoas, nunca discutiu com as pessoas, nunca desuniu as
pessoas, vai falar para aquela pessoa para dar o banho, passar espuma na criança.
(EAZOKEMAE, 2017)

Lá esfregam a espuma no corpo da moça e nas crianças que receberão seus nomes durante a
festa, e rapidamente se jogam todos dentro da água do rio. As pessoas que acompanham a
movimentação aproveitam para disputar o que sobra da espuma waloko, passando nos seus
corpos e rostos, pois entende-se que a espuma traz saúde e proteção. Waloko possui, portanto,
uma agência positiva ativada através do contato com a pele, associada tanto à imortalidade
(emenaneharene, característica evocada na reza a seguir) quanto à proteção do espírito da
pessoa que a utiliza, de maneira central da menina-moça, cuja situação liminar atrai a atenção
de outros espíritos invisíveis:

A espuma é pra não ficar assim, para essas mães de água, esses “bichos” que ficam
no “tempo” [no mato] também, para não chega perto dela [da menina-moça]. Por isso
que nós Haliti usamos até hoje, porque o conhecimento é grande [...] quando ele joga
na água, aquele waloko, daí outra pessoa vai falando sobre o respeito da mãe da água,
pedindo, rezando para a mãe da água, pai do mato, vai rezando pra menina, vai
rezando, porque senão ele leva a menina, se não falar isso, leva a menina, daí ela fica
doente, leva o espírito dela e ela fica aqui doente. (ZOMOIZOKAE, 2017)

Entende-se que a situação liminar da menina-moça associada ao sangue da primeira


menstruação atrai diversos outros seres – sobretudo a gente da água – que querem “raptar o
seu espírito”. Esta condição – “o corpo sem espírito” – é associada às doenças, e deve ser
evitada. De toda forma, o espectro de agência da espuma waloko é não somente preventivo,
mas também purificador: “Acho que esse waloko é uma purificação da pessoa, limpa todo mal,
tira o que tiver de coisas ruins” (ONIZOKAECE, 2017); “Aquela espuma waloko é pra deixar
tudo que aconteceu no passado, pra trazer coisa boa, coisa sagrada pra fortalecer você”
(AZOMEZOHERO, 2017).

Hatotoka hainyakehena, Mexe para levantar,


Wimenaneharene walokone, Nossa espuma da imortalidade,
Wikitxiditsekakwa watotoka wainyakehena, Vamos levantando com nosso dedo do pé,
Wimenaneharene walokone. Nossa espuma da imortalidade,

Zohowe iwakolare, Zohowe iwakolare [nome],


Hamenaneharene walokone, Espuma da imortalidade,
Hamokotsehalo hamokotsehare zamenanekitsakala. Para homens e mulheres nunca morrerem.
Totoka ainyakihenena, Mexe para levantar,
Hakitxiditsekakwa, Com o dedo do pé.
Hamenaneharene walokone ainyakihena. Espuma da imortalidade está levantando.

209
Zohowe iwakolare, Zohowe iwakolare,
Hamokotsehalonae hamokotseharenae. Para os homens e mulheres da comunidade.
Zamenanekitsakala totoka ainyakehena, Nunca morrerem, mexe para levantar.

Zokare zamae, Zokare zamae [nome],


Totoka ainyakihena. Mexe para levantar.

(AZ_08112017_017)

2.7.2 Warekwaho nolone (reza na beira do rio)

O banho é um momento de grande euforia, e ocorre no rio da aldeia com a presença de todos
os convidados. Neste momento, simultaneamente ao compartilhamento da espuma waloko, são
proferidas pelos anciãos rezas específicas – warekwaho nolone40 – direcionadas aos espíritos,
sobretudo a gente da água, cuja agência sobre a menina-moça é particularmente temida e
potencializada neste período. É por isso que a menina-moça não pode tomar banho de rio em
todo o período de reclusão – apenas banho de “caneca”, de noite, sem contato com o sol ou a
água do rio – de modo a evitar a aproximação de seus potenciais raptores. Após o banho, o
quartinho de reclusão é desmanchado e as palhas jogadas dentro do rio. O banho de rio com a
espuma representa a última etapa da reclusão da menina-moça, que agora pode retornar à vida
social devidamente protegida e fortalecida.

Ai termina essa parte né, vai tirar a casinha dela, e joga dentro da água, as palhas, não
é pra jogar no mato, tem que jogar na água, ai depois quando chama o nome dela pra
sair de uma vez, na hora da saída dela, ai a mãe dela vai enfeitar ela bonitinho, pintar
o rosto dela, ela sai, recebe presente dela, o que tinha pra comer eles pegam, dá pra
eles, primeira coisa vai dar uma canequinha de chicha pra ela, de kazalo, isso daí é
pro nome dela, sempre vai fortalecendo o espírito dela, ficar normal, pro resto da vida.
(ZOMOIZOKAE, 2017)

2.8 SEGUNDA NOITE, BATISMO E ZOKOZOKO

A segunda noite começa um pouco mais tarde, após o pôr-do-sol, desta vez com a ordem de
execução dos repertórios musicais invertida: primeiro o zolane dentro de casa, que se estende
até depois da meia-noite; e depois as flautas iyamaka do lado de fora, durante a madrugada. A

40
A reza warekwaho nolone, realizada na beira do rio antes do banho da menina moça constitui uma peça não
coletada por esta pesquisa. As tentativas de gravação foram negadas pelos colaboradores por se tratar de uma reza
muito longa e muito difícil, ou também “muito sagrada”. No entanto, ao final da pesquisa, um colaborador me
informou que existe uma versão desta reza, gravada há bastante tempo por um servidor da Funai, junto à um mestre
ritual já falecido. Mesmo assim, não obtive êxito em localizar esta gravação.

210
segunda noite de festa é visivelmente menos “enérgica”, reflexo do cansaço dos participantes,
mas também do tipo de chicha que é servido e oferecido – de polvilho não torrado e não
fermentado – cujos efeitos “energizantes” não são comparáveis à forte chicha de polvilho
torrado, fermentada com o auxílio da saliva das mulheres e de graduação alcoólica moderada,
servida na primeira noite de festa – oloniti.

Após o zolane e no meio da madrugada começam os repertórios de iyamaka até o dia clarear,
desta vez sem a performance de chegada e abertura do terreiro – somente a execução dos
conjuntos musicais. Os festeiros, mesmo exauridos, cantam até o amanhecer sem cessar. Pela
manhã as iyamaka são novamente guardadas na casinha e os donos de festa se empenham em
trazem oferendas para o meio do terreiro, previamente selecionadas e preparadas para a
nominação das crianças, momento aguardado com grande expectativa pelos convidados. “Na
segunda noite, os pajés vão escolher nome daquelas crianças. [...] O nome quem dá é o pajé,
que vai chamar no terreiro” (EAZOKEMAE, 2017). Para a nominação o pajé reúne as crianças
e seus pais, explicando a origem do nome escolhido – isto é, o terreiro espiritual ao qual o
nome pertence. O pajé sai da casa com as crianças que já receberam seus nomes e aos
convidados são distribuídas oferendas diversas, principalmente alimentos.

2.8.1 Zokozoko zerane hatikyanatse (canto da formiga na entrada da maloca)

O fim da festa é marcado pelo canto e dança da formiga zokozoko41, uma peça única que se
assemelha em forma musical aos cantos de zolane. Num tom que mimetiza o comportamento
deste animal, os festeiros estão em busca dos “restos” da comida da festa. Entretanto, as sobras
da festa podem incluir, além de comidas, diversos outros itens como panelas, açúcar,
ferramentas, entre outros, que devem ser prontamente entregues aos festeiros de zokozoko.

Zokozoko é formiga que come o resto. Daí que vai pedir o resto do que o festeiro
comeu, aí vai pedir, se tem resto de batata, caça, hoje em dia pode ser açúcar, tudo
que sobrou pode entregar pra ele, pra zokozoko, daí dança na porta das casas, no
máximo três minutos em cada casa, daí vai pedir e cantar em todas as portas das casas
daquele local. (EAZOKEMAE, 2017)

41
“No fim de uma festa oloniti, um festeiro põe um xire grande ou cesto (koho) às costas e pede coisas ao dono
da festa, falando assim: - A formiga-de-fogo já vai embora. Ela mora longe, e quer alguma coisinha para a viagem.
Se o festeiro ganha alguma coisa, um outro se anima e se junta ao primeiro e dançam os dois juntos, pedindo mais
coisas ao dono de festa. Assim, vão se juntando e pedindo mais coisas, até o dono de festa não ter mais nada. Essa
cerimônia se chama nozakolo”. (PEREIRA, 1986, p.22)

211
Além disso, há uma causalidade associada, que remete novamente à formiga: caso os donos de
festa não cedam os restos de comida da festa aos cantores de zokozoko, a aldeia ficará infestada
de formigas.

Se você não dá pra zokozoko, ele aumenta formiga, aumenta bastante, por isso ele,
dono da festa, caçando, tem que ter só pra dar pra ele, só pra colocar na porta, daí a
pessoa pega, se quiser tem que dar tudo, panela, facão daí você coloca, na hora que
acaba, você fala, não tem mais, daí que ele vai sair pra outra casa, pedindo, cantando
e dançando. (OMOIZOKIE, 2017)

Zokozokoediyanae, azehena haumana, zolanehi As formigas, estão pedindo, o resto de comida do


mawane, azehena haumana, Zokozokoediyanae. zolane, estão pedindo, as formigas.

Aehetiya azehetiya, zolanehi mawane, azehena Elas voltaram, o resto de comida do zolane, elas
haumana, azehena haumana. estão pedindo, elas estão pedindo.

Mataekiyoretse tae tae tae nehena, mata O arapaçu-rajado cantou assim, tae tae tae, assim
mataekiyoretse nehena. cantou o arapaçu-rajado.

Azehena haumana, zolanehi mawane, hatiyo azehena, Elas estão pedindo, o resto de comida do zolane, elas
hatiyo zokozokonae, azehena haumana. estão pedindo, estas formigas, estão pedindo.

(JZ_ZOKOZOKO)

Pereira (1986) sugere ainda uma associação entre as formigas e a gente da água, o que é
bastante plausível se considerarmos a lógica dos animais criados para serem guardiões de
iyamaka: a espécie de formiga associada à zokozoko (formiga-de-fogo, lava-pés ou mija-cão –
Solenopsis sp.) possui uma picada muito ardida, um índice de sua agência venenosa. Neste
momento, portanto, todos os guardiões de iyamaka – sejam eles formigas ou gente da água –
estariam se despedindo dos anfitriões, não deixando de lembrá-los sobre a necessidade da
oferta alimentar. “No rio Formiga (Zokozokoreza) é onde existe mais gente da água”
(PEREIRA, 1986, p.22). É o fim da festa e os convidados retornam às suas aldeias, levando
consigo ainda mais alimentos oferecidos pelos donos de festa.

No final, depois que os festeiros vão embora, as damas que dançaram durante a festa
vão pedir presente para esses cavalheiros. Pedem para dar presente, isso é da cultura
também, durante o primeiro amanhecer, também pode pedir, o próprio cavalheiro
pode dar o que ganhou para dama. Todos os festeiros vão avaliar se a festa foi boa, se
não foi, se houve falhas na organização, depois tem agradecimentos, se foi bom, aos
organizadores, os donos, daí todos vão embora. (EAZOKEMAE, 2017)

212
3. SOBRE ONTOLOGIAS SONORAS E A MUSICALIDADE HALITI

TOADA DO PAI-DO-MATO
(índios Parecis)

A moça Camalalô
Foi no mato colher fruta
A manhã fresca de orvalho
Era quasi noturna.
— Ah...
Era quasi noturna...

Num galho de tarumã


Estava um homem cantando.
A moça sai do caminho
Pra escutar o canto.
— Ah
Ela escuta o canto...

Enganada pelo escuro


Camalalô fala pro homem:
Ariti, me dá uma fruta
Que eu estou com fome.
— Ah...
Estava com fome...

O homem rindo secundou:


— Zuimaalúti se engana,
Pensa que sou ariti?
Eu sou Pai-do-Mato.

Era o Pai-do-Mato! (ANDRADE, 1927)

A “Toada do pai-do-mato” revisita a narrativa da moça Kamalalô, um episódio da mitologia


atualizado através da forma musical. Sua interpretação do mito segue à risca os ensinamentos
dos mestres de saberes: reinventar para imortalizar. Esse parece ser o sentido da própria
produção musical Haliti, capaz de imortalizar o mito reinventando suas formas de atualização.
A narrativa de Kamalalô é um excelente exemplo de como um núcleo “duro” da mitologia pode
resistir e atravessar o tempo através deste recurso estético de transmissão e expressão:

UaLALOCÊ (Phonogramma 14.594)

Akutiá-han, nohin ôkôrê


Ukuman uizoná nêtêu
Ukuialauá Kamalalô
Niáhaká nohin-ê Kamalalô
Motiá saia Arití okanatiô
Kozákitá kôlôhôn unitá nêtêu
Niahaká akaterê Kerarê
ESTRIBILHO
Ha! Ha! Noáianauê! Uh!

213
O ualalocê narra episódio da vida da india Kamalalô. Indo passear à floresta viu um
homem trepado num pé de tarumã; suppondo que fosse um índio, disse-lhe:
— Arití, dá-me uma fructa de tarumã?
E o homem respondeu:
— Kamalalô pensa que eu sou Arití. Eu sou “pai do mato” [...] (ROQUETTE PINTO,
1917, p.132-133)

Registrada há mais de um século por Roquette-Pinto (1917) e reinventada por Andrade (1927),
a narrativa ainda permanece viva no imaginário criativo dos especialistas Haliti:

Hezoakitsa nomani, Hezoakitsa nomani, Meu primo Koehalawa, você pode descer o resto da
hihiokolahare, notiyaune Koehalawa, notiyaune sua fruta pra mim?
Koehalawa? [...]
[...]

Zokotiya mianikiya, zokotiya mianikiya, Elas não sabem que eu vou comê-las, elas não
hanikiyakahalonae, hatiyo aheteretiya, ahetere hena, pensaram isso, mas vou devorar elas.
holahetiyo kolonae, ahetere hena,
hanikiyakahalonae, hanikiyakahalonae.

(MN_01062017_002)

O trecho acima, classificado pelo intérprete como um canto de zolane madrugada – e portanto
diferente do coletado por Roquette-Pinto, um canto da flauta ualalosé – nos dá pistas sobre as
funções que a forma musical pode desempenhar. Através das exegeses, percebemos que os
núcleos temáticos de sentido permanecem imutáveis, transmitidos através de diferentes formas
musicais em forma de “gatilhos”. As narrativas, interpretadas e reinterpretadas no processo de
transmissão, serão expandidas pelas gerações, capazes de agregar sentido à sua forma original.
Como detalha Nezokie:

Muito comprida a história de Kamalalô, esse é zolane madrugada [...] tinha duas
mulheres, uma cunhada e a mulher dele, daí quando amanheceu, foi caçar peixe pra
eles comerem, daí o marido delas foi pro rio, ele falou pra mulher dele, você não pode
sair pra qualquer mato, não demorou, a mulher dele saiu, quando viu, esse bicho que
come, nome dele é Kamalalô, comeu ela [...] quando chegou, já tinha comido ela,
quando tirou kazalo, kazalo é mandioca na nossa língua [...] aprontou e chamou ele
de novo, agora chegou o bicho que tinha comido a mulher, tava deitada na rede,
quando ele chegou comeu ela do pé até o pescoço, só deixou a cabeça [...] tinha duas
crianças, foram dormir lá em cima, amarraram rede, em cima da casa, quando viu
entrou esse Kamalalô, já tinha comido, a criançada ficou quietinha, pra ele não comer
elas [...] desceram, tinha só a cabeça dela, da mulher que foi comida [...] foram juntos
pro rio, conversaram de novo, o que nós vamos fazer com essa cabeça [...] quando
chegou o marido dela, contaram, a sua mulher viajou, o bicho comeu ela [...] quando
chegou pra comer peixe, quando ele quer comer, ele colocava só osso na boca desse
Kamalalô, pegaram roupa, essas coisas, pra pegar água, foram no rio, você pode ir
indo, vou benzer pra afastar ele pro mato, benzeu, mijou, quando a cabeça passar, a
mulher tinha só cabeça né, quando encostou no mijo dele né, viajou. (NEZOKIE,
2017)

214
E complementa Onizokaece:

Essa história é interessante porque existiu essa pessoa nessa época, e essa pessoa
dormiu, traiu o marido com pessoa misteriosa, e essa pessoa misteriosa era do mal né,
porque na rede antes não tinha luz, ninguém via quem deitava na rede, só deitava se
fosse o marido, daí ele dormiu, junto com ela, e comeu do pé até a cabeça, deixou só
a cabeça, em vez de ter relação sexual, comeu todinha, só que ficava a pessoa normal,
daí depois quando o marido chegou, falou, não, sua mulher se transformou em alguma
coisa, daí foi convivendo, queria se livrar dela, falou pros filhos, vocês pode ir indo,
eu vou fazer oração, vou transformar ela em algum bicho pra ela entrar no mato, vou
me livrar dela, daí que ele fez a oração, quando chegou nesse ponto que deixou a
oração que acabou se transformando em bicho do mato, Kamalalô. (ONIZOKAECE,
2017)

A atualização presente da narrativa de Kamalalô nos permite sugerir que a música Haliti cumpre
uma função modelar na memorização, cristalizando a mitologia e despertando nos seus
transmissores a elaboração de exegese sobre os núcleos temáticos, cantados e recontados
através de diferentes versões, que incorporam modificações e resistem ao tempo. Espelhando
os registros de época nas gravações no presente, convergimos numa interpretação que atualiza
ainda o próprio significado que a música e a linguagem, enquanto meios de transmissão,
possuem para os Haliti.

Operados por tradições orais, música e linguagem em relação, constituem meios através dos
quais conseguem tornar imortais sua mitologia, seus núcleos de significado, reinterpretados e
reinventados através do tempo. Junto à mitologia transmite-se não somente representações, mas
modos de ser e conceber o próprio mundo que habitam, modos estes que persistem em se
adaptar e resistir às mudanças temporais. Nesse sentido, talvez seja necessário reconstituir as
referências à “música Haliti” – e sua carga de sentido acumulada – de modo a reposicionar o
termo dentro daquele contexto: não somente um produto, mas também um processo da
atualização cultural.

3.1 TRADUÇÃO E TRANSMISSÃO

As primeiras caracterizações da música Haliti foram realizadas por Roquette-Pinto, um dos


mais antigos materiais etnográficos e musicológicos produzidos por um pesquisador brasileiro.
Naquela época, utilizou-se de um fonógrafo portátil movido à corda, que permitia fazer
gravações de até três minutos em pequenos cilindros de cera. Entre os Haliti, as gravações foram
realizadas nas aldeias Queimada (Keterokô) e Utiariti, durante um ritual que celebrava a boa

215
caçada – kaulolená – a pedido do pesquisador. Ao final da expedição, Roquette-Pinto retornou
ao Rio de Janeiro com dezessete cilindros de cera, dentre os quais doze continham gravações
de músicas Haliti (também gravou entre os Nambikwara) e que foram depositados no setor de
Etnologia do Museu Nacional. Roquette-Pinto trouxe, ainda, consigo uma coleção de
instrumentos musicais: “Ualalocê (flauta), Teiru (flauta), Zaolocê (flauta), Ualaçu (cabaça
chocalho), Zuza (jararacas42, chocalhos que se atam aos tornozelos) e Hezô-hezô, todos dos
Pareci; e uma flauta Nambikwara, Tsin-hali (flauta nasal)” (PEREIRA; PACHECO, 2008).
Tanto os registros da música – fonogramas – como os instrumentos musicais foram analisados
e comentados no livro posteriormente publicado “Rondonia” (ROQUETTE-PINTO, 1917),
incluindo a transcrição e notação das gravações, além de descrição de aspectos musicológicos
dos materiais coletados com a colaboração do musicólogo Astolfo Tavares. Estas gravações
representaram um marco inaugural no estudo científico da música de povos indígenas no Brasil,
e posteriormente serviram de inspiração para diversos pesquisadores e artistas.

Infelizmente, os cilindros de cera originais se degradaram com o tempo, se tornando


irrecuperáveis e restando somente uma cópia em vinil produzida pelo próprio Roquette-Pinto
em 1937, que foi digitalizada e disponibilizada ao público através de uma publicação em
formato compact disc (PEREIRA; PACHECO, 2008). Dos doze cilindros Haliti, apenas sete
haviam sido copiados em vinil e puderam ser recuperados. Apesar da qualidade das gravações
ser bastante rudimentar, ainda pode-se escutar as vozes dos antepassados e identificar as linhas
melódicas da música Haliti do início do século XX.

Os sete cilindros reúnem as seguintes gravações, conforme texto de tombamento original:

Quadro 03 – Fonogramas e textos de tombamento coletados por Roquette-Pinto.

Fonograma Texto de tombamento


Fonograma 14.594 Ualalocê – 1ª parte. Chôro dos Índios Parecis de Utiariti – Matto Grosso, recolhido no
phonographo pelo Dr. Roquette Pinto, 22.10.1912.
Fonograma 14.595 Ualalocê. Chôro dos Índios Parecis de Utiariti, Matto Grosso, recolhido no phonographo
pelo Dr. Roquette Pinto, 22.10.1912 (2ª parte).
Fonograma 14.598 Grito do Nokanixitó – grito em duo que os Parecis soltam quando vão cortar o pao [vara]
Iôhôhô (fetiche) – Apanhado no phonographo em Aldeia Queimada pelo Dr. Roquette
Pinto, 1912.

42
Apesar da descrição do autor se referir aos chocalhos de perna como “jararacas”, a associação não foi
confirmada pelos Haliti durante trabalho de campo. Jararacas é o termo que designa sobretudo as flautas iyamaka.

216
Fonograma 14.601 Phonogramma com a imitação do grito do utiariti, gavião sagrado dos Índios Parecis da
Aldeia Queimada, recolhido pelo Dr. Roquette Pinto, 1912.
Fonograma 14.604 Solo de flauta dos Índios Parecis – Phonogramma recolhido pelo Dr. Roquette Pinto,
1912.
Fonograma 14.605 Phonogramma com o “Kamaizokola”. Canto dos Índios Parecis, recolhido pelo Dr.
Roquette Pinto, 1912.
Fonograma 14.607 Phonogramma com o “Cirá-heralô”, canto dos Índios Parecis, recolhido pelo Dr.
Roquette Pinto em 1912.
(PEREIRA; PACHECO, 2008)

A publicação “Rondonia” (ROQUETTE-PINTO, 1917) apresenta um estudo musicológico de


época relevante, trazendo não somente descrições etnográficas focadas na música e seu
contexto de utilização, mas também transcrições e notações musicais das gravações em forma
de partituras (Anexo A), transcrição e tradução de letras de cantos e uma descrição técnica das
flautas encontradas. Diversas são as imagens evocadas por este material histórico que nos
servirão como ponto de partida para caracterizar o universo musical Haliti – objetivando,
entretanto, proceder com uma (des)construção do conceito de “música” empregado.

Os registros de Roquette-Pinto utilizam-se de uma linguagem de época, às vezes dúbia, mas


que, porém, servem como um importante marco temporal, reunindo tanto aspectos etnográficos
de interesse como explicitando as diretrizes da produção e saber científicos a que estavam
submetidos. A primeira menção à música Haliti aparece associada ao papel social do Utiariti,
referido como o “chefe espiritual” de uma aldeia, que designa a maestria da transmissão das
memórias e da execução ritual. Não é um papel inato, mas sim adquirido, e a música aparece
aqui como um conhecimento especializado que cristaliza as memórias do povo Haliti, sua
mitologia, e se associa a performance ritual. É o Utiariti quem “dá início aos cânticos”, “guarda
as flautas iyamaka” e pratica a nominação das crianças:

Cada aldeia é sujeita à jurisdicção de um chefe temporal (Amúri), e outro espiritual


(Utiarití). [...] O amúri é sempre obedecido; o utiarití, sempre respeitado. [...] A elle,
no entanto, cabe guardar na memória as lendas do povo [...]; elle é quem pratica uma
espécie de baptismo, cerimônia de apresentação social, que celebram os Parecís;
realiza uma sorte de casamento, com ritual bem determinado; corta o páo [vara]
lôhôhò, interessante fetiche até agora não descripto; dá início aos cânticos, religiosos
ou não; guarda às flautas iyamaka (Jararacas). Actualmente não existe ritual para a
consagração sacerdotal; o futuro utiarití instrue-se nas canções e nas lendas, assim
como nos processos therapeuticos, à medida que vae crescendo, mercê principalmente
de sua intelligencia. A idade do candidato não parece influir para sua escolha; Luiz
Cintra, amúri do rio Verde, não tinha mais de 30 annos. (ROQUETTE-PINTO, 1917,
p.127)

217
A referência ao “fetiche” Iôhôhô, artefato “companheiro” das flautas iyamaka, relaciona por
sua vez a produção material com a execução musical, já que a fabricação do objeto, associado
à agência protetora e a realização de certas cerimônias, envolve a entoação de um canto,
chamado Nokauixitá, peça musical coletada através do Fonograma 14.598:

O Iôhóhô ó fetiche que os Parecís ainda conservam muito escondido. Nada mais que
uma vara nodosa, guardada religiosamente, à título de amuleto protector, durante
annos e annos. Quando muito velha, e carcomida pelos insectos, queimam-na e cortam
outra; mas a procura de um novo Iôhôhô é acompanhada de certas cerimonias.
Enquanto o buscam na mata, e durante o trajecto até á aldeia, o utiarití, e mais um
companheiro, vão cantando sempre, em voz muito alta, monotonamente, duas notas
em som filado (Phonogramma 14.598). A esse duo, chamam grito do Nokauixitá; as
mulheres não no devem ouvir. (ROQUETTE-PINTO, 1917, p.131)

Além de oferecer pistas sobre as particularidades da música naquele contexto, Roquette-Pinto


explicita ainda o contexto ritual em que foi possível realizar as gravações dos cantos de flautas
coletados, uma “festa tradicional” referida por ele como kaulonená, que celebra a caçada bem-
sucedida através do consumo de chicha, cantos e danças das flautas “jararacas”:

Para satisfazer meu pedido, Luiz Cintra promoveu um grande kaulonená, onde se
celebrou a morte de um veado, bebendo oloniti. À noite recolheram as mulheres á
choupana e vieram, diante do nosso rancho, armados de jararacas, cantar e dançar
festejando a caçada, ao redor de uma grande cabaça onde jazia, em postas, um cervo
moqueado. E, assim, consegui apanhar no phonógrapho a música das principaes
cantigas parecís: Ualalôcê, Teírú, Ce-iritá, etc (Phonogrammas ns. 14.594 e 14.595).
(ROQUETTE PINTO, 1917, p.131)

O interesse na gravação rudimentar dos cantos rituais revela não somente uma aptidão do
pesquisador, mas também uma metodologia que pouco se altera no estudo dos cantos indígenas
e que mesmo hoje, apesar dos recursos tecnológicos disponíveis, ainda é largamente aplicada.
Tal metodologia, conforme aplicada no presente trabalho, consiste basicamente nas gravações
realizadas em campo, na transcrição musical e textual das gravações, e posterior tradução e
exegese dos materiais para o português. Trata-se de uma metodologia que visa sobretudo extrair
e visualizar os conteúdos linguísticos, temáticos e de sentido do material musical, que coloca
por sua vez a problemática da tradução como um ponto sensível da pesquisa etnográfica.

Os registros de época também revelam o interesse pelos instrumentos musicais utilizados pelos
Haliti à época, que são, além das flautas iyamaka, os chocalhos de tornozelo, as flautas nasais
e a cabaça-chocalho. Os chocalhos de perna são até hoje utilizados durante as festas, assim
como as flautas nasais (xihali), também encontradas entre os Nambikwara, fato que sugere a

218
existência de intercâmbios culturais entre estes povos vizinhos. O chocalho referido pelo nome
Ualaçu (ualasé) consiste no instrumento musical utilizado pelos pajés para entoação de
benzimentos em sessões de cura (Anexo B).

No entanto, desperta ainda mais atenção e curiosidade dos pesquisadores a existência das
flautas iyamaka, devido à complexa elaboração em torno dos contextos de sua fabricação e
utilização ritual. Tal elaboração envolve a proibição à visão pelas mulheres, a associação às
cobras e outros animais venenosos e os mistérios relacionados aos poderosos espíritos invisíveis
concebidos pela cosmologia Haliti – como observa Schmidt (1943, p. 43, tradução nossa),
intrigado: “Quando eu estive entre os Kozarinis, estes índios me qualificaram a casa de festa
[...] de domicílio do demônio da serpente, da jararaca”. As flautas iyamaka são também objeto
de uma descrição técnica detalhada, realizada por Roquette-Pinto com auxílio do musicólogo
Astolfo Tavares: descrevem parâmetros acústicos dos instrumentos, como escalas e tons, assim
como empenham-se na transcrição musical das melodias.

É evidente o interesse dos pesquisadores em produzir uma etnografia de cunho musicológico,


dedicando especial atenção às expressões musicais que encontram entre os Haliti. Apesar de
atentos para a especificidade que a música assume naquele contexto cultural – imbrincada com
a fabricação material, com a subsistência alimentar e com a memória contida nos mitos – os
pesquisadores utilizam-se dos conceitos científicos da época como recursos para a descrição
musicológica:

Deixando de lado a flauta nasal (Tsin-halí), instrumento pouco exacto, encontramos


entre os Parecís algumas flautas e uma buzina, com embocadura de piston, que dá son
cavernoso. As flautas estão em si; meio ton abaixo do diapason normal. Formam três
grupos naturaes: grave, médio e agudo, constituindo o que os compositores chamam
uma familia, como por exemplo, nos instrumentes de corda: contra-baixo, violoncello
e violino. A embocadura de todas é semelhante a do flageolet. Tèm quatro orifícios.
O comprimento varia [...] Em ré2 ficam os três grupos unisonos ; o 2° grupo salta do
si1 para o ré2 (3a menor) deixando de dar o do2. O 3° grupo salta igualmente uma 3a
menor : entre re2 e fá2. Além destes grandes intervallos, verdadeiros hiatos na escala,
acham-se ainda intervallos anómalos; taes são, no grupo médio, o intervallo de 2a
maior entre mi2 e fá2#, que na escala natural é intervallo de 2 a menor (mi2 a fa2). No
1° grupo da-se o mesmo entre si1 e do2#. O rythmo da música pareci, em regra, segue
os compassos binario e ternário. Ha também, nos phonogrammas colhidos, compassos
alternados, cuja regularidade não é conservada em todo o trecho. O phonogramma
14.605 offerece um bom exemplo dessa alternância; é um trecho em mi menor, que
se inicia por três compassos binários e logo passa ao compasso ternário, cahindo de
novo no primeiro, para repetir a mesma successão, até ao fim. O phonogramma 14.602
é de um coro em la maior, muito original, quanto a melodia, e surprehendente quanto
ao rythmo. E' incerto. Approxima-se do 5/4, que é mantido durante os três primeiros

219
compassos; ahi, quebra-se, cahindo, o coro, ora no compasso binário, ora no ternário.
A transcripção deste phonogramma foi feita em compasso de 3/4, para facilitar a
leitura. Notam-se em alguns phonogrammas, movimentos syncopados bem claros.
Taes são os de números 14.594 e 14.595, onde se encontra, pronunciadamente, o
tempo de bolero, em 3/8. Os instrumentos typos são: Grupo grave: Zoratealô (11.218);
Grupo médio: Teirú (11.220); Grupo agudo: Zahôlôcê (11.224). (ROQUETTE
PINTO, 1917, p.137-140)

Alguns anos mais tarde, Gallet (1934) identifica no material musical coletado por Roquette-
Pinto uma série de características contrastantes e divergentes da concepção de música ocidental,
expandindo as possibilidades de sua interpretação e aprofundamento:

Através de audição rápida que tive, de alguns discos que Roquette Pinto recolheu
(Índios Parecis), observei que o processo musical do índio, afasta-se do nosso,
europeu. Nele é diferente: 1) A escala musical, que me pareceu formada por intervalos
diversos dos nossos; quartos de tom, talvez. O que é logico e fácil de compreender,
dada a sua existência anterior à chegada do europeu, e independente portanto de
processos civilizados, como a escala temperada. 2) Como consequência, diversidade
de sistema harmônico. Ouvi cantos a várias vozes, contrapontados. Bem entendido,
com meios que não se assemelham nem de longe ao que podemos imaginar. 3)
Quadratura rítmica, sem relação alguma com a nossa. Entretanto as anotações escritas
dos têmas Parecis foram feitas dos discos, pelo nosso sistema europeu. O que falseia
completamente todo o seu feitio e estrutura. E' mais um ponto de importância máxima,
que diferencia o folclore musical indígena, do nosso atual. [...] espero ter comprovado
até aqui os seguintes pontos já citados: 1 - O índio já era músico antes da descoberta
[...]. (GALLET, 1934, p.44-45)

Considero extremamente produtivo a tensão que o autor identifica entre o “processo musical
do índio e do europeu”, através de diferenças manifestas nas escalas musicais, nos sistemas
harmônicos e na rítmica. De maneira implícita, o autor acaba sugerindo que o sistema musical
ocidental pode representar um limite para a compreensão da produção musical indígena, restrita
por uma aproximação conceitual comparativa. Este limite é evidenciado na análise antecedente
de Astolfo Tavares, que podemos considerar como uma “etnografia da música Haliti” e que
busca referenciar-se no discurso dominante sobre a música ocidental, dispensando nenhuma
atenção às formas nativas de concepção daquele material – uma das preocupações fundantes da
“etnomusicologia”.

A conclusão de Gallet (1934), paradoxal e provocativa – “o índio já era músico antes da


descoberta” – sugere que mesmo sem possuir uma definição conceitual do termo música – um
constructo do pensamento ocidental – os indígenas sempre a praticaram – mesmo sendo este
“enquadramento” também uma imposição do pensamento ocidental. Fato é que, mesmo antes
de se conceber o que é música, os indígenas já manipulavam a produção e recepção sonora, em

220
escalas, harmonias, ritmos e finalidades próprias, condizentes ao seu contexto.

Os povos indígenas sempre foram dotados de uma ontologia sonora e acústica própria e
específica, onde a própria concepção do “musical” pode não ser relevante, ou mesmo suficiente.
Como vemos na descrição da peça musical abaixo, o canto da flauta txeyru cumpre a função de
invocação de um chefe antepassado, indicando de antemão a necessidade de expansão de
sentido do conceito “musical” empregado.

Figura 01 – Notação musical de canto da flauta Teiru. (GALLET, 1934)

A investigação que proponho aqui não poderia começar de outra forma senão através dos
estudos pioneiros que reconheceram, entre os Haliti, formas musicais expressivas e
categorizáveis. Se o distanciamento do conceito de música enquanto produto do pensamento
ocidental é tão difícil quanto necessário, me proponho aqui à (des)construí-lo repetidamente,
desafiando sua aplicabilidade. Dar continuidade ao estudo da “música Haliti”, mais de um
século depois de seu pioneiro, inspira-se sem dúvida na mesma fascinação que inspirou
Roquette-Pinto. A coleta, transcrição e tradução de cantos, assim como outrora, constitui ainda
hoje uma metodologia produtiva e positiva para investigação dos sentidos que a música pode
condensar, e por isso dela faço o uso. O que muda, entretanto, é a disponibilidade de informação
etnológica, filosófica e musicológica que nos permite (des)construir o que é – ou não é –
considerado música pelos seus produtores e receptores.

É instigante observar como a musicalidade Haliti resiste ao tempo, após mais de um século de
contato, com assimilações e mudanças através das quais aquela comunidade lida com a

221
presença dos não-índios no seu mundo e se reinventa. As formas de expressão musical, no nível
estruturante – isto é, correlacionada com múltiplas esferas da organização social, como a
fabricação material das flautas, a subsistência alimentar e a transmissão da mitologia – mantêm-
se até hoje, atualizadas pela realização sistemática dos rituais oloniti kalorese. Não são,
portanto, cristalizações estéticas de uma cultura do passado, mas artefatos culturais sonoros,
efêmeros e imortais, que atravessam e resistem à passagem das gerações.

Efemeridade e imortalidade sejam, talvez, o paradoxo pelo qual passaram as flautas iyamaka
trazidas por Roquette-Pinto aos acervos do Museu Nacional. Não temos informações exatas (e
nem teremos) quanto ao contexto em que estas flautas foram disponibilizadas ao pesquisador.
O que se sabe, porém, é que hoje em dia o feito seria praticamente impossível de se repetir. Não
somente impossível, mas também antiético, já que os Haliti consideram as flautas objetos
dotados de agência, que exigem cuidados e restrições específicas. Ao retirar estas flautas do seu
habitat original, seu contexto de uso e fabricação, transplantando-as e submetendo-as à lógica
e cuidados do acervo museológico, inclusive permitindo sua visão às mulheres, as convenções
constitutivas daquela ontologia relacional foram ignoradas. Os efeitos deste desrespeito podem
ser devastadores, como foram no passado.

O que pretendo aqui salientar é que, mesmo estas flautas não existindo mais, tendo desaparecido
por completo no recente incêndio do Museu Nacional, a autoridade científica que permitiu esta
coleta para estudo acústico e musicológico, tratando-as enquanto instrumentos musicais inertes
– sem “espírito” –, infringiu e violou o sistema de relações concebido pelo pensamento Haliti,
uma agressão que não poderia hoje ser repetida. As expectativas dos Haliti em relação aos
pesquisadores se baseiam na sua própria cosmovisão relacional, não os permitindo serem
“objetos de estudo”, mas sujeitos da interação e mediação entre mundos que a etnografia
possibilita. Investigar a música Haliti e as flautas diretamente associadas é assumir os limites
éticos de uma pesquisa científica e a limitação dos termos para designar “entidades sonoras e
materiais”. Enquanto presentificações da agência de seus espíritos ancestrais, as flautas
iyamaka devem permanecer nas suas casas, dentro das aldeias, recebendo os cuidados
necessários e não submetidas a quaisquer lógicas outras que permitam sua mortificação. A
música Haliti, da mesma forma, exige uma caracterização produtiva, que escapa à acústica
“laboratorial” para construção de um conhecimento contextualizado. Entre críticas e
inspirações, o conhecimento se (des)constrói, transbordando os limites da ciência e integrando-

222
se as demandas atuais e urgentes do contexto de sua produção.

Transitando entre as potencialidades conceituais e práticas que as ontologias relacionais


indígenas podem oferecer para repensar nossa própria cosmovisão ocidental, proponho refletir
sobre a história conceitual dos termos utilizados em nossas descrições, buscando sempre
contrapontos que permitam aproximar e refinar o discurso produzido pela etnografia, resultado
de mediações entre antropólogo e comunidade indígena. Entre os Haliti, não há sequer um
termo nativo para música, mas sim diversas categorias que designam as diferentes formas
sonoras de expressão vocal e instrumental. Não descartarei a utilização do termo “música”; ao
contrário, ao invés de estabilizar sua significância, proponho suscitar a dúvida sempre que ele
for evocado no decorrer deste texto – por exemplo, colocando-o entre aspas. De modo a romper
as bases conceituais que estabilizam o termo, assim como sua associação à “contemplação da
harmonia sublime”, proponho atentar antes para os processos de criação, emissão e recepção
sonoras naquele contexto, reconhecendo tais limitações e direcionando o olhar para as
propriedades – e escolhas – políticas atribuídas à música, ao som e à escuta (OCHOA
GAUTIER, 2016, p.127), assim como a seus contextos de produção e circulação.

De modo a introduzir a (des)construção conceitual proposta, podemos elencar alguns pontos de


interesse relacionados à música, em maior ou menor grau, no contexto das festas oloniti: sua
função comunicativa, explicitada através das diferentes classes de artes verbais – cantos, rezas,
oferecimentos, diálogos cerimoniais, aconselhamentos e invocações; sua função evocativa,
transmitindo imagens da mitologia e de conhecimento sobre o meio-ambiente e o território
habitado, além de aspectos da moralidade social cristalizados na forma de memória coletiva (o
conteúdo semântico dos cantos e rezas favorecem uma percepção da vida social emoldurada
por uma filosofia ecológica, uma ontologia relacional e uma territorialidade multiversal); sua
corporalidade, envolvendo “técnicas rituais de transformação corporal” – como e euforia,
repetição, exaustão e privação de sono, envolvidas na performance, e o consumo de grandes
quantidades de substâncias, de maneira controlada (de modo central a chicha); sua
relacionabilidade, consistindo num mecanismo ao mesmo tempo sociológico e cosmológico,
meio privilegiado para o preenchimento dos espaços de mediação que possibilitam as relações
entre parentes próximos e distantes (promovendo a aproximação e interação entre aldeias, numa
lógica direcionada para o apaziguamento e resolução de conflitos entre anfitriões e
“convidados-inimigos”) e entre humanos e espíritos invisíveis (uma dinâmica cosmológica que

223
estende e mobiliza relações para outras regiões do cosmos, através dos mecanismos sonoros e
alimentares); sua substancialidade, aspecto este relacionado às capacidades que o meio sonoro
possui de agência sobre a matéria, os corpos e a percepção, problematizando, por consequência,
elaborações específicas sobre os diferentes sentidos do corpo, refletidas no privilégio do meio
auditivo (o jogo dos sentidos é problematizado nos rituais oloniti, onde as mulheres, apesar de
não poderem ver as flautas iyamaka enquanto são tocadas, constituem seu público-alvo, já que
dentro das casas é a elas imposta sua escuta). Nessa constelação de elementos associados à
música Haliti, passamos agora a construir suas linhas de conexão.

3.2 LINGUAGEM, PERFORMANCE E CONHECIMENTO

A voz faz parte da fisicalidade ou interioridade de um ser? A voz está ancorada,


enraizada em um ponto ou viaja como alma? (BRABEC DE MORI, 2015, p.34,
tradução nossa)

O que se convenciona chamar a “música Haliti” são conjuntos de arranjos sonoros, vocais e
instrumentais, subdivididos em gêneros e subgêneros. Em relação às partes vocais, há uma série
de categorias que se diferenciam, posicionadas num continuum que mobiliza permutações entre
música e linguagem. Mais próximos do cantar estariam os repertórios de cantos zerati, e mais
próximos do falar as categorias de benzimentos, rezas, diálogos cerimoniais, oferecimentos –
fehanati, manati, fetatyati, idyaete e jihatyoawihaliti –, que são traduzidas como “falas
cantadas”, apontando para a existência de uma suplementação musical em sua concepção. Para
fins descritivos temos, portanto, um contraste entre cantos, falas cantadas e linguagem
cotidiana. De todo modo, a linguagem constitui e perpassa toda a produção e recepção musical
no contexto sob estudo, chamando atenção para os aspectos comunicativos e evocativos que
dela fazem parte.

A performance ritual de oloniti kalorese evidencia uma extensa e elaborada manipulação das
artes verbais, sejam elas cantadas ou rezadas, em sequências e agrupamentos ideais, visando
sobretudo estabelecer formas de comunicação e evocação. Deste modo, música e linguagem
em relação, assim como os modos de enunciação e recepção destes tipos de informação
constituem “antropotecnologias” fundamentais, que devem ser contextualizadas, assim como a
relação entre humanos e não-humanos, entendidas de diferentes maneiras por diferentes
ontologias do acústico (OCHOA GAUTIER, 2016, p.131). Nestas ontologias, devemos atentar

224
para as particularidades e privilégios destes modos comunicativos, já que as imagens
semântico-sonoras, evocadas e construídas durante os rituais, veiculam informações e
constituem processos fundamentais.

Observamos até aqui que diferentes formas sonoras são utilizadas para a expressão da
linguagem. Todas as categorias das artes verbais, de modo central os cantos, possuem
roupagens acústicas específicas e correspondentes ao ato performático de enunciação do
conteúdo linguístico, uma distinção tanto de forma como conteúdo. A linguagem cotidiana e
discursiva circula socialmente e recebe elaborações acústicas distintivas quando performadas
no ritual. Apesar de metodologicamente oportuna, a separação entre forma sonora e conteúdo
semântico deve ser relativizada, abrindo a possibilidade de se pensar o material bruto da
enunciação como uma entidade onde ambas as esferas se fundem. Neste tipo de abordagem, a
linguagem adere as práticas sonoras e a comunicação operada não pode ser reduzida ao texto
escrito, já que a complexidade do seu desempenho enquanto som se faz crucial para
interpretação de seu significado (SAMUELS; PORCELLO, 2015). Cabe, portanto, atentar para
a suplementação “musical” que adere à linguagem no momento de sua performance.

Esta abordagem se fundamenta tanto na proposição da “arte verbal como performance” na


antropologia (BAUMAN, 1975), como da “função poética” na linguística (JAKOBSON, 2008),
abordagens que propõem que a “vida da linguagem” está em sua forma sonora realizada, ao
invés de repousar apenas em suas regras semânticas e sintáticas 43. Para interpretação dos atos
enunciativos e comunicativos, portanto, deve ser dada especial atenção aos recursos e detalhes
sônicos do ato performado, como as dimensões da tonalidade, entonação, a qualidade da voz,
assim como os fins sociais, interpessoais e afetivos para os quais esses recursos são usados
(SAMUELS; PORCELLO, 2015). A linguagem, manipulada nas situações rituais, atende a
finalidades específicas que possuem uma correlação com as formas sonoras em que são
expressas. Nestes contextos, os cantos, rezas ou diálogos cerimoniais, enquanto atos de fala,
em seus enunciados servem simultaneamente múltiplas funções, muitas das quais dependem da

43
A função poética da linguagem caracteriza-se pela preocupação com a forma do discurso, ou seja, pelo modo
utilizado para transmitir uma mensagem. O enunciado centra-se na mensagem, portanto há muito mais
preocupação estética – suas características físicas, sonoras e visuais, no seu modo peculiar de mostrar-se – e nos
efeitos que a mensagem pode causar, podendo gerar muitas interpretações pessoais. Por isso mesmo, tende a ser a
função predominante em músicas, quadros e obras artísticas em geral (JAKOBSON, 2008; CHALHUB, 2002).

225
forma sonora através da qual são veiculados. Como elucida Jakobson (1942) sobre a função
poética:

O ‘material’ da poesia ‘é verbal’, mas sua importância não é a afirmação literal feita
nas palavras, mas a maneira como a afirmação é feita, e isso envolve o som, o
andamento, a aura das associações de palavras, o sequência longa ou curta de ideias,
a riqueza da pobreza de imagens transitórias que as contêm, a detenção repentina da
fantasia por puro fato, ou o fato familiar pela fantasia repentina, o suspense do
significado literal por uma ambiguidade sustentada resolvida em uma tão esperada
palavra-chave e o artifício unificador e abrangente do ritmo. (JAKOBSON, 1942,
p.261, tradução nossa)

É nesse sentido que as imagens acústico-semânticas, simultaneamente aos “modos de fala e


escuta”, como são desempenhadas, devem receber especial atenção nos contextos rituais.
Análises textuais, de conteúdo e significado, devem levar em conta as contextuais, a fim de se
conceber tanto a “aura das palavras” como os “suspenses do significado literal por
ambiguidades sustentadas”, recursos através dos quais a musicalidade ritual se constrói.
Considerando como ponto de partida que a maioria dos rituais são narrados e performados
através do suporte que a “música” oferece, esta epistemologia do sonoro encontra na
performance ritual indígena um produtivo campo de elucidação. Se “a música ritual é ainda a
ligação que falta para entender as cosmologias indígenas das Terras Baixas da América do Sul”
(MENEZES BASTOS, 2015, p.277), ponderação que se faz presente e atual para a
compreensão das ontologias relacionais, especial atenção deve ser dedicada à necessidade da
performance musical, à vida sonora da linguagem e a materialidade sônica das expressões
executadas.

A recepção da linguagem em forma sonora durante oloniti kalorese ocorre em diversas


modalidades, através de diferentes sujeitos e intensidades variáveis. Cabe questionarmos, como
propõem alguns autores, se o que está em jogo é a audição – um modo mais passivo de
percepção auditiva, desinteressado e até mesmo distraído – ou a escuta – uma canalização
deliberada da atenção em direção a um som, um maior esforço consciente, atenção e foco para
se ouvir alguma coisa (RICE, 2015). De toda forma, adotamos a premissa de que, seja numa
forma de percepção mais ativa ou mais passiva, o som sempre atinge o corpo, penetra seus
limites é e absorvido pelo aparelho perceptivo, transformando-se em informação cognitiva. A
fisicalidade da audição, a resposta do corpo ao som e os mecanismos cognitivos
correspondentes fazem da audição e da escuta importantes processos de assimilação e

226
transformação da informação sonora. Tanto a audição como a escuta, interessados ou não,
constituem em si modos de conhecimento e transformação, que se dão através da influência da
informação linguístico-sonora sobre os corpos. E isso é particularmente intencional durante os
rituais.

Como alternativa às abordagens decorrentes da linguística teórica, da semiótica e da


antropologia simbólica, e na direção de um envolvimento mais profundo com a fenomenologia
da percepção, do corpo, do lugar e da voz, Feld (2015) propõe a definição do que chama
“acustemologia”, uma teorização do som como modo de conhecimento, unindo as ideias de
acústica e epistemologia numa tentativa de superar os impasses e limites que a antropologia da
música acumulou. Nesta proposição a atenção se debruça sobre os processos de conhecimento
que as experiências acústica e sonora possibilitam, facilitam e realizam, sendo, portanto,
necessário uma maior atenção aos processos de emissão e recepção sonoras entre os seus
experimentadores.

A “acustemologia”, enquanto expressão das ontologias relacionais, investiga o


conhecimento através da sonoridade, dando especial atenção ao feedback reflexivo da
sonoridade e audição. O tipo de conhecimento que a “acustemologia” rastreia no som
é sempre experimental, contextual, falível, mutável, contingente, emergente,
oportuno, subjetivo, construído, seletivo. (FELD, 2015, p.15, tradução nossa)

A ideia está intimamente ligada ao aspecto da fisicalidade do som, através da qual assume-se o
dinamismo que possui a energia sonora nos meios em que propaga, gerando, portanto,
interação, permutação e de fato relação entre os seus experienciadores. É nesse sentido que a
acustemologia se alinha com a perspectiva das ontologias relacionais, por constituir um meio
privilegiado para que o conhecimento experiencial da relacionabilidade do mundo seja
efetivado. O que a experiência sonora coloca em discussão é exatamente uma concepção de
mundo que se constrói através das relações, através da experiência, ao invés de um mundo
formado por múltiplas essências – e assim, consequentemente, um entendimento de que o
conhecimento sobre o mundo não pode ser “adquirido”, mas sim “experienciado”. Se o
conhecimento se dá através das relações e da experiência, o som em contextos rituais aparece
como um meio privilegiado e contextual para que isso ocorra. O conhecimento através das
relações insiste em que não se "adquire" conhecimento, mas que se conhece através de um
processo cumulativo e interativo contínuo de participação, reflexão, percepção direta, memória,
dedução e transmissão (FELD, 2015). Um ato de escuta é assim ativo e performativo, já que

227
ele não apenas representa o som; a escuta convida novas vibrações e novos ritmos aos corpos,
transduzindo a informação sonora em conhecimento sobre o meio-ambiente percebido e
vivenciado (KAPCHAN, 2015).

Aplicada ao presente contexto, o conceito de transdução pode elucidar alguns processos que
parecem ser conduzidos através da produção de recepção sonoras. Sabe-se que o som é uma
forma de energia que se move, atravessando diferentes meios de propagação, como os corpos
e o ambiente, suportes que o transformam durante esta movimentação. Podemos dizer que no
seu percurso de propagação e ressonância o som é transduzido, quando sofre transformações
ao deslocar-se através de diferentes meios no espectro de seu alcance:

A transdução nomeia como o som muda à medida que atravessa o meio, à medida que
sofre transformações em seu substrato energético, à medida que passa por
transubstanciações que modulam tanto sua matéria quanto seu significado […] [uma]
cadeia de transduções, transformações materiais que também são mudanças na
maneira como um sinal pode ser apreendido e interpretado. (HELMREICH, 2015,
p.222, tradução nossa)

O que interessa desta acepção do termo é exatamente uma tentativa de unir o mundo físico e
material às dimensões simbólicas e linguísticas em jogo através da recepção e percepção
sonoras. Sabe-se que o som, em sua forma cantada, por exemplo, veicula múltiplos tipos de
informação – sejam elas significantes dentro de um sistema linguístico ou apenas perceptíveis
em termos sonoros – que ao encontrar-se com os corpos ouvintes serão transformadas em
conhecimento cognitivo. A simultaneidade e multiplicidade das informações sonoras serão
inevitavelmente submetidas à percepção sensorial e ao aparelho cognitivo dos corpos,
transformando-se em informação subjetiva que se adere aos receptores. De todo modo e
inevitavelmente “a música é mais que um objeto, é uma maneira de perceber o mundo [...] uma
ferramenta de entendimento” (ATTALI, 1985, p.4, tradução nossa) que mobiliza relação e
transformação:

Meu uso do termo transdução, como uma conexão ou homologia entre circuitos
físicos e sociais, fluxos e campos, não se destina a nenhum tipo de reducionismo. Esse
conceito de transdução novamente exemplifica como a condição de dominância
sônica pode revelar o funcionamento muitas vezes oculto dos sentidos. Em cada ponto
de transdução, eletromagnético, sônico ou cultural, uma coisa se transforma em outra.
Isso cria um excedente. Transdução descreve um processo de transcender as
dualidades de forma / conteúdo, padrão / substância, corpo / mente e matéria / espírito.
Um transdutor é um dispositivo para atingir a velocidade de escape para deixar o
mundo de um ou de outro e entrar no mundo de um ou de ambos. (HENRIQUES,
2003, p.469, tradução nossa)

228
As cadeias de transdução em jogo durante os rituais compreendem o som como significativo e
material, alcançando (embora também excedendo) os registros cognitivos e sensoriais
(HELMREICH, 2015). No caso de oloniti kalorese podemos conceber tanto a mobilização de
substâncias – sonoras e alimentares – na constituição da “pessoa alquímica”, que reage e reflete
os movimentos de transdução inevitável, como o próprio privilégio do meio sonoro para se
efetivarem relações e mediações – uma “argamassa audível” de cunho sócio-cosmológico. É
particularmente sugestivo o fato de que as mulheres não podem ver as flautas iyamaka em sua
performance, e por outro lado, devem escutar seus cantos e melodias. No momento em que são
confinadas dentro das casas, há um pacto social estabelecido que é a proibição da visão das
flautas, tornando invisível a fonte sonora do que está sendo escutado. Mesmo que as mulheres
saibam o que é uma flauta iyamaka “materialmente” – pois provavelmente já as visualizaram
quando eram crianças – e que são elas a fonte sonora do que está sendo escutado, o contexto,
intencionalmente ritualizado, gera dúvida, sugestão e imaginação sobre o que “de fato” pode
estar acontecendo no terreiro da festa. Esconder as flautas da visão delas consiste numa
estratégia perceptiva para que a chegada dos festeiros-espíritos, prontos à execução das
performances de iyamaka, seja sugerida aos sentidos e confirmada através da performance e
execução sonora, um índice da presença daqueles que são irremediavelmente invisíveis. Em
outras palavras, se o conhecimento se dá através das relações experienciadas, naquele momento
há de fato uma relação sendo efetivada, acusticamente mediada, entre mulheres e festeiros-
espíritos – uma forma de conhecimento experimentado sobre a própria cosmologia e sua
relacionabilidade inevitável.

As práticas de escuta constituem assim índices de conhecimento sobre os corpos e o meio que
habitam. Tanto os modos de fala como de escuta, mobilizados nos rituais, possibilitam a
circulação sonora, gerando movimento e imersão, num cenário onde a produção e o consumo
da música ritual oferecem uma oportunidade de repensar os limites do corpo, sua
permeabilidade e afetabilidade – e num sentido mais amplo, a relação entre corpos e meio
ambiente – ou a “relação ecológica com o meio ambiente e o invisível” (KAPCHAN, 2015).
Isso é fundamental se assumirmos que a cosmologia Haliti predispõe-se a conceber que corpos
são constituídos através de relações e substâncias – alimentares e sônicas – e o controle sobre
estes fluxos acaba por ser tão almejado quando devidamente desempenhado. Cabe aqui nos
perguntar: quais são as transformações, ressonâncias e frequências que oloniti kalorese quer

229
produzir em sua performance? Que tipos de informações são veiculadas às pessoas – e seus
corpos – durante estes rituais e com quais finalidades?

3.3 NOMES E NARRATIVAS DO TERRITÓRIO E MEIO-AMBIENTE

As faces semânticas e performáticas de oloniti kalorese reúnem uma série de imagens


relacionadas ao conhecimento que os Haliti têm sobre o meio que habitam. A relação entre
os conteúdos evocados pelas artes verbais, privilegiando narrativas da mitologia, assim
como o destaque para aspectos “endêmicos” da territorialidade e meio-ambiente, revelam
não somente um conhecimento altamente refinado sobre a história e o território habitado,
mas também um modo especializado de agir e se relacionar com o mundo ao redor, diante
da interpretação e transmissão deste conhecimento. Através dos textos rituais fica evidente
a importância que os Haliti dão às “origens”, marcando temporalmente a história das coisas
do mundo, assim como delimitando seus pertencimentos e localizações no espaço. Esta
preocupação topográfica e histórica se inicia com o mito de surgimento, que demarca com
exatidão o local de onde emergiram os Haliti para a vida terrestre (denominado Ponte de
Pedra), e se estende ao fato de que, para os Haliti, tudo e todos têm suas origens demarcadas
pela mitologia, assim como pelo território.

Esta forma de conhecimento das origens, em suas faces narrativas e geográficas, depende
principalmente das formas de expressão ritual para ser retransmitida através das gerações.
A produção e recepção das artes verbais – seja na sua forma de cantos, rezas ou demais
categorias – atuam como vetores da transmissão de um conhecimento especializado,
informações que emolduram uma espécie de filosofia ecológica, atrelada ao meio-ambiente
e dotada de valores morais, que subsidia um modo de ser e estar no mundo. Esta filosofia,
referenciada pelo entendimento das ontologias relacionais, é atualizada no presente e
recorre às origens das coisas e seres, suas histórias e pertencimentos, para com eles
estabelecer formas de relação adequadas.

Observamos como os conteúdos semânticos condensados através das artes verbais podem
codificar uma forma refinada e específica de conhecimento, de cunho histórico, geográfico
e filosófico. Os temas dos cantos zerati são, em sua maioria, narrações de episódios da
mitologia Haliti. Esta primeira característica do corpos textual analisado, que releva o

230
aspecto “histórico”, faz com que os cantos evoquem uma série de fragmentos e detalhes
das narrativas de origem com precisão, eventos que apontam tanto para uma
relacionabilidade interespecífica – isto é, a caracterização de relações de cunho social entre
pessoas e espécies animais e vegetais – como para uma concepção espacial que se estende
tanto horizontalmente quanto verticalmente – isto é, admite a existência de patamares tanto
acima quanto abaixo da superfície terrestre, como esferas de habitação dos seres do
cosmos. Isto significa que os episódios e relações condensadas no corpus mítico se
desenvolvem tanto nas esferas terrestres, quanto nas esferas subaquáticas, subterrâneas e
celestes. A consequência deste modelo espacial é que são admitidas não somente a relação
entre espécies distintas na esfera terrestre – interespecificidade –, mas também entre
patamares espaciais distintos – neste caso, entre “gente” visível (os Haliti, habitantes das
esferas terrestres) e “gente” invisível (os espíritos dos antepassados, habitantes de outros
patamares). Esta concepção das relações e do espaço é fundante, e caracteriza a cosmologia
Haliti.

Nas artes verbais percebemos algumas características formais recorrentes, podendo ser
entendidas como tecnologias atreladas à transmissão de conhecimento, através da produção
e recepção dos seus conteúdos. Como sugere Menezes Bastos (2013), fenômenos como a
tradução, a sequencialidade e a variação estruturam a maioria das práticas musicais nas Terras
Baixas da América do Sul, não sendo diferente no caso Haliti. Por tradução, entendemos a
própria capacidade musical de veicular a mitologia, atualizando-a na performance, enquanto
um sistema pivotal de mediação (MENEZES BASTOS, 2013). Através das artes verbais,
vemos como grandes estruturas narrativas e musicais são encadeadas, incorporando muitas das
unidades antes consideradas serem “mitos” separados ou “peças” musicais. A música não
consiste em pedaços isolados ou fragmentados da criação e performance, mas em sequencias
que refletem conjuntos maiores e abrangentes, sendo a sequencialidade uma das mais
importantes rationales da organização ritual ameríndia (MENEZES BASTOS, 2007, 2013;
PIEDADE, 2004). Pedaços isolados de música não fazem muito sentido na região: “a unidade
apropriada para a análise musical não são os pequenos pedaços”, mas sim a coerência de
unidades muito maiores, integradas por várias pequenas unidades, difíceis de gravar,
transcrever e analisar (BRABEC DE MORI; SEEGER, 2013), uma estrutura sequencial de
grande interesse cognitivo e talvez uma estratégia relacionada à transmissão destas formas de
conhecimento.

231
Esta estrutura sequencial, por sua vez, administra sequências compostas de cantos e melodias,
mobilizando os processos de repetição e variação, numa elaborada dialética às vezes
imperceptível, capaz de produzir o que se convenciona chamar de “pequenas variações” – o
que Piedade (2013) entende como um processo predominante da composição musical
amazônica, em que o material temático das peças musicais é elaborado através de
procedimentos diversos, incluindo repetição, acréscimo, diminuição, transposição,
retrogradação e muitos outros. Seja na estrutura textual dos cantos ou na execução performática
dos rituais, são características irrefutáveis de oloniti kalorese. Para além das estruturas
repetitivas e do sentido iterativo (TAMBIAH, 1985), que não são exclusivos, a música tocada
ou cantada nestes rituais possui nuances de micro variação: o que à primeira escuta soa como
repetitivo por ouvidos não treinados, na verdade não o é; o que ocorre, ao contrário, é que a
variação não é percebida ou é descartada acidentalmente (MENEZES BASTOS, 2015). O
discurso musical operado nos rituais é uma linguagem super formalizada, que articula
componentes vocais e instrumentais em arranjos estratégicos para a transmissão do
conhecimento que está sendo mobilizado. Estas estratégias constituem a própria dinâmica
temporal dos rituais, imergindo os participantes num contexto em que a memória coletiva é
lapidada por tecnologias rituais mnemônicas. Nesse sentido, a música consiste numa estratégia,
até mesmo política – e contra a modernidade, no sentido proposto por Latour (1994) –, uma
arte de controlar, constituir e disciplinar o tempo. As sequências performáticas de oloniti
kalorese são sempre relacionadas a unidades temporais – como o amanhecer do dia, a noite, a
madrugada, à meia-noite, o pôr-do-sol – cada uma delas refletindo um conjunto com
características marcadas.

Adicionalmente, as artes verbais Haliti são caracterizadas por uma estrutura nominativa e
classificatória, que ocorre através da evocação de extensos repertórios de nomes referidos
aos sujeitos (que podem ser os antepassados, diferentes classes de espíritos, espécies
animais ou vegetais) e às localidades onde se desenrolam as ações (que podem ser “aldeias”
localizadas nos diferentes patamares do cosmos, assim como campos, matas, cabeceiras de
rios, morros, entre outros aspectos da geomorfologia territorial, que servem para designar
sua especificidade – por exemplo, mata do buriti, rio da canaíva, campo da mangava, etc).
A ampla utilização das categorias nominativas, ou o que poderíamos chamar de
“manipulação dos nomes das coisas” (CESARINO, 2013) ou “cantos-listas” (TUGNY,

232
2011), possui um caráter classificatório, e aponta para a possibilidade de se reconstituir
tanto uma complexa genealogia mítica – baseada na rede de relações, parentesco e
descendência entre os Haliti e seus antepassados espirituais, animais e vegetais – como um
inventário da biodiversidade local – este por sua vez baseado na concatenação de nomes
das espécies animais e vegetais endêmicas da região evocadas pelas artes verbais. Como
consequência, temos através dos textos rituais a expressão de uma imagem ao mesmo
tempo da mitologia, revelando as origens e linhas de descendência entre os seres do mundo,
como da territorialidade, caracterizada pela delimitação topográfica do ambiente
constituinte. Trata-se de uma estética ritual, vetorizada pelas artes verbais, que codifica um
mapeamento da geomorfologia territorial extensiva e de cunho cosmológico, abrangendo
localidades e pontos de referência tanto nos eixos horizontais – superfície terrestres e seus
acidentes geográficos – como nos verticais – aldeias localizadas nos patamares
subaquáticos, subterrâneos e celestes, o “outro mundo” – akwakity – onde habitam os
espíritos invisíveis, protagonistas dos episódios mitológicos.

Estes repertórios de cunho classificatório condensam um vasto conhecimento sobre o


território e o meio-ambiente que habitam, assim como uma ecosofia própria e específica
(LAGROU, 2020; ARHEM, 1993; GUATTARI, 2001). A forma como interpretam o
território e a natureza modela a ação sobre eles direcionada, remetendo a uma concepção
do mundo natural regida por relações de cunho social e interespecíficas. A maneira como
lidam com o meio-ambiente e seus recursos no cotidiano, seja no cultivo de alimentos, na
extração de matérias-primas, na caça de animais ou nas oferendas aos espíritos invisíveis,
é baseada no reconhecimento desta filosofia ecológica, que rege as práticas cotidianas e
rituais. No mesmo sentido proposto por Feld (2015), os cantos – ou artes verbais –
condensam uma forma de conhecimento do território e da historicidade das relações
sociais, de cunho simultaneamente estético e ecológico:

Essas músicas constituem uma cartografia poética da floresta, mapeando as biografias


em camadas das relações sociais dentro e entre as comunidades. A historicidade
cronotópica de tocar essas músicas é, portanto, inseparável da consciência ambiental
que elas produziram. É por isso que, como produções de conhecimento […] as
canções de Bosavi são um arquivo de coevolução ecológica e estética. (FELD, 2015,
p.19, tradução nossa)

A produção – e recepção – musical é, portanto, intrinsicamente a produção – e recepção –


de conhecimento, este por sua vez relacionado a uma forma de consciência tanto do meio-

233
ambiente quanto da história de um povo. Descortinando ao mesmo tempo uma biografia
das relações sociais – ou genealogia mítica – e uma cartografia do território habitado, as
artes verbais, musicalizadas, constituem recursos poéticos poderosos para conceber,
classificar, mapear e transmitir uma forma de conhecimento tão específica quanto
necessária. Esta característica fica ainda mais evidente ao atentar para a totalidade do corpus
textual das artes verbais, através do qual um extenso número de espécies de fauna e flora locais
são evocados, constituindo um repertório classificatório endêmico que faz referência e
caracteriza a territorialidade e meio-ambiente habitado pelos Haliti. Trata-se de espécies
observadas e vivenciadas no cotidiano, sendo que algumas delas possuem elaborações míticas
mais complexas e privilegiadas, como narrativas que versam sobre suas origens, propriedades
e características. Em termos de frequência em que são evocados no corpus analisado, se
destacam primeiramente a onça pintada e diferentes espécies de gavião; os pássaros, de forma
geral – como saracura, andorinha, arara azul, ararinha, seriema, pomba – são também
recorrentes e diversificados, assim como os animais hostis ou venenosos – sucuri, cobra
cascavel, cobra bico de jaca, marimbondo, marimbondo apiacá, formiga-de-fogo; e por último,
o morcego possui uma elaboração privilegiada, já que sua história remete ao gênero musical do
zolane.

Entre os animais, por exemplo, as cobras, marimbondos, aranhas, lacraias e demais animais
venenosos aparecem como animais guardiões das flautas iyamaka, já que são seres que
carregam a substância-feitiço original – os venenos – originados a partir da perfuração da pedra
de onde emergiram os Haliti para a superfície terrestre. Diversas espécies de pássaros, por sua
vez, são concebidas como suporte para manifestação de poderosos espíritos dos antepassados,
que auxiliam os Haliti na cura de doenças, trazendo de volta os espíritos aos corpos enfermos.
A onça e o gavião, por outro lado, são protagonistas da longa história de Xinikalôre, que narra
a saga de vingança do grupo de irmãos curadores, além da origem dos povos hostis. A ema e o
veado, especificamente, foram concebidos/transformados para serem o principal alimento a ser
oferecido para as flautas iyamaka.

Alguns destes animais são tratados através de termos de parentesco – tio, avô, avó, cunhado –
apontando tanto para uma “humanidade original” compartilhada entre todas as espécies – e que
também é concebida através de outras características tipicamente “humanas” estendidas aos
animais, como por exemplo a capacidade de falar uma língua comum, de tocar flautas, de beber

234
chicha, entre outras – quanto para eventos em que a transformação dos corpos progressivamente
dará origem aos animais. Alguns traços físicos, que caracterizam e dão especificidade aos
animais, são também entendidos como decorrentes de episódios da mitologia, como por
exemplo: o periquito de peito vermelho, que obteve essa coloração após a vingança contra o
jaguar, cujo sangue manchou seu peito; os gaviões, que foram bem pintados e desenhados com
a tinha de jenipapo ficaram bonitos, e por isso não caçam mais as cobras; já os que ficaram
feios, sem pintura e sem desenho, até hoje caçam as cobras como forma de vingar-se.

Quadro 04 - Relação de espécies animais presentes no corpus textual analisado.

Espécie Animal Frequência Nome Científico Nome Haliti


Abelha 1 Anthophila spp. Oroba
Andorinha 4 Hirundinidae spp. Txyabidyawata
Anta Tapirus terrestris Kotyoe
Anu Preto 1 Crotophaga ani Nawi
Aranha 1 Araneae spp. Zowa
Arapaçu Rajado 2 Xiphorhynchus fuscus Mataikaretse
Arara Amarela, Arara Canindé 1 Ara ararauna Kalo Txikire
Arara Azul, Arara Preta 9 Anodorhynchus hyacinthinus Tihowe (Halawa), Kalo
Zotere
Arara Vermelha 5 Ara chloropterus Kalo Zotere
Ararinha, Maracanã-Nobre 5 Diopsittaca nobilis Zawezaloli
Barata 1 Periplaneta americana Tahalowatse
Beija-Flor 2 Hylocartis cyanus Himeretse
Besouro 1 Coleoptera Txihali
Cabeça-Seca, Tuiuiu, Garça 2 Mycteria americana Waimare
Branca
Calango 2 Tropidurus spp. Zanalo (Tiholahihare)
Capivara 1 Hydrochoerus hydrochaeris Oli
Cobra Bico De Jaca 4 Lachesis muta Zolokoko (Kolonamare)
Cobra Boipeva 1 Xenodon merremii Katimyalalo
Cobra Cascavel 4 Crotalus durissus Kaedidi (Yazenamare)
Cobra Cega 1 Serpentes Utute
Cobra Cinza 2 Chironius spp. Awo Natxihi
Cobra Dágua 1 Serpentes Zonoidi
Cobra Sem Rabo 1 Serpentes Owi Maeohare
Cobra Surucucu 1 Lachesis muta Zolokoko (Kolonamare)
Cupim 1 Isoptera spp. Mono
Curiango 1 Nyctidromus albicollis Kotxewe
Cutia, Rato Da Vargem 1 Dasyprocta spp. Tyalakwanatse
Ema 7 Rhea americana Awo (Makalore)
Escorpião 1 Scorpiones spp. Zakolokwa
Formiga 3 Formicidae spp. Kota
Galinha 1 Gallus domesticus Takoedya
Gavião Aracauã 1 Herpetotheres cachinnans Txyare
Gavião, Gaviãozinho 15 Famílias Accipitridae e Marete Kokoene, Zowe,
Falconidae Txidyo-Txidyo, Nitxihyo,
Haliwa, Kokoetse
Grilo Barrigudo 2 Gryllidae spp. Hitxi (Koliaware)

235
Irara 1 Eira barbara Hotyo
Jacu 1 Penelope obscura Tamotamo
Jacu Vermelho 1 Penelope spp. Malate Zotere
Lacraia 1 Família scolopendridae Manaha
Libélula 4 Anisoptera spp. Maehyotata
Lobinho 2 Cerdocyon thous Wazolo
Lobo Guará 2 Chrysocyon brachyurus Ahoza (Makatihonatse)
Marimbondo Cacunda De Ouro 2 Protonectarina sylveirae Kaehyonore
Marimbondo De Lobinho, 3 Família Pompilidae Wazoloa Nia, Jana
Marimbondo Apiacá
Marimbondo Grande 4 Pepsis fabricius Ani Kaloreze
Mariposa 3 Ordem Alamaetxi
Lepidoptera heterocera
Morcego 4 Chiroptera spp. Mahye
Muçum (Peixe Elétrico) 1 Synbranchus marmoratus Waho
Mutum 1 Cracinae spp. Hawitxi
Nambu 2 Tinamidae spp. Mawyehetse
Onça Parda 1 Puma concolor Txini Hotero
Onça Pintada 10 Panthera onca Txini Kazaedire
(Katomolikwatihore)
Pássaro João-Bobo 1 Nystalus chacuru Kolowe
Peixe Cascudo, Jeripoca 1 Hemisorubim platyrhynchos Molotya
Peixe Dourado 2 Carassius auratus Walakore
Peixe Lambari Vermelho 1 Astyanax fasciatus Kolome Zotyzehore

Peixe Pacu 2 Myleinae Kaeyhare


Peixe Piraputanga 5 Brycon hilarii, brycon Hotxikya
microlepsis
Peixe Trairão 2 Hoplias malabaricus Hozore
Peixe Tucunaré 1 Cichla spp. Konaho,Konare
Perdiz 2 Phasianidae spp. Kojiye
Periquito 1 Família psittacidae Koilitse
Periquito de Peito Vermelho 1 Família psittacidae Koerekama
Pica-Pau 3 Dryocopus pileatus Waitororonatse
(Wemolikema)
Pica-Pau Branco 2 Melanerpes candidus Tidyaore
Pomba Branca, Pombinha 3 Família columbidade Watyáha, Watyahatse
Porco Do Mato 1 Pecari tajacu Hoze
Raposa 1 Pseudalopex spp., Vulpes Wakare
vulpes
Rato de Peito Branco 1 Roedores Kayemalo
Saracura 4 Aramides saracura Tsalako (Hamoliaharenae)
Seriema 5 Cariamidae spp. Kolata
Sucuri 3 Eunectes spp. Menetse
Tanajura 1 Atta spp. Kota
Tatu-Bola 2 Tolypeutes, Tolypeutes Yete
tricinctus e Tolypeutes
matacus
Tatu-Peba 2 Euphractus sexcinctus Olawalidyo
Tucano 1 Ramphastidae Tore
Urubu 1 Coragyps atratus Oloho
Urubuzinho 3 Chelidoptera tenebrosa Mazazalane
Veado 8 Mazama americana Zotyare (Kehenawero)
Veado-Galheiro 2 Ozotoceros bezoarticus Zotyare Kazotawere

Já entre as espécies vegetais, há um destaque para a figueira – halo-halo – cuja elaboração

236
remete a uma árvore que caracteriza os terreiros das aldeias celestes; o algodoeiro, cuja matéria-
prima é amplamente utilizada pelos Haliti na confecção de seu vestuário e itens pessoais, como
redes, carregadores de criança, saias femininas entre outros; o abacaxi-do-mato, fruto selvagem
do qual era produzida originalmente a chicha, antes dos gêneros cultivados; a mandioca,
alimento que consiste na base da alimentação Haliti, utilizado tanto para produção de chicha
como para alimentos sólidos como a farinha e o beiju; e a mangava, cujo látex também consiste
numa matéria prima de grande interesse para confecção de flechas, bolas para os jogos de
cabeça e artesanato feito para a venda (serve como “cola” para fixação de penas em cocares,
espanadores, entre outros acessórios).

Quadro 05 - Relação de espécies vegetais presentes no corpus textual analisado.

Espécie Vegetal Frequência Nome Científico Nome Haliti


Abacaxi Do Mato 10 Ananas bracteatus Kohala
Algodoeiro 12 Gossypium spp. Konokate
Barbatimão 4 Stryphnodendron spp. Taehe
Figueira 15 Ficus spp. Halo-halo
Goiaberinha do Brejo, Araçá 1 Psidium cattleianum, One Tyokali
Psidium guineense
Jatobá 5 Hymenaea courbaril, Ozali
Hymenaea stigonocarpa
Mandioca Dágua, Mandioca 6 Manihot esculenta Kazalo, Kete
Brava
Mangava, Mangaba 6 Hancornia speciosa Katyola
Sambaíba, Lixeira 2 Curatella americana ---
Tabaco 2 Solanaceae nicotiana Hajiyhi

De forma geral, o interesse dos Haliti pelas espécies vegetais e animais privilegiadas nos textos
rituais reflete o investimento recebido por eles em sua mitologia. Como consequência, a
proximidade destas espécies e sua ampla “utilização” no cotidiano é um reflexo da
familiarização que com elas estabelecem, trazendo-as para dentro ou próximo das aldeias, das
casas, e com elas estabelecendo relações que remetem à sociabilidade e/ou predação. Isso faz
sentido se considerarmos que, originalmente, algumas espécies animais e vegetais foram gente
– isto é, conversavam na língua Haliti, bebiam chicha, faziam festas, tocavam flautas, caçavam,
etc. – porém sofreram transformações corporais e uma mudança de posição no continuum
relacional. Mesmo hoje, estas espécies mantêm relações de cunho social com os Haliti, que para
“extrair os recursos naturais” do meio-ambiente devem fazer oferendas, de modo a balancear
as relações e não indispor os “donos” dos recursos – ou mesmo seus próprios espíritos contidos.

237
Além das espécies animais e vegetais que habitam o meio-ambiente e dão nome aos locais de
interesse no horizonte territorial, é necessário especificar a amplitude do que os Haliti entendem
por “patamares de existência e habitação”. Em relação à concepção de territorialidade Haliti, o
termo akwakity (“outro lugar”) se faz fundamental para caracterizar sua extensão e abrangência.
A noção de “outro lugar” engloba localidades que pertencem “ao mundo espiritual”, “ao outro
mundo”, ou “ao mundo invisível”, patamares de habitação conhecidos e concebidos, porém
invisíveis aos olhos humanos comuns. Estes são localizados nos entremeios das matas, nos
subterrâneos dos morros e rios, e acima do céu, territorialidades extensivas ao plano terrestre
onde habitam os espíritos com os quais os Haliti mantém relações, através da manipulação
evocativa dos seus nomes durante as oferendas e rituais. O termo akwakity reflete a
verticalidade e transversalidade da concepção territorial Haliti, ultrapassando a superfície
terrestre e seu horizonte visível e apontando para adjacências invisíveis que fazem parte do
mapa geo-cosmológico de seu território. É interessante notar, entretanto, que akwakity não se
restringe ao eixo “vertical”, já que mesmo nas matas – idealmente visíveis e acessíveis no plano
terrestre horizontal – existem zonas ocultas, invisíveis ou mesmo secretas, onde habitam os
seres espirituais.

Como já enfatizado, assim como a mitologia narrada, em geral, os cantos e rezas evocam um
grande repertório de nomes. Estes repertórios são ainda mais evidentes nas longas rezas de
oferecimento, onde uma dezena – senão centena – de espíritos são chamados para comparecer
à oferenda, vindo de seus locais de habitação, todos eles referidos pelos seus nomes específicos.
Os nomes podem ser divididos em dois grandes grupos: nomes pessoais, associados aos
espíritos dos antepassados que protagonizam os episódios míticos (e cuja característica
principal é a sua humanidade original e sucessão de transformações “corporais” em formas
espirituais, animais ou vegetais); e nomes geográficos (ou topográficos), que designam
diferentes localidades do território habitado por estes seres, ou cenários onde se desenrolam os
episódios narrados nos mitos (incluindo nomes de rios, lagoas, cachoeiras, cabeceiras, morros,
aldeias, campos, etc.). Conforme o mito de origem, quando os diferentes subgrupos Haliti saem
de dentro da pedra para habitar a superfície terrestre, os territórios são divididos, distribuídos e
direcionados para cada um deles, sendo, portanto, cada subgrupo associado a determinada
região. A topografia, assim como a endemia, reifica o pertencimento “original” a uma
determinada região, assim como a importância desta delimitação para a história Haliti.

238
As espécies vegetais servem também para designar pontos de referência territoriais, como
podemos verificar na frequência destes termos no corpus textual analisado. Temos referência
aos “terreiros” (aldeias) do caju, do babaçu, da sumanera, do jurupará, da bocaiúva, da figueira;
aos campos do barbatimão, da mangava, da sambaíba; aos rios do buriti, da canaíva; à lagoa do
buriti; à cachoeira do barbatimão. De forma similar, espécies animais também servem de
referência para localidades geográficas, como por exemplo nas denominações rio das antas e
rio ararinha. Assim as espécies vegetais – e também animais, em menor escala – constituem a
referência para denominação de localidades de interesse no território, evocado através dos
cantos e rezas.

Como já observado, a geografia territorial não é concebida apenas horizontalmente – isto é, em


termos do horizonte da superfície terrestre exclusivamente; ao contrário, ela abrange, para além
da superfície, o mundo intra-terreno, subaquático, celeste, e mesmo “o lado oculto” das matas
e campos, localidades que surgem como possibilidades de morada e habitação nas narrativas
míticas. Neste arranjo, não somente existem vários patamares e possibilidades espaciais para
que os sujeitos, visíveis e invisíveis, habitem, transitem e façam suas moradas, como também
se assume que estes diferentes patamares estão em relação, numa contiguidade elaborada
através das complexas interações rituais, narradas também nos mitos. Isso fica mais evidente
quando por exemplo, durante oloniti kalorese, espíritos deixam suas aldeias celestes para virem
beber a chicha nas aldeias da superfície da terra. Nesse sentido, devemos pensar, portanto, em
uma cosmo-geografia transversal, talvez um termo mais apropriado para designar uma
compreensão do território habitado numa perspectiva horizontal e vertical, inter-relacionada e
interpenetrada.

Idealmente, os espíritos do cosmos habitam aldeias invisíveis, localizadas no amplo espectro


de possibilidades da territorialidade multiversal, compartilhando com os Haliti, através de sua
forma de vida e organização social, um índice da humanidade original entre todos os viventes.
Estas aldeias são designadas por seus nomes específicos, que podem ser uma característica
natural da região onde se encontra – por exemplo, fazendo referência a uma espécie de fruto
que exista em abundância naquela região, a um episódio mítico que tenha lá ocorrido, ou ao
nome de um rio próximo ao local – acompanhadas do termo weteko, que significa terreiro –
termo que faz referência ao pátio central entre as casas de uma aldeia. Quando se pretende
“chamar” estes espíritos para as oferendas, seja no cotidiano ou durante as festas de chicha,

239
tanto seus nomes pessoais como os nomes de seus locais de habitação são evocados, através de
fórmulas verbais correspondentes. Esta estrutura nominativa é bastante evidente nas rezas, e
também intencional, já que é através da entoação dos nomes que os Haliti visam estabelecer
uma forma de comunicação – e em última instância, de relação – com a vasta gama de
subjetividades de sua cosmologia, os nomes funcionando como um “código” ou chave de
acesso ao espaço (e tempo) específicos destes seres. Chamar através dos nomes, designando
localidades e espíritos é, portanto, uma tecnologia ritual que visa recorrer a formas de agência
distintas:

O pajé, quando faz um ritual de pedido das coisas, chama todos esses nomes dos
terreiros, mas também é dividido, um vai falar na hora de fazer oração pra flecha
[korewaye], um vai usar na hora de chamar o nome [para batizar as crianças], outro é
quando oferece chicha lá fora [para Enoharese], outro é pra zolane, outro pra iyamaka.
(AZOMEZOHERO, 2017)

Cada repertório de nomes é específico e associado a um determinado momento de oloniti


kalorese, assim como a uma região do cosmos, ou seja, cada “porção” de chicha oferecida tem
o seu destinatário e é reservada para determinado grupo de espíritos convocados. O terreiro
Zoloyhete, por exemplo, é tido como um dos locais de onde se chamam os nomes para batizar
as crianças, ou seja, local onde habitam os espíritos “donos” daqueles nomes que se tornarão
auxiliares e protetores dos Haliti que os recebem. Assim como Enoharese, por exemplo, habita
seu terreiro particular, os espíritos utyahaliti também têm os seus, e assim por diante, cada um
designado através de um nome distintivo (como por exemplo Kazahete, Wasehete, Korehete,
Zozoyhete, Zumayhete, Makahete, entre muitos outros). Através da análise do corpus textual
em sua totalidade, o terreiro de nome Alyauhete é o que aparece evocado com maior frequência,
sinalizando o interesse de relação direcionada pelos Haliti aos espíritos que lá habitam. De fato,
os espíritos utyahaliti que habitam os diversos terreiros celestes são os mais demandados, pois
são eles que atuam na recuperação dos doentes ou na reversão de qualquer agência negativa –
principalmente o feitiço – que esteja prejudicando uma pessoa. Os espíritos utyahaliti são
essencialmente curadores, e podem utilizar-se de pássaros como suporte para seu trânsito e
agência. Uma característica particular de utyahaliti é que transitam no eixo formado pelo
movimento do sol – nascente e poente – o mesmo eixo sobre o qual as malocas são construídas
e alinhadas, sugerindo uma possível localização de suas aldeias no território:

[Os espíritos] utyahaliti trabalham assim, eles vivem assim, vivem aqui mesmo, só
que vivem pra cá, onde nasce o sol, onde entra o sol, ele vive assim, ele tem um

240
terreiro, ele tem um nome, ele tem um terreiro, Zolomo [...] igual esse de Enoré, como
terreiro Alyauhete, Makahete, Talonarehete, tem muitos nomes, terreiros deles, ai
quando voce está rezando, tem que falar todos os locais dos terreiros deles, pedindo
pra eles, daí que eles vem participar da festa, participar da comida que você está
colocando [...] por isso que a casa [maloca] é assim, a casa sempre tem que ser
[alinhada] com o pôr-do-sol, que é onde eles andam, é assim. (ZEZONEZOKEMAE,
2017)

Tanto a localização quanto a nomeação destas moradas dos espíritos possuem para os Haliti
importância central. Essa elaboração é precisa e detalhada, um conhecimento que é ativado não
somente pela mitologia, mas através das rezas e ladainhas rituais onde os espíritos são
convocados.

Existem também uns ‘homens’ bons, que são curadores, e que a gente não vê e só
escuta. Antigamente se ouviam esses curadores jogar bola e socar pilão, dando
risadas. Apenas vêm quando a gente está bem ruim, e ninguém sabe de onde vêm e
que estão curando. Eles apanham a folha de cima [tiholazaka] para curar, passando
no corpo do doente. Trazem remédio para beber. Esses homens curadores também
usam a lasca de cortar do tatu-bola, para curar. Moram nos lugares Zozoyhete, na
altura do Km 485 da BR 364, do lado esquerdo de quem vai de Cuiabá-Porto Velho;
Makahete, para o lado do poente, muito longe; nos morros Zolomo, no médio curso
do rio Sacre; Zutyakwaliere, vizinho do Zolomo; Zoloyna, também na margem do rio
Sacre; por fim, no tronco das águas. (PEREIRA, 1986, p.169)

Como percebemos na passagem, os espíritos curadores são vários e habitam uma série de
“aldeias” em localidades distintas, elencadas através de seus nomes: Zolomo, Alyauhete,
Makahete, Tolonarehete, Zozoyhete, Zutyakwaliere, Zoloyna e tronco das águas (onekinhoneta
– “lugar onde acaba/se encontram os rios). Numa exegese complementar, a localidade
referenciada pelos morros Mayzolo e Zamore – que talvez sejam uma variação da pronúncia do
morro Zolomo citado na passagem anterior – são destacados como um local “muito sagrado”,
morada dos espíritos auxiliares e curadores convocados durante as oferendas e rezas. Além de
serem possuidores de técnicas e artefatos de curar – como a lasca de cortar do tatu-bola, as
folhas de cima tiholazaka, e outros remédios – são descritos como seres “audíveis”, porém
invisíveis:

Tem dois morros, Mayzolo e Zamore, muito sagrado, aonde que estão os espíritos,
esse daí que é o ‘assento’ do espiritual, nome dos morros, não é aqui, é espiritual, diz
que lá dessa taquarinha, lá que tem tudo pro espiritual, não é de longe, é nessa região
mesmo, daqui mesmo, lá perto de Comodoro, perto de Sararé, lá tem Zamore, lá que
mora o espiritual, nessa região mesmo, não é tão longe, em Juína, diz que enxerga de
lá, diz que vai lá, fica escutando socando pilão, jogo de bola, risadas, umas conversas,
tudo que escuta se ficar perto deles, isso que estão contando essas pessoas, até minha
mãe ela conta, esses dois lugares, Mayzolo e Zamore, sagrados, esse dia que a gente
faz oferecimento da festa, é de lá que a gente chama, chama de lá pra ajudar pessoa,
gente boa, sagrado também. (OMOIZOKIE, 2017)

241
Duas outras características são associadas aos morros Mayzolo e Zamore, a partir das narrativas
míticas. A primeira conta que foram nestes morros que o pessoal subiu para fugir da grande
enchente provocada pela gente da água, conforme o mito da “grande inundação”; e também
foram nestes morros que Enoré levou uma pessoa para ser curada de uma enfermidade, com a
ajuda dos espíritos que lá habitam:

Mayzolo e Zamore é aqui perto da aldeia Figueira, aqueles morros, os antigos, quando
teve enchente de água, escondiam naquele morro, quando a água subiu [...] Esse daí
tinha uma história dele, Zamore que a gente fala, um morro de pedra, Zamore é
sagrado, Mayzolo já é outro, Mayzolo é o nome dele, Zamore é outro, todos foram
fabricados assim, levantados da pedra, só a terra que levanta, é mesma coisa, a gente
vai benzendo pra quem está doente, pra levantar, tira ele da coisa, coloca ele dentro
da pedra pra benzer [...] é sagrado porque foi Enoré que chamou o rapaz que está
doente, o doente, e colocou ele dentro, bem no meio desse morro, pra benzer ele,
benzendo ele, e outro espírito vai chegando com ele, e outro espírito está segurando
esse menino, quando benzer ele, bem direitinho, chega com ele, e volta, essa é a
história. (ZOMOIZOKAE, 2017)

As elaborações em torno de Mayzolo e Zamore sugerem que as aldeias dos espíritos auxiliares,
apesar de serem invisíveis, localizadas no céu ou mesmo dentro dos morros, não estão privadas
da relação com o mundo terrestre e geo-localizado. Os morros Mayzolo e Zamore constituem
um ponto de referência palpável, uma espécie de “portal” entre patamares de existência, já que
é possível localizá-los e visualizá-los no território. Seus habitantes, mesmo sendo invisíveis,
transitam pelo mundo Haliti e com eles desenvolvem interações. Não somente, é relevante o
fato de que sua agência no mundo é passível de audição, já que através da proximidade de seus
locais de habitação escutam-se suas conversas, risadas, jogos de bola e socadas de pilão. Como
consequência, a importância da audição, contrabalanceada pela fala – a evocação dos nomes
através dos cantos e rezas – torna a produção e recepção sonoras um meio de comunicação
efetivo entre as esferas visíveis e invisíveis. O som é aqui um índice tanto da existência, geo-
localizada no território, como de intencionalidade comunicativa, abrangente e efetiva.

Assim como os terreiros relacionados anteriormente, são também privilegiadas e recorrentes as


elaborações em torno das aldeias de Enoharese e outros entes superiores, que habitam o patamar
celeste. Diferente dos espíritos auxiliares cujos terreiros, apesar de invisíveis – “escondidos” –
são referenciados pela geomorfologia terrestre, os entes superiores são como “semideuses” e
habitam os terreiros Halatakwa e Zokowikwa, aldeias referenciadas pelo patamar celeste:

242
Halatakwa é nome de lugar sagrado, onde tem um pé de árvore sagrada [halo-halo],
os velhos fazem a chamada, as rezas: vocês que são espírito bom, vem nos ajudar; lá
no céu, tem nome, tá amanhecendo lá, Enoré, Halatakwa é aldeia no céu, aldeia de
Enoré, Halatakwa e Zokowikwa, aqui não tem esses nomes pra cá, é no céu, enokwa
é no céu, aldeia de Enoré, lá que ele mora Enoré, Wakomoné também mora lá né,
utyahaliti acho que mora em vários cantos, não sei onde ele mora, ninguém não sabe,
nessa região mesmo tá morando, mas acho que eles ficam como escondido, ninguém
vê eles, acho que por ai mesmo, por isso que aqueles passarinho vai passando, dia que
aquele passarinho passa aqui, daqueles curador, eu mostro pra vocês, sempre quase
que ele passa aqui, ninguém vê. (OMOIZOKIE, 2017)

Apesar de habitarem localidades distintas no plano geo-cosmológico, a capacidade tanto de


curar como de “encarnar” em diversas espécies de pássaros é uma característica comum, tanto
dos entes superiores como dos espíritos utyahaliti. Os terreiros celestes, dos entes superiores,
possuem ainda características espaciais distintivas, apreendidas através da mitologia: neles há
uma lagoa de águas restauradoras, cujo banho é capaz de purificar e tornar seus habitantes
imortais; lá o mato não cresce, permanecendo sempre do mesmo tamanho; e no meio do terreiro
há uma árvore gigantesca, chamada halo-halo (figueira), que constitui o principal índice de
referência destas aldeias celestes:

Wakomoné e seus irmãos [Wazulie, Kerakwamã e Wazolokoyhiraré] moram nos


lugares de cima Halatakwa e Zukuykwa, onde o mato é sempre igual em cima e não
cresce muito, mas um pouco mais alto do que o mato de Toakayhore. Tem as mesmas
águas que no lugar de Toakayhoré. Também no tempo de friagem, tomam banho na
água Mirikwalosã e ficam novos, do mesmo jeito que Toakayhoré. Com os quatro
irmãos, moram ainda os entes superiores Wakularé, Zohowitihi e Zukarezamayé.
Paresi não pode matar pomba, batuíra, cabeça-seca e a garça-pequena, porque as vezes
Wakomoné, Wazulie, Kerakwamã, Wazolokoyhiraré, Wakularé, Zohowitihi e
Zukarezamayé podem estar encarnados em alguns deles. (PEREIRA, 1986, p.169)

Apesar dos terreiros onde habitam os espíritos curadores e entes superiores serem os mais
evocados pelas rezas, tanto em termos de frequência no corpus textual analisado, como em
termos de interesse demandado pela sua agência, há também referência a outros terreiros
relacionados às flautas iyamaka. Estes são, principalmente, Zotyakware weteko, associado ao
ancestral Nahorekase, dono original das flautas, onde se desenrola o episódio da mitologia
associado à morte de seus filhos e próximo de onde fica localizado a cabeceira do osso –
Nawihosé – ou “cabeceira da taquara” – yanakakware –, locais associados ao taquaral de onde
são retiradas as matérias-primas para confecção das flautas; e onekinhoneta – “tronco das
águas”, ou lugar onde as águas se encontram – entendido como um terreiro localizado abaixo
dos rios, onde habita a gente da água. Este terreiro subaquático é, no entanto, um lugar “seco”,
assim como a superfície terrestre. Conforme o mito de “Kaymare e a gente da água” (PEREIRA,

243
1986), a seriema leva o irmão de Kaymare para visitar sua irmã desaparecida neste terreiro,
morada da gente da água, atravessando a água com muita dificuldade até chegar a um local
seco, com uma estrada bem limpa, que fica debaixo do rio. Lá habita Kalaytewe, chefe da gente
da água e dono das flautas iyamaka, casado com a irmã de Kaymare. Foi de lá que vieram as
flautas iyamaka para a superfície terrestre, presenteadas para Kaymare. Conforme exegese,
destes terreiros os espíritos vêm para as festas para tomar chicha:

[Este canto] diz que ele está vindo do rio, onde ele mora, ele vem vindo lá debaixo do
rio, chama Onekinhoneta, vem vindo para tomar chicha, chicha de abacaxi [...] ele
está tomando dessa chicha e não fica bêbado, está sempre forte, esse é o canto na
chegada de iyamaka. (OMOIZOKIE, 2017)

A relação entre os conteúdos evocados, a cosmologia, o meio-ambiente e a territorialidade,


mediados pela ampla utilização de categorias nominativas – sejam estas dedicadas às
espécies animais e vegetais, às aldeias espirituais ou a pontos de referência da
geomorfologia territorial – nos sugere um sistema de conhecimento sobre o território
habitado, de cunho eminentemente eco-cosmológico, cuja transmissão depende de uma
elaboração estética e expressiva – as artes verbais, concebidas e transmitidas através de
oloniti kalorese. Esta forma de conhecimento modela não somente a concepção sobre o
meio-ambiente envolvente, mas também a ação e relação com ele desenvolvidas. Num
universo composto por múltiplos patamares em relação, é tão necessário conceber e admitir
a existência do que não se pode ver, como definir estratégias relacionais com tais esferas
de existência. Tudo nos leva a crer que as estratégias comunicativas e relacionais com o
mundo invisível perpassam o meio sonoro, o meio expressivo privilegiado para tal
mediação. É nesse sentido que o som, em todas suas formas e emanações – escutadas,
faladas, cantadas ou instrumentadas – atua como uma “argamassa audível”, realizando a
ponte entre patamares distintos desta eco-cosmologia multiversal.

3.4 O SOM COMO SUBSTÂNCIA E MEIO DE RELAÇÃO

Os sons dos pássaros [...] são entendidos como comunicações dos mortos para os
vivos, como materializações que refletem a ausência na reverberação e por meio dela.
(FELD, 2015, p.17, tradução nossa)

A virada ontológica, subsidiada crucialmente pela etnologia, aponta para um renovado interesse
nas estéticas rituais e suas implicações. Se as viradas “linguística, interpretativa, reflexiva e

244
epistemológica [...] afetaram a antropologia como reflexão crítica ao método de pesquisa e à
linguagem utilizada para falar sobre os outros, a virada ontológica é mais caracterizada pela
missão de evitar os problemas da representação” (LAGROU, 2018, p.139, tradução nossa).
Superar a representação envolve utilizar-se de diversos recursos oferecidos pelas teorias da
agência, pela fenomenologia da percepção e, principalmente, por uma “nova (cosmo)política
relacional, onde humanos e não-humanos não são opostos, mas interdependentes” (LAGROU,
2018, p.139, tradução nossa). Tal reconfiguração do pensamento assume ainda maior
importância no mundo contemporâneo, marcado pela decadência dos modelos
desenvolvimentistas e pela necessidade urgente de novos paradigmas para se conceber o ser
humano e a natureza.

Desde Leach (2000), a atenção sobre as estéticas rituais tem-se demonstrado uma produtiva
chave de acesso às filosofias ameríndias e suas concepções sobre o ser e estar no mundo.
Conforme sugere Lagrou (2018), “para entender uma ontologia específica de um povo, deve-
se ter acesso a exegeses de suas figuras e imagens poéticas, para as linhas que revelam as
conexões escondidas entre seres e formas [...]” (LAGROU, 2018, p.154, tradução nossa),
“porque é através da estética, música e ‘imagens torcidas’ que os nativos lidam com os não-
humanos” (LAGROU, 2018, p.146, tradução nossa).

Por esses motivos, as artes verbais assumem importância não somente na decodificação das
cosmologias de que fazem parte, orientadas para um conhecimento sobre “o mundo em
relação”, mas também enquanto instrumento de transformação, cuja eficácia não se restringe à
representação:

[...] se olharmos para a arte como uma arte de construir mundos, e não mais como um
fenômeno a ser distinguido do artefato, a relação cognitiva se inverte [...] o resultado
é que o corpo se torna um artefato conceitual e o artefato um quase-corpo, e que as
trajetórias dos corpos e artefatos convergem crescentemente. Outro resultado é que
funcionalidade e contemplação se tornam inseparáveis; a eficácia estética resulta da
capacidade de uma imagem atuar sobre e assim criar e transformar o mundo.
(LAGROU, 2012, p.104-105)

A eficácia estética não é uma novidade na etnologia, porém seu alcance ainda está por ser
decifrado. A intenção de aproximar as noções de música e ontologia – ou, de forma mais
específica, a construção do que tem se denominado “ontologias sonoras” ou “cosmossonologias
ameríndias” (TUGNY, 2015) – tem renovado o interesse sobre a emissão e recepção sonoras e

245
seus papéis na construção e desconstrução dos mundos em relação.

Seguindo a virada ontológica na antropologia, tem-se dedicado bastante atenção ao caráter do


som e da performance musicais, às especificidades da percepção auditiva indígena e seu papel
no conhecimento sobre o mundo, além da eficácia meta-comunicativa desempenhada pela
música, transcendendo as fronteiras permeáveis da humanidade (BRABEC DE MORI;
SEEGER, 2013). Para o autor:

O que se poderiam denominar “ontologias sonoras” diz respeito às imaginações e


conceptualizações indígenas sobre o som, envolvendo não somente seus múltiplos
usos e funções rituais, mas a inevitável interação entre humanos e não-humanos que
perpassa sua produção e percepção. (BRABEC DE MORI; LEWY; GARCIA, 2015,
p.7, tradução nossa)

Nas ontologias relacionais, pressupõe-se uma continuidade entre o mundo em que vivemos e
as regiões da floresta, subaquáticas, subterrâneas e celestes, regiões estas habitadas por
entidades espirituais e caracterizadas pelas narrativas da mitologia. O cosmos se estende por
diversas outras regiões, invisíveis, onde predomina e se replica a ordem social aqui vivida e
conhecida. Nestes “outros mundos”, amimais, vegetais e espíritos vivem do mesmo jeito que
os humanos – fazendo festas, cantando, dançando e bebendo chicha. Trata-se, como coloca
Halbmayer (2012, p.120, tradução nossa) de cosmologias multiversais, “que não criam
totalidades abrangentes ou um universo integrado, mas um multiverso de mundos coexistentes
e multiplamente conectados, dependendo de uma forma específica de abrangência parcial não
totalizante”. De todo modo, os diferentes “mundos” abrangidos pela multiversalidade estão em
profícua relação, e nos interessa aqui as formas e estratégias para que esta seja efetivada, assim
como as suas motivações.

As partes sobrepostas e transversais do multiverso de Halbmayer podem incluir pessoas, casas,


ferramentas, instrumentos musicais, animais, plantas, aldeias (de humanos e não-humanos),
relacionadas umas às outras. Através da distribuição de agência nestes vários aspectos do
multiverso, estas relações, assim como as entidades elas próprias, nunca são estáveis, e tem que
ser constantemente negociadas, mantidas ou transformadas (VILAÇA, 2005). O perpétuo
desequilíbrio (PERRONE-MOISÉS; SZTUTMAN, 2009) exige calibração das relações, e as
“políticas de controle das frágeis fronteiras entre-espécies e multi-mundos se tornam centrais
num mundo em que a evitação e limitação deste contato e troca é no mínimo tão importante
quanto sua estratégica efetivação” (HALBMAYER, 2012, p.119, tradução nossa).

246
Oloniti kalorese coloca em evidência justamente a instabilidade das relações do multiverso
Haliti, oferecendo, entretanto, uma tecnologia ritual do controle, apropriada para lidar com tal
inevitabilidade. Como já visto, a tensão potencial ocorre tanto nas relações intra-humanas –
neste caso, entre parentes próximos e distantes que comparecem à festa – como nas relações
extra-humanas – entre os anfitriões das oferendas e os espíritos convidados. A agência não-
humana é problematizada de diversas formas, seja pela exegese fundamental de que os
“espíritos dos antepassados vêm consumir chicha através dos corpos dos festeiros”, ou pelo fato
de que são acionadas as flautas, materializações desta agência, e consumida chicha, substância
que altera a composição dos corpos de seus consumidores e seu estado de sobriedade. De toda
forma, as séries músico-performáticas têm um lugar de destaque, seja enquanto tecnologia de
“musicalização do outro” (HILL; CHAUMEIL, 2011), domesticando, manipulando e trazendo
de modo controlado a agência de outras regiões para a aldeia anfitriã, ou mesmo enquanto
tecnologia meta-comunicativa, entre humanos e não-humanos, sendo o meio sonoro o mais
adequado para efetivar este tipo de mediação, que se torna mais explícita através das rezas de
oferecimento.

A musicalização do outro operada durante os rituais cria uma interação mais pacífica, baseada
no uso compartilhado do tempo-espaço dos outros ao invés do seu “consumo” (BRABEC DE
MORI; LEWY; GARCIA, 2015). Desta forma, as relações com a alteridade são baseadas na
comunicação interespecífica e no compartilhamento de tempo-espaço, sendo o discurso ritual
compreendido como uma estratégia comunicativa. O emprego do meio sonoro e de
conhecimentos associados, para manipulação das relações circunscritas pela cosmologia,
permite questionar se o que se produz através dos instrumentos musicais ou das práticas vocais
é necessariamente música para os que a executam. Mais do que isso, o que está sendo efetivado
são formas de agência, ou a musicalização das relações sociais entre humanos e não-humanos.
O discurso ritual aponta, portanto, para uma ideologia comunicativa, onde o som possui a
qualidade intrínseca que permite a interação com o “outro” (BRABEC DE MORI; LEWY;
GARCIA, 2015). Mesmo que os espíritos não existam no sentido físico literal nem tampouco
possam ser visualizados, eles são evidentes e se fazem presentes enquanto motivos musicais ou
agentes musicalmente inspirados. Assim, manifestam-se na transmissão sonora e distribuem
agência através das performances musicais, ferramentas para construir e transformar corpos e
perspectivas, e administrar as frágeis fronteiras do multiverso interespecífico (BRABEC DE

247
MORI, 2013).

[...] o especialista [ritual] adota uma posição múltipla, incorporando estes agentes não-
humanos, que traduzem sua agência para a agência humana através da performance
de suas personalidades múltiplas musicalmente. A música usada nestes contextos
pode utilizar uma variedade de sons e timbres, associados com entidades não-humanas
incorporadas, ou letras com uma variedade de posições de primeira-pessoa [ver
Severi, 2008]. Não-humanos assim “humanizados” podem ser tratados como
humanos no discurso. (BRABEC DE MORI, 2013, p.282, tradução nossa)

A recorrência do uso das posições de primeira pessoa, identificada nos cantos zerati, que
exalta a temática da chegada dos espíritos-festeiros aos terreiros de festa para o consumo
de chicha – ou a tipologia dos cantos “presentificadores” conforme sugeri anteriormente –
remetem, descrevem e correspondem à própria ação que está sendo desempenhada pelos
festeiros: chegar com alegria, fazendo estrondo, para tomar chicha, cantar e dançar no
terreiro de festa. Neste grupo de cantos, os afixos pessoais de verbos que indicam primeira
pessoa do singular (no-) ou primeira pessoa do plural (wi-) e o sufixo que indica aspecto
verbal progressivo (–hena) são amplamente utilizados, conforme a estrutura identificada
no exemplo abaixo:

Kehalakaetsere wahikwahena, kehalakaetsere Estamos chegando com muita alegria, estamos


wahikwahena, witso wahikwahena, hetatiya waulone chegando com muita alegria, nós estamos chegando,
ki nomana, witso wahikwahena. para nossa chicha primeiro, nós estamos chegando.
[…] […]

No sentido proposto, um recurso formal parece nos direcionar para um processo mais
amplo, que pode ser descrito como “encorporação”, “humanização” ou “tradução” da
agência dos espíritos para a agência humana concebida através da performance. Não
somente através dos conteúdos verbais evocados, mas através da própria performance, os
cantores agem “assim como” os espíritos-festeiros, cantando, dançando, fazendo barulho
e bebendo chicha, realizando através da mímese o que Taussig (1993) descreveria como
“singing into being”. O autor entende que a mágica da mímese consiste numa ferramenta
dos cantores indígenas, já que os cantos, durante os rituais, consistem em “simulacros
melódicos e verbais” (TAUSSIG, 1993, p.105, tradução nossa), capazes de gerar cópias do
mundo espiritual neste mundo, trazendo aquele espírito para o mundo físico. Este
procedimento, cujo sentido remete ao ato de cantar como “meio de acesso e manifestação” do
outro, fazem dos cantos objetos com uma vida oculta, promulgando agência e talvez
intencionalidade em certas condições e situações (SANTOS GRANERO, 2009). De todo modo,

248
as faculdades construtivas e comunicativas do sonoro são complementares nestes contextos, a
interação sonora entre humanos e não-humanos funcionando através de uma entidade que se
compõe por coisas materiais e não-materiais geradas no momento da performance (LEWY,
2015). O cantor existe como sujeito, mas também como o outro mimetizado; ele cria uma ponte
entre original e cópia, trazendo uma nova força, “a terceira força do poder mágico, efetivada
para intervir no mundo humano” (TAUSSIG, 1993, p.106, tradução nossa).

A agência desempenhada pelas evocações verbais e sonoras ultrapassa, portanto, o sentido


tipicamente musical. Hiper seres compostos são gerados durante a performance ritual coletiva,
através da conjunção dos corpos individuais. Na performance iyamaka, por exemplo, podemos
visualizar uma grande cobra, formada pelas fileiras de homens cantando e tocando flautas, que
se move em movimentos serpentiformes pelo pátio da aldeia. Durante xihali, vemos um
performer errante, zombador, que derruba coisas pela casa, imitando o comportamento de um
besouro – que também é materializado na forma física da flauta nasal. Já no zolane, associado
ao morcego, o mundo subterrâneo escuro, sem a claridade da superfície terrestre, em festa
permanente, é mimetizado dentro da maloca de festa. Gerados pelo consumo de chicha e pela
execução musical, estas cosmologias têm facilidade em performar – e assim criar – seres e
entidades agentes, que existem e possuem efeitos tangíveis.

O som em toda sua complexidade, tal como é manipulado nestes contextos rituais, exige
que a própria noção de “música” seja ressignificada – e por consequência, complexificada.
Nos referir à música como um objeto da criação artística pura e simples, tal como sugere o
sentido ocidental do termo, parece não dar conta da função que desempenha enquanto
tecnologia ritual. No sentido amplo e ocidental, a música é tida como um produto da criação
artística, adequando-se aos estilos estabelecidos e fazendo parte de um sistema que
combina aspectos sonoros em formas “harmônicas”, passíveis de contemplação e
julgamento estético. Já no “ruidoso” universo músico-ritual Haliti – e ameríndio em geral
– este sentido não parece ser produtivo. Mais do que isso, a música – enquanto tecnologia
de mediação – parece constituir um meio para se efetivar relações, preenchendo espaços e
atuando como uma força conectiva.

Conforme proposto por Hill e Chaumeil (2011), o sentido associado ao termo


“musicalização” parece se aderir melhor a estas paisagens estético-rituais, onde a produção

249
e recepção sonoras assumem posições simultaneamente ativas na efetivação de relações.
Indissociando música e ação, e concebendo este produto como uma tecnologia ritual –
capaz de fundir a matéria sonora com o seu meio de produção e recepção – entendemos
que a musicalização, em suas formas verbais e instrumentais, é aqui uma elaborada
estratégia de transmissão de conhecimento – histórico, estético e ecológico – sobre o meio
habitado, de comunicação entre patamares cosmológicos, e de aproximação entre
subjetividades, o meio ritualmente adequado para se efetivar relações. Durante os rituais
oloniti kalorese, a musicalização como tecnologia parece ser operada através da produção de
uma dupla camada sonora, perceptiva e audível: uma primeira instrumental, não-verbal,
derivada das melodias das flautas e tributária do sopro humano; a segunda vocal e verbal,
constituída através das paisagens sonoras envolventes dos cantos, rezas e seus significados. O
reconhecimento das camadas sonoras do ritual favorece a identificação dos fluxos que nele
estão em jogo – sejam estes visíveis ou audíveis.

Arrisco a proposição experimental de que os cantos, nestes contextos, constituem uma forma
peculiar de nutrição, enfatizando aqui a materialidade do som e seus efeitos sobre os corpos.
Evocando e recuperando a definição de “substâncias sonoras” (ARONI, 2015) – o som como
deslocamento transformativo, capaz de modular imagens mentais ressonantes – devemos
atentar para os efeitos cognitivos da absorção de sonoridades, expandindo a compreensão da
função modelar desempenhada pelos cantos sobre a memória coletiva – e por consequência,
enquanto veículo de transmissão de conhecimento. Temos aqui um contexto ritual que busca,
através de tecnologias enunciativas, mnemônicas, verbalizadas e musicalizadas, inscrever sobre
os corpos códigos sociais de fundamental importância, um esforço estético-ritual de cunho
claramente político (OVERING, 1991; LAGROU, 2007). Além dos estímulos sobre os corpos
provocados pela emissão sonora, devemos ainda atentar para a especificidade e possibilidade
de articulação de técnicas de audição e políticas da escuta (SAMUELS et al, 2010), em
sociedades amazônicas que privilegiam a história oral e o sentido auditivo de maneira explícita
(BASSO, 1985; MENEZES BASTOS, 1978; BEAUDET, 1997; PIEDADE, 2004; SEEGER,
1987; TUGNY, 2011). Vimos como no contexto de oloniti kalorese a escuta – ou recepção
auditiva – não é passiva, e consiste no meio perceptivo privilegiado para se estabelecer
comunicação e relação.

Para além dos aspectos semânticos e simbólicos – que certamente desempenham uma complexa

250
interferência cognitiva nos seus receptores – não podemos desconsiderar na invocação sonora
um mecanismo que opera através da sua “molecularidade” (LIMA RODGERS, 2014), isto é, a
propagação do comprimento de ondas capaz de produzir transformações vibracionais sobre a
matéria – e consequentemente, sobre os corpos e as pessoas. Tal percepção das sonoridades
como oscilação vibracional, capaz de inscrever-se no espaço para além do que é visível,
rompendo as fronteiras entre enunciadores e receptores, aproxima a música de uma noção de
corporalidade fluida (LAGROU, 2007), sugerindo uma investigação da extensão de seus efeitos
e das formas de decodificação a que está sujeita a matéria musical, pelos aparelhos perceptivos
e cognitivos dos corpos atravessados.

Este sentido corrobora uma noção de que os esforços estético-rituais em contextos como este
contribuem para o que poderíamos denominar como a “sondagem” de regiões do cosmos,
provocando outras subjetividades a manifestarem-se diante dos estímulos sonoros lançados no
espaço transversal. A musicalização, no sentido proposto, consiste numa tecnologia ritual de
caráter espacial, aproximando-se do argumento de Lima Rodgers (2014) para os Enawene-
Nawe, parentes próximos dos Haliti:

Por ser a música uma arte/ciência da vibração e do movimento, ela transborda as


eventuais corporeidades às quais está conectada, no sentido em que transita num meio
transcodificante [proporcionado pelos rituais e suas variadas arquiteturas] destinado
a provocar outras corporeidades a revelarem as suas respectivas capacidades de
vibração e conexão [...] isso não é uma metáfora, pois a própria vibração inicial de um
corpo/instrumento já pressupõe de saída um conjunto molecular, bem como as ondas
sonoras ao se propagarem o fazem através da vibração de outras moléculas do meio
de propagação. (LIMA RODGERS, 2014, p.411)

Se cantos, rezas e narrativas oferecem, através da ampla utilização de categorias nominativas,


uma cartografia multiversal, a musicalização, enquanto tecnologia espacial molecular e
prospectiva, efetiva por sua vez o percorrimento destas regiões existentes no mapa
cosmológico. A mitologia deixa de ser um conjunto de imagens e metáforas de um mundo
passado, para constituir um registro e mapa de acesso aos meandros do território multiversal.
Estes campos de existência exocentrados, extra-humanos e transformacionais, se encontram
suspensos no virtual, podendo, entretanto, ser acessado através de práticas xamânicas
(CESARINO, 2013). As práticas – ou tecnologias – da musicalização, que almejam a
comunicação e relação com o mundo invisível, consistem num meio privilegiado para
desempenho da função xamânica, oferecendo a possibilidade de percorrimento de paisagens

251
cósmicas, traduzidas e tornadas tangíveis através das sonoridades rituais.

Dada a dimensão espacial da emissão e recepção sonora, é possível reconhecer em oloniti


kalorese uma configuração musical xamânica (HILL; CHAUMEIL, 2011), onde a produção
musical constitui tanto um meio de socializar relações com várias categorias do outro (HILL,
2013) – outros seres, outros lugares – quanto uma tecnologia de sondagem, interação,
experimentação, aproveitamento, compartilhamento e engajamento com potências ambíguas da
natureza, que dão e tiram a vida e constituem a base da reprodução física dos corpos e da
continuidade social. Nos rituais oloniti há uma clara estrutura que demonstra a necessidade
deste engajamento cosmopolítico, em vistas de garantir a estabilidade social ou convivialidade
harmônica (WRIGHT, 2008), num contexto marcado pelas diferenças – entre homens e
mulheres, afins e consanguíneos, e humanos e espíritos.

Em termos de performance, durante a abertura dos rituais oloniti, os festeiros entram no pátio
da aldeia de forma agressiva, tocando as flautas iyamaka, exigindo oferendas e ameaçando as
mulheres que estão dentro das casas proibidas de verem as flautas, furando e penetrando as
paredes com as varas iohohô. Neste momento, fica bastante evidente o caráter ameaçador que
o ponto de vista do outro não familiarizado pode oferecer para a vida social. Conforme se
desenrola, a trajetória ritual processa um amansamento deste potencial agressivo, através da
nutrição e musicalização excessivas, processo gradual e meticuloso, conduzido com destreza
pelos donos da festa. Este abrandamento da tensão e do conflito potencial fica mais explícito
quando se passa do pátio para dentro das casas, e homens e mulheres praticam juntos o zolane.
O contraste entre a separação inicial entre homens – tocadores de flautas – e mulheres – ouvintes
reclusas dentro das casas – e a integração final, quando ambos, intercalados, dançam o zolane,
parece ser em todos os momentos mediado pela produção musical – a argamassa audível a que
fazemos referência. A matéria musical, em ambos os casos, realiza um elo entre identidades
distintas: seja durante a performance inicial de iyamaka, na possibilidade que as mulheres têm,
reclusas dentro das casas e impossibilitadas de visualizar as flautas, de ouvir os seus sons e os
cantos masculinos; seja no momento final do zolane, em que participam junto aos homens,
cantando e dançando em conjunto. O som é o elo não apenas entre humanos e seres espirituais,
mas também entre os domínios sociais masculinos e femininos (FRANCHETTO;
MONTAGNANI, 2012). É através do tocar, cantar e do escutar que relações são efetivadas
durante o ritual.

252
Ambos os idiomas privilegiados nos rituais oloniti – os alimentares e os musicais – produzem
elos de ligação recíproca entre identidades distintas: por um lado, representado pela substância
alimentar chicha, produto da criação-transformação feminina, marcado pela agência da saliva
das mulheres em composição com o corpo da menina mítica filha de Kokotero, uma substância
marcada pela sua circulação excessiva e consumo em grandes quantidades, seja para dentro dos
corpos, seja vertidas ao chão; do outro, representado pelas substâncias sonoras cantadas e
tocadas, produtos da criação-transformação do sopro masculino em composição aos ossos do
filho do ancestral Nahorekasé, transformados em flautas iyamaka. Ambas as substâncias
personificadas são capazes de atravessar fronteiras entre os corpos masculinos e femininos –
consumidas através da boca ou através dos ouvidos – marcando um caráter fluido, prospectivo
e uma correspondência de afetação entre sopro masculino (transformado em som) e saliva
feminina (transformada em chicha). Se podemos considerar o som como substância, assumindo
a sua fisicalidade, há de fato trocas corporais – de “fluidos corporais” – em curso durante os
rituais oloniti.

Notavelmente no contexto amazônico, onde as substâncias consumidas pelos corpos passam a


atuar na sua constituição, numa lógica orientada para a produção de pessoas (SEEGER; DA
MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979), as sonoridades parecem desempenhar o papel de
agentes de fertilização (BEAUDET, 2011), mediando o intercâmbio de substâncias masculinas
e femininas para a fabricação de identidades e corpos distintos, de cuja intersecção provém a
vitalidade, sexualidade e fertilidade. Num ambiente de sociabilidade intensificada, tais como
são os rituais oloniti, e de maneira semelhante ao que Beaudet (2011, p.389, tradução nossa)
afirma para os Waiãpi, "[...] seja durante os rituais ou fora deles, o som é sexual, e o som é
fértil", conotação esta que parece se aplicar também ao caso Haliti.

A inevitável aproximação conceitual entre som e corporalidade no contexto de oloniti kalorese


foi iniciada em trabalho anterior, através da proposição conceitual das substâncias sonoras
(ARONI, 2011, 2015). Mais recentemente, ideia similar vem sendo desenvolvida e aprofundada
por Brabec de Mori (2015), demonstrando através do estudo dos cantos xamânicos Shipibo a
aplicabilidade de uma substância normalmente – porém arbitrariamente – entendida como
intangível, que é o som. Propondo o conceito de “pessoa alquímica”, cujo corpo sólido é
atravessado pelas vibrações – e substâncias – sonoras e a elas reage, o autor entende as vozes

253
dos cantores como substâncias exógenas que entram e permanecem nos corpos alheios:

O som não se move apenas através do ar, mas também através dos corpos sólidos [...]
e a própria física e neurociência ajudam a destacar como a transmissão e tradução de
energia está fortemente ligada à sua matéria transmissora, que não consiste apenas em
ar, mas em uma confusa multiplicidade de substâncias. (BRABEC DE MORI, 2015,
p.26, tradução nossa)

A definição de substâncias sonoras exige, portanto, um modelo de agência para sua


aplicabilidade. O que interessa a esta definição é justamente a relação entre corpo e som, o som
entrando nos corpos, reagindo, intervindo e manipulando processos múltiplos, sejam estes
fisiológicos ou psicológicos, já que a agência do som é desdobrada e permanece após a
manifestação e emissão sonora (BRABEC DE MORI, 2015). Nesse sentido, e conforme
proposto anteriormente, o som como substância nutre os corpos, reage com eles, além de
carregar conhecimento.

Ao rezar a chicha para o consumo, oferecendo-a aos espíritos – um procedimento efetivado


através da fala cantada e sonora – há de fato uma atribuição de intencionalidades, ou
“carregamento” daquela bebida. Assim como nos corpos, o som perdura nas coisas e
substâncias, veiculando qualidades e propriedades da entidade emissora (BRABEC DE MORI,
2015). Os próprios consumidores da chicha, após oferecida e rezada, serão receptores destas
qualidades transmitidas, em maior ou menor grau. Não se pode mensurar a durabilidade ou
mesmo medir os efeitos desta absorção e transmissão, porém, também não se pode negar que
ela ocorra. Num contexto em que a elaboração sobre o invisível é tão – ou mais – importante
quanto o visível, não se podem deixar de lado os processos que o sentido da visão não capta,
porém estão ali ocorrendo. As capacidades de escuta vêm de encontro a esta limitação dos
sentidos, captando elementos que escapam à visão.

De fato, há estruturas e informações inseridas nas coisas e pessoas, através das


tecnologias de emissão sonora. Mesmo que um entendimento naturalista, químico ou
científico não assuma a presença deste “carregamento” das informações através do
som, algo é retido na pessoa ou no objeto. Este algo pode não ser o som em si, mas a
agência da entidade emissora em questão. (BRABEC DE MORI, 2015, p.29, tradução
nossa)

Em sociedades onde a música “não é uma opção, mas uma obrigação” (SEEGER, 2015, p.255),
uma aproximação puramente estética desta forma de expressão criativa não é suficiente para
dar conta de sua complexidade. Alternativamente, o som deve ser pensado em termos de sua

254
substancialidade, corporalidade e relacionalidade. Nesta perspectiva, a musicalização consiste
numa tecnologia que se utiliza do meio sonoro para efetivar relações, promover mediações e,
em última análise, permitir as transformações dos sujeitos e objetos atravessados pelas
emanações sonoras. A instância sonora é uma operadora da fluidez e da transversalidade de
domínios, nos permite superar o distanciamento entre ato, contexto e produto – ou seja, entre
emissão, recepção e informação musical. O controle destas formas expressivas permite não
somente produzir transformações vibracionais sobre a matéria, os corpos e as pessoas
(CERQUEIRA, 2015), mas romper fronteiras entre enunciadores e receptores, inscrevendo-se
no espaço e aproximando a música de uma percepção fluida da corporalidade – ou mesmo uma
extensão dos corpos através do meio de propagação. Cabe ainda perguntar-se sobre a extensão
de seus efeitos e agência sobre aqueles que a experienciam, ou em outros termos, de que modo
ocorre sua decodificação pelos aparelhos perceptivos e cognitivos dos corpos por ela
atravessados.

Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para
a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz
de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos. [...] não
é a matéria do ar que caminha levando o som, mas sim um sinal de movimento que
passa através da matéria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu
desenho. [...] o som é assim movimento em sua forma oscilatória, forma esta que
permite a muitas culturas pensá-lo como modelo de uma essência universal que seria
regida pelo movimento permanente. (WISNIK, 1989, p.55)

Perspectivas como esta são extremamente produtivas nos contextos xamânicos e ameríndios,
exigindo uma abordagem baseada na agência que emana das coisas perceptíveis – sejam elas
materiais/imateriais, visíveis/invisíveis ou audíveis/inaudíveis. Agência e transformação são
pré-requisitos para o entendimento das práticas rituais e todo conjunto de afetação transversal
que é mobilizado entre corpos e domínios distintos. A complexidade da eco-cosmologia Haliti,
tematizada pelo ritual oloniti kalorese, coloca em evidência um sistema relacional baseado no
profundo conhecimento do meio-ambiente multiversal, que inclui uma percepção audível do
mundo invisível. Este meio-ambiente não se restringe ao que é visto, pois se estende à tudo que
o sentido auditivo é capaz de perceber e decodificar. A questão que se coloca, portanto, diz
respeito ao que as substâncias sonoras são capazes de nos ensinar sobre as ontologias
relacionais.

255
CONCLUSÃO: SOBRE VOZES INVISÍVEIS E CORPOS SONOROS

Delineado pelo místico sufi e filósofo Ibn al-Arabi do século XII, o reino de Barzakh
é onde os mundos materiais são espiritualizados e os imateriais são corporificados. É
um reino de vibração, às vezes assumindo cor e forma, às vezes soando, às vezes
inefável, mas sentido. Podemos pensar em um barzakh como uma “mudança no
registro ontológico”, uma maneira de substituir o meramente humano. (KAPCHAN,
2015, p.37, tradução nossa)

Preocupações como a do filósofo sufi Ibn al-Arabi, datadas do século XII, podem ser
atualizadas no presente, principalmente se nos permitirmos a tirar as consequências teóricas do
que os registros interpretativos do ritual oloniti kalorese nos ensinaram. Ao longo desta
pesquisa busquei, através da desconstrução da música Haliti, demonstrar os fluxos substanciais
que operam durante estes rituais, afetando corpos a eles submetidos.

Estas imagens acústico-semânticas, mobilizadas pelas práticas verbais, consolidam um modo


de pensamento sobre o meio habitado construído sobre bases territoriais, ambientais e
relacionais. Isso é fundamental para a compreensão do modo Haliti de ser e estar no mundo,
que perpassa uma ontologia do acústico própria e específica. O que se poderiam denominar
“ontologias sonoras” diz respeito às imaginações e conceptualizações indígenas sobre o som,
envolvendo não somente seus múltiplos usos e funções rituais, mas a inevitável interação entre
humanos e não-humanos que perpassa sua produção e percepção (BRABEC DE MORI;
LEWY; GARCIA, 2015). Recursos sonoros fazem parte das estratégias Haliti para transcender
perspectivas, transformar corpos e administrar relações multiversais, todas estas motivações de
uma agenda produtiva e atual para os estudos sonoros nas Terras Baixas da América do Sul. É
nesse sentido que ontologias do sonoro anunciam um novo corpo, e um novo paradigma para o
corpo, capaz de ressignificar a própria compreensão do “mero” ser humano. Poroso, sintonizado
e transformado de acordo com as vibrações de seu ambiente, o corpo sonoro modela uma
“ontologia intramodal, um paradigma de imbricação, coabitação e coextensão em que os limites
do sujeito não podem ser assumidos” (KAPCHAN, 2015, p.41, tradução nossa). Este paradigma
da existência assume a inevitabilidade das relações, assim como a impossibilidade da
demarcação do “indivíduo”, composto por fluxos substanciais e submetidos ao meio-ambiente
de que é parte.

As flautas iyamaka são materializações deste pensamento, deste conhecimento, desta mudança
na chave no registro ontológico. Enquanto artefatos sonoros e corporificados, sua agência é o

256
índice da percepção dos mundos materiais espiritualizados e mundos imateriais corporificados
(KAPCHAN, 2015). Sua realidade materializa o conhecimento sobre o que é invisível, porém
audível, e coloca em questão o jogo dos sentidos – culturalmente delimitados. Os espíritos dos
mortos, libertos dos corpos físicos, são na realidade corpos sonoros, que cantam e dançam
durante olonti kalorese. Seu princípio de vitalidade é sustentado pela multiplicidade de relações
que estabelece com seu contexto existencial, afetando aqueles que estão ao seu redor. Sua
agência, materialidade e sonoridade operam em conjunto para possibilitar sua presença-viva.
Não é por acaso que os sons das flautas e aerofones nas terras baixas sul-americanas são
entendidos como vozes de entidades não-humanas.

Por um lado, as flautas iyamaka são um agregado de imagens acumuladas, seres compósitos e
alquímicos, constituídos pela complexa junção de materialidades e substâncias envolvidas no
seu processo de fabricação-nutrição: ossos e corpos de antepassados, matérias primas vegetais,
alimentos e suas transformações. Por outro lado, são também desdobramentos acústicos, sondas
capazes de se deslocar no espaço, através de suas emanações sonoras, interferentes,
prospectivas – movimentos não limitados à visibilidade do mundo material e seu caráter
imagético. Esse duplo caráter – imagético/material e cinético/sonoro – representam a essência
dispersa de iyamaka, artefatos aerofônicos que cristalizam modos de relação e mediação
(ARONI, 2019). Sua complexidade invisível reside justamente em suas capacidades
desdobradas e prospectivas, efetuadas através de suas emanações sonoras, podendo romper as
fronteiras dos corpos e penetrá-los – e assim modificar suas composições. Substâncias sonoras
emanadas propiciam a condição anímica própria e nutrem a de outrem: consumidas pelo
aparelho cognitivo dos corpos, se tornam assim memória, conhecimento e engajamento com o
mundo.

Os efeitos cognitivos da presença-viva de iyamaka, estimulados por seus desdobramentos


sonoros, são evidentes, e mobilizam tanto imaginação como percepção. Em contraponto ao
tradicional culturalismo – a dedução das formas culturais a partir de um sistema de crenças –
se faz aqui mais produtivo uma solução cognitivista, em busca de estados mentais que
possibilitam a presença-viva de iyamaka. Nesse sentido, a questão relevante passa a ser
colocada sobre as formas de transmissão e processamento das informações – acústicas e
imagéticas – que são veiculadas por iyamaka, pela sua presença-viva, através do aparelho
corporal operante – faculdades perceptivas e imaginativas. Antes de caracterizar as respostas à

257
presença-viva como confusão ou erro, devemos assumir a possibilidade de requererem uma
capacidade altamente sofisticada de engajamento em “complexas e socialmente coordenadas
atividades imaginativas” (GAIGER, 2011, p.380, tradução nossa).

Tomando de empréstimo a elaboração de um xamã do povo Kogi, ensaiamos aqui uma


interpretação: se “pensar é ouvir”44, uma questão central que se coloca diz respeito à relação
entre a escuta e a gênese do pensamento – ou ainda, à formação de imagens mentais a partir das
diferentes paisagens sonoras. Em outros termos, o estudo de culturas orais deve considerar as
tecnologias musicais reflexivas como um importante meio para se produzir e organizar a
memória coletiva. Para conceber esta possibilidade, a mudança no registro ontológico é um pré-
requisito, de modo a abandonar as fronteiras delimitadas do self em direção a uma percepção
relacional e processual da interação entre pessoas e seu ambiente. A realidade sônica e seus
fluxos – interferentes e constituintes – são assim temas centrais para conceber a
substancialidade do som, e a consequente permeabilidade dos corpos que ela sugere.

Se a informação semântica veiculada através do meio acústico-linguístico-musical está


claramente associada às narrativas míticas e suas paisagens, não deixa de chamar atenção a
diferença entre o mito contado e o mito cantado: de fato, o último possui uma suplementação
sonora complexificadora, que poderíamos categorizar como sua rítmica. Tal rítmica mobiliza
uma série de elementos formais secundários, que podem ser concebidos como tecnologias
cognitivas, capazes de modelar tanto a percepção como a conceptualização das narrativas
absorvidas e processadas. Se tomarmos os percorrimentos, transformações, capturas e
simbioses (LIMA RODGERS, 1998) não como abstrações da paisagem sonora, mas como
fórmulas musicais operantes, promovidas pelo deslocamento sonoro intencional, torna-se
palpável a possibilidade de as substâncias sonoras veicularem informação imagética.
Circulantes, absorvidas e metamorfoseadas pelos sentidos, são capazes de afetar a própria
mente, a memória, transformando-se em algo “para além” do som: imagens constituídas pelo
jogo dos sentidos, direcionando nosso argumento para a cara relação entre som e imagem – e
de modo mais amplo entre percepção e imaginação (LAGROU, 2007; SEVERI, 2015). As
flautas e suas camadas sonoras podem desempenhar funções cognitivas: parecem estar em jogo
diversas nuances da decodificação das linguagens embutidas na música – por um lado a

44
Trecho da fala de um xamã do povo Kogi, habitante da região da Sierra Nevada de Santa Marta na Colômbia,
em uma sequência do documentário “Aluna” (EREIRA, 2012).

258
comunicação sonora, não-verbal, puramente audível, e por outro a comunicação verbal, a
linguagem significante por excelência – através de filtros corporais capazes de transformar
dados da percepção em imagens mentais significantes. Desta forma, meios linguísticos e outros
puramente sonoros compõem uma tecnologia de evocação do mito e suas imagens e, portanto,
da memória coletiva, cristalizada nos repertórios musicais associados à iyamaka.

Tal caráter processual, dinâmico e dialético entre matéria sonora e imagética parece oferecer
condições para uma imaginação participativa dos espectadores, possibilitando os
desdobramentos funcionais não de uma representação estática, mas de uma imagética em
contínua e profícua projeção e complementação mental, através da irrestrita faculdade
imaginativa (LAGROU, 2007; SEVERI, 2015; GAIGER, 2011). A complexidade de iyamaka
reside justamente na capacidade de gerar continuidade entre a percepção e a imaginação,
eclipsando o isolamento dos objetos do mundo e trazendo-os para a corrente de fluxos corporais
contingentes. Nesta dialética processual, os termos das relações têm suas posições indefinidas,
produzindo estados de incerteza cognitiva. Materializar artefatos vivos não seria um processo
que busca sua definição, mas antes uma tecnologia que visa o ancoramento, através de
mecanismos técnicos e formais, de suas tensões e complexidades permanentes (SEVERI,
2015), que se realizam na sua utilização ritual. Estados de dúvida e incerteza são assim
fundamentais para a compreensão da presença-viva destes artefatos: enquanto hiatos
cognitivos, suas lacunas são permanentemente preenchidas através de projeções, em forma de
imagens que surgem como respostas aos obstáculos da compreensão, estimuladas através das
intersecções entre materialidades e sonoridades coadjuvantes do processo cognitivo.

Não basta descartar a representação substituindo-a pela presença, é preciso diluir a oposição
entre matéria e movimento, entre corpo e alma, buscando sua fusão. Se materialidade e
movimento não podem ser cartesianamente descritos e separados (INGOLD, 2007),
enfatizemos a oscilação entre os termos e a possibilidade de assumir as imagens quiméricas
(SEVERI, 2015), e seu papel ativo na construção de cosmologias – não apenas abstratas, mas
condutoras de ação e relação no mundo. Não faz sentido conceber um centro sagrado ou uma
mística do invisível, mas antes mapear os caminhos e camadas que orbitam ao redor destes
objetos complexificadores da realidade dada, assim como a passagem incessante de “dentro
para fora”, como solução mais produtiva para se compreender o seu caráter anímico. As
emanações de iyamaka são justamente a capacidade desdobrada e ressonante que ela possui de

259
desconstruir paradigmas e, em última análise, reconstruir a própria percepção humana sobre o
que não é visto, porém ouvido e sentido.

O problema da figuração e materialização é, assim, o problema de figurar e materializar um


fluxo transformacional que oscila entre interioridade e exterioridade (LAGROU, 2018). A
matéria opaca passa a ser vibracional e ressonante, tal como os fluxos moleculares que a
constituem. Não se restringem à informação que a visão pode oferecer, mas sim se expande no
que o jogo dos sentidos pode abarcar. A categoria iyamaka reúne não apenas identidades
complexas e múltiplas, mas oferece também uma forma de pensamento fenomenológico e
cognitivista distinto, evocado através de suas efetuações. Enquanto artefatos musicais, fazem
dos domínios da matéria e do movimento um lugar comum (ARONI, 2019). As sonoridades
constituem um desdobramento e o fator cinético de ligação e aproximação de materialidades
(ARONI, 2019), preenchendo os espaços vazios e lacunas que as separam no mundo físico.
Trata-se de uma argamassa audível – e visível através da complementação imaginativa – que
no mundo das coisas palpáveis possibilita a continuidade entre diferentes domínios materiais,
físicos e corporais.

O som, como enunciado vocal tanto de humanos como de não-humanos ultrapassa a


distinção entre “interioridade” e “fisicalidade” [...] para fixar modelos de ontologias
humanas. A análise dos mundos audíveis permite introduzir um “link ou conexão
perdida” nos modelos do perspectivismo e do animismo ameríndios. Se se reduz os
mundos indígenas a mundos visíveis [perspectivas], somáticos ou físicos, surgem
graves dificuldades para levar a sério as narrativas de transformações e interações
sociais com os não-humanos. Porque o som contribui a unir dois mundos: o mundo
da ação pragmática, que os investigadores também compartilham com os indígenas
na sua vida diária, e o mundo mítico das narrativas de transformações e ações mágicas
da manipulação ritual. (BRABEC DE MORI, 2015, p.115, tradução nossa)

Se numa ontologia relacional os artefatos, assim como plantas, animais e espíritos contam com
sua própria alma, suas intenções e suas competências de ação e percepção (BRABEC DE
MORI, 2012) são eles também capazes de contas histórias. É nesse sentido que as flautas
iyamaka – sejam elas artefatos, espíritos, ou uma convergência de fluxos de agência e
concepção – são mestres das narrativas, que ecoam de sua existência material, de sua agência
sobrenatural ou de suas vozes musicais. Estas narrativas, desdobradas na forma de duas
exegeses, funcionam como argumentos da ontologia relacional Haliti: a primeira diz respeito à
restrição à gravação e evocação de determinados cantos fora do contexto ritual que, caso não
respeitada, pode atrair cobras ou algo de ruim – uma percepção da evocação sonora como

260
detentora de uma forma de agência potencial (ARONI, 2015); a outra diz respeito à associação
das flautas iyamaka à corporalidade:

[...] certa vez, um dono de flauta ficou gravemente doente, não conseguindo respirar
direito, achando que ia morrer; neste período, apareceu misteriosamente em suas
costas uma mancha, que foi associada ao motivo da cestaria chamado matokolidyo e
que remete à pele das cobras; seus familiares, preocupados, foram verificar o estado
das flautas que estavam guardadas e constataram que a parte interior da flauta estava
obstruída com poeira e galhos, e rapidamente limparam e fizeram novas oferendas;
desta forma, o dono de flauta melhorou, e a mancha desapareceu, emergindo uma
situação de correspondência corporal entre o dono e seu artefato, já que a obstrução
do tubo da flauta teve como efeito a obstrução da respiração de seu dono. (ARONI,
2015, p.38)

Ambos os argumentos reforçam a especificidade deste registro ontológico, formas de ser e


conceber, reconhecendo a continuidade entre domínios distintos: corpo e alma, visível e
invisível, humanos e espíritos, objetos e pessoas não são aqui entidades ou instâncias apartadas,
mas intensamente e produtivamente conectadas através de fluxos sonoros aderentes e
manipuláveis, que revelam as intersecções entre matéria e movimento, entre materialidades e
sonoridades (ARONI, 2019). Talvez a história que iyamaka conta é a própria história sobre o
controle do tempo e do espaço, astuciosamente manipulado pelos Haliti através da afirmação
de sua existência, da sua percepção e de sua imaginação – uma narrativa de cunho mitológico,
ecológico e filosófico, que se atualiza no presente e se imortaliza. Na mesma medida,
transforma os seus ouvintes, cognitivamente e ontologicamente, referenciando as suas
perspectivas – uma estético-ecologia-política indígena (TUGNY, 2015), estratégia poética,
criativa, mas também afirmativa, reinventada e recontada no tempo presente que urge por novas
narrativas:

[...] Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade,


do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande
com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar,
de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que
dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados
a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo
como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a
minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar
mais uma história. Se pudermos fazer isso, adiaremos o fim. Como os povos
originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo?
Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século
21 ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as
diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da
criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. (KRENAK, 2019,
p.13)

261
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270
APÊNDICES
APÊNDICE A – RELAÇÃO DAS GRAVAÇÕES DE CAMPO

O quadro à seguir apresenta a identificação das gravações de campo citadas nesta tese, contendo
o nome de referência do arquivo de áudio, sua duração, o nome do intérprete, a categoria e
breve descrição (conforme coletado no ato da gravação). São listadas apenas as gravações de
campo que foram editadas (de modo à permanecer somente o conteúdo da peça musical),
transcritas e traduzidas, conforme a divisão de lotes que se segue, constituindo a base de dados
documental desta pesquisa. Demais gravações de apoio, como explicações, entrevistas e
exegeses não estão relacionadas abaixo.

LOTE 001

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 AZ_08112017_025 07:54 ANÉZIO MANATI CHEGANDO PARA CONVIDAR
ZEZONEZOKEMAE OUTRAS ALDEIAS PARA FESTA
002 AZ_08112017_003 11:14 ANÉZIO REZA REZA PARA ANIMAIS DE CAÇA;
ZEZONEZOKEMAE REZA PARA ANIMAIS, DE
MADRUGADA, ENQUANTO
MENSAGEIRO ESTÁ DORMINDO
NA ALDEIA CONVIDADA PARA
CAÇAR; EXPLICAÇÃO 003:
HISTÓRIA DA CAÇA, PEDINDO
CONVIDADOS PARA CAÇAR
003 AZ_08112017_005 04:34 ANÉZIO MANATI CONVIDADOS CHEGANDO NA
ZEZONEZOKEMAE FESTA; CONVIDADOS
CHEGANDO NA ALDEIA DA
FESTA, NO TERREIRO, DEPOIS
DESSE MANATI “PODE FESTAR”
004 AZ_08112017_007 06:19 ANÉZIO REZA REZA DE OFERECER CHICHA
ZEZONEZOKEMAE PROS FESTEIROS DE IYAMAKA
(PRIMEIRA REZA); SE NÃO
TIVER IYAMAKA NA FESTA,
OFERECE SÓ PARA ZOLANE;
INCLUE TODAS IYAMAKAS
NESSA REZA
005 AZ_08112017_013 02:58 ANÉZIO REZA REZA DE OFERECER PARA
ZEZONEZOKEMAE IMOKOLO, CONTANTO SUA
HISTÓRIA; NA CHEGADA DE
IMOKOLO USA ESSE PRA
OFERECER
006 AZ_25052017_035 03:37 ANÉZIO REZA REZA DE ZERATYALO; COMO
ZEZONEZOKEMAE SURGIU O ALGODÃO (ENFEITES
DA FLAUTA), PENA DE ARARA
VERMELHA, CASCAVEL,
SURUCUCU SÃO CUIDADORES
DA FLAUTA
007 DZ_02062017_005 05:06 JOÃO DANIEL REZA REZA DE OFERECIMENTO PARA
ZANEZOKAE AMORE; OFERECENDO BEIJU,
CHICHA, TATU, PARA AMORE E
TEIXYKHARE; PRA SER DONO
TEM QUE CUIDAR BEM, A
FAMÍLIA TODA
008 AZ_08112017_011 01:33 ANÉZIO ZERATI CANTO DE SAÍDA DE IYAMAKA
ZEZONEZOKEMAE DO PÁTIO PARA GUARDAR NA
CASA
009 AZ_25052017_033 10:26 ANÉZIO REZA REZA DE XIHALI; BEOURO-
ZEZONEZOKEMAE PESSOA, GENRO DELE MATOU
ELE, SOBROU SÓ 3, POR ISSO SÓ

271
TEM 3 XIHALI QUE TOCAM
JUNTOS
010 FO_19052017_037 01:50 FERNANDO XIHALI XIHALI - AMOREKOKOYTOLI.
OMOIZOKIE GAVIÃOZINHO VINDO PRA
PEGAR PINTURA, DESENHO.
KOKOY
011 AZ_25052017_040 02:33 ANÉZIO REZA REZA DE ZERO; NARE SAINDO
ZEZONEZOKEMAE COM FLAUTA ZERO,
DANÇANDO, CANTANDO BEM
BONITO; WAZARE FICOU
TRISTE, NÃO SAIU TÃO
ANIMADO
012 FO_19052017_039 03:03 FERNANDO ZERO ZERO - HISTÓRIA DE NARE,
OMOIZOKIE DONO DE ZERO, SAIU BONITO E
WAZARE E ZALUYA SO
OLHANDO ADMIRADOS. COM
ZERO E CHOCALHO NOS
TORNOZELOS
61:07

LOTE 002

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 FO_19052017_001 03:14 FERNANDO ZOLANE OFERECIMENTO ANTES DA
OMOIZOKIE ENTRADA DE ZOLANE ;
OFERECIMENTO A WAKOMONÉ
002 FO_19052017_003 02:10 FERNANDO ZOLANE ZOLANE ENTRADA - MILHO
OMOIZOKIE PARA CHICHA
SEGUNDO CANTO
003 FO_19052017_005 02:46 FERNANDO ZOLANE ZOLANE ENTRADA -
OMOIZOKIE GAFANHOTO
TERCEIRO CANTO
004 FO_19052017_008 02:32 FERNANDO ZOLANE ZOLANE ENTRADA -
OMOIZOKIE OFERECIMENTO DE CHICHA –
ZALAKAKWA
QUARTO CANTO
005 FO_19052017_010 04:57 FERNANDO REZA ZOLANE ENTRADA - FINAL DA
OMOIZOKIE ENTRADA – OFERECIMENTO
006 FO_19052017_035 01:40 FERNANDO ZOLANE SAÍDA DE ZOLANE - SAÍDA DE
OMOIZOKIE ZOLANE DA CASA.
AMANHECENDO, MENINADA
ACORDANDO, INDO BANHAR
NO RIO, FINALIZAÇÃO DE
ZOLANE.
007 JA_10112017_029 20:25 JOÃOZINHO ZOLANE KAMAYKOZARE
AKONOIZOKAE
008 JB_26052010_017 15:29 JOÃO BATISTA ZOLANE XINIKALÔRE
ZOLOIZOMAE
009 AZ_25052017_037 04:07 ANÉZIO REZA REZA DE ENORÉ; REZA
ZEZONEZOKEMAE COMPLETA TEM 4 PARTES:
UTYAHALITI (ESPIRITUAL),
ENORÉ, KORE E TOLOA; ESSA
SÓ A PARTE DE ENORÉ
010 AZ_08112017_017 01:58 ANÉZIO REZA REZA DE WALOKO; REZA
ZEZONEZOKEMAE QUANDO BANHA COM
WALOKO A ESPUMA DURANTE
FESTA
59:18

LOTE 003

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 AZ_25052017_013 01:45 ANÉZIO AMORE CANTO DE AMORE MEIA NOITE
ZEZONEZOKEMAE (MAIOR FLAUTA, GRANDE);
NETA VIU JUSTA-CONTA
(ÁRVORE) DO VÔ DELA,
BRILHANDO; KYZOKARE (AVÔ)
E TOMAYERO (MENINA)
002 AZ_25052017_015 03:28 ANÉZIO AMORE CHEGADA NO TERREIRO;
ZEZONEZOKEMAE FLAUTA DE KALAYTEWE TA
CHEGANDO, BEBEDOR DE
CHICHA DE FRUTA
003 AZ_25052017_017 03:06 ANÉZIO AMORE MEIA-NOITE; PRIMEIRA

272
ZEZONEZOKEMAE FLAUTA, EXPERIMENTANDO
TAQUARAS, FEZ ZERO, PEDINDO
PARA ARARINHA E
PASSARINHO TOCAR,
EXPERIMENTAR A FLAUTA
004 MN_01062017_007 03:33 MAURINHO AMORE CANTO DE AMORE; ARARA
NEZOKIE AJUNTANDO TERRA PRA
MARCAR TERRITORIO,
FAZENDO UM MORRO;
HALAWA, KALO (ARARA
VERMELHA)
005 DZ_02062017_001 03:25 JOÃO DANIEL AMORE CANTO DE AMORE; PESSOAL
ZANEZOKAE CHEGANDO DAS ALDEIAS
MATALOZA, KOTYAZA,
ALOHETE
006 DZ_02062017_008 03:56 JOÃO DANIEL AMORE CANTO DE AMORE CHEGANDO
ZANEZOKAE NO TERREIRO; KANAWILINÃ
(ALDEIA), ZOZASEKOLA
(ALDEIA), NAREKA (TURMA)
CHEGANDO; TONONHI (LANÇA),
ZALAYSERAWA (FRUTINHA PRA
FAZER CHOCALHO DE PERNA);
KOLATAHA (SERIEMA)
007 DZ_02062017_011 03:03 JOÃO DANIEL AMORE CANTO DE AMORE DO FINAL,
ZANEZOKAE TERMINANDO, GUARDANDO NA
CASA DE FLAUTAS; JÁ
GANHARAM CARNE, BEIJU, VAI
GUARDAR; ANTES DO ZOLANE
PEDINDO RESPEITO AO ZOLANE,
DANDO CONSELHO; HISTÓRIA
DO ROUBO DE IYAMAKA,
MULHERADA ROUBA FLAUTAS
DE KAYMARE (LUA), AS
MULHERES ZOZOLOKERO,
TAYWENAMALO,
KOZAULOTYOLO
008 JB_26052010_001 04:12 JOÃO BATISTA AMORE
ZOLOIZOMAE
009 MN_01062017_001 02:15 MAURINHO ZERATYALO CANTO DE ZERATYALO;
NEZOKIE KAMALALÔ (HOMEM DO MATO)
010 MN_01062017_020 02:38 MAURINHO ZERATYALO PRIMEIRO CANTO DE
NEZOKIE ZERATYALO, CHEGANDO NO
TERREIRO; “TO CHEGANDO PRA
TOMAR CHICHA”; NAHOREKASE
→ ALDEIA ZOTYAKWARE
011 JB_26052010_007 04:14 JOÃO BATISTA IMOKOLO
ZOLOIZOMAE
012 MN_01062017_012 05:05 MAURINHO IMOKOLO CANTO DE IMOKOLO,
NEZOKIE MATINHAYE ENGULIDO POR
ZOLOIZOKEMAE
013 JA_10112017_010 03:20 JOÃOZINHO ZERATYALO DOS ANTIGOS; ALAULYDIO
AKONOIZOKAE
014 JA_10112017_012 02:46 JOÃOZINHO ZERATYALO CASCAVEL, SURUCUCU,
AKONOIZOKAE RONDANDO A CASA
015 JA_10112017_014 03:04 JOÃOZINHO ZERATYALO
AKONOIZOKAE
016 JA_10112017_016 02:37 JOÃOZINHO ZERATYALO MENINA COM SAUDADE DE
AKONOIZOKAE WAYMARE, QUE É UM
PÁSSARO, ESPÍRITO
017 JB_26052010_015 05:07 JOÃO BATISTA ZERATYALO
ZOLOIZOMAE
018 JB_26052010_016 03:44 JOÃO BATISTA ZERATYALO
ZOLOIZOMAE
61:18

LOTE 004

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 MN_01062017_011 04:18 MAURINHO REZA REZA DE IYAMAKA, CHEGADA
NEZOKIE NO TERREIRO, CONVERSANDO
COM IYAMAKA, PEDINDO AJUDA
002 FO_20052017_001 03:49 FERNANDO IYAMAKA CHEGADA DE IYAMAKA PARA
OMOIZOKIE TOMAR CHICHA NO TERREIRO.

273
ONEKINWHALETA. DEBAIXO DO
RIO, VEM VINDO, TOMANDO
CHICHA DE ABACAXI E NÃO
FICA EMBRIAGADO
003 FO_20052017_003 03:18 FERNANDO IYAMAKA CHEGADA, CHICHA, EMBAIXO
OMOIZOKIE DA ARVORE (FIGUEIRA) TEM
CHICHA, ANDORINHA TA
RODEANDO, ZOE
(GAVIAOZINHO) TA RODEANDO
004 FO_20052017_005 03:48 FERNANDO IYAMAKA WAKOMONÉ DESCENDO COM
OMOIZOKIE POZINHO (XIRIXIRIRORÉ,
FAQUERERO, OLOKOMAYHO)
DA PEDRA DE QUANDO
RACHOU PEDRA COM O RAIO,
RESPEITAR A FESTA PARA
TOMAR CHICHA DEBAIXO DA
FIGUEIRA
005 FO_20052017_007 03:04 FERNANDO TXEYRU FILHA INDO BUSCAR ABACAXI
OMOIZOKIE NO MATO, MÃE DELA RINDO
006 FO_20052017_009 04:06 FERNANDO TXEYRU HISTÓRIA DE KAYMARE E
OMOIZOKIE OLOYALO. MEXEU NA IRMÃ,
QUERIA MATAR, FUGIU
007 FO_20052017_011 04:01 FERNANDO ZERATYALO CONTINUAÇÃO HISTÓRIA DE
OMOIZOKIE KAYMARE. PENEIRA, BEIJU,
TOWHIDY, RALO, PEGAR
PEIXINHO
008 FO_20052017_013 03:36 FERNANDO ZERATYALO IYAMAKA MADRUGADA.
OMOIZOKIE ENOKWA=CÉU. ZOKOWIKWA,
HALATAKWA WETEKO (ALDEIA
DE ENORÉ)
009 FO_20052017_015 02:36 FERNANDO ZERATYALO AMANHECENDO NA ALDEIA
OMOIZOKIE (KANAHYHETE, KONOHYHETE,
MAKAHETE), CANTOR PEDINDO
PRA IYAMAKA, AVISANDO QUE
VAI VIAJAR, VOLTAR PRA CASA
010 FO_20052017_019 03:58 FERNANDO UALALOSÉ TAHIHIDYO (FLAUTA UALALO
OMOIZOKIE DE MARINHO)
011 AZ_25052017_001 03:07 ANÉZIO TXEYRU CANTO DE CHEGADA DE
ZEZONEZOKEMAE TXEYRU NO TERREIRO; ROUBO
DAS FLAUTAS DE KAYMARE
012 AZ_25052017_003 03:52 ANÉZIO TXEYRU AO REDOR DA CASA; ENORÉ
ZEZONEZOKEMAE DESCENDO COM MANCHA DE
SANGUE DE XINIKALÔRE
013 AZ_25052017_005 04:18 ANÉZIO TXEYRU MADRUGADA; AHOZAY
ZEZONEZOKEMAE PEDINDO CESTO PARA IR NA
FESTA DE YAKANE; “NÃO VÁ LA
QUE ELES COMEM VOCÊ
014 AZ_25052017_007 02:54 ANÉZIO TXEYRU MADRUGADA; MORTE DA ONÇA
ZEZONEZOKEMAE PINTADA
015 AZ_25052017_009 03:10 ANÉZIO TXEYRU AMANHECENDO; GAVIÃO FOI
ZEZONEZOKEMAE VINGAR A MORTE MATANDO A
COBRA; DESENHOS NA PELE
COM JENIPAPO
016 AZ_25052017_011 02:13 ANÉZIO UALALOSÉ CANTO DE UALALOSÉ MEIA
ZEZONEZOKEMAE NOITE (FLAUTA PEQUENA);
KALAYTEWE, SEU AVO MATOU
UMA MENINA, LEVOU PARA O
FUNDO DO RIO, MARIMBONDO;
KUYMATIHOLO (MENINA)
RESSUSCITADA POR
KALAYTEWE E VIROU SUA
MULHER, PREPARANDO CHICHA
PARA ELE
017 AZ_25052017_025 02:49 ANÉZIO UALALOSÉ MESMA MÚSICA DE TXEYRU
ZEZONEZOKEMAE CANTADA NO RITMO DE
UALALOSÉ
018 AZ_25052017_027 01:44 ANÉZIO UALALOSÉ CANTO DE UALALOSÉ MEIA
ZEZONEZOKEMAE NOITE; WHAZAKA
(PASSARINHO PESCADOR –
MARTIM-PESCADOR); WAZARE
QUERIA TOMAR O BICO DE
WHAZAKA, ELE NÃO QUIS DAR
60:41

274
LOTE 005

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 FO_19052017_012 04:59 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MEIA-NOITE -
OMOIZOKIE HISTÓRIA DA SAÍDA DA PEDRA
002 FO_19052017_015 06:28 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MEIA-NOITE -
OMOIZOKIE HISTÓRIA DE XINIKALÔRE.
MATARAM, QUEIMARAM SUA
CASA
003 FO_19052017_018 03:51 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MEIA-NOITE -
OMOIZOKIE SEQUÊNCIA DA HISTÓRIA DE
XINIKALÔRE. WAIDIATYARE
004 FO_19052017_019 02:32 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MEIA-NOITE -
OMOIZOKIE TOAKAYHORE
005 FO_19052017_021 03:10 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MEIA-NOITE -
OMOIZOKIE KAMAYHIE, CIPUME,
WAXINAKOLANERO
006 FO_19052017_023 02:18 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA -
OMOIZOKIE TOAKAYHORE,
(FOLHA=TOAKAHANÃ)
007 FO_19052017_025 02:37 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA - CANTO
OMOIZOKIE DO MODO QUE OS VELHOS
CANTARAM, APRENDEU COM
ANTONIO. HISTÓRIA DO
PASSARINHO ASSOBIANO,
TINHA TAQUARA.
WAYETANOTOLINI, XIRITOÁ.
NÃO VE, SÓ ESCUTA O
ASSOBIO DELE. PAJÉ
CONVERSA COM ELE.
008 FO_19052017_027 06:04 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA - CANTO
OMOIZOKIE DO MODO QUE OS VELHOS
CANTARAM, APRENDEU COM
JOÃOZINHO SOGRO DE
ANTONIO. HALITI WAYESE.
CAÇANDO PRA FESTA,
RECEBEM AS PESSOAS.
COMERAM SEM OFERECER,
YAKANE SUBIU E COMEU A
TODOS
009 FO_19052017_029 04:12 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA -
OMOIZOKIE TAWENAMALO, ZOZOLOKERO,
KAYMARE,
TAEMAYLOZOZONEKERO. MÃE
EMBEBEDOU O FILHO
KAYMARE E FUGIU COM SUA
IYAMAKA
010 FO_19052017_031 02:48 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA -
OMOIZOKIE KAZAULONEHENA, MAYZOLO
E ZAMORE (MORROS
SAGRADOS, LUGARES
SAGRADOS DE ONDE CHAMAM
PARA CURAR)
011 FO_19052017_033 03:15 FERNANDO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA -
OMOIZOKIE ZOLANE PEDINDO PRA SAIR DA
CASA. PESCARIA. SOGRA
PEDINDO, CHEGANDO A HORA.
ZONOIDY (GAVIÃOZINHO)
012 AZ_25052017_030 03:02 ANÉZIO REZA REZA DO ZOLANE
ZEZONEZOKEMAE OFERECENDO CHICHA; DOIS
IRMÃOS QUE NÃO ERRAM
FLECHADAS, AS REZAS
CONTAM A HISTÓRIA DELES,
DE CADA UM DELES; FORAM
LÁ NO CÉU, PRA TESTAR,
COLOCARAM UMA ANTA PRA
ELE FLECHAR, RATINHO VIROU
ANTA
013 AZ_25052017_019 01:46 ANÉZIO ZOLANE MADRUGADA; KAMAYWHALO
ZEZONEZOKEMAE (SENHORA) TINHA CRIADO
UMA ARARA VERMELHA NO PÉ
DA JUSTA-CONTEIRA

275
014 AZ_25052017_021 01:15 ANÉZIO ZOLANE AMANHECENDO; TINHA UM
ZEZONEZOKEMAE PASARINHO (BOMBINHA)
CANTANDO; ZATYAMA;
KOKOTERO
015 AZ_08112017_009 04:57 ANÉZIO REZA REZA DE OFERECER PRIMEIRA
ZEZONEZOKEMAE CHICHA PARA ZOLANE (MEIA
NOITE, DENTRO DA CASA,
DEPOIS DE 5 VOLTAS
DANÇANDO)
016 AZ_08112017_019 01:49 ANÉZIO ZOLANE APRENDEU COM MAURÍCIO
ZEZONEZOKEMAE
017 AZ_08112017_021 01:05 ANÉZIO ZOLANE APRENDEU COM JOÃO
ZEZONEZOKEMAE BATISTA ZOLOIZOMAE
018 AZ_08112017_016 02:01 ANÉZIO ZOLANE CANTO DA HISTÓRIA DE NARE,
ZEZONEZOKEMAE QUE SAIU COM ZERO, DONO DE
ZERO
58:09

LOTE 006

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 MN_01062017_017 02:27 MAURINHO REZA REZA DE OFERECIMENTO
NEZOKIE PARA ZOLANE
002 MN_01062017_014 02:36 MAURINHO ZOLANE CANTO DE ENTRADA DE
NEZOKIE ZOLANE NA CASA;
IYANAKAKWARE
003 MN_01062017_015 02:19 MAURINHO ZOLANE CANTO DE ZOLANE
NEZOKIE AMANHECENDO
004 MN_01062017_008 03:23 MAURINHO ZOLANE CANTO DE ZOLANE; HALO-
NEZOKIE HALO, VIRAM A ARVORE,
PESSOAL CHORANDO
005 MN_01062017_002 02:19 MAURINHO ZOLANE MADRUGADA
NEZOKIE
006 DZ_02062017_003 02:33 JOÃO DANIEL ZOLANE CANTO DE ZOLANE MEIA
ZANEZOKAE NOITE; FORMIGUINHA
PUXANDO RIPA PRA CASA,
AMOLYAHARE, DO OUTRO
LADO DO RIO; SARACURA
COLOCOU PALHA NA CASA;
MORCEGO TAMBÉM;
TERMINARAM A CASA
007 DZ_02062017_013 01:24 JOÃO DANIEL ZOLANE MENINA TAEHIROSE,
ZANEZOKAE ZOREZOLOSE, CHEGANDO,
BEBENDO CHICHA
008 DZ_02062017_015 01:07 JOÃO DANIEL ZOLANE CANTO DE ZOLANE
ZANEZOKAE AMANHECENDO; FEZ CHICHA
DE ABACAXI, MAIS FORTE,
FICOU BEBADO, JÁ MATOU
009 DZ_02062017_017 01:15 JOÃO DANIEL ZOLANE CANTO DE ZOLANE SAINDO DA
ZANEZOKAE CASA; NA ROÇA, NABUZINHO
(PÁSSARO) CANTANDO,
AMANHECENDO; ZOLOZOLO
(ABELHA); URUCUM TA
PLANTADO, FLORESCENDO,
BEIJA FLOR CHEGANDO E
CHUPANDO A FLORES
010 DZ_02062017_019 02:35 JOÃO DANIEL ZOLANE CANTO DE ZOLANE MEIA
ZANEZOKAE NOITE; TAKAZAURERO TINHA
UM FILHO, ZOZOMAKWANE
(BEBÊ), MÃE ACANHOU LEITE
MATERNO, POR ISSO BEBÊ
CRIOU ASAS E SAIU VOANDO
011 DZ_02062017_022 02:24 JOÃO DANIEL ZOLANE ZOLANE MADRUGADA; EMA
ZANEZOKAE ANDANDO NA BEIRA DO RIO E
SUCURI SONDANDO; CORREU,
ESCUTANDO ASSOBIO DA
SUCURI; GANHARAM FLECHA
DELE
012 DZ_02062017_024 01:52 JOÃO DANIEL ZOLANE ZOLANE MADRUGADA;
ZANEZOKAE KOYHALAWA (PAI DO MATO)
EM CIMA DO PAU, TIROU
FRUTA, JOGOU PRA MENINA
QUE TINHA IDO A ROÇA

276
APANHAR MANDIOCA;
MARIDO KOYMENARE TINHA
IDO CAÇAR PEIXE; PAI DO
MATO COMEU A MENINA ATÉ
O PESCOÇO, FICOU SÓ A
CABEÇA PRA FORA; CABEÇA
SAIU ROLANDO
013 JA_10112017_023 05:32 JOÃOZINHO ZOLANE ENTRADA DE ZOLANE NA
AKONOIZOKAE CASA; KALAYTEWE, QUE
BICHO TA ENTRANDO DE
NOITE? NO ESCURO? NOSSO
TIO KALAYTEWE ENTRANDO
MEIA NOITE, TEM O NARIZ
VERMELHO IGUAL CAJU
014 JT_04052010_001 09:05 JOÃO TITI IYAMAKA
AKONOZOKAE
015 JT_04052010_002 05:48 JOÃO TITI IYAMAKA
AKONOZOKAE
016 JT_04052010_003 04:51 JOÃO TITI IYAMAKA
AKONOZOKAE
017 JZ_26062017_010 06:42 JUSTINO IYAMAKA ZOLYKIXIHO, IRMÃO MAIS
ZOMOIZOKAE NOVO TENDO RELAÇÃO COM A
PRÓPRIA IRMÃ; QUERIAM
MATA-LOS; FUGIRAM; “QUEM
ESTA FAZENDO O CESTO
BONITO PENDURADO?”; PODE
ENTRAR; ENTRARAM; PEGOU
FOGO PORQUE TINHAM
PECADO; ESCAPARAM DO
FOGO E SEGUIRAM; VIRAM
PASSARINHO, FLECHOU ELE,
MAS ERROU, FLECHA CAIU EM
CIMA DA COBRA; GURI FOI
ATRAS DA FLECHA, GRITOU,
JOGARAM ELE PARA COBRA
COMER; CORREU, CANSOU;
DEIXOU O OUTRO IRMÃO,
COBRIU, PEDIU PRA QUEIMAR
QUE IRA VIRAR MILHO;
CORREU, ENCONTROU O AVÔ,
MUDOU DE ALDEIA, QUEIMOU
O IRMÃO; CRIOU MILHO DO
DENTE, CARA DO SACO,
AMENDOIM DA UNHA,
URUCUM DO SANGUE, CEBOLA
DO OLHO, CABAÇA DA
CABEÇA, CANA DOS BRAÇOS;
OSSADA CRIOU TODAS AS
PLANTAS; KOLAYBERONE
(IRMAO MAIS VELHO);
MAZEROHOKO (AVÓ DO
MENINO QUE VIROU MILHO)
018 JZ_26062017_013 01:17 JUSTINO ZOLANE CANTO DE SAÍDA DE ZOLANE
ZOMOIZOKAE DO JEITO QUE OS ANTIGOS
CANTAVAM; MEU PAI, MEU
TIO, MEU AVÔ JÁ DORMIRAM;
ESTOU COM SONO, VAMOS
DORMIR;
019 JZ_26062017_019 01:58 JUSTINO ZOLANE SAÍDA DE ZOLANE DO JEITO
ZOMOIZOKAE DOS ANTIGOS; YAKANE
INVADIA MUITO; VAMOS
QUEBRAR A TRAVESSA DELES
E ACABAR COM ELES; BATEU
RAIO; ASSIM ACABARAM AS
ENCHENTES;
020 Justino-zokozoko 01:12 JUSTINO ZOKOZOKO zokozoko
ZOMOIZOKAE
62:39

LOTE 007

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORI DESCRIÇÃO


A

277
001 JA_10112017_001 05:43 JOÃOZINHO TXEYRU IYAMAKA NO COMEÇO DA FESTA
AKONOIZOKAE CHEGANDO NO TERREIRO;
ALYAUHETE, ZOMOYHETE,
EMBAIXO DA FIGUEIRA;
ANDORINHAS RODEANDO,
COCAR BALANÇANDO
002 JA_10112017_004 02:24 JOÃOZINHO TXEYRU IYAMAKA CHEGANDO NA PORTA
AKONOIZOKAE DA CASA
003 JA_10112017_006 04:33 JOÃOZINHO TXEYRU BICHO CHEGANDO, FILHO DO
AKONOIZOKAE VEADO
004 JA_10112017_008 02:00 JOÃOZINHO TXEYRU “SEREIA”, ALDEIA YOLAZA,
AKONOIZOKAE DEBAIXO DAGUA, MAZAYERO,
TERREIRO DA SEREIA
005 JA_10112017_018 02:03 JOÃOZINHO UALALOSÉ KAYMARE, OFERECENDO PEIXE
AKONOIZOKAE
006 JA_10112017_021 03:30 JOÃOZINHO UALALOSÉ ZALUKAWEYRORE BATEU COM
AKONOIZOKAE BORDUNA, RAIO, QUEBROU A
TRAVA DAS SEREIAS
007 MN_01062017_003 03:20 MAURINHO UALALOSÉ CANTO DE UALALOSE;
NEZOKIE KOTYOYHORÉ (GENTE DA
ÁGUA)
008 MN_01062017_004 02:32 MAURINHO TXEYRU CANTO DE TXEYRU;
NEZOKIE KOREZARENE, KAMAYHIE
009 MN_01062017_005 02:47 MAURINHO TIYRAMA CANTO DE TIYRAMA,
NEZOKIE KOREKWAHETE,
MOREKWAHETE
010 MN_01062017_006 02:47 MAURINHO XIHALI
NEZOKIE
011 MN_01062017_018 03:53 MAURINHO UALALOSÉ MÚSICA GRAVADA POR MILTON
NEZOKIE NASCIMENTO DO JEITO QUE
HALITI CANTA
012 MN_01062017_010 05:24 MAURINHO MANATI CHEGADA DOS FESTEIROS
NEZOKIE (MANATI), PEDINDO RESPEITO,
CONVIDANDO, RECEBENDO,
DANDO CONSELHO;
HAREKAHARE VAI FAZER O
CONVITE NAS OUTRAS
ALDEIAS; CONVERSA ENTRE
DONO DE FESTA E FESTEIROS É
CANTADA, MUSICADA,
RITMADA;
013 MN_01062017_009 06:08 MAURINHO ZERO
NEZOKIE
014 BA_29062017_01 10:58 BENEDITO ZERATYAL CANTO DA HISTÓRIA DE
ANIZOKAI O WAZARE SAINDO DA PEDRA;
HIMAZAHARE; ZOKOZOKOIRO
015 BA_29062017_02 02:32 BENEDITO ZOLANE WARERE SAIU DA CHAPADA DO
ANIZOKAI ITAMARATI, DEPOIS QUE
JUNTOU COM HALITI; IRANXE
SAIU COM FLAUTA ZERO;
60:34

LOTE 008

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 JB_26052010_018 03:37 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
002 JB_26052010_019 04:06 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
003 JB_26052010_020 03:07 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
004 JB_26052010_022 03:51 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
005 JB_26052010_023 03:23 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
006 JB_26052010_024 03:37 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
007 JB_26052010_025 01:12 JOÃO BATISTA ZOLANE
ZOLOIZOMAE
008 JZ_26062017_023 03:01 JUSTINO ZOLANE EHEROWARE, DONO DOS
ZOMOIZOKAE DESENHOS; NETOS AZEDARAM
PEIXE E PEDIRAM PARA ELE

278
DESCER DO CEU E ENSINAR OS
DESENHOS; COMER NA
VASILHA PARA NÃO
ESQUECER OS DESENHOS;
KAMAYHIE SÓ QUE APRENDEU
POIS COMEU NA VASILHA;
HISTÓRIA DE TOHIDY E ABALI
009 JZ_26062017_025 03:00 JUSTINO IYAMAKA YOLAWARE – CONSTRUTOR DE
ZOMOIZOKAE HATI; TEM O CIPÓ PARA
AMARRAR; CORDA DE TUCUM
NÃO DÁ; PEDIU PRA WAYARE,
CHEGOU, DESTRUIU A CASA;
OS PASSARINHOS BOTARAM
AS PENAS NO LUGAR, TUDO
MISTURADO; CONSTRUIRAM A
CASA DE NOVO;
010 JZ_26062017_027 02:11 JUSTINO ZOLANE TOAKAYHORE (1º VIVENTE);
ZOMOIZOKAE TOAKA = FOLHA; O CUNHADO,
EHEROWARE, PERGUNTOU
SOBRE O ESPÍRITO QUE
MANDA;
011 JZ_26062017_030 04:55 JUSTINO ZOLANE ZALATORÉ; PESSOAS
ZOMOIZOKAE INVADINDO, LEVOU
MIÇANGAS, PODE PASSAR;
KOXIKWAHETE,
MARIKWAHETE (ALDEIAS);
ZALATORÉ ESCAPOU DA
GUERRA, TROCARAM MULHER
PARA ACABAR COM A
GUERRA;
012 JZ_26062017_032 03:38 JUSTINO ZOLANE ZOKOWIE, MATADOR DE
ZOMOIZOKAE PEIXE, CAÇAVA, MATAVA
PEIXE COM FLECHA; WAYARE,
SEU AVÔ, PEDIU UM PEIXE, ELE
NÃO DEU; PEDIU PARA OS
PEIXES SUBIREM O RIO;
ONEMAKORETAZA (NOME DA
ÁGUA); FLECHOU O DOURADO
NO RABO, FUGIU COM A
FLECHA DELE; FOI ATRÁS E
ENCONTROU O DONO (“REI”)
DOS PEIXES
KOTAMOHYKIDYARE;
VINGARAM E MATARAM ELE;
PEIXES FUGIRAM; ZOKOWIE
DISSE QUE O PAI IA VINGAR
SUA MORTE, PAI PEGOU SÓ OS
OSSOS (CANTO, HISTÓRIA
TRISTE);
013 JZ_26062017_034 03:15 JUSTINO IYAMAKA CASINHA DE JARARACA,
ZOMOIZOKAE TINHA UMA CABEÇA DE
YAKANE ATRÁS ESCONDIDA;
NÃO PODE VER, PROIBIDO,
MULHER NÃO PODE VER, SÓ
HOMEM;
014 JZ_26062017_037 04:27 JUSTINO IYAMAKA HISTÓRIA DE WAKOMONÉ,
ZOMOIZOKAE KERAKWAMÃ, TOAKAYHORE
(IRMÃOS)
015 JZ_26062017_039 03:45 JUSTINO IYAMAKA IYAMAKA DOS ANTIGOS; VELHO
ZOMOIZOKAE CEGO, MULHER DELE
CHAMADA MAZERO;
COMERAM A ANTA DELE,
FICOU BRAVO, FECHOU A
CASA, MULHERADA PASSOU
FRIO
016 JZ_26062017_041 02:44 JUSTINO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA
ZOMOIZOKAE
017 JZ_26062017_042 02:24 JUSTINO ZOLANE ZOLANE MADRUGADA (MAIS
ZOMOIZOKAE LENTO, MAIS SUAVE)
018 JZ_26062017_044 03:52 JUSTINO IYAMAKA IYAMAKA DOS ANTIGOS;
ZOMOIZOKAE KOYTALE, ATRAVESSAR O RIO;
AZAMA; RIO GRANDE; AVÔ
RUGINERO

279
019 JZ_26062017_046 02:49 JUSTINO IYAMAKA IYAMAKA DOS ANTIGOS;
ZOMOIZOKAE ZOYMANARE; FLAUTA DE
PEDRA, MULHER PODIA VER,
ERA IGUAL BRINQUEDO
62:54

LOTE 009

Nº NOME DO ARQUIVO DURAÇÃO CANTOR CATEGORIA DESCRIÇÃO


001 JZ_26062017_001 02:43 JUSTINO ZOLANE MENINO RECEM NASCIDO
ZOMOIZOKAE PERGUNTAVA PELO PAI; MÃE
O ENGANAVA; PAI TINHA IDO
PARA FESTADOS AVÓS;
MENINO FOI ATRÁS; WAYARE
PELOTEOU NO SEU JOELHO,
CAIU AOS PÉS DE SEU PAI;
AVÓS VOARAM EM CIMA E
COMERAM O PAI; GURI FOI
EMBORA COM O VENTO;
FESTA DE YAKANE, GENTE DA
ÁGUA.
002 JZ_26062017_003 02:42 JUSTINO ZOLANE ZOZOLOKERO (MÃE); BEBÊ
ZOMOIZOKAE FICOU SEM ESPÍRITO; ENORÉ
COLOCOU O ESPÍRITO E CRIOU
ELE DE NOVO; ENORÉ DIZ QUE
ELE SÓ VAI SOBREVIVER
JUNTO COM ELE; MÃE SÓ FICA
FAZENDO CHICHA E
OFERECENDO.
003 JZ_26062017_006 04:24 JUSTINO ZERATYALO ENOHARESE PINTANDO
ZOMOIZOKAE BORDUNA DEBAIXO DA
FIGUEIRA; DUAS MENINAS
VÊM VINDO FUGINDO DA MÃE
DA ÁGUA; MAKALIKWALO E
MAKUYALO (NOME DAS
MENINAS); COLOCOU ELAS
COMO UM ESTEIO, NO ALTO,
ENOHARESE CUIDANDO
EMBAIXO; MAE DAGUA
(HIMESEZAULOHARE) VEM
VINDO ATRÁS; BATEU
BORDUNA NA AGUA E MATOU
ELA; MENINAS PEDIRAM PRA
FICAR COM ELE, QUE SALVOU
ELAS; ELE ACEITOU, MAS
CONDIÇÃO DE FICAR
FAZENDO CHICHA E
OFERECENDO PORQUE
SALVOU A VIDA DELAS;
FORAM MORAR COM ENORÉ.
004 JZ_26062017_008 02:42 JUSTINO IYAMAKA URUBUZINHO (TIRYAURE)
ZOMOIZOKAE QUE GOSTA DE COMER
MARIMBONDO; FOI NA FESTA,
EXPERIMENTANDO CHICHA
PRA VER SE É BOM; PEGARAM
VARINHA DE IYAMAKA
IOHOHÔ E FORAM
EXPERIMENTAR JUNTO COM
SEU TIO;
005 JZ_26062017_015 01:51 JUSTINO ZOLANE ENTRADA DE ZOLANE; UM
ZOMOIZOKAE VELHO, ENTRANDO NA CASA
DA VELHA, SEM PEDIR
LICENÇA, COM UMA
FLAUTINHA; AVÓ
(ALAULYDIO)
006 JZ_26062017_017 01:13 JUSTINO ZOLANE ENTRADA DE ZOLANE;
ZOMOIZOKAE ARARINHA ACORDANDO,
DANDO BOM DIA, SOL
ILUMINANDO TUDO
007 JZ_26062017_021 09:35 JUSTINO ZOLANE XINIKALÔRE; HISTÓRIA DA
ZOMOIZOKAE ONÇA; IRMÃOS VIVIAM COM A
AVÓ; DECIDIRAM VINGAR A
MORTE DOS PAIS QUE A ONÇA

280
E O GAVIÃO TINHAM COMIDO;
VELHA ERA CEGA; ALAMA –
COSTELA GRUDADA NO
JATOBÁ; SANGUE DA ONÇA,
QUEIMARAM A CASA, CRIOU
OS NAMBIKWARA E OS
NEGROS; TOAKAYHORE,
SUBIRAM NO CARRETEL
FLECHANDO A FIGUEIRA;
008 JT_04052010_006 03:16 JOÃO TITI IYAMAKA WAZARE HISTORIA PONTE DE
AKONOZOKAE PEDRA

009 JT_04052010_007 04:49 JOÃO TITI IYAMAKA WAZARE HISTORIA PONTE DE


AKONOZOKAE PEDRA

010 JT_04052010_008 03:44 JOÃO TITI IYAMAKA WAZARE HISTORIA PONTE DE


AKONOZOKAE PEDRA

011 JT_04052010_015_01 02:23 JOÃO TITI ZOLANE CANTO HISTÓRIA DE


AKONOZOKAE KOKOTERO E TIHUEROCE (01)
012 JT_04052010_015_02 03:06 JOÃO TITI ZOLANE CANTO HISTÓRIA DE WAZARE
AKONOZOKAE AMANHECENDO (02)
013 JT_04052010_016 01:22 JOÃO TITI ZOLANE ULTIMO CANTO DE ZOLANE
AKONOZOKAE
014 JA_10112017_025 04:33 JOÃOZINHO ZOLANE KOLAYBERONE,
AKONOIZOKAE MATAYAHORE
015 JA_10112017_027 06:02 JOÃOZINHO ZOLANE MULHER ZAULOWEKOLO
AKONOIZOKAE
016 JA_10112017_031 04:13 JOÃOZINHO ZOLANE MULHER MAKWANERO
AKONOIZOKAE
017 JA_10112017_033 02:20 JOÃOZINHO ZOLANE
AKONOIZOKAE
018 JA_10112017_035 01:58 JOÃOZINHO ZOLANE
AKONOIZOKAE
019 JA_10112017_038 07:53 JOÃOZINHO ZOLANE XINIKALÔRE
AKONOIZOKAE
70:49

281
APÊNDICE B - ESTRUTURA TEMÁTICA DE IYAMAKA

De modo a possibilitar a visualização completa dos temas evocados pelos cantos e rezas de
iyamaka, a relação abaixo sintetiza em uma frase a temática de cada peça coletada, associando-
a ao seu respectivo subgrupo dentro do gênero musical.

Iyamaka hiye nidiyaetyaka (oferecimento para as flautas)

Convidando donos para beber chicha


Enfeites, algodão e guardiões de iyamaka
Oferecendo para amoretse e teixikhare
Enfeites, algodão e guardiões de iyamaka
História de imokolo

Iyamaka zerane weteko zeratyaka (cantos das flautas no terreiro)

Chegando debaixo do rio para beber chicha de abacaxi


Pássaros chegando para beber chicha
Wakomoné descendo para beber chicha
Kaxie e Koitate, ciúme entre irmãos
Kaema pede uma flauta para seu pai Wazare
Kaema pescando na cachoeira para flauta
Campo enfeitiçado
Urubuzinho vê o mundo fora da pedra
Pedindo para pica-pau roer a pedra
Urubuzinho/pica-pau experimentando chicha na festa
Surgimentos de alimentos típicos
Construtor de hati
Cabeça de yakane escondida atrás da casinha de iyamaka
Irmãos Wakomoné, Kerakwamã e Toakayhore
Mulheres enganaram o velho cego
Koitate querendo atravessar o rio
Zoymanare não viu, Nare se afogou

282
Chegando de Zotyakware para tomar chicha
Kamalalô come os homens e mulheres
Enoharetse salva duas meninas da mãe dágua
História de Nare saindo da pedra com zero
Zohowe e Koemace chegando para chicha
Menina com saudade de Waymare
Mãe rindo do pé de abacaxi (na verdade estava fazendo sexo)
Cascavel e surucucu rondando a casa de noite
Alaulidyo contando sobre onde passou a estrada
Amanhecendo nas aldeias Kanahyhete, Konohyhete, Makahete
Amanhecendo em Halatakwa e Zokowikwa
Parte da história de Kaymare (lua), indo pescar na lagoa
Saída da pedra, pica pau roeu a pedra
Kalaitewe e Kuimatiholo
Ahozay pedindo cesto para ir à festa de yakane
Wazare queria o bico da saracura
A criança voou porque a mãe acanhou o peito
Kaymare oferecendo peixe pra iyamaka
Zaloka quebra a trava da gente da água
Ahozay pede borduna para ir a festa da gente da água
Tomando chicha em Kazahete
Indo tomar chicha em Alyauhete, Korehete
História de Kaymare, deixou as mulheres verem as flautas
Wakomoné descendo para beber chicha, com mancha de sangue
Ahozay pedindo cesto para ir à festa de yakane
Mataram a jaguatirica e o dono veio se vingar
Gaviões querem se vingar das cobras, pintura de jenipapo
Mãe rindo do abacaxi do mato
Kaymare e Oloyalo, sexo entre irmãos
Chegando em Alyauhete e Zomoyhete para chicha
Iyamaka chegando e dançando na porta da casa de Kaymare
Filho do veado chegando na aldeia
Homem vê o cocho na aldeia da gente da água Yolaza

283
Irmão mata o outro por causa de ciúme
Chegando em Alyauhete e Zomoyhete para chicha
Matinhane engolido por Zoloizokemae porque não fazia oferenda
Menina vê o pé de figueira do seu avô Kizokare
Kalaytewe chegando no terreiro para chicha
Passarinhos experimentando flautas
Chegando das aldeias Mataloza, Kotyaza, Alyauhete para festa
Chegando em Alyauhete para chicha
Criança foge com medo de bicho no mato
Pássaros experimentando flautas
Arara construindo um morro para marcar a estrada

Iyamaka zerane jitsoatyaka (cantos de saída das flautas do terreiro)

Estava esperando minha caça, agora vou dormir

284
APÊNDICE C - ESTRUTURA TEMÁTICA DE ZOLANE

De modo à possibilitar a visualização completa dos temas evocados pelos cantos e rezas de
zolane, a relação abaixo sintetiza em uma frase a temática de cada peça coletada, associando-a
ao seu respectivo subgrupo dentro do gênero musical.

Zolane zerane jitsoakore hatyako zeratyaka (cantos de entrada de zolane na maloca)

Wakomoné descendo, chegando para a chicha da festa


Surgimento do milho para chicha
Gafanhoto vai até o céu para tomar chicha de milho
Meninas Taiwenamalo e Zozolokero entrando devagarzinho na casa para beber chicha
Kalaytewe entrando na casa à meia-noite
Dono de flauta entrando na casa

Zolane hiye nidiyaetyaka (oferecimento para zolane)

História do zolane, Xinimaosene, morcego, assoviando no céu


História do zolane, morcego, assoviando
História do zolane, morcego, assobio

Zolane zerane idiyaete natxikinyeta wahazatikitya zeratyaka (cantos de zolane depois da


oferenda até meia noite)

História de Nare, saiu com zero


História de Nare, saiu com zero
Amolyahare construindo hati junto com outros animais
Meninas Taehirose e Zorezolose indo para beber chicha no terreiro de Wazare
Takazaurero acanhou o peito para o bebê que vôou para o céu
História da saída da pedra, racharam a pedra com a borduna
História de Xinikalôre, mataram e queimaram sua casa
Continuação história de Xinikalôre
Menina com saudade de seu companheiro, o passarinho Toakayhore

285
Irmãos brigam com cíume por causa de Waxinakolanero
Kamaykozare (história de Boro com saudade de Euzébio, improvisação)
História de Xinikalôre
Chegando para chicha de abacaxi de Zokarezamaye em Alyauhete, Korehete e Zozoykete
Chegando para chicha de abacaxi de Zamazakare
Chegando no terreiro de Kalokare para chicha de abacaxi de Zalokerose
Takazaurero acanhou o peito e a criança voou
Caiu de bêbado com a chicha de abacaxi, muito forte
Indo tomar chicha de Zaliwa nos morros Tyolore e Zamore
Passarinhos foram atrás do assobio de Erone
Eheroware ensina os desenhos da cestaria
Toakayhore e seu cunhado Eheroware falando sobre a folha advinhadora
Zalatoré escapou da guerra com Waymare, trocaram menina para acabar com a guerra
Zokowie, matador de peixe, encontra dono dos peixes que o mata, pai pega só os ossos dele
Chorando ao ver o pé de figueira de Kizokare

Zolane zerane ferakwahena mania (cantos de zolane na madrugada)

Chorando ao ver o pé de figueira do avô


Kamaewalo cria uma arara vermelha no pé de figueira, que está ensaiando canto de flauta
Bebeu chicha de abacaxi e matou seu irmão por causa de cíume
Enomaeya ganha flecha mágica para caçar
Koyhalawa come a menina até o pescoço, fica só a cabeça dela no mundo
Toakayhore e a folha advinhadora
História do pajé assobiando para o passarinho xiritoá, wayetanotyoloni
Caçando pra festa, comeram sem oferecer, Yakane subiu e comeu todo mundo
Mulheres Taiwenamalo e Zozolokero fogem com flauta de Kaymare
Morros Mayzolo e Zamore, onde moram os espíritos
Sobre a cobra dágua e gavião preto
Kaxie apronta com o irmão Koytate
Passarinhos passando na alvorada, catando frutas
Koyhalawa come a menina até o pescoço, fica só a cabeça dela (Kamalalô)

286
Zolane zerane hikwatiza (cantos de saída de zolane da maloca)

As cobras e os gaviões dançando juntos


Nambuzinho assobiando na beira da roça de Zatyamare e Kokotero
Nambuzinho assobiando na beira da roça de Kokotero
Meninada acordando para banhar no rio sagrado das antas
Meninada acordando para banhar no rio sagrado com urucum
Mandando o primo Zamiko ir embora porque todos já dormiram
Raio quebrou a travessa de Yakane e acabou com as enchentes
Irmão bêbado matou o outro por ciúme, se não fossem as mulheres para mastigar a chicha ainda
saía briga

287
ANEXOS
ANEXO A – TRANSCRIÇÕES MUSICAIS DE ROQUETTE-PINTO (1917)

“Os trechos musicaes incluidos neste livro foram transcriptos de phonogrammas existentes no
Museu Nacional, colhidos durante a viagem, sendo aquelle trabalho realizado pelo Sr. professor
Astolpho Tavares ; á sua assistência, dedicada e proba, devo a maior parte das notas referentes
aos instrumentos parecís.

Deixando de lado a flauta nasal (Tsin-halí), instrumento pouco exacto, encontramos entre os
Parecís algumas flautas e uma buzina, com embocadura de piston, que dá son cavernoso.

As flautas estão em si ; meio ton abaixo do diapason normal. Formam três grupos naturaes :
grave, médio e agudo, constituindo o que os compositores chamam uma familia, como por
exemplo, nos instrumentos de corda: contra-baixo, violoncello e violino. A embocadura de
todas é semelhante a do flageolet. Tèm quatro orifícios. O comprimento varia. Com os orifícios
livres, cada uma dá um accórde de mi menor, ton relativo de sol maior: mi2, sol2, si2.

Com o primeiro orifício obturado, todas as flautas dão o accórde de ré maior:


ré2, fa2, lá2

O tom de sol maior é muito favorecido pelas notas fornecidas pelos três grupos:

Grupo grave : si1, ré2


Grupo médio: si1 , re2, fa2#, sol2
Grupo agudo: re2, sol2, si2

O ton de si menor (relativo de ré maior) é muito praticável no 1° e no 2° grupos, pois que esses
dão facilmente as notas do seu accórde:

Grupo grave: si2, ré2, fa2#, si2


Grupo médio: si2, ré2, fa2#

O grupo grave favorece o accórde de lá, maior, cujas notas facilmente nelle se obtêm : lá2, do2#,
mi2

Os tons mais empregados na sua musica são : sol maior, mi menor, ré maior, si menor, lá maior.
Os tons maiores, como se vê, seguem-se em quintas justas.

A escala completa fornecida pelas flautas parecís é, pois:

Lá1, Si1, Do2#, Ré2, Mi2, Fa2#, Sol2, Lá2, Si2.

Não foi encontrado o do natural, nem o sib. Esta ultima nota pode ser obtida, em certo casos,
com os instrumentos agudos.

Cada grupo fornece um segmento da escala total;

Grupo grave: lá1, si1, do2#, re2, mi2

288
Grupo médio: si1, ré2, mi2, fa2#, sol2
Grupo agudo : ré2, fa2, sol2, lá2, si2

Em ré2 ficam os três grupos unisonos ; o 2° grupo salta do si1 para o ré2 (3a menor) deixando
de dar o do2. O 3° grupo salta igualmente uma 3a menor : entre re2 e fá2. Além destes grandes
intervallos, verdadeiros hiatos na escala, acham-se ainda intervallos anómalos ; taes são, no
grupo médio, o intervallo de 2a maior entre mi2 e fá2#, que na escala natural é intervallo de 2a
menor (mi2 a fa2). No 1° grupo da-se o mesmo entre si1 e do2#.

O rythmo da musica pareci, em regra, segue os compassos binario e ternário. Ha também, nos
phonogrammas colhidos, compassos alternados, cuja regularidade não é conservada em todo o
trecho. O phonogramma 14.605 oííerece um bom exemplo dessa alternância; é um trecho em
mi menor, que se inicia por três compassos binários e logo passa ao compasso ternário, cahindo
de novo no primeiro, para repetir a mesma successão, até ao fim.

O phonogramma 14.602 é de um coro em la maior, muito original, quanto a melodia, e


surprehendente quanto ao rythmo. E' incerto. Approxima-se do 5/4, que é mantido durante os
três primeiros compassos; ahi, quebra-se, cahindo, o coro, ora no compasso binário, ora no
ternário. A transcripção deste phonogramma foi feita em compasso de 3/4, para facilitar a
leitura. Notam-se em alguns phonogrammas, movimentos syncopados bem claros. Taes são os
de números 14.594 e 14.595, onde se encontra, pronunciadamente, o tempo de
bolero, em 3/8.

Os instrumentos typos são:

Grupo grave: Zoratealô (11.218)


Grupo médio: Teirú (11.220)
Grupo agudo: Zahôlôcê {11.224)”

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ANEXO B – FOTOGRAFIAS DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS (2008)

(PEREIRA; PACHECO, 2008)

(PEREIRA; PACHECO, 2008)

298

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