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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER,

O TEATRO DO OPRIMIDO E O TEATRO DAS OPRIMIDAS:

CONSTRUINDO FORMAS DE INTERVENÇÃO SOCIAL

Renata Cibelli Freire Barbosa

Natal

2021
Renata Cibelli Freire Barbosa

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER,

O TEATRO DO OPRIMIDO E O TEATRO DAS OPRIMIDAS:

CONSTRUINDO FORMAS DE INTERVENÇÃO SOCIAL

Dissertação elaborada sob orientação da Profª. Drª. Ilana

Lemos de Paiva e apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Natal/RN

2021
Barbosa, Renata Cibelli Freire.
Violência contra a mulher, o Teatro do Oprimido e o Teatro
das Oprimidas: construindo formas de intervenção social /
Renata Cibelli Freire Barbosa. - 2021.
145f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras


e Artes, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ilana Lemos de Paiva.

1. Violência Contra Mulher - Dissertação. 2. Teatro do


Oprimido - Dissertação. 3. Teatro das Oprimidas - Dissertação.
I. Paiva, Ilana Lemos de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação "Violência contra a mulher, o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas:

construindo formas de intervenção social", elaborada por Renata Cibelli Freire Barbosa, foi

considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo

Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, 03 de dezembro de 2021.

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Ilana Lemos de Paiva (Presidente

da banca) ___________________________________

Profª Drª Maria de Fátima Jerônimo

Marques (Examinadora externa) ___________________________________

Profª Drª Cândida Maria Bezerra Dantas

(Examinadora interna) ___________________________________

Profª Drª Carmem Plácida Sousa

Cavalcante (Suplente) ___________________________________

Profª Drª Tabita Aija Silva Moreira

(Suplente) ___________________________________
Agradecimentos

Agradeço a minha grande amiga Jéssica, que esteve comigo em absolutamente

todos os momentos deste mestrado, desde os estudos para a seleção até a defesa. Se não

fosse por ela, sem dúvida eu não teria chegado até aqui. Sua companhia tornou essa

caminhada muito mais feliz e leve.

Durante o caminho, mais uma vez a amizade e a pós-graduação se encontraram.

Sophia, outra grande amiga, se juntou a nós e então formamos um tripé que sustentou o

peso, as dores e alegrias de produzir uma pesquisa. Minhas amigas tão queridas e amadas,

muito obrigada! Sou muito grata por isso e por tantas outras maravilhas que a nossa

amizade me proporciona.

Agradeço a Ilana, minha orientadora, por tanta paciência, sensibilidade e doçura.

Obrigada por tantas vezes ter me passado a segurança que eu não tinha, por ter se

encantado junto comigo pelo Teatro do Oprimido e por ter acreditado em mim e nessa

pesquisa. Aproveito para agradecer a Luana, minha coorientadora não oficial, pela

presença constante, correções e direcionamentos valiosos.

Ao meu amor, Luís, que foi um porto seguro, que nem por um momento deixou de

acreditar em mim. Obrigada por ver em mim o que eu muitas vezes não consigo ver, por

estar sempre ao meu lado, pelo amor, cuidado e parceria diários.

Mesmo que ele nunca leia isso, agradeço ao meu cachorrinho Badinho por ter

estado comigo em absolutamente todo tempo de estudo e escrita desta pesquisa. Ter uma

presença perene, incansável e repleta de amor num processo tão solitário e extenuante fez

toda a diferença.

Agradeço aos meus pais, Renato e Marize, pela confiança que têm na filha de

vocês, pelo apoio e cuidado que nunca me deixaram faltar; ao meu irmão Guilherme pela

escuta atenciosa e amorosa de sempre; ao meu irmão Gustavo e a minha cunhada Clarinha,
por me darem orientações durante os almoços de domingo e me sugerirem livros para

enriquecer meu texto.

Agradeço a minha amiga Ginetta, que não poupou esforços para me ajudar com os

textos para a prova de seleção do mestrado; às amigas Joyce, Dani, Lívia e Luana (mais

uma vez), por terem pacientemente me orientado na construção do projeto. Se não fosse

por vocês, meu caminho na pós-graduação não teria nem iniciado. Agradeço também ao

amigo Bico, que prontamente se dispôs para me ajudar a pensar na condução do campo da

pesquisa.

Agradeço à equipe do CRAS, por ter compreendido minhas ausências durante as

aulas e por ter me apoiado durante esse percurso. Agradeço em especial à Fatita, que com

toda sua bagagem no feminismo tanto contribuiu com a produção deste trabalho, dando

sugestões, indicando leituras, emprestando livros.

Agradeço as minhas Formigas - Amanda, Bianca, Brisa, Fátima, Isa, Raíssa e

Sophia -, e também a minha Seleção - Amlyn, Bia, Jenini, Luana, Mabelle, Renata Thé,

Rosa, Thaís, Virgínia e Vivi -, por terem compreendido tantas ausências (presenciais e

virtuais) sem que isso afetasse nossa amizade.

Obrigada, meu amigo Daniel, que, compreendendo mais que ninguém o que é

conviver com alguém fazendo um mestrado, foi sempre muito prestativo e generoso com

seus conhecimentos.

Agradeço à turminha da pós, que tornou as aulas mais leves e divertidas e que

sempre se colocou disponível para ajudar. Agradeço em especial a Gustavo, Jenair, John,

Lisandra, Matheus, Luna, Renata Kívia e Victor e Vitor Alexander.

Por fim, agradeço profundamente a Claudia Simone, Iana Ribeiro, Liviana Bath,

Lorena Roffé, Mariana Villani e Rachel Nascimento. São curingas inspiradoras e mulheres

incríveis que doaram tempo, energia e foram mais que magnânimas ao compartilhar tanto
conhecimento e experiência. Poder entrevistá-las foi uma honra e um privilégio para mim.

Obrigada pelos ensinamentos, por contribuir de forma fundamental para a concretização

desta pesquisa e por tanto tê-la enriquecido a partir de seus relatos.


Sumário
Lista de siglas x

Resumo xi

Abstract xiii

Introdução 15

Capítulo 1 - Capitalismo e Patriarcado: territórios de dominação-exploração-opressão nas


relações sociais de gênero, raça e classe 27
1.1. A apropriação da vida das mulheres pelo capitalismo: notas introdutórias 27
1.2. Divisão sexual do trabalho 31
1.3. O nó de gênero, raça e classe na sociedade brasileira 36
1.4. Ordem patriarcal de gênero 41

Capítulo 2 - Vivência, mulheres e Teatro do Oprimido 47


2.1. Vivência da violência contra a mulher e a dialética singular-particular-universal 47
2.2. O Teatro do Oprimido como estratégia de intervenção social 50

Capítulo 3 - Aspectos metodológicos 58

Capítulo 4 - Resultados e Análise dos dados 65


4.1. Um teatro coletivo e político 65
4.1.1. A nível grupal 65
4.1.2. A rede de suporte dentro do Teatro 72
4.1.3. Transformação social 74
4.1.4. Atuação da curinga 80
4.2. Um teatro em transformação 84
4.2.1. O desvelar da influência da branquitude, sexismo e machismo dentro do
TO 85
4.2.2. Compreensão da consubstancialidade das opressões 89
4.2.3. O Teatro das Oprimidas 94
4.2.4. Trabalhos online na pandemia 104
4.3. Um teatro de necessidade e esperança 108
4.3.1. Atravessamentos de si 109
4.3.2. Teatro do Oprimido e das Oprimidas não é terapia, mas pode ser
terapêutico 113
4.3.3. O uso da estética e apoio no método 117

Considerações finais 123

Referências bibliográficas 128

Apêndice 135
Lista de siglas

Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)

Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)

Festival Internacional das Artes da Língua Portuguesa (FESTLIP)

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)

Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)

Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersexo e Assexuais

(LGBTQIA+)

Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)

Organização Mundial da Saúde (OMS)

Sistema Único de Assistência Social (SUAS)

Teatro do Oprimido (TO)

Teatro-Fórum (TF)

Vírus da imunodeficiência humana (VIH/HIV)


Resumo

Dentre os tipos de violência de gênero, a violência contra a mulher é a mais frequente no

contexto brasileiro. Isso se dá apesar dos avanços normativos, da criação de mecanismos

para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e do estabelecimento de

medidas para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência.

Através do esquema de dominação-exploração-opressão, o cisheteropatriarcado exerce

grande influência na vida das mulheres, em especial daquelas em situação de pobreza. O

Teatro do Oprimido (TO) é um dispositivo emancipatório e alternativo que se propõe a

questionar aspectos da coletividade. Através do TO, objetiva-se compreender os

mecanismos pelos quais uma opressão se produz, a descoberta de táticas e estratégias para

evitá-la e o ensaio dessas práticas. A partir da associação desses dois elementos e em busca

da construção de meios libertadores, criativos, dialógicos para debater a violência contra a

mulher, nasceu essa pesquisa. O estudo pretende analisar o Teatro do Oprimido como

forma de intervenção social em casos de violência contra a mulher, bem como avaliar uma

proposta metodológica de trabalho com base no método do TO, caracterizar e analisar os

desafios de atuação com TO na atualidade e identificar as estratégias para a garantia dos

pressupostos do trabalho com TO. Fazem parte desta pesquisa seis mulheres, curingas,

atuantes no TO. Os procedimentos e instrumentos de construção de dados utilizados foram

a avaliação de um planejamento de intervenção voltado para mulheres e a realização de

entrevistas semiestruturadas. Os resultados demonstraram que o Teatro do Oprimido tem

sua importância no debate acerca de opressões, mas apontam a relevância do Teatro das

Oprimidas como uma estratégia relevante para discutir a consubstancialidade de gênero,

raça e classe. Ambas as metodologias foram destacadas como meios para conscientização

de si, das opressões presentes nas vidas dos sujeitos e da macroestrutura que sustenta essas
opressões. Outrossim, foram apontadas como caminhos rumo à transformação tanto de

contextos de vidas particulares quanto para a transformação social.

Palavras-chave: violência contra mulher; Teatro do Oprimido; Teatro das Oprimidas.


Abstract

Among the types of gender violence, violence against women is the most frequent in the

Brazilian context. This happens despite regulatory advances, the creation of mechanisms to

curb domestic and family violence against women and the establishment of measures for

the prevention, assistance and protection of women in situations of violence. Through the

domination-exploitation-oppression scheme, cysheteropatriarchy exerts a great influence

on women’s life, especially on those in poverty. The Theater of the Oppressed is an

emancipatory and alternative device that proposes to question aspects of collectivity.

Through TO, the purpose is to understand the mechanisms by which an oppression is

produced, the discovery of tactics and strategies to avoid it and the rehearsal of these

practices. From the association of these two elements and in search of the construction of

liberating, creative and dialogic means to debate violence against women, this research was

born. The study intends to analyze the Theater of the Oppressed as a form of social

intervention in cases of violence against women, as well as to evaluate a methodological

work proposal based on the method of the Theater of the Oppressed, to characterize and

analyze the challenges of acting with Theater of the Oppressed nowadays and to identify

the strategies for guaranteeing the fundamentals of the Theater of the Oppressed. Six

women, jokers, working in TO are part of this research. The collection procedures and

instruments used were the evaluation of an intervention planning aimed at women and

semi-structured interviews. The results showed that the Theater of the Oppressed has its

importance in the debate about oppression, but they point out the relevance of the Feminist

Theater of the Oppressed as a way to discuss the consubstantiality of gender, race and

class. It is a new methodology, designed to address specificities of women's oppression,

without losing sight of the totality, the social context in which they operate. Both

methodologies, the Theater of the Oppressed and the Feminist Theater of the Oppressed,
were highlighted as means of reaching self-awareness and understanding the oppressions

present in the lives of subjects and the macrostructure that sustains these oppressions.

Furthermore, they were pointed out as paths towards the transformation of both private life

and social context.

Keywords: violence against women; Theater of the Oppressed; Feminist Theater of the
Oppressed.
15

Introdução

Nos serviços da política de assistência social, as pessoas de referência1 das famílias

são quase todas mulheres. Apesar de haver uma justificativa na Lei Orgânica da

Assistência Social/LOAS (Lei 8.742/1993) para essa forte presença feminina2, é possível

observar tal fenômeno de uma forma ampliada, abarcando as políticas sociais de maneira

geral.

No Brasil, por volta da década de 1970, a pobreza se tornou foco central de

intervenção e limite para o crescimento econômico. Desde então, as políticas sociais têm

sido elaboradas no sentido de tratar a “questão social”3 numa perspectiva individualista, de

forma que, nessas políticas, a família ocupa um lugar de destaque, com o papel de

instrumento de desenvolvimento social (Soares, 2011).

Em torno das famílias giram expectativas e papéis relacionados à organização da

vida social, especificamente à reprodução social e à proteção e cuidado de seus membros.

Em meio a isso, as ideias de solidariedade familiar e afetiva, reforçadas por leis que tornam

legal a obrigação do cuidado, contribuem para a construção de códigos culturais que

sustentam o pensamento hegemônico acerca da família como principal responsável pela

proteção social (Mioto, 2018).

Isso é ilustrado nos resultados de uma pesquisa realizada por Teixeira (2013, como

citada em Mioto, 2018) com profissionais da política de assistência social. A partir das

falas dos sujeitos, a pesquisadora observou que as queixas desses trabalhadores quanto às

famílias atendidas é que os pais, sobretudo as mães, não cumprem suas funções e

1
O IBGE define Pessoa de Referência na Família como “aquela pessoa responsável pela unidade domiciliar,
ou pela família, ou aquela que assim for considerada pelos demais membros da família” (IBGE, 2010).
2
De acordo com o artigo 40-A da LOAS, os benefícios monetários referentes a provisões suplementares e
provisórias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade
pública, transferência de renda vislumbrando a erradicação do trabalho infantil e subsídios de enfrentamento
à pobreza, respectivamente dispostos nos artigos 22, 24-C e 25 desta Lei, serão pagos preferencialmente à
mulher responsável pela unidade familiar.
3
O termo “questão social” se refere ao conjunto das expressões das desigualdades sociais forjadas na
sociedade capitalista madura (Iamamoto, 2001).
16

responsabilidades. As mulheres são culpabilizadas pelos problemas da família de modo a

reforçar o modelo cultural que, quase exclusivamente, atribui a elas o papel de cuidado

com o ambiente doméstico e com os membros familiares (Teixeira, 2013, como citada em

Mioto, 2018; Soares, 2011).

Esse entendimento sobre a responsabilização das mulheres dá subsídio para

compreender o que está por trás do artigo 40-A da LOAS, mencionado no começo desta

introdução. O artigo diz que “os benefícios monetários [...] serão pagos preferencialmente

à mulher responsável pela unidade familiar quando cabível” (Brasil, 1993). Entender que

seu texto versa somente sobre a prioridade para receber qualquer transferência de renda

proveniente de política social é compreendê-lo em sua superficialidade. Mais a fundo, a

mensagem que se passa é a de que cabe às famílias a responsabilidade com a proteção

social e, dentro das famílias, cabe às mulheres a responsabilidade na provisão de cuidado e

bem-estar para os seus membros.

Apesar de exercerem uma função tão relevante, aparentemente o fato das mulheres

estarem na linha de frente da proteção social não lhes garante outros tipos de proteção. Por

exemplo, no quesito da política de assistência social, ser responsável pela família gera mais

ônus que bônus, uma vez que tal política centraliza suas concepções e serviços na família,

não nos direitos das mulheres ou na desigualdade de gênero (Santos, 2015).

Os dois lados dessa moeda, ou seja, a responsabilização pela família e a

invisibilização das intempéries vividas pelas mulheres no contexto familiar, são manifestos

tanto no aspecto macro (a insuficiência de serviços voltados para as mulheres e suas

necessidades, por exemplo) quanto no micro, no caso, representado através dos discursos

das mulheres atendidas pelo CRAS a que se refere esta pesquisa. Ao passo que elas

buscavam o equipamento para tratar de alguma questão familiar, percebia-se que, nos

atendimentos realizados, as mulheres comumente relatavam episódios de opressão de


17

gênero e/ou violência doméstica, tendo, em sua maioria, o companheiro como autor4.

Conforme ia se desenvolvendo o acompanhamento familiar, por vezes era notório como a

realidade de violência é introduzida na vida de tantas delas de forma naturalizada.

A naturalização da violência se apresenta como mais uma contradição, em especial

ao se levarem em conta os avanços normativos em relação à violência doméstica dos

últimos anos, com destaque para a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Considerada um

marco importante no combate à violência contra a mulher no Brasil, a partir da Lei Maria

da Penha a violência doméstica passou a ser tipificada como uma violação dos direitos

humanos; o Código Penal foi alterado de modo a possibilitar a prisão do agressor em

flagrante ou preventivamente; foram criados Juizados e Varas Especializadas em Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher com atuação no âmbito cível e criminal, em

defensorias especializadas; além da previsão de novas medidas de proteção à mulher,

incluindo a rede de serviços (Aguiar, D’Oliveira, & Schraiber, 2020).

As mudanças nas modalidades assistenciais ofertadas deram origem a uma rede de

atendimento à mulher em situação de violência. A ideia de rede não diz somente da

existência de um conjunto de serviços, mas da existência de “uma articulação das ações e

dos profissionais no sentido de uma assistência que seja compartilhada e acordada entre os

atores envolvidos a partir das necessidades particulares de cada caso” (Aguiar, D'Oliveira

& Schraiber, 2020, p. 3). O trabalho em rede também se refere à oferta de atenção integral,

com posturas afinadas no tratamento à usuária, buscando não fazer julgamento moral ou

revitimizar a mulher que já sofreu violência, isso em todos os serviços pelos quais ela

possa passar. O CRAS está dentre os equipamentos que compõem essa rede.

De acordo com o documento “Orientações Técnicas: Centro de Referência de

Assistência Social”, lançado em 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e

4
Esses relatos são compatíveis com a realidade mundial. Em 2013, um estudo realizado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) apontou que aproximadamente uma a cada três mulheres do mundo (35,6%) é
vítima de violência física e/ou sexual perpetrada em sua maioria por seus parceiros.
18

Combate à Fome, o CRAS é uma unidade de proteção social básica do SUAS e, por isso,

“tem por objetivo prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidades e riscos sociais

nos territórios, por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, do

fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, e da ampliação do acesso aos direitos

de cidadania” (MDS, 2009, p. 10).

Apesar de o trabalho com casos de violações de direitos, como violência contra a

mulher, não estar no rol do seu campo de atuação, o fato do CRAS comumente ser

geograficamente localizado em um bairro periférico torna fácil o acesso da comunidade

atendida. Isso se configura como um fator facilitador na vinculação do equipamento com

os usuários e usuárias do SUAS.

Dessa forma, o Centro se torna uma referência para a comunidade, um lugar ao

qual recorrer, seja no campo da proteção básica ou até mesmo quando a violação de

direitos já se efetiva. Neste último caso, é feito o acolhimento e encaminhamento para os

órgãos competentes, mas não trabalhar diretamente com violações não significa que essa

demanda não chegue ao CRAS.

Mesmo com o aparato proveniente da Lei Maria da Penha e seus desdobramentos, a

violência contra a mulher ainda ocupa um lugar naturalizado, fazendo parte dos discursos

dos sujeitos e se refletindo nos dados sobre violência. Quando se observam os índices

(OMS, 2013; IPEA & FBSP, 2020), percebe-se que os números continuam alarmantes e

que as vivências de violência das mulheres usuárias do CRAS não são exclusivas do

território onde o equipamento está localizado. O fenômeno da violência contra a mulher

tem forte projeção nacional.

O Atlas da Violência 2020, documento produzido pelo Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), traz

dados e análises relacionados ao processo de acentuada violência no território brasileiro. O


19

período de referência é de 2008 a 2018. Tal documento aponta que em 2018 uma mulher

foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Tal montante

representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil brasileiras (IPEA & FBSP, 2020).

Apesar de no último ano analisado ter havido uma tendência de redução da

violência letal com as mulheres, em comparação com os anteriores, a análise de um

período mais longo no tempo possibilita perceber um aumento nas taxas de homicídios de

mulheres no Brasil e em diversas unidades federativas. Entre 2008 e 2018, o Brasil teve

um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres (IPEA & FBSP, 2020).

O Atlas mostra também marcadores de gênero e raça na violência. Embora o

número de homicídios femininos tenha apresentado redução de 8,4% entre 2017 e 2018, ao

avaliar o contexto dos dez anos em questão, percebe-se que a situação melhorou apenas

para as mulheres não negras, acentuando-se ainda mais a desigualdade racial. Entre 2008 e

2018, a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, ao passo que a taxa entre

as mulheres negras aumentou 12,4%.

O mesmo levantamento traz ainda algo importante de se destacar: a mulher que se

torna vítima fatal muitas vezes já foi vítima de outras violências, como violência física,

patrimonial, psicológica ou sexual. Além disso, vale ressaltar que cada um desses tipos de

violência não ocorre isoladamente (Saffioti, 2004). Em geral, as formas de violência vão

sendo somadas umas às outras conforme aumenta a gravidade da agressão, de modo que,

independentemente da forma assumida da agressão, a violência psicológica está sempre

presente.

Com o destaque na mídia e nos dados, a morte de uma mulher por feminicídio5 se

torna pública, visível. É a ponta do iceberg. Contudo, tantos outros tipos de violência se

mantêm dentro das famílias, entre quatro paredes, nas instituições, sem serem notificadas -

5
De acordo com a Lei nº 13.104, de 2015, feminicídio foi tipificado como homicídio de mulheres em
contexto de violência doméstica ou em decorrência do menosprezo ou discriminação à condição de mulher
(Brasil, 2015).
20

vale lembrar que a maior parte desse bloco de gelo (fazendo uso da metáfora do iceberg

com a violência contra mulher, de modo geral) é a parte submersa. Como já mencionado,

antes de se tornar vítima fatal, a mulher que morre por feminicídio muito provavelmente já

trilhou um longo caminho de violências sofridas.

Nessa altura, é importante ressaltar que o relato aqui feito tem por base - para além

da investigação científica - a experiência da pesquisadora enquanto técnica de referência de

CRAS de uma comunidade periférica da cidade de Natal/RN. No cotidiano de trabalho, a

metáfora do iceberg tem materialidade e, por vezes, foi observada nas falas das usuárias -

havia uma subnotificação das violências sofridas. Apesar de haver em seus discursos e

corpos marcas de dor, as mulheres quase sempre relatam uma espécie de resignação diante

desse sofrimento. Muitas delas, em sua submissão, sofriam de um calar-se crônico, seja em

relação aos órgãos competentes ou à própria rede de apoio.

Sobre isso, Ferrari e Vecina (2002, como citado em Santos & Moré, 2011) apontam

que o silêncio de mulheres que sofrem violência doméstica por vezes surge como uma

forma de proteção diante do temor de que um ato violento mais grave ocorra contra elas.

Tal estratégia de sobrevivência, associada à baixa autoestima e às dificuldades de viver por

si própria (essas questões serão abordadas nos capítulos posteriores), oferece à mulher um

cenário em que se subordinar às regras do parceiro, ceder e suportar são, por vezes, as

alternativas possíveis.

Os relatos dessas mulheres também traziam um elemento curioso: sob o ponto de

vista familiar, a presença da violência contra a mulher não se apresentava de forma inédita

para as usuárias do CRAS. Ao se aprofundar em suas histórias de vida, diversas vezes

notava-se que tal violência contra a mulher se configurava como parte da dinâmica

familiar, apresentando-se como uma forma de lidar com conflitos, e familiares e que esse

padrão atravessava gerações, sejam elas ascendentes ou descendentes.


21

Dentre os relatos, uma ilustração bastante recorrente é a seguinte: a mulher sofre

violência por parte do companheiro, que por sua vez também violenta a filha que, além do

pai, sofre violência por parte dos irmãos. Quando esta, na condição de jovem/adolescente6,

inicia um relacionamento amoroso e sai de casa para constituir família própria (sair de

casa, por vezes, se apresenta como uma alternativa à opressão) é aconselhada pela mãe

sobre como deve se comportar, no sentido de tolerar as agressões que pudessem ser a ela

destinadas. Precisa, então, aprender a ser a “mulher da casa”.

Segue logo abaixo um breve detalhamento de como esses sistemas de

dominação-exploração-opressão estão presentes na vida cotidiana dessas mulheres desde

muito cedo. A sequência de acontecimentos comumente relatada nos atendimentos

psicossociais é a seguinte: 1) início do relacionamento, por vezes já abusivo; 2) saída de

casa e início da família própria - nesse estágio, a adolescente deixa de ocupar o lugar de

filha para ser "mulher", a esposa, dona de casa; 3) evasão escolar, tendo em vista que, para

exercer com excelência o seu novo papel, é preciso eleger prioridades e a escola, no caso, é

vista como um obstáculo para a vida a dois; 4) gravidez precoce; 5) dificuldade de

trabalhar devido aos cuidados com a casa, com o companheiro, e os/as filho/a(s), bem

como dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal devido à baixa escolaridade,

o que leva ao estabelecimento de vínculos de trabalho precários e/ou inserção no mercado

informal; 6) desejo de mudança de vida, porém não se vislumbra muita perspectiva de

mudança, tendo em vista situação de dependência financeira e/ou afetiva instalada.

Acrescenta-se que podem existir mudanças de rotas nessa sequência de

acontecimentos, mas o que se mantém comum, em geral, é a presença de violência

conjugal7. Afinal, não é de hoje que o disciplinamento corporal é infligido às mulheres de

6
Nesse território, permeado pelo contexto de violência, tráfico de drogas e diversas outras vulnerabilidades, é
comum observar relacionamentos amorosos heterossexuais entre meninas de, em média, 14 anos e jovens
adultos.
7
Esses elementos fazem parte do observado no cotidiano profissional em um CRAS.
22

forma rotineira no contexto de relacionamentos íntimos (Davis, 2018). Ademais, quanto

mais pobre a mulher, mais o casamento e o trabalho doméstico se apresentam como

possibilidade, maior a exploração e violência a que a mulher está submetida (Federici,

2019).

Observando essa realidade, percebe-se como as relações patriarcais de gênero

(essas relações hierarquizantes e de exploração entre os sexos) se manifestam e como essas

manifestações se replicam por meio de uma transferência geracional. Aparentemente, a

história de vida da filha, que acabou de sair de casa, não se apresenta de forma muito

distinta da história de vida de sua mãe. O fenômeno da violência é transmitido de geração

em geração e tem seu lugar legitimado no seio familiar. Ademais, é uma evidência do

quanto a violência contra a mulher exercida por seu companheiro transcende os limites da

relação existente entre os dois (Santos & Moré, 2011), bem como o quanto uma história

familiar em que a violência é frequentemente exercida entre seus integrantes favorece a

repetição do modelo em seus próprios relacionamentos nas gerações seguintes (Narvaz &

Koller, 2006; Silva, 2007).

A naturalização desse processo sociocultural, que envolve a ocupação da mulher do

espaço doméstico, do bem-estar da família, a criação e socialização das(os) filhas(os), os

cuidados com o marido e com a casa, deixando livre para o homem o espaço público, o

papel de provedor, a supremacia e autoridade, reforça ainda mais a reprodução do ciclo de

opressão-exploração ao qual estão sujeitas as mulheres (Saffioti, 1987).

Biroli reforça esse pensamento afirmando que

o trabalho doméstico e o de provimento de cuidado,

desempenhados gratuitamente pelas mulheres, constituem os

circuitos de vulnerabilidade que as mantém em desvantagem

nas diferentes dimensões da vida, tornando-as mais


23

vulneráveis à violência doméstica e impondo obstáculos à

participação no trabalho remunerado e na política (2018, p.

66).

Dessa forma, nota-se nitidamente que o corpo individual, a esfera privada e o

espaço doméstico não conseguem escapar da regulação política, no caso, determinada pelo

patriarcado (Preciado, 2008). Ter o sexo feminino, por si só, já se torna uma condição para

que a mulher, independentemente de qualquer outra variável, seja "engendrada" e ingresse

oficialmente no sistema sexo/gênero e nas relações sociais de gênero. "Engendrar-se", de

acordo com Lauretis (1994), é um processo pelo qual uma representação social é aceita e

absorvida por uma pessoa como sua própria representação, de modo a tornar-se real para

ela, mesmo que seja, essa representação de si, imaginária.

Ser, então, mulher é carregar consigo toda essa carga de expectativas e

representações. A história das mulheres exemplificada anteriormente demonstra como um

ambiente familiar, que tem por base uma relação de dominação-subordinação, está

diretamente relacionado ao papel subalterno, resultado do "engendramento" feminino.

Essa pesquisa esbarra nesses limites estruturais, nesses modos de relações

desiguais, com a supremacia masculina e a submissão feminina, mas é possível contribuir

para que mulheres ressignifiquem situações em que são assujeitadas por essas estruturas.

De acordo com a leitura aqui feita e com a perspectiva adotada, é impossível pensar numa

total ruptura desses padrões de relações numa sociedade capitalista, patriarcal e racista.

Romper com essas estruturas é o mesmo que pensar em outro modelo de sociabilidade, é

construir novas relações de produção e sociais, embasadas na igualdade entre todas as

pessoas.

Considerando que o capitalismo é incompatível com qualquer igualdade social,

inclusive entre as distintas categorias de sexo (Saffioti, 1987) e que é nesse modo de
24

sociabilidade em que se está inscrito atualmente, após dois anos ouvindo e intervindo em

tantas histórias de vida, pareceu imperioso buscar compreender a concepção dessas

mulheres sobre as determinações de ser mulher no contexto dessas particularidades. Na

busca por essa compreensão, foi-se definindo o questionamento que guiou a construção

dessa pesquisa: Como (ou se) as mulheres percebem que suas particularidades, seu

contexto de vida - machista, violento, patriarcal - interferem na construção de suas

singularidades, de suas vivências?

A partir dessa indagação, a presente pesquisa teve inicialmente como objetivo geral

analisar de que forma mulheres usuárias de um CRAS da cidade de Natal/RN vivenciam

contextos de opressão e violência de gênero, enquanto que os objetivos específicos foram

apreender as vivências das relações de opressão e violência de gênero de mulheres usuárias

do CRAS e analisar as estratégias criadas por elas diante de problematização teatral de

situações de opressão e violência de gênero.

Pensando em como alcançar tais objetivos e, ao mesmo tempo, abordar questões

relacionadas a esse tipo de violência de forma sensível, criativa, com potência de

transformação, o método do Teatro do Oprimido surgiu como uma possibilidade de

pesquisa e de intervenção social. Em seu livro Raízes e Asas, Bárbara Santos (2016, p.

123) afirma que o Teatro do Oprimido é um “método que estimula o diálogo, através da

intervenção direta na ação teatral, com vistas à análise e à compreensão da estrutura social

representada e a busca de meios concretos para ações efetivas que levem à transformação

da realidade”. Uma combinação poderosa: através do teatro do oprimido, compreender

coletivamente a opressão vivenciada pelas mulheres para, daí, repensar o seu cotidiano e

atuar rumo à transformação social.

Como estratégia metodológica, foi construído um planejamento de intervenção

usando jogos do arsenal do Teatro do Oprimido e também a proposta do Teatro-Fórum. O


25

público alvo seria mulheres usuárias da Política de Assistência Social, mais

especificamente uma amostra de 15 usuárias do CRAS.

Esta foi a rota construída ao longo de um percurso que compreende a seleção do

mestrado, as disciplinas de metodologia, a maior parte das atividades de orientação. No

entanto, em decorrência da pandemia do Covid-19, conduzir encontros grupais, com a

expectativa de uma apresentação teatral ao final (adicionando a quantidade de pessoas de

uma plateia ao tamanho original do grupo), seria extremamente desaconselhado.

Visando garantir a biossegurança, o campo desta pesquisa foi sendo adiado, com a

esperança de que a campanha de vacinação avançasse o suficiente para conferir uma maior

proteção contra o coronavírus. Com todas as envolvidas imunizadas, pesquisadora e

participantes, seria possível cogitar, não sem adaptações, o início das atividades de campo.

No entanto, chegou-se ao ponto que esperar mais implicaria a impossibilidade de defender

essa dissertação a tempo. Sendo assim, foi preciso recalcular a rota.

A pesquisa, que antes tinha como centralidade a perspectiva das mulheres acerca do

fenômeno da violência de gênero, passou a ter como objeto a metodologia que se usaria

para acessar tal perspectiva. A partir do novo direcionamento, o estudo se voltou para o

planejamento das oficinas com as mulheres, incluindo a escolha dos jogos, objetivos de

cada encontro, a condução do teatro-fórum e o fechamento do processo. A proposta é que a

metodologia pensada para o trabalho com mulheres usuárias da política de assistência

social seja avaliada por mulheres experientes no método do Teatro do Oprimido. Assim, é

possível a posteriori construir um documento que possa servir como guia, inspiração, para

intervenções sociais envolvendo o método do Teatro do Oprimido.

Dito isso, após reformulação, o objetivo geral da pesquisa é analisar o Teatro do

Oprimido como forma de intervenção social em casos de violência contra a mulher, ao

passo que os objetivos específicos são avaliar uma proposta metodológica de trabalho com
26

base no método do Teatro do Oprimido; caracterizar e analisar os desafios de atuação com

TO na atualidade e identificar as estratégias para a garantia dos pressupostos do trabalho

com TO.

Visando a organização da pesquisa, este documento foi dividido em quatro

capítulos. Os dois primeiros consistem na fundamentação teórica. São eles Capitalismo e

Patriarcado: territórios de dominação-exploração-opressão nas relações sociais de

gênero, raça e classe e Vivência, mulheres e Teatro do Oprimido. O terceiro trata dos

caminhos metodológicos percorridos no desenvolvimento da pesquisa, ao passo que o

quarto capítulo, dos resultados e análise dos dados.


27

Capítulo 1 - Capitalismo e Patriarcado: territórios de

dominação-exploração-opressão nas relações sociais de gênero, raça e classe

1.1. A apropriação da vida das mulheres pelo capitalismo: notas introdutórias

Estudar gênero a partir do enfoque marxista possibilita analisar as relações e

práticas sociais, a construção das instituições, processos e divisão do trabalho como

fenômenos materiais e históricos e, portanto, mutáveis (Araújo, 2000). A

dominação-exploração-opressão das mulheres na história da humanidade tem, portanto, um

caminho material e histórico a se debruçar para que possa ser melhor compreendido e,

assim, combatido.

Sabe-se que a teoria marxiana, em seus estudos sobre a gênese do capitalismo,

examinou a acumulação primitiva8 do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo

masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias (Federici, 2017). Apesar de

não estar presente a perspectiva feminina, no princípio do desenvolvimento dessa teoria há

pontos que abordam questões de igualdade entre homens e mulheres.

Em A ideologia alemã (2009), Marx e Engels apontam que a propriedade teria na

família o seu “germe”, sendo a mulher e as crianças consideradas escravas do homem.

Consagrado o casamento, a mulher se torna propriedade privada exclusiva do homem,

como será também a prole por vir. A mulher não é reconhecida como sujeita de direitos e é

vista e tratada como mercadoria. Esse processo é denominado coisificação/sexagem e não

se limita somente às mulheres inseridas em relações matrimoniais. Ainda que não seja

casada, a mulher continua sendo “coisificada”, uma vez que homens não casados podem

usufruir do “bem” feminino via prostituição. Nesse sentido, a “propriedade mulher” é vista

como comunitária e comum a quem possa pagar por ela.

8
De acumulação primitiva é chamado o processo de expropriação da terra do campesinato europeu e a
formação do trabalhador independente “livre”. Com isso, surgiram condições estruturais para o
desenvolvimento de relações capitalistas (Federici, 2017).
28

Na obra de Engels, A origem da família, da propriedade e do Estado (2014), o

autor levanta uma análise que nega os enfoques essencialistas sobre a dominação

masculina e subordinação da mulher. Ao discorrer sobre o nascimento da família, Engels

destaca as variações entre as relações até que se chegasse à família patriarcal monogâmica.

Dentre as contribuições da obra, está a apresentação relevante do lugar social das mulheres

não como uma expressão da natureza feminina inata, mas como produto da relação

opressora entre homens e mulheres, contextualizada em meio a processos socioeconômicos

que conduziram à dominação masculina.

No decorrer de sua escrita, Engels desenvolve a ideia de que o trunfo da

propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva criou condições econômicas (e

não naturais) para a emergência da família patriarcal monogâmica. A finalidade desse

modo de relação seria o predomínio do homem, de modo que fossem procriados filhos cuja

paternidade fosse indiscutível. Na condição de herdeiros diretos, esses filhos

ocasionalmente teriam posse dos bens de seu pai.

A partir desse entendimento, o autor conclui que a primeira opressão de classes se

deu com a opressão do feminino pelo masculino e que a primeira divisão de trabalho entre

homens e mulheres foi a que se fez para a procriação dos filhos. Assim, ao passo que a

monogamia se institucionaliza como relação opressiva em que há a supremacia absoluta do

homem sobre o sexo feminino, as mulheres perdem o controle sobre o trabalho e se tornam

economicamente dependentes do homem. Isso se dá, não por uma essência masculina

dominadora, mas por um grande processo histórico baseado em contingências materiais.

Munidos da compreensão da opressão feminina como algo diretamente ligado ao

fenômeno da propriedade privada, Marx, Engels e Lênin ampliam a perspectiva e trazem

em seus discursos a pauta de emancipação das mulheres diretamente relacionada à da

emancipação humana. A exploração do homem pelo homem só seria realmente extinta se a


29

libertação feminina também fosse algo a se extinguir, seja no âmbito público, como nas

fábricas, ou no âmbito privado, nos lares. A igualdade entre homens e mulheres era vista

como necessidade fundamental da revolução socialista.

Sobre isso, em seu livro A nova mulher a moral sexual (2011), Alexandra Kolontai

apresenta a posição da nova mulher como contraponto à da mulher na sociedade burguesa -

mulher como propriedade, instrumento de prazer e de reprodução. A mulher celibatária,

como denomina Kolontai, é pertencente à classe operária, livre, independente e consciente

da luta social. É fruto do próprio desenvolvimento do capitalismo e também fundamental

para a realização da missão social da classe operária. Virtudes como passividade,

submissão, doçura se tornam supérfluas e incompatíveis com o pleno exercício de seus

direitos, com o protesto contra toda servidão, com o serviço à coletividade e à sua classe.

Por essa razão, a pauta da libertação feminina foi desde cedo introduzida nas leis na

Rússia pós-revolução soviética de 1917. Para os bolcheviques, o capitalismo havia criado

uma nova contradição - entre as demandas do trabalho e as necessidades da família - que

recaía de forma mais dura sob as mulheres (Goldman, 2014). Ao passo que o fenômeno da

industrialização forçava as mulheres a trabalharem nas fábricas por um salário, elas ainda

eram responsáveis pelo trabalho doméstico, essencial para a família. O conflito entre as

demandas da produção e da reprodução prejudicou em muito o núcleo familiar. Ademais,

essa dupla responsabilidade impedia as mulheres de “ingressar nos domínios públicos do

trabalho, da política e de empreitadas criativas em pé de igualdade com os homens”

(Goldman, 2014, p. 21).

Sob a ótica dos bolcheviques, essa contradição iria se resolver com o socialismo,

uma vez que sob esse regime o trabalho doméstico seria transferido para esfera pública

(seria implantado um vasto leque de serviços complementares, como creches, centros de

cuidado, escolas públicas, refeitórios e lavanderias comunitárias). Deste modo, livres das
30

obrigações domésticas, às mulheres seria possível ingressar na esfera pública da mesma

forma que os homens, teriam acesso à educação e a salários também de forma igualitária

(Goldman, 2014).

Enfim, com o suporte do Estado para que a família e a maternidade não

mantivessem as mulheres fora da força de trabalho e da vida pública, elas teriam as

condições para buscar seu próprio desenvolvimento e objetivos pessoais. Assim, o ganho

feminino foi de uma nova cidadania econômica, associada à maior participação na política

da comunidade (Goldman, 2014), o que permite o nascimento dessa nova mulher, como diz

Kolontai, plena de virtudes como firmeza, decisão e energia, livre e independente, que

defende o direito de viver (Kolontai, 2011).

Diante desse breve apanhado das primeiras teorias marxistas sobre o lugar da

mulher na sociedade capitalista, é de se reconhecer o valor dessas contribuições para as

mulheres. Contudo, Silvia Federici (2017) considera que ainda não foram suficientes para

aprofundar o entendimento da relação entre a gênese do capitalismo e as mudanças

ocorridas na posição das mulheres e na produção da força de trabalho.

Na análise feita em seu livro Calibã e a bruxa (2017), a autora defende que dar

destaque às mulheres é imprescindível, e não somente por uma questão de visibilidade.

Incluí-las significa recontar a história da acumulação primitiva. Não se trata só de uma

personagem que entra em cena, mas de um novo olhar sob a acumulação primitiva para

além da perspectiva do proletariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção

de mercadorias. Federici (2017) dá relevância a três fenômenos extremamente importantes

para o desenvolvimento capitalista. São eles: o desenvolvimento de uma nova divisão

sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das

mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; e a mecanização do


31

corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção

de novos trabalhadores.

A autora afirma que Marx repensaria a ideia de que o capitalismo seria um passo

necessário no processo de libertação humana se tivesse analisado sua história sob a ótica

feminina. Sobre isso, ela diz que “mesmo quando os homens alcançaram certo grau de

liberdade formal, as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores,

exploradas de modo similar às formas de escravidão” (Federici, 2017, p. 27).

Dar visibilidade a como o capitalismo se refere aos grupos subalternos é reconhecer

como esse sistema se alimenta da desigualdade e da exploração. Para justificar as

contradições presentes em suas relações sociais, ele difama aqueles a quem explora, isto é,

as mulheres, negros e negras, pessoas pobres, o público LBGTQIA+. Trata-se de um modo

de produção e reprodução social cujos desenvolvimento e interesses políticos, econômicos

e culturais se ancoram no racismo, no patriarcado, no heterossexismo, na sociedade de

classes (Cisne & Santos, 2018). Assim, através dessa rede de desigualdades construída no

corpo do proletariado, o capitalismo garante a sua reprodução e afasta cada vez mais a

possibilidade de libertação e de satisfação das necessidades humanas (Federici, 2017).

Levando em conta apenas o aspecto de gênero, a divisão sexual do trabalho,

associada à desvalorização do trabalho reprodutivo, apresenta-se como um dos pilares da

acumulação de capital e da exploração capitalista do trabalho feminino (Federici, 2019). É

sobre essa temática que se debruça o tópico posterior.

1.2. Divisão sexual do trabalho

Nas sociedades pré-capitalistas é comum se deparar com contextos de diferenciação

de gênero. No entanto, as atividades executadas pelas mulheres não eram percebidas como

menos produtivas, tampouco menos essenciais do que as contribuições econômicas dos


32

homens (Davis, 2016). Conforme foi aumentando o grau de desenvolvimento das forças

produtivas e o capitalismo foi se consolidando, a mulher foi sendo progressivamente

marginalizada e situada perifericamente no sistema de produção.

Um bom exemplo para ilustrar essa transição foi o que aconteceu na Europa em

meados do século XVI. Na época, o trabalho no feudo era organizado com base na

subsistência e a família tinha o status de unidade econômica. Isso permitia que a atividade

trabalho fosse desempenhada pelas mulheres de classe subalterna, de modo que não

houvesse tantas diferenças entre as atividades executadas entre homens e mulheres, ou

seja, a divisão sexual do trabalho era menos evidente. Vale frisar que isso não significava

grau de igualdade em relação ao homem - a opressão de gênero não nasceu com o

capitalismo. No entanto, mesmo jurídica, social e politicamente inferior, a mulher

participava do processo produtivo e desempenhava um relevante papel econômico

(Saffioti, 2013).

Porém, com a expropriação dos meios de subsistência do campesinato europeu (os

chamados cercamentos) ocorreu uma transformação profunda e radical da família, que

deixou de representar a unidade de produção com um papel produtivo específico (Arruza,

2015; Federici, 2017). Privatizada a terra, a economia de subsistência sucumbiu e

emergiram as outras relações sociais, agora monetárias e sexualmente diferenciadas.

A partir da perda do status da família como unidade econômica, ocorre a separação

entre casa e ambiente de trabalho. A unidade que anteriormente existia entre produção -

como o cultivo da terra e a criação de animais - e reprodução - o trabalho que dá condições

para a manutenção da produção, como o trabalho doméstico e cuidado com os filhos -

chega ao fim. Enquanto se tornou primordialmente masculina a responsabilidade de

sustentar financeiramente a família, coube à mulher a ocupação da casa, com exercício de

um trabalho implicado na criação dos filhos e no cotidiano das atividades domésticas


33

(Biroli, 2018). Nesse contexto, o homem se dedicaria à produção-para-o-mercado,

enquanto a mulher, ao trabalho reprodutivo.

Com a diferenciação sexual dos trabalhos, eles passaram a ser valorados de forma

distinta. Sobre isso, Federici (2017) aponta que, no novo regime monetário, somente a

produção-para-o-mercado estava definida como atividade criadora de valor. Por não gerar

lucro, o trabalho doméstico foi definido como uma forma inferior de trabalho, passando a

ser considerado algo sem valor do ponto de vista econômico (Davis, 2016).

A desvalorização econômica do trabalho doméstico foi acompanhada também por

um processo de naturalização e sexualização da atividade. O trabalho reprodutivo se tornou

um atributo feminino (Federici, 2019). Dessa forma, as consideradas capacidades

femininas e quaisquer coisas às mulheres relacionadas foram cada vez mais subvalorizadas

e traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da

ordem social que a gerara (Saffioti, 2013).

Federici reconhece o trabalho doméstico como a “manipulação mais disseminada e

a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe

trabalhadora” (2019, p. 42). Desde a ideologia burguesa do século XIX, ele tem sido

imposto às mulheres de modo a convencer de que é um atributo natural da psique e

personalidade femininas. É tratado como um “atributo natural em vez de ser reconhecido

como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado” (Federici, 2019, p. 43).

Ao negar remuneração ao trabalho doméstico e dar-lhe uma roupagem natural,

inevitável e que traz plenitude às mulheres - um ato de amor - o capital obteve uma grande

quantidade de trabalho de graça, ao passo que disciplinou tanto a mulher, para acreditar

que esse trabalho é próprio e legítimo seu, quanto o homem trabalhador, que se apropria

dessa mulher ao lhe ser oferecida como uma criada que vá servir física, emocional e
34

sexualmente o trabalhador de sexo masculino e ainda dele seja economicamente

dependente (Federici, 2019).

É importante ressaltar que esse tipo de trabalho não remunerado - o trabalho

doméstico - cuja gratuidade se dá através do casamento, é que permite que os homens se

engajem no mundo do trabalho remunerado. Se as mulheres não fossem as responsáveis

por criar os filhos, cozinhar, limpar, costurar - o trabalho penoso e essencial para a família,

elas se veriam livres para ingressar na vida pública em condições de igualdade com os

homens (Goldman, 2014). Ficam divididas as funções domésticas e as funções diretamente

econômicas entre os sexos, de modo a gerar independência econômica individual em

grande escala para o homem e pequena para a mulher (Saffioti, 2013).

Esse fenômeno foi de grande peso para alavancar a acumulação primitiva. De

acordo com Federici,

o ocultamento do trabalho não remunerado das mulheres por


trás do disfarce da inferioridade natural permitiram ao
capitalismo ampliar imensamente ‘a parte não remunerada do
dia de trabalho’ e usar o salário (masculino) para acumular
trabalho feminino. Em muitos casos, serviram também para
desviar o antagonismo de classe para um antagonismo entre
homens e mulheres. Dessa forma, a acumulação primitiva foi,
sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdades,
hierarquias e divisões que separaram os trabalhadores entre si
e, inclusive, alienaram a eles mesmos (2019, p. 232).

Independentemente da dedicação à vida doméstica ser ou não alvo de dedicação

exclusiva, o trabalho reprodutivo sempre recai sobre as mulheres. Como já mencionado, o

cuidado feminino com o mundo privado e a concessão do mundo público aos homens têm

feito parte do liberalismo cisheteropatriarcal desde seu princípio. A separação estrutural

entre economia pública do capitalismo e a economia privada do lar contribuiu para o


35

estabelecimento do ideário de dona de casa e mãe como modelos universais de

feminilidade (Davis, 2016; Nascimento, 2019), de modo que a esposa economicamente

dependente e responsável pelo espaço doméstico se tornou o ideal de todas as classes

sociais (Saffioti, 1987).

Ademais, tal cisão legitimou a exploração exacerbada das mulheres que ocupavam

postos de trabalho. Uma vez que estavam fora de sua esfera “natural”, não eram

reconhecidas como trabalhadoras assalariadas completas. A sujeição dessas mulheres a

longas jornadas, condições de trabalho precárias e salários inadequados garantiu aos

capitalistas uma fonte de lucro exorbitante (Davis, 2016).

O capitalismo cria disputas de poder que impulsionam a divisão social e a

atomização, de modo que se maquiam as estruturas políticas e econômicas que o sustentam

(Haider, 2019). Sexo e raça operam como válvulas de escape para simuladamente aliviar

tensões sociais geradas pelo modo capitalista de produção. Com o desvio da atenção da

sociedade da estrutura de classes, foca-se nas “características físicas que,

involuntariamente, certas categorias sociais possuem” (Saffioti, 2013, p. 59). É um sistema

que se utiliza das diferenças, próprias da diversidade humana, tornando-as desigualdades

naturalizadas. Por sua vez, essas desigualdades particularizam as condições de vida e de

trabalho de uma mesma classe, a classe trabalhadora (Cisne & Santos, 2018).

Diante do não reconhecimento de classe, o capitalismo vê livre o caminho para

explorar o trabalho feminino de todas as formas, seja ele remunerado e, principalmente, se

não. A divisão sexual do trabalho (e racial - como será discutido no tópico posterior) tem

caráter estruturante. Não se trata da expressão de escolhas de mulheres e homens, mas de

“estruturas que são ativadas pela responsabilização desigual de umas e outros pelo trabalho

doméstico, definindo condições favoráveis à sua reprodução” (Biroli, 2018, p. 44). Essas
36

estruturas, apresentadas como se tivessem uma base biológica, fundamentam modos de

organização de vida e dão forma à dualidade feminino-masculino9.

1.3. O nó de gênero, raça e classe na sociedade brasileira

A divisão sexual do trabalho tem um papel fundamental na produção das

desigualdades patriarcais de gênero e pode ter um grau maior ou menor de verticalização

em termos de classe e raça. As formas como se dão as relações de trabalho “podem ser

marcadas por hierarquias e formas de exploração entre grupos bastante desiguais no acesso

a recursos materiais e ocupações” (Biroli, 2018, p. 66). Essas distintas formas de

exploração são perceptíveis ao se deparar com a história do desenvolvimento da

humanidade.

Na Europa, a acumulação primitiva fez uso da subjugação das mulheres à

reprodução. Em continente americano, território colonizado, além das questões de gênero e

classe, fica bastante evidente como a acumulação primitiva se apropriou das questões de

raça - via o tráfico de negros escravizados - para impulsionar seu desenvolvimento. Não

que questões de raça não estivessem presentes na Europa - afinal de contas a riqueza dos

países colonizadores dependia em muito da exploração da mão-de-obra escravizada. No

caso dos territórios colonizados, o povo negro foi/é pedra fundamental para sua construção,

não só econômica, mas também social.

Na realidade brasileira, com a consolidação do capitalismo durante o século XIX

no país, o retrato da mulher burguesa não foi destoante ao desenhado na Europa. Nas

relações da família brasileira de classe burguesa, a mulher era desobrigada de qualquer

trabalho produtivo. Seu papel era ser guardiã do lar e da família, considerada base moral da

9
A partir de uma concepção binária de gênero, que preza que “sempre existirá e se admitirá um polo que será
desvalorizado, designado como minoria que, apesar de ser diferente ou desviante, poderá ser "tolerado" pela
sociedade” (Souza & Carrieri, 2010, p. 54).
37

sociedade. O ideal de mulher burguesa brasileira era repleto de domesticidade e de

cumprimento dos deveres de esposa (D’Incao, 2018).

No entanto, apesar desse papel ter sido concreto na vida de muitas mulheres, não é

possível generalizá-lo, como se tivesse acontecido assim para todas. Desde o Brasil

colonial, o capitalismo se apropriou do trabalho feminino de formas diferentes, conforme a

crença do que cada classe social e o que cada raça “poderiam” oferecer. Maiores as

condições econômicas das mulheres e mais clara sua pele, mais fortemente a divisão sexual

e racial do trabalho se evidenciava. Do outro lado, quanto mais pobre e negra, menor o seu

reconhecimento como mulher10.

Por exemplo, no sertão nordestino do século XIX, ao passo que as mulheres

brancas de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar (eram treinadas

para exercer o papel de mãe e para executar as tarefas domésticas), às pobres não lhes

restava outra escolha que não procurar garantir seu sustento, seja via lavagem de roupa,

costura, trabalho na roça, inclusive fazendo neste último contexto todo o trabalho

considerado masculino (D’Incao, 2018).

Essa flexibilidade de gênero na divisão do trabalho era mais evidente ainda dentre

as mulheres negras. Na época, escravizadas, elas eram usadas por seus senhores para

executar quaisquer outras atividades que lhes fossem convenientes, fosse na categoria de

escravo produtivo ou reprodutivo (Freitas, 1978, como citado em Gonzalez, 2020). Ou

seja, as mulheres negras poderiam ser dirigidas para a sustentação econômica do regime,

trabalhando nas lavouras, por exemplo, ou para a prestação de serviços, exercendo funções

como ama de leite, carpinteira, cozinheira, inclusive reprodutora de novos escravizados

(Falci, 2018).

10
Para os padrões da época em que o ideal de mulher imposto pela burguesia era a esposa economicamente
dependente e responsável pelo espaço doméstico.
38

Uma vez que sofriam uma dura igualdade sexual no trabalho, as mulheres negras

fruíam de uma maior igualdade sexual na senzala, em casa, em comparação às mulheres

brancas “donas de casa”. Isso, contudo, não as livrava da responsabilização pelo trabalho

doméstico. Terminadas as tarefas de manter o bom andamento da casa-grande (sem

mencionar a lida com os assédios do senhor branco), ao fim de um dia de trabalho às

mulheres negras ainda cabia o cuidado dos próprios filhos, bem como a assistência aos

companheiros, assumindo a tarefa de doação de força moral aos homens que chegavam das

plantações (Gonzalez, 2020).

Enquanto que as mulheres brancas burguesas tiveram como foco central de suas

vidas as tarefas domésticas e tiveram cultuadas as virtudes de fraqueza feminina e

submissão de esposa (Nascimento, 2019), às mulheres negras qualquer imaginário

relacionado à vulnerabilidade e delicadeza foi negado11. Mesmo com o fim da escravidão,

elas foram soterradas de trabalho e desenvolveram qualidades femininas não ortodoxas,

como assertividade e independência (Davis, 2016).

Sem a intenção de fomentar uma visão meritocrática do impacto da escravidão para

a construção da individualidade da mulher negra, vale reconhecer que tais características,

duramente conquistadas, têm acompanhado as mulheres negras no decorrer de gerações.

De maneira geral, as mulheres negras se mantêm assertivas e independentes até os dias de

hoje, uma vez que a realidade de outrora ainda apresenta semelhanças em relação à

realidade de muitas mulheres negras na atualidade.

Apesar das mudanças pelas quais passou a estrutura social do Brasil desde o fim do

século XIX, a “herança escravocrata” que se imprime na contemporaneidade é evidência

de que o fim da escravidão não trouxe grandes alterações à vida da mulher negra. Beatriz

Nascimento (2019) aponta que a mulher negra é o elemento que expressa mais

11
Sobre isso, ver o discurso “Não sou uma mulher?” de Sojourner Truth, pronunciado em 1851 na
Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, Estados Unidos.
39

radicalmente a cristalização da estrutura de dominação escravista. Ainda é presente de

forma maciça na sociedade brasileira o cenário de uma mulher negra trabalhando na casa

de famílias, ocupando o lugar da diferença, da subordinação, da “inferioridade”, tendo

ainda que lidar com a dupla jornada de trabalho, com o preparo mínimo de refeições para

os familiares, lavar, passar, cuidar dos filhos... Como disse Lélia Gonzalez, “parece que a

gente não chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele” (p.

85, 2020).

A razão dessa cristalização de estrutura social é compreendida ao perceber que a

abolição do regime escravocrata impulsionou o desenvolvimento econômico brasileiro a

partir de um modelo de modernização excludente12 que dificultou as possibilidades de

ascensão social da população negra. O racismo, bem como o sexismo, tornou-se parte da

estrutura objetiva das relações ideológicas do capitalismo. Esses artifícios se tornam

extremamente úteis e eficazes a partir do momento em que articulam os mecanismos de

recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social.

A parte mais ardilosa disso é que, por existir em nível estrutural, ideológico, a reprodução

de uma divisão racial e/ou sexual do trabalho pode ser explicada sem que se apele para o

preconceito e elementos subjetivos (Poulantzas, 1976, como citado em Gonzalez, 2020).

Significa dizer que não causa nenhum estranhamento à sociedade brasileira se

deparar com o exemplo anteriormente mencionado, isto é, uma mulher negra trabalhando

como empregada doméstica ou prestando serviços de baixa remuneração em

supermercados, escolas. Os complexos sociais de desigualdades formados desde a

sociedade escravista brasileira permanecem até os dias atuais e “são justificados em nome

12
Com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, passam a coexistir três processos qualitativamente
distintos de acumulação. A articulação entre capital comercial, capital industrial competitivo e capital
industrial monopolista é um demonstrativo de um desenvolvimento econômico desigual e dependente, que
mescla e integra diferentes momentos históricos. Esse processo afetou diretamente a população negra
brasileira, tendo em vista que com o fim da escravidão constituiu-se no país não somente um exército
industrial de reserva, mas uma massa marginal crescente (Gonzalez, 2020).
40

da tradição” (Safiotti, 2013, p. 230). Em nome dessa “tradição” se explicam a exclusão da

mulher de determinados postos de trabalho, o reforço de mitos e preconceitos, a

manipulação pelo racismo das representações sociais e estereótipos do povo negro.

Nesse contexto, fica evidente o quanto o racismo e o patriarcado imprimem

condicionalidades a cada grupo social e interferem nas vivências de exploração e opressão

de cada um deles (Cisne & Santos, 2018). Não se pode dizer que a vida de uma mulher

branca é semelhante a de uma mulher negra, ou que as dificuldades pelas quais passa uma

mulher burguesa são compatíveis com as que passa uma mulher da classe trabalhadora - a

diferença é ainda maior se esta for negra. Nesse sentido, dissociar gênero, raça e classe na

compreensão de qualquer fenômeno social é fechar os olhos para a totalidade do panorama.

Dados recentes, inclusive os que abordam os efeitos da pandemia de Covid-19,

apontam expressões significativas do racismo e do patriarcado na realidade brasileira. De

acordo com a pesquisa “Efeitos da Pandemia sobre o Mercado de Trabalho Brasileiro:

Desigualdades, Ingredientes Trabalhistas e o Papel da Jornada”, no ano de 2020 houve uma

redução na taxa de participação no mercado de trabalho de 10,45% para as mulheres e de

6,93% para os homens (Neri, 2020). A pesquisa aponta que a retirada da mulher do

mercado de trabalho se dá devido ao papel de cuidadora a ela atribuído, ainda mais

intensamente, durante a pandemia. Mais que nunca ela é responsabilizada pelo cuidado dos

pais, dos filhos, sobretudo com as escolas fechadas. É evidente que a crise sanitária

evidenciou de maneira ainda mais acentuada a desigualdade que aflige as mulheres,

sobretudo as que fazem parte da população negra e periférica13.

13
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021), a diferença entre a taxa de
desemprego entre brancos e pretos atingiu o pior nível desde 2012. Na época, havia no Brasil 7,6 milhões de
pessoas desocupadas. Dentre entre elas, 48,9% eram pardos, 40,2%, brancos e 10,2%, negros. Em 2021, o
número de desocupados quase dobrou, chegando a 14,8 milhões de brasileiros. No critério de raça, o
montante está distribuído em 50,9% de pardos, 36,3%, brancos e 12,2% de negros (IBGE, 2021).
41

Quanto aos impactos da pandemia a partir de um recorte de raça, é relevante situar

que as condições de vida da população negra evidenciam a impossibilidade de boa parte

desse segmento populacional de trabalhar de casa durante o isolamento social14. Assim,

aqueles que se mantêm trabalhando se expõem mais ao vírus, ao passo que a outra parcela,

os que não conseguem manter o emprego/trabalho, se tornam estatística com o aumento

das taxas de desemprego15. Vale lembrar que a primeira vítima do vírus no Brasil foi uma

mulher negra, empregada doméstica de meia idade. O elevado número de mortes de

pessoas negras e, especialmente mulheres, é uma evidente consequência do processo

histórico de exclusão social e racismo que o país tem.

Em suma, desde a abolição da escravatura até os tempos de hoje, que culminam na

atual crise sanitária, é evidente que a força de trabalho negra permanece confinada em

empregos de menor qualificação e pior remuneração (Gonzalez, 2020). Devido a um

contexto histórico limitador, de forma majoritária à mulher negra resta voltar-se à

prestação de serviços domésticos para famílias das classes média e alta. Deixou de ser a

mucama para se tornar a empregada doméstica. Ela permanece, então, objeto de tripla

discriminação (o nó imbricado de gênero, raça e classe) e por isso ocupa o nível mais alto

de opressão.

1.4. Ordem patriarcal de gênero

A historiadora estadunidense Joan Scott foi uma das pioneiras nos estudos

feministas de gênero e muito contribuiu para a discussão da temática. Ela aponta que o

termo gênero teve sua aparição inicial entre as feministas americanas com o objetivo de dar

14
Medida mundialmente adotada para conter a proliferação do coronavírus.
15
O fenômeno do aumento do desemprego entre negros é explicado pelo fato de que a pandemia atingiu
principalmente as atividades com maior participação da população negra, como comércio, trabalho
doméstico, serviços e construção civil, sem mencionar o setor informal, que é composto majoritariamente por
pessoas negras.
42

destaque ao caráter social das distinções baseadas no sexo (Scott, 1995). O termo nasceu

associado à rejeição do determinismo biológico que carrega consigo a terminologia “sexo”

e como uma forma de indicar “construções culturais”, concebendo gênero como “a criação

inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres” (Scott,

1995, p. 75).

Nesse aspecto, em consonância com a pensadora supracitada, Heleieth Saffioti,

feminista marxista, trata o conceito de gênero como o que diz respeito às imagens

construídas pela sociedade acerca do que é masculino e do que é feminino, estando esses

padrões inter-relacionados - gênero é uma categoria relacional e, por essa razão, só faz

sentido em relação com o outro. Assim, amplia-se para as relações estabelecidas entre

mulheres e homens, homens e homens e mulheres e mulheres16 (Saffioti, 2004).

Tal conjunto de normas modeladoras, mediante as relações sociais, não caracteriza

necessariamente que essas relações deverão se dar de forma desigual. Gênero não versa

sobre como as relações sociais são construídas, como elas funcionam ou como elas

mudam. Trata-se de um conceito pretensamente neutro, que não implica desigualdade ou

poder, tampouco aponta a parte oprimida. Falar sobre gênero é falar sobre identidades e,

logo, diferenças (Saffioti, 2004).

Destarte, as práticas sociais de mulheres podem ser diferentes das dos homens, da

mesma maneira que, biologicamente, elas são diferentes deles. No entanto, o que se

observa socialmente nas relações entre homens e mulheres não é fruto somente da

diferença, mas também da desigualdade. Sobre um corpo sexual é imposta uma categoria

social que se coloca de maneira desigual. Com isso, busca-se trazer o debate de gênero

para o campo do social (Quirino, 2015), compreendendo essa categoria também em seus

aspectos históricos e levando em consideração a presença de um fundamento material que

atravessa todas as relações sociais (Kergoat, Picot, & Lada, 2009).


16
A partir de uma concepção binária (Souza & Carrieri, 2010).
43

É nesse aspecto que primordialmente as duas autoras, Scott e Saffioti, deixam de

dialogar. Enquanto Scott parte da perspectiva pós-estruturalista, que concebe gênero como

conceito totalizador, um modelo próprio e autônomo de análise das relações de

dominação/subordinação, centrado quase exclusivamente na construção dos significados e

símbolos das identidades masculina e feminina (Araújo, 2000), para a perspectiva marxista

o gênero é compreendido como um meio, um conceito que permite ampliar o olhar e

entender a trajetória em torno da qual a dominação foi se estruturando nas práticas

materiais e na subjetividade humana.

Dentre as contribuições do marxismo ao feminismo, destaca-se o enfoque histórico

e material, que permite a desnaturalização da subordinação feminina e a compreensão

dessa opressão como um processo gerado nas e pelas relações sociais, em contextos

socioeconômicos determinados e vinculados a bases materiais (Araújo, 2000). A partir

dessa ótica, ideias essencialistas sobre a dominação masculina e a subordinação feminina,

que defendem que a mulheres sejam, por natureza, inferiores, e os homens, opressores, são

colocadas em xeque, bem como a concepção de que somente questões culturais e

simbólicas são definidoras dos papéis sociais exercidos por homens e mulheres (Saffioti,

2013).

Articulado ao marxismo, o debate feminista de gênero busca compreender como a

subordinação é reproduzida e a dominação masculina é sustentada em suas múltiplas

manifestações (Araújo, 2000). Sendo assim, não é suficiente tratar somente da categoria

gênero para falar de opressão/dominação. O grau de opressão/dominação que sofre um

sujeito é atravessado por outras determinações, como raça e classe, de modo que as

desigualdades de poder são resultado das organizações desses três eixos - o nó imbricado,

como propõe Saffioti (2015).


44

Mergulhada na consubstancialidade-coextensividade das relações de classe e raça

(Cisne & Araújo, 2018) e levando em conta que a organização social de gênero da

sociedade contemporânea favorece e privilegia o homem, faz-se relevante abrir caminhos

de discussão acerca ordem patriarcal de gênero, que justifica esse privilégio masculino

(Saffioti, 2004).

O patriarcado é um sistema de relações sociais em que o homem detém o poder.

Esse sistema é estruturado de modo a favorecer o “privilégio e dominação masculinos

relacionados à subalternização e invisibilização das mulheres e do que é associado ou

considerado e identificado como feminino” (Cisne & Santos, 2018, p. 43). A partir dessa

lógica, o patriarcado dita a construção social dos sexos, associando o feminino ao que é

frágil, desvalorizado, subserviente, ao passo que o imaginário do masculino se remete à

força, à virilidade, ao poder e à dominação.

Enquanto que gênero é constitutivo das relações sociais, na fase histórica da ordem

patriarcal de gênero, a violência é constitutiva das relações entre homens e mulheres e é

observada desde a inserção das mulheres na estrutura social (Saffioti, 2004). Há muito a

violência faz parte da socialização entre homens e mulheres e, sustentada ainda pela ordem

patriarcal de gênero, é um fenômeno amplamente presente na atualidade.

Esse contexto afirma o que discute Biroli (2018) sobre a baixa efetividade dos

direitos que foram universalizados nas sociedades ocidentais, mesmo os mais

fundamentais, como o direito à integridade física, quando se trata de mulheres. Não se trata

de um “desvio” na universalização dos direitos, de algo legitimado, mas sim de uma ordem

da informalidade presente nas instituições e regras que organizam as relações de poder. As

leis e regras são as mesmas no aspecto formal, porém, concretamente, nas relações

cotidianas e nas instituições, padrões se estruturam de modo a gerar desvantagens para


45

mulheres e permissividade para os homens usufruírem do corpo, tempo, energia de

trabalho e criativa delas.

Como anteriormente mencionado, não se trata somente de uma questão de gênero.

A garantia ou negação dos direitos incide sobre mulheres e homens em conjunto com sua

posição de classe e com o racismo estrutural. Dessa forma, observa-se uma conformação

da sociedade em estruturas cisheteropatriarcal-racista-capitalista, cujas relações sociais,

mediadas por antagonismos e hierarquias, são atravessadas pela exploração da força de

trabalho e pelas opressões de um grupo ou classe sobre outro (Cisne & Santos, 2018).

Angela Davis (2018), em seu livro Estarão as prisões obsoletas? traz um exemplo

bastante ilustrativo de como historicamente gênero, raça e classe se interpõem em prol do

projeto ético-político do capitalismo. Para lidar com o aumento da criminalidade feminina,

em meados do século XIX, nos Estados Unidos, surgiram os primeiros reformatórios para

mulheres. Todavia, a punição pública feminilizada não afetava todas as mulheres do

mesmo modo. Quando nos reformatórios, as mulheres negras eram separadas das brancas e

eram submetidas às mesmas crueldades destinadas aos prisioneiros homens. Não tinham a

sentença, tampouco o trabalho que eram obrigadas a executar, atenuada em decorrência do

gênero, como acontecia com as mulheres brancas.

Como o desenvolvimento do sistema penal dos Estados Unidos no século XX,

modos de punição feminizados foram ideologicamente projetados e destinados às

mulheres. A punição envolvia o treinamento na função feminina da domesticidade. Ao

final das contas, esse incentivo ao exercício do papel de gênero “apropriado”, com

formação profissional em culinária, costura e limpeza, aparentemente projetado para

reintegrar as criminosas nos papéis de esposa e mãe, na realidade era pautado por uma base

racial e de classe. O treinamento conduzia as mulheres pobres (especialmente as negras)


46

para, ao fim do cumprimento de sua pena, trabalhar como empregadas, cozinheiras e

lavadeiras de mulheres mais ricas (Davis, 2018).

Esses fatos ilustram como o capitalismo, patriarcado e racismo se relacionam tendo

em vista a constituição de sistemas de dominação-exploração-opressão (Saffioti, 2004).

Trata-se de uma estrutura de poder que sustenta relações hierarquizadas, mascara a

realidade e naturaliza os processos culturais de discriminação, contribuindo para fomentar

e reproduzir a violência.
47

Capítulo 2 - Vivência, mulheres e Teatro do Oprimido

2.1. Vivência da violência contra a mulher e a dialética singular-particular-universal

Os dados concretos da violência doméstica e as reflexões realizadas a partir da

realidade dessas mulheres foram o fio condutor que provocou uma inquietação a respeito

da vivência relacionada à violência de gênero. O termo vivência adotado nesta pesquisa é

coerente com a perspectiva Vigostkiana do constructo. Sua origem vem do russo

perejivânie, cuja tradução para o português não encontra palavra equivalente. A tradutora e

estudiosa da obra de Vigostki, Teresa Prout (1935, como citado em Toassa, 2011, p. 758),

comenta que perejivânie “serviria para expressar a ideia de que uma situação objetiva pode

ser interpretada, percebida, experimentada ou vivida diferentemente por diversos sujeitos.

Isto é, dada situação social, composta pelos mesmos eventos, influencia os sujeitos de

vários modos (Toassa, 2011). Vivência fala de uma atitude individual em relação a uma

realidade social (Veresov, 2016).

Apesar de se tratar de uma relação do interior com o exterior, é importante destacar

que o social não está presente apenas no âmbito externo, no que é coletivo. Sobre isso,

Veresov (2016) levanta a discussão de que o social se encontra também onde há uma única

pessoa com sua vivência individual, uma vez que é a partir dele (do social), de seu

estímulo, que ocorre o desenvolvimento mental. A experiência do vivenciar, que é única,

acontece pela postura ativa do sujeito diante da vivência e é mediada pelo que acontece no

ambiente externo a ele.

Vigostki já apontava que existem regularidades individuais que são formadas

histórico-culturalmente e que aspectos psicológicos de um sujeito deveriam ser analisados

a partir de uma perspectiva materialista-dialética, relacionando indivíduo e meio (Toassa,


48

2010). Essa concepção é bem próxima à de construção de singularidade para Marx, em

cujo método se inspira esta pesquisa.

Para a teoria marxiana, é através da atividade social que o meio se constitui e este

meio, por sua vez, oferece condições objetivas e subjetivas para a realização da forma

própria de cada ser singular - todo fenômeno singular contém em si determinações

universais. Assim como na vivência, a singularidade se constitui com a mediação do meio

e se refere à existência única e irrepetível dos indivíduos (Pasqualini & Martins, 2015).

Por ser a manifestação imediata de um fenômeno, a singularidade pode aparentar

ser algo concreto. Contudo, para a tradição marxista a singularidade diz mais de uma

pseudoconcreticidade. Sobre isso, Pasqualini e Martins apontam que “o contato empírico

parece nos revelar o fenômeno concreto, mas na verdade [...] o concreto só pode ser

apreendido pelo pensamento como resultado de um processo de análise que supera a

dimensão singular do fenômeno” (2015, p. 364).

A fim de superar a pseudoconcreticidade, é preciso que se desvelem as conexões da

singularidade com o particular e o universal. No método, isso se dá através construção do

pensamento da seguinte forma: tem-se o empírico como ponto de partida, passa-se pelo

abstrato, chega-se ao concreto e então, ao concreto pensado. Por fim, de modo a finalizar a

apreensão das determinações constitutivas do objeto, retorna-se ao ponto de partida, ao

empírico, mas dessa vez com a compreensão da totalidade de determinações e relações

diversas (Marx, 1978).

Trazendo essa lógica para a pesquisa em questão, é possível imaginar que o

fenômeno empírico poderia ser, por exemplo, o fato de uma mulher sofrer violência física

por parte do companheiro. Tem-se uma singularidade (a mulher em questão tem uma

vivência única), no entanto o exercício proposto é não reduzi-la a tanto, de modo a incorrer

na fetichização da individualidade singular. Para isso, é preciso refletir: o que mais se pode
49

saber sobre essa mulher, de modo mais amplo? Que leis gerais determinam e regulam a

existência dessa opressão em sua vida? Como revelar as relações dinâmico-causais

subjacentes a essa violência, de modo a captar as múltiplas mediações que a determinam e

constituem?

Responder a essas perguntas é tirar o foco da singularidade para decodificar as leis

explicativas que orientam o desenvolvimento do fenômeno. Amplia-se o horizonte,

possibilitando interpretar, na singularidade do indivíduo, aspectos sociais de seu tempo

histórico e de suas condições objetivas de vida que permitam romper o véu da aparência e

buscar a essencialidade concreta (Pasqualini & Martins, 2015).

Seguindo com a aproximação do pensamento de Vigostki e do método em Marx, é

possível relacionar o conceito de vivência com a dialética singular-particular-universal. As

situações vividas pelas mulheres geram impressões e sensações que dão o tom da vivência

e constroem a singularidade de cada uma. No entanto, no caso das sujeitas da pesquisa,

observa-se o compartilhamento de particularidades no que tange aos aspectos de gênero,

raça e classe - são mulheres em sua maioria pretas, com condições socioeconômicas

semelhantes, habitantes de uma periferia urbana.

Essas particularidades tornam as situações individualmente experienciadas, de

algum modo, semelhantes, o que aproxima as vivências construídas. Dialeticamente, essas

mulheres compartilham a particularidade de relações de opressões específicas, como

também a universalidade de estarem inscritas numa sociedade cujo modo de produção é o

capitalista.

Nesse sentido, o método do Teatro do Oprimido (TO) não poderia estar mais

alinhado à lógica da teoria marxiana. Trata-se de um método que busca compreender os

mecanismos pelos quais uma opressão surge, levando em conta a história singular do

sujeito, mas sem restringir-se a ela. É preciso compreender os motivos que geram o
50

conflito escolhido para ser encenado. Para tanto, faz-se imprescindível ampliar o olhar para

enxergar o contexto social, as questões estruturais que ditam os papeis, comportamentos,

crenças… Ir ampliando o micro para poder perceber o macro.

Também como a teoria de Marx, o Teatro do Oprimido é um teatro tem um viés

revolucionário. O TO almeja não só destrinchar práticas opressivas. Ao mesmo tempo que

busca melhor compreendê-las, objetiva descobrir de táticas e estratégias para evitá-las ou

superá-las. Assim, visa estimular a atuação cidadã com a descoberta de potencialidades

individuais e coletivas.

É sobre esse método que se debruça o tópico seguinte deste trabalho.

2.2. O Teatro do Oprimido como estratégia de intervenção social

Idealizado por Augusto Boal, o Teatro do Oprimido surge no cenário político e

estético de 1971, durante a ditadura civil-militar, como uma possibilidade de transgressão

da ordem imposta. Em sua essência, o TO almeja por igualdade. A afirmação de Boal

"todo mundo pode fazer teatro - até mesmo os atores" procura mostrar a semelhança

existente entre todos os seres humanos, ainda que não idênticos entre si, e sua capacidade

de executar qualquer atividade. Para Boal (1991), negar isso significava manter o status

quo de uma sociedade que, por meio da constante especialização das tarefas, privilegia

uma minoria. Alguns irão ao palco, outros irão assistir, receptiva e passivamente. No palco,

haverá ainda mais divisões: enquanto uns poucos atores serão os protagonistas, os demais

serão coadjuvantes.

Essas diferenças entre papeis representados em cena reproduzem a realidade social

em que poucos têm voz e destaque, enquanto muitos seguem dando o suporte para o

desenrolar de uma história que não é exatamente a sua própria. É interessante perceber

como isso se alinha à divisão sexual do trabalho e à opressão de gênero anteriormente


51

discutidas. Alguns irão trabalhar, outras ficarão em casa. Alguns representarão a autoridade

do lar, outras estarão em muitos aspectos sujeitas à ordem imposta.

Visando questionar e subverter a ordem vigente do teatro e, por consequência, da

sociedade, o Teatro do Oprimido nasceu com o objetivo de que povo reassumisse sua

função protagônica através do teatro para, então, se preparar para a atuação fora dele. O

TO visa fortalecer grupos de oprimidos e oprimidas para a luta pela conquista de direitos e

felicidade (Santos, 2016). No entanto, isso não significa que a prática desse método esteja

centrada em eventos pontuais ou em ações isoladas. Esse Teatro, que se dedica à

investigação de situações de opressão, investiga relações entre indivíduos que pertencem

e/ou representam grupos sociais, interesses e ideologias. Isto é, necessariamente haverá um

conflito nos trabalhos com o método do Teatro do Oprimido.

É nesse ponto que o Teatro do Oprimido se aproxima não somente da dialética

singular-particular-universal, mas também ao método de Marx de modo geral. A

construção da dramaturgia do TO obrigatoriamente busca uma perspectiva mais global do

conflito. Circunscrever o problema encenado apenas à relação pessoal entre indivíduos

configura uma falha relevante na construção dramatúrgica.

Sobre isso, Bárbara Santos (2016, p. 194) diz que “é fundamental que a questão

particular retratada [...] revele os pressupostos sobre os quais estão alicerçados os

comportamentos que, na cena, aparecem como individuais”. A autora discute ainda que a

encenação de fato diz respeito a uma situação particular da vida de alguém. Contudo, é

preciso ir além do singular. Tal especificidade deve remeter aos fatores sociais que

constroem tal situação e que demonstram que ela não é única e exclusiva da vida de um

indivíduo. Com outras especificidades ela se repete no cotidiano de outras pessoas.

Em consonância com a dialética singular-particular-universal, Santos (2016, p. 194)

segue afirmando que “cada um de nós é um. Somos únicos. Particulares. Singulares.
52

Entretanto, cada indivíduo singular é fruto de suas muitas experiências coletivas”. O

arsenal de informações, comportamentos, preconceitos, tabus, crenças, percepções morais

e estéticas… Todos esses elementos são construídos nas experiências sociais, geográfica e

historicamente determinadas. Esse conjunto diverso de vivências, sejam elas diretas,

indiretas, passadas, presentes e com possibilidades futuras, compõe o contexto social que

circunscreve a vida cotidiana, formando o palco dos conflitos pessoais.

O TO se utiliza desses conflitos particulares para discutir o contexto social. Em

uma montagem de cena, o percurso deve se iniciar no caso particular e seguir em direção

ao contexto social que insere e evidencia esse fato concreto. Para o Teatro do Oprimido,

esse caminho se chama ascese17 e quer dizer “a necessária subida investigativa do micro, o

caso particular, até o macro, o contexto social” (Santos, 2016, p. 199). Trata-se de um meio

de alcançar uma compreensão ampla do problema encenado, de dar visibilidade à macro

estrutura que por vezes está oculta no microcosmo da vida cotidiana.

Através do estímulo ao diálogo, da intervenção direta na intervenção teatral,

busca-se analisar e compreender a estrutura social em cena. Assim, desenham-se meios

concretos para ações efetivas que levem à transformação da realidade (Santos, 2016).

Nesta pesquisa, o Teatro do Oprimido interpreta um papel estratégico e potente para

questionar a lógica vigente do patriarcado, abrindo espaços de reflexão e mudança.

Percebe-se, então, o Teatro do Oprimido como uma expressão artística que deve se

construir e se desdobrar em um fazer político (Santos, 2016). O TO é uma combinação

entre arte e política e tem a opressão como conceito central para o desenvolvimento do

método. O uso indiscriminado de jogos e exercícios do TO não caracteriza o seu real

emprego. O método do Teatro do Oprimido requer o desenvolvimento de um conteúdo de

intervenção estético-sócio-político que se refira a uma opressão. Não se tem como falar de

uma opressão sem se posicionar politicamente.


17
Ascese é uma palavra grega que significa exercício.
53

Por ser intrinsecamente politizado, o TO se torna um recurso bastante utilizado em

trabalhos de intervenção social e política, especialmente com grupos oprimidos (Boal,

1991). Trata-se de um método constituído por dois conceitos básicos: 1) o(a) espectador(a)

deverá abandonar a condição de ser passivo(a), recipiente e assumir o lugar de

protagonismo, de sujeito criador, transformador, transformando-se em espect-ator/atriz; 2)

a discussão não se prende somente à representação do passado, mas também, mais

importante ainda, à preparação para o futuro. Com isso, essa forma de se fazer teatro não

só traz à tona a reflexão acerca de uma opressão vivida, como prepara os sujeitos,

munindo-os para as diversas facetas que tal opressão pode vir a apresentar (Boal, 1991).

Ressalta-se que o método do Teatro do Oprimido é bastante amplo em modalidades

e é representado pela figura de uma árvore, com suas raízes, tronco, galhos e frutos, cada

elemento com um significado. Trata-se de uma metáfora interessante para falar sobre um

método que “está em constante movimento, tanto de aprofundamento quanto de difusão.

[...] Como “ser vivo” que é, o Método segue em constante interação com meio,

renovando-se e multiplicando” (Santos, 2016, p. 148).

Analisando seu percurso histórico, observa-se o quanto o TO se constituiu a partir

de diálogos dinâmicos com uma realidade em constante mudança. Mediante um contexto

de censura e de manipulação da mídia, surgiu o Teatro Jornal, visando, através de técnicas

teatrais, revelar os interesses por trás das notícias e redesenhar a imagem do real; com o

exílio de Boal em países latino-americanos e diante da barreira linguística, surge o

Teatro-Imagem, baseado na linguagem não-verbal, que busca compreender os fatos

representados a partir da leitura da linguagem corporal; tendo em vista o desenvolvimento

de uma técnica teatral que proporcione a destruição da barreira entre palco e plateia e a

implementação de um diálogo direto, nasce o Teatro-Fórum. Desse modo, associado à


54

necessidade e ao contexto histórico, o Teatro do Oprimido se desenvolve e vai se

expandindo em ramos. Cresce enquanto árvore e método.

Nesse processo de crescimento, um novo método nasce. Fundamentado no TO,

nasce o Teatro das Oprimidas em resposta à necessidade de um espaço em que as

especificidades das opressões das mulheres pudessem ser debatidas. É uma versão

feminista do Teatro do Oprimido. Será abordado com mais profundidade no capítulo

Resultados e Análise dos dados.

O Teatro-Fórum (TF), o ramo da árvore escolhido para compor as oficinas pensadas

para as mulheres usuárias do CRAS, cumpre de maneira exemplar os dois pressupostos

anteriormente mencionados (condição ativa do espectador e preparação para ação futura).

A sua proposta é a seguinte: encena-se uma pequena peça ou cena na qual há um

protagonista oprimido e seu antagonista opressor. A cena/peça deve apresentar uma

situação em que o(a) protagonista é alguém que deseja algo e não consegue realizar seu

desejo em virtude do impedimento posto pelo(a) opressor(a). Os(as) espectadores(as)

assistem e são informados que a cena será refeita e que, desta vez, é possível que eles(as)

intervenham. Inicia-se o jogo/luta. São então transformados em espect-atores/atrizes, isto é,

são convidados(as) a entrar em cena pelo(a) curinga (uma espécie de mestre de cerimônia

do TF) e, teatralmente, pela via da ação, buscar estratégias para encontrar uma possível

solução para o problema apresentado. Para tanto, eles(as) terão que ter algum tipo de

identificação com o(a) protagonista, seja ela uma identificação absoluta, por analogia, ou

então, por solidariedade (Boal, 2012).

Por vezes, os espect-atores/atrizes podem sair de uma sessão de TF insatisfeitos

como resultado final. No entanto, destaca-se aqui que o objetivo do TF não é ganhar. Para

esse jogo/luta, mais importante do que chegar a uma boa solução é chegar a um bom

debate. Sobre isso, Boal diz que “o debate, o conflito de ideias, a dialética, a argumentação
55

e a contra-argumentação, tudo isso estimula, aquece, enriquece, prepara o espectador para

agir na vida real” (2009, p. 345). O fórum tem por objetivo permitir a aprendizagem e o

exercício. “Os espect-atores, pondo em cena suas ideias, exercitam-se para a ação na vida

real; e atores e plateia, igualmente atuando, tomam conhecimento das possíveis

consequências de suas ações. Ficam conhecendo o arsenal dos opressores e as possíveis

táticas e estratégias dos oprimidos” (Boal, 2009, p. 53).

O Teatro-Fórum é uma das etapas planejadas para a oficina avaliada por esta

pesquisa. De modo geral, a oficina foi planejada para acontecer em três etapas. A primeira

seria de oficinas de Teatro do Oprimido, contabilizando cinco encontros com as mulheres

participantes. Cada um deles mediado por jogos do arsenal do Teatro do Oprimido que

possibilitem o trabalho com a temática de violência e opressão de gênero18.

Diante do produto dos jogos sobre o que simboliza para essas mulheres uma

opressão/violência de gênero, segue-se para a construção/facilitação de um processo

criativo em que o fruto seja uma esquete19 de Teatro-Fórum, tratando da temática por elas

eleita como mais representativa de sua realidade. A proposta é que tanto a criação quanto a

encenação da esquete sejam feitas pelas próprias mulheres. Isso se justifica pelo fato de

que “é fundamental que o espetáculo de Teatro do Oprimido seja produzido e representado

pelas pessoas que têm desejo e necessidade de transformar a realidade que vivem e

encenam, a partir de sua perspectiva do problema e de seu lugar social diante dele”

(Santos, 2016, p. 181).

A esquete, apesar de criada com base nas vivências de cada uma do grupo, não

tratará especificamente da história de vida de uma participante. Será uma criação coletiva

de inspiração no compilado dessas experiências, uma vez que, como já discutido, o TO não

se dedica a processos individuais. Tal processo estético, de vivência na e valorização da

18
No apêndice está o planejamento detalhado.
19
No teatro, rádio e televisão, o termo esquete designa peça de curta duração e poucos(as) atores/atrizes.
56

coletividade, se coloca como um meio para fortalecer os laços de identidade e os vínculos

de solidariedade, de modo a criar as bases para a elaboração das estratégias de intervenção

social, para a luta política (Santos, 2016).

Dá-se seguimento então para a segunda etapa: a apresentação do fórum.

Pretende-se que essa esquete seja apresentada no CRAS para somente convidados e

convidadas do grupo. Tornar o público seleto a partir do convite das próprias participantes

é uma forma de protegê-las minimamente de qualquer exposição que o Teatro-Fórum possa

causar. De todo modo, um dos protocolos para a realização de um fórum é a exposição de

suas regras antes do início da apresentação. Dentre essas regras está o combinado com o

público sobre a confidencialidade e respeito às falas das pessoas no momento do fórum.

Mesmo diante desses cuidados e com a ciência de que o caso apresentado é fictício,

inspirado na realidade, caso aconteça alguma situação que ultrapasse o limite do diálogo e

coloque alguém em risco, o fórum deve ser interrompido imediatamente e as devidas

providências serão tomadas (podendo variar entre mediação de conflito e intervenção da

guarda municipal, em casos mais extremos).

Mediante esse processo, pretende-se alcançar a compreensão dos mecanismos pelos

quais uma opressão/violência se produz, a descoberta de táticas e estratégias para evitá-la

ou superá-la e o ensaio dessas práticas. Em alguma proporção, busca-se a produção de

diversas rupturas nos discursos e práticas hegemônicas. Desse modo, o Teatro do Oprimido

se coloca como ponto de partida para a atuação cidadã - a descoberta de potencialidades

individuais e coletivas, mediada pelo método do TO, pode se transformar em estímulo para

a ação concreta na vida real (Santos, 2016).

Em suma, o planejamento envolve os encontros de jogos e o processo criativo das

mulheres do SCFV, a sessão de Teatro-Fórum e a terceira etapa, que será executada através

de uma roda de conversa com as mulheres e a comunidade após o fórum. Esta última fase
57

visa acolher e debater sobre o que pode emergir durante a apresentação. Ademais, haverá

um encontro final somente com as participantes do grupo para avaliar o processo completo.

É relevante destacar que a potencialidade do método do TO não se restringe ao

resultado final de um processo criativo, à esquete criada, ou à qualidade do fórum

apresentado. Todo o processo, cada etapa vivenciada tem sua importância. Por isso,

considera-se a relevância de haver a cada encontro, seja durante os jogos iniciais, ou no

encontro de fechamento, espaço para reflexões sobre as descobertas, os sentimentos que

surgirem, reflexões que venham a ser relevantes para as mulheres.


58

Capítulo 3 - Aspectos metodológicos

Para alcançar o objetivo almejado de analisar o Teatro do Oprimido como forma de

intervenção social em casos de violência contra a mulher, o primeiro passo dado foi fazer

um levantamento de mulheres que atuam com Teatro do Oprimido que pudessem

contribuir com a pesquisa. Os critérios de participação da pesquisa foram os seguintes: ser

mulher e ter conhecimento e experiência vastos em relação ao TO. Depois de identificada

uma pessoa compatível com os dados necessários, a proposta do estudo foi apresentada e o

convite à participação, feito. Em seguida, solicitou-se que a participante indicasse outra(s)

pertencente(s) à mesma população-alvo.

Tal método de construção de amostra se chama bola de neve. Por meio dele a

amostra é autogerada, contando com a colaboração voluntária da(s) membra(s) inicial(is) e

das subsequentes. Desse modo, a formação da amostra se dá ao longo do processo, não

sendo determinada previamente (Costa, 2018).

Ao total foram entrevistadas seis mulheres20. A delimitação da amostra se deu a

partir do critério de saturação teórica. De acordo com Falqueto e Farias (2016), a

amostragem por saturação é uma ferramenta conceitual que pode ser utilizada em

investigações qualitativas. Por meio dessa técnica, a suspensão da quantidade de

participantes é definida quando os dados, na avaliação de quem conduz a pesquisa,

começam a se repetir, a apresentar redundância, de modo que é considerado improdutivo

persistir em sua construção.

Por sinal, a proposta da pesquisa era que a construção dos dados ocorresse em duas

etapas: a avaliação de um planejamento de intervenção voltado para mulheres e a

realização de entrevistas semiestruturadas. Essa intervenção segue a linha temática de

questões de gênero e foi pensada tendo como público alvo mulheres usuárias da política de

20
Todas autorizaram o uso de seus nomes reais nesta dissertação.
59

assistência social a nível municipal, mais especificamente mulheres que atendidas por

equipamentos como Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de

Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). A intervenção foi elaborada a

partir de jogos do arsenal do Teatro do Oprimido e a modalidade do Teatro-Fórum. Quanto

à quantidade de participantes, ela foi pensada para um grupo de aproximadamente 15

mulheres, podendo variar conforme a demanda e contexto.

A ideia de se trabalhar com o Teatro do Oprimido do âmbito da Política de

Assistência Social surgiu a partir da experiência de trabalho da pesquisadora como

psicóloga em um CRAS da cidade de Natal/RN. Após atender inúmeras mulheres e ouvir

delas o quanto a violência contra a mulher se apresentava como um elemento constante em

suas vidas, o interesse por investigar esse fenômeno surgiu de forma imperiosa. O Teatro

do Oprimido se juntou a esse desejo por ser um método criativo, fundamentado a partir da

lógica da educação popular, capaz de construir um espaço reflexivo, em que se possam

desvelar os mecanismos de produção da opressão/violência contra a mulher presentes nas

histórias do coletivo.

Além disso, por meio do TO seria possível descobrir táticas e estratégias para evitar

e/ou superar essas opressões, gerar rupturas nos discursos e práticas hegemônicas que tanto

oprimem e violentam as mulheres. Trata-se uma busca por estimular a atuação cidadã com

a descoberta de potencialidades individuais e coletivas. Desse modo, a semente plantada

durante os jogos, o fórum, poderia crescer e se transformar em estímulo para a ação

concreta na vida real.

O planejamento foi dividido em três etapas: oficinas de sensibilização ao Teatro do

Oprimido; Fórum; e encontro de fechamento e avaliação. O objetivo da primeira etapa é

apresentar às mulheres o método do Teatro do Oprimido e construir, de forma coletiva, um

resultado estético para a temática da opressão. A partir da construção grupal do que


60

representa para as participantes a opressão, é montada, também coletivamente, uma

esquete. Essa pequena cena deverá representar a opressão escolhida pelas participantes e o

seu final precisa ser de fracasso. A opressão precisa acontecer. A proposta é que a esquete

seja o ponto de partida para a segunda etapa da intervenção: criação de um fórum.

O Teatro-Fórum é uma das técnicas teatrais que compõem o método do Teatro do

Oprimido. Sua metodologia permite que a barreira entre palco e plateia seja destruída e que

o diálogo direto seja implementado. A cena criada pelo grupo de mulheres seria

apresentada para seus convidados e suas convidadas e ao final o público seria convidado a

pensar em como mudar o final da história contada, como romper a opressão encenada. A

cena se repetiria, mas dessa vez, ao público seria possível entrar em cena e intervir no lugar

das atrizes na intenção de evitar/combater a opressão e dar um novo desfecho à história.

Encerrado o fórum, de acordo com o planejamento segue-se para a etapa final de

fechamento e avaliação. Nesse momento, a ideia é ouvir das mulheres participantes como

foi a vivência de todo o processo e fazer uma avaliação geral da intervenção.

O planejamento foi enviado por e-mail para todas as participantes, com expectativa

de retorno tanto na forma digital quanto por meio do diálogo direto durante o momento da

entrevista, caso a entrevistada sentisse desejo e necessidade de fazê-lo em uma conversa ao

vivo. Nesse documento havia o detalhamento de cada encontro, objetivos de cada dia,

escolha dos jogos, além de uma breve avaliação ao final, com perguntas semi estruturadas.

Os critérios avaliativos eram os seguintes: o desenho da oficina em relação aos

pressupostos do TO; a escolha dos jogos e a conexão entre eles; a adequação dos objetivos

da oficina à proposta metodológica; a exequibilidade da proposta, considerando a escolha

dos jogos, tempo de duração de cada encontro. Ademais, havia um espaço livre para tecer

críticas, sugestões, bem como escrever o resultado da avaliação global e recomendação

final.
61

É importante compreender que a existência de um roteiro de oficina pronto, ou

mesmo ele corrigido e/ou avaliado, não significa dizer que ele não possa ser alterado, que é

“ideal”, “adequado”. É relevante ter em mente que um planejamento de oficina de TO, seja

o feito para esta pesquisa ou qualquer outro, é uma ideia inicial apenas. Pode e deve ser

alterada conforme a necessidade, conforme o movimento do grupo com que se trabalha. Os

jogos escolhidos são caminhos para pensar o processo de criação e discussão da temática,

mas não são os únicos caminhos. O arsenal do TO é extenso e há diversas outras

possibilidades de abordar o tema.

A cada encontro é preciso que haja sensibilidade e flexibilidade para acolher as

contribuições do grupo, para perceber suas reações e, se necessário, recalcular a rota.

Entende-se o processo como algo fluido, dinâmico. Os jogos e exercícios vão se colocando

como resposta ao movimento do grupo nos encontros anteriores. No caso do planejamento

desta pesquisa, ele nada mais é que um guia - passível de sofrer alterações - para se debater

questões de gênero e violência contra a mulher.

Infelizmente a primeira etapa da pesquisa, que seria a avaliação do planejamento

pelas participantes, não foi concluída. Todas as participantes da pesquisa compartilhavam

entre si uma agenda bastante cheia, o que limitou o tempo que puderam conceder à

participação da pesquisa. De todo modo, mesmo não respondendo diretamente ao

questionário referente ao planejamento, o conteúdo de suas falas no momento da

entrevista, ainda que não voltado diretamente para a intervenção, contribuiu de forma

significativa para repensar a condução da oficina. É possível dizê-lo principalmente pelo

fato de todas, sem exceção, terem introduzido um aspecto bastante relevante para o

trabalho de/com mulheres: a metodologia do Teatro das Oprimidas.

Tal acontecimento faz lembrar uma citação de Lévy-Strauss que destaca o quanto o

campo pode ser transformador à medida que o pesquisador compreende sua própria
62

limitação no que compreende e interpreta. Para o antropólogo, “o trabalho de campo é mãe

e nutriz de toda dúvida (...) antropológica que consiste em se saber que nada se sabe, mas,

também em expor o que se pensava saber, às pessoas que [no campo] podem contradizer

[nossas verdades mais caras]” (Lévy-Strauss, 1950, p. 220).

Nesse sentido, a entrevista superou as suas expectativas. A partir de um roteiro

semiestruturado, pretendeu-se caracterizar e analisar os desafios de atuação com TO na

atualidade, além de identificar as estratégias para a garantia dos pressupostos do trabalho

com TO. No entanto, ela ultrapassou essas pretensões ao destacar uma nova metodologia

de trabalho feito por mulheres e para mulheres - o Teatro das Oprimidas, que se mostrou

bastante compatível com a proposta da intervenção construída para esta pesquisa.

Tendo em vista que chegar a esses (e outros) resultados só seria possível através de

uma matéria prima composta por substantivos como experiência, vivência, senso comum e

ação, conclui-se que este estudo apresenta um caráter qualitativo. Minayo (2012) avalia

esses quatro aspectos como complementares em seus sentidos e é possível percebê-los

nesta pesquisa. A experiência tem seu lugar a partir do momento em que a pesquisa nela se

embasa ao buscar compreender o que as participantes apreendem no lugar que ocupam no

mundo e nas ações que realizam. Embasa-se também na vivência, uma vez que ela se faz

presente através da abertura e interesse da pesquisa no produto da reflexão pessoal sobre a

experiência. Fundamenta-se no senso comum, tendo em vista que as participantes partem

de um lugar coincidente, que compartilham opiniões, valores, crenças. Por fim, dá

destaque à ação, no sentido que a pesquisa investiga o exercício, a prática dos indivíduos

na construção de trabalhos com o TO.

As seis entrevistas foram realizadas virtualmente, através de uma plataforma de

videochamada. Elas foram gravadas e transcritas na íntegra. Para amparar a elaboração de


63

categorias a partir dos elementos emergidos, como ferramenta de análise foram escolhidos

os núcleos de significação.

Essa forma de análise tem como tarefa a apreensão das mediações sociais

constitutivas do sujeito. Mediação é definida como categoria organizadora das conexões

existentes entre a singularidade e a universalidade. O uso da mediação permite romper com

visões dicotômicas e naturalizantes e abre portas para a análise das determinações inseridas

num processo dialético, não causal, linear e imediato. Usar núcleos de significação para

apreender as mediações sociais constitutivas do sujeito é ir em busca do processo, do

sentido, é enxergar a singularidade se construindo na universalidade e a universalidade se

concretizando na singularidade (Aguiar & Ozella, 2006).

Através dos núcleos de significação é visado o aprofundamento no processo de

construção de sentidos (diz da subjetividade do sujeito, da singularidade historicamente

construída) e dos significados (produções sociais e históricas; conteúdos instituídos), de

modo a ir além do aparente, considerando tanto as condições subjetivas quanto as

contextuais e históricas (Aguiar & Ozella, 2006).

Com o material transcrito das entrevistas em mãos, o passo inicial foi organizar as

entrevistas em uma determinada ordem de leitura. De acordo com Minayo (2021), criar

subconjuntos a partir das características das participantes é um fator organizador, uma vez

que facilita a identificação de possíveis homogeneidades e diferenciações e torna possível

comparar os grupos criados. No caso desta pesquisa os subconjuntos foram criados a partir

dos critérios de nacionalidade, raça/etnia e tempo de atuação com teatro do oprimido.

Após essa organização inicial foram feitas leituras flutuantes, a fim de se

familiarizar com o material. A partir dessas leituras, foram destacados e organizados os

pré-indicadores a partir de palavras que foram extraídas das falas das participantes. Os
64

pré-indicadores foram elencados tendo como critério a importância de cada um para a

compreensão do objetivo da investigação.

Em seguida, deu-se o processo de articulação dos conteúdos semelhantes,

complementares ou contraditórios, resultando na organização e nomeação dos núcleos de

significação. “Os núcleos resultantes devem expressar os pontos centrais e fundamentais

que trazem implicações para o sujeito, que o envolvam emocionalmente, que revelem as

suas determinações constitutivas” (Aguiar & Ozella, 2006. p. 231). A partir da leitura das

entrevistas, os dados foram categorizados nos seguintes núcleos: um teatro coletivo e

político; um teatro em transformação; e um teatro de necessidade e esperança.

Sabe-se que o processo de análise não deve se restringir às falas das participantes.

É importante ampliar o processo interpretativo e articulá-las com o contexto social,

político, econômico, ou seja, histórico, para assim buscar compreender o objeto da

pesquisa em sua totalidade. Sendo assim, traçando as relações possíveis intra-núcleo e, a

posteriori, inter-núcleos, buscou-se explorar o material de modo a destrinchar mediações,

refletir e estabelecer um diálogo com os aportes teóricos utilizados.


65

Capítulo 4 - Resultados e Análise dos dados

Essa seção apresenta os resultados e a discussão dos dados construídos na pesquisa.

As informações foram organizadas nos seguintes eixos: 1) um teatro coletivo e político,

subdividido em nível grupal e nível de sociedade; 2) um teatro em transformação; 3) um

teatro de necessidade e esperança.

4.1. Um teatro coletivo e político

Nesse eixo, analisou-se a perspectiva coletiva e política presente na atuação com o

Teatro do Oprimido e com o Teatro das Oprimidas. É possível perceber esse caráter

coletivo e político desde a ação do indivíduo participante de um grupo, ou de uma

curinga21, por exemplo, até o papel do teatro do oprimido e das oprimidas perante a

sociedade.

4.1.1. A nível grupal

Como mencionado no tópico sobre o Teatro do Oprimido do capítulo 2 deste

trabalho, ascese é o movimento de investigação que parte do micro ao macro, rompendo as

fronteiras do caso particular para desvelar o contexto social que sustenta e influencia tal

particularidade. É um exercício importante para a construção da dramaturgia de uma peça

ou cena de teatro do oprimido ou das oprimidas. No entanto, esse exercício não é exclusivo

desse momento da construção da história a ser contada.

Foi recorrente na fala das entrevistadas a importância da ascese ser feita a todo

momento, não apenas na inclusão do contexto social na dramaturgia do teatro do oprimido.

Quando em todas as etapas, inclusive nas oficinas iniciais de um grupo, por exemplo, a

21
Optou-se por flexionar o substantivo curinga no gênero feminino pelo fato da análise focar no trabalho de e
com mulheres.
66

ascese se apresenta como uma estratégia fundamental para que os sujeitos e as sujeitas se

percebam participantes políticos da discussão em destaque.

Isso acontece através da predominância de uma narrativa coletiva nos trabalhos

com os teatros do oprimido e das oprimidas. Um dos exemplos apontados em uma das

entrevistas envolve exercícios estéticos (esse tipo de exercício vai ser mais aprofundado no

tópico 4.3), abarcando som e ritmo, por exemplo. Se cada participante cria três sons que

possam representar uma dada opressão, quando se trabalha em duplas, são seis sons que se

colocam em interação. Em trio, nove. A partir dessas interações, de como esses sons

podem “conversar” entre si, como eles podem contar uma história, cria-se uma narrativa -

uma narrativa coletiva. Em seguida, cada grupo apresenta o seu resultado para os demais,

para que seja analisado e sejam compartilhadas as impressões. Então esse grupo fez ele [o

participante] perceber ‘nossa, a gente falou sobre isso e eu nem tinha me dado conta (...)

Olha, aquele grupo percebeu, porque também vive… (Rachel Nascimento).

Por meio da estética e da narrativa coletiva, às pessoas é ofertada a possibilidade de

reconhecimento de si e entre si, de compreensão de seus lugares, seja na diferença ou na

compatibilidade, de modo que a história contada não se torna a história de uma sujeita do

grupo, mas uma história de todas.

Isso não significa que todas vivam a opressão escolhida da mesma forma.

Certamente, em um grupo misto, caso a opressão trabalhada seja violência contra a mulher

ou racismo, por exemplo, os homens ou pessoas não negras do grupo, respectivamente, não

terão as mesmas experiências em relação à temática. O trabalho de reconhecimento do

lugar dos indivíduos perante essas opressões dá a oportunidade a homens de perceberem os

privilégios de seu sexo e, da mesma forma, a não negras de perceberem os privilégios que

acompanham sua cor.


67

Djamila Ribeiro (2019) se coaduna com tal ideia ao afirmar que “perceber-se é algo

transformador. É o que permite situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante

de injustiças contra grupos sociais vulneráveis” (p. 32-33). Tomar consciência do papel de

cada um e cada uma em relação a determinada opressão é um aspecto fundamental para a

condução de uma metodologia que se proponha transformadora, como é o teatro do

oprimido e das oprimidas. Só é possível confrontar e superar uma opressão se de forma

coletiva. Para se ter harmonia em um trabalho conjunto, é imprescindível que cada um/a

saiba qual é o papel que lhe cabe desempenhar.

Bárbara Santos diz que

o Teatro do Oprimido estimula o indivíduo a descobrir o EU,


enquanto potencialidade de ação e transformação, e propicia
o exercício de expressar variadas possibilidades de ser. Além
de favorecer essa descoberta e fortalecer a autoestima e a
autoconfiança, também atua sobre a construção de NÓS,
tanto no que se refere ao próprio grupo, que passa a ser um
coletivo com objetivos e metas comuns a serem alcançadas,
quanto ao NÓS construído na formação do cidadão, que vive
num mundo coletivo, onde os fatos ocorridos são
interligados, sendo consequência e causa da uma série de
outros acontecimentos sociais, políticos, econômicos e etc..
(2016, p. 363).

Sendo assim, é notável o quanto perceber-se faz parte do processo no TO. Dar

atenção a questões individuais, proporcionar o reconhecimento dos papéis sociais dos

membros de um dado grupo, esses são caminhos importantes para compreender a questão

mais ampla, no entanto, não exatamente o objetivo do teatro do oprimido e das oprimidas.

A proposta é, a partir da compreensão do micro, desvelar os mecanismos que perpetuam

desigualdades e propor debates que abarquem a estrutura que sustenta uma opressão.
68

A autora bell hooks (2019) apresenta uma discussão sobre o perigo do foco nesse

reconhecer-se. Ela diz que necessariamente uma cultura de dominação é narcisista, então

qualquer foco na particularidade, na individualidade, pode iniciar um movimento

autofágico. Os indivíduos podem se perder no reconhecimento de suas identidades,

enfatizando um estilo de vida politicamente correto, sem conexão com uma realidade

social mais ampla. Para não recair no identitarismo, é preciso lançar mão de estratégias de

politização que ampliem a concepção de quem se é, que possam intensificar o sentido de

intersubjetividade, a relação com a realidade coletiva (hooks, 2019).

Essa busca pela compreensão do contexto social em todos os processos de trabalho

com teatro do oprimido e das oprimidas se apresenta como um fator determinante para que

o foco não recaia sobre uma história individual. Caso, por exemplo, a temática escolhida se

restrinja a um acontecimento, à opressão que alguém do grupo vivenciou - por mais que

trabalhada a partir de um processo coletivo - a história contada torna-se a história de uma

pessoa, ou seja, uma história específica, particular. No entanto, a proposta é contar uma

história coletiva, que represente a realidade de várias pessoas para, assim, analisar as

circunstâncias mais gerais, as implicações sociais que influenciam ou determinam uma

opressão (Santos, 2016) e os mecanismos estruturais por trás dela.

Romper a membrana do indivíduo e compreender a opressão fora dessa bolha

permite não culpabilizar os sujeitos pelo que sofrem. A fala de uma das entrevistadas

exemplifica isso:

Eso que tu vives no tiene que ver con una responsabilidad. No viviste violencia
porque eres culpable de esta violencia. No vives discriminación porque eres
responsable de tu diagnostico [de HIV], del color de tu piel. Es porque es un
problema estructural que provoca eso y eso lo viven muchas otras22 (Lorena Roffé).

22
Isso que você vive não tem a ver com uma responsabilidade. Você não sofreu uma violência porque é
culpado dessa violência. Não vive discriminação porque é responsável por seu diagnóstico, da cor da sua
pele. É porque é um problema estrutural que provoca isso e com isso vivem muitas outras (tradução livre).
69

Por essa razão, não há uma tendência a se buscar uma dramaturgia particular no

teatro do oprimido e das oprimidas. A pergunta feita ao grupo é “qual a situação que nos

oprime?” e não “qual a opressão que uma companheira do grupo sofre?”. A gente tem que

ler esse corpo atravessado por todas as políticas que, ou são negadas ou são direcionadas

a ele (Claudia Simone).

A sujeita do Teatro do Oprimido não é individualizada, isolada em suas

particularidades. É uma sujeita coletiva, contextualizada e perpassada pelas determinações

de seu tempo. É sobre essas determinações, sobre esse contexto social que o Teatro do

Oprimido se debruça.

Essa forma de encarar a vivência da sujeita se faz presente no pensamento de Marx

sobre a subjetividade. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao

contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência” (Marx, 2008, p. 47), isto é,

Marx aponta para a produção material da vida, como fator condicionante para a construção

da consciência. Um/a sujeito/a é o/a sujeito/a de seu tempo. Vale reforçar que a produção

material de vida não se restringe à produção econômica, trata-se da produção e reprodução

dos meios necessários à vida, abarcando a produção de bens materiais, de subjetividade e

objetividade, numa dança fluida e dialética entre produção material e produção espiritual,

operando simultaneamente como partes integrantes da totalidade social (Chagas, 2013).

Dessa forma, compreende-se que a subjetividade não é algo abstrato, independente,

posto naturalmente. É construída socialmente, em uma dada formação social, em um

determinado momento histórico (Chagas, 2013). Em consonância com a teoria de Marx,

para os teatros do oprimido e das oprimidas, a opressão vivida por um indivíduo não é

única, isolada, descontextualizada. Tais métodos teatrais propõem a investigação do

contexto social, o esmiuçamento das condições macro que refletem na vivência dos

indivíduos, na expressão e construção de sua subjetividade.


70

De modo prático, o trabalho em grupo por si só é um grande facilitador da

ampliação do olhar diante da opressão trabalhada e da compreensão das subjetividades em

questão. O grupo é feito de pessoas que sentem a opressão, porém, como mencionado, cada

um/a tem uma vivência particular com o tema. Objetivamente, através do trabalho em

grupo é possível acessar as experiências dos outros e isso enriquece as possibilidades e

estratégias pensadas pelo coletivo. A cena vai sendo complexificada, com novos

elementos. Desse modo, o trabalho coletivo propicia mais possibilidades de criação e

intervenção. Por esse viés, “toda oficina também é um espetáculo” (Claudia Simone), uma

vez que por si só ela proporciona possibilidades de reflexão e transformação.

Outro artifício utilizado para não individualizar a opressão é o reconhecimento dos

aliados na cena. Não somente a protagonista deve estar no papel de quem quebra a

opressão. Os aliados, ou seja, a sociedade, conscientes dos papéis que ocupam, podem

fazer algo diante disso. Caso, em um momento de fórum, o público se atenha a tentar

quebrar a opressão somente via a personagem protagonista, a mensagem que se passa é que

somente ela poderia agir e mudar a sua realidade. Uma das falas das entrevistas

exemplifica essa preocupação:

Essa história só vai emergir porque as outras pessoas se reconhecem nela. Então ela
não é uma história individual. Ela se repete e por se repetir ela é algo estrutural. E,
exatamente, pensar a estratégia para enfrentar essa opressão, ela [a estratégia]
também não é individual, senão você culpabiliza a pessoa. Você vitimiza e
culpabiliza porque a história é sua e você não resolveu (Iana Ribeiro).

Restringir-se à atuação da protagonista a torna exclusivamente responsável por sua

história e dificulta a percepção da parte que cabe à sociedade diante de uma injustiça.

Ademais, de forma mais ampla, impede que o conflito real seja traduzido, mantém as

intervenções presas à aparência da situação e impede o caminho em direção a sua essência

(Santos, 2016). É preciso perguntar ao grupo, em seu processo criativo, e ao público, em


71

uma situação de fórum: o que está por trás desse fato? Qual sua essência? Que ideologia e

estrutura social esse incidente cotidiano representa?

Ao refletir sobre essas perguntas, é fácil concluir que muito provavelmente o

conflito apresentado não é problema de um indivíduo particular e que não será por ele/a

sozinho/a solucionado, como apresentado na fala abaixo:

Não é responsabilidade de um herói vir salvar todo mundo, resolver a cena. É uma
responsabilidade coletiva. A transformação se faz de forma coletiva, assim como a
nossa pergunta é coletiva (Claudia Simone).

A pergunta a que se faz referência é a pergunta que a curinga faz ao público.

Trata-se de um convite ao público a se perceber e se implicar. No momento do espetáculo,

é papel da curinga estimulá-los/as a pensar de forma mais ampla e não reproduzir o

pensamento: “ah, mas ela deveria ter feito isso ou aquilo” (Iana Ribeiro). A proposta é não

individualizar a opressão, não avaliar a cena em questão fazendo julgamento do/a

personagem a partir de categorias que remetem à vitimização, marginalização, passividade,

incapacidade de ação. É preciso ampliar o horizonte para pensar o que a sociedade não fez

(ou fez) para que aquela opressão se concretizasse e que estruturas estão por trás do fato

encenado.

Sobre isso, Bárbara Santos afirma que “quando não se identificam

responsabilidades de agentes sociais, o indivíduo que está em desvantagem acaba sendo

culpado por sua condição, que é a consequência lamentável de sua infelicidade, de sua

própria escolha ou incompetência para se incluir e se integrar” (2016, p. 131). A fim de dar

destaque à responsabilidade coletiva e evitar que a solução de um problema recaia

individualmente sobre a protagonista, uma estratégia que se desenha é o fórum coletivo.

O fórum coletivo se trata de uma mudança na abordagem do fórum, porém sem

alterar a dramaturgia do espetáculo (Santos, 2019). Em vez de perguntar ao público quem


72

gostaria de ir ao palco e fazer uma intervenção na cena, a curinga pede que a plateia

discuta entre si que intervenções poderiam ser feitas para a quebra da opressão

apresentada. Pensar coletivamente nas estratégias de intervenção é um ensaio para as

pessoas se articularem como sociedade para intervir na situação. Não há uma pessoa que

seja a heroína. Há uma articulação coletiva para pensar possibilidades de ação.

Além disso, não há substituição de personagem nessa abordagem, diferentemente

do fórum convencional, em que alguém da plateia escolhe substituir algum ator ou atriz em

cena. Cada pessoa entra como um novo elemento na cena, a partir de sua própria posição

social. É como se cada pessoa da plateia fosse uma testemunha daquela cena: se ela

estivesse acontecendo diante de seus olhos e se você imagina ter uma sugestão que possa

mudar a situação, então você deve decidir se quer, se pode e se tem condições de fazer a

sua contribuição (Santos, 2019).

Em suma, em trabalhos com grupos, desde a construção da história à intervenção

feita em um fórum, faz-se relevante buscar a não individualização da opressão, tirar o foto

da protagonista e de seu comportamento. Destarte, é possível jogar luz na complexidade do

problema e concentrar energia na compreensão dos mecanismos de opressão que o

envolvem.

4.1.2. A rede de suporte dentro do Teatro

Como mencionado, o TO tem uma essência coletiva e isso se repete na relação

entre os grupos que trabalham com tal método. Dentre as falas das entrevistadas, foi

recorrente a menção da troca de experiências entre grupos de TO, entre curingas, como

uma forma de fortalecimento e resistência do Teatro do Oprimido. A criação da Rede

Madalena Internacional foi um exemplo bastante citado.


73

A Rede Madalena surgiu em 2010 a partir de laboratórios teatrais exclusivos para

mulheres. O formato de laboratório, como o nome sugere, é uma forma de experimentar

metodologias, novos jogos, novas formas de conduzir trabalhos com o TO. Na época, era

emergente a necessidade de “criar um espaço privilegiado para a discussão das

especificidades das opressões enfrentadas por mulheres” (Santos, 2019, p. 50). O

laboratório objetivava proporcionar reflexão sobre as opressões, troca de ideias e

propostas, bem como fortalecimento mútuo, tendo em vista novas conquistas e efetivação

dos direitos adquiridos23.

Fazer laboratórios, seja em rede - isto é, com a presença de diversos grupos - ou

envolvendo um grupo somente, mostrou-se essencial para o desenvolvimento do método.

Não é possível experimentá-lo individualmente ou alimentar-se apenas da teoria. É

fundamental ter um ambiente seguro, propício para vivenciá-lo, fazer testes, criar novos

jogos ou propor alterações. Fazer parte de um grupo de TO dá a chance de manter o

método em um desenvolvimento contínuo.

Uma das falas exemplifica bem tal papel do grupo: quando eu estou desenvolvendo

novos métodos, que eu quero experimentar alguma coisa, eu faço isso com meu grupo,

mesmo tendo todos esses anos nas costas (Liviana Bath). Além de conhecer a metodologia

e praticá-la com um grupo, a entrevistada destacou a importância de trocar experiências

com outras e outros curingas, num processo de retroalimentação. A formação no teatro do

oprimido não acontece individualmente. É preciso a troca com o coletivo.

A perspectiva do trabalho coletivo foi fundamental para o andamento de grupos

durante a pandemia de Covid-19. Uma das entrevistadas mencionou que a crise sanitária se

mostrou um grande desafio para a continuidade das ações com teatro do oprimido. No

entanto, relatou que estar articulada em rede, em contato com outros grupos, pensando

23
Vale mencionar que um dos resultados desses laboratórios foi uma nova metodologia, o Teatro das
Oprimidas, que será melhor detalhado no subtópico seguinte.
74

coletivamente, foi um grande refúgio. Para ela, estar em rede traz uma força que permite

melhor resistir, permite reconhecer mutuamente as dificuldades e potencialidades diante de

problemas comuns, como foi a pandemia de Covid-19. Dessa forma, foi possível perceber

que muitas das questões vivenciadas não se tratavam de fenômenos isolados de grupos.

Eram parte de um movimento global - e se o fenômeno é global, é preciso resistir de

maneira mais coletiva.

No caso, a partir da queda de fronteiras que a internet possibilita, o contexto da

pandemia trouxe dificuldades, ao mesmo tempo em que possibilitou o fortalecimento da

Rede Madalena como movimento global. No entanto, essa possibilidade não é algo que

está dado para todas. Mais sobre isso será tratado no tópico 4.2.4, sobre Trabalhos online

da pandemia.

4.1.3. Transformação social

O objetivo do teatro do oprimido é a transformação social. Se você escolhe o teatro


do oprimido como metodologia que vai ser essa metodologia teatral que vai ser a
base do seu fazer tanto artístico quanto profissional e político, você sabe que a
transformação não é para ontem. É um processo largo, longo e que a gente segue
nele, né, a gente faz transformações nos nossos tempos, mas outros tempos virão.
Então a gente segue transformando (Claudia Simone).

Esse trecho de uma das entrevistas ilustra um aspecto de grande relevância para o

teatro do oprimido. O TO é um fazer artístico que se propõe, “em solidariedade, a buscar

meios concretos para transformar a realidade injusta, superar a opressão e construir o

futuro desejado” (Santos, 2016, p. 425). Sabe-se, contudo, que, como a entrevistada

mencionou, a transformação da realidade não é algo que acontece rapidamente ou de forma

imediata. É uma semente que se planta no presente para que se possam colher os frutos

mais à frente.
75

Por exemplo, no trabalho com mulheres usuárias da política pública de assistência

social, é ingênuo esperar que grandes revoluções aconteçam em suas vidas a partir da

tomada de consciência das camadas de realidade que as envolvem. Afinal de contas, a

mulher em questão pode perceber o contexto machista, patriarcal e capitalista que a

oprime, mas muito provavelmente ela por si só não terá condições concretas de provocar

mudanças estruturais que mudem tal realidade.

No entanto, nesse processo de construção do futuro desejado, a estrutura -

machista, patriarcal, capitalista - pode começar a ruir a partir de microfissuras, afinal de

contas uma construção não desmorona de repente. Mesmo pequenas, quando avaliadas sob

perspectiva mais ampla, essas pequenas rachaduras podem ser muito significativas e

transformadoras para as sujeitas que as vivenciam.

Um dos exemplos mencionados nas entrevistas foi o que ocorreu com as mulheres

de Guiné-Bissau. Esse fato está descrito em mais detalhes no livro “Teatro das Oprimidas”

(Santos, 2016). Com a realização do Laboratório Madalena em São Domingos,

Guiné-Bissau, um dos frutos foi a criação do grupo Madalena-Bissau, formado

exclusivamente por mulheres. Elas desenvolveram o espetáculo Maria, Ritual de

Parideira. A temática central era a pressão social voltada para a maternidade, que impedia

mulheres de seguirem outros caminhos, como terminar os estudos, por exemplo. Esse

espetáculo foi selecionado para o FESTLIP (Festival Internacional das Artes da Língua

Portuguesa), que aconteceria no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, as participantes do

grupo fizeram uma viagem internacional sozinhas, sem a companhia de homens.

Foi um fato histórico para elas, realizar uma viagem de forma autônoma e poder

abordar um tema silenciado em sua cultura. Mordaças foram retiradas e correntes,

quebradas. Não se sabe exatamente se houve repercussões negativas, no sentido de

represálias após o retorno das mulheres ao seu país/cidade, o que é possível, tanto a nível
76

individual (nas suas relações sociofamiliares), quanto a nível coletivo (com relação à

recursos, trabalho, etc.). Porém, isso não retira a importância histórica desse feito.

Outro exemplo recorrentemente mencionado foi a história das Marias do Brasil.

Trata-se de um grupo composto por trabalhadoras domésticas, fundado em 1998, que por

meio de TO lutaram pelos direitos trabalhistas de sua categoria. Claudete Felix (2018, p.

160) lhes descreve brevemente da seguinte forma:

Marias, mulheres, negras, baixa escolaridade, péssima


remuneração pela quantidade de carga horária com
obrigações inusitadas da escolha do patrão. Todas elas vindas
de fora da Cidade Maravilhosa. Cada Maria vinda de regiões
de fome e seca, de escola há quilômetros de distância da casa,
sempre de cabeça baixa submissa às ordens da figura
patriarcal da família.

Tendo em vista que a temática principal do grupo eram questões trabalhistas das

trabalhadoras domésticas, muitas das resoluções a serem tomadas estavam atravessadas por

proposições legislativas sobre os direitos do trabalho. Desse modo, associaram o

Teatro-Fórum ao Teatro Legislativo, que proporciona aos espectatores e espectatrizes, além

da intervenção na cena, o encaminhamento de sugestões escritas para a criação de

propostas legislativas. Após analisadas, sistematizadas e votadas pela plateia, são

encaminhadas diretamente aos órgãos governamentais para os devidos desdobramentos

(Santos, 2016).

Assim o fizeram as Marias do Brasil. Atuaram em palcos, igrejas, escolas, teatros.

No ano de 2004, o grupo foi à Brasília para entregar na Câmara dos Deputados um

abaixo-assinado coletado durante as apresentações de seu espetáculo. Reivindicavam

direitos legais como a assinatura da Carteira de Trabalho e as suas consequentes garantias

(férias remuneradas, décimo-terceiro salário, previdência social, aviso-prévio,


77

licença-maternidade, irredutibilidade salarial e o direito de organização sindical). Essa

mobilização se deu de forma conjunta à Federação Nacional das Trabalhadoras

Domésticas.

Disso resultou concretamente o documento nº29/2009, da Comissão de Legislação

Participativa, expedido pela Câmara dos Deputados. Tal documento estende às empregadas

domésticas o FGTS e determina outras providências pela sugestão nº 103/05 encaminhada

pelo Centro de Teatro do Oprimido, a partir do abaixo-assinado encaminhado pelas Marias

do Brasil.

Em reconhecimento por sua atuação política, em 2014, o grupo recebeu uma

honrosa homenagem da Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Felix (2018)

relata que no salão da Câmara estavam autoridades políticas, parlamentares,

representantes, amigos e familiares. Ocupado por corpos tradicionalmente invisíveis,

aquele espaço experimentou o gosto da democracia. As Marias do Brasil saíram do

anonimato carregando a bandeira de sua história, de sua luta.

A ocupação de espaços de poder rompeu barreiras psicológicas de submissão e de

invisibilidade histórica. O trabalho de uma empregada doméstica castiga o corpo, enrijece

músculos e neurônios. Por meio do método do Teatro do Oprimido, da produção teatral das

Marias, novos caminhos, novas possibilidades, benéficos encontros e reencontros se

tornaram imagináveis, como sinalizado por Felix (2018): “as atrizes ressignificam seus

corpos no espaço e percebem o espaço entre seus corpos. Ao perceber o novo corpo

atuando em novo espaço, elas apropriam-se de um novo ângulo de percepção de si

mesmas” (p. 163).

Ambos os exemplos, tanto do das mulheres de Guiné-Bissau, quanto das Marias do

Brasil, ilustram a potencialidade de transformação que pode advir de trabalhos com Teatro

do Oprimido e das Oprimidas. Seja de maneira mais particular, como primeiro, seja de
78

maneira mais coletiva, como o segundo, o Teatro do Oprimido se apresenta como um

método que atua no rompimento de barreiras de silêncio, aceitação e submissão.

No que tange à queda da barreira entre intervenção teatral e intervenção real, é

evidente que a presença em determinados contextos pode colaborar para o aumento da

proporção da transformação - como foi o caso das Marias do Brasil. A ocupação de

espaços de poder é um fator facilitador para tanto, como exemplificam algumas falas das

entrevistas.

A gente viu possibilidades quando o público são pessoas “certas”, das redes, das
associações, representantes, representativos, que vejam a situação. Falando a nível
político, tem que ter uma organização, tem que ter pessoas em certos lugares de
poder também, na política (Liviana Bath).

Nesse sentido, o Teatro do Oprimido se coloca como um instrumento que pode ser

associado a outros para alcançar seus objetivos. O método por si só não é autossuficiente.

É necessário reconhecê-lo como parte do processo de revolução, e não a partir de uma

perspectiva de completude.

O teatro do oprimido é uma proposta que pode trazer e somar a outras. Ele não vai
salvar o mundo. Não pode colocar ele como salvador. Mas ele permite, sendo uma
metodologia que ajuda muito, porque ela é estruturada e ajuda muito a pensar,
refletir, a fazer e chegar aos grupos sociais sem ser palestra, sem ser o lugar que a
gente diz o que eles têm que fazer. A gente media para que as pessoas vivam,
sintam nos seus corpos, contem suas histórias e a partir disso coletivamente
produzam algo, que vai ser produto da ação delas (Iana Ribeiro).

Diante desse compromisso político, é evidente que o TO não se resume a uma

técnica. Trata-se de um método que faz uso de um meio estético para buscar meios

concretos para a transformação de realidades injustas (Santos, 2016). Portanto, tem

fundamentos inconciliáveis com a concentração de riquezas, com a exploração da classe

trabalhadora, “com a educação baseada no acúmulo de informações, com a adaptação


79

acrítica, com o enquadramento a regras pré-estabelecidas e com a manutenção do status

quo” (Santos, 2016, p. 469).

Configura-se um perigo para o método o seu esvaziamento político, o seu uso en

cualquier contexto y no con objetivo político de transformación, como si fuese solamente

teatro interactivo, participativo, como algo divertido y entretenido, de entretenimiento, y

no como una herramienta de incidencia política24 (Lorena Roffé). Afinal, o caráter

principal do teatro do oprimido é a arte política. Não tem teatro do oprimido sem política.

Não tem teatro do oprimido sem arte (Claudia Simone).

Nas entrevistas, foi mencionado que, por vezes, o caráter político do Teatro do

Oprimido impulsionou certa resistência. A depender dos espaços e do público, falar sobre

opressão vem acompanhado por um estranhamento, um incômodo.

Como brasileiros, a gente não é convidado nunca a falar sobre política, né?
Aquela coisa de política e futebol não se discute, né? E a gente vai se
acostumando a entender que a política não faz parte da nossa vida, como se não
fosse um processo mesmo de produção de vida, de tentativa de equalizar as
relações (Rachel Nascimento).

No caso do trabalho com mulheres, isso é ainda mais evidenciado. A divisão sexual

do trabalho, que lhes rouba tempo e energia, reforça o não lugar das mulheres na discussão

e participação política. Associado a isso, os estereótipos que relacionam o feminino à

instabilidade emocional, à fragilidade e à baixa competência minam sua participação em

espaços e em discussões políticas, tradicionalmente masculinos. A barreira que surge da

conjugação entre racismo e sexismo abafa experiências, vozes, elaborações críticas das

mulheres no debate político (Biroli, 2018).

24
Em qualquer contexto e não com um objetivo político de transformação, como se fosse apenas um teatro
interativo e participativo, como algo divertido, de entretenimento, e não como uma ferramenta de incidência
política (tradução livre).
80

4.1.4. Atuação da curinga

Curinga é a denominação dada à praticante do Teatro do Oprimido que se

aprofundou na prática e no estudo do método. É quem conhece com profundidade os

fundamentos éticos, políticos, estéticos, pedagógicos e filosóficos do TO, bem como o

conjunto de técnicas que integra a Árvore do Oprimido (Santos, 2016).

A práxis da curinga conjuga atuação artística com ativismo político. Para o Teatro

do Oprimido, é então denominado artivista - expressão que associa as palavras arte e

ativista. No papel de facilitadora do método, a curinga precisa ser também reflexo dele. Se

o TO tem um posicionamento político, a curinga, em sua atuação, deve desenvolver seu

trabalho visando a organização social para a luta pela transformação da realidade (Santos,

2016).

Na prática, a curinga atua assumindo certas funções, como a de facilitar o trabalho

com um grupo e também a de mediar o diálogo teatral em sessões de fórum e o debate nas

sessões de Teatro-Legislativo. Facilitar o diálogo em qualquer atividade do Teatro do

Oprimido se chama curingar.

Por meio do diálogo pretende-se compreender as implicações sociais envolvidas no

problema encenado, ao mesmo tempo buscar alternativas concretas de transformação e/ou

superação desse problema. Não há, no ato de curingar, uma busca por respostas corretas. O

objetivo é estimular e entender a diversidade de respostas possíveis que apontem caminhos

para a transformação desejada.

Deste modo, as perguntas feitas pela curinga à plateia são essenciais para

estimulá-la a ir além da aparência da cena apresentada (quando você pergunta para o

outro, ele vai ter que pensar e responder - Iana Ribeiro). Para o Teatro do Oprimido, partir

do questionamento significa assumir uma atitude maiêutica - isto é, ver a dúvida como uma

estratégia reflexiva, manter uma postura investigativa e o interesse em provocar diálogos.


81

Se for feito o uso da afirmação, por exemplo, corre-se o perigo de iniciar um fórum

partindo de visões previamente determinadas e de cessar brevemente o debate.

É importante ter em vista que não é papel do TO informar, ensinar, apresentar um

ponto de vista. O método se desenvolve através de um processo estético-pedagógico, mas

isso não o torna um Teatro Didático (Santos, 2016). Sua pedagogia é a pedagogia do

oprimido, de Paulo Freire, que estimula o “oprimido a construir sua própria visão de

mundo e a ter uma experiência estética original e inclusiva, visando libertar-se da

dominação do opressor” (Santos, 2016, p. 87).

Todavia, não é porque há abertura para o diálogo através da pergunta que qualquer

resposta é aceita. Como mencionado anteriormente, a curinga reflete em sua atuação os

princípios do TO. Sendo assim, se o TO tem um lado bem definido - o lado dos/as

oprimidos/as, também o tem a curinga. Não é possível validar qualquer opinião, qualquer

expressão, principalmente se é uma expressão de ódio, racista, injusta, misógina,

capacitista… Há abertura para novas perspectivas, mas não para aquelas que sejam

opressoras.

A gente fez várias perguntas, levou o público a discutir e com o que o público
trazia a gente ia costurando também uma fala que é um posicionamento, né? Não
é ficar ali neutra. Neutralidade é impossível. A gente estaria favorecendo esse
discurso [racista]. Fiz uma pergunta para entender o que o público estava
entendendo, para compartilhar os entendimentos, mas ao mesmo tempo é uma
pergunta com posicionamento. Se a gente não se posicionar, não é teatro do
oprimido. É qualquer coisa. É encenação. Quando a gente escolhe o teatro do
oprimido, a gente já tomou partido, que é dos oprimidos e das oprimidas (Rachel
Nascimento).

O Teatro do Oprimido tanto não visa apresentar respostas corretas que, diante de

uma intervenção ou posicionamento do público que seja incoerente com o objetivo de um


82

fórum25, que a estratégia da curinga é devolver o que surge para o público em forma de

pergunta, incitando a reflexão e a análise crítica. É possível até mesmo permitir que a

intervenção aconteça e deixar que o público faça a sua própria avaliação. Trata-se de um

apoio na grupalidade, de não colocar no papel que sozinha a curinga vai fazer o

enfrentamento.

A fala de uma das entrevistadas demonstra com clareza a ação da curinga diante de

uma circunstância dessa natureza:

Si una persona del público tiene una alternativa que no es libertadora, que no es
transformadora, yo la devolvería con preguntas al público o permitiría la
intervención. [...] Al permitir esa intervención y devolver eso al público, no soy
yo la que va a evaluar si es o no es (libertadora). En el teatro forum, el foco está
en el público. No está puesto ni en el grupo, ni en la curinga. Entonces esas
intervenciones, la manera de desarmarlas, poder analizarlas, poder transformarlas
es devolviendo todo tiempo. Permitir que suceda y después generar ese debate con
el público (Lorena Roffé).26

A entrevistada segue afirmando que “es muy fácil llegar a las personas que ya

piensan como nosotras. Lo difícil es llegar a las personas que no piensan como nosotras

(Lorena Roffé)”27. Para auxiliar nessa missão, as entrevistadas mencionaram a atuação em

duplas de curingas como algo de grande valia. É ter e dar suporte na condução de um

fórum ou nos trabalhos com um grupo.

É relevante lembrar que as curingas estão implicadas nos processos, suas vivências

estão presentes em sua atuação, os trabalhos com TO também tocam em suas opressões -

25
O ensaio para a libertação, para quebra de opressões na vida real.
26
Se uma pessoa do público tem uma alternativa que não é libertadora, que não é transformadora, eu a
devolveria com perguntas ao público ou permitiria a intervenção. [...] Essa intervenção vai ser permitida e
devolvida ao público, não sou eu quem vai avaliar se é (libertadora) ou não. No Teatro-Fórum, o foco está no
público. Não está nem no grupo, nem na curinga. Então essas intervenções, a forma de desarmá-las, de poder
analisá-las, de poder transformá-las é devolvendo (ao público) o tempo todo. Permitir que aconteça e, em
seguida, gerar esse debate com o público (tradução livre).
27
É muito fácil chegar às pessoas que pensam como nós. O difícil é chegar às pessoas que não pensam como
nós (tradução livre).
83

“dependendo do tema que te atravessa é difícil manter a maiêutica” (Claudia Simone).

Sendo um método que demanda necessariamente uma implicação pessoal, para conduzir

trabalhos com TO é fundamental o autoconhecimento, saber onde estão as suas dores e

como lidar com elas.

Não é uma concepção colonizadora de que você tá lá levando a luz pr’aqueles


oprimidos. Você também, como um ser humano, tem os seus processos de opressão
e tá ali também como facilitadora, mas também está em processo contínuo de
aprendizagem (Rachel Nascimento).

Por fim, sobre a atuação da curinga, emergiu nas entrevistas a importância da

curinga comunitária. Diante da dificuldade de manter grupos quando a pessoa que está à

frente como curinga não é parte do território ou do contexto social do grupo, participantes

do referido grupo que tenham interesse recebem uma formação de curinga. Assim, além de

viver as mesmas particularidades que o grupo, o sentido de solidariedade é ainda mais

fortalecido.

É uma curinga que tá ali, ela tá ali vivendo a mesma coisa e ela sabe escutar. A
gente vai criando estratégias a partir do que a gente vive (...) Eu sou uma curinga
que sou daquela comunidade e vivo exatamente as mesmas coisas, eu vou saber
como lidar, eu vou saber onde entrar, onde não entrar (...) A gente tem que ter
consciência de que a gente chega, mas a gente sai. Essa não é a nossa realidade. Ser
solidário é correr o mesmo risco (Rachel Nascimento).

Se não há horizontalidade, não tem como haver solidariedade (Santos, 2016). Uma

pessoa de fora muitas vezes não compreende realmente a realidade de um contexto,

portanto, é preciso atenção redobrada para não se colocar diante da relação com os sujeitos

de forma desigual. “Quando escrevemos sobre experiências de grupos aos quais não

pertencemos, devemos pensar sobre a ética de nossas ações, considerando se nosso

trabalho será usado ou não para reforçar e perpetuar a dominação” (hooks, 2019, p. 101).
84

Então eu não corro o mesmo risco da menina que mora lá no alto, no pantanal.
Mesmo que ela esteja sofrendo, sei lá, uma violência sexual, de alguém, como eu
vou criar um problema e sair correndo? Tem que pensar que estruturas que eu posso
conseguir que dê suporte. Eu não posso dizer pra ela “denuncia”, como a gente já
fez. “Denuncia!”. É muito fácil pra mim. Mas será que a polícia vai lá no alto?
Quais são as leis que imperam ali? Tem um poder paralelo que penaliza as
mulheres se elas denunciam, por exemplo? E se ela denuncia, qual a rede de apoio
que a gente pode construir para que ela possa sair dali, porque provavelmente ela
não vai poder ficar ali, né… Então tem toda uma consciência que a gente adquire
que ser solidário é correr o mesmo risco. Se eu tô ali multiplicando e eu não sou
daquela realidade, eu saio e elas ficam. É uma responsabilidade muito grande. E
por isso, assim, estimular o debate e acho que não fazer nada além do que elas
acordem e se sintam seguras em fazer (Rachel Nascimento).

É preciso ter sensibilidade para entrar e sair de um contexto social diferente do

próprio sem cair na armadilha de se posicionar incisivamente diante de um grupo do qual

não se pertence. A figura externa não deve ter a voz da autoridade no grupo. Deve estar

consciente de questões éticas, como privilégios de raça, classe e gênero, e atuar como

mediadora, fomentadora do debate do grupo, para que este chegue às suas próprias

soluções. Isso significa reconhecer as pessoas como sujeitas, com “direito de definir sua

própria realidade, estabelecer suas próprias identidades, nomear sua história” (hooks, 2019,

p. 100).

4.2. Um teatro em transformação

Diante das discussões e das opressões enfrentadas nos tempos atuais, o Teatro do

Oprimido e da Oprimida, por meio das pessoas que se propõem a pensá-lo, construí-lo, tem

demonstrado uma plasticidade fundamental para a sua existência nos tempos atuais. O

segundo núcleo de análise se debruçou sobre a capacidade de reinvenção do TO, bem


85

como nos aspectos que vêm impulsionando as transformações que o método vem vivendo

nos últimos anos.

4.2.1. O desvelar da influência da branquitude, sexismo e machismo dentro do TO

Em diversas entrevistas, Augusto Boal declarou que a opressão contra a mulher era

a mais comum em sua experiência de curinga (Santos, 2019). A experiência de Boal não se

diferencia da de Mariana Villani, uma das entrevistadas. Ela declarou que en los festivales,

los encuentros, siempre la cuestión de la violencia contra las mujeres aparecía

constantemente, no importa el contexto, no importa la cultura, siempre estaba presente28.

No caso, Mariana Villani e Augusto Boal se referem à violência contra a mulher

como opressão escolhida como temática de trabalho. Contudo, questões de gênero não se

apresentam apenas como tema em atividades do Teatro do Oprimido. Dentro dos grupos de

TO, por mais que seus participantes sejam política e socialmente conscientes, por mais que

compartilhem dada visão de mundo e o desejo de transformação social, há, em certa

medida, a reprodução da lógica machista, racista, classista - base de sustento da sociedade

capitalista.

Sobre isso, uma das entrevistadas entende que:

Mesmo a gente sendo ativista, mesmo a gente tendo consciência do Teatro do


Oprimido, do Teatro das Oprimidas, têm silêncios que não são rompidos e a
interrogação é: por que que a gente não consegue quebrar o silêncio?”. A gente não
consegue quebrar os silêncios… A gente ainda tá dentro de amarras, amarras muito
profundas e muito cruéis que a sociedade coloca sobre nossos corpos (Claudia
Simone).

No livro O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, bell hooks

(2000) traz um contexto da realidade dos Estados Unidos que, de certa forma, segue em

28
Nos festivais, nos encontros, sempre a questão da violência contra as mulheres estava presente, não
importa o contexto, não importa a cultura, sempre estava presente (tradução livre).
86

paralelo com a fala anteriormente mencionada. Apesar de no país as pessoas acreditarem

em salários iguais para funções iguais, acreditarem que homens não deveriam espancar

mulheres nem crianças, ao dizer-lhes que a violência doméstica é um resultado do sexismo

e que ela não tem perspectiva de acabar, a não ser que se acabe o sexismo, as mesmas

pessoas têm dificuldade de compreender tal relação. A dificuldade de fazer essa dedução

lógica acontece “porque isso exige desafiar e mudar as maneiras de pensar gênero” (hooks,

2020, p. 96).

As pessoas que atuam com o TO estão inseridas em uma sociedade machista,

racista, patriarcal, capitalista e, por mais que lutem contra as opressões geradas por tais

estruturas, ainda assim há certa resistência a novos modos de pensar questões de gênero,

raça e classe.

De acordo com as entrevistas, é possível perceber essa resistência em situações

como as seguintes: historicamente o papel de curinga é majoritariamente ocupado por

homens brancos, de classe média; é recorrente o não reconhecimento da trajetória de

mulheres negras dentro do TO; dificuldade de aceitação da organização do TO em

coletivos com foco em opressões específicas; criação de peças de Teatro-Fórum em que a

mulher é culpabilizada pela opressão que vive; também em uma situação de Teatro-Fórum,

a permissividade no que tange à substituição de uma personagem de uma mulher negra por

um homem branco, sem compreender que as possibilidades de atuação de cada um são

distintas, portanto um não poderia substituir o outro se a proposta é ensaiar para a vida real.

As entrevistadas apontaram que o racismo e o sexismo têm suas artimanhas.

Quanto mais desconstruído, quanto mais libertador o contexto, com mais sutileza essas

opressões se apresentam. Inserem-se de forma cada vez mais engenhosa, criativa e,

portanto, mais difícil de perceber.

As violências agora são muito sutis quando nós somos militantes, quando nós
somos artivistas, porque as companheiras e os companheiros também estão sendo
87

formados nesse mundo. E aí as estratégias acompanham as alternativas, né? (...).


Quanto mais a gente vê, mais ele se esconde, então ele tá dentro, embrenhado, mas
com uma sofisticação tão grande que muitas mulheres não conseguem ver que estão
passando por um processo de relação abusiva (Claudia Simone).

No caso do machismo, por exemplo, é possível percebê-lo das mais diversas

formas, como sinaliza uma das entrevistadas:

Desde a forma como participar de um exercício, a forma como partilhar a


curingagem, o tom da voz, os gestos… Tudo o que para a gente seria tão simples
vira algo que é monstruoso para o homem. Ele não consegue ficar num lugar,
vamos dizer assim, que fosse um lugar de igualdade. Eles sempre têm que ter algum
destaque, têm que aparecer mais do que outra coisa, mesmo sendo o super
feminista, legal, o super curinga, desconstruído e tudo (Claudia Simone).

Dentro do TO, alguns homens têm feito uma investigação do quanto reproduzem o

mecanismo machista. Eles têm buscado ser antisexistas e construir uma masculinidade

alternativa. No entanto, a consciência de que eles estão sendo machistas, ou que eles estão

sendo sexistas ainda é muito superficial. É uma batalha muito grande (...). É muito

profundo. É algo assim que tá na ordem do “natural” (Claudia Simone).

Tal “naturalidade” se apresenta de forma mais crua, mais evidente em contextos em

que a desigualdade social é explícita, como o das mulheres usuárias da política de

assistência social, em que há, de modo geral, uma deterioração das condições de vida,

baixo grau de instrução, dificuldade de acesso às políticas públicas, a precarização do

trabalho. Para essas mulheres, as opressões raciais, de gênero estão evidentes a todo tempo.

Diante dessas opressões dentro do TO, as mulheres do movimento foram se

mobilizando para questionar o porquê da maioria dos curingas, dos multiplicadores serem

homens, bem como da maioria das pessoas presentes nos festivais ser branca. Afinal, de

que opressão essas pessoas falavam? O TO se propõe a questionar a realidade como ela é,
88

mas por que nos encontros somente uma perspectiva - a branca, masculina - tinha destaque

e reconhecimento?

A rede é muito branca. A branquitude traz privilégio, então nesse sentido a maioria
das mulheres são privilegiadas. Isso significa por exemplo poder viajar sem ser
controlada no aeroporto, ter um passaporte europeu significa ter mais facilidade em
receber um visto e poder viajar. Ganhar e pagar. Infelizmente numa sociedade onde
o racismo estrutural e institucional, ter um corpo com olhos azuis ou verdes
significa receber um tratamento diferente. Por exemplo, no Brasil, eu fiz a
experiência. Conversando com um policial, ele pergunta se eu quero tomar café. Ele
não pergunta o que eu tenho na bolsa. Então pra mim, ir pra um festival na
Argentina é fácil. E aí nesse festival em 2015 a gente se olhou e reparou nessas
diferenças. “que é isso? Uma rede de teatro das oprimidas assim, branca? (Liviana
Bath).

O que elas [as pessoas] querem é exatamente te tirar desse lugar. Porque [o lugar de
quem curinga] não é seu [da mulher preta] por direito. Não pode ser. Não pode ser
seu. Uma mulher preta… A gente tá falando nesse caso de atravessamento de
gênero, né… Não pode ser seu. E aí dos dois lados. Quando eu tô falando da
questão de raça, e que a gente fala que não dá mais pra separar, não separamos mais
raça, classe e gênero… No caso específico de trabalhar com mulheres e como
mulher negra, nos grupos mistos é evidente, né. Os homens são… É muito difícil
encarar uma mulher nesse lugar de poder, porque curinga é um lugar de poder. Nos
grupos só de mulheres acontece, porque é difícil que algumas companheiras
brancas reconheçam esse corpo negro curinga no lugar de formação, de referência e
de condução mesmo (Claudia Simone).

As políticas de dominação-exploração-opressão de raça, gênero e classe fazem com

haja uma tendência a dar mais valor ao que faz uma pessoa branca, um homem, em

detrimento do que faz uma pessoa negra, mulheres, mesmo a ação sendo a mesma.

Inclusive quando se trata de homens falando sobre questões de mulheres e pessoas brancas,
89

sobre questões de pessoas negras. São atitudes machistas, racistas, de supremacia branca

que corroboram com a manutenção de estereótipos e privilégios.

4.2.2. Compreensão da consubstancialidade das opressões

Quando se faz a ascese das opressões discutidas no tópico anterior,

compreendem-se os fatos não de forma isolada, mas como parte do projeto de uma

sociedade capitalista e patriarcal. As opressões de gênero, raça e classe “são historicamente

construídas e decorrentes de relações materiais de exploração e opressão” (Cisne & Santos,

2018, p. 76), isto é, estão fundamentadas sócio-histórico e ideologicamente para justificar a

exploração da força de trabalho.

Destarte, neste modelo de sociedade, tais opressões são estruturantes da totalidade

da vida social (Cisne & Santos, 2018), estando profundamente arraigadas na construção

dos sujeitos e nas formas como se dão as relações interpessoais e as relações sociais

coletivas. Assim, uma vez que as pessoas que fazem parte do Teatro do Oprimido

compõem a sociedade e nela se constituíram, o TO, mesmo se propondo a discutir as

opressões de gênero, raça e classe e agir no sentido de superá-las, não está isento de

reproduzi-las.

O fato dos debates de raça e gênero estarem em voga dentro do TO atualmente não

significa dizer que sejam novidade. O mito da democracia racial, bem como a

naturalização do lugar da mulher na sociedade, conferem a pessoas negras e mulheres uma

liberdade formal que maquia o peso real dos fatores naturais que cada um desses

personagens carrega no processo social de competição (Saffioti, 2013). Tais mitos atuam,

portanto, como instrumentos de controle social e ideológico a ponto de cercear o quanto

podem debates de raça e gênero. Não à toa essas questões ficaram tanto tempo sem seu

devido reconhecimento.
90

O fortalecimento e o crescimento dos movimentos sociais têm grande

responsabilidade na desconstrução dessas crenças. Sueli Carneiro avalia que “a

contribuição do feminismo negro na luta racista é trazer à tona as implicações do racismo e

do sexismo que condenaram as mulheres negras a uma situação perversa e cruel de

exclusão e marginalização sociais” (Carneiro, 2019, p. 287). Reflexos dessa contribuição

se veem no Teatro do Oprimido, quando as opressões discutidas não estão mais envoltas

pela ilusão da igualdade. Reconhecer e respeitar a diversidade se tornam condição

fundamental para a afirmação da igualdade (Cisne & Santos, 2018).

Desnudar as opressões fez com que a indissociabilidade das relações sociais de

classe, raça e gênero passasse a ser pauta das discussões dentro do TO, como relatado

abaixo:

Pensar no elemento interseccional era muito importante para entender com quais
mulheres a gente está discutindo, porque a gente não pode ver “mulher” como uma
coisa singular. A gente tem muitas. E aí, a partir disso, quais opressões que elas
vivem que eu não vivo, inclusive? (Iana Ribeiro).

Nas entrevistas, outras opressões também ganharam destaque, como as

relacionadas ao diagnóstico de HIV e ao capacitismo contra as pessoas com deficiência.

Cuando hicimos este proyecto continental con mujeres viviendo con VIH (HIV) no
era la historia de una mujer con VIH. Justamente era desarrollar una metodología
para encontrar cuales son los puntos comunes entre las opresiones que viven las
mujeres con VIH en todo continente y poder entender que eso es por ese rol social
que tiene: de ser mujer en esta sociedad y vivir con VIH en esta sociedad (Lorena
Roffé)29.

29
Quando fizemos este projeto continental com mulheres vivendo com HIV, não era a história de uma mulher
com HIV. Foi precisamente para desenvolver uma metodologia para encontrar quais os pontos comuns entre
as opressões vividas pelas mulheres com HIV em todos os continentes e poder perceber que isso se deve a
esse papel social que tem: ser mulher nesta sociedade e viver com HIV nesta sociedade (tradução livre).
91

Discutir as diferenças possibilitou o desenvolvimento dentro do TO de uma rede de

solidariedade. bell hooks (2019) afirma que é necessário fazer enfrentamentos dolorosos,

de maneira comprometida, rigorosa, humanizada. Fugir da indiferença e da alienação um

dos outros é a base para se ter esperança de mudar o mundo. “É trabalhando coletivamente

para confrontar a diferença e para expandir nossa consciência sobre sexo, raça e classe

como sistemas interligados de dominação, sobre os modos pelos quais reforçamos e

perpetuamos essas estruturas, que aprendemos o verdadeiro significado da solidariedade

(hooks, 2019, p. 67). O trecho da entrevista de Lorena Roffé abaixo destacado exemplifica

o impacto positivo das diferenças dentro do movimento do TO.

investigar la especificidad no corta las alianzas. No es por ser mujer con VIH (HIV)
no puedes tener alianza con una mujer sin VIH o una con discapacidad con una
mujer sin discapacidad. Se hace más respetuosa de la especificidad y se hace menos
racista, se hace menos capacitista, se hace menos discriminadora acerca del
diagnóstico de VIH, porque esa alianza se hace desde el lugar de reivindicación y
de nombrar cual es la opresión específica que se vive. Y por ejemplo a mi, como
mujer latina, pero blanca, fue muy valioso, es muy valioso y importante todo el
trabajo que hacen las compañeras el colectivo Magdalena Anastácias para que yo
como mujer blanca pueda entender que lugar tengo en una alianza antirracista y mi
feminismo es un feminismo antirracista. Pero yo no pude ser antirzacista si niego la
especificidad de la vivencia de las mujeres negras (Lorena Roffé)30.

A abordagem das especificidades das opressões de gênero e raça tornou também o

TO alvo de críticas, apontando que estaria se rendendo a um “radicalismo identitário”.

30
Investigar a especificidade não corta alianças. Não é porque você é uma mulher com HIV que você não
pode ter uma aliança com uma mulher sem HIV ou uma mulher com deficiência com uma mulher sem
deficiência. Torna-se mais respeitador da especificidade e torna-se menos racista, torna-se menos capacitista,
torna-se menos discriminatório sobre o diagnóstico do HIV, porque essa aliança é feita a partir do lugar de
reivindicar e nomear a opressão específica que é vivida. E, por exemplo, para mim, como mulher latina, mas
branca, foi muito valioso... Todo o trabalho que as colegas do coletivo Madalena Anastácias fazem é muito
valioso e importante para que eu, como mulher branca, possa perceber o lugar que tenho em uma aliança
anti-racista. E meu feminismo é um feminismo anti-racista, mas eu não poderia ser anti-racista se negasse a
especificidade da experiência das mulheres negras (tradução livre).
92

E eu acho que quando falam “radicalismo identitário”, como eu disse lá atrás,


desmerecendo os processos identitários que vão construindo o teatro das oprimidas,
deixam de ver como revolução pensar que as diversas identidades dos povos
oprimidos e oprimidas trouxeram essa revolução de fazer pensar o lugar não
individualizado, o lugar não essencializado, não universalizado que as concepções
eurocêntricas trazem (Rachel Nascimento).

Atentando-se às questões de raça, gênero, o movimento de transformação dentro do

TO quebrou as presunções de neutralidade e universalidade que antes insistiam em se fazer

presentes dentro dos trabalhos com o Teatro do Oprimido. É leviano julgar que esse

movimento é fundamentado em um radicalismo identitário, pois, ao fazê-lo, esquece-se das

relações de gênero e raça como parte do tripé que sustenta a estrutura de poder da

sociedade capitalista (Saffioti, 2015). Da mesma forma que a revolução só acontecerá se

for feminista, uma vez que a exploração da mulher é um pilar fundamental para a

manutenção do capitalismo, a luta contra a supremacia branca se coloca como central à

luta de classes (Haider, 2019).

No caso de questões de gênero, combater o patriarcado é lutar por uma

emancipação que não é apenas das mulheres. É um combate fundamentado em questões

políticas e econômicas, e não somente de gênero, que afeta toda a humanidade. Do mesmo

modo, quanto à pauta racial, combater a supremacia branca é fundamental no entrave

contra o capitalismo, pois é um atentado contra não apenas pessoas não brancas, mas

contra todo o proletariado (Ignatiev & Allen, 2011, como citado em Haider, 2019). Tal

supremacia impede que pessoas brancas e negras se percebam como parte de uma única

classe, a classe proletária.

Todavia, o fato de homens e mulheres, bem como pessoas brancas e negras terem o

interesse comum, mediado pela organização de classe, não significa que uma

argumentação reducionista de classe seja viável. Crer que a classe importa mais do que a
93

raça ou o gênero reforça um dos principais obstáculos para a construção do socialismo

(Haider, 2019). hooks corrobora a importância de se reconhecer a relevância da raça e do

gênero quando afirma que

A luta para criar uma identidade e nomear a própria realidade


é um ato de resistência, pois o processo de dominação - seja a
colonização imperialista, o racismo ou a opressão machista -
tem nos esvaziado de nossa identidade, desvalorizado nossa
linguagem, nossa cultura, nossa aparência. Repito, isso é só
uma fase no processo de revolução (...), mas que não deve ser
depreciada (2019, p. 226).

A autora diz ainda que não é estratégica a oposição à ênfase nas políticas

identitárias, ignorar questões de identidade sem oferecer caminhos de politização que

ampliem a concepção de quem se é, que intensifique o sentido de subjetividade e a relação

com uma realidade coletiva (hooks, 2019). O TO é um desses caminhos.

Tem uma revolução que é para além da cor estética… Porque estética é política. No
teatro do oprimido está dito, mas às vezes mesmo as pessoas que estão dentro do
teatro do oprimido esquecem de ver que não é só a cor da pele. É toda uma
construção histórica, social, política, que traz um outro olhar sobre as relações
sociais e que tem contribuído pro teatro do oprimido (Rachel Nascimento).

Em sociedades como a brasileira, que vivenciaram processos de colonização e

escravização, o tipo de desenvolvimento capitalista desenvolvido exacerbou a imbricação

de gênero, classe e raça nas relações sociais e econômicas (Bezerra, 2020). Assim, a luta

antirracista, antissexista ganham conteúdo de enfrentamento ao capital e, portanto, se

fazem presentes no escopo do TO.


94

4.2.3. O Teatro das Oprimidas

Antes de seguir com a discussão sobre o Teatro das Oprimidas, é válido fazer um

breve resgate histórico do desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido. Apresentar

elementos de sua história pode contribuir com a compreensão da emergência de novos

métodos dentro do TO.

Augusto Boal estreou no teatro brasileiro em meados da década de 1950 e

contribuiu fundamentalmente para a criação de uma dramaturgia genuinamente nacional.

Seus seminários de dramaturgia produziam histórias sobre as injustiças enfrentadas pela

população do Brasil, abordando criticamente o contexto político da época e tendo como

protagonistas integrantes da classe trabalhadora. Na década de 1970, o Brasil vivia a

ditadura militar e Augusto Boal exilado do país. Após uma temporada na América Latina,

foi para a Europa. No exterior ele sistematizou o método que veio a se chamar Teatro do

Oprimido.

Boal era um homem branco, filho de imigrantes portugueses, de classe média,

nascido no Rio de Janeiro. A partir do contato com a realidade da classe trabalhadora, teve

a sensibilidade para observar e criar um método que já nasceu com uma proposta

revolucionária, libertadora, contextualizada em seu período histórico.

Ele criou o teatro-jornal porque havia censura. Ele criou o teatro-imagem porque as
pessoas tinham dificuldade de se comunicar com línguas diferentes. Ele vem com
os jogos e exercícios para pensar determinadas reflexões… Então a gente tem uma
metodologia que foi pensada na época da ditadura militar (Iana Ribeiro).

O Teatro do Oprimido se desenvolveu em um contexto com destaque para as

questões de classe. Porém, conforme foi se desenvolvendo, se expandindo, foi ficando cada

vez mais evidente a necessidade de atentar para a diversidade dentro da classe (que se

manifestava, inclusive, dentro de grupos de Teatro do Oprimido) e compreender o papel


95

que as relações sociais de gênero e raça desempenham na estruturação das relações de

classe.

Quando se faz, por exemplo, um fórum sobre violência contra a mulher, é

fundamental compreender que “as mulheres estão irremediavelmente divididas dentro do

sistema capitalista” (Toledo, 2001, p. 9). A violência que sofre e suas possibilidades de

enfrentamento são distintas para uma mulher burguesa em comparação a uma mulher

trabalhadora. Quando se acrescenta na análise a camada de raça, a complexidade aumenta -

caso a mulher retratada seja negra, o contexto muda necessariamente, pois historicamente

ela sofre maior nível de exploração e opressão (Cisne & Santos, 2018; Gonzalez, 2020).

Como mencionado no subtópico anterior, o revelar do entrelaçamento das

opressões de raça, gênero e classe dentro do movimento do TO tornou pouco provável que

elas fossem neutralizadas novamente. Outrossim, as mulheres dentro do TO se deram conta

de que o método, como estava proposto, muitas vezes corroborava para a manutenção

dessas opressões.

A violência contra a mulher, por exemplo, é uma temática bastante presente nas

temáticas abordadas pelos grupos de TO, sendo representada continuamente nos palcos,

nas apresentações, nas intervenções... A questão é que, muitas vezes, sua representação se

dá de um modo que não é verdadeiramente libertador para as próprias mulheres. Apesar de

buscar a superação das opressões, o próprio TO, em seu método, reproduzia em certa

medida uma lógica opressora.

Que pasava con el teatro con grupos mixtos, con la antigua manera de hacer teatro
del oprimido, muchas, muchas veces, lamentablemente, se encuentravan con
formas de tratar el tema que terminaban revitimizando la protagonista. Con el teatro
del oprimido, en casi todos los eventos, festivales, priumero, grupos de mujeres,
que trabajan violencia contra las mujeres y el curinga es un barón, primeiro. De
obras del teatro forum de questión de violencia contra las mujeres donde la
oprimida está sola en la habitación con el marido que está a punto de golpearla e
96

ahí el curinga dice “bueno, quién tiene una idea? Quién quiere venir y intervenir?”.
Donde la mujer tiene que ser una superheroína o [...] Obra de teatro fórum donde se
invita a barones a replaçar a mujeres en situación de violencia. Una y otra vez se
repetían esas historias. Encontrarte con la misma situación muy maltratada desde
nuestros compañeros y compañeras del teatro del oprimido del mundo. Entonces es
un grave, gravísimo error político, la forma de abordar el tema (Mariana Villani).31

Como está posta no TO, a metodologia muitas vezes:

reforça o lugar individual do sofrimento, e aí dificulta que a gente faça a ascese e


enxergue esse problema como um problema do contexto social. Isso reforça
também uma solução única, de um indivíduo heroi, que vai vir com sua capa e
resolver todo o problema, dar uma solução única. E isso também reforça o lugar de
que qualquer pessoa, qualquer personagem, por ser teatro, qualquer pessoa branca,
por exemplo, qualquer homem branco pode entrar no lugar de uma mulher negra e
resolver a situação como heroi e tá tudo resolvido por é teatro. “Que teatro é esse e
a quem ele serve?”. Se é um teatro para a revolução, a gente tem que pensar a partir
dos lugares sociais, a partir da problemática social (Rachel Nascimento).

“Que teatro é esse e a quem ele serve?”. Essa pergunta impulsionou as mulheres a

se questionarem sobre o que e quem estava invisível em torno do que elas faziam, das

estruturas que criavam e das direções que tomavam. Por sentirem que a abordagem de

temas como relações de gênero, racismo, homofobia se configurava uma espécie de tabu

nos grupos, mesmos aqueles formados por pessoas progressistas, as mulheres começaram a

se organizar entre si para debater os processos externos das opressões que enfrentavam e

também os internalizados, aqueles que elas mesmas reproduziam (Santos, 2019).


31
O que aconteceu com o teatro com grupos mistos, com a velha forma de fazer teatro do oprimido, muitas,
muitas vezes, infelizmente, encontraram formas de tratar o assunto que acabaram revitimizando a
protagonista. Com o teatro dos oprimidos, em quase todos os eventos, festivais, primeiro, grupos de
mulheres, que trabalham a violência contra a mulher e o curinga é homem, primeiro. Do teatro encena o
fórum de questão da violência contra a mulher onde a oprimida fica sozinha na sala com o marido que está a
ponto de espancá-la e aí a curinga diz "ora, quem tem uma ideia?" Onde a mulher tem que se tornar uma
super-heroína (…). Peça de teatro fórum onde homens são convidados a substituir mulheres em situação de
violência. Inúmeras vezes essas histórias se repetiram. Encontrando-se na mesma situação, muito maltratada
por nossos colegas no teatro dos oprimidos do mundo. Então é um erro político grave, muito grave, a forma
de abordar o assunto (tradução livre).
97

Em busca de uma atmosfera segura, de confiança para explorar suas opressões,

houve a necessidade de criar um espaço de apoio e solidariedade, formado por uma rede

exclusivamente de mulheres. Não é sobre não acreditar em grupos mistos, mas sim sobre

reconhecer uma necessidade que se colocava ali, das mulheres estarem em um ambiente

com mais segurança no qual elas pudessem abordar mais livremente suas particularidades.

Quando a gente trabalha só com mulheres é uma diferença se só tem um homem na


sala. Ele pode nem participar, ele pode estar sentado. Isso faz uma diferença.
Porque isso interfere no espaço de proteção da mulher. Porque automaticamente
quando só estão mulheres entre si existe uma proteção (Liviana Bath).

Além do aspecto de composição grupal, a homogeneidade feminina pode se

configurar como um fator fortalecedor para as mulheres em outros sentidos. bell hooks

aponta que muitas vezes o debate de gênero perpetrado por mulheres é fortemente

direcionado aos homens. A autora reforça a importância de as mulheres se dirigirem

seriamente umas às outras em relação à completa estrutura de dominação da qual o

patriarcado é apenas uma parte. Afirma ainda que “se a luta para erradicar o machismo e a

opressão sexista é - e deveria ser - o impulso principal do movimento feminista, devemos

primeiro aprender a ser solidárias e a lutar juntas para nos prepararmos politicamente para

esse esforço” (hooks, 2019, p. 68).

Através de laboratórios de experimentação, denominados Laboratório Madalena,

essa prática solidária e de luta foi sendo construída. A proposta era discutir as

especificidades das opressões enfrentadas por mulheres em um contexto no qual a

confiança mútua e o companheirismo pudessem ser reforçados e valorizados, em que

pudesse haver de superação de culpa, de competição, de vergonha, de enfrentamento do

silêncio, de reconhecimento, visibilidade e empoderamento, um espaço onde as mulheres


98

pudessem refletir sobre as opressões, trocar ideias e propostas, se fortalecer mutuamente

por novas conquistas e pela efetivação dos direitos conquistados (Santos, 2019).

Como fruto desses laboratórios nasceu o Teatro das Oprimidas, uma metodologia

fundamentada a partir do paradigma de sexo, raça e classe e que não destaca os homens e

no que eles fazem às mulheres, e sim as mulheres trabalhando para identificar, de formas

individual e coletiva, o caráter específico de sua identidade social (hooks, 2019). Uma

metodologia que se debruça sobre as opressões enfrentadas por pessoas socialmente

identificadas como mulheres e que busca alternativas de superá-las. Bárbara Santos, um

dos pilares fundamentais de sua concepção, caracteriza o Teatro das Oprimidas como

um espaço de encontro, nem para lamentar, nem para ratificar


tradição ou natureza, mas para investigar o que nos move a
seguir o padrão imposto, para entender as razões que nos
levam a agir segundo um modelo com que não concordamos.
Buscar onde fomos convencidas de que fragilidade, doçura,
bons modos e até uma certa santidade seriam valores a
considerar. Um espaço exclusivo que facilite o olhar
múltiplo, no qual uma pode ser espelho da outra, não por ser
igual ou estar em igualdade de condições sociais, mas por
vivenciar experiências opressivas semelhantes, baseadas nas
mesmas estruturas. Um espaço que instaure a possibilidade
de mudar a visão sobre padrões estabelecidos. Um espaço
para desindividualizar o problema e socializar os processos.
Um espaço para questionar a imposição de uma forma (fórma
& fôrma) de ser (2019, p. 48).

bell hooks (2019) aponta que “nenhuma mudança radical, nenhuma transformação

revolucionária poderá ocorrer nesta sociedade - nesta cultura de dominação - se nos

recusarmos a reconhecer a necessidade de radicalizar a consciência em conjunto com a

resistência política coletiva” (p. 79). Com o Teatro das Oprimidas, as mulheres resistiram,
99

se opuseram à violação e buscaram a auto recuperação. Identificando-se como sujeitas,

definiram sua realidade, configuraram novas identidades, contaram suas histórias. Não

compareceram à luta como quase ‘coisas’, para depois serem mulheres (Freire, 2013).

É de se esperar que junto desse movimento veio uma resistência, que se coloca

evidentemente quando o privilégio (e ilusão) da neutralidade é quebrado, quando as vozes

de mulheres, brancas, negras, indígenas, por tanto tempo silenciadas, reprimidas,

dominadas, dão um passo em direção à libertação.

Ainda há uma resistência de entender as revoluções dentro da revolução que é o


Teatro do Oprimido. Como é uma metodologia viva, de multiplicação criativa, ela
vai se modificando e hoje a gente tem outros expoentes que dão muito mais conta
dessa realidade que tá aí agora do que Boal dava no tempo dele, porque os desafios
eram outros (Rachel Nascimento).

O maior desafio do teatro do oprimido hoje em dia, da comunidade do teatro do


oprimido principalmente é se olhar e perceber que avanços são necessários. Ainda
há um apego muito grande. Quando surgiu em 2010, por exemplo, as Madalenas,
que era um grupo de mulheres, os homens olhavam pras mulheres e falavam “ah,
mas vocês estão dividindo o movimento. Mas e os trabalhadores genéricos?”. Aí
vocês numa mesa majoritariamente branca, heterossexual, classe média, de teatro
do oprimido falando… Classe média ou mais, né? Falando teatro do oprimido pra
todo mundo. Aí vêm as mulheres, e a gente tá fazendo um movimento de discutir as
questões feministas no teatro do oprimido. E aí quando surge o coletivo de
mulheres negras, o coletivo Madalenas Anastácias, as mulheres olharam e disseram
“mas vocês estão dividindo o movimento!”. Novamente, né? Então como é que a
gente aprende com a diversidade que tá aí, mas não é essa diversidade encantada,
que é viva, diversidade todos iguais sem diferença. Mas como é que a gente
aprende com a diversidade, com o processo mesmo de aprendizagem e realmente
construção e desconstrução cotidiana. Para mim esse é o maior desafio. Reconhecer
que existem novas lideranças, novos processos de novas formas de fazer o teatro do
oprimido que são adversas, que são plurais e por isso são mais potentes, porque diz
100

muito mais desse mundo, desse tempo que a gente tá do que dizia naquele tempo,
que era pro seu tempo, né? (Rachel Nascimento).

Essa resistência se apresenta também travestida de preciosismo em relação à obra

de Augusto Boal (com machismo e racismo embutidos), como se ele tivesse criado o

método fundamental e o que segue a partir dele é algo inferior - uma forma de deslegitimar

o movimento das mulheres.

Ele [Augusto Boal] é um gênio! Sim! Bárbara Santos também é um gênio. Por que
não? E a gente não… Acho que tem uma dificuldade, um apego da branquitude de
dizer... É a mesma coisa que dizer “Ah Drumond é Drumond. Carolina Maria de
Jesus precisa rever a ortografia”. É meio que isso, sabe? Boal é Boal sim! Bárbara
Santos é Bárbara Santos sim! Imagina os desafios de uma mulher negra rodar o
mundo inteiro, mesmo com todo o machismo e sexismo, ser uma das idealizadoras
da metodologia do Teatro das Oprimidas, pensado para mulheres, com mulheres
(Rachel Nascimento).

O Teatro da Oprimida não nasce como um concorrente do Teatro do Oprimido. É

apenas consequência de seu tempo. Como discutido anteriormente, quando Augusto Boal

criou o TO, as necessidades eram aquelas e o método lhes atendeu. Contudo, já dizia a

cantora Nina Simone: “você não pode evitar. O dever de um artista, no que me diz respeito,

é refletir os tempos”32. As transformações sociais dos novos tempos tornaram urgente o

desenvolvimento de um novo método que pudesse melhor abordá-las. O Teatro das

Oprimidas, apesar de ter o TO como método referente, não é o feminino do Teatro do

Oprimido. O teatro das oprimidas é uma “metodologia em si mesma, para além do Teatro

do Oprimido” (Rachel Nascimento).

Nas entrevistas, surgiram alguns destaques sobre as diferenciações de tal

metodologia. Dentre eles está o exercício constante por não individualizar a opressão.

32
You can't help it. An artist's duty, as far as I'm concerned, is to reflect the times (original).
101

Mesmo que específica de certo grupo social, é fundamental relacioná-la ao contexto mais

amplo no qual ela se insere.

Creo que otro desafío que siento que es a la vez una gran oportunidad, muy
desarrollada por Bárbara, por el colectivo de Magdalenas Anastácias33, por la red
Magdalena Internacional, es como no perder de vista la colectivización, digamos,
de la opresión, como somos muchas oprimidas y oprimidos, como está también la
especificidad. Lo específico de las opresiones que vivimos las mujeres, lo
específico de las opresiones que viven las personas negras en específico, las
opresiones que viven por ejemplo las personas con discapacidad y creo que algo
que se vino creando desde el primer laboratorio magdalena es por alumbrar esa
especificidad y poder crear metodología específica para esta investigación que
permite también entender y investigar las razones estructurales de la opresión. Que
nunca se quiere entender como una vivencia individual, eso es evidente (...), pero ir
a la especificidad también permite investigar más la cuestión estructural. Y eso me
parece que es un desafío y que es una gran riqueza también, que se fue
desarrollando (Lorena Roffé).34

Compreendendo o contexto mais amplo, segue-se para outro destaque: a não

culpabilização da vítima retratada nas cenas apresentadas.

Ao mesmo tempo entender o teatro das oprimidas como aquele olhar não
individualizado, não patriarcal, que é isso né, o patriarcado ensinou a gente a olhar
uma pessoa no corpo, né, e o teatro das oprimidas descentraliza esse olhar. O teatro
das oprimidas busca diversificar os espaços de poder, né? E diversificar quem
ocupa esses espaços de poder. Então quem ocupa esses protagonismos… Então o
teatro das oprimidas é uma metodologia em si que pensa em não responsabilizar a
33
Madalenas Anastácias é o coletivo de mulheres negras do Teatro das Oprimidas.
34
Acho que outro desafio que sinto que é às vezes uma grande oportunidade, muito desenvolvida pela
Bárbara, pelo coletivo Magdalenas Anastácias, pela rede Magdalena Internacional, é não perder de vista a
coletivização, digamos, da opressão - como muitas de nós somos oprimidas e oprimidos -, assim como a
especificidade. A especificidade das opressões que as mulheres vivenciam, a especificidade das opressões
que os negros vivem em particular, as opressões que as pessoas com deficiência vivenciam, por exemplo, e
eu acho que algo que foi criado desde o primeiro laboratório Magdalena é iluminar essa especificidade e
poder criar uma metodologia específica para esta pesquisa que também nos permite compreender e investigar
as razões estruturais da opressão. Entendê-la não como ... Não se quer entendê-la como uma experiência
individual, isso é evidente (trecho inaudível), mas ir à especificidade também permite aprofundar a questão
estrutural. E isso me parece um desafio e que também é uma grande riqueza, que foi desenvolvida (tradução
livre).
102

mulher, não culpabilizar a mulher, diversificar esses espaços de poder, de ação


(Rachel Nascimento).

Ela [Bárbara Santos] atualizou de certa forma essa perspectiva de gênero do teatro
do oprimido. Então quando ela traz o teatro das oprimidas ela atualiza essa
discussão pra gente refletir inclusive o momento da intervenção. Por exemplo, ela
questiona: a gente vai deixar a intervenção de um espectator/espectatriz acontecer
quando a mulher já sofreu a violência? Por que não propor que a intervenção
aconteça antes da violência sofrida para pensar que estratégias a gente vai abordar
para que a violência não ocorra e assim não ter responsabilidade só para a mulher
que sofreu a violência (Iana Ribeiro).

Por eso creo que toma tanta fuerza la Red Madalena Internacional y el Teatro de las
Oprimidas cuando venimos a cuestionar todas esas formas y a transformar
metodológicamente la manera de trabajar sobre esas opresiones para que realmente
la práctica sea liberadora , revolucionaria y no la vuelva poner otra vez en el mismo
lugar de culpabilización de la víctima (Mariana Villani)35.

A condução dos fóruns também foi algo repensado. Entendendo a importância do

espaço da especificidade para aprofundar a compreensão dos fundamentos e dos

mecanismos de sustentação e reprodução de determinadas opressões, surgiu a proposta de

condução do fórum por identidade. Isso significa que o fórum se constituiu como um

espaço onde é possível o fortalecimento pessoal e coletivo, onde a criação de alianças entre

grupos que enfrentam opressões similares é potencializada.

Na verdade, Boal já havia previsto a possibilidade do fórum por identidade, que se

daria quando a pessoa da plateia conhecia o problema da protagonista por vivência própria.

O Teatro das Oprimidas atualizou o fórum por identidade quando, em sua abordagem, faz

35
Por isso, acredito que a Rede Madalena Internacional e o Teatro das Oprimidas ganham tanta força quando
passamos a questionar todas essas formas e a transformar metodologicamente a forma de trabalhar essas
opressões para que a prática seja verdadeiramente libertadora, revolucionária e não coloque de volta no
mesmo lugar de culpar a vítima (tradução livre).
103

referência à identidade social de quem entra em cena (Santos, 2019). Não há espaço para

que se assuma uma identidade socialmente distante da própria.

Por exemplo, brancas e brancos podem se expressar sobre o racismo em um

momento de fórum, porém não na intenção de substituir negros e negras. Não interessa ao

Teatro das Oprimidas a ajuda, o conselho, a dica de como superar uma opressão. O que é

relevante “é o compromisso de cada um e de cada uma com relação a sua própria atuação

como ator/atriz social, desde de seu lugar de privilégio, de equilíbrio ou de desvantagem”

(Santos, 2019, p. 331).

Quando a gente parte pro fórum, a gente parte pro fórum por identidade pras
pessoas se entenderem implicadas socialmente. Se eu sou uma pessoa branca, eu
vou entrar no lugar de uma pessoa branca e ver o que eu posso fazer ali como
pessoa branca, também implicada nas relações raciais. Porque não é que eu sou
branca que eu não tô implicada nas relações raciais (Rachel Nascimento).

E aí muda. Muda porque a pessoa toma responsabilidade da transformação a partir


do lugar dela, porque quando ela sair da cena - porque o fórum é uma ensaio pra
vida real - quando ela sair pra vida real, ela vai agir a partir do lugar dela e é isso
que nos interessa, que ela aja a partir do lugar dela (Claudia Simone).

A gente percebeu na prática que a identidade, como a gente se vê, como a gente se
relaciona no mundo, vai dizer como a gente vai agir naquele momento e como a
sociedade vai reagir à gente, mesmo que seja uma peça. Mesmo a polícia ali na
cena sendo informada de que ele tava substituindo um homem negro, as nossas
relações saõ outras, né? A raça informa. Ela é um figurino que você não consegue
tirar, que informa muito mais do que qualquer papel. Chega primeiro. Então o
fórum por identidade é essencial para pensar que aquela não é uma situação pontual
e que é uma situação que acontece por conta do nosso contexto de construção
histórico-racial, né? Tá no contexto. Não é uma situação individual (Rachel
Nascimento).
104

Por fim, o Teatro das Oprimidas reuniu mulheres para entender as armadilhas do

patriarcado, investigar os mecanismos de funcionamento do machismo e do sexismo.

Desse modo, contribuiu para abrir espaço para olhar para si, fomentou a autoestima e a

consciência e estabeleceu estratégias de ações em rede. Ao mesmo tempo, possibilitou que

negros e negras se reunissem para aprofundar a compreensão sobre o racismo e seus

subterfúgios de manutenção de privilégios. Ensejou que mulheres negras entendessem o

que ainda provoca o desconforto de estar no ambiente dominado por mulheres brancas,

bem como perceber limitações e desafios na luta comum com homens negros (Santos,

2019).

Em síntese, o aprofundamento nas especificidades e subjetividades garantiu novas

alianças e abriu possibilidades de atuação coletiva. Ampliou a compreensão de que apesar

de serem as mais prejudicadas, o machismo, o sexismo, a violência contra a mulher não

são problemas das mulheres; de que o racismo é um problema complexo que afeta a todos

e todas, não somente a negros e negras; de que as mulheres negras são alvo de várias

opressões que se cruzam e se complementam em injustiças e não vão resolver todos os

problemas que as afetam sozinhas.

“Compartilhar a responsabilidade pela construção de um novo mundo possível é

uma necessidade” (Santos, 2019, p. 327). Por isso, faz-se imprescindível que haja uma

articulação entre grupos que enfrentam diferentes formas de opressão, buscando formas

sinceras e inclusivas de dialogar e atuar em cooperação. Adaptando a célebre frase de

Audre Lorde, não é possível ser livre enquanto alguém for prisioneiro, mesmo que se

tratem de correntes diferentes.

4.2.4. Trabalhos online na pandemia

Com o início da pandemia do Covid-19 e as medidas protetivas de isolamento

social, os grupos de Teatro do Oprimido e das Oprimidas tiveram que suspender suas
105

atividades tendo em vista a biossegurança de seus membros e de seus públicos. Promover

oficinas, fóruns, intervenções, ensaios, laboratórios, se tornou uma impossibilidade, ao

menos no formato convencional. O teatro com que se está familiarizado - um espaço de

contato e coabitação - entrou em um modo de espera.

Quanto tempo se pode esperar pelo teatro quando ele


falta? Questão importante hoje em dia: pode ser que se tenha
necessidade de teatro e ele não esteja à disposição. Ou,
pelo menos, não o teatro de que se necessita. O teatro
disponível não é necessariamente aquele que a vida pede –
certas necessidades permanecem insatisfeitas. Inquietude de
vida e de morte. Em caso de necessidade, se o teatro falta,
nos falta, e se a carência persiste, algo corre o risco de
morrer. “Nós” não morreremos, claro que não.
Encontram-se substitutos. Mas algo em nós pode morrer. O
quê? A exigência que sustenta a reflexão aqui
apresentada, não é, portanto, a de preservar, conservar “o
teatro” a qualquer preço: é possível conservar múmias,
cadáveres. Perguntamo-nos, se uma vida, e que tipo de vida,
quer (eventualmente) o teatro. E como, se ele lhe faz falta,
esta falta pode ser satisfeita (Guénoun, 2004, p. 16).

Para que algo não morresse, o Teatro do Oprimido e das Oprimidas precisou se

reinventar. A pergunta que ressoou foi: diante da falta, como satisfazer a necessidade pelo

teatro em tempos pandêmicos?

La pandemia nos trae un montón de desafíos, porque mucho que hacemos tiene que
ver con articularse con el cuerpo, con accionar muchos lenguajes que tienen que ver
con el encuentro, la movilización y siento que fue un desafío que... Bueno, como
muchas veces trae en la crisis la oportunidad. Entonces también nos impulsó a
desarrollar otros lenguajes (Lorena Roffé)36.
36
A pandemia nos traz muitos desafios, porque muito do que a gente faz tem a ver com a articulação com o
corpo, com a ativação de muitas linguagens que têm a ver com o encontro, a mobilização e sinto que foi um
desafio que... Bom, pois muitas vezes traz a oportunidade para a crise. Então, também nos levou a
desenvolver outras linguagens (tradução livre).
106

O teatro não é uma atividade, mas duas: fazer e ver. Diferentemente da pintura, da

escultura, da poesia, artes que podem ser produzidas de forma assíncrona com a

contemplação de seu público, o teatro exige, num espaço e num tempo compartilhados, a

associação dos atos de produzir e olhar (Guénoun, 2004). Sendo assim, novas estratégias,

novas formas de linguagem precisaram ser adotadas para que o teatro resistisse.

A sociedade, ela evolui de forma dinâmica. Olha o desafio que foi, que é essa
pandemia. A metodologia teve que ser adaptada para utilização do zoom, pra gente
fazer as técnicas, os jogos, talvez criar uma cena de teatro fórum. Abriu outras
possibilidades. Abriu a possibilidade de investigação de performance, abriu a
possibilidade de desenvolver um pouco mais dentro da estética do oprimido os
recursos audiovisuais… E a gente teve que aprender a lidar com essa tela e a lidar
com as novas parafernálias eletrônicas que são da atualidade e que fazem parte do
cotidiano das pessoas com as quais a gente trabalha. Os jovens estão o tempo todo
no celular. Quem tem o privilégio de ter um computador tá o tempo aqui todo
vendo vídeo, tá no instagram… O instagram é isso agora. Se você não tá aí, você tá
onde? E os jovens estão nessa linha. A linguagem para ser diálogo, a gente também
tem que saber que língua tá se falando hoje. Eu não falo tupiguarani. As pessoas
não falam tupi guarani. Estão falando o que hoje? Qual língua você fala? Porque
teatro é linguagem e é essa linguagem que abarca tudo. (Claudia Simone).

Como a fala acima destaca, foi através de encontros virtuais, utilizando plataformas

de chamada de vídeo que o Teatro do Oprimido e das Oprimidas se adaptou às

necessidades da nova realidade. Precisou, assim, desenvolver uma nova linguagem que até

surpreendeu no sentido do alcance.

A través de los encuentros virtuales, nos posibilitó la red magdalena a crear un


festival internacional online que hicimos en el año 2020 y que fue el festival de la
107

Red Magdalena de más participación y más diversa, justamente por ser virtual
(Lorena Roffé)37.

Há, no entanto, uma contradição nesse quesito de participação. A realização de um

evento virtual, como o anteriormente mencionado, de fato diminui as distâncias. Não é

preciso se preocupar com deslocamento, acomodação, gastos diversos… É possível

participar do evento em qualquer lugar. A condição é ter os meios para acessá-lo. A gente

foi criando estratégias online, mas isso não é fácil pra todo mundo. Muitas mulheres não

têm esse acesso online. Existem apenas alguns grupos que conseguem (Iana Ribeiro).

Dispositivos de comunicação com câmera, como computador, celular, tablet, além

do acesso à internet, não fazem parte da realidade de muitas mulheres. Quanto mais sofrem

com o esquema de dominação-exploração-opressão, isto é, com questões de gênero, raça e

classe, menor a probabilidade de elas fazerem parte do rol de participantes de um evento

online. Sendo assim é relevante perguntar: no contexto da pandemia, foi possível pensar o

TO pra quem? Ampliou-se a possibilidade de utilização do TO em quais contextos?

É evidente que não foi para todas e todos. O uso de plataformas virtuais, ao mesmo

tempo que é inclusivo, consegue ser excludente. As mulheres usuárias da política de

assistência social, a quem esse trabalho faz referência, muito provavelmente não

participariam de um evento online. Na verdade, a proposta inicial desta pesquisa era fazer

oficinas presenciais a partir da metodologia do TO com esse público. A crise sanitária

impossibilitou o seguimento da pesquisa como inicialmente pensada justamente pelo fato

de que realizar oficinas em um formato virtual, visando a biossegurança, não era uma

possibilidade.

37
Através de encontros virtuais, a rede Madalena permitiu-nos criar um festival online internacional que
fizemos em 2020 e que foi o festival da Rede Magdalena com maior e mais diversa participação,
precisamente por ser virtual (tradução livre).
108

As lutas diárias dessas mulheres se referem à garantia das necessidades mais

básicas. Conseguir prover à família alimentação diária, ter dinheiro para pagar o aluguel ao

final do mês, brigar por uma vaga na creche para seu filho, acordar de madrugada para

pegar uma ficha de atendimento na unidade básica de saúde. As condições concretas e

materiais para participar virtualmente de uma oficina de teatro são basicamente nulas.

Sem falar que, como discutido no capítulo 1 desta dissertação, as mulheres que

mais sofreram impactos negativos na pandemia foram exatamente aquelas que compõem o

público de atendimento da política de assistência social: mulheres pobres e negras.

Sofreram ainda mais com a sobrecarga de trabalho doméstico; com do estresse econômico

gerado pelo desemprego ou pela maior dificuldade de se trabalhar como autônoma; com a

coexistência forçada, que resultou no aumento da violência doméstica (Vieira, Garcia &

Maciel, 2020); com temores sobre o coronavírus, em especial aquelas que permaneceram

servindo as casas daqueles que podiam estar em trabalho remoto…

Na vida pandêmica, as condições a que estão sujeitas restringem ainda mais suas

possibilidades. Assim, essas mulheres saem da pandemia ainda mais fragilizadas,

precarizadas e submetidas. Hoje em dia, com o afrouxamento das medidas de isolamento

social, faz-se urgente retomar o trabalho com esse público feminino, tão oprimido, que

sobreviveu a tempos de guerra. É preciso ampliar a vida, resgatar a potência, buscar incluir

nos trabalhos com TO aquelas e aqueles que de libertação mais necessitam.

4.3. Um teatro de necessidade e esperança

Por fim, o último núcleo de análise contempla o quanto o Teatro do Oprimido e o

Teatro das Oprimidas não são neutros não apenas politicamente, mas também no aspecto

pessoal. Como toda arte, implicam um atravessamento de si e como forma de lidar com as

repercussões de tal atravessamento contam com a estética e com o próprio método.


109

4.3.1. Atravessamentos de si

Um aspecto comum às entrevistadas foi o quanto a aproximação com o Teatro do

Oprimido (e em seguida com o Teatro das Oprimidas) se deu por uma motivação pessoal.

Algumas das entrevistadas já tinham diversas experiências artísticas datadas desde muito

cedo em suas vidas e, em busca da função social na arte, encontraram no Teatro do

Oprimido um lugar de militância política. O TO percebido como herramienta para y no

con la mirada del teatro con fin en sí mismo (Mariana Villani)38.

Então eu chego no teatro do oprimido lutando pelo direito dos trabalhadores, na


cidade de Volta Redonda. Eu sempre quis fazer teatro, mas eu não queria fazer um
teatro de forma de entretenimento. Eu queria fazer algo que pudesse transformar a
realidade (Claudia Simone).

Em outros casos, o TO chegou às vidas das participantes como elemento de uma

formação, além de política, acadêmica.

A minha trajetória militante, acadêmica, foi se costurando muito a partir do Teatro


do Oprimido e do Teatro das Oprimidas. O Teatro do Oprimido me fez voltar para a
academia e buscar os estudos sobre relações étnico-raciais e assim vai se
costurando a trajetória (...). Atravessada por essas pesquisas, voltei para a
academia, fui estudar… Na especialização, volto para estudar o TO como
perspectiva de formação de professores e professoras, como uma formação
continuada fora do espaço acadêmico (Rachel Nascimento).

Minha formação acadêmica se deu junto com minha formação de TO (...). Em 2017
já eu entro no doutorado para pesquisar sobre o Teatro do Oprimido e as
possibilidades ético, estético e políticas para os participantes dele. Só que também
meu corpo está aí, não era só os ou as participantes. Eu também fazia parte disso.
Eu digo que eu sou uma pesquisadora-participante-atuante (Iana Ribeiro).

38
Como uma ferramenta para e não com o olhar do teatro com um fim em si mesmo (tradução livre).
110

Nesse processo da busca pela transformação social, foi inevitável na história das

entrevistadas a transformação pessoal. Trabalhar com o teatro significa vivê-lo. Com o

Teatro do Oprimido e Teatro das Oprimidas, então, é trabalhar com a própria história, com

as próprias vivências. Eu participei me desconstruindo, vivendo o método como atriz,

entendendo. Também me curando, refletindo minha história, entendendo minha mãe,

minha avó, minha bisavó, de onde eu venho (Liviana Bath).

A partir daí eu começo um processo de conscientização do que é ser filha de classe


operária, ser mulher e ser mulher negra. E é esse todo meu atravessamento que me
leva até o Centro do Teatro do Oprimido na tentativa de ser a protagonista da minha
própria história, principalmente porque o meu desejo sempre foi ser atriz (Claudia
Simone).

Nesse sentido, as transformações sociais almejadas pelo TO se iniciam de modo

particular. O Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas é formado por sujeitos e

sujeitas que se inscrevem no mundo com suas histórias, vivências, opressões, dores,

desejos, necessidades. Debater a mudança do mundo perpassa, de certa forma, um trabalho

de tomada de consciência da própria vida, do lugar que se ocupa no mundo. “Eu percebi

que a metodologia não era só uma metodologia que eu iria aprender para replicar com

outras pessoas oprimidas. Me percebi oprimida em várias instâncias e aí foi um processo

muito transformador…” (Rachel Nascimento). A fala de Raquel segue indicando a

consciência de si como o primeiro passo para se conseguir algo mais amplo:

Não tem como ficar ali porque a gente cria a partir da nossa vida, são problemas
que a gente quer resolver, a gente quer transformar. Então não tem como ficar só no
teatro. Porque primeiro é a nossa vida que a gente tá contando e depois que a gente
conta a nossa vida a gente recebe do público um feedback de que também vivem
isso e possibilidades de ação em relação àquilo. Mesmo que não seja talvez uma
coisa grandiosa, quando a gente volta pra casa, a gente “poxa outras pessoas estão
implicadas nisso. Outras pessoas fizeram isso. E se eu tentar dessa forma? E se eu
tentar dessa forma?”. Então, seja num ato, com grandes ações e mobilizações na
111

rua, seja num próprio processo pessoal de investigação da própria vida, não tem
como ser só teatro, né? (...). Quando a gente fala realmente sobre as nossas vidas e
as pessoas se implicam a partir de suas vidas, a partir das suas vivências, é um
ensaio para a realidade, que é a realidade em si mesma. Muitas pessoas falavam
“ah, na vida isso aconteceu comigo, mas eu não tive coragem de levantar. Aqui eu
tive coragem de fazer. Se acontecer isso comigo de novo eu já sei o que eu vou
fazer” (Rachel Nascimento).

Em alguns casos, a entrada no Teatro do Oprimido por si só foi uma quebra de

opressão, quebra da expectativa social. Em que circunstâncias seria aceito que empregadas

domésticas se reconhecessem como atrizes, artivistas, e se colocassem em cima de palcos

para contar sua história? Quando mulheres de Guiné-Bissau se veriam viajando sozinha

para outro país para apresentarem sua peça em um festival internacional de teatro?

Então para mim a coisa mais importante pra chegar no teatro do oprimido foi me
ver atravessada pelo desejo de ser atriz e toda a negativa que uma sociedade
patriarcal, capitalista, racista coloca a esse corpo de mulher negra. Onde que eu
deveria habitar, o que que eu deveria fazer, como eu deveria me comportar (Claudia
Simone).

Enfim, partir da própria experiência é uma estratégia eficaz para implicar as

pessoas. Paulo Freire (2013) defendia que a pedagogia do oprimido é aquela que é forjada

com ele, e não para ele. O acolhimento do objeto de reflexão dos oprimidos e das

oprimidas é que ocasionará o seu engajamento necessário na luta pela libertação.

Uma das entrevistadas mencionou a importância de, em oficinas nas comunidades,

se trabalhar a partir da vivência do grupo que ali se coloca.

Então eu acho que uma estratégia que a gente tem usado, né, eu digo eu e quem tá
sempre comigo fazendo oficina, né, a companheira Carol Netto, é ir falando das
questões que estão ali, dos problemas que estão ali. A temática da fome está sempre
presente (...) Quando o tema vem por eles mesmos, vem a fome, vem a insatisfação,
vem o desespero, e aí a gente começa a questionar “o que é que tá acontecendo pra
112

essa fome, esse desespero?”. E aí esse contexto político vem à tona e a gente
começa a discutir um pouco, sabe? A partir do que elas trazem, do que eles trazem
(Rachel Nascimento).

É através desses atravessamentos particulares e também coletivos que as pessoas

vêem a possibilidade de erguer a voz e fazer uso da palavra. Não é uma palavra colocada

em suas bocas, mas uma palavra que sai de dentro, que expressa quem são, o que vivem.

Fazer a transição do silêncio para a fala é um gesto revolucionário (hooks, 2019).

Sobre isso, Paulo Freire afirma que

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra,


no trabalho, na ação-reflexão. Mas, se dizer a palavra
verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o
mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens,
mas direito de todos os homens. Precisamente por isto,
ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la
para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a
palavra aos demais (2013, p. 108).

Coletivamente, à medida que a ação-reflexão se externaliza, a ascese vai se

tecendo. Vão se ligando os pontos que auxiliam na compreensão das coisas e suas razões

de serem como são. Por meio do entendimento, a intervenção na realidade para a qual

ensaia o Teatro do Oprimido começa entre os seus, nas realidades particulares, antes de ser

coletiva. Isso, no entanto, não acontece isoladamente. A transformação pode ser particular,

mas parte de uma consciência coletiva. Nomear determinada dor pessoal se conecta à

educação geral para a consciência crítica de resistência política coletiva no momento em

que está vinculada a uma abordagem que obriga o reconhecimento da complexidade das

estruturas de dominação (hooks, 2019). O Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas

são esse tipo de abordagem.


113

E depois quando você fala “ah é uma intervenção na realidade”. Eu tô viva! É a


intervenção na realidade. Eu sou a prova disso. Porque o racismo quis me matar.
Quase conseguiu! E foi a minha atuação no Teatro do Oprimido, no Teatro das
Oprimidas que me permitiu usar o teatro do oprimido como possibilidade de
cuidado, autocuidado e narrativas de vida. Então pra mim, assim, é concreto. É
concreto. Cada trabalho que eu fiz com teatro do oprimido, que me permitiu a
minha conscientização de classe, de raça e de gênero, me permitiu não morrer.
Porque eles quase me mataram. E aí é usar o teatro literalmente. Como a gente diz,
o Teatro do Oprimido é empoderamento, é a possibilidade de você ser protagonista
da sua história. E quando a gente se torna protagonista da nossa história, não é um
"blá blá”. É realmente entender onde a sociedade capitalista, essa sociedade
machista e racista te coloca dentro das armadilhas. Como ela invade o seu cérebro
com ideologias que vão te matando aos poucos, que vão te adoecendo, sem você
mesmo ter consciência (...). Essa metodologia do teatro do oprimido me ajudou a
não vir a ser uma usuária de saúde mental. Porque eu tive a minha subjetividade
atacada pelo racismo quando eu tomei consciência do que é ser mulher negra na
sociedade brasileira, quando eu entendi toda a culpa que era colocada dentro dos
meus fracassos e nunca os meus sucessos foram reconhecidos, que eu entendi que
isso fazia parte da estrutura do racismo estrutural (Claudia Simone).

A alienação obscuriza a emersão das consciências e a inserção crítica na realidade

dos oprimidos e oprimidas (Freire, 2013). Compreendendo as opressões que se sofre, o

contexto social em que se está inserido, é possível se munir contra ele, como o fez Claudia

Simone.

4.3.2. Teatro do Oprimido e das Oprimidas não é terapia, mas pode ser terapêutico

É evidente o quanto o método tem a capacidade de revolver as vidas das pessoas

que se propõem a vivê-lo. Nomear ou revelar a dor pode ser muito mobilizador, mesmo em

um contexto ligado a estratégias de resistência e transformação. É preciso levar em conta

que em uma oficina, por exemplo, as pessoas participantes não são obrigadas a contarem
114

histórias que não querem contar. A partilha de histórias pessoais deve acontecer por livre e

espontânea vontade.

A pessoa, ela vai expressar ou ela vai trazer pro grupo aquilo que é possível pra ela,
porque às vezes... Você não é forçada a contar nenhuma história, você não é forçada
a representar ali nada. Então que seja acordado que aquilo que se traz pro grupo
seja aquilo que é possível pra pessoa (Iana Ribeiro).

No entanto, uma vez que o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas partem da

opressão como material de trabalho - e não são opressões deslocadas, fictícias, de outrem,

são opressões das pessoas que se fazem ali presentes, é esperado que em algum momento a

emoção venha à tona.

Isso não significa algo ruim. Eu acho que a gente, do mesmo jeito que expressa um

sorriso, a gente pode expressar um choro e isso não precisa desfazer o grupo na mesma

hora (Iana Ribeiro). Para o método, expressar emoções é algo que faz parte do processo.

Boal (2009) defendia que exercícios de emoção não devem ser descartados. Devem ser

feitos, mas objetivando compreender a experiência, não apenas senti-la. “A emoção em si,

desordenada e caótica, não vale nada. O importante na emoção é o seu significado” (Boal,

2009, p. 93).

Com isso, Boal quer dizer que é preciso racionalizar a emoção, buscar o porquê

dela. A experiência para o método é importante, mas o significado da experiência é mais

importante ainda. “Queremos conhecer os fenômenos, mas queremos sobretudo conhecer

as leis que os regem. Para isso serve a arte: não só para mostrar como é o mundo, mas

também para mostrar por que ele é assim e como se pode transformá-lo” (Boal, 2009, p.

91).

[Es importante] tener siempre una serie de ejercicios, o juegos, o experiencias para
cerrar. La manera de cerrar es siempre ese proceso de racionalizar la emoción, de
que hablaba mucho Augusto Boal, de entender porque nos sentimos como nos
115

sentimos y en ese proceso que se hace el ascese, no? Nos sentimos como nos
sentimos no porque “oh, pobre yo…”, si no porque el patriarcado, porque el
racismo, porque… Ese proceso es colectivizar… Y es ese proceso de racionalizar la
emoción que hace el cuidado39 (Lorena Roffé).

Nesse sentido, a emoção é muito bem-vinda no TO, pois é um caminho para

compreender o contexto mais amplo. Como mencionado no trecho da entrevista

anteriormente destacado, em situações emotivas, a curinga precisa ter sensibilidade para

usar o método de modo que a oficina não se torne um momento catártico. É fundamental

direcionar o grupo e criar uma atmosfera adequada para analisar coletivamente as

opressões apontadas.

É normal chorar, né? E quando você tá ali trabalhando os temas através do teatro do
oprimido, as violências… A gente fala assim “teatro do oprimido não é terapia”. A
gente não é psicólogo. Mas é um método que tem um efeito terapêutico. Não é
terapia, mas o efeito pode ser terapêutico. Porque a pessoa através de jogos
criativos com o corpo, emocionalmente se conecta com traumas e procura superar
elas e isso está dentro do método. Porque o método não leva à vitimização, não leva
à ficar no pessoal. O teatro do oprimido leva ao estrutural (Liviana Bath).

Entonces no estamos ahí para ofrecer una solución terapéutica a los dolores… Lo
que pueda ayudar a generar y atravesar el dolor que atravesamos todas cuando
recorremos a nuestra propia historia porque todas hemos sido abusadas,
violentadas, no mínimo una vez en nuestra vida. Entonces es súper importante
saber que el trabajo que vamos hacer es político, por más que resulte terapéutico en
muchas ocasiones, pero no es un trabajo terapéutico40 (Lorena Roffé).

39
[É importante] ter sempre uma série de exercícios, jogos ou experiências para fechar e nunca deixar em
aberto quando (trecho inaudível). O jeito de fechar é sempre aquele processo de racionalizar a emoção, de
que o Augusto Boal falava muito, de entender por que sentimos o que sentimos e nesse processo é que se faz
a ascese, certo? Sentimos como nos sentimos não porque "ai, coitadinha ...", se não por causa do patriarcado,
porque racismo, porque... Esse processo é coletivizar... Estamos todas muito tristes, estamos todas muito
(trecho inaudível) porque ... E nesse processo de racionalizar a emoção se faz o cuidado (tradução livre).
40
Portanto não estamos aqui para oferecer uma solução terapêutica para a dor ... O que pode ajudar a gerar e
a passar pela dor que todos nós passamos quando passamos pela nossa própria história, porque todos fomos
abusadas, violadas, pelo menos uma vez em nossas vidas. Então é super importante saber que o trabalho que
116

O direcionamento dado ao que emerge distancia o TO do que propõe uma terapia.

O método pode ter efeito terapêutico, mas não é terapia. A análise feita das opressões não

deve ser centrada em um acontecimento específico da história de alguém, mas nas

possibilidades de compreensão do mecanismo de opressão vivenciado pela pessoa (Santos,

2016).

Compreender o mecanismo de opressão é um passo para a transformação social. É

essa a esperança que alimenta o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas: a

construção de uma sociedade justa. Nesse processo, é esperado que os oprimidos e as

oprimidas, tenham tantos sentimentos oprimidos - desespero, fúria, angústia -, abafados

pelo medo do silenciamento. O caminho rumo à libertação que é expor esses sentimentos e

compreendê-los é um ato de resistência. Trata-se tanto de “uma autotransformação ativa

quanto um rito de passagem quando alguém deixa de ser objeto e se transforma em sujeito”

(hooks, 2019, p. 45).

Entonces unas de las cosas es marcar siempre que el objetivo es la transformación,


que, si atravesamos momentos de dolor, que, si darnos cuenta, porque muchas
veces también eso ocurre en los procesos, darnos cuenta de diferentes violencias de
las que no éramos conscientes, y que esa conciencia trae dolor y que esa memoria
trae dolor. Pero ese dolor es parte de un proceso de transformación, parte de un
proceso que nos va llevar a un lugar que es mejor que el en que estamos y porque
tenemos esperanza y confianza política y colectiva en que eso es posible es que nos
permitimos abrir ese espacio de dolor. y también entender al dolor y la rabia como
compartilha Bárbara, que me parece muy hermoso también, con una fuente de
acción, con una energía también que provoca movilización, que no es malo
encontrarse con tristeza, encontrarse con rabia, siempre cuando no nos quedemos

a gente vai fazer é político, mesmo que seja terapêutico em muitas ocasiões, mas não é um trabalho
terapêutico (tradução livre).
117

allí [...] que tomamos eso como una energía, como un motor, como un impulso
hacia la acción41 (Lorena Roffé).

Nos papéis de sujeitos, as pessoas têm condição de lutar contra a opressão, para

pedir os próprios direitos, e muitas vezes isso começa por necessidade. Eu tenho fome,

então eu luto para comer alguma coisa. Eu sofro violência, então, se tá doendo tanto, eu

luto pra poder sair (Liviana Bath). Apesar da conjugação verbal na primeira pessoa do

singular, a luta a que a entrevistada faz referência não é uma luta individual. Não se trata

mais de suas questões pessoais, particulares, passíveis de serem tratadas em um setting

terapêutico. São questões coletivas, opressões estruturais que se revelam e que se tornam

objeto da luta.

4.3.3. O uso da estética e apoio no método

Augusto Boal acreditava que para alcançar o objetivo do Teatro do Oprimido -

analisar e representar a opressão, buscar entender seu mecanismo de funcionamento e lutar

por sua superação -, era preciso criar estratégias adequadas para confrontar a influência da

Estética do Opressor (Santos, 2018).

Em seu último livro, A Estética do Oprimido, Boal discute que as ideias

dominantes de uma sociedade são aquelas das classes dominantes. Elas fazem uso dos

domínios da palavra, da imagem, do som para reduzir “indivíduos, potencialmente

criadores, à condição de espectadores” (2009, p. 15).

41
Então uma das coisas é sempre marcar que o objetivo é a transformação, que, se passamos por momentos
de dor, que, se percebemos, porque muitas vezes isso também acontece nos processos, percebemos violências
diferentes das quais não tínhamos consciência, e essa consciência traz dor e essa memória traz dor. Mas essa
dor faz parte de um processo de transformação, parte de um processo que nos levará a um lugar melhor do
que aquele em que estamos e porque temos esperança e confiança política e coletiva de que isso é possível é
que nos permitimos para abrir esse espaço de dor. E também entender a dor e a raiva, como Bárbara
compartilha, que eu também acho muito bonito, como uma fonte de ação, como uma energia que também
provoca mobilização, que não é ruim encontrar tristeza, encontrar raiva, sempre quando não estamos ali (...)
Que tomemos isso como uma energia, como um motor, como um impulso para a ação (tradução livre).
118

Objetivando analfabetizar a população, as classes dominantes se utilizam da arte,

da cultura, dos meios de comunicação, controlando a palavra (jornais, tribunas), a imagem

(cinema, fotos, televisão, plataformas de streaming), o som (rádios, shows), para produzir

uma estética anestética - “conquistam o cérebro dos cidadãos para esterilizá-lo e

programá-lo na obediência, no mimetismo e na falta de criatividade. Mente erma, árida,

incapaz de inventar - terra adubada com sal!” (Boal, 2009, p. 18).

Você foi educado para fazer algo que foi implantado através da imagem, da palavra
e do som na sua cabeça - invasão do cérebro -, que faz com que você reaja dessa
forma, porque você foi educado nessa sociedade. E é por isso que a estética do
oprimido é tão importante, porque ela combate. É um combate à invasão do
cérebro. E o que eu tô discutindo, que é a descolonização da mente… A ideia é
libertar o meu eu dessas amarras que estão desde quando a gente nasce (Claudia
Simone).

As imagens de uma sociedade construída pelo sistema opressor e veiculada pela

estética do opressor representam os oprimidos não como partícipes, mas como negação

(Santos, 2018). Grijó e Sousa (2012) e Faria e Fernandes (2007) desenvolveram estudos

sobre a representação de pessoas negras na telenovela brasileira. Eles apontam que negros

permanecem ainda com papeis de pequeno destaque nas narrativas, com pouca

complexidade, e majoritariamente representando papeis que ocupam posições subalternas

ou serviçais. São também minoria dentre o elenco escolhido, de modo a desconsiderar a

grande presença de negros na realidade brasileira.

Quando os negros estão presentes nas telenovelas ou quando


ganham destaque há um discurso, mesmo que implícito, de
que o Brasil é uma democracia racial, sem diferenças sociais
em relação às questões étnicas. Essa é a imagem de Brasil
transmitida para os brasileiros e para outros países: uma
nação hegemonicamente branca e quase sem conflitos étnicos
(Grijó & Sousa, 2012, p. 200).
119

Como Claudia Simone mencionou, os oprimidos são educados a agirem de certa

forma, pois sofrem da colonização da mente. Estão presos a um contexto cultural que

define liberdade apenas como aprendizagem da língua do opressor (hooks, 2019); são

metralhados diariamente por uma estética que os estimula e direciona para lutar contra a

própria imagem, impedindo-os, em certa medida, de confrontar essa imagem idealizada

(Santos, 2018).

A estética do opressor se sustenta na

ideia de que todos e todas podem ter direito a um ‘lugar ao


sol’, e essa conquista depende única e exclusivamente do
esforço de cada um e de cada uma. O individualismo dessa
perspectiva não permite a inclusão do contexto social, a fim
de que o resultado seja conectado apenas ao mérito
individual. Particularizar, individualizar e descontextualizar
compõem algumas das estratégias mais eficazes da estética
do opressor (Santos, 2018, p. 85).

Nesse sentido, não é à toa que o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas têm

suas práticas fundamentadas na Estética. É uma grande aliada na abertura de perspectiva

para a inclusão do contexto das opressões. Por meio dela, faz-se uma análise crítica do real,

compreendem-se as variáveis envolvidas no problema em questão, estimula-se a

construção de uma narrativa autônoma e também coletiva, pois envolve a muitos outros e

outras (Santos, 2018).

Trabajo a partir de ejercicios de estética del oprimido solo. Todo es estética,


estética, estética, estética, y logo muchísimas multiplicaciones creativas en los
ejercicios del teatro de las oprimidas para identificar através de la creación cuál es
la situación problemática que el grupo quiere trabajar o cuál es la opresión que el
120

grupo quiere trabajar a partir del hacer y no a partir del verbalizar. Y no quedamos
ahí con historias particulares42 (Mariana Villani).

A Estética do Oprimido é um ato de libertação da ideologia dominante. É a

negativa de consumo de obras alheias, que trazem consigo pensamentos, formas de

compreender o mundo, desejos que não pertencem verdadeiramente às classes oprimidas.

Essa libertação é possível por meio do exercício do pensamento sensível - uma

“arma de poder”, nas palavras de Augusto Boal (2009, p. 18). Através desse exercício, é

possível desenvolver a capacidade de ir além da aparência do real e ver aquilo que, mesmo

não revelado em sua imagem, também o constitui. O pensamento sensível abre outros

caminhos para acesso daqueles níveis de percepção do real, até mesmo aqueles que não

chegaram à consciência e, portanto, não são traduzíveis pela linguagem simbólica (Santos,

2018).

Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de


conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como
usar pincéis e tinta, como se fosse pintor. Quanto mais me
ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz como
cantor. Quanto mais fizer bailar minhas palavras, mais
aprendo a amá-las, como se fosse poeta. Fazendo, serei
pintor, poeta e cantor. Sou. Saber, conhecer e experimentar
expandem minha capacidade de conhecer, saber e aprender.
Expandem além da busca e me fazem encontrar o que nem
sequer procuro (Boal, 2009, p. 116).

Sendo, experimentando, vivendo o método, chega-se à metáfora na Estética do

Oprimido. Por meio da metáfora, busca-se representar a realidade a partir das próprias

42
Trabalho somente a partir de exercícios da estética do oprimido. Tudo é estética, estética, estética, estética
e logo muitas multiplicações criativas nos exercícios do teatro do oprimido para identificar através da criação
qual é a situação problemática que o grupo quer trabalhar ou qual é a opressão que o grupo quer trabalhar a
partir do fazer e não do verbalizar. Não ficamos aí com histórias particulares (tradução livre).
121

perspectivas, evitando a reprodução da estética do opressor. São criadas condições para o

desenvolvimento de processos estéticos, de modo que as pessoas participantes se sintam

livres para a experimentação, em um espaço sem crítica inibidora durante o processo de

criação, e tenham a oportunidade de se apropriar dos meios de produção e se descobrirem

artistas.

A gente utiliza também a proposta da metáfora para que esses temas sejam ditos de
uma outra maneira, que eles possam ser mobilizados de uma outra maneira. Por
exemplo, falar de opressão e fazer todo o som da opressão. Não usar a palavra para
falar. Usar o corpo fazendo imagens, símbolos, gestos… Tudo isso é abordar um
tema e traz a consciência e permite que você faça a discussão de uma maneira
estética e artística (Claudia Simone).

É através da experiência de praticá-lo, não é de ler e tentar, é viver o método, eu sei


que esse método, trabalhando com o corpo, com a emoção, que é um método de
conscientização, ele pode abrir várias portas no sentido de… Se a gente está o dia
inteiro na cabeça “eu tenho que fazer isso, isso… Eu tenho que correr. Ah, num sei
o que…”. E aí ter um momento de respirar, de jogar, de me distrair e de me
conectar com meu corpo. Porque o teatro é isso. A gente usa várias línguas. É som,
é ritmo, é sensibilidades que estão sendo despertadas. É uma outra comunicação
(Liviana Bath).

Bárbara Santos ilustra a vivência da estética como

observar o real e escrever um poema ou pintar um quadro


para expressar sua opinião. Dançar o cotidiano para perceber
o ritmo da vida e a rotina. Produzir sonoridade para descobrir
nas palavras a diversidade de sentidos. Fotografar as
geografias da vida para compreender os lugares destinados a
cada classe social, a relação com o lixo, com o trânsito, com
o verde e o direito de acesso à cidade. Fotografar com as
próprias mãos em ação para compreender que o que somos se
relaciona com o que fazemos (2018, p. 87).
122

Nesse processo de criação, evita-se o uso da palavra. Para Boal, a palavra mobiliza,

fixa no tempo e no espaço aquilo que é fluido; é obra e instrumento da razão simbólica,

não da razão sensível. É preciso “transcendê-las [as palavras], buscar outras formas de

comunicação que não sejam apenas simbólicas, mas também sensoriais - comunicações

estéticas” (2009, p. 105).

Não tem como a gente não se perceber como um grupo social, né, participante do
processo político nesse conduzir dos exercícios, se a gente não fizer esse processo
todo, né? Eu acho que a gente tem feito assim, muito na construção coletiva e
estética. A palavra, se entra, ela entra no final, como diz Boal. E ela entra de uma
forma muito pontual. (...) É pouco texto, o texto necessário, a palavra necessária, e
a gente vai refletindo o que quer dizer aquela palavra em diversos contextos e
aprofundando o sentido. Então acho que é isso, uma construção numa perspectiva
estética dá a possibilidade de entender essas relações num contexto social e não ser
uma história individual, ser uma história coletiva. (Rachel Nascimento).

Em suma, a criação de uma estética própria, uma linguagem dos oprimidos, indica

uma prerrogativa do método: o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas precisam

permitir sonhar, imaginar uma nova realidade. Romper com a lógica opressora e conseguir

vislumbrar uma sociedade justa, sem opressão, dominação e exploração é um passo

essencial para que o sonho se transforme, através da luta, em realidade.

O importante é que ela [a metodologia] traga abertura para processos de criação e


imaginação. Eu acho muito importante isso. Para pensar em outros mundos
possíveis, a gente tem que imaginar outros mundos possíveis. Então se a gente não
propicia imaginação pras pessoas, como que a gente quer criar outros mundos
possíveis? Importante pensar processos imaginativos, criativos, artísticos nesses
grupos (Iana Ribeiro).
123

Considerações finais

Essa pesquisa de mestrado buscou analisar o Teatro do Oprimido como forma de

intervenção social em casos de violência contra a mulher. Para tanto, foram entrevistadas

seis mulheres, curingas de referência na atuação com Teatro do Oprimido e com Teatro das

Oprimidas. Um dos objetivos específicos era avaliar uma proposta metodológica de

trabalho com base no método do Teatro do Oprimido. Essa proposta havia sido pensada

pela pesquisadora para ser implementada em grupos de mulheres usuárias da política de

assistência social. À essa altura do campeonato, é possível dizer que teve seu lado positivo

esse objetivo não ter sido alcançado.

A opinião assim se constitui porque, a partir das reflexões e aprendizados

provenientes das entrevistas, ficou evidente que aspectos como desenho da oficina, seus

objetivos, escolha dos jogos são (retoma-se agora uma metáfora usada em um dos capítulos

teóricos) a ponta do iceberg - algo que não estava tão evidente para a pesquisadora antes do

campo.

Fazer uso do método do Teatro do Oprimido e do Teatro das Oprimidas é muito

mais que saber construir a dramaturgia de um fórum, escolher os jogos, sua sequência de

uso, como conduzi-los... As entrevistadas não puderam responder ao questionário e avaliar

a proposta, mas por meio das entrevistas contribuíram de um modo bastante potente:

convidaram a pesquisadora a um mergulho profundo para vislumbrar o volume de gelo

embaixo da água.

Associadas a um denso acúmulo teórico, as vivências das entrevistadas foram

compartilhadas. Elas apontaram as singularidades, particularidades e universalidades das

experiências que têm construído com o TO ao longo dos anos. Forneceram material

suficiente para a pesquisadora ampliar o olhar e ir além da lógica objetiva da aprovação, ou

não, de uma oficina. Deram a oportunidade de pensar o método de forma mais ampla.
124

Desvios de rota fazem parte da realidade de uma pesquisa. No caso desta, as

mudanças de rumo começaram com a instauração da pandemia do coronavírus, que

impossibilitou a execução da ideia inicial de fazer oficinas de TO com mulheres usuárias

de um CRAS para analisar as vivências de opressão e violência de gênero. Em seguida,

quando um novo objeto surge, junto com uma nova metodologia, e se pensava que tudo

ocorreria dentro do programado, mais uma mudança (a mencionada anteriormente). No

entanto, percebe-se hoje que as transformações pelas quais passou a pesquisa foram

fundamentais para seu amadurecimento teórico e prático.

Seguindo com os demais objetivos específicos, os dados construídos nas entrevistas

foram mais que suficientes para alcançá-los. Quanto ao objetivo de “caracterizar e analisar

os desafios de atuação com TO na atualidade”, de forma sucinta, as entrevistadas

levantaram como principais desafios: lidar com o machismo e racismo - não apenas como

opressões presentes na sociedade de modo geral, mas como opressões reproduzidas dentro

do próprio movimento do TO.

Sem a intenção de romantizar, é interessante refletir sobre o poder dos percalços em

uma jornada. “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”43. Se as opressões das

mulheres, brancas e negras, estavam sendo invisibilizadas em trabalhos com grupos mistos,

se o método do Teatro do Oprimido estava, de certa maneira, oprimindo-as, elas caçaram

jeito de erguer suas vozes. Assim nasceu uma nova metodologia, atenta às especificidades,

ao mesmo tempo sem esquecer da totalidade. O Teatro das Oprimidas é resultado de um

trabalho coletivo, do protagonismo feminino. É um passo à frente na luta por uma

sociedade mais justa.

Quanto ao objetivo de “identificar as estratégias para a garantia dos pressupostos do

trabalho com TO”, foi unânime a seguinte resposta: apoie-se no método. Conhecer em

profundidade o método, entender seus princípios fundadores, estar consciente de que o


43
Poesia de Manoel de Barros.
125

trabalho é político e coletivo, de que não há neutralidade ou foco na individualidade,

conhecer o arsenal, a dramaturgia do TO… Esses aspectos dão suporte para que o objetivo

do Teatro do Oprimido e do Teatro das Oprimidas não se perca. Tratam-se de metodologias

que visam a transformação social. Para transformar é preciso romper com a

individualidade, com a alienação, é preciso ser solidária, estar atenta à estética, à ética do

oprimido e, antes de tudo, é preciso ter esperança e sonhar que um mundo com justiça

social é possível.

Em síntese, os resultados demonstraram que o Teatro do Oprimido tem sua

importância no debate acerca de opressões ao mesmo tempo que evidenciam a relevância

do Teatro das Oprimidas como um meio para discutir a consubstancialidade de gênero,

raça e classe. Tanto o Teatro do Oprimido quanto o Teatro das Oprimidas foram destacados

como estratégias para conscientização de si, das opressões presentes nas vidas dos sujeitos

e da macroestrutura que sustenta essas opressões. Ainda foram apontados como caminhos

rumo à transformação tanto de contextos de vidas particulares quanto para a transformação

social.

Finalizada a pesquisa, fica aqui a reflexão do quanto seria potente ter uma

metodologia como o Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas como estratégia de

trabalho com mulheres usuárias da política de assistência social. No caso de pequenos

grupos, como comumente são os de um CRAS, a integração do pensamento feminista, a

partir de uma análise crítica, à discussão de experiências pessoais seria enriquecedor para o

avanço do feminismo marxista.

Não é porque a teoria está fundamentada no discurso escrito que ela tenha que

acabar aí. O feminismo pode usar a arte para se manifestar. Pode ocupar corpos através de

imagem, som e ritmo e pode usar também a oralidade para se difundir. Isso significa tirar o

feminismo de dentro dos muros da academia, dos livros, das revistas empoeiradas. É
126

expandir o pensamento feminista para além de grupo seleto de mulheres e homens

acadêmicos, geralmente brancos, com origem em classes privilegiadas (hooks, 2019). Por

meio de uma nova linguagem, as chances de que o feminismo chegue à lavadeira, à

vendedora ambulante da praia, à dona de casa, à diarista são consideravelmente

aumentadas.

O Teatro do Oprimido e, em especial, o Teatro das Oprimidas representam uma

nova linguagem. Por meio da expressão artística, essas metodologias propõem o

reconhecimento de opressões, compreensão do contexto social que as sustentam e

construção coletiva de uma saída, um caminho de luta por uma sociedade justa. É uma

oportunidade de tornar o feminismo mais acessível e vivê-lo na prática. É uma maneira de

reconhecer as mulheres usuárias da política de assistência social e importância que têm na

luta pela revolução.

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta

com ela”44. Estando na base da pirâmide da sociedade capitalista, as mulheres negras são as

que mais sofrem com o nó imbricado de opressões de gênero, raça e classe. Ao passo que

mulheres negras se movimentam e quebram suas amarras, o restante da pirâmide se

desestabiliza. Já não são elas mais que sustentam a base do capitalismo.

Essas mulheres estão buscando atendimento nos CRAS, CREAS, equipamentos da

política de assistência social. Desse modo, não se trata só de propor uma metodologia de

trabalho com as mulheres usuárias da política pública, mas de construir com elas

ferramentas para leitura crítica e transformação da realidade.

Não se pretende, com essa pesquisa, esgotar todas as possibilidades de trabalho

com TO e Teatro das Oprimidas junto às mulheres e/ou as populações mais

vulnerabilizadas. Justamente por isso, acredita-se que algo que pode contribuir para fazer

44
Discurso de Angela Davis durante a conferência de abertura da Escola de Pensamento Feminista Negro,
em 17 de julho de 2017, na cidade de Cachoeira-BA.
127

avançar esse acúmulo é pensar a utilização dessas metodologias nas escolas, com as

crianças e adolescentes, em conselhos comunitários, igrejas, em coletivos de jovens, de

modo que o debate sobre a violência contra a mulher (que espontaneamente emerge dentre

o rol de opressões) possa ser amplificado.

Da mesma forma que o combate ao racismo é um trabalho de todos, tanto de

pessoas negras, que podem se conscientizar dos processos históricos para não

reproduzi-los, quanto de pessoas brancas, que devem se responsabilizar criticamente pelo

sistema de opressão que as privilegia historicamente (Ribeiro, 2019), é preciso “pensar em

educação feminista como algo importante na vida de todo mundo” (hooks, 2000, p. 46).

Avançar com a ampliação do pensamento feminista significa alcançar além da palavra

acadêmica e até mesmo da palavra escrita. O Teatro do Oprimido e o Teatro das Oprimidas

se colocam como metodologias democráticas e aliadas da educação feminista, do combate

ao racismo, do enfrentamento à violência de gênero.


128

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135

Apêndice

Planejamento de oficina

Eu sou psicóloga de um Centro de Referência de Assistência Social - CRAS45, da

cidade de Natal/RN. Majoritariamente, o público que atendo todos os dias são mulheres,

que de uma forma muito frequente e naturalizada relatam vivências de violência de gênero.

Após alguns anos ouvindo e intervindo em tantas histórias de vida, pareceu-me imperioso

buscar compreender a concepção dessas mulheres sobre as determinações de ser mulher no

contexto de suas particularidades e em um contexto estruturado pelo patriarcado. Na busca

por essa compreensão, foram-se definindo os questionamentos que guiaram a construção

dessa pesquisa: Como (ou se) as mulheres percebem que suas particularidades, seu

contexto de vida - machista, violento, patriarcal - interferem na construção de suas

singularidades, de suas vivências?

Pensando em como abordar questões relacionadas a esse tipo de violência de forma

sensível, criativa, com potência de transformação, fui arrebatada pelo método do Teatro do

Oprimido. Em seu livro Raízes e Asas, Bárbara Santos (2016, p. 123) afirma que o Teatro

do Oprimido é um “método que estimula o diálogo, através da intervenção direta na ação

teatral, com vistas à análise e à compreensão da estrutura social representada e a busca de

meios concretos para ações efetivas que levem à transformação da realidade”. Pareceu-me

uma combinação poderosa unir a opressão vivida pelas mulheres com um método que

estimula repensar o cotidiano e transformar a realidade.

Assim, inspirada pela potência do TO e mergulhada em uma realidade de trabalho

em que a violência contra a mulher se apresenta de forma tão diária e naturalizada, fiz um

planejamento de intervenção usando jogos do arsenal do Teatro do Oprimido e também a

proposta do Teatro-Fórum. A expectativa é de que nos encontros se construa um espaço

45
O CRAS faz parte do Sistema Único de Assistência Social e é um equipamento de desenvolvimento dos
serviços socioassistenciais da proteção social básica.
136

reflexivo, capaz de desvelar os mecanismos de produção da opressão/violência contra a

mulher presentes nas histórias do coletivo. Além disso, pretende-se descobrir táticas e

estratégias para evitar e/ou superar essas opressões, gerar rupturas nos discursos e práticas

hegemônicas que tanto oprimem e violentam as mulheres. Por fim, almeja-se estimular a

atuação cidadã com a descoberta de potencialidades individuais e coletivas. Desse modo, a

semente plantada durante os jogos, o fórum, pode crescer e se transformar em estímulo

para a ação concreta na vida real.

A proposta abaixo detalhada segue a linha temática de questões de gênero e foi

pensada tendo como público alvo mulheres usuárias da política de assistência social a nível

municipal, mais especificamente mulheres que sejam atendidas por equipamentos como

Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência

Especializados de Assistência Social (CREAS). O número estimado de participantes desta

oficina é de 15 mulheres, podendo variar conforme a demanda e contexto. A ideia de se

trabalhar com o Teatro do Oprimido do âmbito da Política de Assistência Social surgiu

com base na minha experiência de trabalho, atendendo inúmeras mulheres e ouvindo delas

o quanto a violência de gênero se apresentava como um elemento constante em suas vidas.

O planejamento foi pensado para que ocorra em três etapas: oficinas de

sensibilização ao Teatro do Oprimido; Fórum; e encontro de fechamento e avaliação. O

objetivo da primeira etapa é apresentar às mulheres o método do Teatro do Oprimido e

construir, de forma coletiva, um resultado estético para a temática da opressão. A partir da

construção grupal do que representa para as participantes a opressão, será montada,

também coletivamente, uma esquete. Essa pequena cena deverá representar a opressão

escolhida pelas participantes e o seu final precisa ser de fracasso. A opressão precisa

acontecer. A proposta é que a esquete seja o ponto de partida para a segunda etapa da

intervenção: criação de um fórum.


137

O Teatro-Fórum é uma das técnicas teatrais que compõem o método do Teatro do

Oprimido. Sua metodologia permite que a barreira entre palco e plateia seja destruída e que

o diálogo direto seja implementado. A cena criada pelo grupo de mulheres será apresentada

para seus convidados e suas convidadas e ao final o público é convidado a pensar em como

mudar o final da história contada, como romper a opressão encenada. A cena se repete,

mas dessa vez, ao público é possível entrar em cena e intervir no lugar de uma das atrizes

na intenção de evitar/combater a opressão e dar um novo desfecho à história.

Encerrado o fórum, segue-se para a etapa final de fechamento e avaliação. Nesse

momento, a ideia é ouvir das mulheres participantes como foi a vivência de todo o

processo e fazer uma avaliação geral da intervenção.

É importante destacar que apesar deste planejamento estar pronto, finalizado, isso

não significa que não pode ser alterado. Muito pelo contrário! É uma ideia inicial apenas,

que pode, e deve, ser alterada conforme a necessidade. Os jogos escolhidos são caminhos

para pensar o processo de criação e discussão da temática, mas não são os únicos

caminhos. O arsenal do TO é extenso e há diversas outras possibilidades de abordar o

tema. A cada encontro é preciso que haja sensibilidade e flexibilidade para acolher as

contribuições do grupo, para perceber suas reações, e se necessário recalcular a rota.

Entende-se o processo como algo fluido, dinâmico. Os jogos e exercícios vão se colocando

como resposta ao movimento do grupo nos encontros anteriores. Este planejamento nada

mais é que um guia - passível de sofrer alterações - para se debater questões de gênero e

violência contra a mulher.

Segue abaixo detalhamento das etapas.

1ª etapa: Oficinas de sensibilização ao Teatro do Oprimido

Total de encontros: 5 Duração: 2h cada encontro


138

1º dia:
No primeiro encontro do grupo, pretende-se apresentar a proposta global da
intervenção, com suas etapas e seus objetivos, bem como conhecer as participantes do
grupo, ouvir suas expectativas em relação aos encontros. Além disso, serão conduzidos
jogos do arsenal do teatro do oprimido, tanto para mediar a apresentação das participantes,
quanto para já sensibilizá-las em relação à metodologia que guiará os encontros.

Jogo 1: Batizado mineiro


Descrição: participantes em círculo; cada uma, em sequência, dá dois passos à frente, diz
seu nome, em seguida diz uma que corresponda a uma característica que possuiu ou crê
possuir, fazendo um movimento rítmico que corresponda a essa palavra. As demais
participantes repetem duas vezes: nome, palavra e movimento. Quando já tiverem passado
todas, a primeira volta, mas agora numa posição neutra, são os demais que devem se
lembrar da palavra, nome e gesto.

Jogo 2: Contrário de Jackson


Descrição: participantes circulam livremente pelo espaço, buscando ocupá-lo de modo a
não gerar concentração em alguns pontos ou espaços vazios. O/a diretor/a indica que
deve-se fazer o contrário da ordem expressa. Por exemplo, ao verbalizar a ordem “andar”,
deve-se parar. Ao contrário, ao ouvir a ordem “parar”, deve-se andar. Os pares de ordem
podem ser: andar/parar, pular/abaixar, dizer o próprio nome/gritar.

Jogo 3: Caminhadas
Descrição: seguir como continuidade do jogo anterior. Participantes seguem circulando
livremente pelo espaço e em certo momento pede-se que andem como se estivessem em
câmera lenta; como animais (chimpanzé, camelo, elefante…); que experimentem ritmos
diferentes de caminhada; como se estivessem andando na lua; em brasa; em gelo; como
presidente; como um empresário; como uma dona de casa; como uma modelo; como uma
professora; como uma pessoa em situação de rua… Ao fim do jogo, explorar com o grupo
como foi a experiência do jogo e as possíveis sensações que ele despertou.
Fechamento
Pegando o gancho da discussão do último jogo, conduzir ao fechamento do encontro,
perguntando como foi para as participantes a experiência, como elas saem do encontro.
Finalizar com um último jogo, breve: a chuva italiana (segue descrição abaixo).
139

Jogo 4: Chuva italiana


Descrição: em círculo, participantes simulam, inicialmente batendo um dedo na palma da
mão, o som de chuva. Acrescenta-se mais um dedo, em seguida outro… Até que se esteja
batendo palma com palma. A chuva evoluiu para uma tempestade. Ao chegar ao ápice, a
tempestade vai diminuindo à medida que vão diminuindo as quantidades de dedos na
palma da mão. A diminuição é gradativa, até que a chuva cesse.

2º dia:
No 2º encontro, a proposta é seguir com a experimentação de jogos do arsenal do
TO, com foco em usar a potencialidade do corpo para criar uma narrativa, com o jogo
“completar a imagem”, e experimentar a multiplicidade de sentidos que uma palavra pode
ter, com “quantos “as” existem em um “a”?.

Jogo 1: Badu
Descrição: em círculo, inicia-se comum uma base simples de batidas de dois dedos na
palma da mão e palma da mão no peito, dando o ritmo básico de batidas do coração para
acompanhar a apresentação dos nomes dos participantes (uma forma de relembrar a
apresentação do encontro anterior). Em seguida, incluem-se outros elementos sonoros,
como os pés, ampliando a quantidade de batidas: duas batidas com os dois dedos na palma
da mão, duas com a palma da mão no peito, duas batidas com os pés no chão (um pé de
cada vez). Depois disso, passa-se a tirar uma parte do som, criando intervalo ao não bater a
palma da mão no peito ou os dedos na palma da mão ou os pés no chão. Por fim,
começa-se a experimentar o movimento dentro do círculo: para a direita, para a esquerda,
para frente, para trás.

Jogo 2: Floresta de sons


Descrição: o grupo se divide em duplas: uma parceira será a cega e a outra, a guia. Esta
emite um som com a voz, a qual pode repetir o quanto quiser e também variar o volume. O
objetivo é que a pessoa de olhos fechados possa circular pela sala seguindo seu guia e,
assim, despertar e estimular a função seletiva da audição. Na sequência, trocam de posição:
quem guiou passa a ser guiada e vice-versa.

Jogo 3: Quantos “as” existem em um “a”?


140

Descrição: Em círculo. Uma participante vai até o centro e exprime um sentimento,


sensação, emoção ou ideia, usando apenas a letra “a”, com todas as inflexões, movimentos
ou gestos com que for capaz de se expressar. Todas as outras participantes, no círculo,
repetirão o som e a ação duas vezes, tentando sentir também aquela emoção, sensação,
sentimento ou ideia que originou o movimento e o som. Outra participante vai ao centro e
expressa outros sentimentos, sensações, ideias ou emoções, seguido novamente pelo grupo.
Quando muitas já tiverem criado os seus próprios “as”, o/a diretor/a passa às outras vogais
(e, i, o, u), depois passa a palavras habitualmente usadas no dia-a-dia, como “sim”, “não”,
“porquê”.

Jogo 4: Completar a imagem


Descrição: Duas participantes se cumprimentam, apertando-se as mãos. Congela-se a
imagem. Pede-se ao grupo que diga quais os possíveis significados que a imagem pode ter:
é um encontro de negócios, uma despedida de amigas… Várias possibilidades são
exploradas. Imagens são polissêmicas e os seus significados dependem não só delas
mesmas, mas dos observadores.
Um dos atores da dupla sai, e o diretor pergunta à plateia sobre significados
possíveis da imagem que resta, agora solitária. O diretor convida a participante que o
desejar a entrar na imagem em outra posição - a primeira continua imóvel -, dando-lhe um
outro significado. Depois sai a primeira participante e uma quarta entra na imagem, sempre
saindo uma e ficando a outra.
Depois dessa demonstração, todas se juntam em pares e começam com uma
imagem de um aperto de mãos. Uma parceira se retira da imagem, deixando a outra com a
sua mão estendida. Agora, em vez de dizer o que pensa que esta nova imagem significa, a
parceira que saiu retorna e completa a imagem, mostrando o que vê como um possível
significado seu; coloca-se numa posição diferente, com uma relação diferente com a
parceira que está com a mão estendida, mudando o significado da imagem.
Então, a segunda parceira sai desta nova imagem, observa e, depois, reentra na
imagem e a completa, mudando o significado outra vez. E assim por diante, uma parceira
de cada vez, estabelecendo um diálogo de imagens.

Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.
141

3º dia:
No 3º encontro, o objetivo é sensibilizar as participantes quanto à percepção de
que nenhuma estrutura espacial é inocente: todas têm um significado e uma desigual
distribuição de poder. A partir deste encontro pretende-se inserir a temática da opressão e
investigar os sentidos a ela atribuídos pelas participantes.

Jogo 1: METOCA
Em círculo, cria-se um ritmo comum com o estalar dos dedos. Em seguida,
segue-se no ritmo, mas elimina-se som e movimento, até estarem todas paradas, mas
conscientes do ritmo. O grupo segue conectado por um ritmo “invisível” que foi
internalizado. O jogo consiste em, na sequência do círculo, cada pessoa saltar dentro do
ritmo estabelecido. Quando todas tiverem saltado individualmente, inicia-se a segunda
rodada. Dessa vez, saltam dois a dois, depois três a três, quatro a quatro até cinco a cinco.
No caso do grupo cometer algum erro, retorna-se para a sequência inicial: um a um. O
desafio é fazer de um a cinco sem intervalo.

Jogo 2: O ritual
Descrição: Solicitam-se seis voluntárias. Três representarão mulheres e as outras três,
homens. Pede-se que construam o modelo de uma casa mais ou menos normal, uma casa
em que qualquer uma delas pudesse viver. Em seguida, todas desocupam a “casa”, exceto a
primeira mulher (representando as mulheres). Pede-se que mostrasse rapidamente todos os
movimentos que faria ritualisticamente desde a hora em que chegava em casa até a hora de
dormir. Gestos e movimentos como demonstração não realística; isto é, as participantes
devem mostrar o que comem, por exemplo, como um gesto rápido de comer, e então
devem partir para a próxima ação sem entrar em detalhes. A cena toda, desde a chegada à
casa até a hora de dormir, deve durar em média três ou quatro minutos.
Após a segunda e terceira mulheres apresentarem, uma de cada vez, suas cenas,
inicia-se o ritual dos homens (no caso do grupo, especificamente, da representação dos
homens pelas mulheres). Ao fim, propõe-se uma segunda dinamização. Dessa vez, as seis
participantes retornam ao cenário e fazem os mesmos movimentos anteriores de forma
acelerada, como se estivessem em um daqueles filmes mudos, onde todo mundo parece
estar correndo.
142

Terminado o jogo, abrir plenária para debater as impressões das participantes sobre
as cenas formadas.

Jogo 3: O grande jogo do poder


Descrição: Uma mesa, seis cadeiras colocadas lado a lado com a mesa e, em cima da mesa,
uma garrafa. As participantes são convidadas para, uma de cada vez, arranjar os objetos de
maneira que cada uma das cadeiras ganhe uma posição superior, mais forte, de maior
evidência ou maior poder, em relação às outras, à mesa e à garrafa. Todos os objetos
podem ser movidos e colocados uns sobre os outros, ou ao lado, ou em qualquer lugar,
porém nenhum pode ser movido para fora do espaço. O grupo trabalhará, sem interrupção,
um grande número de variações nas estruturas possíveis, tentando verificar como uma
estrutura espacial contém pontos fortes e fracos: trata-se sempre de uma estrutura de poder.
Depois de cada organização do espaço, cada um deve dizer por que sente que esta
ou a outra é mais forte, mais poderosa: claro que não é preciso chegar a um acordo - a
pluralidade de sentimentos e opiniões e que se torna estimulante e criativa.
Escolhe-se depois uma estrutura determinada, que pode ser uma das que foram
criadas ou outra qualquer, como, por exemplo, uma cadeira atrás da mesa diante de dois
pares de cadeiras e mais uma no meio, atrás, e pede-se às participantes que, uma a uma,
entrem nessa estrutura espacial e coloquem seu próprio corpo na posição onde poderá
receber dessa estrutura o máximo de poder: sentado em uma das cadeiras, de pé ou debaixo
da mesa, onde? Quando se chega à escolha de uma das posições, as demais participantes
são convidadas, sempre uma a uma, a entrar na estrutura onde já está a participante que fez
a imagem mais poderosa e, colocando seus próprios corpos em algum lugar, tentar
conquistar o poder para si. Quando for esse o caso, as duas participantes ficam imóveis em
suas posições, e uma terceira tenta conquistar para si o poder que a segunda arrebatou.
Depois, sempre que alguém conquista esse poder, permanece em cena, aumentando o
número de pessoas que participam da estrutura espacial.

Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.

4º dia:
143

No 4º encontro, a proposta é desenvolver coletivamente o significado de opressão46,


fazer uma demonstração de Teatro-Fórum a fim de introduzir a construção da dramaturgia
do fórum a ser apresentado ao final da oficina.

Jogo 1: Cinco palavras em imagem


Descrição: O tema “opressão” é lançado. Cinco voluntárias se apresentam para criar
imagens relacionadas ao tema. Depois de fazer as cinco imagens, é solicitada uma palavra
para cada imagem. Ao invés de usar os números 1, 2, 3, 4 e 5 para identificar as imagens
quando dinamizamos o jogo, serão usadas palavras. Quando as imagens estão
memorizadas, propõem-se sequências de palavras que criam um certo sentido intrínseco
quando associadas. Solicita-se que façam a transição de uma imagem a outra com
consciência ou em câmera lenta para perceberem a conexão temática. Desdobramento:
reunidas em grupos, as participantes podem criar pequenas performances usando duas ou
três palavras, e forma a desenvolver o sentido criado a partir da associação entre elas.

Jogo 2: Máquina rítmica


Descrição: Uma participante vai até o centro e imagina que é uma peça de uma
engrenagem de uma máquina complexa. Faz um movimento rítmico com seu corpo e, ao
mesmo tempo, o som que essa peça da máquina deve produzir. As outras participantes
prestam atenção, em círculo, ao redor da máquina. Uma segunda participante se levanta e,
com seu próprio corpo, acrescenta uma segunda peça à engrenagem dessa máquina, com
ouro som e outro movimento que sejam complementares e não idênticos. Uma terceira
participante faz o mesmo, e uma quarta, até que o grupo todo esteja integrado em uma
mesma máquina, múltipla, complexa, harmônica.
Quando todas estiverem integradas à máquina, o diretor diz à primeira participante
para acelerar o ritmo - todas devem tentar seguir essa mudança no andamento. Quando a
primeira máquina estiver próxima à explosão, o diretor determina que a primeira
participante diminua o ritmo até que todas as pessoas terminem juntas o exercício.
Em seguida, todas as participantes devem fazer o mesmo exercício, mas desta vez
com a seguinte modificação: devem imaginar uma máquina de ódio, depois uma de amor.

46
É importante fazer uma breve discussão sobre opressão, apresentando-a como uma força que se
materializa, por exemplo, tanto na violência física, psicológica, quanto nas regras sociais impostas que
impedem muitas vezes as mulheres de ocupar certos espaços, terem certas posturas.
144

Por fim, são inseridos os temas mais discutidos na atividade anterior, as palavras que
geraram mais interesse no grupo.

Jogo 3: Os quatro que marcham e um que dança


Descrição: Quatro pessoas marcham de maneira quase militar; uma quinta prefere bailar.
As quatro a jogam no chão. Ela se levanta arrependida e se integra ao grupo. Agora são
cinco pessoas que marcham. O que essa imagem diz a você? Projete tudo aquilo que quiser
nesta imagem dinâmica e tente não se integrar com os outros quatro. O que faria no lugar
da protagonista? Como manteria a sua vontade de dançar? Você pode oferecer 15, 20
respostas, ou até mais. Esse é precisamente o objetivo do Teatro do Oprimido: existe
sempre um modo de se quebrarem as opressões, em todas as situações. O importante não é
encontrar a única boa solução, mas descobrir o maior número possível de alternativas.

Fechamento:
Conversar sobre a experiência dos jogos, o que pode ter suscitado, como as
participantes saem do encontro.

5º dia:
No 5º encontro a proposta é construir coletivamente a dramaturgia do
Teatro-Fórum.

Jogo 1: Contar sua própria história


Descrição: Com base nas vivências do dia anterior, das palavras e imagens levantadas, uma
participante conta uma história que realmente lhe aconteceu; ao mesmo tempo, as suas
companheiras ilustram a história que ela vai desenvolvendo. A participante que narra não
pode interferir nem fazer correções durante o exercício. No fim se discutirão as diferenças.
A narradora terá a oportunidade de comparar as suas reações com as de suas
companheiras.
Após os relatos de algumas histórias, o grupo elege uma, a que mais representa o
sentido de opressão para o grupo, para ser desenvolvida como Fórum. Em seguida, em
pequenos grupos, criam-se imagens e/ou coreografias que representem a raiz do problema
identificado na história particular. Estimulando a capacidade de comunicação por meio da
metáfora, vão se conectado as imagens a fim de construir uma cena de teatro-fórum
145

respeitando a sua estrutura dramática e elementos fundamentais, como: contextualização;


conflito; protagonista; alianças; contra preparação; motivação; caracterização; estratégias
de luta; crise chinesa; e fracasso.
Com a montagem da cena, o grupo se prepara para apresentá-la para convidados e
convidadas em formato de fórum.

2ª etapa: Fórum

Total de encontros: 1 Duração: 3h

Pretende-se que essa esquete seja apresentada para somente convidados e


convidadas do grupo. Tornar o público seleto a partir do convite das próprias participantes
é uma forma de protegê-las minimamente de qualquer exposição que o Teatro-Fórum
possa causar. De todo modo, um dos protocolos para a realização de um fórum é a
exposição de suas regras antes do início da apresentação. Dentre essas regras está o
combinado com o público sobre a confidencialidade e respeito às falas das pessoas no
momento do fórum. Mesmo diante desses cuidados e com a ciência de que o caso
apresentado é fictício, inspirado na realidade, caso aconteça alguma situação que coloque
alguém em risco, o fórum deverá ser interrompido imediatamente e as devidas
providências, tomadas (podendo variar entre mediação de conflito e intervenção da guarda
municipal, em casos mais extremos).
Mediante esse processo, objetiva-se realizar uma construção coletiva entre todos os
envolvidos no fórum. Pretende-se alcançar a compreensão dos mecanismos pelos quais
uma opressão/violência se produz, a descoberta de táticas e estratégias para evitá-la ou
superá-la e o ensaio dessas práticas. Em alguma proporção, busca-se a produção de
diversas rupturas nos discursos e práticas hegemônicas. Desse modo, o Teatro do Oprimido
se coloca como ponto de partida para a atuação cidadã - a descoberta de potencialidades
individuais e coletivas, mediada pelo método do TO, pode se transformar em estímulo para
a ação concreta na vida real (Santos, 2016).

3ª etapa: Fechamento e avaliação do grupo


146

Total de encontros: 1 Duração: 3h

Ao fim do fórum, a proposta é que seja conduzida uma roda de conversa para
debater e acolher o que pode surgir durante a apresentação. A partir disso, é possível
pensar coletivamente como aquelas estratégias do fórum podem se concretizar na vida das
pessoas da comunidade.
Por fim, dessa vez somente com as participantes do grupo, será conduzido um
encontro de avaliação de todo o processo, desde os encontros iniciais, até a concretização
do fórum.

Avaliação

Avaliadora:

1. Como você avalia o desenho da oficina em relação aos pressupostos do TO?

[ ] adequado [ ] adequado, com ressalvas [ ] inadequado


a fazer

Justificativa:

2. Como você avalia a escolha dos jogos e a conexão entre eles?

[ ] adequada [ ] adequada, com ressalvas [ ] inadequada


a fazer

Justificativa:

3. Os objetivos da oficina estão adequados à proposta metodológica?

[ ] adequados [ ] adequados, com [ ] inadequados


ressalvas a fazer

Justificativa:

4. Como você avalia a exequibilidade da proposta, considerando a escolha dos jogos,


147

tempo de duração de cada encontro?

[ ] alta [ ] média [ ] baixa

Justificativa:

5. Ideias e sugestões:

6. Resultado da avaliação global e recomendação final:

Referências bibliográficas

Santos, B. (2016). Teatro do Oprimido: Raízes e asas - uma teoria da práxis. Rio de
Janeiro: Ibis Libris.

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