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Natal
2021
Renata Cibelli Freire Barbosa
Natal/RN
2021
Barbosa, Renata Cibelli Freire.
Violência contra a mulher, o Teatro do Oprimido e o Teatro
das Oprimidas: construindo formas de intervenção social /
Renata Cibelli Freire Barbosa. - 2021.
145f.: il.
construindo formas de intervenção social", elaborada por Renata Cibelli Freire Barbosa, foi
MESTRE EM PSICOLOGIA.
BANCA EXAMINADORA
da banca) ___________________________________
(Suplente) ___________________________________
Agradecimentos
todos os momentos deste mestrado, desde os estudos para a seleção até a defesa. Se não
fosse por ela, sem dúvida eu não teria chegado até aqui. Sua companhia tornou essa
Sophia, outra grande amiga, se juntou a nós e então formamos um tripé que sustentou o
peso, as dores e alegrias de produzir uma pesquisa. Minhas amigas tão queridas e amadas,
muito obrigada! Sou muito grata por isso e por tantas outras maravilhas que a nossa
amizade me proporciona.
Obrigada por tantas vezes ter me passado a segurança que eu não tinha, por ter se
encantado junto comigo pelo Teatro do Oprimido e por ter acreditado em mim e nessa
pesquisa. Aproveito para agradecer a Luana, minha coorientadora não oficial, pela
Ao meu amor, Luís, que foi um porto seguro, que nem por um momento deixou de
acreditar em mim. Obrigada por ver em mim o que eu muitas vezes não consigo ver, por
Mesmo que ele nunca leia isso, agradeço ao meu cachorrinho Badinho por ter
estado comigo em absolutamente todo tempo de estudo e escrita desta pesquisa. Ter uma
presença perene, incansável e repleta de amor num processo tão solitário e extenuante fez
toda a diferença.
Agradeço aos meus pais, Renato e Marize, pela confiança que têm na filha de
vocês, pelo apoio e cuidado que nunca me deixaram faltar; ao meu irmão Guilherme pela
escuta atenciosa e amorosa de sempre; ao meu irmão Gustavo e a minha cunhada Clarinha,
por me darem orientações durante os almoços de domingo e me sugerirem livros para
Agradeço a minha amiga Ginetta, que não poupou esforços para me ajudar com os
textos para a prova de seleção do mestrado; às amigas Joyce, Dani, Lívia e Luana (mais
uma vez), por terem pacientemente me orientado na construção do projeto. Se não fosse
por vocês, meu caminho na pós-graduação não teria nem iniciado. Agradeço também ao
amigo Bico, que prontamente se dispôs para me ajudar a pensar na condução do campo da
pesquisa.
aulas e por ter me apoiado durante esse percurso. Agradeço em especial à Fatita, que com
toda sua bagagem no feminismo tanto contribuiu com a produção deste trabalho, dando
Sophia -, e também a minha Seleção - Amlyn, Bia, Jenini, Luana, Mabelle, Renata Thé,
Rosa, Thaís, Virgínia e Vivi -, por terem compreendido tantas ausências (presenciais e
Obrigada, meu amigo Daniel, que, compreendendo mais que ninguém o que é
conviver com alguém fazendo um mestrado, foi sempre muito prestativo e generoso com
seus conhecimentos.
Agradeço à turminha da pós, que tornou as aulas mais leves e divertidas e que
sempre se colocou disponível para ajudar. Agradeço em especial a Gustavo, Jenair, John,
Por fim, agradeço profundamente a Claudia Simone, Iana Ribeiro, Liviana Bath,
Lorena Roffé, Mariana Villani e Rachel Nascimento. São curingas inspiradoras e mulheres
incríveis que doaram tempo, energia e foram mais que magnânimas ao compartilhar tanto
conhecimento e experiência. Poder entrevistá-las foi uma honra e um privilégio para mim.
Resumo xi
Abstract xiii
Introdução 15
Apêndice 135
Lista de siglas
(LGBTQIA+)
Teatro-Fórum (TF)
mecanismos pelos quais uma opressão se produz, a descoberta de táticas e estratégias para
evitá-la e o ensaio dessas práticas. A partir da associação desses dois elementos e em busca
mulher, nasceu essa pesquisa. O estudo pretende analisar o Teatro do Oprimido como
forma de intervenção social em casos de violência contra a mulher, bem como avaliar uma
pressupostos do trabalho com TO. Fazem parte desta pesquisa seis mulheres, curingas,
sua importância no debate acerca de opressões, mas apontam a relevância do Teatro das
raça e classe. Ambas as metodologias foram destacadas como meios para conscientização
de si, das opressões presentes nas vidas dos sujeitos e da macroestrutura que sustenta essas
opressões. Outrossim, foram apontadas como caminhos rumo à transformação tanto de
Among the types of gender violence, violence against women is the most frequent in the
Brazilian context. This happens despite regulatory advances, the creation of mechanisms to
curb domestic and family violence against women and the establishment of measures for
the prevention, assistance and protection of women in situations of violence. Through the
produced, the discovery of tactics and strategies to avoid it and the rehearsal of these
practices. From the association of these two elements and in search of the construction of
liberating, creative and dialogic means to debate violence against women, this research was
born. The study intends to analyze the Theater of the Oppressed as a form of social
work proposal based on the method of the Theater of the Oppressed, to characterize and
analyze the challenges of acting with Theater of the Oppressed nowadays and to identify
the strategies for guaranteeing the fundamentals of the Theater of the Oppressed. Six
women, jokers, working in TO are part of this research. The collection procedures and
instruments used were the evaluation of an intervention planning aimed at women and
semi-structured interviews. The results showed that the Theater of the Oppressed has its
importance in the debate about oppression, but they point out the relevance of the Feminist
Theater of the Oppressed as a way to discuss the consubstantiality of gender, race and
without losing sight of the totality, the social context in which they operate. Both
methodologies, the Theater of the Oppressed and the Feminist Theater of the Oppressed,
were highlighted as means of reaching self-awareness and understanding the oppressions
present in the lives of subjects and the macrostructure that sustains these oppressions.
Furthermore, they were pointed out as paths towards the transformation of both private life
Keywords: violence against women; Theater of the Oppressed; Feminist Theater of the
Oppressed.
15
Introdução
são quase todas mulheres. Apesar de haver uma justificativa na Lei Orgânica da
Assistência Social/LOAS (Lei 8.742/1993) para essa forte presença feminina2, é possível
observar tal fenômeno de uma forma ampliada, abarcando as políticas sociais de maneira
geral.
intervenção e limite para o crescimento econômico. Desde então, as políticas sociais têm
forma que, nessas políticas, a família ocupa um lugar de destaque, com o papel de
Em meio a isso, as ideias de solidariedade familiar e afetiva, reforçadas por leis que tornam
Isso é ilustrado nos resultados de uma pesquisa realizada por Teixeira (2013, como
citada em Mioto, 2018) com profissionais da política de assistência social. A partir das
falas dos sujeitos, a pesquisadora observou que as queixas desses trabalhadores quanto às
famílias atendidas é que os pais, sobretudo as mães, não cumprem suas funções e
1
O IBGE define Pessoa de Referência na Família como “aquela pessoa responsável pela unidade domiciliar,
ou pela família, ou aquela que assim for considerada pelos demais membros da família” (IBGE, 2010).
2
De acordo com o artigo 40-A da LOAS, os benefícios monetários referentes a provisões suplementares e
provisórias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade
pública, transferência de renda vislumbrando a erradicação do trabalho infantil e subsídios de enfrentamento
à pobreza, respectivamente dispostos nos artigos 22, 24-C e 25 desta Lei, serão pagos preferencialmente à
mulher responsável pela unidade familiar.
3
O termo “questão social” se refere ao conjunto das expressões das desigualdades sociais forjadas na
sociedade capitalista madura (Iamamoto, 2001).
16
reforçar o modelo cultural que, quase exclusivamente, atribui a elas o papel de cuidado
com o ambiente doméstico e com os membros familiares (Teixeira, 2013, como citada em
compreender o que está por trás do artigo 40-A da LOAS, mencionado no começo desta
introdução. O artigo diz que “os benefícios monetários [...] serão pagos preferencialmente
à mulher responsável pela unidade familiar quando cabível” (Brasil, 1993). Entender que
seu texto versa somente sobre a prioridade para receber qualquer transferência de renda
Apesar de exercerem uma função tão relevante, aparentemente o fato das mulheres
estarem na linha de frente da proteção social não lhes garante outros tipos de proteção. Por
exemplo, no quesito da política de assistência social, ser responsável pela família gera mais
ônus que bônus, uma vez que tal política centraliza suas concepções e serviços na família,
invisibilização das intempéries vividas pelas mulheres no contexto familiar, são manifestos
necessidades, por exemplo) quanto no micro, no caso, representado através dos discursos
das mulheres atendidas pelo CRAS a que se refere esta pesquisa. Ao passo que elas
buscavam o equipamento para tratar de alguma questão familiar, percebia-se que, nos
gênero e/ou violência doméstica, tendo, em sua maioria, o companheiro como autor4.
últimos anos, com destaque para a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Considerada um
marco importante no combate à violência contra a mulher no Brasil, a partir da Lei Maria
da Penha a violência doméstica passou a ser tipificada como uma violação dos direitos
dos profissionais no sentido de uma assistência que seja compartilhada e acordada entre os
atores envolvidos a partir das necessidades particulares de cada caso” (Aguiar, D'Oliveira
& Schraiber, 2020, p. 3). O trabalho em rede também se refere à oferta de atenção integral,
com posturas afinadas no tratamento à usuária, buscando não fazer julgamento moral ou
revitimizar a mulher que já sofreu violência, isso em todos os serviços pelos quais ela
possa passar. O CRAS está dentre os equipamentos que compõem essa rede.
4
Esses relatos são compatíveis com a realidade mundial. Em 2013, um estudo realizado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) apontou que aproximadamente uma a cada três mulheres do mundo (35,6%) é
vítima de violência física e/ou sexual perpetrada em sua maioria por seus parceiros.
18
Combate à Fome, o CRAS é uma unidade de proteção social básica do SUAS e, por isso,
mulher, não estar no rol do seu campo de atuação, o fato do CRAS comumente ser
qual recorrer, seja no campo da proteção básica ou até mesmo quando a violação de
órgãos competentes, mas não trabalhar diretamente com violações não significa que essa
violência contra a mulher ainda ocupa um lugar naturalizado, fazendo parte dos discursos
dos sujeitos e se refletindo nos dados sobre violência. Quando se observam os índices
(OMS, 2013; IPEA & FBSP, 2020), percebe-se que os números continuam alarmantes e
que as vivências de violência das mulheres usuárias do CRAS não são exclusivas do
Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), traz
período de referência é de 2008 a 2018. Tal documento aponta que em 2018 uma mulher
foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Tal montante
representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil brasileiras (IPEA & FBSP, 2020).
período mais longo no tempo possibilita perceber um aumento nas taxas de homicídios de
mulheres no Brasil e em diversas unidades federativas. Entre 2008 e 2018, o Brasil teve
número de homicídios femininos tenha apresentado redução de 8,4% entre 2017 e 2018, ao
avaliar o contexto dos dez anos em questão, percebe-se que a situação melhorou apenas
para as mulheres não negras, acentuando-se ainda mais a desigualdade racial. Entre 2008 e
2018, a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, ao passo que a taxa entre
torna vítima fatal muitas vezes já foi vítima de outras violências, como violência física,
patrimonial, psicológica ou sexual. Além disso, vale ressaltar que cada um desses tipos de
violência não ocorre isoladamente (Saffioti, 2004). Em geral, as formas de violência vão
sendo somadas umas às outras conforme aumenta a gravidade da agressão, de modo que,
presente.
Com o destaque na mídia e nos dados, a morte de uma mulher por feminicídio5 se
torna pública, visível. É a ponta do iceberg. Contudo, tantos outros tipos de violência se
mantêm dentro das famílias, entre quatro paredes, nas instituições, sem serem notificadas -
5
De acordo com a Lei nº 13.104, de 2015, feminicídio foi tipificado como homicídio de mulheres em
contexto de violência doméstica ou em decorrência do menosprezo ou discriminação à condição de mulher
(Brasil, 2015).
20
vale lembrar que a maior parte desse bloco de gelo (fazendo uso da metáfora do iceberg
com a violência contra mulher, de modo geral) é a parte submersa. Como já mencionado,
antes de se tornar vítima fatal, a mulher que morre por feminicídio muito provavelmente já
Nessa altura, é importante ressaltar que o relato aqui feito tem por base - para além
metáfora do iceberg tem materialidade e, por vezes, foi observada nas falas das usuárias -
havia uma subnotificação das violências sofridas. Apesar de haver em seus discursos e
corpos marcas de dor, as mulheres quase sempre relatam uma espécie de resignação diante
desse sofrimento. Muitas delas, em sua submissão, sofriam de um calar-se crônico, seja em
Sobre isso, Ferrari e Vecina (2002, como citado em Santos & Moré, 2011) apontam
que o silêncio de mulheres que sofrem violência doméstica por vezes surge como uma
forma de proteção diante do temor de que um ato violento mais grave ocorra contra elas.
si própria (essas questões serão abordadas nos capítulos posteriores), oferece à mulher um
cenário em que se subordinar às regras do parceiro, ceder e suportar são, por vezes, as
alternativas possíveis.
vista familiar, a presença da violência contra a mulher não se apresentava de forma inédita
notava-se que tal violência contra a mulher se configurava como parte da dinâmica
familiar, apresentando-se como uma forma de lidar com conflitos, e familiares e que esse
violência por parte do companheiro, que por sua vez também violenta a filha que, além do
pai, sofre violência por parte dos irmãos. Quando esta, na condição de jovem/adolescente6,
inicia um relacionamento amoroso e sai de casa para constituir família própria (sair de
casa, por vezes, se apresenta como uma alternativa à opressão) é aconselhada pela mãe
sobre como deve se comportar, no sentido de tolerar as agressões que pudessem ser a ela
casa e início da família própria - nesse estágio, a adolescente deixa de ocupar o lugar de
filha para ser "mulher", a esposa, dona de casa; 3) evasão escolar, tendo em vista que, para
exercer com excelência o seu novo papel, é preciso eleger prioridades e a escola, no caso, é
trabalhar devido aos cuidados com a casa, com o companheiro, e os/as filho/a(s), bem
6
Nesse território, permeado pelo contexto de violência, tráfico de drogas e diversas outras vulnerabilidades, é
comum observar relacionamentos amorosos heterossexuais entre meninas de, em média, 14 anos e jovens
adultos.
7
Esses elementos fazem parte do observado no cotidiano profissional em um CRAS.
22
2019).
história de vida da filha, que acabou de sair de casa, não se apresenta de forma muito
em geração e tem seu lugar legitimado no seio familiar. Ademais, é uma evidência do
quanto a violência contra a mulher exercida por seu companheiro transcende os limites da
relação existente entre os dois (Santos & Moré, 2011), bem como o quanto uma história
repetição do modelo em seus próprios relacionamentos nas gerações seguintes (Narvaz &
cuidados com o marido e com a casa, deixando livre para o homem o espaço público, o
66).
espaço doméstico não conseguem escapar da regulação política, no caso, determinada pelo
patriarcado (Preciado, 2008). Ter o sexo feminino, por si só, já se torna uma condição para
acordo com Lauretis (1994), é um processo pelo qual uma representação social é aceita e
absorvida por uma pessoa como sua própria representação, de modo a tornar-se real para
ambiente familiar, que tem por base uma relação de dominação-subordinação, está
para que mulheres ressignifiquem situações em que são assujeitadas por essas estruturas.
De acordo com a leitura aqui feita e com a perspectiva adotada, é impossível pensar numa
total ruptura desses padrões de relações numa sociedade capitalista, patriarcal e racista.
Romper com essas estruturas é o mesmo que pensar em outro modelo de sociabilidade, é
pessoas.
inclusive entre as distintas categorias de sexo (Saffioti, 1987) e que é nesse modo de
24
sociabilidade em que se está inscrito atualmente, após dois anos ouvindo e intervindo em
busca por essa compreensão, foi-se definindo o questionamento que guiou a construção
dessa pesquisa: Como (ou se) as mulheres percebem que suas particularidades, seu
A partir dessa indagação, a presente pesquisa teve inicialmente como objetivo geral
pesquisa e de intervenção social. Em seu livro Raízes e Asas, Bárbara Santos (2016, p.
123) afirma que o Teatro do Oprimido é um “método que estimula o diálogo, através da
intervenção direta na ação teatral, com vistas à análise e à compreensão da estrutura social
representada e a busca de meios concretos para ações efetivas que levem à transformação
coletivamente a opressão vivenciada pelas mulheres para, daí, repensar o seu cotidiano e
Visando garantir a biossegurança, o campo desta pesquisa foi sendo adiado, com a
esperança de que a campanha de vacinação avançasse o suficiente para conferir uma maior
participantes, seria possível cogitar, não sem adaptações, o início das atividades de campo.
A pesquisa, que antes tinha como centralidade a perspectiva das mulheres acerca do
fenômeno da violência de gênero, passou a ter como objeto a metodologia que se usaria
para acessar tal perspectiva. A partir do novo direcionamento, o estudo se voltou para o
planejamento das oficinas com as mulheres, incluindo a escolha dos jogos, objetivos de
social seja avaliada por mulheres experientes no método do Teatro do Oprimido. Assim, é
possível a posteriori construir um documento que possa servir como guia, inspiração, para
passo que os objetivos específicos são avaliar uma proposta metodológica de trabalho com
26
com TO.
gênero, raça e classe e Vivência, mulheres e Teatro do Oprimido. O terceiro trata dos
caminho material e histórico a se debruçar para que possa ser melhor compreendido e,
assim, combatido.
como será também a prole por vir. A mulher não é reconhecida como sujeita de direitos e é
se limita somente às mulheres inseridas em relações matrimoniais. Ainda que não seja
casada, a mulher continua sendo “coisificada”, uma vez que homens não casados podem
usufruir do “bem” feminino via prostituição. Nesse sentido, a “propriedade mulher” é vista
8
De acumulação primitiva é chamado o processo de expropriação da terra do campesinato europeu e a
formação do trabalhador independente “livre”. Com isso, surgiram condições estruturais para o
desenvolvimento de relações capitalistas (Federici, 2017).
28
autor levanta uma análise que nega os enfoques essencialistas sobre a dominação
destaca as variações entre as relações até que se chegasse à família patriarcal monogâmica.
Dentre as contribuições da obra, está a apresentação relevante do lugar social das mulheres
não como uma expressão da natureza feminina inata, mas como produto da relação
modo de relação seria o predomínio do homem, de modo que fossem procriados filhos cuja
deu com a opressão do feminino pelo masculino e que a primeira divisão de trabalho entre
homens e mulheres foi a que se fez para a procriação dos filhos. Assim, ao passo que a
homem sobre o sexo feminino, as mulheres perdem o controle sobre o trabalho e se tornam
economicamente dependentes do homem. Isso se dá, não por uma essência masculina
libertação feminina também fosse algo a se extinguir, seja no âmbito público, como nas
fábricas, ou no âmbito privado, nos lares. A igualdade entre homens e mulheres era vista
Sobre isso, em seu livro A nova mulher a moral sexual (2011), Alexandra Kolontai
direitos, com o protesto contra toda servidão, com o serviço à coletividade e à sua classe.
Por essa razão, a pauta da libertação feminina foi desde cedo introduzida nas leis na
recaía de forma mais dura sob as mulheres (Goldman, 2014). Ao passo que o fenômeno da
industrialização forçava as mulheres a trabalharem nas fábricas por um salário, elas ainda
eram responsáveis pelo trabalho doméstico, essencial para a família. O conflito entre as
Sob a ótica dos bolcheviques, essa contradição iria se resolver com o socialismo,
uma vez que sob esse regime o trabalho doméstico seria transferido para esfera pública
cuidado, escolas públicas, refeitórios e lavanderias comunitárias). Deste modo, livres das
30
forma que os homens, teriam acesso à educação e a salários também de forma igualitária
(Goldman, 2014).
condições para buscar seu próprio desenvolvimento e objetivos pessoais. Assim, o ganho
feminino foi de uma nova cidadania econômica, associada à maior participação na política
da comunidade (Goldman, 2014), o que permite o nascimento dessa nova mulher, como diz
Kolontai, plena de virtudes como firmeza, decisão e energia, livre e independente, que
Diante desse breve apanhado das primeiras teorias marxistas sobre o lugar da
mulheres. Contudo, Silvia Federici (2017) considera que ainda não foram suficientes para
Na análise feita em seu livro Calibã e a bruxa (2017), a autora defende que dar
personagem que entra em cena, mas de um novo olhar sob a acumulação primitiva para
sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das
corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção
de novos trabalhadores.
A autora afirma que Marx repensaria a ideia de que o capitalismo seria um passo
necessário no processo de libertação humana se tivesse analisado sua história sob a ótica
feminina. Sobre isso, ela diz que “mesmo quando os homens alcançaram certo grau de
liberdade formal, as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores,
contradições presentes em suas relações sociais, ele difama aqueles a quem explora, isto é,
classes (Cisne & Santos, 2018). Assim, através dessa rede de desigualdades construída no
corpo do proletariado, o capitalismo garante a sua reprodução e afasta cada vez mais a
de gênero. No entanto, as atividades executadas pelas mulheres não eram percebidas como
homens (Davis, 2016). Conforme foi aumentando o grau de desenvolvimento das forças
Um bom exemplo para ilustrar essa transição foi o que aconteceu na Europa em
meados do século XVI. Na época, o trabalho no feudo era organizado com base na
subsistência e a família tinha o status de unidade econômica. Isso permitia que a atividade
trabalho fosse desempenhada pelas mulheres de classe subalterna, de modo que não
seja, a divisão sexual do trabalho era menos evidente. Vale frisar que isso não significava
(Saffioti, 2013).
entre casa e ambiente de trabalho. A unidade que anteriormente existia entre produção -
Com a diferenciação sexual dos trabalhos, eles passaram a ser valorados de forma
distinta. Sobre isso, Federici (2017) aponta que, no novo regime monetário, somente a
produção-para-o-mercado estava definida como atividade criadora de valor. Por não gerar
lucro, o trabalho doméstico foi definido como uma forma inferior de trabalho, passando a
ser considerado algo sem valor do ponto de vista econômico (Davis, 2016).
femininas e quaisquer coisas às mulheres relacionadas foram cada vez mais subvalorizadas
a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe
trabalhadora” (2019, p. 42). Desde a ideologia burguesa do século XIX, ele tem sido
como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado” (Federici, 2019, p. 43).
inevitável e que traz plenitude às mulheres - um ato de amor - o capital obteve uma grande
quantidade de trabalho de graça, ao passo que disciplinou tanto a mulher, para acreditar
que esse trabalho é próprio e legítimo seu, quanto o homem trabalhador, que se apropria
dessa mulher ao lhe ser oferecida como uma criada que vá servir física, emocional e
34
por criar os filhos, cozinhar, limpar, costurar - o trabalho penoso e essencial para a família,
elas se veriam livres para ingressar na vida pública em condições de igualdade com os
cuidado feminino com o mundo privado e a concessão do mundo público aos homens têm
Ademais, tal cisão legitimou a exploração exacerbada das mulheres que ocupavam
postos de trabalho. Uma vez que estavam fora de sua esfera “natural”, não eram
(Haider, 2019). Sexo e raça operam como válvulas de escape para simuladamente aliviar
tensões sociais geradas pelo modo capitalista de produção. Com o desvio da atenção da
trabalho de uma mesma classe, a classe trabalhadora (Cisne & Santos, 2018).
não. A divisão sexual do trabalho (e racial - como será discutido no tópico posterior) tem
“estruturas que são ativadas pela responsabilização desigual de umas e outros pelo trabalho
doméstico, definindo condições favoráveis à sua reprodução” (Biroli, 2018, p. 44). Essas
36
em termos de classe e raça. As formas como se dão as relações de trabalho “podem ser
marcadas por hierarquias e formas de exploração entre grupos bastante desiguais no acesso
humanidade.
classe, fica bastante evidente como a acumulação primitiva se apropriou das questões de
raça - via o tráfico de negros escravizados - para impulsionar seu desenvolvimento. Não
que questões de raça não estivessem presentes na Europa - afinal de contas a riqueza dos
caso dos territórios colonizados, o povo negro foi/é pedra fundamental para sua construção,
no país, o retrato da mulher burguesa não foi destoante ao desenhado na Europa. Nas
trabalho produtivo. Seu papel era ser guardiã do lar e da família, considerada base moral da
9
A partir de uma concepção binária de gênero, que preza que “sempre existirá e se admitirá um polo que será
desvalorizado, designado como minoria que, apesar de ser diferente ou desviante, poderá ser "tolerado" pela
sociedade” (Souza & Carrieri, 2010, p. 54).
37
No entanto, apesar desse papel ter sido concreto na vida de muitas mulheres, não é
possível generalizá-lo, como se tivesse acontecido assim para todas. Desde o Brasil
crença do que cada classe social e o que cada raça “poderiam” oferecer. Maiores as
condições econômicas das mulheres e mais clara sua pele, mais fortemente a divisão sexual
e racial do trabalho se evidenciava. Do outro lado, quanto mais pobre e negra, menor o seu
brancas de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar (eram treinadas
para exercer o papel de mãe e para executar as tarefas domésticas), às pobres não lhes
restava outra escolha que não procurar garantir seu sustento, seja via lavagem de roupa,
costura, trabalho na roça, inclusive fazendo neste último contexto todo o trabalho
Essa flexibilidade de gênero na divisão do trabalho era mais evidente ainda dentre
as mulheres negras. Na época, escravizadas, elas eram usadas por seus senhores para
executar quaisquer outras atividades que lhes fossem convenientes, fosse na categoria de
seja, as mulheres negras poderiam ser dirigidas para a sustentação econômica do regime,
trabalhando nas lavouras, por exemplo, ou para a prestação de serviços, exercendo funções
(Falci, 2018).
10
Para os padrões da época em que o ideal de mulher imposto pela burguesia era a esposa economicamente
dependente e responsável pelo espaço doméstico.
38
Uma vez que sofriam uma dura igualdade sexual no trabalho, as mulheres negras
brancas “donas de casa”. Isso, contudo, não as livrava da responsabilização pelo trabalho
mulheres negras ainda cabia o cuidado dos próprios filhos, bem como a assistência aos
companheiros, assumindo a tarefa de doação de força moral aos homens que chegavam das
Enquanto que as mulheres brancas burguesas tiveram como foco central de suas
hoje, uma vez que a realidade de outrora ainda apresenta semelhanças em relação à
Apesar das mudanças pelas quais passou a estrutura social do Brasil desde o fim do
de que o fim da escravidão não trouxe grandes alterações à vida da mulher negra. Beatriz
Nascimento (2019) aponta que a mulher negra é o elemento que expressa mais
11
Sobre isso, ver o discurso “Não sou uma mulher?” de Sojourner Truth, pronunciado em 1851 na
Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, Estados Unidos.
39
forma maciça na sociedade brasileira o cenário de uma mulher negra trabalhando na casa
ainda que lidar com a dupla jornada de trabalho, com o preparo mínimo de refeições para
os familiares, lavar, passar, cuidar dos filhos... Como disse Lélia Gonzalez, “parece que a
gente não chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele” (p.
85, 2020).
ascensão social da população negra. O racismo, bem como o sexismo, tornou-se parte da
A parte mais ardilosa disso é que, por existir em nível estrutural, ideológico, a reprodução
de uma divisão racial e/ou sexual do trabalho pode ser explicada sem que se apele para o
deparar com o exemplo anteriormente mencionado, isto é, uma mulher negra trabalhando
sociedade escravista brasileira permanecem até os dias atuais e “são justificados em nome
12
Com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, passam a coexistir três processos qualitativamente
distintos de acumulação. A articulação entre capital comercial, capital industrial competitivo e capital
industrial monopolista é um demonstrativo de um desenvolvimento econômico desigual e dependente, que
mescla e integra diferentes momentos históricos. Esse processo afetou diretamente a população negra
brasileira, tendo em vista que com o fim da escravidão constituiu-se no país não somente um exército
industrial de reserva, mas uma massa marginal crescente (Gonzalez, 2020).
40
de cada um deles (Cisne & Santos, 2018). Não se pode dizer que a vida de uma mulher
branca é semelhante a de uma mulher negra, ou que as dificuldades pelas quais passa uma
mulher burguesa são compatíveis com as que passa uma mulher da classe trabalhadora - a
diferença é ainda maior se esta for negra. Nesse sentido, dissociar gênero, raça e classe na
6,93% para os homens (Neri, 2020). A pesquisa aponta que a retirada da mulher do
intensamente, durante a pandemia. Mais que nunca ela é responsabilizada pelo cuidado dos
pais, dos filhos, sobretudo com as escolas fechadas. É evidente que a crise sanitária
13
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021), a diferença entre a taxa de
desemprego entre brancos e pretos atingiu o pior nível desde 2012. Na época, havia no Brasil 7,6 milhões de
pessoas desocupadas. Dentre entre elas, 48,9% eram pardos, 40,2%, brancos e 10,2%, negros. Em 2021, o
número de desocupados quase dobrou, chegando a 14,8 milhões de brasileiros. No critério de raça, o
montante está distribuído em 50,9% de pardos, 36,3%, brancos e 12,2% de negros (IBGE, 2021).
41
aqueles que se mantêm trabalhando se expõem mais ao vírus, ao passo que a outra parcela,
das taxas de desemprego15. Vale lembrar que a primeira vítima do vírus no Brasil foi uma
atual crise sanitária, é evidente que a força de trabalho negra permanece confinada em
prestação de serviços domésticos para famílias das classes média e alta. Deixou de ser a
mucama para se tornar a empregada doméstica. Ela permanece, então, objeto de tripla
discriminação (o nó imbricado de gênero, raça e classe) e por isso ocupa o nível mais alto
de opressão.
A historiadora estadunidense Joan Scott foi uma das pioneiras nos estudos
feministas de gênero e muito contribuiu para a discussão da temática. Ela aponta que o
termo gênero teve sua aparição inicial entre as feministas americanas com o objetivo de dar
14
Medida mundialmente adotada para conter a proliferação do coronavírus.
15
O fenômeno do aumento do desemprego entre negros é explicado pelo fato de que a pandemia atingiu
principalmente as atividades com maior participação da população negra, como comércio, trabalho
doméstico, serviços e construção civil, sem mencionar o setor informal, que é composto majoritariamente por
pessoas negras.
42
destaque ao caráter social das distinções baseadas no sexo (Scott, 1995). O termo nasceu
e como uma forma de indicar “construções culturais”, concebendo gênero como “a criação
inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres” (Scott,
1995, p. 75).
feminista marxista, trata o conceito de gênero como o que diz respeito às imagens
construídas pela sociedade acerca do que é masculino e do que é feminino, estando esses
padrões inter-relacionados - gênero é uma categoria relacional e, por essa razão, só faz
sentido em relação com o outro. Assim, amplia-se para as relações estabelecidas entre
necessariamente que essas relações deverão se dar de forma desigual. Gênero não versa
sobre como as relações sociais são construídas, como elas funcionam ou como elas
poder, tampouco aponta a parte oprimida. Falar sobre gênero é falar sobre identidades e,
Destarte, as práticas sociais de mulheres podem ser diferentes das dos homens, da
mesma maneira que, biologicamente, elas são diferentes deles. No entanto, o que se
observa socialmente nas relações entre homens e mulheres não é fruto somente da
diferença, mas também da desigualdade. Sobre um corpo sexual é imposta uma categoria
social que se coloca de maneira desigual. Com isso, busca-se trazer o debate de gênero
para o campo do social (Quirino, 2015), compreendendo essa categoria também em seus
dialogar. Enquanto Scott parte da perspectiva pós-estruturalista, que concebe gênero como
símbolos das identidades masculina e feminina (Araújo, 2000), para a perspectiva marxista
dessa opressão como um processo gerado nas e pelas relações sociais, em contextos
que defendem que a mulheres sejam, por natureza, inferiores, e os homens, opressores, são
simbólicas são definidoras dos papéis sociais exercidos por homens e mulheres (Saffioti,
2013).
manifestações (Araújo, 2000). Sendo assim, não é suficiente tratar somente da categoria
sujeito é atravessado por outras determinações, como raça e classe, de modo que as
desigualdades de poder são resultado das organizações desses três eixos - o nó imbricado,
(Cisne & Araújo, 2018) e levando em conta que a organização social de gênero da
de discussão acerca ordem patriarcal de gênero, que justifica esse privilégio masculino
(Saffioti, 2004).
considerado e identificado como feminino” (Cisne & Santos, 2018, p. 43). A partir dessa
lógica, o patriarcado dita a construção social dos sexos, associando o feminino ao que é
Enquanto que gênero é constitutivo das relações sociais, na fase histórica da ordem
observada desde a inserção das mulheres na estrutura social (Saffioti, 2004). Há muito a
violência faz parte da socialização entre homens e mulheres e, sustentada ainda pela ordem
Esse contexto afirma o que discute Biroli (2018) sobre a baixa efetividade dos
fundamentais, como o direito à integridade física, quando se trata de mulheres. Não se trata
de um “desvio” na universalização dos direitos, de algo legitimado, mas sim de uma ordem
leis e regras são as mesmas no aspecto formal, porém, concretamente, nas relações
A garantia ou negação dos direitos incide sobre mulheres e homens em conjunto com sua
posição de classe e com o racismo estrutural. Dessa forma, observa-se uma conformação
trabalho e pelas opressões de um grupo ou classe sobre outro (Cisne & Santos, 2018).
Angela Davis (2018), em seu livro Estarão as prisões obsoletas? traz um exemplo
em meados do século XIX, nos Estados Unidos, surgiram os primeiros reformatórios para
mesmo modo. Quando nos reformatórios, as mulheres negras eram separadas das brancas e
eram submetidas às mesmas crueldades destinadas aos prisioneiros homens. Não tinham a
final das contas, esse incentivo ao exercício do papel de gênero “apropriado”, com
reintegrar as criminosas nos papéis de esposa e mãe, na realidade era pautado por uma base
e reproduzir a violência.
47
realidade dessas mulheres foram o fio condutor que provocou uma inquietação a respeito
perejivânie, cuja tradução para o português não encontra palavra equivalente. A tradutora e
estudiosa da obra de Vigostki, Teresa Prout (1935, como citado em Toassa, 2011, p. 758),
comenta que perejivânie “serviria para expressar a ideia de que uma situação objetiva pode
Isto é, dada situação social, composta pelos mesmos eventos, influencia os sujeitos de
vários modos (Toassa, 2011). Vivência fala de uma atitude individual em relação a uma
que o social não está presente apenas no âmbito externo, no que é coletivo. Sobre isso,
Veresov (2016) levanta a discussão de que o social se encontra também onde há uma única
pessoa com sua vivência individual, uma vez que é a partir dele (do social), de seu
acontece pela postura ativa do sujeito diante da vivência e é mediada pelo que acontece no
Para a teoria marxiana, é através da atividade social que o meio se constitui e este
meio, por sua vez, oferece condições objetivas e subjetivas para a realização da forma
e se refere à existência única e irrepetível dos indivíduos (Pasqualini & Martins, 2015).
ser algo concreto. Contudo, para a tradição marxista a singularidade diz mais de uma
parece nos revelar o fenômeno concreto, mas na verdade [...] o concreto só pode ser
pensamento da seguinte forma: tem-se o empírico como ponto de partida, passa-se pelo
abstrato, chega-se ao concreto e então, ao concreto pensado. Por fim, de modo a finalizar a
fenômeno empírico poderia ser, por exemplo, o fato de uma mulher sofrer violência física
por parte do companheiro. Tem-se uma singularidade (a mulher em questão tem uma
vivência única), no entanto o exercício proposto é não reduzi-la a tanto, de modo a incorrer
na fetichização da individualidade singular. Para isso, é preciso refletir: o que mais se pode
49
saber sobre essa mulher, de modo mais amplo? Que leis gerais determinam e regulam a
constituem?
histórico e de suas condições objetivas de vida que permitam romper o véu da aparência e
situações vividas pelas mulheres geram impressões e sensações que dão o tom da vivência
raça e classe - são mulheres em sua maioria pretas, com condições socioeconômicas
capitalista.
Nesse sentido, o método do Teatro do Oprimido (TO) não poderia estar mais
mecanismos pelos quais uma opressão surge, levando em conta a história singular do
sujeito, mas sem restringir-se a ela. É preciso compreender os motivos que geram o
50
conflito escolhido para ser encenado. Para tanto, faz-se imprescindível ampliar o olhar para
individuais e coletivas.
"todo mundo pode fazer teatro - até mesmo os atores" procura mostrar a semelhança
existente entre todos os seres humanos, ainda que não idênticos entre si, e sua capacidade
de executar qualquer atividade. Para Boal (1991), negar isso significava manter o status
quo de uma sociedade que, por meio da constante especialização das tarefas, privilegia
uma minoria. Alguns irão ao palco, outros irão assistir, receptiva e passivamente. No palco,
haverá ainda mais divisões: enquanto uns poucos atores serão os protagonistas, os demais
serão coadjuvantes.
em que poucos têm voz e destaque, enquanto muitos seguem dando o suporte para o
desenrolar de uma história que não é exatamente a sua própria. É interessante perceber
discutidas. Alguns irão trabalhar, outras ficarão em casa. Alguns representarão a autoridade
sociedade, o Teatro do Oprimido nasceu com o objetivo de que povo reassumisse sua
função protagônica através do teatro para, então, se preparar para a atuação fora dele. O
TO visa fortalecer grupos de oprimidos e oprimidas para a luta pela conquista de direitos e
felicidade (Santos, 2016). No entanto, isso não significa que a prática desse método esteja
Sobre isso, Bárbara Santos (2016, p. 194) diz que “é fundamental que a questão
comportamentos que, na cena, aparecem como individuais”. A autora discute ainda que a
encenação de fato diz respeito a uma situação particular da vida de alguém. Contudo, é
preciso ir além do singular. Tal especificidade deve remeter aos fatores sociais que
constroem tal situação e que demonstram que ela não é única e exclusiva da vida de um
segue afirmando que “cada um de nós é um. Somos únicos. Particulares. Singulares.
52
e estéticas… Todos esses elementos são construídos nas experiências sociais, geográfica e
indiretas, passadas, presentes e com possibilidades futuras, compõe o contexto social que
uma montagem de cena, o percurso deve se iniciar no caso particular e seguir em direção
ao contexto social que insere e evidencia esse fato concreto. Para o Teatro do Oprimido,
esse caminho se chama ascese17 e quer dizer “a necessária subida investigativa do micro, o
caso particular, até o macro, o contexto social” (Santos, 2016, p. 199). Trata-se de um meio
concretos para ações efetivas que levem à transformação da realidade (Santos, 2016).
Percebe-se, então, o Teatro do Oprimido como uma expressão artística que deve se
entre arte e política e tem a opressão como conceito central para o desenvolvimento do
intervenção estético-sócio-político que se refira a uma opressão. Não se tem como falar de
1991). Trata-se de um método constituído por dois conceitos básicos: 1) o(a) espectador(a)
importante ainda, à preparação para o futuro. Com isso, essa forma de se fazer teatro não
só traz à tona a reflexão acerca de uma opressão vivida, como prepara os sujeitos,
munindo-os para as diversas facetas que tal opressão pode vir a apresentar (Boal, 1991).
e é representado pela figura de uma árvore, com suas raízes, tronco, galhos e frutos, cada
elemento com um significado. Trata-se de uma metáfora interessante para falar sobre um
[...] Como “ser vivo” que é, o Método segue em constante interação com meio,
teatrais, revelar os interesses por trás das notícias e redesenhar a imagem do real; com o
de uma técnica teatral que proporcione a destruição da barreira entre palco e plateia e a
especificidades das opressões das mulheres pudessem ser debatidas. É uma versão
situação em que o(a) protagonista é alguém que deseja algo e não consegue realizar seu
assistem e são informados que a cena será refeita e que, desta vez, é possível que eles(as)
são convidados(as) a entrar em cena pelo(a) curinga (uma espécie de mestre de cerimônia
do TF) e, teatralmente, pela via da ação, buscar estratégias para encontrar uma possível
solução para o problema apresentado. Para tanto, eles(as) terão que ter algum tipo de
identificação com o(a) protagonista, seja ela uma identificação absoluta, por analogia, ou
como resultado final. No entanto, destaca-se aqui que o objetivo do TF não é ganhar. Para
esse jogo/luta, mais importante do que chegar a uma boa solução é chegar a um bom
debate. Sobre isso, Boal diz que “o debate, o conflito de ideias, a dialética, a argumentação
55
agir na vida real” (2009, p. 345). O fórum tem por objetivo permitir a aprendizagem e o
exercício. “Os espect-atores, pondo em cena suas ideias, exercitam-se para a ação na vida
O Teatro-Fórum é uma das etapas planejadas para a oficina avaliada por esta
pesquisa. De modo geral, a oficina foi planejada para acontecer em três etapas. A primeira
participantes. Cada um deles mediado por jogos do arsenal do Teatro do Oprimido que
Diante do produto dos jogos sobre o que simboliza para essas mulheres uma
criativo em que o fruto seja uma esquete19 de Teatro-Fórum, tratando da temática por elas
eleita como mais representativa de sua realidade. A proposta é que tanto a criação quanto a
encenação da esquete sejam feitas pelas próprias mulheres. Isso se justifica pelo fato de
pelas pessoas que têm desejo e necessidade de transformar a realidade que vivem e
encenam, a partir de sua perspectiva do problema e de seu lugar social diante dele”
A esquete, apesar de criada com base nas vivências de cada uma do grupo, não
tratará especificamente da história de vida de uma participante. Será uma criação coletiva
de inspiração no compilado dessas experiências, uma vez que, como já discutido, o TO não
18
No apêndice está o planejamento detalhado.
19
No teatro, rádio e televisão, o termo esquete designa peça de curta duração e poucos(as) atores/atrizes.
56
Pretende-se que essa esquete seja apresentada no CRAS para somente convidados e
convidadas do grupo. Tornar o público seleto a partir do convite das próprias participantes
suas regras antes do início da apresentação. Dentre essas regras está o combinado com o
Mesmo diante desses cuidados e com a ciência de que o caso apresentado é fictício,
inspirado na realidade, caso aconteça alguma situação que ultrapasse o limite do diálogo e
diversas rupturas nos discursos e práticas hegemônicas. Desse modo, o Teatro do Oprimido
individuais e coletivas, mediada pelo método do TO, pode se transformar em estímulo para
mulheres do SCFV, a sessão de Teatro-Fórum e a terceira etapa, que será executada através
de uma roda de conversa com as mulheres e a comunidade após o fórum. Esta última fase
57
visa acolher e debater sobre o que pode emergir durante a apresentação. Ademais, haverá
um encontro final somente com as participantes do grupo para avaliar o processo completo.
apresentado. Todo o processo, cada etapa vivenciada tem sua importância. Por isso,
intervenção social em casos de violência contra a mulher, o primeiro passo dado foi fazer
uma pessoa compatível com os dados necessários, a proposta do estudo foi apresentada e o
Tal método de construção de amostra se chama bola de neve. Por meio dele a
amostragem por saturação é uma ferramenta conceitual que pode ser utilizada em
Por sinal, a proposta da pesquisa era que a construção dos dados ocorresse em duas
questões de gênero e foi pensada tendo como público alvo mulheres usuárias da política de
20
Todas autorizaram o uso de seus nomes reais nesta dissertação.
59
assistência social a nível municipal, mais especificamente mulheres que atendidas por
suas vidas, o interesse por investigar esse fenômeno surgiu de forma imperiosa. O Teatro
do Oprimido se juntou a esse desejo por ser um método criativo, fundamentado a partir da
histórias do coletivo.
Além disso, por meio do TO seria possível descobrir táticas e estratégias para evitar
e/ou superar essas opressões, gerar rupturas nos discursos e práticas hegemônicas que tanto
oprimem e violentam as mulheres. Trata-se uma busca por estimular a atuação cidadã com
esquete. Essa pequena cena deverá representar a opressão escolhida pelas participantes e o
seu final precisa ser de fracasso. A opressão precisa acontecer. A proposta é que a esquete
Oprimido. Sua metodologia permite que a barreira entre palco e plateia seja destruída e que
o diálogo direto seja implementado. A cena criada pelo grupo de mulheres seria
apresentada para seus convidados e suas convidadas e ao final o público seria convidado a
pensar em como mudar o final da história contada, como romper a opressão encenada. A
cena se repetiria, mas dessa vez, ao público seria possível entrar em cena e intervir no lugar
fechamento e avaliação. Nesse momento, a ideia é ouvir das mulheres participantes como
O planejamento foi enviado por e-mail para todas as participantes, com expectativa
de retorno tanto na forma digital quanto por meio do diálogo direto durante o momento da
vivo. Nesse documento havia o detalhamento de cada encontro, objetivos de cada dia,
escolha dos jogos, além de uma breve avaliação ao final, com perguntas semi estruturadas.
pressupostos do TO; a escolha dos jogos e a conexão entre eles; a adequação dos objetivos
dos jogos, tempo de duração de cada encontro. Ademais, havia um espaço livre para tecer
final.
61
mesmo ele corrigido e/ou avaliado, não significa dizer que ele não possa ser alterado, que é
“ideal”, “adequado”. É relevante ter em mente que um planejamento de oficina de TO, seja
o feito para esta pesquisa ou qualquer outro, é uma ideia inicial apenas. Pode e deve ser
jogos escolhidos são caminhos para pensar o processo de criação e discussão da temática,
Entende-se o processo como algo fluido, dinâmico. Os jogos e exercícios vão se colocando
desta pesquisa, ele nada mais é que um guia - passível de sofrer alterações - para se debater
entre si uma agenda bastante cheia, o que limitou o tempo que puderam conceder à
entrevista, ainda que não voltado diretamente para a intervenção, contribuiu de forma
fato de todas, sem exceção, terem introduzido um aspecto bastante relevante para o
Tal acontecimento faz lembrar uma citação de Lévy-Strauss que destaca o quanto o
campo pode ser transformador à medida que o pesquisador compreende sua própria
62
e nutriz de toda dúvida (...) antropológica que consiste em se saber que nada se sabe, mas,
também em expor o que se pensava saber, às pessoas que [no campo] podem contradizer
com TO. No entanto, ela ultrapassou essas pretensões ao destacar uma nova metodologia
de trabalho feito por mulheres e para mulheres - o Teatro das Oprimidas, que se mostrou
Tendo em vista que chegar a esses (e outros) resultados só seria possível através de
uma matéria prima composta por substantivos como experiência, vivência, senso comum e
ação, conclui-se que este estudo apresenta um caráter qualitativo. Minayo (2012) avalia
nesta pesquisa. A experiência tem seu lugar a partir do momento em que a pesquisa nela se
mundo e nas ações que realizam. Embasa-se também na vivência, uma vez que ela se faz
destaque à ação, no sentido que a pesquisa investiga o exercício, a prática dos indivíduos
categorias a partir dos elementos emergidos, como ferramenta de análise foram escolhidos
os núcleos de significação.
Essa forma de análise tem como tarefa a apreensão das mediações sociais
visões dicotômicas e naturalizantes e abre portas para a análise das determinações inseridas
num processo dialético, não causal, linear e imediato. Usar núcleos de significação para
Com o material transcrito das entrevistas em mãos, o passo inicial foi organizar as
entrevistas em uma determinada ordem de leitura. De acordo com Minayo (2021), criar
subconjuntos a partir das características das participantes é um fator organizador, uma vez
comparar os grupos criados. No caso desta pesquisa os subconjuntos foram criados a partir
pré-indicadores a partir de palavras que foram extraídas das falas das participantes. Os
64
que trazem implicações para o sujeito, que o envolvam emocionalmente, que revelem as
suas determinações constitutivas” (Aguiar & Ozella, 2006. p. 231). A partir da leitura das
Sabe-se que o processo de análise não deve se restringir às falas das participantes.
Teatro do Oprimido e com o Teatro das Oprimidas. É possível perceber esse caráter
curinga21, por exemplo, até o papel do teatro do oprimido e das oprimidas perante a
sociedade.
fronteiras do caso particular para desvelar o contexto social que sustenta e influencia tal
ou cena de teatro do oprimido ou das oprimidas. No entanto, esse exercício não é exclusivo
Foi recorrente na fala das entrevistadas a importância da ascese ser feita a todo
Quando em todas as etapas, inclusive nas oficinas iniciais de um grupo, por exemplo, a
21
Optou-se por flexionar o substantivo curinga no gênero feminino pelo fato da análise focar no trabalho de e
com mulheres.
66
ascese se apresenta como uma estratégia fundamental para que os sujeitos e as sujeitas se
com os teatros do oprimido e das oprimidas. Um dos exemplos apontados em uma das
entrevistas envolve exercícios estéticos (esse tipo de exercício vai ser mais aprofundado no
tópico 4.3), abarcando som e ritmo, por exemplo. Se cada participante cria três sons que
possam representar uma dada opressão, quando se trabalha em duplas, são seis sons que se
colocam em interação. Em trio, nove. A partir dessas interações, de como esses sons
podem “conversar” entre si, como eles podem contar uma história, cria-se uma narrativa -
uma narrativa coletiva. Em seguida, cada grupo apresenta o seu resultado para os demais,
para que seja analisado e sejam compartilhadas as impressões. Então esse grupo fez ele [o
participante] perceber ‘nossa, a gente falou sobre isso e eu nem tinha me dado conta (...)
compatibilidade, de modo que a história contada não se torna a história de uma sujeita do
Isso não significa que todas vivam a opressão escolhida da mesma forma.
Certamente, em um grupo misto, caso a opressão trabalhada seja violência contra a mulher
ou racismo, por exemplo, os homens ou pessoas não negras do grupo, respectivamente, não
privilégios de seu sexo e, da mesma forma, a não negras de perceberem os privilégios que
Djamila Ribeiro (2019) se coaduna com tal ideia ao afirmar que “perceber-se é algo
de injustiças contra grupos sociais vulneráveis” (p. 32-33). Tomar consciência do papel de
coletiva. Para se ter harmonia em um trabalho conjunto, é imprescindível que cada um/a
Sendo assim, é notável o quanto perceber-se faz parte do processo no TO. Dar
membros de um dado grupo, esses são caminhos importantes para compreender a questão
mais ampla, no entanto, não exatamente o objetivo do teatro do oprimido e das oprimidas.
desigualdades e propor debates que abarquem a estrutura que sustenta uma opressão.
68
A autora bell hooks (2019) apresenta uma discussão sobre o perigo do foco nesse
reconhecer-se. Ela diz que necessariamente uma cultura de dominação é narcisista, então
enfatizando um estilo de vida politicamente correto, sem conexão com uma realidade
social mais ampla. Para não recair no identitarismo, é preciso lançar mão de estratégias de
com teatro do oprimido e das oprimidas se apresenta como um fator determinante para que
o foco não recaia sobre uma história individual. Caso, por exemplo, a temática escolhida se
restrinja a um acontecimento, à opressão que alguém do grupo vivenciou - por mais que
pessoa, ou seja, uma história específica, particular. No entanto, a proposta é contar uma
história coletiva, que represente a realidade de várias pessoas para, assim, analisar as
permite não culpabilizar os sujeitos pelo que sofrem. A fala de uma das entrevistadas
exemplifica isso:
Eso que tu vives no tiene que ver con una responsabilidad. No viviste violencia
porque eres culpable de esta violencia. No vives discriminación porque eres
responsable de tu diagnostico [de HIV], del color de tu piel. Es porque es un
problema estructural que provoca eso y eso lo viven muchas otras22 (Lorena Roffé).
22
Isso que você vive não tem a ver com uma responsabilidade. Você não sofreu uma violência porque é
culpado dessa violência. Não vive discriminação porque é responsável por seu diagnóstico, da cor da sua
pele. É porque é um problema estrutural que provoca isso e com isso vivem muitas outras (tradução livre).
69
Por essa razão, não há uma tendência a se buscar uma dramaturgia particular no
teatro do oprimido e das oprimidas. A pergunta feita ao grupo é “qual a situação que nos
oprime?” e não “qual a opressão que uma companheira do grupo sofre?”. A gente tem que
ler esse corpo atravessado por todas as políticas que, ou são negadas ou são direcionadas
de seu tempo. É sobre essas determinações, sobre esse contexto social que o Teatro do
Oprimido se debruça.
sobre a subjetividade. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência” (Marx, 2008, p. 47), isto é,
Marx aponta para a produção material da vida, como fator condicionante para a construção
da consciência. Um/a sujeito/a é o/a sujeito/a de seu tempo. Vale reforçar que a produção
objetividade, numa dança fluida e dialética entre produção material e produção espiritual,
para os teatros do oprimido e das oprimidas, a opressão vivida por um indivíduo não é
contexto social, o esmiuçamento das condições macro que refletem na vivência dos
questão. O grupo é feito de pessoas que sentem a opressão, porém, como mencionado, cada
um/a tem uma vivência particular com o tema. Objetivamente, através do trabalho em
estratégias pensadas pelo coletivo. A cena vai sendo complexificada, com novos
intervenção. Por esse viés, “toda oficina também é um espetáculo” (Claudia Simone), uma
aliados na cena. Não somente a protagonista deve estar no papel de quem quebra a
opressão. Os aliados, ou seja, a sociedade, conscientes dos papéis que ocupam, podem
fazer algo diante disso. Caso, em um momento de fórum, o público se atenha a tentar
quebrar a opressão somente via a personagem protagonista, a mensagem que se passa é que
somente ela poderia agir e mudar a sua realidade. Uma das falas das entrevistas
Essa história só vai emergir porque as outras pessoas se reconhecem nela. Então ela
não é uma história individual. Ela se repete e por se repetir ela é algo estrutural. E,
exatamente, pensar a estratégia para enfrentar essa opressão, ela [a estratégia]
também não é individual, senão você culpabiliza a pessoa. Você vitimiza e
culpabiliza porque a história é sua e você não resolveu (Iana Ribeiro).
história e dificulta a percepção da parte que cabe à sociedade diante de uma injustiça.
Ademais, de forma mais ampla, impede que o conflito real seja traduzido, mantém as
uma situação de fórum: o que está por trás desse fato? Qual sua essência? Que ideologia e
conflito apresentado não é problema de um indivíduo particular e que não será por ele/a
Não é responsabilidade de um herói vir salvar todo mundo, resolver a cena. É uma
responsabilidade coletiva. A transformação se faz de forma coletiva, assim como a
nossa pergunta é coletiva (Claudia Simone).
pensamento: “ah, mas ela deveria ter feito isso ou aquilo” (Iana Ribeiro). A proposta é não
incapacidade de ação. É preciso ampliar o horizonte para pensar o que a sociedade não fez
(ou fez) para que aquela opressão se concretizasse e que estruturas estão por trás do fato
encenado.
culpado por sua condição, que é a consequência lamentável de sua infelicidade, de sua
própria escolha ou incompetência para se incluir e se integrar” (2016, p. 131). A fim de dar
gostaria de ir ao palco e fazer uma intervenção na cena, a curinga pede que a plateia
discuta entre si que intervenções poderiam ser feitas para a quebra da opressão
pessoas se articularem como sociedade para intervir na situação. Não há uma pessoa que
do fórum convencional, em que alguém da plateia escolhe substituir algum ator ou atriz em
cena. Cada pessoa entra como um novo elemento na cena, a partir de sua própria posição
social. É como se cada pessoa da plateia fosse uma testemunha daquela cena: se ela
estivesse acontecendo diante de seus olhos e se você imagina ter uma sugestão que possa
mudar a situação, então você deve decidir se quer, se pode e se tem condições de fazer a
feita em um fórum, faz-se relevante buscar a não individualização da opressão, tirar o foto
envolvem.
entre os grupos que trabalham com tal método. Dentre as falas das entrevistadas, foi
recorrente a menção da troca de experiências entre grupos de TO, entre curingas, como
metodologias, novos jogos, novas formas de conduzir trabalhos com o TO. Na época, era
propostas, bem como fortalecimento mútuo, tendo em vista novas conquistas e efetivação
fundamental ter um ambiente seguro, propício para vivenciá-lo, fazer testes, criar novos
Uma das falas exemplifica bem tal papel do grupo: quando eu estou desenvolvendo
novos métodos, que eu quero experimentar alguma coisa, eu faço isso com meu grupo,
mesmo tendo todos esses anos nas costas (Liviana Bath). Além de conhecer a metodologia
durante a pandemia de Covid-19. Uma das entrevistadas mencionou que a crise sanitária se
mostrou um grande desafio para a continuidade das ações com teatro do oprimido. No
entanto, relatou que estar articulada em rede, em contato com outros grupos, pensando
23
Vale mencionar que um dos resultados desses laboratórios foi uma nova metodologia, o Teatro das
Oprimidas, que será melhor detalhado no subtópico seguinte.
74
coletivamente, foi um grande refúgio. Para ela, estar em rede traz uma força que permite
problemas comuns, como foi a pandemia de Covid-19. Dessa forma, foi possível perceber
que muitas das questões vivenciadas não se tratavam de fenômenos isolados de grupos.
Rede Madalena como movimento global. No entanto, essa possibilidade não é algo que
está dado para todas. Mais sobre isso será tratado no tópico 4.2.4, sobre Trabalhos online
da pandemia.
Esse trecho de uma das entrevistas ilustra um aspecto de grande relevância para o
futuro desejado” (Santos, 2016, p. 425). Sabe-se, contudo, que, como a entrevistada
imediata. É uma semente que se planta no presente para que se possam colher os frutos
mais à frente.
75
social, é ingênuo esperar que grandes revoluções aconteçam em suas vidas a partir da
oprime, mas muito provavelmente ela por si só não terá condições concretas de provocar
contas uma construção não desmorona de repente. Mesmo pequenas, quando avaliadas sob
perspectiva mais ampla, essas pequenas rachaduras podem ser muito significativas e
Um dos exemplos mencionados nas entrevistas foi o que ocorreu com as mulheres
de Guiné-Bissau. Esse fato está descrito em mais detalhes no livro “Teatro das Oprimidas”
Parideira. A temática central era a pressão social voltada para a maternidade, que impedia
mulheres de seguirem outros caminhos, como terminar os estudos, por exemplo. Esse
espetáculo foi selecionado para o FESTLIP (Festival Internacional das Artes da Língua
Foi um fato histórico para elas, realizar uma viagem de forma autônoma e poder
represálias após o retorno das mulheres ao seu país/cidade, o que é possível, tanto a nível
76
individual (nas suas relações sociofamiliares), quanto a nível coletivo (com relação à
recursos, trabalho, etc.). Porém, isso não retira a importância histórica desse feito.
Trata-se de um grupo composto por trabalhadoras domésticas, fundado em 1998, que por
meio de TO lutaram pelos direitos trabalhistas de sua categoria. Claudete Felix (2018, p.
Tendo em vista que a temática principal do grupo eram questões trabalhistas das
trabalhadoras domésticas, muitas das resoluções a serem tomadas estavam atravessadas por
(Santos, 2016).
No ano de 2004, o grupo foi à Brasília para entregar na Câmara dos Deputados um
Domésticas.
Participativa, expedido pela Câmara dos Deputados. Tal documento estende às empregadas
do Brasil.
honrosa homenagem da Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Felix (2018)
músculos e neurônios. Por meio do método do Teatro do Oprimido, da produção teatral das
tornaram imagináveis, como sinalizado por Felix (2018): “as atrizes ressignificam seus
corpos no espaço e percebem o espaço entre seus corpos. Ao perceber o novo corpo
Brasil, ilustram a potencialidade de transformação que pode advir de trabalhos com Teatro
do Oprimido e das Oprimidas. Seja de maneira mais particular, como primeiro, seja de
78
espaços de poder é um fator facilitador para tanto, como exemplificam algumas falas das
entrevistas.
A gente viu possibilidades quando o público são pessoas “certas”, das redes, das
associações, representantes, representativos, que vejam a situação. Falando a nível
político, tem que ter uma organização, tem que ter pessoas em certos lugares de
poder também, na política (Liviana Bath).
Nesse sentido, o Teatro do Oprimido se coloca como um instrumento que pode ser
associado a outros para alcançar seus objetivos. O método por si só não é autossuficiente.
perspectiva de completude.
O teatro do oprimido é uma proposta que pode trazer e somar a outras. Ele não vai
salvar o mundo. Não pode colocar ele como salvador. Mas ele permite, sendo uma
metodologia que ajuda muito, porque ela é estruturada e ajuda muito a pensar,
refletir, a fazer e chegar aos grupos sociais sem ser palestra, sem ser o lugar que a
gente diz o que eles têm que fazer. A gente media para que as pessoas vivam,
sintam nos seus corpos, contem suas histórias e a partir disso coletivamente
produzam algo, que vai ser produto da ação delas (Iana Ribeiro).
técnica. Trata-se de um método que faz uso de um meio estético para buscar meios
principal do teatro do oprimido é a arte política. Não tem teatro do oprimido sem política.
Nas entrevistas, foi mencionado que, por vezes, o caráter político do Teatro do
Oprimido impulsionou certa resistência. A depender dos espaços e do público, falar sobre
Como brasileiros, a gente não é convidado nunca a falar sobre política, né?
Aquela coisa de política e futebol não se discute, né? E a gente vai se
acostumando a entender que a política não faz parte da nossa vida, como se não
fosse um processo mesmo de produção de vida, de tentativa de equalizar as
relações (Rachel Nascimento).
No caso do trabalho com mulheres, isso é ainda mais evidenciado. A divisão sexual
do trabalho, que lhes rouba tempo e energia, reforça o não lugar das mulheres na discussão
conjugação entre racismo e sexismo abafa experiências, vozes, elaborações críticas das
24
Em qualquer contexto e não com um objetivo político de transformação, como se fosse apenas um teatro
interativo e participativo, como algo divertido, de entretenimento, e não como uma ferramenta de incidência
política (tradução livre).
80
A práxis da curinga conjuga atuação artística com ativismo político. Para o Teatro
ativista. No papel de facilitadora do método, a curinga precisa ser também reflexo dele. Se
trabalho visando a organização social para a luta pela transformação da realidade (Santos,
2016).
com um grupo e também a de mediar o diálogo teatral em sessões de fórum e o debate nas
superação desse problema. Não há, no ato de curingar, uma busca por respostas corretas. O
Deste modo, as perguntas feitas pela curinga à plateia são essenciais para
outro, ele vai ter que pensar e responder - Iana Ribeiro). Para o Teatro do Oprimido, partir
do questionamento significa assumir uma atitude maiêutica - isto é, ver a dúvida como uma
Se for feito o uso da afirmação, por exemplo, corre-se o perigo de iniciar um fórum
isso não o torna um Teatro Didático (Santos, 2016). Sua pedagogia é a pedagogia do
oprimido, de Paulo Freire, que estimula o “oprimido a construir sua própria visão de
Todavia, não é porque há abertura para o diálogo através da pergunta que qualquer
princípios do TO. Sendo assim, se o TO tem um lado bem definido - o lado dos/as
oprimidos/as, também o tem a curinga. Não é possível validar qualquer opinião, qualquer
capacitista… Há abertura para novas perspectivas, mas não para aquelas que sejam
opressoras.
A gente fez várias perguntas, levou o público a discutir e com o que o público
trazia a gente ia costurando também uma fala que é um posicionamento, né? Não
é ficar ali neutra. Neutralidade é impossível. A gente estaria favorecendo esse
discurso [racista]. Fiz uma pergunta para entender o que o público estava
entendendo, para compartilhar os entendimentos, mas ao mesmo tempo é uma
pergunta com posicionamento. Se a gente não se posicionar, não é teatro do
oprimido. É qualquer coisa. É encenação. Quando a gente escolhe o teatro do
oprimido, a gente já tomou partido, que é dos oprimidos e das oprimidas (Rachel
Nascimento).
O Teatro do Oprimido tanto não visa apresentar respostas corretas que, diante de
fórum25, que a estratégia da curinga é devolver o que surge para o público em forma de
pergunta, incitando a reflexão e a análise crítica. É possível até mesmo permitir que a
intervenção aconteça e deixar que o público faça a sua própria avaliação. Trata-se de um
apoio na grupalidade, de não colocar no papel que sozinha a curinga vai fazer o
enfrentamento.
A fala de uma das entrevistadas demonstra com clareza a ação da curinga diante de
Si una persona del público tiene una alternativa que no es libertadora, que no es
transformadora, yo la devolvería con preguntas al público o permitiría la
intervención. [...] Al permitir esa intervención y devolver eso al público, no soy
yo la que va a evaluar si es o no es (libertadora). En el teatro forum, el foco está
en el público. No está puesto ni en el grupo, ni en la curinga. Entonces esas
intervenciones, la manera de desarmarlas, poder analizarlas, poder transformarlas
es devolviendo todo tiempo. Permitir que suceda y después generar ese debate con
el público (Lorena Roffé).26
A entrevistada segue afirmando que “es muy fácil llegar a las personas que ya
piensan como nosotras. Lo difícil es llegar a las personas que no piensan como nosotras
duplas de curingas como algo de grande valia. É ter e dar suporte na condução de um
É relevante lembrar que as curingas estão implicadas nos processos, suas vivências
estão presentes em sua atuação, os trabalhos com TO também tocam em suas opressões -
25
O ensaio para a libertação, para quebra de opressões na vida real.
26
Se uma pessoa do público tem uma alternativa que não é libertadora, que não é transformadora, eu a
devolveria com perguntas ao público ou permitiria a intervenção. [...] Essa intervenção vai ser permitida e
devolvida ao público, não sou eu quem vai avaliar se é (libertadora) ou não. No Teatro-Fórum, o foco está no
público. Não está nem no grupo, nem na curinga. Então essas intervenções, a forma de desarmá-las, de poder
analisá-las, de poder transformá-las é devolvendo (ao público) o tempo todo. Permitir que aconteça e, em
seguida, gerar esse debate com o público (tradução livre).
27
É muito fácil chegar às pessoas que pensam como nós. O difícil é chegar às pessoas que não pensam como
nós (tradução livre).
83
Sendo um método que demanda necessariamente uma implicação pessoal, para conduzir
curinga comunitária. Diante da dificuldade de manter grupos quando a pessoa que está à
frente como curinga não é parte do território ou do contexto social do grupo, participantes
do referido grupo que tenham interesse recebem uma formação de curinga. Assim, além de
fortalecido.
É uma curinga que tá ali, ela tá ali vivendo a mesma coisa e ela sabe escutar. A
gente vai criando estratégias a partir do que a gente vive (...) Eu sou uma curinga
que sou daquela comunidade e vivo exatamente as mesmas coisas, eu vou saber
como lidar, eu vou saber onde entrar, onde não entrar (...) A gente tem que ter
consciência de que a gente chega, mas a gente sai. Essa não é a nossa realidade. Ser
solidário é correr o mesmo risco (Rachel Nascimento).
Se não há horizontalidade, não tem como haver solidariedade (Santos, 2016). Uma
portanto, é preciso atenção redobrada para não se colocar diante da relação com os sujeitos
de forma desigual. “Quando escrevemos sobre experiências de grupos aos quais não
trabalho será usado ou não para reforçar e perpetuar a dominação” (hooks, 2019, p. 101).
84
Então eu não corro o mesmo risco da menina que mora lá no alto, no pantanal.
Mesmo que ela esteja sofrendo, sei lá, uma violência sexual, de alguém, como eu
vou criar um problema e sair correndo? Tem que pensar que estruturas que eu posso
conseguir que dê suporte. Eu não posso dizer pra ela “denuncia”, como a gente já
fez. “Denuncia!”. É muito fácil pra mim. Mas será que a polícia vai lá no alto?
Quais são as leis que imperam ali? Tem um poder paralelo que penaliza as
mulheres se elas denunciam, por exemplo? E se ela denuncia, qual a rede de apoio
que a gente pode construir para que ela possa sair dali, porque provavelmente ela
não vai poder ficar ali, né… Então tem toda uma consciência que a gente adquire
que ser solidário é correr o mesmo risco. Se eu tô ali multiplicando e eu não sou
daquela realidade, eu saio e elas ficam. É uma responsabilidade muito grande. E
por isso, assim, estimular o debate e acho que não fazer nada além do que elas
acordem e se sintam seguras em fazer (Rachel Nascimento).
não se pertence. A figura externa não deve ter a voz da autoridade no grupo. Deve estar
consciente de questões éticas, como privilégios de raça, classe e gênero, e atuar como
mediadora, fomentadora do debate do grupo, para que este chegue às suas próprias
soluções. Isso significa reconhecer as pessoas como sujeitas, com “direito de definir sua
própria realidade, estabelecer suas próprias identidades, nomear sua história” (hooks, 2019,
p. 100).
Diante das discussões e das opressões enfrentadas nos tempos atuais, o Teatro do
Oprimido e da Oprimida, por meio das pessoas que se propõem a pensá-lo, construí-lo, tem
demonstrado uma plasticidade fundamental para a sua existência nos tempos atuais. O
como nos aspectos que vêm impulsionando as transformações que o método vem vivendo
Em diversas entrevistas, Augusto Boal declarou que a opressão contra a mulher era
a mais comum em sua experiência de curinga (Santos, 2019). A experiência de Boal não se
diferencia da de Mariana Villani, uma das entrevistadas. Ela declarou que en los festivales,
como opressão escolhida como temática de trabalho. Contudo, questões de gênero não se
apresentam apenas como tema em atividades do Teatro do Oprimido. Dentro dos grupos de
TO, por mais que seus participantes sejam política e socialmente conscientes, por mais que
capitalista.
(2000) traz um contexto da realidade dos Estados Unidos que, de certa forma, segue em
28
Nos festivais, nos encontros, sempre a questão da violência contra as mulheres estava presente, não
importa o contexto, não importa a cultura, sempre estava presente (tradução livre).
86
em salários iguais para funções iguais, acreditarem que homens não deveriam espancar
e que ela não tem perspectiva de acabar, a não ser que se acabe o sexismo, as mesmas
pessoas têm dificuldade de compreender tal relação. A dificuldade de fazer essa dedução
lógica acontece “porque isso exige desafiar e mudar as maneiras de pensar gênero” (hooks,
2020, p. 96).
racista, patriarcal, capitalista e, por mais que lutem contra as opressões geradas por tais
estruturas, ainda assim há certa resistência a novos modos de pensar questões de gênero,
raça e classe.
mulher é culpabilizada pela opressão que vive; também em uma situação de Teatro-Fórum,
a permissividade no que tange à substituição de uma personagem de uma mulher negra por
distintas, portanto um não poderia substituir o outro se a proposta é ensaiar para a vida real.
Quanto mais desconstruído, quanto mais libertador o contexto, com mais sutileza essas
As violências agora são muito sutis quando nós somos militantes, quando nós
somos artivistas, porque as companheiras e os companheiros também estão sendo
87
Dentro do TO, alguns homens têm feito uma investigação do quanto reproduzem o
mecanismo machista. Eles têm buscado ser antisexistas e construir uma masculinidade
alternativa. No entanto, a consciência de que eles estão sendo machistas, ou que eles estão
sendo sexistas ainda é muito superficial. É uma batalha muito grande (...). É muito
assistência social, em que há, de modo geral, uma deterioração das condições de vida,
trabalho. Para essas mulheres, as opressões raciais, de gênero estão evidentes a todo tempo.
mobilizando para questionar o porquê da maioria dos curingas, dos multiplicadores serem
homens, bem como da maioria das pessoas presentes nos festivais ser branca. Afinal, de
que opressão essas pessoas falavam? O TO se propõe a questionar a realidade como ela é,
88
mas por que nos encontros somente uma perspectiva - a branca, masculina - tinha destaque
e reconhecimento?
A rede é muito branca. A branquitude traz privilégio, então nesse sentido a maioria
das mulheres são privilegiadas. Isso significa por exemplo poder viajar sem ser
controlada no aeroporto, ter um passaporte europeu significa ter mais facilidade em
receber um visto e poder viajar. Ganhar e pagar. Infelizmente numa sociedade onde
o racismo estrutural e institucional, ter um corpo com olhos azuis ou verdes
significa receber um tratamento diferente. Por exemplo, no Brasil, eu fiz a
experiência. Conversando com um policial, ele pergunta se eu quero tomar café. Ele
não pergunta o que eu tenho na bolsa. Então pra mim, ir pra um festival na
Argentina é fácil. E aí nesse festival em 2015 a gente se olhou e reparou nessas
diferenças. “que é isso? Uma rede de teatro das oprimidas assim, branca? (Liviana
Bath).
O que elas [as pessoas] querem é exatamente te tirar desse lugar. Porque [o lugar de
quem curinga] não é seu [da mulher preta] por direito. Não pode ser. Não pode ser
seu. Uma mulher preta… A gente tá falando nesse caso de atravessamento de
gênero, né… Não pode ser seu. E aí dos dois lados. Quando eu tô falando da
questão de raça, e que a gente fala que não dá mais pra separar, não separamos mais
raça, classe e gênero… No caso específico de trabalhar com mulheres e como
mulher negra, nos grupos mistos é evidente, né. Os homens são… É muito difícil
encarar uma mulher nesse lugar de poder, porque curinga é um lugar de poder. Nos
grupos só de mulheres acontece, porque é difícil que algumas companheiras
brancas reconheçam esse corpo negro curinga no lugar de formação, de referência e
de condução mesmo (Claudia Simone).
haja uma tendência a dar mais valor ao que faz uma pessoa branca, um homem, em
detrimento do que faz uma pessoa negra, mulheres, mesmo a ação sendo a mesma.
Inclusive quando se trata de homens falando sobre questões de mulheres e pessoas brancas,
89
sobre questões de pessoas negras. São atitudes machistas, racistas, de supremacia branca
compreendem-se os fatos não de forma isolada, mas como parte do projeto de uma
da vida social (Cisne & Santos, 2018), estando profundamente arraigadas na construção
dos sujeitos e nas formas como se dão as relações interpessoais e as relações sociais
coletivas. Assim, uma vez que as pessoas que fazem parte do Teatro do Oprimido
opressões de gênero, raça e classe e agir no sentido de superá-las, não está isento de
reproduzi-las.
O fato dos debates de raça e gênero estarem em voga dentro do TO atualmente não
significa dizer que sejam novidade. O mito da democracia racial, bem como a
liberdade formal que maquia o peso real dos fatores naturais que cada um desses
personagens carrega no processo social de competição (Saffioti, 2013). Tais mitos atuam,
podem debates de raça e gênero. Não à toa essas questões ficaram tanto tempo sem seu
devido reconhecimento.
90
se veem no Teatro do Oprimido, quando as opressões discutidas não estão mais envoltas
classe, raça e gênero passasse a ser pauta das discussões dentro do TO, como relatado
abaixo:
Pensar no elemento interseccional era muito importante para entender com quais
mulheres a gente está discutindo, porque a gente não pode ver “mulher” como uma
coisa singular. A gente tem muitas. E aí, a partir disso, quais opressões que elas
vivem que eu não vivo, inclusive? (Iana Ribeiro).
Cuando hicimos este proyecto continental con mujeres viviendo con VIH (HIV) no
era la historia de una mujer con VIH. Justamente era desarrollar una metodología
para encontrar cuales son los puntos comunes entre las opresiones que viven las
mujeres con VIH en todo continente y poder entender que eso es por ese rol social
que tiene: de ser mujer en esta sociedad y vivir con VIH en esta sociedad (Lorena
Roffé)29.
29
Quando fizemos este projeto continental com mulheres vivendo com HIV, não era a história de uma mulher
com HIV. Foi precisamente para desenvolver uma metodologia para encontrar quais os pontos comuns entre
as opressões vividas pelas mulheres com HIV em todos os continentes e poder perceber que isso se deve a
esse papel social que tem: ser mulher nesta sociedade e viver com HIV nesta sociedade (tradução livre).
91
solidariedade. bell hooks (2019) afirma que é necessário fazer enfrentamentos dolorosos,
dos outros é a base para se ter esperança de mudar o mundo. “É trabalhando coletivamente
para confrontar a diferença e para expandir nossa consciência sobre sexo, raça e classe
(hooks, 2019, p. 67). O trecho da entrevista de Lorena Roffé abaixo destacado exemplifica
investigar la especificidad no corta las alianzas. No es por ser mujer con VIH (HIV)
no puedes tener alianza con una mujer sin VIH o una con discapacidad con una
mujer sin discapacidad. Se hace más respetuosa de la especificidad y se hace menos
racista, se hace menos capacitista, se hace menos discriminadora acerca del
diagnóstico de VIH, porque esa alianza se hace desde el lugar de reivindicación y
de nombrar cual es la opresión específica que se vive. Y por ejemplo a mi, como
mujer latina, pero blanca, fue muy valioso, es muy valioso y importante todo el
trabajo que hacen las compañeras el colectivo Magdalena Anastácias para que yo
como mujer blanca pueda entender que lugar tengo en una alianza antirracista y mi
feminismo es un feminismo antirracista. Pero yo no pude ser antirzacista si niego la
especificidad de la vivencia de las mujeres negras (Lorena Roffé)30.
30
Investigar a especificidade não corta alianças. Não é porque você é uma mulher com HIV que você não
pode ter uma aliança com uma mulher sem HIV ou uma mulher com deficiência com uma mulher sem
deficiência. Torna-se mais respeitador da especificidade e torna-se menos racista, torna-se menos capacitista,
torna-se menos discriminatório sobre o diagnóstico do HIV, porque essa aliança é feita a partir do lugar de
reivindicar e nomear a opressão específica que é vivida. E, por exemplo, para mim, como mulher latina, mas
branca, foi muito valioso... Todo o trabalho que as colegas do coletivo Madalena Anastácias fazem é muito
valioso e importante para que eu, como mulher branca, possa perceber o lugar que tenho em uma aliança
anti-racista. E meu feminismo é um feminismo anti-racista, mas eu não poderia ser anti-racista se negasse a
especificidade da experiência das mulheres negras (tradução livre).
92
presentes dentro dos trabalhos com o Teatro do Oprimido. É leviano julgar que esse
relações de gênero e raça como parte do tripé que sustenta a estrutura de poder da
for feminista, uma vez que a exploração da mulher é um pilar fundamental para a
políticas e econômicas, e não somente de gênero, que afeta toda a humanidade. Do mesmo
contra o capitalismo, pois é um atentado contra não apenas pessoas não brancas, mas
contra todo o proletariado (Ignatiev & Allen, 2011, como citado em Haider, 2019). Tal
supremacia impede que pessoas brancas e negras se percebam como parte de uma única
Todavia, o fato de homens e mulheres, bem como pessoas brancas e negras terem o
interesse comum, mediado pela organização de classe, não significa que uma
argumentação reducionista de classe seja viável. Crer que a classe importa mais do que a
93
A autora diz ainda que não é estratégica a oposição à ênfase nas políticas
Tem uma revolução que é para além da cor estética… Porque estética é política. No
teatro do oprimido está dito, mas às vezes mesmo as pessoas que estão dentro do
teatro do oprimido esquecem de ver que não é só a cor da pele. É toda uma
construção histórica, social, política, que traz um outro olhar sobre as relações
sociais e que tem contribuído pro teatro do oprimido (Rachel Nascimento).
de gênero, classe e raça nas relações sociais e econômicas (Bezerra, 2020). Assim, a luta
Antes de seguir com a discussão sobre o Teatro das Oprimidas, é válido fazer um
ditadura militar e Augusto Boal exilado do país. Após uma temporada na América Latina,
foi para a Europa. No exterior ele sistematizou o método que veio a se chamar Teatro do
Oprimido.
nascido no Rio de Janeiro. A partir do contato com a realidade da classe trabalhadora, teve
a sensibilidade para observar e criar um método que já nasceu com uma proposta
Ele criou o teatro-jornal porque havia censura. Ele criou o teatro-imagem porque as
pessoas tinham dificuldade de se comunicar com línguas diferentes. Ele vem com
os jogos e exercícios para pensar determinadas reflexões… Então a gente tem uma
metodologia que foi pensada na época da ditadura militar (Iana Ribeiro).
questões de classe. Porém, conforme foi se desenvolvendo, se expandindo, foi ficando cada
vez mais evidente a necessidade de atentar para a diversidade dentro da classe (que se
classe.
sistema capitalista” (Toledo, 2001, p. 9). A violência que sofre e suas possibilidades de
enfrentamento são distintas para uma mulher burguesa em comparação a uma mulher
caso a mulher retratada seja negra, o contexto muda necessariamente, pois historicamente
ela sofre maior nível de exploração e opressão (Cisne & Santos, 2018; Gonzalez, 2020).
opressões de raça, gênero e classe dentro do movimento do TO tornou pouco provável que
de que o método, como estava proposto, muitas vezes corroborava para a manutenção
dessas opressões.
A violência contra a mulher, por exemplo, é uma temática bastante presente nas
temáticas abordadas pelos grupos de TO, sendo representada continuamente nos palcos,
nas apresentações, nas intervenções... A questão é que, muitas vezes, sua representação se
buscar a superação das opressões, o próprio TO, em seu método, reproduzia em certa
Que pasava con el teatro con grupos mixtos, con la antigua manera de hacer teatro
del oprimido, muchas, muchas veces, lamentablemente, se encuentravan con
formas de tratar el tema que terminaban revitimizando la protagonista. Con el teatro
del oprimido, en casi todos los eventos, festivales, priumero, grupos de mujeres,
que trabajan violencia contra las mujeres y el curinga es un barón, primeiro. De
obras del teatro forum de questión de violencia contra las mujeres donde la
oprimida está sola en la habitación con el marido que está a punto de golpearla e
96
ahí el curinga dice “bueno, quién tiene una idea? Quién quiere venir y intervenir?”.
Donde la mujer tiene que ser una superheroína o [...] Obra de teatro fórum donde se
invita a barones a replaçar a mujeres en situación de violencia. Una y otra vez se
repetían esas historias. Encontrarte con la misma situación muy maltratada desde
nuestros compañeros y compañeras del teatro del oprimido del mundo. Entonces es
un grave, gravísimo error político, la forma de abordar el tema (Mariana Villani).31
“Que teatro é esse e a quem ele serve?”. Essa pergunta impulsionou as mulheres a
se questionarem sobre o que e quem estava invisível em torno do que elas faziam, das
estruturas que criavam e das direções que tomavam. Por sentirem que a abordagem de
temas como relações de gênero, racismo, homofobia se configurava uma espécie de tabu
nos grupos, mesmos aqueles formados por pessoas progressistas, as mulheres começaram a
se organizar entre si para debater os processos externos das opressões que enfrentavam e
houve a necessidade de criar um espaço de apoio e solidariedade, formado por uma rede
exclusivamente de mulheres. Não é sobre não acreditar em grupos mistos, mas sim sobre
reconhecer uma necessidade que se colocava ali, das mulheres estarem em um ambiente
com mais segurança no qual elas pudessem abordar mais livremente suas particularidades.
configurar como um fator fortalecedor para as mulheres em outros sentidos. bell hooks
aponta que muitas vezes o debate de gênero perpetrado por mulheres é fortemente
patriarcado é apenas uma parte. Afirma ainda que “se a luta para erradicar o machismo e a
primeiro aprender a ser solidárias e a lutar juntas para nos prepararmos politicamente para
essa prática solidária e de luta foi sendo construída. A proposta era discutir as
por novas conquistas e pela efetivação dos direitos conquistados (Santos, 2019).
Como fruto desses laboratórios nasceu o Teatro das Oprimidas, uma metodologia
fundamentada a partir do paradigma de sexo, raça e classe e que não destaca os homens e
no que eles fazem às mulheres, e sim as mulheres trabalhando para identificar, de formas
individual e coletiva, o caráter específico de sua identidade social (hooks, 2019). Uma
dos pilares fundamentais de sua concepção, caracteriza o Teatro das Oprimidas como
bell hooks (2019) aponta que “nenhuma mudança radical, nenhuma transformação
resistência política coletiva” (p. 79). Com o Teatro das Oprimidas, as mulheres resistiram,
99
definiram sua realidade, configuraram novas identidades, contaram suas histórias. Não
compareceram à luta como quase ‘coisas’, para depois serem mulheres (Freire, 2013).
É de se esperar que junto desse movimento veio uma resistência, que se coloca
muito mais desse mundo, desse tempo que a gente tá do que dizia naquele tempo,
que era pro seu tempo, né? (Rachel Nascimento).
de Augusto Boal (com machismo e racismo embutidos), como se ele tivesse criado o
método fundamental e o que segue a partir dele é algo inferior - uma forma de deslegitimar
Ele [Augusto Boal] é um gênio! Sim! Bárbara Santos também é um gênio. Por que
não? E a gente não… Acho que tem uma dificuldade, um apego da branquitude de
dizer... É a mesma coisa que dizer “Ah Drumond é Drumond. Carolina Maria de
Jesus precisa rever a ortografia”. É meio que isso, sabe? Boal é Boal sim! Bárbara
Santos é Bárbara Santos sim! Imagina os desafios de uma mulher negra rodar o
mundo inteiro, mesmo com todo o machismo e sexismo, ser uma das idealizadoras
da metodologia do Teatro das Oprimidas, pensado para mulheres, com mulheres
(Rachel Nascimento).
apenas consequência de seu tempo. Como discutido anteriormente, quando Augusto Boal
criou o TO, as necessidades eram aquelas e o método lhes atendeu. Contudo, já dizia a
cantora Nina Simone: “você não pode evitar. O dever de um artista, no que me diz respeito,
Oprimido. O teatro das oprimidas é uma “metodologia em si mesma, para além do Teatro
metodologia. Dentre eles está o exercício constante por não individualizar a opressão.
32
You can't help it. An artist's duty, as far as I'm concerned, is to reflect the times (original).
101
Mesmo que específica de certo grupo social, é fundamental relacioná-la ao contexto mais
Creo que otro desafío que siento que es a la vez una gran oportunidad, muy
desarrollada por Bárbara, por el colectivo de Magdalenas Anastácias33, por la red
Magdalena Internacional, es como no perder de vista la colectivización, digamos,
de la opresión, como somos muchas oprimidas y oprimidos, como está también la
especificidad. Lo específico de las opresiones que vivimos las mujeres, lo
específico de las opresiones que viven las personas negras en específico, las
opresiones que viven por ejemplo las personas con discapacidad y creo que algo
que se vino creando desde el primer laboratorio magdalena es por alumbrar esa
especificidad y poder crear metodología específica para esta investigación que
permite también entender y investigar las razones estructurales de la opresión. Que
nunca se quiere entender como una vivencia individual, eso es evidente (...), pero ir
a la especificidad también permite investigar más la cuestión estructural. Y eso me
parece que es un desafío y que es una gran riqueza también, que se fue
desarrollando (Lorena Roffé).34
Ao mesmo tempo entender o teatro das oprimidas como aquele olhar não
individualizado, não patriarcal, que é isso né, o patriarcado ensinou a gente a olhar
uma pessoa no corpo, né, e o teatro das oprimidas descentraliza esse olhar. O teatro
das oprimidas busca diversificar os espaços de poder, né? E diversificar quem
ocupa esses espaços de poder. Então quem ocupa esses protagonismos… Então o
teatro das oprimidas é uma metodologia em si que pensa em não responsabilizar a
33
Madalenas Anastácias é o coletivo de mulheres negras do Teatro das Oprimidas.
34
Acho que outro desafio que sinto que é às vezes uma grande oportunidade, muito desenvolvida pela
Bárbara, pelo coletivo Magdalenas Anastácias, pela rede Magdalena Internacional, é não perder de vista a
coletivização, digamos, da opressão - como muitas de nós somos oprimidas e oprimidos -, assim como a
especificidade. A especificidade das opressões que as mulheres vivenciam, a especificidade das opressões
que os negros vivem em particular, as opressões que as pessoas com deficiência vivenciam, por exemplo, e
eu acho que algo que foi criado desde o primeiro laboratório Magdalena é iluminar essa especificidade e
poder criar uma metodologia específica para esta pesquisa que também nos permite compreender e investigar
as razões estruturais da opressão. Entendê-la não como ... Não se quer entendê-la como uma experiência
individual, isso é evidente (trecho inaudível), mas ir à especificidade também permite aprofundar a questão
estrutural. E isso me parece um desafio e que também é uma grande riqueza, que foi desenvolvida (tradução
livre).
102
Ela [Bárbara Santos] atualizou de certa forma essa perspectiva de gênero do teatro
do oprimido. Então quando ela traz o teatro das oprimidas ela atualiza essa
discussão pra gente refletir inclusive o momento da intervenção. Por exemplo, ela
questiona: a gente vai deixar a intervenção de um espectator/espectatriz acontecer
quando a mulher já sofreu a violência? Por que não propor que a intervenção
aconteça antes da violência sofrida para pensar que estratégias a gente vai abordar
para que a violência não ocorra e assim não ter responsabilidade só para a mulher
que sofreu a violência (Iana Ribeiro).
Por eso creo que toma tanta fuerza la Red Madalena Internacional y el Teatro de las
Oprimidas cuando venimos a cuestionar todas esas formas y a transformar
metodológicamente la manera de trabajar sobre esas opresiones para que realmente
la práctica sea liberadora , revolucionaria y no la vuelva poner otra vez en el mismo
lugar de culpabilización de la víctima (Mariana Villani)35.
condução do fórum por identidade. Isso significa que o fórum se constituiu como um
espaço onde é possível o fortalecimento pessoal e coletivo, onde a criação de alianças entre
daria quando a pessoa da plateia conhecia o problema da protagonista por vivência própria.
O Teatro das Oprimidas atualizou o fórum por identidade quando, em sua abordagem, faz
35
Por isso, acredito que a Rede Madalena Internacional e o Teatro das Oprimidas ganham tanta força quando
passamos a questionar todas essas formas e a transformar metodologicamente a forma de trabalhar essas
opressões para que a prática seja verdadeiramente libertadora, revolucionária e não coloque de volta no
mesmo lugar de culpar a vítima (tradução livre).
103
referência à identidade social de quem entra em cena (Santos, 2019). Não há espaço para
momento de fórum, porém não na intenção de substituir negros e negras. Não interessa ao
Teatro das Oprimidas a ajuda, o conselho, a dica de como superar uma opressão. O que é
relevante “é o compromisso de cada um e de cada uma com relação a sua própria atuação
Quando a gente parte pro fórum, a gente parte pro fórum por identidade pras
pessoas se entenderem implicadas socialmente. Se eu sou uma pessoa branca, eu
vou entrar no lugar de uma pessoa branca e ver o que eu posso fazer ali como
pessoa branca, também implicada nas relações raciais. Porque não é que eu sou
branca que eu não tô implicada nas relações raciais (Rachel Nascimento).
A gente percebeu na prática que a identidade, como a gente se vê, como a gente se
relaciona no mundo, vai dizer como a gente vai agir naquele momento e como a
sociedade vai reagir à gente, mesmo que seja uma peça. Mesmo a polícia ali na
cena sendo informada de que ele tava substituindo um homem negro, as nossas
relações saõ outras, né? A raça informa. Ela é um figurino que você não consegue
tirar, que informa muito mais do que qualquer papel. Chega primeiro. Então o
fórum por identidade é essencial para pensar que aquela não é uma situação pontual
e que é uma situação que acontece por conta do nosso contexto de construção
histórico-racial, né? Tá no contexto. Não é uma situação individual (Rachel
Nascimento).
104
Por fim, o Teatro das Oprimidas reuniu mulheres para entender as armadilhas do
Desse modo, contribuiu para abrir espaço para olhar para si, fomentou a autoestima e a
que ainda provoca o desconforto de estar no ambiente dominado por mulheres brancas,
bem como perceber limitações e desafios na luta comum com homens negros (Santos,
2019).
são problemas das mulheres; de que o racismo é um problema complexo que afeta a todos
e todas, não somente a negros e negras; de que as mulheres negras são alvo de várias
uma necessidade” (Santos, 2019, p. 327). Por isso, faz-se imprescindível que haja uma
articulação entre grupos que enfrentam diferentes formas de opressão, buscando formas
Audre Lorde, não é possível ser livre enquanto alguém for prisioneiro, mesmo que se
social, os grupos de Teatro do Oprimido e das Oprimidas tiveram que suspender suas
105
Para que algo não morresse, o Teatro do Oprimido e das Oprimidas precisou se
reinventar. A pergunta que ressoou foi: diante da falta, como satisfazer a necessidade pelo
La pandemia nos trae un montón de desafíos, porque mucho que hacemos tiene que
ver con articularse con el cuerpo, con accionar muchos lenguajes que tienen que ver
con el encuentro, la movilización y siento que fue un desafío que... Bueno, como
muchas veces trae en la crisis la oportunidad. Entonces también nos impulsó a
desarrollar otros lenguajes (Lorena Roffé)36.
36
A pandemia nos traz muitos desafios, porque muito do que a gente faz tem a ver com a articulação com o
corpo, com a ativação de muitas linguagens que têm a ver com o encontro, a mobilização e sinto que foi um
desafio que... Bom, pois muitas vezes traz a oportunidade para a crise. Então, também nos levou a
desenvolver outras linguagens (tradução livre).
106
O teatro não é uma atividade, mas duas: fazer e ver. Diferentemente da pintura, da
escultura, da poesia, artes que podem ser produzidas de forma assíncrona com a
contemplação de seu público, o teatro exige, num espaço e num tempo compartilhados, a
associação dos atos de produzir e olhar (Guénoun, 2004). Sendo assim, novas estratégias,
novas formas de linguagem precisaram ser adotadas para que o teatro resistisse.
A sociedade, ela evolui de forma dinâmica. Olha o desafio que foi, que é essa
pandemia. A metodologia teve que ser adaptada para utilização do zoom, pra gente
fazer as técnicas, os jogos, talvez criar uma cena de teatro fórum. Abriu outras
possibilidades. Abriu a possibilidade de investigação de performance, abriu a
possibilidade de desenvolver um pouco mais dentro da estética do oprimido os
recursos audiovisuais… E a gente teve que aprender a lidar com essa tela e a lidar
com as novas parafernálias eletrônicas que são da atualidade e que fazem parte do
cotidiano das pessoas com as quais a gente trabalha. Os jovens estão o tempo todo
no celular. Quem tem o privilégio de ter um computador tá o tempo aqui todo
vendo vídeo, tá no instagram… O instagram é isso agora. Se você não tá aí, você tá
onde? E os jovens estão nessa linha. A linguagem para ser diálogo, a gente também
tem que saber que língua tá se falando hoje. Eu não falo tupiguarani. As pessoas
não falam tupi guarani. Estão falando o que hoje? Qual língua você fala? Porque
teatro é linguagem e é essa linguagem que abarca tudo. (Claudia Simone).
Como a fala acima destaca, foi através de encontros virtuais, utilizando plataformas
necessidades da nova realidade. Precisou, assim, desenvolver uma nova linguagem que até
Red Magdalena de más participación y más diversa, justamente por ser virtual
(Lorena Roffé)37.
participar do evento em qualquer lugar. A condição é ter os meios para acessá-lo. A gente
foi criando estratégias online, mas isso não é fácil pra todo mundo. Muitas mulheres não
têm esse acesso online. Existem apenas alguns grupos que conseguem (Iana Ribeiro).
do acesso à internet, não fazem parte da realidade de muitas mulheres. Quanto mais sofrem
online. Sendo assim é relevante perguntar: no contexto da pandemia, foi possível pensar o
É evidente que não foi para todas e todos. O uso de plataformas virtuais, ao mesmo
assistência social, a quem esse trabalho faz referência, muito provavelmente não
participariam de um evento online. Na verdade, a proposta inicial desta pesquisa era fazer
de que realizar oficinas em um formato virtual, visando a biossegurança, não era uma
possibilidade.
37
Através de encontros virtuais, a rede Madalena permitiu-nos criar um festival online internacional que
fizemos em 2020 e que foi o festival da Rede Magdalena com maior e mais diversa participação,
precisamente por ser virtual (tradução livre).
108
básicas. Conseguir prover à família alimentação diária, ter dinheiro para pagar o aluguel ao
final do mês, brigar por uma vaga na creche para seu filho, acordar de madrugada para
materiais para participar virtualmente de uma oficina de teatro são basicamente nulas.
Sem falar que, como discutido no capítulo 1 desta dissertação, as mulheres que
mais sofreram impactos negativos na pandemia foram exatamente aquelas que compõem o
Sofreram ainda mais com a sobrecarga de trabalho doméstico; com do estresse econômico
gerado pelo desemprego ou pela maior dificuldade de se trabalhar como autônoma; com a
coexistência forçada, que resultou no aumento da violência doméstica (Vieira, Garcia &
Maciel, 2020); com temores sobre o coronavírus, em especial aquelas que permaneceram
Na vida pandêmica, as condições a que estão sujeitas restringem ainda mais suas
social, faz-se urgente retomar o trabalho com esse público feminino, tão oprimido, que
sobreviveu a tempos de guerra. É preciso ampliar a vida, resgatar a potência, buscar incluir
Teatro das Oprimidas não são neutros não apenas politicamente, mas também no aspecto
pessoal. Como toda arte, implicam um atravessamento de si e como forma de lidar com as
4.3.1. Atravessamentos de si
Oprimido (e em seguida com o Teatro das Oprimidas) se deu por uma motivação pessoal.
Algumas das entrevistadas já tinham diversas experiências artísticas datadas desde muito
Minha formação acadêmica se deu junto com minha formação de TO (...). Em 2017
já eu entro no doutorado para pesquisar sobre o Teatro do Oprimido e as
possibilidades ético, estético e políticas para os participantes dele. Só que também
meu corpo está aí, não era só os ou as participantes. Eu também fazia parte disso.
Eu digo que eu sou uma pesquisadora-participante-atuante (Iana Ribeiro).
38
Como uma ferramenta para e não com o olhar do teatro com um fim em si mesmo (tradução livre).
110
Nesse processo da busca pela transformação social, foi inevitável na história das
Teatro do Oprimido e Teatro das Oprimidas, então, é trabalhar com a própria história, com
sujeitas que se inscrevem no mundo com suas histórias, vivências, opressões, dores,
de tomada de consciência da própria vida, do lugar que se ocupa no mundo. “Eu percebi
que a metodologia não era só uma metodologia que eu iria aprender para replicar com
Não tem como ficar ali porque a gente cria a partir da nossa vida, são problemas
que a gente quer resolver, a gente quer transformar. Então não tem como ficar só no
teatro. Porque primeiro é a nossa vida que a gente tá contando e depois que a gente
conta a nossa vida a gente recebe do público um feedback de que também vivem
isso e possibilidades de ação em relação àquilo. Mesmo que não seja talvez uma
coisa grandiosa, quando a gente volta pra casa, a gente “poxa outras pessoas estão
implicadas nisso. Outras pessoas fizeram isso. E se eu tentar dessa forma? E se eu
tentar dessa forma?”. Então, seja num ato, com grandes ações e mobilizações na
111
rua, seja num próprio processo pessoal de investigação da própria vida, não tem
como ser só teatro, né? (...). Quando a gente fala realmente sobre as nossas vidas e
as pessoas se implicam a partir de suas vidas, a partir das suas vivências, é um
ensaio para a realidade, que é a realidade em si mesma. Muitas pessoas falavam
“ah, na vida isso aconteceu comigo, mas eu não tive coragem de levantar. Aqui eu
tive coragem de fazer. Se acontecer isso comigo de novo eu já sei o que eu vou
fazer” (Rachel Nascimento).
opressão, quebra da expectativa social. Em que circunstâncias seria aceito que empregadas
para contar sua história? Quando mulheres de Guiné-Bissau se veriam viajando sozinha
para outro país para apresentarem sua peça em um festival internacional de teatro?
Então para mim a coisa mais importante pra chegar no teatro do oprimido foi me
ver atravessada pelo desejo de ser atriz e toda a negativa que uma sociedade
patriarcal, capitalista, racista coloca a esse corpo de mulher negra. Onde que eu
deveria habitar, o que que eu deveria fazer, como eu deveria me comportar (Claudia
Simone).
pessoas. Paulo Freire (2013) defendia que a pedagogia do oprimido é aquela que é forjada
com ele, e não para ele. O acolhimento do objeto de reflexão dos oprimidos e das
Então eu acho que uma estratégia que a gente tem usado, né, eu digo eu e quem tá
sempre comigo fazendo oficina, né, a companheira Carol Netto, é ir falando das
questões que estão ali, dos problemas que estão ali. A temática da fome está sempre
presente (...) Quando o tema vem por eles mesmos, vem a fome, vem a insatisfação,
vem o desespero, e aí a gente começa a questionar “o que é que tá acontecendo pra
112
essa fome, esse desespero?”. E aí esse contexto político vem à tona e a gente
começa a discutir um pouco, sabe? A partir do que elas trazem, do que eles trazem
(Rachel Nascimento).
vêem a possibilidade de erguer a voz e fazer uso da palavra. Não é uma palavra colocada
em suas bocas, mas uma palavra que sai de dentro, que expressa quem são, o que vivem.
tecendo. Vão se ligando os pontos que auxiliam na compreensão das coisas e suas razões
de serem como são. Por meio do entendimento, a intervenção na realidade para a qual
ensaia o Teatro do Oprimido começa entre os seus, nas realidades particulares, antes de ser
coletiva. Isso, no entanto, não acontece isoladamente. A transformação pode ser particular,
mas parte de uma consciência coletiva. Nomear determinada dor pessoal se conecta à
que está vinculada a uma abordagem que obriga o reconhecimento da complexidade das
contexto social em que se está inserido, é possível se munir contra ele, como o fez Claudia
Simone.
4.3.2. Teatro do Oprimido e das Oprimidas não é terapia, mas pode ser terapêutico
que se propõem a vivê-lo. Nomear ou revelar a dor pode ser muito mobilizador, mesmo em
que em uma oficina, por exemplo, as pessoas participantes não são obrigadas a contarem
114
histórias que não querem contar. A partilha de histórias pessoais deve acontecer por livre e
espontânea vontade.
A pessoa, ela vai expressar ou ela vai trazer pro grupo aquilo que é possível pra ela,
porque às vezes... Você não é forçada a contar nenhuma história, você não é forçada
a representar ali nada. Então que seja acordado que aquilo que se traz pro grupo
seja aquilo que é possível pra pessoa (Iana Ribeiro).
No entanto, uma vez que o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas partem da
opressão como material de trabalho - e não são opressões deslocadas, fictícias, de outrem,
são opressões das pessoas que se fazem ali presentes, é esperado que em algum momento a
Isso não significa algo ruim. Eu acho que a gente, do mesmo jeito que expressa um
sorriso, a gente pode expressar um choro e isso não precisa desfazer o grupo na mesma
hora (Iana Ribeiro). Para o método, expressar emoções é algo que faz parte do processo.
Boal (2009) defendia que exercícios de emoção não devem ser descartados. Devem ser
feitos, mas objetivando compreender a experiência, não apenas senti-la. “A emoção em si,
desordenada e caótica, não vale nada. O importante na emoção é o seu significado” (Boal,
2009, p. 93).
Com isso, Boal quer dizer que é preciso racionalizar a emoção, buscar o porquê
as leis que os regem. Para isso serve a arte: não só para mostrar como é o mundo, mas
também para mostrar por que ele é assim e como se pode transformá-lo” (Boal, 2009, p.
91).
[Es importante] tener siempre una serie de ejercicios, o juegos, o experiencias para
cerrar. La manera de cerrar es siempre ese proceso de racionalizar la emoción, de
que hablaba mucho Augusto Boal, de entender porque nos sentimos como nos
115
sentimos y en ese proceso que se hace el ascese, no? Nos sentimos como nos
sentimos no porque “oh, pobre yo…”, si no porque el patriarcado, porque el
racismo, porque… Ese proceso es colectivizar… Y es ese proceso de racionalizar la
emoción que hace el cuidado39 (Lorena Roffé).
usar o método de modo que a oficina não se torne um momento catártico. É fundamental
opressões apontadas.
É normal chorar, né? E quando você tá ali trabalhando os temas através do teatro do
oprimido, as violências… A gente fala assim “teatro do oprimido não é terapia”. A
gente não é psicólogo. Mas é um método que tem um efeito terapêutico. Não é
terapia, mas o efeito pode ser terapêutico. Porque a pessoa através de jogos
criativos com o corpo, emocionalmente se conecta com traumas e procura superar
elas e isso está dentro do método. Porque o método não leva à vitimização, não leva
à ficar no pessoal. O teatro do oprimido leva ao estrutural (Liviana Bath).
Entonces no estamos ahí para ofrecer una solución terapéutica a los dolores… Lo
que pueda ayudar a generar y atravesar el dolor que atravesamos todas cuando
recorremos a nuestra propia historia porque todas hemos sido abusadas,
violentadas, no mínimo una vez en nuestra vida. Entonces es súper importante
saber que el trabajo que vamos hacer es político, por más que resulte terapéutico en
muchas ocasiones, pero no es un trabajo terapéutico40 (Lorena Roffé).
39
[É importante] ter sempre uma série de exercícios, jogos ou experiências para fechar e nunca deixar em
aberto quando (trecho inaudível). O jeito de fechar é sempre aquele processo de racionalizar a emoção, de
que o Augusto Boal falava muito, de entender por que sentimos o que sentimos e nesse processo é que se faz
a ascese, certo? Sentimos como nos sentimos não porque "ai, coitadinha ...", se não por causa do patriarcado,
porque racismo, porque... Esse processo é coletivizar... Estamos todas muito tristes, estamos todas muito
(trecho inaudível) porque ... E nesse processo de racionalizar a emoção se faz o cuidado (tradução livre).
40
Portanto não estamos aqui para oferecer uma solução terapêutica para a dor ... O que pode ajudar a gerar e
a passar pela dor que todos nós passamos quando passamos pela nossa própria história, porque todos fomos
abusadas, violadas, pelo menos uma vez em nossas vidas. Então é super importante saber que o trabalho que
116
O método pode ter efeito terapêutico, mas não é terapia. A análise feita das opressões não
2016).
pelo medo do silenciamento. O caminho rumo à libertação que é expor esses sentimentos e
quanto um rito de passagem quando alguém deixa de ser objeto e se transforma em sujeito”
a gente vai fazer é político, mesmo que seja terapêutico em muitas ocasiões, mas não é um trabalho
terapêutico (tradução livre).
117
allí [...] que tomamos eso como una energía, como un motor, como un impulso
hacia la acción41 (Lorena Roffé).
Nos papéis de sujeitos, as pessoas têm condição de lutar contra a opressão, para
pedir os próprios direitos, e muitas vezes isso começa por necessidade. Eu tenho fome,
então eu luto para comer alguma coisa. Eu sofro violência, então, se tá doendo tanto, eu
luto pra poder sair (Liviana Bath). Apesar da conjugação verbal na primeira pessoa do
singular, a luta a que a entrevistada faz referência não é uma luta individual. Não se trata
terapêutico. São questões coletivas, opressões estruturais que se revelam e que se tornam
objeto da luta.
por sua superação -, era preciso criar estratégias adequadas para confrontar a influência da
dominantes de uma sociedade são aquelas das classes dominantes. Elas fazem uso dos
41
Então uma das coisas é sempre marcar que o objetivo é a transformação, que, se passamos por momentos
de dor, que, se percebemos, porque muitas vezes isso também acontece nos processos, percebemos violências
diferentes das quais não tínhamos consciência, e essa consciência traz dor e essa memória traz dor. Mas essa
dor faz parte de um processo de transformação, parte de um processo que nos levará a um lugar melhor do
que aquele em que estamos e porque temos esperança e confiança política e coletiva de que isso é possível é
que nos permitimos para abrir esse espaço de dor. E também entender a dor e a raiva, como Bárbara
compartilha, que eu também acho muito bonito, como uma fonte de ação, como uma energia que também
provoca mobilização, que não é ruim encontrar tristeza, encontrar raiva, sempre quando não estamos ali (...)
Que tomemos isso como uma energia, como um motor, como um impulso para a ação (tradução livre).
118
(cinema, fotos, televisão, plataformas de streaming), o som (rádios, shows), para produzir
Você foi educado para fazer algo que foi implantado através da imagem, da palavra
e do som na sua cabeça - invasão do cérebro -, que faz com que você reaja dessa
forma, porque você foi educado nessa sociedade. E é por isso que a estética do
oprimido é tão importante, porque ela combate. É um combate à invasão do
cérebro. E o que eu tô discutindo, que é a descolonização da mente… A ideia é
libertar o meu eu dessas amarras que estão desde quando a gente nasce (Claudia
Simone).
estética do opressor representam os oprimidos não como partícipes, mas como negação
(Santos, 2018). Grijó e Sousa (2012) e Faria e Fernandes (2007) desenvolveram estudos
sobre a representação de pessoas negras na telenovela brasileira. Eles apontam que negros
permanecem ainda com papeis de pequeno destaque nas narrativas, com pouca
forma, pois sofrem da colonização da mente. Estão presos a um contexto cultural que
define liberdade apenas como aprendizagem da língua do opressor (hooks, 2019); são
metralhados diariamente por uma estética que os estimula e direciona para lutar contra a
(Santos, 2018).
Nesse sentido, não é à toa que o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas têm
para a inclusão do contexto das opressões. Por meio dela, faz-se uma análise crítica do real,
construção de uma narrativa autônoma e também coletiva, pois envolve a muitos outros e
grupo quiere trabajar a partir del hacer y no a partir del verbalizar. Y no quedamos
ahí con historias particulares42 (Mariana Villani).
“arma de poder”, nas palavras de Augusto Boal (2009, p. 18). Através desse exercício, é
possível desenvolver a capacidade de ir além da aparência do real e ver aquilo que, mesmo
não revelado em sua imagem, também o constitui. O pensamento sensível abre outros
caminhos para acesso daqueles níveis de percepção do real, até mesmo aqueles que não
chegaram à consciência e, portanto, não são traduzíveis pela linguagem simbólica (Santos,
2018).
Oprimido. Por meio da metáfora, busca-se representar a realidade a partir das próprias
42
Trabalho somente a partir de exercícios da estética do oprimido. Tudo é estética, estética, estética, estética
e logo muitas multiplicações criativas nos exercícios do teatro do oprimido para identificar através da criação
qual é a situação problemática que o grupo quer trabalhar ou qual é a opressão que o grupo quer trabalhar a
partir do fazer e não do verbalizar. Não ficamos aí com histórias particulares (tradução livre).
121
artistas.
A gente utiliza também a proposta da metáfora para que esses temas sejam ditos de
uma outra maneira, que eles possam ser mobilizados de uma outra maneira. Por
exemplo, falar de opressão e fazer todo o som da opressão. Não usar a palavra para
falar. Usar o corpo fazendo imagens, símbolos, gestos… Tudo isso é abordar um
tema e traz a consciência e permite que você faça a discussão de uma maneira
estética e artística (Claudia Simone).
Nesse processo de criação, evita-se o uso da palavra. Para Boal, a palavra mobiliza,
fixa no tempo e no espaço aquilo que é fluido; é obra e instrumento da razão simbólica,
não da razão sensível. É preciso “transcendê-las [as palavras], buscar outras formas de
comunicação que não sejam apenas simbólicas, mas também sensoriais - comunicações
Não tem como a gente não se perceber como um grupo social, né, participante do
processo político nesse conduzir dos exercícios, se a gente não fizer esse processo
todo, né? Eu acho que a gente tem feito assim, muito na construção coletiva e
estética. A palavra, se entra, ela entra no final, como diz Boal. E ela entra de uma
forma muito pontual. (...) É pouco texto, o texto necessário, a palavra necessária, e
a gente vai refletindo o que quer dizer aquela palavra em diversos contextos e
aprofundando o sentido. Então acho que é isso, uma construção numa perspectiva
estética dá a possibilidade de entender essas relações num contexto social e não ser
uma história individual, ser uma história coletiva. (Rachel Nascimento).
Em suma, a criação de uma estética própria, uma linguagem dos oprimidos, indica
permitir sonhar, imaginar uma nova realidade. Romper com a lógica opressora e conseguir
Considerações finais
intervenção social em casos de violência contra a mulher. Para tanto, foram entrevistadas
seis mulheres, curingas de referência na atuação com Teatro do Oprimido e com Teatro das
trabalho com base no método do Teatro do Oprimido. Essa proposta havia sido pensada
assistência social. À essa altura do campeonato, é possível dizer que teve seu lado positivo
provenientes das entrevistas, ficou evidente que aspectos como desenho da oficina, seus
objetivos, escolha dos jogos são (retoma-se agora uma metáfora usada em um dos capítulos
teóricos) a ponta do iceberg - algo que não estava tão evidente para a pesquisadora antes do
campo.
mais que saber construir a dramaturgia de um fórum, escolher os jogos, sua sequência de
a proposta, mas por meio das entrevistas contribuíram de um modo bastante potente:
embaixo da água.
experiências que têm construído com o TO ao longo dos anos. Forneceram material
não, de uma oficina. Deram a oportunidade de pensar o método de forma mais ampla.
124
quando um novo objeto surge, junto com uma nova metodologia, e se pensava que tudo
entanto, percebe-se hoje que as transformações pelas quais passou a pesquisa foram
foram mais que suficientes para alcançá-los. Quanto ao objetivo de “caracterizar e analisar
levantaram como principais desafios: lidar com o machismo e racismo - não apenas como
opressões presentes na sociedade de modo geral, mas como opressões reproduzidas dentro
uma jornada. “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”43. Se as opressões das
mulheres, brancas e negras, estavam sendo invisibilizadas em trabalhos com grupos mistos,
jeito de erguer suas vozes. Assim nasceu uma nova metodologia, atenta às especificidades,
trabalho com TO”, foi unânime a seguinte resposta: apoie-se no método. Conhecer em
conhecer o arsenal, a dramaturgia do TO… Esses aspectos dão suporte para que o objetivo
individualidade, com a alienação, é preciso ser solidária, estar atenta à estética, à ética do
oprimido e, antes de tudo, é preciso ter esperança e sonhar que um mundo com justiça
social é possível.
raça e classe. Tanto o Teatro do Oprimido quanto o Teatro das Oprimidas foram destacados
como estratégias para conscientização de si, das opressões presentes nas vidas dos sujeitos
e da macroestrutura que sustenta essas opressões. Ainda foram apontados como caminhos
social.
Finalizada a pesquisa, fica aqui a reflexão do quanto seria potente ter uma
partir de uma análise crítica, à discussão de experiências pessoais seria enriquecedor para o
Não é porque a teoria está fundamentada no discurso escrito que ela tenha que
acabar aí. O feminismo pode usar a arte para se manifestar. Pode ocupar corpos através de
imagem, som e ritmo e pode usar também a oralidade para se difundir. Isso significa tirar o
feminismo de dentro dos muros da academia, dos livros, das revistas empoeiradas. É
126
acadêmicos, geralmente brancos, com origem em classes privilegiadas (hooks, 2019). Por
aumentadas.
construção coletiva de uma saída, um caminho de luta por uma sociedade justa. É uma
com ela”44. Estando na base da pirâmide da sociedade capitalista, as mulheres negras são as
que mais sofrem com o nó imbricado de opressões de gênero, raça e classe. Ao passo que
política de assistência social. Desse modo, não se trata só de propor uma metodologia de
trabalho com as mulheres usuárias da política pública, mas de construir com elas
vulnerabilizadas. Justamente por isso, acredita-se que algo que pode contribuir para fazer
44
Discurso de Angela Davis durante a conferência de abertura da Escola de Pensamento Feminista Negro,
em 17 de julho de 2017, na cidade de Cachoeira-BA.
127
avançar esse acúmulo é pensar a utilização dessas metodologias nas escolas, com as
modo que o debate sobre a violência contra a mulher (que espontaneamente emerge dentre
pessoas negras, que podem se conscientizar dos processos históricos para não
educação feminista como algo importante na vida de todo mundo” (hooks, 2000, p. 46).
acadêmica e até mesmo da palavra escrita. O Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas
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134
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Apêndice
Planejamento de oficina
cidade de Natal/RN. Majoritariamente, o público que atendo todos os dias são mulheres,
que de uma forma muito frequente e naturalizada relatam vivências de violência de gênero.
Após alguns anos ouvindo e intervindo em tantas histórias de vida, pareceu-me imperioso
dessa pesquisa: Como (ou se) as mulheres percebem que suas particularidades, seu
sensível, criativa, com potência de transformação, fui arrebatada pelo método do Teatro do
Oprimido. Em seu livro Raízes e Asas, Bárbara Santos (2016, p. 123) afirma que o Teatro
meios concretos para ações efetivas que levem à transformação da realidade”. Pareceu-me
uma combinação poderosa unir a opressão vivida pelas mulheres com um método que
em que a violência contra a mulher se apresenta de forma tão diária e naturalizada, fiz um
45
O CRAS faz parte do Sistema Único de Assistência Social e é um equipamento de desenvolvimento dos
serviços socioassistenciais da proteção social básica.
136
mulher presentes nas histórias do coletivo. Além disso, pretende-se descobrir táticas e
estratégias para evitar e/ou superar essas opressões, gerar rupturas nos discursos e práticas
hegemônicas que tanto oprimem e violentam as mulheres. Por fim, almeja-se estimular a
pensada tendo como público alvo mulheres usuárias da política de assistência social a nível
municipal, mais especificamente mulheres que sejam atendidas por equipamentos como
com base na minha experiência de trabalho, atendendo inúmeras mulheres e ouvindo delas
também coletivamente, uma esquete. Essa pequena cena deverá representar a opressão
escolhida pelas participantes e o seu final precisa ser de fracasso. A opressão precisa
acontecer. A proposta é que a esquete seja o ponto de partida para a segunda etapa da
Oprimido. Sua metodologia permite que a barreira entre palco e plateia seja destruída e que
o diálogo direto seja implementado. A cena criada pelo grupo de mulheres será apresentada
para seus convidados e suas convidadas e ao final o público é convidado a pensar em como
mudar o final da história contada, como romper a opressão encenada. A cena se repete,
mas dessa vez, ao público é possível entrar em cena e intervir no lugar de uma das atrizes
momento, a ideia é ouvir das mulheres participantes como foi a vivência de todo o
É importante destacar que apesar deste planejamento estar pronto, finalizado, isso
não significa que não pode ser alterado. Muito pelo contrário! É uma ideia inicial apenas,
que pode, e deve, ser alterada conforme a necessidade. Os jogos escolhidos são caminhos
para pensar o processo de criação e discussão da temática, mas não são os únicos
tema. A cada encontro é preciso que haja sensibilidade e flexibilidade para acolher as
Entende-se o processo como algo fluido, dinâmico. Os jogos e exercícios vão se colocando
como resposta ao movimento do grupo nos encontros anteriores. Este planejamento nada
mais é que um guia - passível de sofrer alterações - para se debater questões de gênero e
1º dia:
No primeiro encontro do grupo, pretende-se apresentar a proposta global da
intervenção, com suas etapas e seus objetivos, bem como conhecer as participantes do
grupo, ouvir suas expectativas em relação aos encontros. Além disso, serão conduzidos
jogos do arsenal do teatro do oprimido, tanto para mediar a apresentação das participantes,
quanto para já sensibilizá-las em relação à metodologia que guiará os encontros.
Jogo 3: Caminhadas
Descrição: seguir como continuidade do jogo anterior. Participantes seguem circulando
livremente pelo espaço e em certo momento pede-se que andem como se estivessem em
câmera lenta; como animais (chimpanzé, camelo, elefante…); que experimentem ritmos
diferentes de caminhada; como se estivessem andando na lua; em brasa; em gelo; como
presidente; como um empresário; como uma dona de casa; como uma modelo; como uma
professora; como uma pessoa em situação de rua… Ao fim do jogo, explorar com o grupo
como foi a experiência do jogo e as possíveis sensações que ele despertou.
Fechamento
Pegando o gancho da discussão do último jogo, conduzir ao fechamento do encontro,
perguntando como foi para as participantes a experiência, como elas saem do encontro.
Finalizar com um último jogo, breve: a chuva italiana (segue descrição abaixo).
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2º dia:
No 2º encontro, a proposta é seguir com a experimentação de jogos do arsenal do
TO, com foco em usar a potencialidade do corpo para criar uma narrativa, com o jogo
“completar a imagem”, e experimentar a multiplicidade de sentidos que uma palavra pode
ter, com “quantos “as” existem em um “a”?.
Jogo 1: Badu
Descrição: em círculo, inicia-se comum uma base simples de batidas de dois dedos na
palma da mão e palma da mão no peito, dando o ritmo básico de batidas do coração para
acompanhar a apresentação dos nomes dos participantes (uma forma de relembrar a
apresentação do encontro anterior). Em seguida, incluem-se outros elementos sonoros,
como os pés, ampliando a quantidade de batidas: duas batidas com os dois dedos na palma
da mão, duas com a palma da mão no peito, duas batidas com os pés no chão (um pé de
cada vez). Depois disso, passa-se a tirar uma parte do som, criando intervalo ao não bater a
palma da mão no peito ou os dedos na palma da mão ou os pés no chão. Por fim,
começa-se a experimentar o movimento dentro do círculo: para a direita, para a esquerda,
para frente, para trás.
Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.
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3º dia:
No 3º encontro, o objetivo é sensibilizar as participantes quanto à percepção de
que nenhuma estrutura espacial é inocente: todas têm um significado e uma desigual
distribuição de poder. A partir deste encontro pretende-se inserir a temática da opressão e
investigar os sentidos a ela atribuídos pelas participantes.
Jogo 1: METOCA
Em círculo, cria-se um ritmo comum com o estalar dos dedos. Em seguida,
segue-se no ritmo, mas elimina-se som e movimento, até estarem todas paradas, mas
conscientes do ritmo. O grupo segue conectado por um ritmo “invisível” que foi
internalizado. O jogo consiste em, na sequência do círculo, cada pessoa saltar dentro do
ritmo estabelecido. Quando todas tiverem saltado individualmente, inicia-se a segunda
rodada. Dessa vez, saltam dois a dois, depois três a três, quatro a quatro até cinco a cinco.
No caso do grupo cometer algum erro, retorna-se para a sequência inicial: um a um. O
desafio é fazer de um a cinco sem intervalo.
Jogo 2: O ritual
Descrição: Solicitam-se seis voluntárias. Três representarão mulheres e as outras três,
homens. Pede-se que construam o modelo de uma casa mais ou menos normal, uma casa
em que qualquer uma delas pudesse viver. Em seguida, todas desocupam a “casa”, exceto a
primeira mulher (representando as mulheres). Pede-se que mostrasse rapidamente todos os
movimentos que faria ritualisticamente desde a hora em que chegava em casa até a hora de
dormir. Gestos e movimentos como demonstração não realística; isto é, as participantes
devem mostrar o que comem, por exemplo, como um gesto rápido de comer, e então
devem partir para a próxima ação sem entrar em detalhes. A cena toda, desde a chegada à
casa até a hora de dormir, deve durar em média três ou quatro minutos.
Após a segunda e terceira mulheres apresentarem, uma de cada vez, suas cenas,
inicia-se o ritual dos homens (no caso do grupo, especificamente, da representação dos
homens pelas mulheres). Ao fim, propõe-se uma segunda dinamização. Dessa vez, as seis
participantes retornam ao cenário e fazem os mesmos movimentos anteriores de forma
acelerada, como se estivessem em um daqueles filmes mudos, onde todo mundo parece
estar correndo.
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Terminado o jogo, abrir plenária para debater as impressões das participantes sobre
as cenas formadas.
Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.
4º dia:
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É importante fazer uma breve discussão sobre opressão, apresentando-a como uma força que se
materializa, por exemplo, tanto na violência física, psicológica, quanto nas regras sociais impostas que
impedem muitas vezes as mulheres de ocupar certos espaços, terem certas posturas.
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Por fim, são inseridos os temas mais discutidos na atividade anterior, as palavras que
geraram mais interesse no grupo.
Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.
5º dia:
No 5º encontro a proposta é construir coletivamente a dramaturgia do
Teatro-Fórum.
2ª etapa: Fórum
Ao fim do fórum, a proposta é que seja conduzida uma roda de conversa para
debater e acolher o que pode surgir durante a apresentação. A partir disso, é possível
pensar coletivamente como aquelas estratégias do fórum podem se concretizar na vida das
pessoas da comunidade.
Por fim, dessa vez somente com as participantes do grupo, será conduzido um
encontro de avaliação de todo o processo, desde os encontros iniciais, até a concretização
do fórum.
Avaliação
Avaliadora:
Justificativa:
Justificativa:
Justificativa:
Justificativa:
5. Ideias e sugestões:
Referências bibliográficas
Santos, B. (2016). Teatro do Oprimido: Raízes e asas - uma teoria da práxis. Rio de
Janeiro: Ibis Libris.