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Múltiplos olhares

Organizadores

Paulo Roberto Padilha


Sheila Ceccon
Priscila Ramalho

Múltiplos olhares 1
Múltiplos olhares

Organizadores

Paulo Roberto Padilha


Sheila Ceccon
Priscila Ramalho

São Paulo, 2010

Múltiplos olhares 3
Instituto Paulo Freire
Alexandre Munck Diretor Financeiro
Ângela Antunes Diretora de Gestão do Conhecimento
Francisca Pini Diretora Pedagógica
Moacir Gadotti Presidente do Conselho Deliberativo
Paulo Roberto Padilha Diretor de Desenvolvimento Institucional
Janaina Abreu Coordenadora Gráfico-Editorial
Lina Rosa Preparadora de Originais
Carlos Coelho Revisor
André Rodrigues de Oliveira Pesquisa Bibliográfica
Igor Arrais Padilha e Paula Santos Identidade Visual
Marcela Weigert Capa, Projeto Gráfico
Renato Pires Diagramação e Arte-Final
Eliza Mania Produção Gráfico-Editorial
Brasilgrafia Impressão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Município que educa : múltiplos olhares / organizadores Paulo Roberto Padilha,


Sheila Ceccon, Priscila Ramalho. -- São Paulo : Editora e Livraria Instituto
Paulo Freire, 2010.
Precisamos demonstrar que respeitamos as crianças, suas
Bibliografia. professoras, sua escola, seus pais, sua comunidade, que
ISBN 978-85-61910-70-9 respeitamos a coisa pública, tratando-a com decência.
Só assim podemos cobrar de todos o respeito também às
1. Cidadania 2. Educação 3. Municípios -Governo e administração - Brasil carteiras escolares, às paredes da escola, às suas portas. Só
4. Planejamento educacional - Brasil 5. Sociologia educacional I. Padilha, Paulo assim podemos falar de princípios, de valores.
Roberto. II. Ceccon, Sheila. III. Ramalho, Priscila.
Mudar a cara da escola implica também ouvir meninos
10-12380 CDD-370.981 e meninas, sociedades de bairro, pais, mães, diretoras de
Índices para catálogo sistemático: escolas, delegados de ensino, professoras, supervisoras,
comunidade científica, zeladores, merendeiras etc. Não se
muda a cara da escola por um ato de vontade do secretário.
1. Brasil : Gestão educacional municipal 370.981
Paulo Freire,
2. Brasil : Municípios : Gestão pública : Melhoria na educação 370.981 A educação na cidade, p. 34-35

Editora e Livraria Instituto Paulo Freire


Rua Cerro Corá, 550 | Lj. 01 | 05061-100 | São Paulo | SP | Brasil
T: 11 3021-1168
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livraria@paulofreire.org
www.paulofreire.org
SUMÁRIO

Município que Educa: caminhos percorridos,


itinerários sonhados (Apresentação)
Rcwnq"Tqdgtvq"Rcfknjc.......................................................... 09

Povo soberano, povo que educa


Oqcekt"Icfqvvk ...................................................................... 17

Educação como direito no Município que Educa


Rcwnq"Tqdgtvq"Rcfknjc.......................................................... 23

Articulações em rede: a educação como elo entre as


instituições e os sujeitos na municipalidade
Rtkueknc"Tcocnjq ................................................................... 31

A participação social no Município que Educa


Tgikpcnfq"Tqpeqpk ................................................................ 37

Espaço da educação e espaço da vida


Ncfkuncw"Fqydqt ................................................................... 45

Educação integral e comunitária: o remirar-se


da cidade e da escola
Lcswgnkpg"Oqnn"
Iguw pc"fg"H vkoc"Gnkcu"Ngengte ......................................... 51

Crianças e adolescentes/juventudes no Município que Educa


Htcpekuec"Rkpk"
Tqdgtvc"Uecvqnkpk................................................................... 59

Município que Educa e diversidade cultural:


uma questão de direito
Octkn¤pfkc"Htc|«q ................................................................ 67
Município que Educa: ação cultural por uma APRESENTAÇÃO
nova cultura política
Nwcpc"Xknwvku ......................................................................... 73 Município que Educa: caminhos percorridos,
itinerários sonhados
A paisagem do município como território educativo
Gwngt"Ucpfgxknng"L¿pkqt ........................................................ 81 Em 30 de janeiro de 2009, lançamos a Rede Município que Educa no
contexto do Fórum Mundial de Educação (FME) e do Fórum Social Mun-
A sustentabilidade no Município que Educa dial (FSM), em Belém, Estado do Pará. Tive o prazer de propor e partici-
Ujgknc"Egeeqp......................................................................... 87 par de uma mesa de diálogos coordenada pela professora Francisca Pini, na
qual discutimos sobre alguns temas que, naquele momento, ajudavam-nos
Comunicação e mídias no Município que Educa a fundamentar a criação de uma rede social que nascia no clima dos citados
Kucdgn"Qtqhkpq ........................................................................ 93 Fóruns, sempre na busca de outros mundos possíveis e de outras educações
possíveis. Ali apresentei, originalmente, “A concepção da proposta Municí-
O software livre no contexto de um Município que Educa pio que Educa: nova arquitetura da gestão pública”, que, logo depois, deu ori-
Cpfgtuqp"Hgtpcpfgu"fg"Cngpect........................................ 101 gem a um Caderno de Formação publicado pela Editora e Livraria Instituto
Paulo Freire, intitulado Município que Educa: nova arquitetura da gestão
pública (2009, Cadernos de Formação, 2). Naquela mesa discutimos tam-
Plano Municipal de Educação
Igpw pq"Dqtfkipqp............................................................. 109
bém os temas “Município, Educação e Sustentabilidade” (Moacir Gadotti),
“Eixos da Educação Cidadã na perspectiva do Município que Educa” (Ân-
gela Antunes), “Diversidade Cultural no Município que Educa” (Marilândia
Governabilidade democrática no Município que Educa
Lqufi"Gwuv swkq"Tqo«q.........................................................115
Frazão, representando a Secretaria Municipal de Educação de Osasco, SP),
“Estado e Regime de Colaboração com o Município que Educa: uma experi-
ência em Educação de Jovens e Adultos (EJA)” (Maria de Jesus Gaspar Lei-
Ubuntu: viver, conviver e aprender no município
Ectnqu"Tqftkiwgu"Dtcpf«q ................................................. 121
te, secretária de Projetos Especiais do Estado do Maranhão) e “Municípios
Educadores Sustentáveis” (Carlos Rodrigues Brandão).
Escola, comunidade e família no Município que Educa Criada a rede social www.municipioqueeduca.org, ainda com algu-
åpignc"Cpvwpgu.................................................................... 127 mas imperfeições que, aos poucos, foram e ainda estão sendo superadas,
começamos a ampliar as nossas reflexões sobre o aperfeiçoamento da ges-
Povo que educa, Município que Educa: novos desafios tão pública, visando à superação de todo e qualquer tipo de preconcei-
Oqcekt"Icfqvvk .................................................................... 137 to, de injustiça social e sugerindo processos cada vez mais democráticos,
participativos, éticos e transparentes, para o melhor atendimento possível
das necessidades das populações locais abrangidas pelas municipalida-
des, sempre considerando a indispensável e inevitável interconexão com
tudo o que acontece no planeta e no próprio município. Até por isso, a
máxima pensar globalmente e agir localmente já nos parecia superada,

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pois tanto na dimensão local, como na global ou planetária, devemos No Brasil, a autonomia dos municípios foi significativamente am-
agir, pensar, conviver, fazer e ser, exercendo plenamente a nossa vida e pliada com a Constituição Federal de 1988, que também abriu espaço
a nossa cidadania. para a cooperação da comunidade no planejamento municipal. Além
disso, o poder local foi fortalecido com o crescimento dos movimentos
Importante destacar que a Rede Município que Educa é cria-
sociais, das Organizações Não Governamentais (ONGs) e das experi-
da como um espaço de articulação e de intercâmbio de experiências
ências participativas dos governos democráticos e populares. O discurso
para viabilizar o enfrentamento de desafios para questões estruturais
em favor das ações integradas e intersetoriais é cada vez mais presente,
da gestão pública municipal, favorecendo o desenvolvimento local e
apesar de continuar sendo um desafio fazer com que as pessoas e ins-
superando a realidade que muitas vezes ainda é injusta. E ela surge a
tituições não apenas dividam a mesma mesa, mas entreguem-se a um
partir das aprendizagens de importantes iniciativas e de inúmeros es-
diálogo efetivo e a ações verdadeiramente colaborativas.
tudos, propostas e experiências, nacionais e internacionais, tais como
as articulações da Educação Popular desde os anos sessenta do século Portanto, o Programa Município que Educa surge neste contex-
20; dos movimentos sociais na América Latina em reação às ditaduras to como uma iniciativa do Instituto Paulo Freire (IPF), da Universitas
militares da década de setenta; da Rede Cidades Educadoras, criada em Paulo Freire (Unifreire) e da Casa da Cidadania Planetária, estas duas,
Barcelona em 1990; da Escola Pública Popular que o educador Paulo instituições mantidas e afiliadas ao IPF.
Freire (1921-1997) inaugurou em São Paulo no final da década de oi-
O Programa Município que Educa busca potencializar as intencio-
tenta, dando origem ao Movimento da Escola Cidadã que se fortaleceu
nalidades educativas dos diversos sujeitos sociais e fortalecer processos
até os dias atuais; da experiência do Programa Municípios Educadores
de gestão municipal integrada e participativa. Esta ênfase educativa fa-
Sustentáveis, do Ministério do Meio Ambiente (MMA); do Tratado de
vorece um desenvolvimento mais sustentável e inclusivo da municipa-
Educação Ambiental para Municípios Sustentáveis e Responsabilidade
lidade, pois o intercâmbio de saberes, a sensibilização e a tomada de
Global, criado desde a Conferência Mundial Eco-92, dentre outras.
consciência criam as condições para uma cidadania efetiva.
Com o intuito de deixar mais claros os nossos objetivos, de ja-
O Município que Educa reconhece e potencializa a dimensão edu-
neiro a outubro de 2009, o Município que Educa passa a ser um Pro-
cativa das iniciativas locais, incentiva a participação ativa da comuni-
grama, no sentido de ampliar o seu alcance e de poder vir a integrar,
dade e integra os esforços dos diferentes setores de forma orgânica e
com o tempo, diferentes aproximações, parcerias, projetos, iniciativas
democrática. Noutras palavras, é um município onde poder público
e ações com intencionalidades educativas, intersetoriais e intermuni-
e sociedade civil trabalham juntos, de forma colaborativa e parceira,
cipais, oriundas da aproximação entre Estado e sociedade civil. Nesse
viabilizando o exercício da cidadania ativa.
momento, Priscila Ramalho passa a colaborar na coordenação deste
Programa. Definimos princípios orientadores e objetivos mais claros As possibilidades de construção de um Município que Educa são
do Município que Educa, num cenário mundial de crises sistêmicas nas tão variadas quanto as realidades brasileiras. Mas, fundamentalmente,
esferas econômica, social, política, ética e ambiental, diante do qual deve ser um projeto coletivo que tem como ponto de partida um pla-
ganham espaço propostas alternativas de sustentabilidade baseadas no nejamento dialógico (comunicativo e crítico), compartilhado (com o
fortalecimento da dimensão local e dos processos autônomos, inclusi- envolvimento dos vários segmentos sociais) e ascendente (com atenção
vos, democráticos e multidimensionais. Nas últimas décadas, fala-se especial às demandas e à participação das bases da sociedade).
cada vez mais em gestão municipal compartilhada e ascendente, com Vejamos, a seguir, um conjunto mínimo de características que
a participação ativa e organizada dos diversos segmentos sociais do Es- podem funcionar como princípios para orientar os municípios
tado e da sociedade civil. que queiram caminhar nessa direção:

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1. O município reconhece e valoriza sua ampla dimensão terri-
torial, social e cultural: o centro, a periferia, os setores rurais,
Contribuir com a construção, o acompanhamento e o planeja-
incluindo as diversas culturas e realidades sociais ali presentes.
mento educativo das ações locais, bem como de seus espaços
2. A intencionalidade educativa das iniciativas dos vários su- e tempos, abraçando a diversidade, a pluralidade e contribuin-
jeitos sociais é potencializada e considerada essencial para o do para o exercício da cidadania planetária.
desenvolvimento sustentável e inclusivo da municipalidade.
Ampliar a articulação e a sinergia entre as diferentes áreas
3. As ações locais – de iniciativa do Estado e/ou da socieda- e setores da municipalidade, facilitando encontros e parce-
de civil – devem também ser objeto de um planejamento rias entre eles.
educativo para a formação de todos os sujeitos envolvidos,
Contribuir para a maior interconectividade dos municípios
direta e indiretamente.
em nível regional, nacional e planetário, potencializando par-
4. O processo formativo incorporado pelas ações locais implica cerias em torno de ações nesses vários níveis.
uma visão mais ampla de educação voltada para a constru-
Fortalecer os processos e práticas participativas, sistêmicas e
ção da cidadania ativa, não se restringindo ao desenvolvi-
organizadas, que garantam a inclusão das comunidades urba-
mento de capacidades técnicas.
nas, rurais, do centro, da periferia, das aldeias etc.
5. O atendimento das demandas públicas, associado a processos
Construir e disponibilizar, em diálogo com as demandas
formativos, promove a articulação entre as diversas áreas e
pontuais do município, processos formativos de pessoas e
setores para contemplar as múltiplas dimensões das questões
instituições dos vários setores da municipalidade, na pers-
do mundo contemporâneo. Essa integração evita a sobreposi-
pectiva freiriana, voltados à participação cidadã e à reali-
ção de ações e permite economia de recursos.
zação de pesquisas prático-teóricas com o envolvimento da
6. Os espaços da municipalidade devem ser mapeados, avaliados comunidade municipal.
e fortalecidos como espaços educadores.
Produzir materiais didáticos, paradidáticos e referenciais
7. As ações locais têm de ser pensadas em suas relações com a curriculares prático-teóricos que subsidiem os processos
região, o País e o mundo – contribuindo, assim, para o fortale- educativos, de acordo com as especificidades das demandas
cimento municipal na perspectiva da cidadania planetária. locais, possibilitando, ainda, processos formativos continu-
ados de munícipes autores-escritores e sujeitos de suas pró-
8. As redes sociais são elemento essencial ao desenvolvimento
prias histórias.
do município na medida em que possibilitam o intercâmbio e
a colaboração entre os diferentes sujeitos sociais e contribuem Colaborar com os municípios no registro de suas experiên-
para o exercício da participação cidadã. cias – em textos, vídeos, audiovisuais etc. – como forma de
melhor sistematizá-las e de lhes dar visibilidade pública, em
Tendo como objetivo geral contribuir para o desenvolvimento
cumprimento a uma gestão pública transparente, ética e efe-
das municipalidades, com base na identificação, fortalecimento e mo-
tivamente democrática.
bilização do potencial educativo dos seus espaços e tempos, das ações
dos sujeitos que ali vivem ou atuam e das iniciativas articuladas entre Para alcançar os objetivos acima, este Programa prevê cinco es-
Estado e sociedade civil, o Programa Município que Educa tem os se- tratégias básicas:
guintes objetivos específicos:

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1. Potencializar as relações humanas e sociais, facilitando ações e de contar com a participação do professor Moacir Gadotti, que falou sobre
articuladas entre diferentes áreas e setores, mediante processos o tema “Conceitos e fundamentos do Município que Educa”; do professor
de sensibilização e encontros formativos presenciais e em rede. Carlos Rodrigues Brandão, abordando o tema “Municípios Sustentáveis”;
do professor Ladislau Dowbor, que desenvolveu sua reflexão em torno do
2. Ações locais com projeto educativo, ou seja, influenciar ações
tema “Desenvolvimento Local”; do professor Reginaldo Ronconi, que falou
locais originárias das várias áreas e dos diversos segmentos so-
sobre “Processos de autogestão”; da professora Maria Aparecida Perez (ex-
ciais – visando a que elaborem projetos educativos, constituindo
secretária de Educação do Município de São Paulo), desenvolvendo o tema
um processo de planejamento coletivo e participativo para a for-
“Educação com qualidade social”; da secretária municipal de Educação de
mação de todos os sujeitos envolvidos direta e indiretamente.
Osasco-SP, professora Maria José Favarão, que falou sobre “Gestão Demo-
3. Potencializar espaços educativos e criativos – repensando e crática no Município que Educa” e, finalmente, com a presença de Kátia
reestruturando os espaços da municipalidade, para transfor- Lima, então coordenadora do OP Guarulhos, que fez um relato de experi-
má-los em ambientes mais educativos e criativos. ência sobre o “Orçamento Participativo” naquele município.
4. Potencializar os diferentes tempos do município, que significa Nos meses de novembro e dezembro de 2009, oferecemos um cur-
incorporar a dimensão educativa nas atividades previstas nos ca- so gratuito sobre Município que Educa, a distância, com uma proposta
lendários de eventos e nas agendas dos municípios, de forma que teórico-prática, de forma que os participantes das cinco grandes regi-
cada um desses momentos seja também um tempo de educar. ões do País pudessem exercitar processos de levantamento de dados
5. Pré-cadastro e agendamento indicativo para futuros encon- da realidade, intercambiar experiências de seus respectivos contextos,
tros entre IPF e representantes dos municípios, para que se refletir e exercitar a elaboração de um Plano de Trabalho Articulado
viabilizem eventuais contatos e diálogos mais diretos com a (Plantar). A partir daí, definiram, a título de exercício, prioridades para
equipe do IPF, pós-encontros presenciais, visando à definição os seus respectivos municípios. Foi um curso altamente exitoso, bem
conjunta de projetos locais, incluindo a constituição de gru- avaliado, que incluiu a realização de dois vídeos chats e nos permitiu
pos de trabalho como uma estratégia inicial e operacional do também aprender com a própria experiência.
Programa, de forma a potencializar iniciativas já existentes, Na esteira destes esforços de fortalecimento do Programa Muni-
organizar levantamento de dados, criando uma base de dados cípio que Educa, o Instituto Paulo Freire já desenvolveu alguns projetos
local, definir um Plano de trabalho Articulado e estabelecer de consultoria e assessoria a diferentes instituições e estabeleceu uma
prioridades intersetoriais de curto, médio e longo prazos. parceria com a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educa-
Em 28 de outubro de 2009, o Instituto Paulo Freire realizou o “I En- ção – Seccional São Paulo (Undime/SP), cuja presidenta é a professora
contro Intermunicipal do Programa Município que Educa”, no Casarão Vila Suely Maia. Tivemos a oportunidade de lançar o Programa em todo o
Penteado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Estado de São Paulo. De janeiro a outubro de 2010, foram realizados
Paulo (Fauusp), na capital de São Paulo. Neste encontro, estiveram repre- sete grandes encontros regionais nas cidades de Marília, Presidente
sentados 16 municípios e 80 pessoas de diversos segmentos da sociedade Prudente, São Carlos, São José dos Campos, Campo Limpo Paulista,
paulista: gestores municipais, órgãos públicos, ONGs, movimentos sociais, Sorocaba e Mogi das Cruzes, sendo previstos mais dois grandes encon-
institutos e fundações privadas, cidadãos e cidadãs. Discutimos os princí- tros no Município de Osasco no mês de novembro de 2010. Nestes en-
pios e objetivos do Programa e mais uma vez incentivamos o debate e o contros, além do lançamento do Programa Município que Educa junto
intercâmbio de saberes e experiências municipais por meio da rede social. a dirigentes municipais de Educação de mais de 400 municípios que se
Tive o prazer de coordenar e de apresentar as linhas gerais desse Programa fizeram presentes, organizamos também palestras temáticas escolhidas

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pelos próprios municípios, visando à qualidade sociocultural e socio- POVO SOBERANO, POVO QUE EDUCA
Oqcekt"Icfqvvk1
ambiental da educação. Foram todos encontros muito bem avaliados,
que nos permitiram atualizar e aprimorar as bases deste Programa.
Este livro, intitulado “Município que Educa: múltiplos olhares”, é
mais um esforço coletivo para aprimorarmos os fundamentos teórico-
práticos deste Programa, a partir da experiência de diferentes pessoas O educador Paulo Freire (1921-1997) afirma em seu livro Políti-
e instituições que aqui se fazem presentes. ca e educação que a cidade – e por extensão, o município – são edu-
cadores educandos. A cidade e o município educam porque o povo
O leitor encontrará aqui 18 artigos, de diferentes áreas do conhe-
educa educando-se.
cimento, escritos por autores de renome nacional e internacional, que
nos brindam com suas abordagens filosóficas, políticas, pedagógicas, Neste pequeno texto gostaria de retomar certas ideias de Paulo
antropológicas, sociológicas, psicológicas, históricas, urbanísticas, ju- Freire e outras que tenho trabalhado em torno dos conceitos de escola
rídicas, culturais, arquitetônicas, midiáticas, tecnológicas, econômi- cidadã e da cidade educadora, mas, agora, com uma nova ênfase: a do
cas, ambientais, comunitárias, artísticas, poéticas, entre outras, que município educador e a do povo que educa. É impossível separar povo,
nos ajudam, de forma transdisciplinar, a compreender a gestão pública cidade e município. Não há município e cidade sem povo, como não
municipal como desafio estratégico de todos nós. há município, por menor que seja, que não tenha algum núcleo urba-
no. Quando nos referimos à cidade, muitas vezes, estamos falando do
Fica aqui este convite: que durante e após a leitura deste livro, que te-
município. Quando dizemos que Paulo Freire foi secretário de Edu-
nho o prazer de organizar na companhia de Sheila Ceccon e Priscila Ra-
cação na cidade de São Paulo, estamos afirmando que ele ocupou este
malho, coordenadoras deste Programa no Instituto Paulo Freire, possamos
cargo no Município de São Paulo. Ele mesmo escreveu o livro Educa-
refletir sobre as nossas práticas como um desafio de nossa própria formação
ção na cidade referindo-se à política educacional adotada por ele no
permanente, continuada e, nessa direção, abrir os nossos corações e as nos-
Município de São Paulo.
sas mentes para novas possibilidades da gestão social do conhecimento.
Quando falamos em município educador, como no programa
Sejamos todos(as) autores(as) e sujeitos desta obra, deste Progra-
Município que Educa, é porque estamos querendo dar especial ênfase
ma Município que Educa, organizando ações municipais mais integra-
ao papel do poder local, do município, como ente federado, no trato
das, mais intersetoriais e intersecretariais, potencializando a dimensão
das questões educacionais e na sua relação com o povo que faz parte da
educativa das mesmas que, assim, tornam-se ainda mais humanizadas,
vivenciais e “humanescentes”. Somemos as nossas experiências, forças,
energias, saberes, tecnologias, sonhos, utopias e o nosso potencial so-
1 Licenciado em Pedagogia e em Filosofia, doutor em Ciências da Educação pela Universi-
cial e coletivo que, certamente, contribuirão para uma sociedade mais dade de Genebra, é, atualmente, professor titular da Universidade de São Paulo e diretor
justa e feliz para todas as pessoas e para uma vida mais saudável para do Instituto Paulo Freire (IPF). Foi chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Educação
elas e para todo o planeta. de São Paulo na gestão de Paulo Freire. Tem um grande número de livros publicados nos
quais desenvolve uma proposta educacional orientada pelo paradigma da sustentabilida-
de. Entre os livros publicados por Gadotti, traduzidos em diversas línguas, destacam-se:
História das ideias pedagógicas, Pedagogia da Práxis, Paulo Freire: uma biobibliografia,
Paulo Roberto Padilha Pedagogia da Terra, Um legado de esperança, Os Mestres de Rousseau e Educar para a Sus-
tentabilidade (em português e inglês).
Diretor de Desenvolvimento Institucional
Instituto Paulo Freire

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municipalidade. É no município que o povo vive. E com isso também A maneira como o povo educa, como exerce a sua soberania, depende
queremos realçar o papel dos dirigentes da educação na municipalida- do que pensa do local onde vive, depende de como ele enxerga esse
de como gestores do conhecimento e grandes articuladores não só das local e como ele se enxerga nele, quais são seus sonhos. Antes de mais
escolas municipais, mas de toda ação educadora no município. O pre- nada, ele precisa apropriar-se do território que é seu.
feito, ao escolher um dirigente municipal de educação, está escolhendo No município onde o povo educa, todos os seus habitantes usu-
um profissional qualificado política e tecnicamente para exercer esse fruem das mesmas oportunidades de formação, desenvolvimento pessoal
papel de articulador com foco numa nova arquitetura da gestão muni- e de entretenimento que ele oferece. O Manifesto das Cidades Educado-
cipal que tem a educação como elo de união intersetorial. ras afirma que a satisfação das necessidades das crianças e dos jovens,
Pensar o município nesses termos exige uma nova arquitetura da no âmbito das competências do município, pressupõe uma oferta de es-
gestão pública, uma nova teoria, isto é, uma nova visão do município. paços, equipamentos e serviços adequados ao desenvolvimento social,
Exige estudo e reflexão, intercâmbio de experiências, exige equipe técnica moral e cultural, a serem partilhados com outras gerações.
de planejamento, exige informação, formação específica, intencionali- Nesse contexto, o conceito de Escola Cidadã ganha um novo
dade, vontade política. O Programa Município que Educa tenta respon- componente: a comunidade educadora reconquista a escola no espaço
der a essas questões buscando alcançar um novo patamar na governança cultural do município, integrando-se a esse espaço, considerando suas
pública, que supere o modelo de gestão pública puramente gerencial e ruas e praças, suas árvores, seus campos, seus pássaros, seus cinemas,
voltado apenas para as necessidades do mercado (visão neoliberal). E se suas bibliotecas, seus bens e serviços, seus bares e restaurantes, seus te-
é para as pessoas que o prefeito governa, é a partir delas, da sua mani- atros e igrejas, suas empresas e lojas... enfim, toda a vida que ali pulsa.
festação, da sua participação, que a governança local deve organizar-se e A escola deixa de ser um lugar abstrato para inserir-se definitivamente
estruturar-se e definir as prioridades do seu orçamento, em prol do bem na vida do município e ganhar, com isso, nova vida. A escola se trans-
da comunidade, do seu povo. O Programa Município que Educa propõe forma num novo território de construção da cidadania. Assim, o povo
a educação em seu sentido amplo (não apenas a educação formal), como que educa precisa de uma escola verdadeiramente cidadã e de uma
novo conceito de organização dessa governança local. educação que seja integral, integradora, integrante e integrada.

Não há dúvida de que a cidade, como dizia Paulo Freire, dispõe de Não se pode falar de Escola Cidadã sem compreendê-la como es-
inúmeras possibilidades educadoras. A vivência na cidade se constitui cola participativa, apropriada pela população como parte da apropria-
ção do município a que pertence. Nesse sentido, a Escola Cidadã, em
num espaço cultural de aprendizagem permanente por si só, espontane-
maior ou menor grau, supõe a existência de um Município que Educa.
amente; mas, a cidade, o município, pode ser, também, intencionalmente
Essa apropriação se dá através de mecanismos criados pela própria es-
educador. Um município pode ser considerado como um Município que
cola, como o Colegiado Escolar, a Constituinte Escolar, plenárias pe-
Educa quando, além de suas funções tradicionais – econômica, social, po-
dagógicas e outros. Esse ato de sujeito do cidadão leva para dentro da
lítica e de prestação de serviços –, ele exerce uma nova função cujo, obje- escola os interesses e necessidades da população.
tivo é a formação para e pela cidadania, quando ele se organiza para que o
povo exerça o poder, para que o povo seja soberano. O movimento da Escola Cidadã, inicialmente muito centrado na
democratização da gestão e no planejamento participativo, aos poucos,
No final das contas, é o povo que educa. O povo educa quando ampliou, na sua trajetória, outras preocupações, tais como a construção
ele se torna protagonista da cidade, do município, quando passa de de um novo currículo (interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural,
“subalterno”, como dizia Gramsci, de governado, a governante. Entre- intertranscultural) e de relações sociais, humanas e intersubjetivas no-
tanto, para educar, o povo precisa ser educado, isto é, o povo também vas, enfrentando os graves problemas gerados pelo aumento da violência e
precisa ser formado para assumir a tarefa de educador. da deterioração da qualidade de vida nas cidades e no campo.

18 Múltiplos olhares 19
O papel da escola, nesse contexto, é contribuir para criar as condições
Precisamos de uma pedagogia do município para nos ensinar a olhar,
que viabilizem a cidadania, através da socialização da informação, da
a descobri-lo, para poder aprender com ele, dele, aprender a conviver com
discussão, da transparência, gerando uma nova mentalidade, uma nova
ele. O município é o espaço das diferenças. A diferença não é uma defi-
cultura, em relação ao caráter público do espaço do município. Numa
ciência. É uma riqueza. Existe uma prática da ocultação das diferenças,
perspectiva transformadora, a escola educa para ouvir e respeitar as
também decorrente do medo de ser tocado por elas, sejam as diferenças
diferenças, a diversidade que compõe o município e que se constitui
sexuais, sejam as diferenças culturais, de gênero etc. Em geral, a nossa pe-
na sua grande riqueza. A escola precisa estar aberta para a diversidade
dagogia dirige-se a um aluno médio, que é uma abstração. O nosso aluno
cultural, étnica e de gênero e para as diferentes orientações sexuais. As
real, contudo, o aluno concreto, é único. Cada um deles é diferente e preci-
diferenças exigem uma nova escola.
sa ser tratado em sua individualidade, em sua subjetividade.
O grande desafio da escola de hoje é traduzir esses princí-
Temos que aprender a nos locomover na cidade e no campo, ca-
pios em experiências práticas inovadoras concretas, em projetos
minhar muito por nossas ruas, vielas e trilhas. Deixar o carro em casa e
para a capacitação cidadã da população, para que ela possa tomar
caminhar. Não ver a cidade apenas através de fotos e vídeos. Para isso,
em suas mãos os destinos do seu município. Diante dos novos
uma educação cidadã para o trânsito e para a mobilidade é importante.
espaços de formação criados pela sociedade da informação, ela os
Precisamos de mapas, de guias. Precisamos saber onde a gente se en-
integra e articula. Ela deixa de ser lecionadora para ser cada vez
contra. Como cidadãos e cidadãs, precisamos nos sentir como sujeitos.
mais gestora da informação generalizada, construtora e recons-
A cidade, o município nos pertence; e porque nos pertence, participa-
trutora de saberes e conhecimentos socialmente significativos.
mos da sua construção e da sua reconstrução permanentemente.
Portanto, ela tem um papel mais articulador da cultura, um papel
mais dirigente e agregador de pessoas, movimentos, organizações Qualquer programa que tenta interconectar os espaços e equi-
e instituições. Na sociedade da informação, o papel social da es- pamentos do município é fundamental, pois desconhecemos a nossa
cola foi consideravelmente ampliado. É uma escola presente na própria municipalidade e subestimamos as suas potencialidades. Pre-
municipalidade, que cria novos conhecimentos sem abrir mão do cisamos empoderar educacionalmente todos os seus equipamentos
conhecimento historicamente produzido pela humanidade, uma culturais. A educação é cultura. O município é o espaço da cultura e da
escola científica e transformadora. educação. Existem muitas energias sociais transformadoras que ainda
estão adormecidas por falta de um olhar educativo sobre elas.
Nosso primeiro livro de leitura é o mundo. Para aprender no
município precisamos saber ler o mundo. Em geral, nós ignoramos a Hoje, a questão da educação é menos uma questão de recursos,
cidade, estreitamos muito nosso olhar e não a percebemos, e algumas embora eles sejam reconhecidamente importantes. É muito mais uma
vezes até a escondemos; damos as costas para não vermos certas coisas questão de projeto, de inteligência, de vontade política, de integração
que acontecem nela. Não queremos olhar certas coisas para não nos governamental e articulação intersetorial, como sustenta o movimento
comprometermos com elas, pois o olhar nos compromete. Vejamos Município que Educa. Há muito desperdício de dinheiro por falta de
nosso comportamento nos semáforos quando somos abordados por projeto, apesar de muita boa vontade. A escola e a educação são cam-
meninos e meninas de rua. Nossa defesa é não olhar nos olhos deles e pos privilegiados de trabalho. Nelas encontramos sujeitos que desejam
delas. Buscamos tornar muitos seres invisíveis; até em nossas próprias transformar e construir um mundo melhor, fazer o melhor trabalho
casas, quando, às nossas visitas, apresentamos toda a casa e não apre- possível. Mas elas podem se perder se não souberem escutar. A escola
sentamos a empregada ou a faxineira que aí trabalham. Passamos por que não se pergunta se perde. Para a escola achar seu caminho precisa
elas como se fossem seres transparentes. perguntar, ser curiosa. Precisamos saber que não sabemos tudo. A es-
cola não está sozinha.

20 Múltiplos olhares 21
O sociólogo e professor Florestan Fernandes (1920-1995) costumava EDUCAÇÃO COMO DIREITO NO
dizer que a escola não educava para a cidadania. Ele dizia que a estrutu-
ra de poder no Brasil era arcaica e mantida pela classe dominante, que
MUNICÍPIO QUE EDUCA
barrava a consciência crítica do povo. Essa estrutura político-social e Rcwnq"Tqdgtvq"Rcfknjc4
econômica ainda é dominante. Mas a mesma sociedade que cria essa
estrutura cria também a sua reação. O que foi socialmente construído
pode ser socialmente desconstruído e reconstruído. A contradição so-
cial existe. Por isso encontramos motivos para ser otimistas. Um deles Aceitar o sonho do mundo melhor e a ele aderir é aceitar entrar no processo
é o surgimento de movimentos de renovação pedagógica como o da de criá-lo. Processo de luta contra qualquer tipo de violência. De violência
contra a vida das árvores, dos rios, dos peixes, das montanhas, das cidades,
Escola Cidadã e o do Município que Educa. Eles apontam para o mes- das marcas físicas de memórias culturais e históricas. De violência contra
mo projeto de futuro, para a construção de uma sociedade educadora- os fracos, os indefesos, contra as minorias ofendidas. De violência contra os
educanda, humanizada, emancipada e solidária, enfim, de um povo discriminados não importa a razão da discriminação. De luta contra a impu-
que é soberano e por isso educa. nidade que estimula no momento entre nós o crime, o abuso, o desrespeito
aos mais fracos, o desrespeito ostensivo à vida. […] Luta contra o desrespei-
to à coisa pública, contra a mentira, contra a falta de escrúpulo. E tudo isso,
com momentos, apenas, de desencanto, mas sem jamais perder a esperança.
(FREIRE, 2000, p. 133-134).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em


seu artigo sexto, estabelece que “São direitos sociais a educação, a saú-
de, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição”. Talvez por vivermos tempos de “crise
civilizatória”, nem sempre o que está na lei e o que é de direito é cum-
prido, nem mesmo por quem as escreve e deveria defendê-las. Mas isso
precisa mudar.
Lendo os jornais, assistindo aos telejornais e observando o que
acontece na nossa vida cotidiana, temos até a impressão de que a ética
se tornou figura de retórica e que a barbárie prevalece sobre a “civi-
lidade”. Isso porque as condições básicas e estruturais para uma vida

2 Mestre e doutor em educação pela FE-USP. Pedagogo, bacharel em ciências contábeis e


músico. Diretor de Desenvolvimento Institucional do Instituto Paulo Freire e autor dos
livros Planejamento dialógico (2001), Currículo Intertranscultural (2004), Educar em To-
dos os Cantos (2007), Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública (2009) e
Educação Cidadã, Educação Integral (2010), entre outros. É precursor do Programa e do
conceito “Município que Educa”, pelo Instituto Paulo Freire, onde trabalha há 16 anos.

22
minimamente digna não estão dadas para a maioria das pessoas, o que a literatura disponível sobre o assunto3, faz-se necessário respeitar a
justificaria o “salve-se quem puder” e o próprio desrespeito às normas experiência feita e valorizar o que tem sido condizente com uma ação
de convívio social. Mas é justamente neste contexto de naturalização do pedagógica emancipadora e transformadora, superadora de um currí-
que não é natural – de desesperança, de falta de consciência social, culo formalista, que valoriza apenas o acúmulo de conteúdos progra-
de violação aos direitos humanos, de desrespeito às árvores, aos ani- máticos da ciência, organizados de forma burocrática e hierárquica.
mais e ao meio, de fragmentação do conhecimento, de individualida-
O que se busca nos processos de educação integral é a valorização
des extremadas que justificam os privilégios de toda ordem, de busca
de todas as formas de conhecimento, de saber e o desenvolvimento
do lucro a qualquer preço e de gestões públicas centralizadoras, sem
integral da pessoa nos aspectos biológicos, psicológicos, cognitivos,
participação social, que pensam mais no privado do que no público
comportamentais, afetivos, relacionais, valorativos, sexuais, éticos, es-
–, é exatamente por tudo isso e muito mais que se torna relevante pra-
téticos, criativos, artísticos, ambientais, políticos, tecnológicos e profissio-
ticarmos a educação como direito: um direito ampliado e estendido a
nais. Educar integralmente o cidadão e a cidadã significa prepará-los
todas as pessoas, de todas as idades, durante toda a vida e em todas as
para uma vida saudável e para a convivência humanizada, solidária e
dimensões e instâncias da vida social. Como escreveu Bertolt Brecht,
pacífica, o que deve acontecer em todos os espaços da vida social, na
“nada é impossível de mudar”.
municipalidade e, diríamos mesmo, “em todos os cantos”. Tanto mais
A educação como ato político, produtivo e de conhecimento êxitos teremos quanto mais intensos forem os esforços conjuntos e es-
(Freire) tem uma dimensão crítica e, ao mesmo tempo, utópica, que tratégicos do Estado e da sociedade civil, que resultem em políticas
alimenta e atualiza as nossas possibilidades de ação e a força dos nos- públicas inclusivas, condizentes com o compromisso de se promover
sos sonhos de um mundo e de uma sociedade melhores. Ao educarmos mudanças concretas na municipalidade para superar a desigualdade e
e nos educarmos, exercitamos a “esperança sem espera”, ao mesmo a injustiça social.
tempo em que, com os pés no chão, aprendemos a importância de
O município pode potencializar e criar condições concretas
pautarmos o nosso trabalho de forma dialógica, planejada, estratégica,
para que as mudanças aconteçam, atualizando, inclusive, quando ne-
sistemática e organizada, sempre a partir do estudo da realidade e do
cessário, a legislação vigente, adaptando-a a uma nova ordem social
contexto sociocultural que nos cerca. Decorre daí o poder transforma-
– mais participativa e inclusiva – e fomentando a captação de recur-
dor da educação.
sos e o estabelecimento ético e transparente de parcerias e alianças
Quando falamos em educação – e pensamos também em educa- que podem ser processuais, sem que se queira tudo mudar de uma
ção integral, que é fundamento para projetos educacionais de tempo hora para a outra, respeitando as sinergias locais, sejam elas pessoais
ou de horário integral –, referimo-nos a processos de formação hu- ou institucionais.
mana que nos sensibilizam para diferentes possibilidades de ensino e
Estamos falando de um Município que Educa e que valoriza os es-
de aprendizagem nos diversos espaços e tempos em que vivemos. Isso
forços de cada pessoa que vive, que trabalha e que acessa o município. Va-
exige que estejamos abertos a ressignificar as nossas práticas, a atuali-
loriza e respeita os esforços das pessoas e das instituições governamentais,
zar as nossas teorias e a lidarmos com diferentes saberes, conhecimentos
não governamentais, os movimentos sociais, as igrejas, os sindicatos, as
e formas de aprendizagem, elaborando projetos integrados e integra-
escolas, as universidades, os clubes, as bibliotecas, os teatros, os espaços
dores na escola, na comunidade e na municipalidade, a partir das ex-
públicos e privados etc. Todos devem saber que o seu município, além
periências acumuladas de diversas gerações, das diferentes culturas e
dos diferentes setores da sociedade. Para tanto, além de revisitarmos
3 Ver GADOTTI, 2009; ANTUNES; PADILHA, 2010. Estes livros podem ajudar e indicam
várias obras sobre o tema.

24 Múltiplos olhares 25
de atender as demandas de sua população, aproveita esse atendimento que Educa ganha seu maior significado: ele educa com base nos princí-
para também educar as pessoas, o que deve se fazer de forma organizada, pios de uma convivência sustentável, nos vários sentidos e significados
mediante processos educacionais intencionais e continuados de todos que esta palavra possui na contemporaneidade: econômica, cultural,
que ensinam e aprendem, atendem e são atendidos. Nesse sentido, um política, ética, ambiental, estética, educacional, cultural etc.
Município que Educa é responsável pela educação integral e cidadã
Mas como se faz isso? Já demos, acima, algumas indicações nessa
de seus munícipes e de quem por ele passa, educando-os individual e
direção. Mas, de forma simples, podemos criar no município um ou
coletivamente e, com eles, educando-se.
mais grupos de trabalho e, associadas a eles, comissões temáticas, para
A comunicação, a transparência e a veiculação de informações realizar, inicialmente, um Plano de Trabalho Articulado (Plantar), que
sobre tudo o que se passa na gestão pública municipal, favorecidas hoje parte da identificação das demandas, dos recursos, das potencialidades
com o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação, é e dos limites da municipalidade, levantando os projetos que já aconte-
exigência para dar visibilidade ao que se fez, ao que está se fazendo e cem, os principais problemas, identificando prioridades, analisando os
ao que se pretende fazer no município. Até porque, se não se sabe o que programas estratégicos que já foram exitosos, os que não deram certo,
está acontecendo, como podem as pessoas e instituições se associarem os que estão em andamento e aqueles que são realizados por diferentes
e defenderem algum projeto ou programa? A comunicação é essencial- setores, que estão sendo executados isoladamente, mas buscando re-
mente educativa. conhecer sinergias e aproximações entre diferentes ações, procurando
identificar os pontos de contato e as possibilidades de uma atuação
O Município que Educa amplia os tempos e os espaços de educa-
mais conjunta, intersetorial, que possa potencializar, principalmente,
ção das pessoas e das instituições da municipalidade quando organiza
processos educacionais associados e integrados ao atendimento das
Grupos de Trabalho e Comissões Intersetoriais, por exemplo, para que
demandas. Trata-se de:
a base da sociedade e os representantes do Estado e da Sociedade Ci-
vil – e não apenas as suas lideranças – possam efetivamente participar, a) criar grupos de trabalho intersetoriais, com pessoas da base
influenciar, decidir, acompanhar e avaliar as políticas públicas muni- da comunidade e com representantes do Estado e da So-
cipais. Este processo é altamente educativo. Mas como não contamos, ciedade Civil, sempre com a preocupação de incluir e de
ainda, com as condições concretas para viabilizar este sonho coletivo escutar segmentos sociais historicamente alijados desses
de garantirmos o direito à educação na perspectiva do Município que processos participativos;
Educa, é preciso entender que estaremos dando passos importantes se,
b) levantar os problemas, os dados da realidade e conhecer com
a curto, médio e longo prazos, exigirmos de nós mesmos e de nossas
mais detalhes as potencialidades, os desafios do município, as
instituições mais rigor, organização democrática e maiores esforços
dificuldades existentes para a garantia de uma vida mais feliz,
para superarmos os modelos de gestão pública e privada burocráticos,
mais saudável e mais justa para a população que nele vive ou
centralizadores e pouco participativos, que pensam apenas em resul-
que por ele passa (leitura do mundo);
tados, quando deveriam pensar também nos processos e nas pessoas
que deles participam. c) reconhecer o que já tem sido feito na direção da garantia dos
direitos civis, sociais e políticos das pessoas e levantar todo
Trata-se de criarmos uma nova arquitetura da gestão pública,
este histórico, bem como as novas demandas. Nesse sentido,
permeada por processos educacionais que criem espaços para uma
levantar a legislação municipal, estadual, federal e estudá-la;
vida em sociedade mais pacífica, valorizando o direito à vida digna
e cidadã a todas as pessoas e uma relação cuidadosa e respeitosa com d) conhecer o Plano Diretor do município, seus planos, progra-
todas as formas de vida existentes no planeta. É aqui que o Município mas e projetos estratégicos;

26 Múltiplos olhares 27
e) definir os princípios de convivência do grupo coordenador com a diversidade cultural, com as diferentes diferenças e com as múlti-
local, definindo atribuições claras e os papéis de cada pessoa/ plas semelhanças entre as pessoas e as próprias instituições sociais. Esta
instituição, sempre de forma colaborativa, solidária e com é uma possibilidade concreta de contribuirmos para educar cidadãos e
abertura para o diálogo, para a mudança, para o fazer coleti- cidadãs integrais e, principalmente, tornar as pessoas mais felizes porque
vo, mas entendendo que isso se constrói e se aprimora com a mais justas e conscientes de que, como dizia Paulo Freire, os seus direitos
própria convivência; começam onde também começam os direitos das outras pessoas.
f) enfrentar desafios históricos e projetos às vezes em andamen-
to, que muito anunciam e pouco fazem de efetivo para mudar
Referências
as práticas e, antes delas, as mentalidades;
g) definir prioridades e um plano de trabalho intersetorial, po-
tencializando o atendimento das demandas públicas associa- ANTUNES, Ângela; PADILHA, Paulo Roberto. Educação Cidadã,
das a processos educacionais em paralelo; Educação Integral: fundamentos e práticas. São Paulo: Editora e
Livraria Instituto Paulo Freire, 2010.
h) estabelecer claramente os objetivos, metas, prioridades, indi-
cadores de processo e de resultado, bem como a metodologia FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros
de registro de como foi o processo de planejamento interseto- escritos. São Paulo: Unesp, 2000.
rial no Município que Educa, buscando dar visibilidade públi- GADOTTI, Moacir. Educação Integral no Brasil: inovações em proces-
ca às suas propostas, ações e encaminhamentos. so. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.
O Município que Educa incentiva as abordagens multissetoriais PADILHA, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos: reflexões e can-
com ênfase às ações articuladas, intersetoriais, participativas (demo- ções por uma educação intertranscultural. São Paulo: Cortez/Ins-
cracia direta), representativas (democracia indireta), buscando agre- tituto Paulo Freire, 2007.
gar intencionalidade educativa nas diferentes políticas do município.
______. Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública. São
É evidente que é difícil realizar novos projetos e criar nova cultura edu- Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. (Cadernos
cacional se contarmos apenas com as estruturas sociais existentes, muitas de Formação, 2).
vezes resistentes às mudanças ou insuficientes para viabilizá-las. Por isso, há
que se educar para mudar mentalidades, enfrentar resistências e buscar no-
vas alternativas de gestão pública, lutando para superar práticas reacionárias
que, consciente ou inconscientemente, defendem privilégios econômicos,
sociais e culturais. Não basta dizer que a educação é um direito. É necessário
garantir a realização dos direitos, arregaçando as mangas e escrevendo a his-
tória a cada dia, em cada um dos espaços e tempos da municipalidade.
Para enfrentar estes e outros desafios, o Município que Educa se
propõe a trabalhar com processos educativos continuados, diferencia-
dos, mais sensíveis e humanizadores, que mobilizam ao mesmo tempo a
racionalidade e a afetividade, a técnica e a sensibilidade, a ética, a estética
e a política, as ciências e as artes, a economia e a ecologia, trabalhando

28 Múltiplos olhares 29
ARTICULAÇÕES EM REDE: A EDUCAÇÃO
COMO ELO ENTRE AS INSTITUIÇÕESE OS
SUJEITOS NA MUNICIPALIDADE
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O discurso em favor das ações integradas e intersetoriais é cada vez mais pre-
sente na gestão pública e nos movimentos sociais, como forma de dar respos-
tas às questões de um mundo cada dia mais complexo e multidimensional.
Essa tendência ganhou espaço com a ECO-92 – onde foi apresentada como
estratégia para alcançar o desenvolvimento sustentável –, extrapolou a seara
ambiental e desde então vem aparecendo e prevalecendo em fóruns de dis-
cussão dos mais variados campos. “As comunidades precisam quebrar os mu-
ros que separam as organizações, instituições, setores, jurisdições, bairros ou
pessoas. No lugar de paredes que dividem [...] deveriam construir pontes que
conectam” (KANTER, 1995, p. 379).

A proposta do Programa Município que Educa é que o fio condu-


tor que conecta os sujeitos sociais da municipalidade e inspira essas
ações integradas seja a educação.
A ideia de “educar a várias mãos” certamente não é nova. Hoje já
faz parte do senso comum a visão de que o processo de formação acon-
tece apenas em parte na escola, sendo complementado em tantos outros
momentos de interação social do dia a dia, seja em casa ou em outros
espaços (físicos e virtuais) da comunidade. O que o Município que Educa
traz de novo é a possibilidade de potencializar as intencionalidades edu-
cativas dos sujeitos e instituições envolvidos nesse processo, a partir de
uma articulação mais orgânica e continuada entre eles.
Trata-se de um movimento no sentido de consolidar o compromisso

4 Cientista social e comunicadora, com mestrado em Estudos do Desenvolvimento pelo Institute


of Social Sciences em Haia, na Holanda. Atua há 11 anos nas áreas de Educação, Comunicação
e Desenvolvimento Local, tendo colaborado com projetos no Brasil, nos Camarões, na Etiópia
e em Angola. No Instituto Paulo Freire, trabalhou no Projeto Bairro-Escola de Nova Iguaçu e,
desde 2009, faz parte da equipe de Coordenação do Programa Município que Educa.
com a educação em toda a sociedade, cada um na sua área de atuação perspectiva de Schlithler (2004), segundo a qual o propósito das redes
– desde os gestores das mais diversas áreas do governo até o líder co- é mobilizar e desencadear ações conjuntas com objetivo de provocar
munitário que organiza as festas do bairro – e a partir dessa correspon- transformações na sociedade, ou seja, realizar um projeto coletivo.
sabilidade e da soma dos esforços ir consolidando uma rede local pela
Articular pessoas e instituições pela construção de um Município
Educação, reunindo representantes do poder público e da sociedade
que Educa não deveria ser tarefa árdua, já que, como vimos, há hoje
civil. O economista Ladislau Dowbor (2006) fala na formação de uma
uma tendência à formação de redes, que se torna ainda mais favorável
comunidade gestora do conhecimento que tenha como centro uma escola
quando a causa em questão é a educação. Na realidade, porém, é ainda
articulada com as universidades, com as ONGs que trabalham com as
um desafio colocar em prática o discurso em favor das ações colabora-
mais diversas questões locais, com as organizações comunitárias e com
tivas e integradas. Os representantes do poder público ou da sociedade
os vários setores do poder público. “A qualidade de vida numa cidade
civil, não diretamente ligados à educação, veem seu tempo e recursos
depende cada vez mais da capacidade inteligente de organização das si-
serem consumidos com outras demandas imediatas e acabam deixan-
nergias no interesse comum” (DOWBOR, 2006, p. 4).
do para segundo plano as ações educativas, mesmo que a princípio
Tecer a rede reconheçam sua importância.
Uma rede se refere a um conjunto de pessoas ou instituições que Para que a articulação seja bem sucedida, portanto, é preciso um
se organizam de forma autônoma e não hierárquica, unindo ideias real entendimento e vivência do objetivo comum que move o grupo.
e recursos em torno de valores e interesses compartilhados. Repre- Todos os envolvidos na rede devem acreditar que serão fortalecidos
senta “uma confiança no coletivo; uma aposta radical na democracia com a ação coletiva. Isso não significa deixar de lado suas causas ou
que se expressa nas relações cotidianas” (FUGIMOTO, 2005). Entre interesses particulares, mas perceber que estes estão ligados às causas
as principais características dessa forma de organização estão a hori- de outros sujeitos e instituições que têm dimensões complementares,
zontalidade, o poder desconcentrado, a soma de esforços (em oposi- e que a soma de esforços em torno de um projeto educativo impacta
ção à duplicação das ações), a corresponsabilidade entre os sujeitos, positivamente a missão de todos.
a ênfase no fluxo livre de informação, a relação de troca e reciproci-
Imaginemos, por exemplo, um projeto coletivo para a criação de
dade, a valorização da diversidade, a participação livre e consciente.
uma praça-escola. Não se trata apenas de uma intervenção para am-
Além disso, vale destacar o espaço que se abre ao compartilhamento
pliar os espaços educadores do município, mas que também pode ter
de saberes e experiências.
efeitos positivos sobre o meio ambiente do bairro, a saúde dos mo-
Profundamente inspirado nos referenciais freirianos, o Progra- radores, o planejamento urbano, a segurança pública, as políticas de
ma Município que Educa vê as redes como espaços privilegiados de esporte, lazer e cultura etc. Tudo vai depender de quais setores foram
diálogo em que representantes dos vários setores do poder público e representados no planejamento da ação.
da sociedade civil refletem coletivamente (e de forma crítica) sobre
Dar os laços
a realidade local e elaboram propostas de intervenção com propósito
educativo: “Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos A consolidação da rede (PADILHA, 2009b) proposta pelo Mu-
e não sabemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar nicípio que Educa é sutil e se dá aos poucos, na medida em que
a realidade” (FREIRE, 1987, p. 123). os sujeitos forem percebendo os resultados positivos das primei-
ras ações coletivas e, incentivados por eles, sintam-se motivados a
Nesse sentido, o Programa aposta na articulação entre os sujeitos
colaborar em novas iniciativas. Mas uma questão permanece: por
sociais para atuar de forma mais sistêmica e sinérgica por uma mu-
onde iniciar esse processo?
dança na realidade local, pelo viés da educação. Atua-se, assim, na

32 Múltiplos olhares 33
Em geral, o primeiro passo é criar laços de confiança mútua e ins- buscando ser inclusivo, valorizar a diversidade do grupo e encorajar,
tituições que promovem a cooperação e as articulações entre os mem- nos outros, o espírito de liderança.
bros de uma comunidade.
Uma alternativa sugerida pelo Programa Município que Educa é a
Ao estudar o que leva os sujeitos a colaborarem e se envolve- criação de um Conselho Gestor, um núcleo de coordenação formado por
rem em iniciativas conjuntas, o cientista político norueguês Jon Elster representantes dos diferentes setores realmente comprometidos com a
(1989) argumenta que há um conjunto variado de motivações racio- causa. Este grupo de trabalho deverá tomar a frente do processo de arti-
nais e irracionais que pode incluir, por exemplo, altruísmo, respeito às culação, estimulando os demais participantes, garantindo o fluxo de in-
regras sociais e interesses particulares. Segundo ele, as motivações dos formação, delegando responsabilidades e fomentando o sentimento de
participantes de uma rede tendem a se aproximar conforme o senti- pertencimento e união. Quanto mais heterogêneo for o Conselho Gestor,
mento de grupo for sendo criado. maior seu potencial de transformação social, visto que a pluralidade de
olhares possibilita uma melhor identificação das potencialidades edu-
Buscando incentivar desde cedo essa sintonia, o Programa Muni-
cativas locais. Por isso, é importante incluir outros órgãos do poder pú-
cípio que Educa propõe que a sensibilização dos sujeitos comece pela
blico, para além da Secretaria de Educação e organizações da sociedade
realização de um mapeamento coletivo da realidade, incluindo uma
civil, que a princípio não trabalham diretamente na área.
análise crítica da situação educacional do município, dos principais in-
dicadores, das leis, políticas e programas, da dinâmica dos Conselhos Para manter a rede viva, cabe a quem estiver responsável pela me-
Municipais, dos principais sujeitos atuantes na área etc. diação encorajar, desde o início, a realização de projetos concretos. São
os próprios resultados positivos das iniciativas coletivas que vão conta-
Esse estudo deve estimular um novo olhar dos sujeitos sobre suas
giar os envolvidos e fazê-los valorizar cada vez mais a colaboração. Por
próprias ações, identificando potencialidades e formas de contribuir
isso, o ideal é começar por intervenções menos complexas (por exem-
para o fortalecimento educativo local. Além disso, a partir do ma-
plo, uma ação mais pontual numa escola ou numa comunidade espe-
peamento, todos poderão se enxergar como parte de um grupo que
cífica) e ir, aos poucos, ampliando para outras mais engenhosas. Essas
compartilha a mesma realidade e condição (FREIRE, 1987). Esse senso
conquistas, mesmo que pequenas, renovam a energia, a confiança e o
de identidade e pertencimento dá as bases para o trabalho em rede e
compromisso do grupo. É preciso lembrar que as pessoas se unem em
desencadeia um ciclo virtuoso de construção de relações mais coope-
rede porque buscam transformar a realidade, e ações concretas nesse
rativas, conjuntas e comunicativas.
sentido são fundamentais para manter vivo o entusiasmo.
Apertar os nós
Além das redes de articulação local, o Programa Município que
Mesmo sendo a rede uma instituição de natureza não hierárqui- Educa valoriza a formação de redes virtuais que utilizem as novas tecno-
ca, é necessário, principalmente no início, que alguém assuma o papel logias de informação e comunicação para facilitar o compartilhamento
de animador, criando momentos estratégicos para os participantes se de experiências e o debate entre sujeitos de diferentes municipalidades.
encontrarem, compartilharem saberes e experiências e planejarem in- Com este propósito, foi criada a Rede Social Município que Educa <www.
tervenções concretas. municipioqueeduca.org>, na qual pessoas e instituições interessadas em
Essa mediação pode ser assumida pelo governo local (por exem- fortalecer o potencial educativo de suas municipalidades podem divul-
plo, pela Secretaria de Educação, de Governo ou uma coordenadoria gar suas práticas, conhecer iniciativas de outras localidades, acessar
criada para esse fim), por uma ONG ou um grupo de líderes comuni- documentos e publicações sobre o tema e participar de um fórum per-
tários, ou ainda por uma empresa local. O importante é que quem ficar manente de debates. Assim como as redes presenciais, essa rede virtual é
responsável por essa função mantenha sempre uma postura dialógica, um importante instrumento de mobilização. Com ela, busca-se ampliar

34 Múltiplos olhares 35
cada vez mais a discussão sobre o Município que Educa, criando aos A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO
poucos um movimento universal por um mundo onde a educação está
presente, intencionalmente, nas ações de todos os sujeitos.
MUNICÍPIO QUE EDUCA
Tgikpcnfq"Tqpeqpk7
Referências
DOWBOR, Ladislau. Educação e Desenvolvimento Local. 2 abr. 2006.
Disponível em: <http://dowbor.br>. Acesso em: 10 jan. 2010. A proposta do Município que Educa ressalta que a educação está
presente em todas as atividades. Acredito nisso e também quero lem-
DURSTON, John. ¿Qué es el capital social comunitario? Santiago de brar que a educação é um processo cotidiano e permanente. Ou seja,
Chile: Cepal, 2000. (Políticas Sociales, 38). educamos e somos educados todos os dias. É importante considerar a
ELSTER, Jon. The Cement of Society: a Study of Social Order. New educação também fora da escola, envolvendo crianças, jovens e adul-
York: Cambridge University Press, 1989. tos, agindo em diversos níveis de complexidade. Habilitando para a
cidadania ativa.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987. Vamos procurar evidenciar essa possibilidade refletindo sobre a
questão da moradia. E para isso vamos lembrar-nos de quando a mo-
FUGIMOTO, Gilberto. Redes e capital social. Rio de Janeiro, 2005. radia é obtida por meio de processos participativos.
Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/16820948/-Tilberto-
Fugimoto-Redes-e-Capital-Social>. Acesso em: 10 jan. 2010. A participação deve ser reconhecida como um princípio presente
na estrutura democrática. É um direito que, quando exercido, revela o
KANTER, Rosabeth. World Class: Thriving Locally in the Global Eco- compromisso com o desenvolvimento humano. Possuiu um impacto
nomy. New York: Simon and Schuster, 1995. social que é rejuvenescedor, permite à sociedade ver-se e rever-se a
PADILHA, Paulo Roberto. Município que Educa: educar em todos partir da discussão de diversos pontos de vista.
os cantos. 2009a. Disponível em: <http://redesocial.unifreire.org/ Por outro lado, participar confere ao indivíduo maior percepção
municipio-que-educa/municipio-que-educa-educar-em-todos- das próprias possibilidades, de articulação, de realização. Reconhecer-
os-cantos.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2010. se participante de algo é reconhecer-se mais forte, mais livre. Mais so-
______. Município que Educa: Nova Arquitetura da Gestão Pública. cialmente integrado. Formador da própria comunidade.
São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009b. (Cader- Por exemplo (pensando na educação formal), quanto mais uma
no de Formação, 2). escola recebe a participação dos estudantes, de seus pais, da vizinhança
RAMALHO, Priscila. External intervention for the strenghthening of onde se localiza, maior será sua ação cultural e social. Uma escola não
community organizations: The case of Vale do Curu, Brazil. Artigo
apresentado no Congresso da Associação de Estudos Latino-Ame-
ricanos (Lasa), Montreal, set. 2007. 5 Arquiteto, professor na Universidade de São Paulo na graduação e pós-graduação. Foi um
dos responsáveis pela implantação do programa de mutirões autogeridos na Prefeitura
SCHLITHLER, Célia. Redes de desenvolvimento comunitário: iniciati- Municipal de São Paulo (gestão 1989-1992).
vas para a transformação social. São Paulo: Global; IDIS – Instituto
para o Desenvolvimento de Investimento Social, 2004.

36
é o edifício batizado com esse nome; a escola representa o envolvimen- Esses movimentos pressionam o Estado, obrigando as estruturas
to da comunidade com a sua própria educação. convencionais de atendimento à interação com a demanda explícita.
Portanto a necessidade da participação é importante na organiza- Vejamos o exemplo dos movimentos sociais por moradia na ci-
ção social porque qualifica o seu desenvolvimento. É a possibilidade de dade de São Paulo.
inserir uma ideia, uma visão de mundo, uma vontade própria dentro
Desde a década de 1970 existiu uma crescente ampliação na ca-
do processo histórico de construção social. E inserir não é adaptar-se,
pacidade de entendimento das questões naturais dessa área. A or-
como esclarece o professor Paulo Freire:
ganização social evoluiu abrindo caminhos que sensibilizassem os
Na adaptação há uma adequação, há um ajuste do corpo às condições materiais, governos municipais.
históricas, sociais, geográficas, climáticas etc. E na inserção o que há é a tomada
de decisão no sentido da intervenção no mundo.6
Trabalhando com projetos-piloto,7 elaborados por assessorias in-
dependentes do poder público e vinculadas diretamente ao movimento
A inserção exige a reorganização do espaço, exige o diálogo, e social, as associações aprofundaram discussões sobre o tamanho dos
este possibilita a formação de novas percepções, novos conhecimen- lotes, área das moradias, durabilidade das casas, custo por mutirão,
tos. Novas possibilidades. custo por empreiteira, modelos de financiamento etc. Ficou claro que
Por sua vez, participar dá trabalho. É preciso analisar um tema, o movimento ultrapassava o estágio da reivindicação primitiva e se
organizar uma crítica, elaborar uma proposta, argumentar em sua de- colocava como proponente qualificado.
fesa, convencer, escutar, dialogar... E na maioria das vezes ainda é pre- É impossível deixar de perceber a dimensão educadora exis-
ciso conquistar um espaço para fazer tudo isso. tente nesse processo. Aprender a ler desenhos, escalas diferentes;
Mas, sempre, a participação possibilita ao indivíduo impactar compreender a estrutura de relacionamento urbano existente no
uma decisão social. Portanto é vital. lote, arruamento, áreas de lazer, serviços; refletir sobre o desem-
penho das áreas construídas; considerar o efeito da passagem do
Os movimentos sociais urbanos organizaram-se por meio dessa tempo sobre as construções; analisar previamente os custos e suas
evolução da capacidade de participação de seus membros, que supera modalidades de composição; compreender as estruturas de finan-
a condição individualista e imobilizadora. ciamento; e, sobretudo, utilizar todo esse instrumental como ba-
A partir de necessidades específicas, transporte, carestia, saúde, lizador de decisões.
habitação etc., desenvolveram uma visão integrada sobre a problemáti- Mas também é verdade que nem sempre essas propostas fo-
ca urbana. Podemos ver os movimentos como uma rede social, abran- ram compreendidas como uma evolução da qualidade do diálogo.
gente e capaz de mobilizar-se para atingir suas metas. A estrutura municipal via, na maioria das vezes, essas propostas
Cada vez mais nos convencíamos ontem e estamos convencidos hoje que, para
como uma impertinência, apresentada nas mobilizações e eventu-
tal, teria o homem brasileiro de ganhar sua responsabilidade social e política, ais negociações.
existindo essa responsabilidade. Participando, ganhando cada vez maior inge-
rência nos destinos da escola do seu filho. Nos destinos do seu sindicato. De sua O Movimento Popular amadurecia, mas a estrutura municipal
empresa, através de agremiações, clubes, conselhos. Ganhando ingerência na ainda não.
vida do seu bairro, de sua igreja. (FREIRE, 1981, p. 92).

7 Vila Nova Cachoeirinha (1982), Recanto da Alegria (1983), Vila Comunitária de São Ber-
6 Paulo Freire, em entrevista para a TV PUC, em 17 de abril de 1997. nardo do Campo (1985).

38 Múltiplos olhares 39
Era necessário que o poder público estivesse preparado para interesse da sociedade aponta com 30m2 para abrigar uma família de
aceitar e trabalhar com a parceria que se esboçava. O município pre- cinco pessoas? Será que é interesse social pensar em meia casa para as
cisava conscientizar-se da sua responsabilidade educadora plena. pessoas? Será que o interesse da sociedade é o de construir conjuntos
habitacionais nos extremos das áreas urbanas, sem transportes, prati-
Vale lembrar que essa responsabilidade está presente na proposta
camente isolados da vida na cidade? Será que é interesse social pensar
do Município que Educa, pois ela estimula práticas solidárias e eman-
em abrigos iguais, com desenhos medíocres; sempre implantados em
cipatórias; porém, é preciso ressaltar que essa visão deve ser desven-
malhas ortogonais que ignorem a topografia dos terrenos?
dada também dentro das estruturas administrativas do município. É
preciso que a estrutura municipal transforme seus procedimentos e Será que o interesse social é tão pequeno assim?
fluxos administrativos, prevendo e incorporando a participação do
Certamente, não. Precisamos, então, recuperar a qualidade
munícipe/usuário.
desse conceito.
E foi justamente caminhando nessa direção que encontramos
Os interesses da sociedade devem expressar a luta por uma real
a administração eleita na cidade de São Paulo, em 1988, permitindo
promoção das condições de vida. Ganhar qualidade nas cidades. Esta-
maior abertura aos processos que incluíssem a participação popular.
belecer padrões de excelência para o desenvolvimento da saúde, edu-
Naquele momento, várias das propostas trabalhadas no movi- cação, habitação, transportes.
mento por moradia foram incorporadas às discussões formadoras das
É preciso resgatar o real significado a partir daquilo que interessa
políticas públicas. Por exemplo, foram implantados programas que ad-
à sociedade.
mitam a população como gestora de empreendimentos.
O adjetivo popular que demonstra sempre o orgulho do povo,
Claro que a tensão entre poder público e movimento conti-
quando usado em expressões como música popular, ou classificando
nuou existindo.
o futebol como o esporte mais popular, ou lembrando a importância
A demanda reprimida era (e ainda é) tão grande que, impossível de das festas populares, por que não reflete a mesma sensação positiva
ser totalmente satisfeita, mantinha a pressão por mudanças mais amplas. quando usado na expressão casa popular?
Ou seja, podemos dizer que alguns dos setores envolvidos nesse Por que a habitação popular deve ser a pintura da tristeza?
processo iniciaram uma relação dialógica entre a obrigação do poder
Precisamos assumir uma mudança cultural sobre o direito à
municipal e as necessidades de moradia dos cidadãos. Iniciaram um
qualidade.
movimento em direção a um novo conceito, a uma nova percepção do
seu dever social: entender o cidadão como parceiro. Esse processo foi O poder público historicamente age como um grande senhor que
majoritariamente educador e ultrapassou os espaços formais da edu- dispõe sobre a vida de seus súditos. Mudar culturalmente essa visão
cação, fortalecendo, emancipando, estimulando o desenvolvimento exige a participação dos diversos processos educadores existentes, for-
cultural pleno. mais ou não.
E é sobre a necessidade de realizarmos mudanças culturais am- O potencial que existe nessa mudança pode ser observado no cur-
plas que precisamos refletir. Educar para a liberdade significa educar to período em que existiu o programa do Fundo de Atendimento à Po-
para a visão crítica, para não engolir definições apenas porque existem; pulação Moradora em Habitações Subnormais (Funaps Comunitário).8
significa evoluir culturalmente.
Vejamos o conceito da habitação de interesse social. Será que o 8 Programa municipal desenvolvido em 1990, em São Paulo, na superintendência de habitação

40 Múltiplos olhares 41
Naquele programa, a população organizada em associações deveria mostram que ao mesmo tempo em que o interesse social quer casas
contratar uma equipe técnica, sem fins lucrativos, para o desenvolvi- de maior qualidade, quer também um Estado que trate o cidadão com
mento do projeto das casas, da sua implantação e para atuar na obra responsabilidade e compartilhe com ele os processos de decisão.
orientando e fiscalizando a qualidade dos trabalhos.
É claro que, naquela gestão, o poder municipal acompanhou
Essa responsabilidade imensa sobre o empreendimento fez com esse esforço ativamente. A política habitacional previa e contava com
que a população, que não possuía experiência nesse tipo de organiza- a participação das associações de moradia. Treinamentos com o pes-
ção, enfrentasse os problemas decorrentes com criatividade e ousadia. soal técnico de carreira foram realizados para aumentar as chances
de desenvolvimento da proposta. Normas e procedimentos foram
E o mais importante: o fez com absoluta competência. Aprenden-
criados para regular esse novo relacionamento com as comunida-
do e se educando para operações cada vez mais complexas.
des. Material informativo foi preparado e distribuído para as demais
Materialmente foi uma experiência muito bem sucedida; as ca- áreas do governo municipal. As jornadas de trabalho foram revistas,
sas tinham o tamanho maior que aquelas realizadas por empreiteiras adaptadas aos novos programas.
e o custo significativamente menor. Foram projetados e construídos
A situação descrita nos mostra que o município que se compro-
edifícios de quatro andares, casas térreas, casa com dois pisos, centros
meter com processos amplos de educação poderá aplicar esse olhar
comunitários e arruamentos. A qualidade dos espaços da implantação
em todas as áreas. Das mais complexas até as mais simples normativas.
foi, em muitos casos, exemplar.
Mas, necessariamente, deverá construir espaços na estrutura munici-
Mas outros ganhos, talvez imensuráveis de tão importantes, se pal para acolher os resultados desse processo.
fizeram presentes.
Conforme Paulo Freire (2001, p. 38), “A democracia demanda
A organização popular evoluiu muito na discussão sobre a questão estruturas democratizantes e não estruturas inibidoras da presença
da habitação. Incluiu nos projetos a necessidade de escolas, transportes e participativa da sociedade civil no comando da república”.
creches. O movimento organizado participou de diversas reuniões em
O que vejo aproximar-se, nessa experiência, dos pontos levanta-
diversos âmbitos: municipal, estadual e federal. Propostas de políticas
dos pela proposta do Município que Educa, é a forte presença de uma
públicas foram encaminhadas para essas instâncias. Foram defendidas
onda educadora fora dos espaços tradicionais e formais da educação.
em encontros e reuniões, foram modificadas, evoluíram. Impactaram
programas em diversas prefeituras, mesmo após o término da gestão Uma onda que abrange desde os primeiros passos da organi-
paulista. Os programas federais na área de habitação ainda guardam zação da comunidade e que continua envolvendo os espaços de dis-
lembranças desses conceitos, no crédito solidário, minha casa minha cussão com o poder público, a elaboração dos projetos junto com os
vida, entidades etc. arquitetos, a organização da situação de obra, o arranjo da situação
mais adequada no canteiro para receber os mutirantes, o desenvol-
Exercendo seu direito de participar, lutando por ele, as pes-
vimento dos processos de compra de material, adaptações na estru-
soas transformaram situações totalmente desfavoráveis e abriram
tura municipal, enfim, é a educação presente nesse cotidiano que
novos caminhos.
contribuiu para o amadurecimento de todos os envolvidos.
Esforços como esses colaboram para a mudança cultural necessária,
Parece-me muito interessante considerar um mergulho nessa onda.

(Habi). Financiava a construção de casas por associações de moradores que se encarrega-


vam da gestão do empreendimento.

42 Múltiplos olhares 43
Referências ESPAÇO DA EDUCAÇÃO E
ESPAÇO DA VIDA
Ncfkuncw"Fqydqt;
FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 12. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981.
______. Política e Educação: Ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educa-
No município de Pintadas, na Bahia, pequeno município distante
tiva. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
da modernidade do asfalto, todo ano, quase a metade dos homens via-
java para o Sudeste para o corte de cana. A parceria de uma prefeita di-
nâmica, de alguns produtores e de pessoas com visão das necessidades
locais permitiu que os que buscavam emprego em lugares distantes se
voltassem para a construção do próprio município. Começaram com
uma parceria entre a secretaria da educação local e uma universidade
de Salvador, para elaborar um plano de saneamento básico da cidade, o
que reduziu os custos de saúde, liberou terras e verbas para a produção
e assim por diante. A geração de conhecimentos sobre a realidade local
e a promoção de uma atitude pro-ativa para o desenvolvimento fazem
parte evidente de uma educação que pode se tornar no instrumento
científico e pedagógico da transformação local.
Hoje se ensina o semiárido nas escolas de Pintadas. É natural que
este ensino, que permite às crianças a compreensão da sua região, das
dificuldades dos seus próprios pais nas diversas esferas profissionais,
estimule as crianças e prepare cidadãos que verão a educação como
instrumento de transformação da própria realidade.
Em Santa Catarina, sob orientação do sociólogo e professor Jacó

9 É doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de


Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de Democracia Econômica, A Re-
produção Social, O Mosaico Partido, Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação,
todos pela editora Vozes, além de O que Acontece com o Trabalho? (editora Senac) e coorga-
nizador da coletânea Economia Social no Brasil (editora Senac). Seus numerosos trabalhos
sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org

44
Anderle (1936-2005), foi desenvolvido o programa “Minha Escola, privilegiar o prático relativamente ao teórico, trata-se de construir ca-
Meu Lugar”. Trata-se de uma iniciativa sistemática de inclusão da re- pacidade teórica a partir do concreto conhecido. A criança que passa
alidade local nos currículos escolares, envolvendo a formação de pro- a entender o seu entorno descobre a mágica da explicação científica:
fessores – que, em geral, pela própria formação, também desconhecem “isto funciona”.
as suas regiões –, a elaboração de material didático, a articulação dos
Uma educação que insira nas suas formas de educar uma maior
currículos de diversas disciplinas e assim por diante. No Paraná, estão
compreensão da realidade local terá de organizar parcerias com os di-
desenvolvendo a experiência de Arranjos Educativos Locais.
versos atores sociais que constroem a dinâmica local. Em particular, as
A ideia da educação para o desenvolvimento local está direta- escolas, ou o sistema educacional local de forma geral, terão de articu-
mente vinculada à necessidade de se formar pessoas que amanhã pos- lar-se com universidades locais ou regionais para elaborar o material
sam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o correspondente, organizar parcerias com ONGs que trabalham com
seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas. Hoje, quando se tenta dados locais, conhecer as diferentes organizações comunitárias, inte-
promover iniciativas deste tipo, como é o caso do Programa Município ragir com diversos setores de atividades públicas, buscar o apoio de
que Educa, constata-se que não só as crianças, mas inclusive os adultos instituições do sistema S, como Sebrae ou Senac, e assim por diante.
desconhecem desde a origem do nome da sua própria rua até os po-
O processo é de duplo sentido, pois, por um lado, leva a escola
tenciais do subsolo da região onde se criaram. Para termos cidadania
a formar pessoas com maior compreensão das dinâmicas realmente
ativa, temos de ter uma cidadania informada, e isto começa cedo. A
existentes para os futuros profissionais e, por outro, leva a que estas
educação não deve servir apenas como trampolim para uma pessoa
dinâmicas penetrem o próprio sistema educacional, enriquecendo-o.
escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos necessários para
Assim, os professores terão maior contato com as diversas esferas de
ajudar a transformá-la.
atividades, tornar-se-ão, de certa maneira, mediadores científicos e pe-
Há uma dimensão pedagógica importante neste enfoque. Ao es- dagógicos de um território, de uma comunidade. A requalificação dos
tudarem de forma científica e organizada a realidade que conhecem professores, que isto implica, poderá ser muito rica, pois serão natural-
por vivência, mas de forma fragmentada, as crianças tendem a assi- mente levados a confrontar o que ensinam com as realidades vividas,
milar melhor os próprios conceitos científicos, pois é a realidade delas sendo de certa maneira colocados na mesma situação que os alunos,
que passa a adquirir sentido. Ao estudar, por exemplo, as dinâmicas que escutam as aulas e enfrentam a dificuldade em fazer a ponte entre
migratórias que constituíram a própria cidade onde vivem, as crianças o que é ensinado e a realidade concreta do seu cotidiano.
tendem a encontrar cada uma a sua origem, segmentos de sua identi-
O impacto em termos de motivação, para uns e outros, poderá
dade, e passam a ver a ciência como instrumento de compreensão da
ser grande, sobretudo para os alunos a quem sempre se explica que
sua própria vida, da vida da sua família. A ciência passa a ser apropria-
um dia entenderão porque o que estudam é importante. O aluno que terá
da, e não mais apenas uma obrigação escolar.
aprendido em termos históricos e geográficos como se desenvolveu o
O objetivo da educação não é desenvolver conceitos tradicionais de seu município, o seu bairro, terá maior capacidade e interesse em con-
educação cívica com moralismos que cheiram a mofo, mas permitir aos trastar este desenvolvimento com o processo de urbanização de outras
jovens que tenham acesso aos dados básicos do contexto que regerá as regiões, de outros países, e compreenderá melhor os conceitos teóricos
suas vidas. Entender o que acontece com o dinheiro público, quais são os das dinâmicas demográficas em geral.
indicadores de mortalidade infantil, quem são os maiores poluidores da
Envolve ainda mudanças dos procedimentos pedagógicos, pois é
sua região, quais são os maiores potenciais de desenvolvimento – tudo
diferente fazer os alunos anotarem o que o professor diz sobre Dona Car-
isto é uma questão de elementar transparência social. Não se trata de
lota Joaquina e organizar, de maneira científica, o conhecimento prático,

46 Múltiplos olhares 47
mas fragmentado, que existe na cabeça dos alunos. Em particular, seria São Paulo, ao mobilizar as comunidades para a elaboração de um
natural organizar, de forma regular e não esporádica, discussões que sistema de informações sobre a cidade, gerou uma rica matéria-
envolvam alunos, professores e profissionais de diversas áreas de ativi- prima para estudar tanto a cidade como metodologia de pesquisa
dades, desde líderes comunitários a gerentes de banco, de sindicalistas e instrumentos quantitativos.11
a empresários, de profissionais liberais a desempregados, apoiando es-
Enfim, há um mundo de conhecimentos dispersos e subutiliza-
tes contatos sistemáticos com material científico de apoio.
dos, que podem se tornar matéria-prima de um ensino diferenciado. O
Na sociedade do conhecimento para a qual evoluímos rapidamente, que visamos é uma escola um pouco menos lecionadora, e um pouco
todos – e não só as instituições de ensino – se defrontam com as di- mais articuladora dos diversos espaços do conhecimento que existem
ficuldades de se lidar com muito mais conhecimento e informação. em cada localidade, em cada região. E educar os alunos de forma a que
As empresas realizam regularmente programas de requalificação dos se sintam familiarizados e inseridos nesta realidade.
trabalhadores, e hoje trabalham com o conceito de “knowledge organi-
Há um potencial de democratização radical do apoio aos profes-
zation”, ou de “learning organizations”, na linha da aprendizagem per-
sores, e de nivelamento para cima do conjunto do mundo educacional
manente. Em cada município, podemos evoluir para uma estratégia
no País, que as tecnologias hoje permitem, e a luta por esta demo-
integrada de adensamento de conhecimentos disponíveis, gerando um
cratização tornou-se essencial na mudança sistêmica, que ultrapassa o
“knowledge territory”.10
nível de iniciativa do educador individual ou da escola isoladamente.
Acabou o tempo em que as pessoas primeiro estudam, depois Não há dúvida que o educador frequentemente ainda se debate com
trabalham, e depois se aposentam. A relação com a informação e o os problemas mais dramáticos e elementares. Mas a implicação prática
conhecimento acompanha cada vez mais as pessoas durante toda a sua que vemos, frente à existência paralela deste atraso e da modernização,
vida. É um deslocamento profundo entre a cronologia da educação é que temos que trabalhar em dois tempos, introduzindo melhorias no
formal e a cronologia da vida profissional. Neste sentido, todas as orga- universo tradicional que constitui a nossa educação, mas criando ra-
nizações, e não só as escolas, se tornaram instituições onde se aprende, pidamente as condições para uma transformação que se aproprie dos
se reconsidera os dados da realidade. A escola precisa estar articulada novos potenciais que surgem. Há que melhorar o sistema que existe,
com estes diversos espaços de aprendizagem, para ser uma parceira mas também organizar a transição para a sociedade do conhecimento
das transformações necessárias. e o novo tipo de demanda para o universo escolar que isto implica.
Aparecem, como parceiros necessários, as universidades regio- O que temos hoje é uma rápida penetração das tecnologias e uma
nais, as empresas, o sistema S, diversos órgãos da prefeitura, as ONGs lenta assimilação das implicações que estas tecnologias trazem para
ambientais, as organizações comunitárias, a mídia local, as represen- a educação. Convivem assim dois sistemas pouco articulados, e fre-
tações locais do IBGE, Embrapa e outros organismos de pesquisa e quentemente vemos escolas que trancam computadores numa sala, o
desenvolvimento. No plano da implantação local de tecnologias a ser- “laboratório”, em vez de inserir o seu uso em dinâmicas pedagógicas
viço da educação, o exemplo de Piraí, pequena cidade do Estado do repensadas. Superar tais práticas é o desafio permanente da socieda-
Rio, é importante, bem como o de Nova Iguaçu. O movimento Nossa de contemporânea, o que contribui para a compreensão de que um
Município que Educa integra e considera os espaços da educação e os
espaços da vida.
10 Isto envolve também que se reduzam drasticamente os “pedágios” sobre circulação do
conhecimento que hoje cobram os mais variados intermediários, em nome da “luta contra
a pirataria”. Sobre este assunto ver o nosso Da propriedade intelectual à sociedade do conhe- 11 O sistema, hoje em construção em dezenas de cidades no Brasil, está disponível em
cimento, artigo disponível em http://dowbor.org/09propriedadeintelectual7out.doc www.nossasaopaulo.org.br

48 Múltiplos olhares 49
EDUCAÇÃO INTEGRAL E
COMUNITÁRIA: O REMIRAR-SE
DA CIDADE E DA ESCOLA
Lcswgnkpg"Oqnn34
Iguw pc"fg"H vkoc"Gnkcu"Ngengte35

A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia contemplam-se. Qual delas falará pri-


meiro? Quem tem a dizer ou a esconder uma em face da outra? Que mágoas,
que ressentimentos prestes a saltar da goela coletiva e não se exprimem?
Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea capital? Por que Brasília
resplandece ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia, filhos da majes-
tade de Brasília? E pensam-se, remiram-se em silêncio as gêmeas criações do
gênio brasileiro. (ANDRADE, 2001, p. 1.270)

O crescente conteúdo de ciências, técnicas e informação que mar-


ca as configurações territoriais na atualidade, no contexto de profun-
das desigualdades sociais e de exclusão que caracterizam a sociedade
brasileira, serve de pano de fundo para a temática educação integral no
Município que Educa14. O presente recorte está relacionado à partici-
pação na implementação do Programa Mais Educação, instituído por

12 Jaqueline Moll é graduada em Pedagogia, especialista em Alfabetização e Educação Po-


pular, mestra e doutora em Educação, tendo realizado parte dos estudos na Universida-
de de Barcelona. É professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
professora colaboradora da Universidade de Brasília e Diretora de Educação Integral,
Direitos Humanos e Cidadania do Ministério da Educação. Sua formação, produção
e ação pedagógica vem sendo construída no campo das políticas públicas de educação
com ênfase em alfabetização, educação de jovens e adultos, fracasso escolar, pedagogias
urbanas e relações entre escola e cidade.
13 Gesuína de Fátima Elias Leclerc é Doutora em Educação pela Universidade Federal da
Paraíba, foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Gros-
so, Consultora da Unesco e OEI com atuação na Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade/MEC. Atualmente é Professora Visitante Nacional da Uni-
versidade Federal do Ceará.
14 Aplicamos ao município que educa o mesmo uso do conceito cidade educadora: possibi-
lidade de converter o território urbano em espaço educador, por meio de intencionali-
dades pedagógicas dos diferentes atores que vivem a cidade (MOLL, 2004).
meio da Portaria Interministerial nº 17/2007, tendo como signatários O desenvolvimento da produção material e formas de produção
os Ministérios da Educação, da Cultura, do Esporte e do Desenvol- não material, sua circulação e consumo, também participam da con-
vimento Social e Combate à Fome; e regulamentado pelo Decreto nº figuração territorial. Nela, emergem as tecnologias sociais para desen-
7.083/2010, para ampliar o tempo de permanência de crianças, ado- volvimento de políticas públicas, como um arranjo de sistemas, objetos
lescentes e jovens na escola e em outros espaços educativos, com o e ações. Uma tecnologia social “compreende produtos, técnicas ou me-
fomento de atividades de educação integral15. Nesse sentido, o desafio todologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade
maior é participar da aproximação do Ministério da Educação em rela- e que representem efetivas soluções de transformação social” (RODRI-
ção ao chão da escola, em diálogo cotidiano com os sistemas de ensino GUES; BARBIERI, 2008, p. 1.070). É preciso enfatizar o processo de
estaduais e municipais, conforme as ações do Plano de Desenvolvi- produção dessa tecnologia, em relação aos atores sociais, à proposição
mento da Educação. Essa aproximação é tensionada, mediante a força e à vivência da gestão democrática. Uma tecnologia social com essas
da crença compartilhada de que o chão da escola é espaço de produção características emerge da práxis dos sistemas de ensino, movimentos
de conhecimento, saberes e vivências, no qual, historicamente, se tem sociais, sindicais, organizações não governamentais, universidades e
boas razões para desconfianças em relação às decisões emanadas desde promove arranjos educativos locais16.
Brasília (LECLERC, 2010). Nos casos em que os projetos e programas
Falemos de dois papéis do Ministério da Educação (MEC) em
dialogam com essa produção e se deixam remodelar, então, os projetos
relação ao exposto. Um deles é o de possibilitar o intercâmbio das tec-
e programas são promissores quanto à conversão em políticas públi-
nologias sociais, contribuir para sua replicabilidade e escala, mediante
cas. O Programa Mais Educação é uma aposta nessa direção e oferece
o financiamento e a indução de políticas públicas. Esse papel se torna
o repertório de práticas que inspiram esta reflexão. Na expressão de
consequente com o reconhecimento do enorme contingente de crian-
Milton Santos (2008, p. 41):
ças, adolescentes e jovens fora das ações de educação integral, prin-
A configuração territorial é formada pelo conjunto de sistemas de engenharia cipalmente em razão das poucas horas diárias de escola. A variável
que o homem (sic) vai superpondo à natureza, verdadeiras próteses, de maneira tempo é necessária na formulação do problema da oferta de educação
a permitir que se criem as condições de trabalho próprias de cada época. O integral no Brasil, mas está longe de ser suficiente para seu equacio-
desenvolvimento da configuração territorial na fase atual vem com um desen-
namento. É preciso que essa variável esteja associada à integralidade
volvimento exponencial do sistema de transportes, do sistema de telecomunica-
ções e da produção de energia. do desenvolvimento humano; às práticas que facilitam a convivência
e tornam a escola um lugar atraente, por exemplo. Outra variável é a
reinvenção do espaço, considerando-se o desafio imperativo da rein-
15 O Programa Mais Educação oferece dez macrocampos de atividades de educação inte- venção da escola, como fruto do diálogo entre Estado e sociedade,
gral: acompanhamento pedagógico: matemática, letramento, ciências, história e geografia,
línguas estrangeiras, filosofia e sociologia; meio ambiente: Agenda 21 na escola/com- entre escola e comunidade e como resultado da imaginação institucio-
vida, horta escolar e/ou comunitária; esporte e lazer: recreação e lazer, voleibol, basquete, nal propulsora de “inéditos pedagógicos e administrativos viáveis”.
basquete de rua, futebol, futsal, handebol, tênis de mesa, judô, karatê, taekwondo, yoga,
natação, xadrez tradicional, xadrez virtual, atletismo, ginástica rítmica, corrida de ori-
entação, ciclismo, tênis de campo e o Programa Segundo Tempo; direitos humanos em
educação: direitos humanos no ambiente escolar; cultura e artes: leitura, banda, fanfarra,
canto coral, hip-hop, danças, teatro, pintura, grafite, desenho, escultura, percussão, ca- 16 Uma referência de arranjo educativo local é a constituição de Comitês Locais e Metro-
poeira, iniciação musical por meio da flauta doce, cineclube, práticas circenses, mosaico; politanos. O Comitê é o espaço de participação sistemática das Secretarias de Educação,
cultura digital: software educacional, informática e tecnologia da informação, ambiente Universidades e dos diferentes atores sociais que implementam ou apoiam as ações de
de redes sociais; prevenção e promoção da saúde: atividades de prevenção e promoção da abertura de escolas públicas, aos finais de semana e do Programa Mais Educação. Des-
saúde; educação e uso de mídias: jornal escolar, rádio escolar, histórias em quadrinhos, taca-se o esforço para coordenar as participações dos profissionais da educação, saúde,
fotografia e vídeo; investigação no campo das ciências da natureza: laboratórios e proje- esporte e lazer, assistência social, gestores, professores, estudantes e suas famílias, volun-
tos científicos; educação econômica: atividades de educação econômica. tários e parceiros.

52 Múltiplos olhares 53
Estamos diante de uma possibilidade histórica da construção de po- favor de uma visão do território traduzido em seus hibridismos17, sobre-
líticas permanentes e sustentáveis de educação integral, em tempo inte- posições de sentidos, linguagens não hegemônicas, modus vivendi, em
gral, vinculadas à replicabilidade e escala de tecnologias sociais. Não se múltiplas e heterogêneas geografias, culturas, traços identitários, rela-
pode pensar em educação integral por meio da formatação de “ilhas-mo- ções geracionais, de gênero, de classe e de etnias.
delo de excelência” ou “vitrines”, que isolem algumas escolas, dando-lhes
As possibilidades de se traduzir essa nova visão, proposições e
condições inimagináveis para o conjunto das redes e sistemas públicos de
desejos, em projetos educativos intersetoriais, desde a escola, passam
ensino (MOLL, 2010). Por sua vez, os processos educativos, na contem-
pela mudança do olhar acerca do lugar que crianças, adolescentes e
poraneidade, embora passem impreterivelmente pela escola, transcendem
jovens ocupam na configuração territorial. Tal problema se converte
a instituição escolar. O monitoramento das tarefas diárias atribuídas aos
em indagações, com base no que sugere Francesco Tonucci:
estudantes, seu engajamento em atividades de cultura e arte, esporte e la-
zer, manejo de mídias, acesso à internet, sua participação em atividades Até agora, e com maior destaque nas últimas décadas, se pensou, projetou e
de prevenção aos agravos da saúde, promoção da saúde, educação para avaliou a cidade tomando como parâmetro um cidadão médio, com as caracte-
os direitos humanos, educação ambiental, práticas de economia solidária rísticas de um adulto, homem, trabalhador e que corresponde ao eleitor forte.
Deste modo a cidade perdeu aos cidadãos não adultos, não homens, não traba-
e compreensão crítica do funcionamento das finanças, e assim por diante, lhadores, cidadãos de segunda categoria, com menos direitos ou sem eles [...] a
na lista imaginária sempre crescente das demandas contemporâneas; tudo proposta é, então, substituir esse parâmetro pela criança. [...] Trata-se de fazer
isso demanda a oferta de educação integral, sob coordenação da própria com que a Administração abaixe seus olhos para a altura de uma criança de
escola, mas nem sempre em suas instalações. E não apenas porque falta modo a não perder ninguém de vista e, desse modo, de aceitar a diversidade
intrínseca da criança como garantia de todas as diversidades (1998, p. 33-34)18.
espaço nas instalações escolares. Sob coordenação da escola, porque essa
representa o principal espaço de acesso aos direitos sociais para os setores Como construir políticas públicas em favor dessa inscrição nas
populares. A política educacional deve articular-se a uma ampla rede de configurações territoriais, a começar pelas cidades? Que alcance pode
políticas sociais e culturais, de atores sociais e de equipamentos públicos. ter a ação da escola em um Município que Educa? Como esse alcance
Nisso reside a importância de se considerar as políticas para um muni- desejado se converte em currículo? Essas reflexões e indagações expli-
cípio educador, articulando-se as relações entre município, comunidade, citaram-se ao longo da implementação do Programa Mais Educação,
escola e os diferentes agentes educativos, de modo que a própria cidade se no encontro entre a escola e a comunidade, entre saberes populares e
constitua como agente educativo. acadêmicos, entre aspectos formais e informais que transitam no espaço da
O outro papel do MEC é o de promover a intersetorialidade das po-
líticas governamentais e a mobilização da família e da comunidade. Desta-
17 Este uso de hibridismo refere-se à capacidade de combinar vivências de uma determi-
cam-se as ações intersetoriais entre os campos da proteção ocial, prevenção
nada população com informações de outras populações, a fim de produzir resultados
a situações de violação de direitos da criança e do adolescente, educação nas políticas públicas, de auxiliar a produção de conhecimento pelos grupos de menor
para os direitos humanos, sustentabilidade ambiental e os campos da pro- poder e a recepção de vozes marginalizadas pelas culturas dominantes.
18 Hasta ahora, y con mayor acento en las últimas décadas, se ha pensado, proyectado y
posição da melhoria do desempenho escolar, com a permanência na es-
evaluado la ciudad tomando como parámetro un ciudadano medio con las caracterís-
cola. Tal articulação se torna consequente nas interfaces que os atores da ticas de adulto, hombre y trabajador, y que corresponde al elector fuerte. De este modo
ação pública, dos diferentes campos, estabelecem entre si, a serviço e em la ciudad ha perdido a los ciudadanos no adultos, no hombres y no trabajadores, ciuda-
danos de segunda categoría, con menos derechos o sin ellos.[…] la propuesta es, pues,
diálogo com as demandas das pessoas que vivem nos territórios marcados sustituir al ciudadano medio, adulto, hombre y trabajador por el niño. Se trata, en cam-
pelas vulnerabilidades sociais. O Município que Educa supera a visão do bio, de conseguir que la Administración baje sus ojos hasta la altura del niño, para no perder
território como algo linear, homogêneo, organizado desde um centro de vista a ninguno. Se trata de aceptar la diversidad intrínseca del niño como garantía de
todas las diversidades.
irradiador de decisões, saberes e vontades, em oposição às periferias; em

54 Múltiplos olhares 55
escola, entre a oferta de disciplinas e novas atividades, linguagens e atores ______. A cidade educadora como possibilidade. In: TOLEDO, Leslie;
sociais. Nas palavras de Sennett, trata-se da “compaixão cívica que pro- FLORES, M. L. Rodrigues; CONZATTI, Marli (Org.). Cidade Edu-
vém do estímulo produzido por nossa carência, e não pela total boa vonta- cadora. A experiência de Porto Alegre. São Paulo: Cortez, 2004, p.
de ou retidão política” (2001, p. 300). Como possível resposta, encontra-se 39-46.
em curso a formulação de um componente integrador da política pública
RODRIGUES, Ivete; BARBIERI, José Carlos. A emergência da tecnolo-
educacional. É nela que situamos o remirar-se da escola e da cidade, como
gia social: revisitando o movimento da tecnologia apropriada como
gêmeas criações, à maneira como fala Drummond. Trata-se da construção
estratégia de desenvolvimento sustentável. Revista de Administração
e do aprofundamento da agenda de educação integral; como tarefa refe-
Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 6, 2008. Disponível em: <http://
renciada na gestão, operacionalização e na perspectiva de sustentabilidade
www.scielo.br/pdf/rap/v42n6/03.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2010.
em ações como as que o Programa Mais Educação mobiliza. Essas ações se
desdobram na promoção da intersetorialidade das políticas públicas, para SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp,
evitar a pulverização dos esforços institucionais; em favor do currículo, da 2008.
superação dos turnos escolares; da formação dos profissionais da educa- SENNETT, Richard. O corpo e a cidade na civilização ocidental. São
ção na perspectiva da educação integral e do professor em tempo integral; Paulo: Record, 2001.
e da qualificação do ambiente escolar para favorecer a permanência na
escola e a aprendizagem dos estudantes. Essa agenda de educação integral TONUCCI, Francesco. La ciudad de los niños. Um modo nuevo
pode converter-se em elemento dinamizador do Município que Educa e de pensar La ciudad. Madri: Fundación Germán Sánchez Rui-
se educa para (re)encontrar-se com suas crianças, adolescentes e jovens. pérez, 1998.

Referências

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pleta (Corpo). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
LECLERC, Gesuína de Fátima Elias. Desafios para a gestão escolar
em contextos de implementação de programas federais. In: SEMI-
NÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO EDUCACIONAL, 2.,
2010, Santa Maria. Anais... Santa Maria: Universidade Federal de
Santa Maria, 2010. Trabalho apresentado também na IV Semana
Acadêmica do Curso de Especialização em Gestão Educacional na
Universidade de Santa Maria, 2010.
MOLL, Jaqueline. Educação Integral na perspectiva da reinvenção
da escola. Elementos para o debate a partir do Programa Mais
Educação. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E
PRÁTICA DE ENSINO, 15., 2010, Belo Horizonte. Anais... Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.

56 Múltiplos olhares 57
CRIANÇAS, ADOLESCENTES/
JUVENTUDES NO
MUNICÍPIO QUE EDUCA

Htcpekuec"Rkpk"3;
Tqdgtvc"Uecvqnkpk"42

Para refletir sobre a participação das crianças e dos adolescentes/


das juventudes no Município que Educa, elaboramos esta reflexão em
três momentos: o primeiro, que compreende a concepção de crianças,
adolescentes/juventudes e a relação jurídico-social formulada pela so-
ciedade brasileira; o segundo, a relação do município com as crianças,
adolescentes e juventudes; e, o terceiro, os avanços e desafios para o re-
conhecimento dos sujeitos no processo de construção do município.
Diversos autores, como Melo (2009) e Abramo (1994), concei-
tuam crianças e adolescentes/juventudes como parte de um processo
socialmente construído. Para as crianças este processo ocorre por meio
das aprendizagens estabelecidas com o mundo que as rodeia, o que
lhes possibilita desenvolver-se como ser humano, com a organização
das sensações sob a forma da percepção, o pensamento, a fala, as dife-
rentes formas de expressão, a memória, a imaginação, que constroem
as habilidades, os valores, os hábitos, as formas de relacionar-se com
os outros e os sentimentos. Esse conjunto de fatores possibilitará o seu
desenvolvimento pleno e o seu reconhecimento como sujeito social,
desde que os percursos trilhados com os adultos possam lhes favorecer
uma educação voltada para a autonomia.
No que se refere aos adolescentes/juventudes, há diferentes formas

19 Assistente social, mestre e doutora em políticas sociais e movimentos sociais pela PUC/
SP. Diretora Pedagógica do Instituto Paulo Freire, professora de Movimentos Sociais da
Faculdade de Mauá e sócia fundadora do Cedeca Paulo Freire.
20 Psicóloga, coordenadora de Projetos do Instituto Paulo Freire e mestranda em Psicologia
da Educação pela PUC/SP.
de conceituá-los, tendo em vista a complexidade dessa fase da vida. Estes conceitos ganharam repercussão social, política e acadê-
É consenso entre os teóricos que os aspectos biológicos, jurídicos, mica a partir dos anos de 1990, quando são colocadas em evidência
psicológicos e sociológicos precisam considerar as dimensões só- as problemáticas sociais e relacionadas com esse segmento. A con-
cio-históricas, para compreender as diversas adolescências/juventudes. tradição presente nesta questão é que as crianças, adolescências/
Elas podem se expressar por meio das diferentes manifestações cul- juventudes, em sua maioria, pobres, são apresentadas como pro-
turais urbano-rurais, que são traduzidas pela música, roupa, pos- blema, em um contexto social em que se conquistaram os direitos
tura, comportamento e os espaços que ocupam. Estes fatores estão sociais no Brasil.
ligados a diferentes vivências, que variam de acordo com a condi-
Outras garantias foram conquistadas para ao segmento crianças,
ção socioeconômica.
adolescências/juventudes com a Doutrina da Proteção Integral, dentre
As adolescências/juventudes brasileiras, desde a década de 1990, elas, os direitos fundamentais: o direito à vida e à saúde, o direito à
tornaram-se alvos da mídia, e as matérias veiculadas sobre elas centra- liberdade, ao respeito e à dignidade, o direito à convivência familiar e
ram-se na questão da violência e do consumo. É importante salientar comunitária, o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer e o
que, em 2007, o Brasil tinha cerca de 50 milhões de pessoas na faixa direito à profissionalização e à proteção no trabalho.
etária de 15 a 29 anos (IBGE). Sendo que, segundo dados da Pesquisa
Cabe salientar que o processo de mobilização social decorrente dos
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, 29,8% destes
movimentos sociais contribuiu com a criação, no ano de 2005, da Secre-
jovens poderiam ser considerados pobres porque viviam em famílias
taria Nacional da Juventude, do Conselho Nacional da Juventude (Conju-
com renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Entre 15 e 17
ve), bem como do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem).
anos, apenas 47,9% cursavam o ensino médio e 4,8% milhões de jovens
Estas conquistas apontam para uma necessidade de adensar o debate e a
eram desempregados, correspondendo a uma taxa de desemprego três
formulação de políticas públicas, em torno das demandas dos jovens.
vezes maior que a dos adultos. Esse dado nos revela que a população
brasileira é composta de um percentual significativo jovem e em sua Neste sentido, tanto o Conselho dos Direitos da Criança e do
maioria empobrecida. Situação que nos convoca a pensar como estão Adolescente (Conanda) quanto o Conselho da Juventude são avanços
sendo formuladas as respostas às demandas apresentadas por esta fai- jurídico-sociais que devem representar as vozes dos sujeitos na agenda
xa etária, de modo a assegurar o seu pleno desenvolvimento, em face da política pública, em nível federal, estadual e municipal.
da situação peculiar de desenvolvimento. A relação do município com as crianças e os adolescentes/ juventudes
É importante compreender a formulação do ponto de vista jurídi- Considerando a relação do município com as crianças e ado-
co-social, subjacente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei lescentes/juventudes podemos afirmar que houve uma conquista do
8.069/90, a qual reconhece criança a pessoa até doze anos incompletos e ponto de vista institucional estatal e não estatal, a qual vem se desen-
adolescentes os que estão na faixa etária entre doze e dezoito anos (Art. 2º). volvendo de forma articulada com as demais esferas em algumas ações
A Organização Mundial da Saúde amplia a compreensão de ado- e em outras de forma isolada.
lescências/juventudes e considera a fase da vida que tem como base: Desde 1990, diversos órgãos públicos foram criados para atuar
[...] a passagem das características sexuais secundárias para a maturidade sexual, a em prol da política para a infância e adolescência/juventude. Iremos
evolução dos padrões psicológicos, juntamente com a identificação do indivíduo destacar três: o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente,
que evolui da fase infantil para adulta, e a passagem do estado de total dependên-
cia para o de relativa independência [...] Ser ou não adolescente está diretamente criado e implementado nas três esferas – municipal, estadual e nacio-
relacionado com as condições sociais e econômicas, ou melhor dizendo, ao lugar nal –, cuja atribuição é a de formular e deliberar políticas de forma in-
que cada um ocupa em relação a estrutura social (ABRAMOVAY, 2004, p. 404). tersetorial, articulada e transversal; o Conselho Tutelar, órgão zelador

60 Múltiplos olhares 61
pelo cumprimento do direito da criança e do adolescente, o qual deve A educação que Paulo Freire nos convida a realizar é voltada para
assegurar a defesa, a promoção e a garantia dos direitos, existente apenas a vida, e seus princípios são pautados na ética, na estética, na politici-
no município; e o Conselho Nacional da Juventude, órgão deliberativo dade, no diálogo, na democracia e em conteúdos comprometidos com
cuja atuação tem favorecido a criação de conselhos municipais e esta- a construção de relações humanizadoras. Desse modo, o compromisso
duais. Em abril de 2008, em Brasília, realizou-se a Primeira Conferência de educar não é somente da escola, mas de todos os espaços que com-
Nacional de Políticas Públicas para a Juventude, cujo debate pautou-se preendem este ato como uma construção de uma nova sociabilidade
nos seguintes temas: trabalho, ensino superior, educação profissional e no âmbito do município/nação.
tecnológica, educação básica – ensino médio e elevação da escolaridade,
Avanços e desafios para o reconhecimento das crianças e adolescen-
cultura, sexualidade e saúde, segurança pública, meio ambiente, política
tes/juventudes no processo de construção do município
e participação, tempo livre e lazer, esporte, drogas, comunicação e inclu-
são digital, cidades, família, povos e comunidades. Reconhecer apenas do ponto de vista legal e teórico que as crian-
ças e adolescentes/juventudes são sujeitos de direitos, por isso preci-
Em nossa compreensão, o município é o principal ente da federação
sam participar com direito a voz e vez nos processos participativos,
em que o exercício da cidadania pode ser ampliado desde a infância. É nele
tem sido insuficiente para ampliar os espaços de cidadania ativa.
onde as pessoas moram, relacionam-se e podem promover sua participação
efetiva, desde que os órgãos governamentais, como a escola, a Unidade Na história dos direitos da infância e juventude, a Convenção In-
Básica de Saúde, o posto policial, os espaços de lazer e cultura, e os não go- ternacional dos Direitos da Criança de 1989 marca no mundo a refle-
vernamentais, como as empresas, os sindicatos, as igrejas e as diversas or- xão da criança como sujeito de direitos;isso significa assegurar-lhes a
ganizações, envidem esforços para que os cidadãos tenham assegurado o participação na luta por direitos humanos.
direito efetivo da participação cidadã. Não estamos afirmando que não exis- No Brasil, diversas ações foram criadas para assegurar à criança, ao
tam contradições, mas pelo fato do município oferecer uma maior proximi- adolescente e a juventude, sua participação ativa, reconhecendo suas opi-
dade do cidadão com as pessoas que coordenam suas estruturas pode haver niões e expressões. Podemos citar as conferências, que, desde 1999, têm
maior diálogo na construção do bem comum e as crianças, adolescentes/ assegurado a participação delas no processo de elaboração, realização e
juventudes terem mais vozes nos processos relacionados com suas vidas. sistematização. É possível afirmar que tais mecanismos de participação
Fortalecer o exercício da cidadania desde a infância significa envolver têm influenciado na cultura e tradição de como elas eram tratadas, o que
crianças, adolescentes e jovens na vida cotidiana da escola e de suas comuni- exige na atualidade mudanças e abertura a essa nova forma de educá-las.
dades mediante a palavra dialogada. Esse exercício promove o diálogo inter- Esses avanços demonstram o reconhecimento de que as crianças,
geracional tão necessário às relações sociais e ao aprendizado das culturas. adolescentes e juventudes são partes importantes da sociedade e cons-
Esta construção implica em reconstruir o papel do Município e truir a cidadania com elas, significa romper com a visão adultocêntrica
torná-lo educativo (PADILHA, 2009). Desse modo, Freire nos diz: e vivenciar novos tempos em que todos ensinam e aprendem.

[...] porque não discutir com os alunos a realidade concreta que se deva associar a
A experiência do Programa Cultura Viva também é um exemplo de
disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a cons- política pública para juventudes que tem se efetivado nos municípios. Atu-
tante e a convivência das pessoas é mais com a morte do que com a vida? Por que não almente, existem mais de 700 iniciativas culturais da sociedade civil, conve-
estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamental niadas ao Ministério da Cultura (Minc), que oferecem espaços formativos
aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir
as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas
e de apoio a grupos de jovens no acesso e participação de manifestações
pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?” (1997, p. 33-34). culturais, que estimulam a criação e disseminação da cultura. Além dessa
característica geral, o Programa oferece uma ação específica, que é o Agente

62 Múltiplos olhares 63
Cultura Viva, da Secretaria de Cidadania Cultural, onde, por meio de edital, ABRAMOVAY, Miriam (Org.). Juventudes e sexualidade. Brasília, DF:
90 Pontos de Cultura contam com 360 jovens bolsistas. É uma alternativa Unesco Brasil, 2004.
para que os jovens de classe trabalhadora também tenham a oportunidade BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente.
de vivenciar essas experiências socioculturais e educativas, exercendo o pro- Brasília, 1990.
tagonismo juvenil, inclusive na discussão da Política Pública de Juventude e
CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria C. de; ANDRA-
da Política Nacional de Juventude.
DE, Carla Coelho (Org.). Juventude e políticas sociais no Brasil.
Diversos municípios, por meio das Secretarias de Educação, cuja Brasília: Ipea, 2009.
concepção de gestão democrática é compartilhada, têm ampliado os
CHAUI, Marilena. Considerações sobre a democracia e os obstáculos
espaços de participação da cidadania desde a infância. Este movimen-
à sua concretização. In: TEIXEIRA, Ana Cláudia Chaves (Org.). Os
to tem trazido para a comunidade educativa uma nova cultura políti-
sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Polis,
ca, a qual reconhece a criança e o adolescente/jovem como sujeitos da
2005. p. 23-30. (Caderno Polis, 47).
história. Este reconhecimento promove no município uma inversão no
MELO, Suely. Algumas implicações pedagógicas dos estudos de
olhar e na prática dos adultos em relação às crianças e delas em relação
Vygotsky para a educação das crianças de 0 a 10 anos. In: Caderno
aos diversos grupos que se relacionam.
de Formação da Reorientação Curricular da Educação Infantil e
Para Chauí (2005), do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Osasco. São Paulo:
Isso significa que a democracia não se limita a garantir direitos, mas tem como ca- Instituto Paulo Freire, 2010.
racterística principal a criação de direitos novos, postos pelas condições históricas PADILHA, Paulo Roberto. Município que educa: nova arquitetura da
e pelas lutas sociopolíticas. Única forma sociopolítica na qual o caráter popular Gestão Pública. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Frei-
do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida
re, 2009. (Caderno de Formação, 2).
em que os direitos só ampliam seu alcance ou surgem como novos pela ação das
classes populares [...] Isso significa, portanto, que a cidadania se constitui pela e na SPOSITO, Marília Pontes. Considerações em torno do conhecimento so-
criação de espaços sociais de lutas (os movimentos sociais, os movimentos popu- bre juventude na área da educação. In: ESTADO do Conhecimen-
lares, os movimentos sindicais) e pela instituição de formas políticas de expressão to. Juventude. Brasília: Inep, 2001.
permanente (partidos políticos, Estado de direito, políticas econômicas e sociais)
que criem, reconheçam e garantam direitos. (p. 24-25).

Desse modo, o desafio posto ao Município que Educa é compre-


ender o seu papel de promotor de acesso a novos direitos, em que a
criança e o adolescente/jovem façam parte dessa conquista e que o
convívio e o respeito com a diversidade contribuam com a construção
de relações sustentáveis e de cooperação e as expressões das crianças e
adolescentes/juventudes estejam presentes na vida do município.

Referências

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetácu-


lo urbano. São Paulo: Página Aberta, 1994.

64 Múltiplos olhares 65
MUNICÍPIO QUE EDUCA E
DIVERSIDADE CULTURAL:
UMA QUESTÃO DE DIREITO

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O estabelecimento de um único padrão civilizatório é a negação daquilo que


seria a mais importante característica humana e cultural, a sua capacidade de se
construir de forma diferente, em tempos diversos e em espaços múltiplos para
afrontar a diversidade de problemas, obstáculos impostos pelos eventos histó-
ricos de forma variada e própria em um processo contínuo de reinventar-se e
superar-se (RISCAL, 2009, p. 23)

Um dos princípios do Município que Educa é a articulação dos


diversos atores locais do município: poder público, sindicatos, empre-
sariado, associações, ONGs, movimentos sociais, universidades, asso-
ciações de bairro, líderes comunitários, secretarias municipais, magis-
tério público, escola, legislativo municipal, líderes religiosos, conselhos
gestores, Ministério Público, entre outros. Em uma construção con-
junta, eles devem elaborar um plano de trabalho que dê conta de po-
tencializar as ações educativas e promover a articulação entre elas. Esse
plano deve ser canalizado na direção de políticas públicas afirmativas,
visando a combater, entre outros desafios, o quadro de desigualdade e
discriminação de gênero e raça.
Nesse contexto, uma articulação entre justiça social e educação,
levando em consideração a inclusão, a diversidade e a igualdade, pre-
cisa ser, além de uma frase retórica, algo que se cumpra por meio da
vivência cotidiana do exercício da democracia e da cidadania. Deve

21 Marilândia Frazão é professora psicopedagoga e estudiosa das questões etnicorraciais


na educação/gestão pública. Coordenadora Geral do Fórum Estadual Educação e Di-
versidade Etnicorracial/SP, membro da coordenação estadual da Comissão de Assuntos
Educacionais (Caed) do Partido dos Trabalhadores e da coordenação estadual da Coor-
denação Nacional de Entidades Negras de São Paulo (Conen-SP).
garantir a um número cada vez maior de pessoas, de forma equânime, Assim, o Município que Educa, dentro de suas ações, tem que
os direitos sociais e humanos. Uma democracia que não nega e nem se estabelecer uma nova visão plural de mundo, que divulgue um novo
opõe à diversidade, antes a incorpora como constituinte das relações modelo de sociedade que respeite, valorize e incorpore a diversida-
sociais e humanas e se posiciona na luta pela superação do trato desigual de humana e cultural na sua especificidade. Esse município terá como
dado à diversidade ao longo da nossa história econômica, política e tarefa contribuir com as gerações futuras e garantir a participação de
cultural (CONAE, 2010). novos sujeitos sociais que possam atender o cidadão e a cidadã, no
campo social e no campo individual. A fusão desses dois campos gera
É fundamental que as ações do Município que Educa sejam subsidia-
os preceitos fundamentais que orientam a elaboração dos novos cur-
das pela formação de todos os envolvidos e contem com ampla participação
rículos, do fazer pedagógico e de suas práticas, além das relações da
e apoio de todos os atores do município. Só assim será possível uma política
escola com a comunidade e com o mundo, frente às necessidades de
local capaz de identificar e reduzir as desigualdades sociais que assolam a so-
todas as pessoas mas, especialmente, de uma grande parcela da popu-
ciedade brasileira. Nesse sentido, faz-se necessário estabelecer, na contramão
lação, ou seja, as camadas populares e empobrecidas.
da história, um novo elo entre o sujeito, a sociedade e o município, descons-
truindo a lógica da exclusão e criando um novo vínculo a partir da ética, da Para o Município que Educa, a discussão sobre educação democrá-
solidariedade e da consciência das relações existentes entre etnia, gênero e tica transcende a esfera escolar, envolvendo a questão afetiva e as condi-
classe; isto é, desenvolver a capacidade de perceber o outro como um outro ções de igualdade entre homens e mulheres em todos os espaços e tempos
legítimo e não como um estranho. Trata-se, na verdade, de entender a di- da comunidade. Entendemos, dessa forma, que esta questão, mais do
versidade humana como riqueza e parte imprescindível da biodiversidade; que pedagógica, é política. E consideramos, portanto, que a educação
entender as diferenças étnico-culturais, de gênero e religiosas como elemen- pode e deve ter um papel político: o de contribuir na organização de
tos basilares para a pluralidade humana e multiculturalidade. No entanto, o uma nova ordem social, mais justa, mais igualitária e popular.
reconhecimento das diferenças não pode levar a extremos de desigualdade,
O cidadão social busca, na educação, a garantia de sua identidade e
visto que esta é um conceito ético, relativo à dignidade coletiva, e, por essa
a sua manutenção cultural. No campo individual, almeja a (re)construção
razão, mulheres, homens, ocidentais, negros e brancos, indígenas, brasilei-
de sua capacidade humana e de seu desenvolvimento intelectual e afetivo,
ros, palestinos, árabes, somos todos diferentes, mas nunca desiguais.
buscando, por exemplo, no cotidiano escolar, uma ação interdisciplinar
Nessa direção, o Município que Educa tem um grande desafio a que incorpore a diversidade humana e cultural, os diferentes saberes, sem-
enfrentar, que é considerar a diversidade como um conceito estrutu- pre em uma perspectiva de se relacionar com o outro, ou seja, com base no
rante na garantia da universalidade dos direitos humanos, na supera- respeito e na valorização das contribuições científicas de cada povo.
ção das desigualdades sociais, de gênero, etnia, geracional, identidade
O Município que Educa tem que garantir a todas as cidadãs e a
sexual e das pessoas com deficiências. É preciso garantir políticas pú-
todos os cidadãos o direito de satisfazer suas necessidades de conti-
blicas que afirmem os direitos de todos os sujeitos e que sejam mais
nuamente aprender e, portanto, acompanhar e interferir na educação
democráticas nas relações de poder.
escolar, entendida como um processo mais amplo e imprescindível à
Um município que desconhece a diversidade pode tratar as di- formação de homens e mulheres. Cabe aí a inserção da diversidade,
ferenças de maneira discriminatória, correndo o risco de aumentar com todas as suas especificidades, histórica, social, política e cultural,
as desigualdades sociais. A partir desse enfoque é preciso fomentar a no processo de construção da política educacional, legitimando as par-
estruturação de objetivos educacionais que potencializem, inclusive, ticularidades culturais e fortalecendo iniciativas que desconstruam o
iniciativas de novas políticas públicas e, consequentemente, de novas modelo ocidental hegemônico que marginaliza as diferentes matrizes,
ações sociais. impossibilitando a interação entre o sujeito e o conhecimento.

68 Múltiplos olhares 69
Nas ações integradas propostas pelo Município que Educa, em FRAZÃO, Marilândia. Educação: um novo fazer pedagógico, numa vi-
conjunto com os diferentes setores, a transversalidade não aparece ao são que contemple a diversidade humana. In: SÃO PAULO. Sec-
acaso, mas sim pelas exigências e demandas dos movimentos sociais retaria Municipal de Educação. Coordenadoria Especial da
(negros, mulheres, indígenas e outros). Propostas que contemplem a Mulher. Gênero e Educação. São Paulo, 2003. p. 61-64.
diversidade humana e cultural podem ajudar a quebrar o padrão mo-
nolítico e eurocêntrico da educação brasileira. RISCAL, Sandra. Diversidade (Módulo 1). In: BELELI, Iara; MISKOL-
CI, Richard; RISCAL, Sandra; SILVÉRIO, Valter Roberto. Marcas
Discutir currículos, hoje, significa pensar um novo fazer peda- da Diferença no Ensino Escolar. São Carlos: UFSCar virtual, 2009.p.
gógico, que transcenda o espaço da escola, onde o modo de pensar e 10-45.
de agir seja modificado, onde se estabeleçam relações democratizantes
entre os diferentes saberes e fazeres dos diferentes setores populacio- SILVA, Maria José Lopes da. As ideias racistas, os negros e a educação.
nais do município, e que compõem o país, que não estão contemplados Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros, maio 1997.
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brasileira e Africana garantem, no âmbito dos diversos sistemas de en- Vozes, 1998. p. 381-396.
sino, a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais,
desde a educação infantil até o ensino superior. Vai no mesmo sentido
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indígenas nas escolas de educação básica, superior, pública e privada,
corrigindo as discrepâncias e desigualdades educacionais, visando à
ampliação da oferta de educação básica e superior intercultural, mul-
tirracial e multicultural.

Referências

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plementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Ed-
ucação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília, DF, 2009CAN-
DAU, Vera Maria (Org.). Rumo a uma nova didática. Petrópolis:
Vozes, 2002.
CONAE (Conferência Nacional de Educação). Documento Referência
da CONAE-2010. Brasília, de 28 de março a 1º de abril de 2010

70 Múltiplos olhares 71
MUNICÍPIO QUE EDUCA:
AÇÃO CULTURAL POR UMA
NOVA CULTURA POLÍTICA
Nwcpc"Xknwvku44"

Não é uma coincidência que o Programa Município que Educa


nasce no século 21: ele constitui expressão dos desafios e aprendiza-
gens desta época. Acreditamos que um olhar sobre a dimensão cultural
desta iniciativa pode nos ajudar a desvelar seus enlaces e potencialida-
des, pois, de forma crescente, no mundo atual, a cultura ganha centra-
lidade na vida social.
Reconhecemos que a dimensão integradora da cultura no mun-
do contemporâneo perpassa o direito básico de cidadania cultural e
conecta a esfera política, simbólica e econômica da cultura. Essa com-
plexa teia de relações, sentidos, significações e práticas está na base da
gestão política e metodológica da Rede Município que Educa e é sobre
ela que refletiremos aqui.
A cultura só pode ser compreendida na sua relação com outras
culturas, em uma relação dialética de contraposição, contágio e con-
traste. Isso envolve a identificação das semelhanças e o igual reconhe-
cimento das diferenças, o que pressupõe a equidade como princípio
e premissa básica. É interessante notar que, se hoje a diversidade tem
valor universal e constitui expressão da dignidade das culturas, isso
nem sempre ocorreu.
No século 16, por exemplo, surge no Brasil a língua geral, o

22 Educadora, socióloga e pesquisadora, graduada em Ciências Sociais e mestre em Edu-


cação, Cultura e Organização Social pela Faculdade de Educação da USP. Atua como
colaboradora e coordenadora pedagógica de projetos na área de cultura, educação, mo-
bilização social e economia solidária. É colaboradora do Instituto Paulo Freire nas áreas
de educação popular e relações internacionais. Contato: luanavilutis@gmail.com
nheengatu, introduzida como língua civilizadora pelos jesuítas, per- Compreendida como prática social e simbólica do processo de
manecendo após sua expansão como fala comum no País. Adotada criação cultural, a cultura também contempla a divisão de classes so-
como idioma de comunicação dos europeus com os Tupinambás e lín- ciais, de identidades étnicas, de especificidades históricas e geográfi-
gua materna dos mamelucos, a língua geral foi predominante no Brasil cas, o que reforça a necessidade de respeitar a diversidade dos sujeitos
até 1940 (RIBEIRO, 1995). Enquanto naquela época havia esforços no envolvidos na prática cultural e suas diferenças. Essa pluralidade do
sentido de criação de uma língua universal para diminuir os conflitos, campo da criação cultural traz à tona a importância e o papel do sujeito
hoje o desaparecimento de idiomas, dialetos, expressões e práticas cul- agente, produtor, criador de cultura como sujeito de sua própria práti-
turais é extremamente problemático. ca, autor de sua própria narrativa, criador de sua memória e expressão
de sua identidade.
Vivemos um momento em que a apreensão dessas identidades
é cada vez mais diversa, e sua diferenciação, cada vez mais valoriza- A cultura, enquanto direito de cidadania, reconhece os sujeitos
da. Hoje, o Estado não detém o monopólio definidor da identidade para além de sua condição de empreendedores individuais, consumi-
nacional e isso representa um campo de disputa. Tanto a produ- dores, espectadores ou contribuintes, mas os considera sujeitos políti-
ção de obras culturais quanto a ação pública na gestão da cultura cos, trabalhadores da cultura, cidadãos responsáveis pelo trabalho de
precisam garantir sua independência e preservar a autonomia face criação cultural e sujeito de direitos. É nesse contexto que situamos
às exigências do mercado e da privatização do que é público. Esse o processo de democratização do acesso aos bens, serviços e equipa-
exercício da cultura democrática, experimentado pela prática so- mentos culturais para garantir o direito à produção e fruição cultural.
cial da cidadania cultural, aponta para a democracia cultural e se A expansão dos meios de difusão cultural deve ocorrer no sentido de
opõe à mercantilização da cultura. garantir a liberdade de apropriação e criação de novos espaços de ex-
pressão cultural.
O sentido político da cultura é concebido como direito de todos
os cidadãos, sem exclusões ou privilégios, direito por meio do qual eles O Município que Educa prevê estimular o êxito da gestão pública
se expressam, manifestam-se nas suas diferenças, e também entram municipal com base no fortalecimento da participação dos sujeitos e
em conflito. Esse direito dinamiza o processo cultural e permite criar comunidades na execução de políticas públicas. O acompanhamento
novas formas culturais no cenário democrático; é dessa brecha à qual processual e aproximativo dos cidadãos e das cidadãs, de forma crítica e
nos referimos ao refletirmos sobre os fundamentos e potencialidades criativa, aos assuntos do mundo público, potencializa aprendizagens
de programas de políticas públicas na área cultural, dentre os quais e estimula o desenvolvimento de uma nova cultura política. O mun-
inserimos o Município que Educa. do público é aqui compreendido enquanto mundo comum, de iguais,
onde se compartilham experiências e significações, lugar em que se
A cultura, como dimensão expressiva do espaço público, tem
preserva as tradições e onde irrompe a novidade.
papel fundamental na formação de valores e na atuação coletiva.
O exercício do direito à cultura reforça a prática política que se Essa nova cultura política que o Programa Município que Educa
realiza como espaço público do debate e da decisão coletiva. Acre- se propõe a estimular prevê a conexão direta entre participação, cida-
ditamos na importância de alargar esse espaço público de fruição dania e sustentabilidade. No entanto, é preciso reconhecer que esses
cultural e de exercício das ações culturais baseadas em relações valores já tiveram seu sentido apropriado de diversas maneiras e, em-
criativas de sociabilidade e em ações socioeducativas que ofere- bora sejam característicos do olhar do presente para o futuro, temos
çam, por sua vez, condições para impulsionar o trabalho coletivo que explicitar a necessidade de uma transformação estética dessas prá-
autogestionário e a experimentação de diversas expressões cultu- ticas, que incorpore a criação coletiva autogestionária e a inovação da
rais e linguagens estéticas. linguagem da mobilização social.

74 Múltiplos olhares 75
É na perspectiva desse desafio que situamos a fruição das artes gestão pública à formação política orientada pela educação popular e edu-
e sua relação com a educação e a cultura. O conhecimento sensível, cação integral é um desafio que contribuirá muito para o diálogo interse-
crítico e criativo deve ser cada vez mais estimulado por meio de prá- torial e inter-regional, mobilizando diversos sujeitos para colocarem suas
ticas fundamentadas na integralidade do ser e na complexidade das necessidades comunitárias e locais na pauta e na agenda governamental
relações sociais. A convivência democrática e solidária que promova a do município. Na ação cultural, a educação fortalece a capacidade criado-
celebração do lugar, a vivência do sentido comum das práticas sociais ra dos sujeitos envolvidos, construindo novos símbolos e expressividades,
e a liberdade de expressão são propostas educativas que podem ser in- além de desenvolver sua organização social e a práxis.
corporadas pelo Município que Educa com a intenção de transformar a
Segundo Paulo Freire, a teoria dialógica da ação cultural pre-
cultura do controle e do dirigismo em uma cultura política do diálogo
vê que os sujeitos transformem o mundo em colaboração e tenham
e da confiança.
compreensão de que a transformação de uma realidade social ou o
Por acreditar no potencial disruptivo e transformador da cultura, desenvolvimento de uma comunidade local só pode ocorrer dentro
queremos atentar à singularidade da ação cultural que fomenta o di- do contexto total de que faz parte, em interação com outras parciali-
reito de participar do processo de criação cultural e dos resultados de dades, o que implica na consciência da unidade na diversidade (FREI-
sua transformação. Além de voltar-se à ampliação do acesso à cultura, RE, 2005). Podemos destacar, então, alguns valores e princípios da
a ação cultural também se foca no desenvolvimento metodológico de ação cultural que contribuem para o desenvolvimento de uma nova
ações educativas por meio de um processo de conscientização e mobi- cultura política, como a confiança, a comunicação, o associativismo,
lização social. A ação cultural deve apostar e investir nas condições ne- a integração entre o universo cognoscitivo e o afetivo, a livre adesão, a
cessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem, comunhão e a intimidade.
assim, sujeitos da cultura.
Um bem simbólico é simultaneamente um produto cultural, cria-
A ação cultural, portanto, requer um trabalho de problematização do em um determinado contexto social, com valor econômico e político.
e teorização da prática social. Esse processo provoca um adentramento Essa concepção situa a formulação de políticas públicas na perspecti-
do sujeito no contexto social, uma superação da visão focalista da rea- va da cultura como direito de cidadania e economia. Coerentemente
lidade e a assunção crítica de sua presença no mundo, de sua atuação com essa abordagem, as potencialidades da política cultural são pro-
com o mundo e em relação com os outros (FREIRE, 2007). jetadas em sua capacidade distributiva e equitativa, com investimento
de recursos, serviços e distribuição da infraestrutura cultural no país,
Paulo Freire vincula diretamente a ação cultural de caráter liber-
orientadas pela melhoria da qualidade de vida e pela apropriação do
tador ao processo educativo, à educação libertadora. O caráter utópico
sentimento de pertencimento.
da ação cultural para a libertação compõe a pedagogia da utopia pro-
posta por Paulo Freire. A utopia, neste caso, é compreendida como a A problemática do descompasso entre produção e distribuição de
unidade dialética entre a denúncia e o anúncio: “Denúncia de uma re- bens e serviços culturais representa hoje um dos principais gargalos da
alidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens cadeia produtiva da cultura. A concentração de canais de distribuição
possam ser mais. Denúncia e anúncio não são, porém, palavras vazias, e fomento à cultura ocorre tanto em termos institucionais quanto ge-
mas compromisso histórico.” (FREIRE, 2005, p. 42). ográficos e não difere de outros setores de produção em áreas diversas
como transporte, alimentação, logística, tecnologia etc. Essa desigual-
É nesse compromisso histórico que situamos o Programa Município
dade na área cultural é um fenômeno mundial e se expressa por meio
que Educa e suas práticas educativas em rede, cuja base metodológica
do controle de poucas empresas transnacionais e na concentração
prevê espaços virtuais e presenciais para fortalecimento recíproco das
geográfica da distribuição de bens culturais nos grandes centros.
relações humanas, institucionais, governamentais e sociais. Conectar a

76 Múltiplos olhares 77
O Estado tem um papel muito importante na institucionalização do espaço público e no exercício dos direitos, o que implica dialogar
e consolidação de políticas públicas que fomentem a diversidade da com o contexto social, considerar os seus limites e necessidades para
produção cultural e desenvolvam mecanismos efetivos e permanen- atuar de forma integral e abrangente. Essa relação dialética de dinami-
tes para sua distribuição. A economia da cultura aponta para a ne- zação da cultura no espaço público e do exercício político do direito à
cessidade de políticas integradas que incorporem o pacto federativo e cultura deve também fazer parte da abordagem do Programa Municí-
ofereçam as bases de estruturação de processos de criação, produção, pio que Educa.
fruição, formação, reconhecimento e preservação dos bens simbólicos,
tangíveis, intangíveis, tradicionais e contemporâneos.
Referências
Não cabe ao Estado executar, produzir ou criar cultura, mas expe-
rimentar novas culturas políticas por meio da formulação e execução
democrática de políticas públicas. Estas devem ter o papel genérico de ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Uni-
estimular as criações culturais com ampla participação da sociedade versitária, 2005.
civil e forte integração das políticas culturais e sociais.
BRASIL. Ministério da Cultura. Cultura em números: anuário de esta-
Na administração municipal, também é importante garantir a tísticas culturais. 2. ed. Brasília, DF, 2010.
centralidade da dimensão cultural e podemos observar isso na caracte-
rização do órgão gestor da área cultural. Conforme os dados do IBGE de CHAUI, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: EFPA, 2006.
2009, vemos que, no Brasil, apenas 9,4% dos municípios dispõem COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense,
de secretarias exclusivas de cultura. Temos que reconhecer que houve 1989.
um avanço significativo em relação aos dados de 2006, cujo registro
era de apenas 4,2% de municípios com órgão exclusivo de cultura. No FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 12. ed.
entanto, ainda chama a atenção o fato de 85,4% dos municípios bra- São Paulo: Paz e Terra, 2007.
sileiros terem os seus órgãos públicos de cultura acoplados a outras ______. Pedagogia do oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
políticas, como educação, esportes e turismo (IBGE, 2010). 2005.
Outro desafio que o Programa Município que Educa terá para se INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pes-
voltar a garantir a democratização da cultura no município refere-se à quisa de informações básicas municipais/Perfil dos municípios bra-
existência e ao funcionamento de Conselhos Municipais de Cultura. sileiros: 2009. Rio de Janeiro, 2010.
Em 2009, o IBGE identificou 24,7% dos Municípios brasileiros com
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e sentido do Brasil. São
Conselhos Municipais de Cultura, dos quais apenas 18,1% são delibe-
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
rativos (IBGE, 2010). Isso não só revela uma limitação no avanço da
política cultural, como expressa a importância da conscientização e do
exercício democrático da política de cultura ocorrer a partir do muni-
cípio para criar enraizamento e consolidar as bases para uma transfor-
mação efetiva.
A política cultural apresenta-se, assim, como um conjunto de
iniciativas, tomadas por diferentes agentes, Estado, instituições civis,
entidades privadas e grupos comunitários que incidem na organização

78 Múltiplos olhares 79
A PAISAGEM DO MUNICÍPIO COMO
TERRITÓRIO EDUCATIVO
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Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-


mo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (FREIRE,
2005, p. 79).

O município é uma construção político-administrativa e histó-


rica, mas também é lugar, espaço vivido, percebido e conhecido. Nes-
se sentido, reúne eixos importantes para pensar projetos educativos.
Como unidade territorial e de gestão, possibilita recursos institucio-
nais e de políticas públicas, e complexas interações com organizações
civis. Como espaço socialmente produzido24, sobretudo a partir do
lugar, permite atuar pedagogicamente na profunda relação que exis-
te entre espaço vivido e educação. O município viabiliza estratégias
e programas de gestão, e sugere adotar o espaço experienciado como
inspirador de projetos educativos locais e sua articulação com outros
locais enquanto entendimento de mundo.
Dizia Heidegger (2008) que “habitar é o modo como os mortais são
na terra”. O plural – os mortais – sugere que habitar implica conviver. No
entanto, geralmente pensamos a habitação não como uma condição do
ser entre e com outros, mas como uma coisa singular, desistoricizada,

23 Arquiteto e Urbanista (PUCC, 1981), Arte Educador (BA, 1984), Pós-Graduação em


Ecologia (STJ, 1996), mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas (1993, 1999,
USP). Poeta (http://arte.arq.br). Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, vice-coordenador da Área de Concentração Paisagem e Am-
biente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP), coor-
denador do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam),
coordenador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Lab Cidade, FAU USP,
http://labcidade.net.br). Grupos de Pesquisa: Paisagem, Cidade e História; Paisagem,
Cultura e Participação Social (http://espiral.net.br)
24 LEFEBVRE, 1991; SANTOS, 2006.
esvaziada de sua produção como espaço social. Ao contrário, habitar A paisagem25 é tanto uma experiência partilhada como é uma
é fazer parte de uma história que nos antecede e nos ultrapassa. O ato construção social, tensa e contraditória, vivenciada em um presente,
de habitar, essencial e solidário para os viventes, é o depositário de herdada de longos processos naturais e do trabalho humano. “A paisa-
todos os nossos saberes, das contradições que engendramos em sua gem é sempre uma herança”, diz Aziz Ab’Saber (2003, p. 9). Mas não
construção, apropriação e transformação. Penso que o fruto material e é uma herança passiva, conclusiva. Por ser tanto experiência quanto
imaterial do nosso fazer, do nosso trabalho, é um registro contundente herança, história, tempo, a paisagem, a cidade, o espaço rural, o habi-
de nosso aprendizado. É também o modo como nos representamos. tar são decisões. Decisões que vão expondo e ocultando no espaço as
Habitar é, portanto, habitar valores, representar o mundo, escolher, lutas pelo poder e pela civilidade. Assim, a paisagem abriga narrativas
aprender, ser, conhecer, partilhar, amar. Propriedades que também veladas das decisões que nos precederam, construindo nossas possi-
queremos ver na educação como formação criativa. bilidades de estar aqui por meio de conflitos, desejos, racionalidades,
demarcando inúmeros contornos sutis da transformação que o nosso
Entretanto, o modo como habitamos tem sido problemático. Po-
estar aqui engendra. É a expressão material, simbólica e sensível do
demos reconhecê-lo como uma partilha tensa e contraditória do nosso
nosso modo de habitar o mundo. É ativa, ao oferecer ou negar possibi-
saber-fazer em um espaço comum, ao nos apropriarmos dele de modo
lidades. Está sempre prenhe de novas formas e possibilidades. Fecun-
desigual e violento. Nosso habitar tanto tem sido indiferente ao outro,
didades que ainda não se veem, que ainda não se definem mas que, em
desrespeitoso, brutal, desleal, quanto tem sido afetivo, solidário, cria-
potência, já estão se movendo ante nossos olhos distraídos.
tivo, celebrativo. No fluxo cotidiano não nos damos conta de que esta-
belecemos entre nós uma partilha conflitiva e contraditória ao realizar O futuro se realiza na decisão, na inclusão, na seleção e na ex-
nossas ambições e sonhos. clusão do possível. E com base em que selecionamos esse futuro? Este
lugar que vivemos não nos pertence, é de uma amplitude espaço-tem-
As contradições, entretanto, podem se tornar um estímulo para
poral fabulosa. Com base em que decidimos seu destino? Com qual
aprender com a nossa “incompletude”, como dizia Paulo Freire (1996,
finalidade? Como decidimos que as paisagens devem ser essas e não
p. 50), e, ao fazê-lo de modo ativo, constituímos a linguagem conti-
outras também possíveis? Como decidimos que isto e não aquilo está
nuamente, e aprendemos que podemos transformar. Se habitar é o
em gestação no nosso partilhar o mundo, prestes a se tornar nosso
modo de ser dos homens no mundo, nossas obras, em contínua trans-
legado, muitas vezes involuntário, para um amanhã que, mais cedo ou
formação pelo trabalho, acabam sendo como uma linguagem social
mais tarde, nos escapa?
materializada desse estar historicamente no mundo. Essa linguagem
não verbal construída no espaço conta-nos sobre os nossos valores co- Dizer que a escola, a família, os amigos, as mídias, os brinquedos, os
muns, ensina-nos sobre a apropriação que fazemos deles, explicitando divertimentos e as obrigações nos ensinam já é há muito sabido. Mas é pre-
o sentido dos nossos atos. ciso atentar também que o espaço, como processo e produto do trabalho e
do desejo humano na transformação da natureza, também nos ensina. A
Habitar é existir e, portanto, também aprender a existir, em uma
espacialidade, a temporalidade e as formas de convivência são educadoras
paisagem em trânsito contínuo. O espaço habitado, urbano ou rural,
no sentido lato da palavra. Porém, nem sempre o são no mesmo sentido
nos abriga e, na nossa imaginação, memória, experiência, criamos flu-
que desejamos que tenha a ação educativa em nossas práticas.
xos da subjetividade com o estar com outros, constituindo então paisa-
gens conhecidas. Que tipo de educação sustenta essas paisagens? Que
educação necessitam para sua qualificação? O que ensinam sobre nós
mesmos e nossas práticas as paisagens e os projetos de educação? 25 Para a abordagem de paisagem que adoto, e seus desdobramentos em programas de
educação-pesquisa-aprendizado em ação, ver SANDEVILLE JÚNIOR (2005, 2010); dis-
ponível em http://espiral.net.br, seção biblioteca.

82 Múltiplos olhares 83
A paisagem de um município, uma região, ou do entorno de vizi- convergência dos nossos saberes disciplinares e existenciais, propondo
nhança, seja ela urbana ou periférica em área de expansão, considerada o desafio de desenhar em ação um saber de qualidade sócio-am-
de valor histórico, rural ou natural, é um espaço educativo por excelên- biental-cultural? Como construir esse processo? Que oportunida-
cia. Thoureau, no século 19, criou uma escola que suprimia a punição des temos diante de nós?
física e tinha na vivência da paisagem, no espaço externo, um tema pri-
Entendo26 que compreender o espaço socialmente produzido
vilegiado da formação de seus alunos. Na época, foi visto com estra-
como lugar de experiências, significações, intersubjetividades e con-
nheza e hostilidade, e ficou insustentável! Os anarquistas adotavam em
tradições, torna-o um tema privilegiado no processo de aprendizagem,
suas escolas populares o estudo do meio como uma estratégia à formação
reflexão, ação criativa e da educação como construção da liberdade,
libertária de um cidadão autônomo e independente. A paisagem, o terri-
do afeto e da alegria27. Estudar as paisagens é estabelecer uma discus-
tório, são locais privilegiados do aprendizado, revelando e ocultando as
são da cultura, de implicações políticas, ou não percebê-las. Discuti-
formas de ser e os valores que os suportam efetivamente.
las é discutir como nos vimos, como nos vemos, como gostaríamos
Trata-se de pensar a educação em processo, em vivência, em ex- de ser vistos. É reconhecer, antecipadamente, como seremos vistos
periência, aberta ao mundo. A questão é se a educação, tal como é pra- como sociedade. Nesse sentido, por vezes, a paisagem incomoda (e
ticada, é mesmo a que queremos e precisamos. O que ensinaria sobre muito), pois evidencia nossas práticas para além dos discursos que a
nós, a um viajante distante de nossa cultura, percorrer quilômetros de camuflam, mas também aponta para um desejo e capacidade possível
periferias, desigualdades, preconceitos tornados comuns, quando não de mudança.
alardeados como uma espécie de valor sem valor ou ética, sem soli-
O Programa Município que Educa contribuirá nessa dire-
dariedade? O que lhe diria sobre o projeto humano contemporâneo a
ção. Propõe aos municípios o reconhecimento e a valorização das
educação que é oferecida às crianças que as habitam?
diferentes culturas e realidades sociais, considerando o centro, a
Em relação a uma experiência espacial que reconheça sua dimen- periferia e os setores rurais; a potencialização da intencionalidade
são educativa, estamos deseducados para a paisagem, que por sua vez educativa das iniciativas dos diversos sujeitos sociais; a incorpo-
não está desenhada para ser um espaço educativo dos valores que de- ração de um planejamento participativo às ações locais; a articu-
fendemos em nossas salas de aula, igrejas, associações, nem na nossa lação entre as diversas áreas e setores envolvidos nesse processo;
produção de conhecimento e informação. Tamanha distância é sur- a potencialização dos espaços da municipalidade como espaços
preendente, mas não iludirá futuras gerações sobre a natureza brutal e educadores; o estabelecimento de inter-relações entre as ações lo-
brutalizante do projeto social e humano que tem imperado em nossa cais, a região, o País e o mundo; e a criação de redes sociais que
época, malgrado tantos esforços para conduzi-lo noutra direção e as possibilitem o intercâmbio e a colaboração, visando o exercício da
conquistas sociais já alcançadas nesses embates. participação cidadã28. Não podemos abrir mão de nenhum esforço
nessa direção.
Percebe-se que o destino das paisagens, como locais de expe-
riência e de aprendizagem, e o das escolas como locais de formação
para essa experiência e aprendizagem contínuas, estão relaciona-
das. O fracasso de uma repercute no fracasso da outra, assim como 26 Algumas das experiências didáticas e de pesquisa decorrentes desse entendimento po-
dem ser seguidas no portal http://espiral.net.br (Grupo de Pesquisa Paisagem, Cultura
a melhoria de uma promove a melhoria da outra. Indo além, a pai- e Participação Social).
sagem oferece à escola muitos territórios educativos a serem em 27 Apresento os princípios de trabalho que adoto em O sentido da espiral indaga a alma no
comum percebidos, construídos e transformados de acordo com espaço virtualmente coletivo (Memorial Espiral 2003) e Manifesto Espiral, disponíveis em
http://espiral.net.br, página de abertura.
princípios humanísticos. Não haveria aí um excelente programa de
28 . Ver PADILHA (2009) e http://municipioqueeduca.org

84 Múltiplos olhares 85
Referências A SUSTENTABILIDADE NO
MUNICÍPIO QUE EDUCA
AB’SABER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades Ujgknc"Egeeqp4;
paisagísticas. São Paulo: Ateliê, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
______. Pedagogia do oprimido. 41 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, O olhar crítico à sociedade mundial contemporânea, à forma como
2005. homens e mulheres vivem e se relacionam, entre si e com sua casa comum
(o planeta), provoca-nos a repensarmos nossa relação com a vida e com
LEFEBVRE, Henry. The Production of Space. Trad. D. Nicholson-Smi-
o mundo. Os sistemas educacionais do mundo todo têm sido provocados
th. UK: Blackwell Pb., 1991.
a assumirem sua responsabilidade frente à necessidade de formação de
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. Disponível em: cidadãos e cidadãs com uma nova postura em relação à sociedade e à na-
<http://www.heideggeriana.com.ar/textos/construir_habitar_ tureza, com valores e atitudes diferentes daqueles que levaram o planeta à
pensar.htm>. Acesso em: 20 nov. 2008. situação atual de grandes desigualdades sociais e intenso desequilíbrio am-
biental. A escolha de um novo futuro, de um destino diferente para a Terra
PADILHA, Paulo Roberto. Município que educa. Nova arquitetura da
e todas as espécies que nela vivem – entre elas, a humana –, está intrinse-
gestão pública. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire,
camente ligada à formação de sujeitos guiados por novos valores, menos
2009.
predatórios, mais sustentáveis. Sustentabilidade compreendida aqui como
SANDEVILLE JÚNIOR, Euler. Paisagem. Paisagem e Ambiente, São oposição a tudo o que sugere desequilíbrio, competição, conflito, ganância,
Paulo, n. 20, p. 47-59, 2005. individualismo, domínio, destruição, expropriação e conquistas materiais
indevidas e desequilibradas, em termos de mudança e transformação da
______. Paisagens vivenciadas, educação-pesquisa-aprendizado em
sociedade ou do ambiente.
ação. In: ENCONTRO NACIONAL DE ENSINO DE PAISAG-
Em seu sentido mais amplo, a sustentabilidade é uma nova maneira
ISMO EM ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO NO
igualitária, livre, justa, inclusiva e solidária de as pessoas se unirem para
BRASIL, 10., 2010, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: FAUPU- construírem os seus mundos de vida social, ao mesmo tempo em que li-
CRS, 2010. dam, manejam ou transformam sustentavelmente os ambientes naturais
onde vivem e de que dependem para viver e conviver (GADOTTI, 2008).

29 Engenheira agrônoma, com mestrado em Ensino e História de Ciências da Terra pela


Unicamp. Atua desde 1999 na área de meio ambiente e educação, tendo elaborado e
coordenado projetos e programas de educação ambiental neste período. Em 2010, pas-
sou a atuar no Instituto Paulo Freire, onde é pesquisadora do Programa Educação para
Cidadania Planetária. Coordena o Programa Município que Educa.

86
Educar para a sustentabilidade é um imenso desafio. Mas será A formação de sujeitos éticos, criativos, críticos e participativos, cons-
que a formação destes cidadãos é responsabilidade exclusiva dos sis- cientes e responsáveis social e ambientalmente, impõe repensar a edu-
temas educacionais? cação no município como um todo.
Em um Município que Educa, a formação de cidadãos e de cida- É preciso estreitar a relação da escola com o bairro e com a co-
dãs que veem a sociedade sob uma nova ótica é assumida por diferentes munidade onde está inserida. É preciso que o compromisso com a
setores da sociedade, que, em diálogo, passam a realizar um grande es- educação da população seja assumido por toda a sociedade, estando
forço coletivo no sentido de formar sujeitos guiados por valores como presente, por exemplo, nas relações observadas no comércio local,
o respeito, a ética, a igualdade, a solidariedade, a tolerância, a liberda- cujo tratamento ético e respeitoso é praticado sem distinções de qual-
de. Diferentes segmentos do município assumem a responsabilidade quer tipo; na acessibilidade constatada nas calçadas em respeito aos
compartilhada de formação das crianças, dos jovens e dos adultos que idosos e às pessoas com dificuldade de locomoção; no cuidado ob-
habitam aquele território. servado nas praças e espaços públicos, onde bancos e jardins convi-
dam à convivência harmoniosa e ao respeito; na preocupação com a
A viabilização de um município comprometido com a sustenta-
valorização da cultura popular e no incentivo às suas manifestações;
bilidade socioambiental depende de consciência ecológica e compro-
na consideração observada pela população quando utiliza o sistema
misso social. Não é possível estarmos no mundo de luvas nas mãos,
público de saúde e educação; no cuidado com os remanescentes de
descomprometidamente. Ninguém pode estar no mundo, com o mun-
florestas e com a preservação dos rios que cortam o município, entre
do e com os outros de forma neutra, como se nada tivesse a ver com
tantas outras atitudes que compõem o extenso processo de educação
o mundo (FREIRE, 000). A Declaração do Rio (1992)30 defende que
da população de um território.
todos os programas voltados à sustentabilidade devem considerar três
esferas: a sustentabilidade ambiental, referente aos recursos e à fragili- O Município que Educa “educa em todos os cantos” (PADI-
dade do ambiente físico; a sustentabilidade social, que inclui a cultura, LHA, 2007, 2009). Busca construir o compromisso com a educação
a participação, a opinião pública e a mídia; e a sustentabilidade econô- para a sustentabilidade junto aos mais diversos segmentos da socie-
mica, abrangendo o crescimento econômico e o impacto que promove dade, colocando-os em diálogo na busca por soluções criativas para
no meio ambiente. Estes três aspectos da vida em sociedade precisam situações específicas de sua realidade. A ideia de todo o município
estar claros para um número cada vez maior de pessoas, possibilitando educar intencionalmente sua população está em sintonia com Guat-
que impregnem de intencionalidade suas ações, sabendo qual futuro tari (2006), quando afirma que é preciso buscar uma existência mais
estão contribuindo para construir. humana nos novos contextos históricos que vivemos. O autor afir-
ma que seria inconcebível pretender retornar a fórmulas anteriores,
Por outro lado, não se constrói responsabilidade socioambiental
correspondentes a períodos da história onde a densidade demográ-
apenas lendo livros sobre o tema. A experiência própria é fundamental.
fica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte do
que hoje. Segundo ele, o desafio está literalmente em reconstruir o
conjunto das modalidades do ser-em-grupo e, nesse sentido, propõe
30 A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorreu
no Rio de Janeiro em junho de 1992. Teve como objetivo estabelecer uma nova e jus- práticas efetivas de experimentação.
ta parceria global mediante a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados,
os setores-chaves da sociedade e os indivíduos, trabalhando com vistas à conclusão de
Transformar posturas, construir novas formas de ver o mundo e
acordos internacionais que respeitem os interesses de todos e protejam a integridade do de se posicionar em relação à vida em sociedade exige ousadia em ex-
sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo a natureza integral e perimentar novos processos educativos nas cidades, nas suas periferias
interdependente da Terra, nosso lar. Neste sentido, proclamou 27 princípios conhecidos
e no campo.
como “Declaração do Rio”.

88 Múltiplos olhares 89
A soma de esforços na busca pelo comprometimento de um nú- que atuam nas Secretarias de Meio Ambiente, Urbanismo, Cultura,
mero cada vez maior de cidadãos com a construção de ações que Obras, Infraestrutura, Agricultura e Saúde, por exemplo, a atenderem
contribuam para a sustentabilidade socioambiental tem sido marcada as demandas das crianças que surgem a partir do estudo da realidade e
pela elaboração de diferentes documentos e movimentos, entre eles, da busca por intervenção no meio.
a instituição da Década das Nações Unidas da Educação para o De-
Um Município que Educa torna realidade programas que dia-
senvolvimento Sustentável (2005 a 2014), a elaboração do Tratado de
logam com cidadãos e cidadãs que atuam em Associações de Bairro,
Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade
ONGs, Conselhos Municipais e empresas privadas buscando estabe-
Global e a redação da Carta da Terra31, com contribuição de povos
lecer parcerias na formação de crianças, jovens e adultos do municí-
de diferentes lugares do planeta. São iniciativas importantes em nível
pio com o objetivo de educar para a sustentabilidade. A articulação de
mundial, instrumentos que podem despertar inúmeras outras práticas
toda essa população convidada a participar da formação dos sujeitos
na localidade, se um trabalho capilar, intenso e efetivo for desenvolvi-
do seu território contribui para o repensar de atitudes e valores de to-
do no âmbito municipal.
dos os envolvidos. Compartilhando a responsabilidade de educar os
O desenvolvimento de um Plano Municipal de Educação Socioam- mais jovens, todos os envolvidos também se educam.
biental que coloque em diálogo as escolas e os diferentes segmentos da
O preâmbulo da Carta da Terra afirma que, para seguir adiante, de-
comunidade é um exemplo de trabalho capilar e intenso a ser assumido
vemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas
por municípios comprometidos com a educação para a sustentabilida-
e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre
de. Nesse sentido, é necessário desenvolver um currículo que contribua
com um destino comum. Devemos nos juntar para gerar uma sociedade
para a formação de jovens éticos, colaborativos, que valorizam a cultura
sustentável global fundada no respeito pela natureza, nos direitos humanos
do lugar onde vivem e participam ativamente da construção de solu-
universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Diz ainda que, para
ções para os problemas que percebem, defendem seus pontos de vista e
chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos
escolhem o futuro que querem construir. Um currículo assim faz-se na
nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade
relação da escola com a realidade do lugar onde está inserida, faz-se
de vida e com as futuras gerações (GADOTTI, 2010).
na relação do território de vida das crianças com o planeta, casa comum
de toda a humanidade. O conhecimento torna-se assim algo vivo, faz Esta união proposta pelo documento para “gerar uma sociedade
sentido, instiga a pesquisa, a reflexão e a ação. sustentável global” precisa, com urgência, ser construída nas relações
cotidianas, nos lugares onde vivemos e nos formamos. O sentimento
Sendo assim, torna-se fundamental a elaboração de Planos Mu-
de impotência frente à grandiosidade do desafio deve dar lugar à cora-
nicipais de Educação Socioambiental que ultrapassem os limites das
gem de enfrentá-lo. Neste sentido, Paulo Freire nos ensina que:
Secretarias Municipais de Educação, sensibilizando também pessoas
Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético insiste no direito que
tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas
31 A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção
no século 21, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca inspirar todos no mundo à razão de que faz a História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas
os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade comparti- marcas de sujeito e não pegadas de puro objeto. (FREIRE, 2000, p. 119)
lhada voltado para o bem-estar de toda a família humana, da grande comunidade da
vida e das futuras gerações. O projeto da Carta da Terra começou como uma iniciati- A intencionalidade educativa em busca da sustentabilidade so-
va das Nações Unidas, mas se desenvolveu e finalizou como uma iniciativa global da cioambiental praticada por Municípios que Educam, em diálogo com
sociedade civil. Em 2000, a Comissão da Carta da Terra, uma entidade internacional
independente, concluiu e divulgou o documento como a carta dos povos.
outros Municípios que Educam, é, certamente, uma forma de compa-
recer à História, como sujeitos de intervenção no mundo.

90 Múltiplos olhares 91
Referências COMUNICAÇÃO E MÍDIAS NO
MUNICÍPIO QUE EDUCA
Kucdgn"Qtqhkpq54
ANTUNES, A. Ler e reler o mundo: construir um outro mundo possível.
2007. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/Institucional/
AngelaAntunesArtigos>. Acesso em: 13 maio 2010.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Declaração do Rio.
1992. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.
Introdução
php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576>.
Acesso em: 13 maio 2010. A mídia é, sem dúvida, um sistema complexo muito importante
CARVALHO, I. C. M. Educação ambiental: a formação do sujeito no conjunto das dinâmicas do mundo contemporâneo. Na medida em
ecológico. São Paulo: Cortez, 2006. que buscamos uma educação emancipadora e libertadora, parece-nos
fundamental inserirmos a presença da mídia – seus modos de con-
CARTA da Terra. In: GADOTTI, M. A Carta da Terra na Educação.
São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2010. (Cidadania trole, suas possibilidades de liberdade de expressão e construção de
Planetária, 3). p. 61-73. visibilidade para as comunidades silenciadas – em nossas práticas
de leitura do mundo para a construção de redes de cooperação, como
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
o Município que Educa. Paulo Freire nos ajudou a compreender que:
______. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Editora Unesp, 2000. “Linguagem e realidade prendem-se dinamicamente. A compreensão
GADOTTI, M. Educar para a Sustentabilidade. São Paulo: Editora e do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das
Livraria Instituto Paulo Freire, 2008. relações entre texto e contexto” (1992, p. 12).
GUATTARI, F. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 2006. A presença da mídia em nossas vidas e sua importância para as
GUIMARÃES, M. Educação Ambiental: no consenso um embate? relações que se tecem nas sociedades contemporâneas é um tema que
Campinas: Papirus, 2000. permite uma pluralidade de debates sobre pontos de vista conflitantes.
Não daremos conta de cobrir todo este escopo, e este também não é o
PADILHA, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos: por uma educação
nosso objetivo. Porém, há duas questões que desejo destacar, sobre as
intertranscultural. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2007.
quais irei discorrer nas páginas que se seguem:
______. Município que Educa: educar em todos os cantos. 2009.
Disponível em: <http://redesocial.unifreire.org/municipio-que- a) a sociedade de redes (como é denominada por alguns autores,
educa/municipio-que-educa-educar-em-todos-os-cantos.pdf>.
Acesso em: 13 maio 2010.
PRADO, F. G. C. Ecopedagogia e Cidadania Planetária. São Paulo: 32 Doutora em Comunicação Social pela ECA/USP, mestre em Comunicação e Jornalista
pela UFSC. Atua no Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da
Cortez, 2002. ESPM/SP com pesquisa crítica voltada para a infância, mídias e consumo. Atua também
TOZONI, M. F. C. Educação ambiental, natureza, razão e história. na área de comunicação e educação em parceria com o Instituto Paulo Freire desde
1994. É autora de Mídias e Mediação Escolar: pedagogia dos meios, participação e visibi-
Campinas: Autores Associados, 2004.Campinas: Autores Associa- lidade (Cortez e IPF, 2005) e Mediações na produção de TV: um estudo sobre o Auto da
dos, 2004. Compadecida (EdiPUC-RS, 2006).

92
como Manuel Castells) exige de nós, educadores e educado- Mas, hoje, esta crítica encontra-se sob duro ataque, por vários
ras, o repensar dos paradigmas críticos sobre a mídia. Esta so- motivos, dentre os quais eu irei destacar apenas dois:
ciedade emergente é uma nova realidade que comporta uma
a) para compreendermos a sociedade de redes precisamos supe-
participação muito maior da sociedade civil nos usos sociais
rar os modelos de análise que recorram às metáforas do deter-
das mídias;
minismo tecnológico e econômico, isto é, aqueles que veem a
b) a mídia-educação precisa ser uma prática aliada aos múltiplos mídia como uma totalidade monolítica cujo poder e controle
esforços na construção de uma gestão para o Município que os cidadãos não têm capacidade de contrapor;
Educa, pois ela pode cooperar em dimensões como: a constru-
b) precisamos estar atentos ao fato de que vivemos hoje um trân-
ção do sentimento de pertença, a maior mobilização dos sujei-
sito de uma sociedade de comunicação de massas (quando
tos envolvidos, o protagonismo da comunidade, a visibilidade
um único agente difundia a informação para uma ampla au-
para as práticas culturais e ambientais, a inclusão digital.
diência) para uma nova realidade: a da comunicação em re-
Com esta proposta, quero reiterar o que nos ensinou Paulo Freire em des, quando múltiplos agentes interagem em tempos e espaços
sua obra A importância do ato de ler. Ao concluir, ele nos fala que: diversificados.
E estas duas questões estão intimamente ligadas, pois, no mode-
A leitura crítica da realidade, dando-se num processo de alfabetização ou não e
associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de mobilização e de
lo de comunicação em redes, os monopólios e vultuosas transações
organização, pode construir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria econômicas realizadas pelas empresas do setor não conseguem con-
de ação contra-hegemônica. [...] A importância do ato de ler implica sempre trolar os usos sociais que as comunidades de receptores fazem dos
percepção crítica, interpretação e reescrita do lido (FREIRE, 1992, p. 21). conteúdos veiculados pela mídia. E estes novos usos desafiam as visões
Numa perspectiva freiriana de educação, realizar uma leitura crítica deterministas que colocam a mídia como o único centro gerador das
da mídia significa, também, reescrever a mídia dominante em múltiplos dinâmicas socioculturais.
novos e outros discursos, vindos das comunidades. E isso pode ser realiza- A nova realidade midiática da organização em rede oferece um
do com as práticas de mídia-educação. É sobre isso que vamos tratar. grande número de possibilidades de usos das novas tecnologias de in-
A mídia sob suspeita: os elementos da denúncia e o anúncio da formação e comunicação (TICs) por parte das comunidades de recep-
mudança tores. Hoje, usar os recursos tecnológicos da comunicação a serviço da
educação pode resultar em ações que não irão determinar, em hipótese
Ainda hoje, em muitos círculos ligados aos estudos da educação alguma, as transformações que desejamos. Mas irão atuar como coad-
escolar, quando se coloca a mídia em discussão, parece o mesmo que juvantes em múltiplos processos em que diversos atores devem estar
acender uma fogueira. O debate incendeia. As opiniões divergem, po- engajados a partir da escola e do município, com vistas à construção
rém em grande medida, quando o debate assume um tom crítico, é co- da cidadania planetária.
mum ouvirem-se opiniões que acusam a mídia de ser o principal vetor
de alienação na sociedade de consumo. Ou ainda, localiza-se a mídia Mudanças no cenário midiático, mudanças na teoria da mídia
como um aparato tecnológico submetido aos interesses da sociedade A chamada sociedade de redes é definida por muitos autores
de mercado, cujo conjunto das textualidades nada mais faz senão re- como uma nova realidade em que as tecnologias de base microeletrô-
produzir a ideologia individualista própria das sociedades capitalistas. nica têm provocado mudanças em muitos segmentos da vida social, em
Em grande medida, os meios de comunicação de massa têm, de fato, setores diversos da produção da riqueza, do desenvolvimento das ciên-
desempenhado tal papel. cias da saúde, dos modos de produção, consumo e lazer. Mas, sobretudo,

94 Múltiplos olhares 95
mudanças significativas no tratamento e trânsito da informação e na de ação cultural, seja por dentro da própria mídia comercial, seja fora
ampliação da produção da cultura. Para autores, como Manuel Cas- dela, com a criação de rádios, sites, blogs, reportagens, webnovelas,
tells, sem dúvida, estamos vivendo uma revolução. Aquela que é tam- vídeos, entre outros, e que são produzidos pelas próprias comunidades
bém chamada de a terceira revolução tecnológica (sendo a primeira de receptores.
provocada pela criação do motor a vapor e a segunda, o elétrico).
Na América Latina, a partir dos anos 80 do século passado, pu-
Na esteira das transformações provocadas pela nova sociedade de demos verificar uma produção teórica em mídia e comunicação que
redes podemos identificar como algo muito positivo e que interessam se tornou grande referência para a pesquisa internacional: a chamada
ao programa Município que Educa, pelo menos três fatores: teoria das mediações (Martín-Barbero; Néstor Garcia Canclini; Guil-
lermo Orozco, entre outros). As reflexões desenvolvidas por estes au-
a) os canais de comunicação se amplificaram superando o mode-
tores buscaram evidenciar, pela primeira vez, no conjunto da teoria
lo autoritário do broadcasting (isto é, um agente emissor para
crítica da mídia em nosso continente, os modos como as comunidades
uma gama de receptores);
de receptores negociam e ressignificam as mensagens veiculadas pelas
b) as novas tecnologias de comunicação tornaram-se mais aces- mídias e como a escola, o bairro, o município são de fato lugares onde
síveis com relação aos seus custos, o que possibilita a criação os interesses da indústria cultural se deparam com as resistências, a
de centros de produção nas escolas e outros locais de interesse recusa e a negociação na produção de sentidos por parte das comuni-
de divulgação e construção de visibilidade para comunidades dades de receptores.
historicamente silenciadas;
De certa forma, a teoria latino-americana das mediações encon-
c) os consumidores (em geral as crianças e adolescentes) torna- tra profunda afinidade com a pedagogia da libertação freiriana. Pois,
ram-se prossumidores, isto é, eles são consumidores e também assim como Paulo Freire chamou a nossa atenção para o fato de que
produtores de conteúdos e têm grande agilidade e conheci- os educandos possuem sua memória social e histórica e sua bagagem
mento sobre os usos e funcionamento dos dispositivos tec- cultural, e que, portanto, não são sujeitos vazios, desprovidos de co-
nológicos, o que pode tornar os momentos educativos mais nhecimentos, também os leitores, receptores da mídia, possuem
participativos e menos autoritários como as práticas de uma o seu repertório de interpretação, o que potencialmente pode levar à
pedagogia tradicional verticalizada. produção de significados diferentes daqueles de interesse da indústria
Neste novo contexto, também as teorias da comunicação ganham cultural. Esta articulação – das mediações e da educação libertadora
novas formulações que nos ajudam a superar os paradigmas reflexivos – tem sido objeto de reflexão do campo da educomunicação no Bra-
da sociedade de massas para a sociedade de redes. Enquanto educado- sil (campo da comunicação e educação) e conta com a contribuição
res críticos, nós precisamos renovar nossos olhares sobre os fenômenos do trabalho de vários autores, dentre eles destacam-se Adilson Citelli,
da cultura e sociedade, sob o risco de estarmos repetindo teorias que Maria Aparecida Baccega e Ismar de Oliveira Soares, por exemplo.
já não dão conta de captar a complexidade da nova realidade que vive- A escola e o município como agentes da produção cultural
mos. Alguns autores nos alertam para o fato de que na contempora-
O que interessa salientar nesta breve reflexão é que vivemos um
neidade, com o crescimento no fluxo das informações, tem-se verificado
novo momento em nossa relação com as mídias. As propostas de educo-
a ampliação da reflexividade social. No conjunto geral da circulação da
municação (em alguns países, denominada mídia-educação) tornam-se
informação há um maior espaço – substantivo e significativo – para a
a cada dia mais viáveis, sob o ponto de vista da sua produção. Os compu-
mediatização de outros discursos para além da ideologia dominante.
tadores são hoje lugares da interação social via uma ampla diversidade
Outros segmentos da sociedade passam a conquistar novas plataformas
de redes de relacionamentos. Recursos como os blogs e internet facilitam

96 Múltiplos olhares 97
a divulgação de ações locais para uma audiência de caráter planetário. grande participação de diferentes interesses disciplinares e a emergência
Os telefones celulares tornaram-se câmeras de vídeo e de fotografia, o de novas práticas de debate, reflexão e produção.
que possibilita o seu uso para a realização de produções de repor-
As possibilidades são muitas. Precisamos compreender que as
tagens fotográficas ou até mesmo videográficas. As câmeras de vídeo
novas mídias podem ser grandes aliadas na construção de novos pro-
também estão mais acessíveis, o que permite que a comunidade ou a
cessos de transformação. O mundo de hoje parece reservar um espaço
escola possam ter seus próprios equipamentos, o que até bem pouco
mais socializado para a polifonia que é própria das culturas humanas.
tempo atrás era inviável.
Com a socialização dos meios de produção (tecnologias) de co-
municação social, ampliam-se as possibilidades de construção de no- Referências
vas narrativas, sobre os mais variados temas: meio ambiente, saúde,
educação, cultura, esporte, economia, política e lazer. Usando os
dispositivos tecnológicos no seu melhor sentido: o de meios. Meios CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: eco-
para a construção de novos processos de reflexividade, agora, vindo nomia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. v. 1
das comunidades locais, dos municípios como os verdadeiros agentes . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
da utopia da transformação planetária. A mídia enquanto meio, e não FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 44. ed. São Paulo: Cortez,
como um fim em si mesma. A mídia enquanto processo, e não apenas 1992.
produto. As novas mídias a serviço das comunidades receptoras que
agora, nesta nova lógica da sociedade de redes, se transformam em OROFINO, Maria Isabel. Mídias e mediação no espaço escolar: pedago-
protagonistas e autoras de respostas aos discursos ininterruptos da gia dos meios, participação e visibilidade. São Paulo: Cortez/Insti-
comunicação de mercado. tuto Paulo Freire, 2006.

Existem muitas possibilidades de desenvolvimento de ações cul-


turais em favor da consolidação do Programa Município que Educa
com o uso criativo e reflexivo das novas mídias pelos agentes transfor-
madores. Uma questão que temos defendido é a criação de grupos de
mídia na própria escola, centros culturais ou outros locais de interesse.
Tomamos como exemplo as iniciativas que emergem a partir da escola,
com o objetivo de oferecer subsídios que possibilitem a criação de no-
vas práticas que levem em conta a pluralidade dos agentes envolvidos
em um programa como este.
Na escola, as ações mídia-educação têm sido coordenadas de modo
conjunto e participativo por grupos de alunos interessados, professores
de diferentes disciplinas e agentes da comunidade ligados a diferentes
setores de atuação (grupos ligados à cultura, meio ambiente, saúde, entre
outros). Porém, o educador ou educadora responsável pelo laboratório
de informática torna-se peça-chave para este novo projeto de educação.
Uma experiência recente de produção de um blog tem possibilitado uma

98 Múltiplos olhares 99
O SOFTWARE LIVRE NO CONTEXTO
DE UM MUNICÍPIO QUE EDUCA
Cpfgtuqp"Hgtpcpfgu"fg"Cngpect55

Vivemos em um mundo de profundas transformações tecnológi-


cas e a administração pública federal, estadual ou municipal não pode
estar alheia a este movimento. Este estreitamento, neste caso específi-
co, não é motivado pela concorrência ou pela busca de maximização
dos lucros, mas, sim, para qualificar o serviço público.
As tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm uma
penetração inequívoca em nosso cotidiano. Falamos em celulares,
computadores, telefones, TVs, rádios e as tecnologias da inteligência
que potencializam a capacidade intelectual.
A administração pública pode ser frutuosamente beneficiada pelo
uso de tecnologias em suas práticas cotidianas. Neste texto, partindo
dos princípios constitucionais da própria administração pública, defi-
nidos pela Constituição Federal no artigo 37 – legalidade, impessoali-
dade, moralidade, publicidade e eficiência –, trataremos de apresentar
subsídios teórico-práticos para o uso da tecnologia nas municipalida-
des no contexto de um Município que Educa.
Fundamentando o princípio da legalidade, a Constituição, no in-
ciso II do art. 5º, declara: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
A legislação internacional e brasileira, por meio dos processos

33 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB, 2005), mes-
trado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2007). Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em Sistemas de Informação e Tecnologia Educacional, atuando
principalmente nos seguintes temas: Pedagogia da migração, software livre, GNU/Linux,
conhecimento livre, educação a distância, copyleft, liberdade do conhecimento. Doutorando
em Educação na Universidade de São Paulo (Feusp desde 2008), é coordenador da Universi-
tas Paulo Freire (UniFreire), instituição mantida pelo Instituto Paulo Freire.
de digitalização, do advento da informática e internet, tornaram-se fa- Não queremos, com isso, encobrir preconceitos ou desrespeitos, mas
cilmente acessáveis. A dificuldade que poderíamos ter para localizar aproveitar-nos das tecnologias para criar outros espaços de interlocu-
uma lei específica, ou mesmo sua emenda, foi dissipada com as possi- ção, ao mesmo tempo que nos educamos para o respeito e a tolerância,
bilidades da world wide web (www), que nos garante, de modo visual qualificando o atendimento presencial. O cuidado com a linguagem e
e fácil, localizar, não somente as legislações, mas também palavras ou com o atendimento, seja no presencial ou virtual, não são autoexcluí-
parágrafos nesses textos. Na própria construção deste texto, localizei, veis e devem ser cuidados.
com extrema facilidade, a versão digital da Constituição Federal e as
Quanto ao princípio da moralidade, Cardozo (1999, p. 158) define:
palavras e trechos que me interessavam, graças à existência da inter-
net e dos processos citados. A administração pública, além de poder Entende-se por princípio da moralidade, a nosso ver, aquele que determina que
acessar toda a legislação disponibilizada na rede pelas três esferas de os atos da Administração Pública devam estar inteiramente conformados aos
governo – municipal, estadual e federal –, pode, por meio do processo padrões éticos dominantes na sociedade para a gestão dos bens e interesses pú-
blicos, sob pena de invalidade jurídica35.
de digitalização, disponibilizar (em relação direta com o princípio da
publicidade) suas legislações na internet, oferecendo a todos os cida- Quando nos debruçamos sobre o tripé moralidade, adminis-
dãos e cidadãs o acesso à informação. Essas leis podem ser projetadas tração pública e tecnologia, chegamos à conclusão de que o software
e/ou impressas, qualificando as práticas educativas, por exemplo, como livre é uma das sínteses possíveis por quatro razões36:
aquelas de professores das redes públicas quando venham a discuti-las 1) O software proprietário não nos permite estudar ou alterar o
ou nas universidades, nos cursos de Direito e afins. Esta é uma ativida- software. O direito a conhecer os softwares e como estes fun-
de importante na constituição de “e-governo” ou governo eletrônico. cionam em cada município é um direito do cidadão. Além
O princípio da impessoalidade é definido por Seresuela (2010) como disso, é direito do gestor público alterar o software, como bem
o quiser, para qualificar o serviço público. Inviabilizar o estu-
[...] aquele que determina que os atos realizados pela Administração Pública, ou do ou alteração do software não é ético.
por ela delegados, devam ser sempre imputados ao ente ou órgão em nome do
qual se realiza, e ainda destinados genericamente à coletividade, sem conside- 2) O software proprietário gera uma cadeia de aprisionamento
ração, para fins de privilegiamento ou da imposição de situações restritivas, das entre uma empresa desenvolvedora e a administração pública,
características pessoais daqueles a quem porventura se dirija34.
graças ao monopólio desta empresa sobre o software, deixan-
A garantia do anonimato na internet, que está sob intensa dis- do o gestor sem alternativas no mercado para suporte, a não
cussão e sendo levado a cabo pelo Marco Civil da Internet, é uma das ser a própria empresa que vendeu a licença de uso do software.
ferramentas para a viabilização do princípio da impessoalidade. Garan- Esta prática não é ética.
tir acesso não identificado às informações das administrações públicas
3) O software proprietário, além de não permitir a alteração, não
é uma forma de sua realização. A informação, por ser pública, deve
permite à administração pública compartilhar as alterações ou
ser acessível a qualquer cidadão e, por meio da internet, pode sê-lo
correções de problemas que tenham custeado. Nem mesmo
em qualquer tempo e espaço. Garantir o acesso virtual aos conteúdos
da instância governamental possibilita minimizar quaisquer proble-
mas que a “pessoalidade” poderia trazer ao atendimento aos cidadãos. 35 CARDOZO, José Eduardo Martins. Princípios constitucionais da administração pública
(de acordo com a Emenda Constitucional n. 19/98). In: MORAES, Alexandre de (Coord.).
Os 10 anos da Constituição Federal: temas diversos. São Paulo: Atlas, 1999, p. 149-183
34 SERESUELA, Nívea Carolina de Holanda. Princípios constitucionais da Administração 36 Mais informações: OLIVA, Alexandre. Da preferência constitucional pelo Software Livre.
Pública. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3489>. Acesso Disponível em: <http://www.fsfla.org/svnwiki/texto/pref-const-br-swl.pt.html>. Acesso
em: 22 ago. 2010. em: 22 ago. 2010.

102 Múltiplos olhares 103


com outras administrações públicas. Bloquear o compartilha- casos em que é encontrada, em alguma medida é insuficiente. Temos
mento do resultado de investimento público não é ético. aqui um problema de registro, de sistematização e compartilhamento
da informação. O município não registra as suas ações, portanto não
4) O software proprietário, usualmente, é pago (a licença de uso).
tem elementos para socializar.
Quando não é cobrada a licença, o software faz parte de um
pacote, por exemplo, uma manutenção mensal daquela em- Tecnologias de fácil acesso e de baixo custo, como câmeras digi-
presa, em caráter de exclusividade. O software livre, ao con- tais, filmadoras e computadores, podem apoiar estas administrações
trário, nos permite, a custo zero no que se refere a licenças na realização de registro de projetos das diversas secretarias. Estes re-
de uso, não ter limitada a quantidade de vezes que venha gistros vão sendo sistematizados em relatórios de campo ou de traba-
a instalá-lo, bem como utilizá-los para quaisquer finalida- lho, sendo a estes anexados os registros audiovisuais e, por fim, podem
des que necessitar. Essas licenças pagas, em especial aquelas ser disponibilizados na íntegra nos sites dos próprios municípios com
de sistemas operacionais ou pacotes de escritórios proprie- licenças de uso abertas e flexíveis tais como a Creative Commons.
tários, são revertidos a empresas estrangeiras em forma de
No Município que Educa seria interessante a criação de um espa-
royalties, ferindo a soberania nacional e a possibilidade de in-
ço público digital que, gerido pela sociedade civil, armazenaria todos
vestimento público em cooperativas e empresas brasileiras.
estes registros, uma espécie de grande repositório público de iniciati-
Esta prática não é ética.
vas e projetos das administrações públicas, evitando quaisquer perdas
[...] exige, nas formas admitidas em Direito, e dentro dos limites constitucio- de dados na passagem entre diferentes gestões públicas.
nalmente estabelecidos, a obrigatória divulgação dos atos da Administração
Pública, com o objetivo de permitir seu conhecimento e controle pelos órgãos Por fim, o princípio da eficiência é definido por Seresuela (2010)
estatais competentes e por toda a sociedade. como aquele que “orienta a atividade administrativa no sentido de
As TICs são ferramentas eficazes de publicização e, sem som- conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dis-
bra de dúvidas, a internet é a principal aliada neste processo. Temos põe e a menor custo”.
uma ampla variedade de gerenciadores de conteúdos em software livre Junto ao princípio da publicação, o da eficiência (e da economici-
(Joomla, Drupal etc) que permitem a criação de sites sem qualquer dade) pode ser efetivado em diversos campos da administração pública
tipo de conhecimento técnico específico, como o de programação. Es- com o apoio da tecnologia. Entre estes campos, podemos mencionar:
‚" Software livre/público: o uso prioritário de softwares livres
ses sites podem disponibilizar desde notícias da gestão à disponibiliza-
ção da prestação de contas públicas como faz o Tribunal de Contas do
nas administrações garante grande economia de recursos públicos in-
Estado do Ceará (http://www.tce.ce.gov.br).
vestidos em licenças de uso e que se revertem em royalties a empresas
Além de atender fins jornalísticos, estes sites podem servir de canal de estrangeiras. A licença de uso do software MS Windows 7 Professional
avaliação das ações correntes, criar espaços efetivos de participação da po- tem custado, na média, de R$ 600,00 a R$ 700,0037 e o MS Office 2010
pulação na gestão pública por meio de orçamentos participativos ou, (com Access e Publisher) na faixa de R$ 1.300,0038. Em uma rápida con-
ainda, garantir canais para críticas, sugestões e denúncias. ta para 1.000 computadores de uma secretaria de estado, por exemplo,
Destaco que a publicação do a fazer, do em curso e do feito, deve ser
uma preocupação constante destas administrações. Diversas gestões mu-
nicipais dão início às suas atividades ignorando todo o acúmulo das 37 Disponível em: <http://preco2.buscape.com.br/procura?id=9365&kw=windows+7+pro
fessional> Acesso em: 22 ago. 2010.
gestões anteriores ou de outras gestões. Aquelas que procuram fazer
38 Disponível em: <http://compare.buscape.com.br/procura?id=6480&kw=office+2007+p
esse resgate, contudo, têm dificuldade em localizar a informação, e nos rofessional>. Acesso em: 22 ago. 2010.

104 Múltiplos olhares 105


chegamos a um gasto de R$ 1.900.000,00 pagos na aquisição de licen- Folhas39 da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, e o
ças de software. Todo este valor pode ser economizado por meio da im- compartilha na rede com licenças flexíveis que possam permi-
plantação de sistemas operacionais como o Debian e Ubuntu e pacotes tir o uso sem fins lucrativos, atribuindo a autoria e permitin-
de escritório livres como o Open/BrOffice.org. O investimento de R$ do ou não a sua alteração para novas versões, apoiará outras
180.000,00 do valor citado seria capaz de sustentar uma equipe de 10 administrações que tenham a mesma iniciativa seja partindo
profissionais de suporte (helpdesk) no valor de R$ 1.500,00 pelo período do material já pronto adequando-o à realidade local seja apro-
de um ano, que garantiriam o bom funcionamento do parque tecnológi- veitando a metodologia utilizada. De um modo ou de outro,
co e a formação dos novos migrantes advindos do software proprietário, teremos economizado tempo de trabalho, evitando a reinven-
isto é, este valor não iria mais ao exterior, mas seria revertido em con- ção da roda. Iniciativas de democratização da criação públi-
tratação ou qualificação técnica dos quadros internos e em adequações ca estão se tornando cada vez mais comuns e transparentes
nos softwares que venham a ser necessárias no processo. Estas melhorias pela rede. Destaque-se a iniciativa do Software Público que
seriam devolvidas à comunidade como responsabilidade do ator público tem buscado, junto aos entes públicos, a socialização de sof-
no processo colaborativo de desenvolvimento destes softwares. twares, desenvolvidos com recursos públicos, para com outras
‚" Digitalização/virtualização: o processo de digitalização/virtu-
administrações. Esta iniciativa evita, por exemplo, que uma
prefeitura do interior da Bahia custeie um novo software para
alização dos processos administrativos garantem economia em
gestão escolar quando este já foi desenvolvido pela prefeitura
papel (impressão/cópia) para as entidades públicas. Boa parte da-
de Itajaí e disponibilizado no Portal40.
quilo para o qual a prova material era imprescindível. Hoje, com
as ferramentas de certificação, assinaturas e a criptografia digital, Concluindo este texto, destaco as iniciativas do 4CMBr, o 5CQua-
é possível atestar a sua veracidade. Essas ferramentas oferecem a liBr e o CDTC.
segurança contra fraudes ou quaisquer outros crimes que deixa-
O 4CMBr é uma plataforma colaborativa para os municípios bra-
vam os técnicos receosos de sua implementação.
‚" Governo eletrônico: com a digitalização e virtualização dos
sileiros que tem como objetivo “o desenvolvimento da informatização
no setor público municipal, estimulando uma nova tendência de oferta
processos, gera-se uma economia de tempo e de trabalho, por- de softwares de gestão para prefeituras, incluindo informações impor-
que parte daquilo que se deveria recorrer pessoalmente a car- tantes para a administração”41.
tórios, correios, bancos, agências, escolas, prefeituras, receita e
O 5CQualiBr é um “ecossistema digital que trabalha para evoluir a qua-
polícia federal, pode ser realizado com alguns cliques de mouse
lidade do Software Público Brasileiro e o conhecimento em TI no país”42.
via internet. Formulários podem ser preenchidos pela rede; as
taxas, pagas em bancos online; a documentação recebida via O Centro de Difusão de Tecnologia e Conhecimento (CDTC)
correio ou retirada rapidamente de modo presencial. O ganho oferece cursos a distância na área técnica, gratuitamente, para servido-
qualitativo de iniciativas como estas é imenso tanto para a ges- res públicos e ao público em geral.
tão pública quanto para a população.
‚" Tecnologias sociais/conhecimento livre: efetivar o princí-
39 Disponível em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/projetofolhas/modules/conteudo/con-
pio da publicidade nos garante a eficiência. Se um municí- teudo.php?conteudo=3>. Acesso em: 22 ago. 2010.
pio desenvolve um livro didático, como é o caso do Projeto 40 Disponível em: <http://www.softwarepublico.gov.br>. Acesso em: 22 ago. 2010.
41 Disponível em: <http://www.softwarepublico.gov.br/4cmbr/xowiki/Sobre>. Acesso em:
22 ago. 2010.
42 Disponível em: <http://www.neodream.com.br/5cqualibr/flash>. Acesso em: 22 ago. 2010.

106 Múltiplos olhares 107


O uso de softwares livres assegura a efetivação dos cinco prin- PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
Igpw pq"Dqtfkipqp65
cípios constitucionais da administração pública: legalidade, impes-
soalidade, moralidade, publicidade e eficiência no contexto de um
Município que Educa. Com o apoio da informática, de uma opção
política clara pelo público e pelo respeito a estes princípios: é possível
fazer muito! O Programa Município que Educa concebe uma nova arquitetura
na gestão do Sistema Municipal de Educação, fundada nos pilares da
escola cidadã e na dimensão da cidadania planetária. Essa nova arqui-
tetura busca a construção da identidade institucional do município,
pelo registro, sistematização e análise de suas práticas para a constru-
ção de novos saberes. Poderíamos falar em epistemologia da práxis,
do processo dialético da reflexão-ação, releitura da reflexão-ação, da
aprendizagem com a experiência, que leva os munícipes a reconhece-
rem-se de modo orgânico e articulado e se identificarem territorial e
culturalmente.
Nesse processo, o Plano Municipal de Educação (PME) se cons-
titui como principal instrumento de gestão da nova arquitetura do Sis-
tema Municipal de Educação. Caracterizado como plano de Estado,
deve representar a vontade da cidadania municipal que, em seu caráter
mais permanente, ultrapassa os tempos transitórios dos mandatos dos
governos. E, como Plano da Educação no município, assume dimensão
sistêmica, abrangendo a totalidade das demandas educacionais, articu-
lando as diversas áreas da ação pública necessárias à sua realização.
Com essa dimensão, o PME se constitui em fonte geradora e
orientadora dos planos e ações governamentais, entre os quais se des-
taca o Plano de Trabalho Articulado (Plantar) proposto pelo Programa
Município que Educa. O Plantar se constitui numa importante estra-
tégia para realizar os objetivos e metas do PME, na medida em que
articula as ações dos diferentes setores e mobiliza os diferentes atores

43 Professor aposentado da Universidade de Brasília, assessor e membro fundador do Ins-


tituto Paulo Freire. Formado em Filosofia pela Unijuí (RS) e Mestre em Educação: Ad-
ministração de Sistemas Educacionais, pelo Iesae/FGV (RJ).

108
municipais na promoção da qualidade social da educação. Qualidade E para que serve o Plano Municipal de Educação? Para definir o
que será social na medida em que incluir a todos os munícipes no exer- caminho, o modo de caminhar e o horizonte da chegada. O Plano não
cício pleno da cidadania. só define o caminho a seguir, mas quantos passos dar em determinado
tempo. O caminho é dado pelas diretrizes, as orientações dos rumos a
O Sistema Municipal de Educação, baseado nos princípios e
seguir. Os passos representam as metas, determinadas pelas possibili-
fins educacionais, define a organização formal, legal, do conjunto das
dades e limites oferecidos pela realidade.
ações educacionais do Município. A instituição do Sistema por lei mu-
nicipal explicita e afirma o espaço da autonomia do Município e as De forma bem simples, Ferreira (1983) afirma que “planejar sig-
responsabilidades educacionais próprias. O Sistema tem um caráter de nifica não improvisar”. E não improvisação requer olhar para o futuro
afirmação de princípios e valores mais permanentes na construção da – uma utopia no horizonte –, definir objetivos e etapas da caminhada
cidadania e da sociedade que se deseja. em sua direção. Sem plano não há um caminho traçado a percorrer,
nem estratégias da caminhada, mas passos dados ao sabor das cir-
O Plano Municipal de Educação define o projeto de educação e
cunstâncias, em geral sem direção. Os objetivos se fundamentam em
se constitui no instrumento de gestão do Sistema, para tornar efetiva a
princípios e intencionalidades indicando o rumo do futuro. As ações
cidadania e a sociedade preconizada nas bases e diretrizes da educação
requerem a definição do como e com o quê caminhar nessa direção. Se
municipal. Neste sentido, sem o Sistema, o Plano ficaria sem a refe-
o planejamento é inerente a toda a atividade humana, seja individual
rência dos fundamentos mais permanentes, sem a orientação de sua
ou coletiva, torna-se essencial à gestão educacional para a promoção
finalidade, sem o rumo do futuro, portanto, sem contextualização.
da qualidade social da educação.
Uma analogia nos ajuda a simplificar a compreensão do signifi-
A elaboração do Plano Municipal de Educação abrange três mar-
cado e da importância do Plano para o Sistema Municipal de Educa-
cos, ou momentos articulados sinergicamente, constituindo processo
ção. Podemos compará-lo a uma estrada, com um arco-íris ao longe.
de ação/reflexão/ação/reflexão, orientados pela intencionalidade polí-
O arco-íris representa nossa utopia, e a estrada, o caminho para an-
tica da melhoria da qualidade da educação no município.
‚" Análise da situação: onde estamos? O bom diagnóstico re-
dar em sua direção. A analogia ganha significado com uma poesia de
Eduardo Galeano.
quer mais do que a simples e factual descrição da realidade,
“A utopia está lá no
com base em dados estatísticos. Requer a percepção das ra-
horizonte. Me aproximo
zões que geraram essa realidade, das forças e fraquezas e das
dois passos, ela se
oportunidades e ameaças que a realidade contém. É a consci-
afasta dois passos.
ência de onde estamos e porque estamos onde estamos, da ne-
Caminho dez passos e o
cessidade e dos limites e possibilidades de alterar a situação.
‚" Definição do caminho a seguir, dada pela concepção da
hozizonte corre dez
passos. Por mais que eu
caminhe, jamais educação, pela nossa utopia: que cidadania queremos? É a
alcançarei. Para que definição das políticas, entendidas como as intencionalidades
serve a utopia? Serve frente às expectativas e demandas do ambiente, e das dire-
para isso: para que eu trizes orientadoras do curso da ação. Os referenciais para a
não deixe de caminhar”. definição do caminho a seguir são dados: pela concepção de
(E.Galeano) pessoa e sociedade, que determinam a concepção de educação
adotada; pela missão própria do Município, definida pela sua

110 Múltiplos olhares 111


situação particular referida às responsabilidades prioritárias a seus familiares; entidades organizadas da sociedade civil. As comissões
ele atribuídas pela Constituição e pela LDB; pelos princípios e não dispensam audiências e consultas abertas a toda a comunidade,
diretrizes nacionais, pelos objetivos e metas do Plano Nacio- nas suas diferentes formas de mobilização social.
nal de Educação e do Plano Estadual de Educação; e pelo prin-
A realidade não se apresenta de forma uniforme e nem é interpre-
cípio do regime de colaboração entre os sistemas de ensino.
‚" Definição da caminhada: da situação para a utopia. É a de-
tada de forma sincrônica. Cada ator vê e interpreta a realidade a partir
de sua situação, de seu ponto vista, de sua particular visão de mundo
finição das metas, etapas – passos rumo ao horizonte sonha- (idiossincrasia). O todo só pode ser captado, interpretado desde ou a
do – e estratégias da caminhada (do modo de caminhar) para partir dos diferentes pontos de vista, ou seja: dos atores situados nas
realizar as transformações desejadas e promover a cidadania diferentes posições e papéis sociais.
idealizada. O modo de caminhar é dado pela definição dos
Carlos Matus, em seus cursos, alertava para a necessidade
processos de gestão, dos atores e recursos, das articulações
da superação de algumas cegueiras, que limitam a participação,
necessárias, incluindo atores além do sistema municipal (re-
como: o foco de atenção limitado a uma parte da realidade (um
gime de colaboração). A garantia da caminhada no rumo cer-
ponto de vista); a incapacidade de colocar-se no lugar do outro; a
to requer, ainda: a definição de responsabilidades (quem faz
visão limitada do tempo (ausência de perspectiva histórica, insti-
o quê); a definição de indicadores (marcos de realização de
tuinte); e preconceitos (segundo Einstein, mais difíceis de desin-
cada etapa); e processos de acompanhamento e avaliação do
tegrar do que um átomo).
Plano (um fórum de acompanhamento, que pode ser o pró-
prio Conselho Municipal de Educação). Para caracterizar a participação e a importância de considerar
cada ator social, Carlos Matus utilizava a analogia da mesa de jogo,
Para que o PME seja percebido como o plano da comunidade
na qual cada ator tem suas cartas a jogar (poderes e exercício de cida-
municipal, gerando compromisso de todos com sua realização, deve
dania): uns podem blefar, outros passar cartas por debaixo da mesa,
ser elaborado com e para ela. A construção participativa do PME tem
outros ainda jogar o jogo do soma zero, ou seja, do ganha-perde.
como fundamento a busca da congruência (o contrário de discrepân-
cia) entre seus objetivos e metas e as aspirações e demandas da comu- Para que o jogo jogado na elaboração do PME seja o jogo do ga-
nidade. Para isso, é necessário que todas as vozes, desde os diferentes nha-ganha, é preciso superar as cegueiras da participação. Talvez este
pontos de vista, sejam ouvidas. A participação permite a visão do todo seja o maior desafio da elaboração do PME, assim como das ações do
e gera compromisso e responsabilidade com o planejado, não só do Plantar: mobilizar a comunidade para a participação, com visão sis-
governo, mas também da sociedade. têmica, de totalidade, do projeto de educação no município. Por falta
de compreensão do significado da participação, por descrença ou por
O processo formal de construção participativa do PME, assim
inércia histórica, muitos educadores ainda a consideram mero discur-
como de seus desdobramentos no Plantar, deve contar com os dife-
so retórico ou oportunidade de afirmação de interesses corporativos.
rentes sujeitos que vivem no município e representam, de um lado, a
A participação requer capacidade de colocar-se no lugar do outro e su-
organização do Estado e de outro, a sociedade civil organizada. Essa
peração de resíduos inconscientes de preconceitos. A participação não
participação deve ser formalizada em ato oficial constituindo Comis-
é apenas um bonito desejo baseado no princípio da democratização
são Coordenadora e comissões temáticas, contemplando, por meio de
das decisões, mas uma necessidade essencial para que o plano repre-
representações: Poder Executivo (todas as secretarias); Ministério Pú-
sente as aspirações da totalidade da sociedade e gere compromisso de
blico; Poder Legislativo; Conselhos (Municipal de Educação, da Saúde,
todos na sua implementação.
Tutelar, CMDCA e outros); profissionais da educação; educandos e

112 Múltiplos olhares 113


Para isso, é essencial que, na fase inicial e ao longo de todo o proces- GOVERNABILIDADE DEMOCRÁTICA
so de elaboração do plano, sejam dedicados espaços de divulgação voltados NO MUNICÍPIO QUE EDUCA
Lqufi"Gwuv swkq"Tqo«q66
para a sensibilização dos munícipes para a participação e realizados momen-
tos de formação sobre o significado do plano, seus princípios orientadores e
sua abrangência. Na verdade, todo o processo de elaboração do plano deve
constituir-se em rico processo de formação e exercício de cidadania.
Como princípios orientadores, destaco: Introdução
‚" Visão sistêmica – o PME deve representar a visão do projeto A visão burguesa eurocêntrica e norte-americana de governa-
educacional do município no seu todo, articulando as partes bilidade tem suas origens em Platão, para quem a Política era a arte
em vista dos fins da educação. Assim, duas dimensões se des- de governar por aqueles que têm mais competência ou expertise na
tacam: as ações de responsabilidade direta do município (o condução dos seres humanos com seu consentimento. Dizia que os
atendimento às diferentes etapas e modalidades de ensino da passageiros de um navio submetem-se totalmente à competência do
rede municipal e da educação infantil da rede privada, os pro- comandante, assim como os doentes aceitam, sem maiores questio-
cessos de gestão e o financiamento); e as ações no município, namentos, a maestria dos médicos e os soldados confiam plenamente,
de responsabilidade do Estado e da União (objetivos e metas salvo raras exceções, no comando do general. Em suma, inspirada na
municipais que demandam ações de articulação com o Estado antiga Grécia, os colonizadores desenvolveram uma concepção indivi-
e a União, em regime de colaboração). De certa forma, o plano dualista de governabilidade.
estabelece a negociação de responsabilidades para o atendi-
mento de todas as demandas educacionais do município. No entanto, esta concepção foi contestada no próprio Ociden-

‚" Governabilidade – os limites e possibilidades da ação, a ca-


te, a partir de 1215, quando a nobreza inglesa submeteu o rei João
Sem Terra45 aos princípios da Carta Magna, que criou a governa-
pacidade de gestão e controle do governo sobre as ações pla- bilidade compartilhada (pela elite, é claro). Estávamos no limiar
nejadas. É essencial que o planejado seja realista e exequível, da Modernidade que criou o direito burguês e sua objetivação, o
embora forçando os limites do possível. Metas irrealizáveis se Estado liberal burguês.
tornam pesadelos, desencantando o sonhar bons sonhos.
‚" Flexibilidade – possibilitar alternativas para enfrentar as incertezas
e corrigir rumos diante das surpresas da realidade. O plano precisa
44 Graduado em História, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1970); Doutorado em
considerar as circunstâncias da realidade, ser flexível para acompa- História Social (1978) e em Educação (1996) pela Universidade de São Paulo. Atualmen-
nhar os movimentos da realidade sob pena de perder seu objetivo te, é o Diretor do Programa de Pós-Graduação em Educação (Doutorado e Mestrado)
em curto espaço de tempo. O caminho apresenta obstáculos, uns e professor na Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, onde coordena o
Grupo de Pesquisa “Culturas e Educação”. É autor de vários livros, dentre os quais se
podem ser removidos, outros precisam ser contornados. destacam: Poder local e educação (1992), Avaliação dialógica (1998); Dialética da dife-
Sistema e Plano estruturam a visão sistêmica do todo da educação rença (2000); Pedagogia dialógica (2002).
45 Apelido revelador de um soberano que não tinha a principal base de legitimação da
no município. O PME define para cada década os rumos a seguir e o Plan- autoridade no medievo europeu, que era a terra.
tar estabelece as estratégias dos passos a dar pelos governos. SME, PME e
Plantar concretizam a nova arquitetura do Município que Educa, na cami-
nhada dos munícipes rumo à utopia da cidadania plena para todos.

114
Em todas as sociedades pré-burguesas, os seres humanos eram 1) Dimensão mediadora (curricular)
divididos, por natureza, em, no mínimo, duas categorias: os que são
Neste caso, o município passa a ser encarado, com todos os seus
capazes de atos de vontade e os que não o são; os que nascem para
contextos, como tema gerador da mediação pedagógica. Para melhor
ser livres e autônomos (capazes de autodeterminação) e os que, não
se compreender esta dimensão, é necessário retornar ao próprio Paulo
tendo as faculdades para as escolhas, nem para a determinação de
Freire: “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém
seus próprios destinos, são propriedade dos primeiros, são bens se-
se educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão mediatiza-
moventes, como diziam as normas do direito pré-burguês brasileiro,
dos pelo mundo” (FREIRE, 1978, p. 79). Em outras palavras, não é a
por exemplo, em relação aos escravos. O direito burguês introduziu
escola, nem o currículo, nem muito menos o educador, a mediação;
um espetacular avanço, na linha do processo civilizatório e de hu-
mas é a própria realidade, o próprio mundo concreto que oferece as
manização, na medida em que considerou todos os seres humanos
condições para que os educandos sejam “mediatizados”. E a mediação
como competentes para a prática dos chamados atos de vontade e,
– “mediatização” como a chama Paulo Freire – é realizada pelo pró-
portanto, como capazes de escolher e de serem escolhidos para o
prio educando, que se autoeduca, coletivamente, “em comunhão”, sig-
exercício da soberania.
nificando, com isso, a superação de seu conhecimento imediato pelo
Entretanto, a outra face da modernidade foi a colonialidade46, mediato. Portanto, não é mediação no sentido de intermediação, de
ou seja, a submissão de povos de outros continentes não somente às ligação, de ponte entre duas realidades, mas o próprio movimento
pautas da empresa colonial europeia, mas, também, aos cânones da de superação, no sentido dialético do termo. Com estas considerações,
maneira europeia de pensar, ou seja, ao eurocentrismo. Em suma, não faz sentido, numa perspectiva freiriana, falar-se de “didática” en-
não somente a infraestrutura foi subalternizada, como também, a su- quanto “arte de ensinar”, já que ninguém ensina a ninguém.
perestrutura política e simbólica. E esta última subalternização é tão
Em síntese, o Município que Educa, na sua dimensão curricular,
poderosa que, mesmo se afastando a dominação colonial econômica
significa tomá-lo em seus elementos estruturais, suas comunidades,
e política, a simbólica é tão poderosa que se estende por séculos e
seus bairros, seus monumentos, sua história, seus habitantes e as suas
séculos pós-coloniais, dificultando a busca de saídas econômicas
singularidades e transformá-los em palavras, temas e contextos gera-
e políticas próprias.
dores, no sentido freiriano da expressão.
Assim, numa perspectiva libertadora, ao tratar da governabilida-
“Palavra geradora”, para Paulo Freire, era todo e qualquer termo
de no município que educa, não se pode esquecer este passado co-
de uma língua nativa dotado de riqueza fonêmica e significativa im-
lonial, pois a educação terá papel fundamental na ultrapassagem do
portância simbólica para os(as) alfabetizandos(as). “Temas geradores”
eurocentrismo e da colonialidade.
são verdadeiras “unidades epocais”, como as chamava Paulo Freire, isto
O município enquanto instância educadora é, problemáticas que marcam determinadas épocas e que atravessam
os sistemas simbólicos de todas as classes sociais – é bem verdade que
A partir dos referenciais de Paulo Freire, um município pode ser
cada uma na sua própria perspectiva. O fenômeno da globalização ou
considerado educador, em duas dimensões:
da mundialização poderia ser um exemplo deste último. Certamente
os contextos geradores participam da natureza das conjunturas impac-
tantes dos diversos grupos que compõem a sociedade e que, por isso
46 Conceito desenvolvido pelos pensadores latino-americanos, especialmente por Aníbal mesmo, constituem verdadeiros processos da “média duração”, como a
Quijano (2005), por volta de 1992 e por Walter Mignolo (2003). Ele foi denominado por chamou Fernand Braudel (1972). Poder-se-ia considerar ainda os “uni-
Enrique Dussel como transmodernidade (2002).
versos geradores”, de longa duração, e que constituiriam verdadeiros eixos

116 Múltiplos olhares 117


estruturantes das formações sociais. Como exemplo, o sistema mundial Esportes, pode-se desenvolver uma série de atividades educacionais
moderno, no sentido que lhe conferiu Immanuel Wallerstein (1974) em uma rua, em um bairro e pode-se dar à iniciativa uma certa periodi-
poderia constituir um exemplo ilustrativo de “universo gerador”. Um cidade, sendo que as edições subsequentes podem ser coordenadas e
bom exemplo de projeto de município que educa nesta dimensão foi desenvolvidas pela própria comunidade, desde que se a dote dos equi-
o de Curitiba que, na década de 1990, desenvolveu um projeto em que pamentos necessários.
a cidade e seus elementos constitutivos passaram a ser tema de livros
Ônibus educativo – Com uma turma inteira dentro de um meio
para os alunos da Educação Básica. Vários textos e roteiros de estudo
de transporte público coletivo, pode-se desenvolver com as crianças a
foram elaborados coletivamente pelos educadores daquela cidade do
educação para a cidadania no trânsito, discutindo, no campo real das
sul do país, juntamente com os consultores especialistas, e estes textos
ruas, as questões de segurança, direção preventiva etc.
foram transformados em dez livros didáticos (três para a 1ª série do
Ensino Fundamental, três para a 2ª, dois para a 3ª e dois para a 4ª), com Sumaríssimas considerações finais
o título de Lições curitibanas. O conceito de “governabilidade” quer dizer, segundo o Dicioná-
2) Dimensão educadora rio Houaiss, a “qualidade do que é governável”, a “conjuntura de esta-
bilidade política, social e financeira, em que o poder executivo pode
Nesta dimensão, o município, com toda a sua gente, com toda a
exercer plenamente as suas atribuições”.
sua infraestrutura e com todos os seus equipamentos, transforma-se
em espaço e em instrumento de educação. Ora, neste sentido, é evidente que a governabilidade deixa de
existir quando a civilização cede lugar à barbárie. A primeira é produto
O processo educacional não se reduz ao ambiente escolar, mas
do diálogo entre os seres humanos, a segunda é resultante da violência
espalha-se por todo o território municipal e cada cidadão se transfor-
física ou simbólica, que emerge nas sociedades todas as vezes que al-
ma em um educador – aliás, todos já o são, mas, a partir da assunção
guma pessoa ou classe social quer impor sua maneira de apreender o
dessa dimensão, há uma intenção deliberada, consciente e organizada
mundo a todos os demais.
de assunção do papel de educador. Todos os recursos são mobilizados
em função de um plano, programa ou projeto educacional. A resistência a esta pretensão hegemônica só é eficaz pela educação
democrática, libertadora, que propicia a autonomia de todos, pois tanto
Alguns exemplos podem ser dados quando esta dimensão foi as-
os pretendentes à hegemonia quanto as vítimas de sua dominação só
sumida pelo município:
se libertam por meio de um processo educacional emancipador. E um
Biblioteca ambulante – Um veículo, adrede preparado para dos projetos pedagógicos mais consequentes e oportunos que surgiram
acondicionar determinado acervo, percorre as ruas e as estradas de nas últimas décadas foi a concepção freiriana, conforme comprovam as
um município, parando em determinados bairros ou comunidades experiências em várias partes do mundo, concepção esta que também
para estimular a leitura por meio de empréstimos de obras de ficção ou fundamenta as práticas e os projetos de um Município que Educa.
de não ficção, de acordo com os interesses das pessoas que podem ser
atraídas por um sistema de som.
Referências
Os livros podem ser expostos em praças e, ao mesmo tempo em
que os adultos leem, as crianças podem ouvir estórias lidas por uma
mãe, um pai, uma avó, um avô etc. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Tradução Carlos Bra-
Bairro ou rua de lazer – Com a equipe de Educação Física e ga e Inácia Canelas. Lisboa: Presença, 1972.

118 Múltiplos olhares 119


CURITIBA. Prefeitura Municipal. Lições curitibanas. Curitiba: PMC/ UBUNTU: VIVER, CONVIVER E
SME, 1994-1995. 10 v.
APRENDER NO MUNICÍPIO
"Ectnqu"Tqftkiwgu"Dtcpf«q69
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da
exclusão. 2. ed. Tradução Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen
e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
Na África existe um conceito conhecido como ubuntu – o sentimento profundo
docente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. de que somos humanos somente por intermédio da humanidade dos outros; se
______. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a Pedagogia do vamos realizar qualquer coisa neste mundo, ela será devida em igual medida ao
trabalho e às realizações dos outros. (Nelson Mandela)48
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Vivemos uma vida plural, coletiva e solidária. Aprendemos ao
______. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
longo de muitos milhares de anos a nos fazermos seres humanos, por-
1978.
que bem ou mal aprendemos a conviver. Aprendemos uns com os ou-
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, sa- tros a vivermos juntos, a partilhar entre nós uma vida que, sem esses
beres subalternos e pensamento liminar. Tradução Solange Ribeiro exercícios de partilha em comum, seria impossível. Em tempos como
de Oliveira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. os de hoje em dia, em que muitas coisas parecem apontar para os dese-
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e Améri- jos e as promessas do individualismo, do particular, do privê, devemos
ca Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: reaprender que a felicidade humana é a coragem cotidiana de sair de
Eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. si-mesmo em direção ao outro.
Tradução Júlio César Casarin Barroso Silva. Buenos Aires: Consejo A proposta do Município que Educa traz como elemento-chave o
Latinoamericano de Ciencias Sociales – Clacso, 2005. p. 227-278. reaprendizado de que somos todas e todos nós não somente morado-
WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System: Capitalist res de um lugar, mas cocriadores do mundo de saberes, valores, prin-
agriculture and the origins of the European world-economy in the cípios e direitos em que vivemos. E também autores-atores do mundo
sixteenth century. New York: Academic Press, 1974. de interações (com a natureza, entre pessoas e entre grupos humanos)
do mundo que habitamos.
Querendo ou não (mas é melhor estar querendo), no conviver

47 Carioca, formado em Psicologia e mestre e doutor em Antropologia e em Ciências Sociais.


Educador popular desde um dezembro de 1963. Professor aposentado da Unicamp, mas
ainda na ativa, coordenando equipe de pesquisadoras de comunidades tradicionais do
Rio São Francisco. Integrante do quadro de assessores do Instituto Paulo Freire. Autor de
livros de Antropologia, com foco em cultura popular e em mundo rural, de educação e
de poesia.
48 STENGEL, Richard. Os caminhos de Mandela – lições de vida, amor e coragem. São
Paulo: Globo, 2010.

120
com outros e com o mundo estamos de uma maneira ou de outra nos Quando leio para uma turma de alunos – que prefiro chamar
ensinando e aprendendo: uma única vez, de vez em quando, quase de comunidade aprendente – um texto de um cientista ou um poema,
sempre, todos os dias, sempre, ou seja lá como e quando for. Toda a lembro a eles que um teorema de matemática, um capítulo de livro de
vida é um contínuo, perene e multivariado aprender-ensinar-aprender. filosofia, um poema, uma epopeia, depois de prontos e escritos, e pos-
Ou, como queria Paulo Freire, um ensinar aprendendo em um apren- tos em um livro ou, em termos mais atuais, em um suporte eletrônico,
der ensinando sem fim. Porque, entre os humanos, a aventura do saber passam de cultura viva de seu momento original de criação a cultura
está sempre podendo recomeçar. morta (prefiro: adormecida). Quando, de novo, alguém toma aquilo
entre as mãos e lê, a teoria ou o poema voltam à vida. Retornam ao
Daí a ideia fecunda de que ninguém ensina ninguém, porque o
círculo vivo do saber. Retomam seu estado original de cultura viva.
aprender é sempre uma aventura interior e pessoal. Mas também nin-
Quem lê um poema faz renascer um poeta. Quem canta uma música
guém se educa sozinho, pois o que eu aprendo ao ler ou ao ouvir pro-
acorda um músico. Quem filosofa enquanto caminha por um parque
vém sempre de saberes e de sentidos vindos de outras pessoas. Provém
mistura aos sons de grilos e de pássaros toda a sabedoria da humani-
de conjuntos de informações, conhecimentos, saberes, valores, ideias
dade. Assim, um município vive de seus seres que – sabendo ou não
e imaginários; de símbolos, sentidos de vida, significados de mundo,
– reacendem em qualquer lugar, a qualquer momento: um saber com
memórias de passado, projetos de presente e de futuro.
sentido, ou um sentido com sabor.
Temos o costume de imaginar que apenas pessoas treinadas para tan-
No dia a dia de um município nos vemos às voltas com peque-
to são capazes de ensinar e de educar. Entretanto, ao revisitarmos a nossa
nas e grandes tessituras e trocas de afetos e de saberes, momentos de
própria vida passada e presente, damo-nos conta de que não é sempre e
entre nós ou de unidades sociais, de comunidades aprendentes. Nessas
nem é bem assim, mesmo quando parece ser. A começar pelos nossos pais
unidades de associação e partilha da vida, além do motivo principal
e por outras pessoas mais velhas da família, com quem aprendemos boa
do grupo – jogar futebol, reunir-se para viver uma experiência reli-
parte do que sabemos. E daí ao círculo mais amplo dos vizinhos; dele aos
giosa, trabalhar em prol da melhoria da qualidade de vida no bairro,
pequenos grupos sociais em que vivemos a nossa vida-de-todos-os-dias
lutar pela natureza de nosso lugar-de-vida –, de um modo ou de outro,
– desde um pequeno time de futebol a uma igreja, a uma equipe de tra-
as pessoas estão também inter-trocando saberes, mesmo que este não
balho, a uma banda municipal de música, a um círculo de leitura, a uma
pareça ser o objetivo mais essencial do estar ali Por diferentes que pos-
associação de moradores do bairro – estamos sempre envolvidos em e par-
sam ser em seus objetivos e nas suas áreas de atuação, em todas elas há
ticipando de pequenas e médias comunidades de vida e de destino. Todas
uma vocação a serem também educativas. Tanto é assim que todos que
elas são lugares-de-conviver onde a vida de todos os dias ganha, além de
participam dessas unidades sociais de participação e serviço um dia
um sentido, um tom de afeto, um valor de sociabilidade.
reconhecem: “o tanto que eu aprendi ali”.
Pensamos que criar sentido é obra de filósofo, criar sentimento
Assim, ao lado das instituições de educação formal, convivemos
é obra de ator e criar beleza é obra de artista. Em algumas dimensões,
todos os dias e ao longo de toda a vida com várias comunidades de
sim. Em várias outras, não. Viver em uma cidade e entre círculos de
trabalho, de serviço, de participação e de mútuo ensino-aprendizagem.
entre nós – os da afiliação, os da profissão, os da vocação, os do desejo
Dentro e fora da escola, estamos sempre envolvidos com diferentes ti-
– são formas múltiplas de viver coletiva e solidariamente a experiência
pos de comunidades aprendentes. Quando quero lembrar o que aprendi
de criar a vida. E qual outra obra se compara a esta? E em cada uma
ao longo de minha vida, preciso colocar, ao lado das escolas onde estu-
das dimensões e contextos que outros escritos deste mesmo livro esta-
dei, as rodas de parentes; as minhas diferentes e inesquecíveis turmas
rão tratando, ao conviver a experiência do criar-com-o-outro, estamos
(saudade da Turma da Rua Cedro!); a patrulha de minha tropa de
mutuamente nos ensinando e aprendendo.

122 Múltiplos olhares 123


escoteiros (uma das melhores escolas de vida que conheci); as equi- por empresas, em fins de semana ou em semanas especiais, que dão
pes de excursões e, mais tarde, de escalada de montanhas (outra o tom cultural e educativo à vida de um lugar. Uma das formas mais
escola inesquecível de vida); as equipes de militância entre a Juven- ativas neste campo das relações solidariamente educativas vividas en-
tude Universitária Católica e as de trabalhos de Cultura Popular tre as pessoas está nos pequenos grupos, nas cooperativas, nas orga-
dos anos 60 (a década que não acabou); as equipes de estudos e nizações não governamentais e em outras associações civis dedicadas
de pesquisas de quando estudante, de quando professor (coordeno a algum tipo de estudo, trabalho social ou qualquer outra forma de
uma delas até hoje); as outras e várias unidades de ação social junto participação solidária.
a movimentos populares, dedicadas quase sempre à formação de
Se quisermos ser coerentes com o que foi escrito linhas acima,
pessoas... muitos anos antes da invenção da formação de formado-
devemos levar em conta que o educativo da vida de um município está
res, e assim por diante. E sem esquecer as mesas dos bares da vida,
também no que nós – as mulheres e os homens da vida de todos os dias
em lembrança de Milton Nascimento. De um modo ou de outro,
– aprendemos a criar e a fazer entre nós e por nossa conta.
estamos sempre trabalhando em, convivendo com ou participando
de unidades sociais de vida cotidiana onde pessoas aprendem ensi- Há um ponto em tudo isto a que precisamos estar atentos. Te-
nando e ensinam aprendendo. mos muitas vezes uma tendência a pedagogizar demais a educação e
tudo o que ela envolve. O aprender nos aparece como um duro e difícil
Um princípio que a educação de hoje tardiamente reconhece é o
trabalho e o ensinar como uma penosa vocação. Podemos pensar a
fundamento de que, em qualquer grupo humano, todas as pessoas são
experiência do aprender-e-ensinar em diferentes situações de diálogos
sempre fontes originais de saber. Cada uma delas trabalha, convive e/
entre nós, como algo bem diverso. Podemos partir de uma ideia que
ou participa com o que traz do repertório único e irrepetível de seus
nos vem dos gregos e que se perdeu pelo caminho – apesar de estar
saberes, suas sensibilidades e seus sentidos de vida, originados de suas
sempre presente entre as(os) educadoras(es) mais clarividentes de to-
experiências, também únicas, pessoais e irrepetíveis.
das as épocas – e que retorna agora, em tempos em que descobrimos
Podemos ir além. O município em que vivemos pode ser também que estamos abrindo as portas de uma era do conhecimento. De uma
considerado como uma ampla sociedade educadora, como cenário de era humana que os mais tecnocratas preferem chamar de era da infor-
múltiplas e interativas comunidades aprendentes. E um Município que mação, mas que nós, herdeiros de Paulo Freire, preferimos denominar
Educa, entre o saber e o sabor, se atribui um sentido a mais ao ser ci- era da consciência.
dadão: o de alguém que, entre outros, aprende todos os dias e se forma
Não aprendemos a conhecer para nos tornarmos instrumentos
e transforma com e através dos múltiplos aprendizados que vive. Ele é
servis de um mundo maquinal. Aprendemos a saber e compreender
também aquele que por morar, viver e aprender a ser alguém dali, se
para nos tornarmos sujeitos criadores de nossas próprias vidas, des-
reconhece como um corresponsável pelo lugar de onde é: a sua e nossa
tinos e dos mundos sociais onde vivemos interativa e solidariamente.
casa, para além do portão da minha casa.
Aprendemos para sabermos semear entre nós o que há em nós e entre
Claro, na municipalidade existem vários locais onde esta voca- nós de mais humano: a verdade (de Sócrates a Gandhi), o bem e a
ção educativa nos aparece de uma maneira mais evidente, mais visível. beleza. Aprendemos para fazermos de nós mesmos a obra de arte do
Uma biblioteca pública, um museu, um parque destinado a pesquisas ser de uma pessoa. Eis o momento em que partimos em busca das mais
e a experiências de educação ambiental, um teatro, uma grande concha diferentes experiências em que aprender torna-se um centro perene de
acústica. Mas não são apenas estes equipamentos sociais que trazem nossas próprias vidas. Para além da informação que nos capacita a fa-
uma dimensão cultural e educativa a uma cidade ou a um município. zer; para além do conhecimento que nos torna especialistas em algum
Não são apenas os grandes acontecimentos públicos ou patrocinados ramo do saber-fazer humano, está o aprendizado do saber, que nos

124 Múltiplos olhares 125


aproxima, poética e poieticamente (em termos de Humberto Matura- ESCOLA, COMUNIDADE E FAMÍLIA NO
na), do próprio destino de nossa aprendizagem em um mundo educa-
dor: a experiência da sabedoria. Por que não? Porque sábios, poetas e
MUNICÍPIO QUE EDUCA
åpignc"Cpvwpgu"6;
pensadores dos mistérios da vida deverão ser sempre os outros que não
nós? Quem? Em que momento decretou que assim deveria ser?
Aprendemos, enfim, para ativa e transformadoramente compre- Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, re-
endermos que a vida – que a ideologia do mercado quer tornar uma ceitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da
arena entre competentes-competitivos – pode e deve ser, em outra construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve
em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe
direção, a realização crescente e perene do Ubuntu com que Nelson
transformar-se em sujeito de sua própria história. [...] A escola deve ser também
Mandela nos convida a imaginar um outro mundo possível. um centro irradiador da cultura popular, à disposição da comunidade [...] um
centro de debate de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai
sistematizando sua própria experiência. A escola não é só um espaço físico. É
um clima de trabalho, uma postura, um modo de ser. (FREIRE, 1991, p. 16).

O Município que Educa “chama o povo à escola” para se assumir


como “sujeito de sua própria história”. Nele, a escola torna-se um “cen-
tro de debate de ideias, reflexões e soluções”; um espaço de construção
coletiva do saber e de organização popular para construir sociedades
mais justas e sustentáveis.
Busca-se o aprendizado com sentido e o desejo permanente de apren-
der. Querer aprender e aprender com sentido exige conexão com a
vida dos alunos, dos familiares, da comunidade. Para isso, a escola,

49 É doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração Es-


colar pela mesma Universidade (USP). Possui graduação em Pedagogia pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC-SP) e em Letras pelas Faculdades Metropolitanas Unidas
(FMU). Foi professora da escola pública das redes do Município e do Estado de São Pau-
lo. Atualmente é diretora de Gestão do Conhecimento do Instituto Paulo Freire (IPF),
atuando principalmente nos seguintes temas: educação, escola cidadã, gestão democrá-
tica, exercícios de cidadania desde a infância, pedagogia da sustentabilidade, carta da
terra. Participou como colaboradora dos livros Paulo Freire: uma biobibliografia Cortez,
(1996), Educação de Jovens e Adultos: a experiência do MOVA-SP (MEC/IPF, 1996) e
Autonomia da Escola - Princípios e Propostas (Cortez/IPF, 1997). É autora dos livros:
ANTUNES, A. (Org.) Conselhos de Escola: formação para e pela participação,
2005; ANTUNES, A. (Org.) Orçamento Participativo Criança - Exercendo a cidada-
nia desde a infância. São Paulo: IPF, 2004; ANTUNES, A. ACEITA UM CONSELHO?
Como organizar os colegiados escolares. São Paulo: Cortez, 2002. v. 8. 224 p.

126
antes protagonista da fala, sempre definindo quando e o quê dizer a ensino-aprendizagem. Os professores encontram caminhos mais bem
esses segmentos, revê seu papel e reorienta sua prática. Os escassos sucedidos para o aprendizado das crianças e para o envolvimento dos
espaços de escuta e de diálogo, os encontros pontuais (seja nas reu- familiares no acompanhamento do estudo dos filhos. E este não é um
niões de pais a cada dois meses, totalizando quatro encontros no movimento de mão única. Os pais, familiares e comunidade, com essa
ano, somando, no máximo, em geral, 12 horas de convivência, seja interação, também aprendem muito com a escola. Se a escola escuta
nas reuniões do Conselho de Escola, que também são poucas e insu- mais, se os professores abrem espaços de diálogo com os familiares
ficientes), vão cedendo lugar à interação, ao diálogo, à convivência, à e com a comunidade, um universo de possibilidades se abre. Muitas
escuta, a uma rotina de encontros e conhecimento mútuo mais intenso situações vividas e, na maioria das vezes, invisibilizadas, e que, efetiva-
e processual. A participação de pais, familiares e comunidade vai para mente, interferem no aprendizado das crianças, têm chances de sair do
além do fazer parte. Eles tomam parte nas decisões. Sua presença na anonimato e do silêncio e passam a ser consideradas no currículo da
escola não se dá apenas para opinar sobre questões administrativas ou escola, fazendo uma enorme diferença no trabalho pedagógico. Desta-
financeiras, ou para participar de eventos, mutirões de limpeza e de camos, por exemplo, o trabalho de uma escola relacionado à questão
reforma. A escola deixa de ser lecionadora, informacional e transmis- do preconceito racial. Uma das professoras de uma escola de educação
sora de conteúdos, e assume o papel de articuladora e mediadora da infantil, na sua reunião bimestral com os pais, organizada dialógica e
construção de um conhecimento que permite aos educandos e à po- participativamente, de forma a acolher os pais e a deixá-los à vontade,
pulação local conhecerem o seu estar sendo no mundo, a realidade onde ouviu de uma das mães que sua filha estava resistindo a ir à escola
vivem, e construírem, juntos, de forma articulada, iniciativas que vi- porque estava cansada de ser chamada de “beirada de pizza”, “pixe”,
sam à transformação social. As situações de aprendizagem vividas nas “macaca”. A professora pediu para que explicasse um pouco melhor. A
salas de aula pautam-se na realidade local, em seus sujeitos, em suas mãe, meio sem jeito, contou que pegou sua filha passando pomada, do
identidades, em seus contextos, buscando uma educação de qualidade irmãozinho mais novo, nas pernas e nos braços e, diante da cena, ques-
sociocultural e socioambiental. tionou a criança: “Por que está passando pomada no corpo todo?” Para
sua surpresa, ouviu a explicação da filha: “Porque só a palma da minha
No Brasil, as estatísticas educacionais revelam que o acesso ao
mão é branca. E eu quero ficar branca no corpo todo. Quando eu vou
Ensino Fundamental está praticamente universalizado. Mas não basta
ficar branca, mamãe? Por que só a palma da minha mão é branca? As
garantir o acesso. O educando precisa permanecer na escola. Perma-
pessoas na escola me chamam de macaca. Eu não quero ser igual a
necer e aprender. Para garantir o direito de aprender, e aprender com
macaco.” Disse isso e começou a chorar.
sentido e com significado, uma nova interação entre escola, família e
comunidade se faz necessária, assim como uma nova gestão da escola Diante do relato da mãe, houve reação de outras pessoas que es-
é imprescindível. tavam na reunião, dizendo que seus filhos já haviam reclamado de serem
maltratados por coleguinhas também por causa do preconceito. A pro-
Pesquisas e estudos sobre gestão democrática vêm comprovan-
fessora tomou a iniciativa de conversar com outras professoras e com
do que a participação das famílias e da comunidade na escola me-
a diretora, de forma a criar um espaço de escuta junto às famílias para
lhoram a qualidade do ensino. Quando professores, coordenadores
identificar situações de discriminação racial na escola. Esta questão
pedagógicos, direção e equipe escolar aprofundam seu conhecimento
passou a ser objeto de estudos e reflexões dos professores e destes com
sobre as famílias dos alunos, sobre os próprios alunos e sobre o con-
os pais. Foram organizados debates com a comunidade e com os fa-
texto em que eles estão inseridos, há uma expressiva melhora na comu-
miliares. A escola, os professores e os próprios familiares passaram a
nicação, na relação e na integração entre esses diferentes segmentos
prestar atenção nas brincadeiras e nas falas das crianças, não ficando
e, também, melhor adequação didático-pedagógica no processo de
indiferente a essas situações, e orientando-as, de forma a não admitir e

128 Múltiplos olhares 129


muito menos incentivar práticas discriminatórias. A partir desse episódio, A escola, ela mesma já assoberbada de responsabilidades, vendo-se
outras situações de discriminação (contra crianças obesas, por exem- incapacitada de dar conta do básico que lhe é atribuído, esquiva-se de
plo) passaram a ser objeto de atenção dos professores e interferiram assumir mais responsabilidades, afirmando que, mesmo sensível aos
no planejamento das atividades pedagógicas (contar histórias infantis problemas, não possui pernas para tantos afazeres.
com personagens negros, com pessoas com deficiência, com persona-
É necessário chamar a atenção para o fato de que, se a escola pen-
gens obesos; ler poesias; estudar aspectos da cultura africana; trazer os
sa que, fechando as portas para esta realidade, ela realizará de forma
pais e familiares para contarem histórias para as crianças ou apresenta-
satisfatória os objetivos que estão no seu projeto político-pedagógico
rem brincadeiras, canções e músicas da cultura africana); enfim, numa
– formar alunos críticos, participativos, democráticos, preparando-os
interação entre família e escola, o ambiente pedagógico tornou-se mais
para exercer plenamente a sua cidadania e garantir o direito de apren-
propício ao acolhimento e à aprendizagem das crianças. Houve um
der –, ela comete um grande equívoco. A realidade educacional bra-
importante aprendizado para todos os segmentos escolares.
sileira tem mostrado isso. O povo chegou à escola. Mas o direito de
Mas essa prática ainda é insipiente em nosso País. A escola faz aprender na escola ainda é um grande desafio em nosso País.
parte de um sistema ou rede de ensino, que está sob coordenação de
Na sala de aula, a relação professor-aluno não se restringe
um órgão governamental, uma Secretaria, um Departamento ou uma
à relação de um educador com um grupo de crianças. Junto com a
Coordenadoria de Educação, cuja atuação se dá sob a determinação de
criança vem o seu contexto. Cada educando reflete sua situação fa-
um conjunto de normas, leis, decretos etc. em âmbito municipal, esta-
miliar, com seus valores, suas histórias, seus costumes, suas práticas
dual e nacional. Ela tem que dar conta dessas determinações. Tradicio-
sociais. O professor pode, por exemplo, planejar um debate na classe.
nalmente, da escola, espera-se que cumpra os dias letivos, que ensine
Ao realizá-lo, de repente, pode se deparar com a incapacidade de a
os alunos, que avalie o desempenho deles, que registre seu histórico
grande maioria dos alunos não conseguir respeitar os tempos das
escolar, que faça reuniões de pais para que estes acompanhem o estudo
falas e das escutas. Todos se manifestam ao mesmo tempo e, o que
dos filhos; enfim, da escola espera-se que cumpra o que está estabeleci-
é pior, diante das divergências, partem para agressões verbais e, às
do em lei e previsto nas políticas educacionais. Ao preparar seu plane-
vezes, até mesmo físicas. O professor fica desanimado e desiste de
jamento, historicamente, os estabelecimentos de ensino se referenciam
promover atividades desse tipo.
nessas determinações e, no geral, ainda não têm dado a necessária im-
portância ao que acontece fora e antes de a criança chegar ao espaço Ele planeja o debate e não se pergunta se faz parte do cotidiano
educacional. Esta prática – a de não dar importância ao que acontece dos alunos esse tipo de prática. Se seus alunos participam de atividades
fora e antes de a criança chegar ao espaço educacional – fundamenta- semelhantes. Se estão familiarizados, nos seus contextos, com ações
se, entre outras razões, numa concepção de educação, ainda hegemô- desse tipo. Se aprenderam a escutar e a falar. A estratégia pedagógica
nica, que entende que o papel da escola é transmitir conteúdos, ou na desconsidera se já houve um aprendizado para este tipo de atividade.
compreensão de que a escola já está sobrecarregada de problemas, que Ela parte do pressuposto de que o aluno tem que trazer isso de casa e
ela não pode assumir um papel assistencialista, que as condições das não percebe que, na verdade, esses saberes, o de escutar e o de falar,
crianças, às vezes, são tão adversas que pouco a educação pode fazer, muitas vezes, precisam ser construídos, pois as crianças não necessa-
pois se trata de intervenções mais amplas. Acontece também de a es- riamente tiveram a oportunidade de vivenciá-los em seus grupos so-
cola se abrir à comunidade e, ao se aproximar, ao conhecer os alunos e ciais. Ele parte do pressuposto que o aluno traz esse aprendizado do
seus contextos, ela ficar chocada e se sentir impotente diante de tantas seu convívio familiar e social e nem sempre isso é verdadeiro. Este é
adversidades. Aumenta o sofrimento dos professores e estes se sen- apenas um dos muitos exemplos de os contextos sociais interagindo na
tem frustrados, pois seus esforços são insuficientes frente aos desafios. classe. O professor não está lidando só com o aluno. De forma explícita

130 Múltiplos olhares 131


ou indireta, esses variados contextos se fazem presentes e interferem tem mais chances de contribuir com a busca de solução e da inclusão
no processo de ensino-aprendizagem. O professor pode planejar seu social. No movimento de articulação, a escola pode contribuir para
trabalho pedagógico, contando com o apoio dos pais e familiares. encontrar caminhos para ampliar os tempos e os espaços de formação
dos educandos e também da própria comunidade e dos familiares. Ela
Para conseguir bons resultados em sua sala de aula, ele pressu-
pode identificar e convocar novos atores e sujeitos sociais e políticos,
põe o envolvimento da família. Fazem parte das suas estratégias para
articulando políticas educacionais com políticas setoriais capazes de
alcançar o aprendizado do educando, as lições de casa, os trabalhos
apoiar as famílias dos alunos para que elas possam exercer suas fun-
extraescolares, as pesquisas... Para alcançar os objetivos a que se pro-
ções e, juntos, oferecer mais oportunidades às crianças, principalmen-
põe, ele necessariamente precisa da participação familiar. E quando
te, das famílias mais empobrecidas. Segundo Vitor Paro
não vem, e quando a família não corresponde às suas expectativas, ele
vê seu esforço se esvair e os resultados esperados não aparecerem, [...] a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer
aprender precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a
e fica desanimado. Ele planeja tendo em mente uma situação que não é escolar, buscando formas de conseguir a adesão da família para sua tarefa
a real. Ele planeja para um aluno ideal e, mais uma vez, o desânimo se de desenvolver nos educandos atitudes positivas e duradouras com relação
instala. O aluno pode fazer parte de uma família cujos pais trabalham ao aprender e ao estudar. Grande parte do trabalho do professor é facilitado
fora e não têm condições de apoiá-lo na realização das tarefas escola- quando o estudante já vem para a escola predisposto para o estudo e quando,
em casa, ele dispõe da companhia de quem, convencido da importância da
res; o aluno pode estar inserido em contextos em que não há condi- escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para aprender. É aqui que
ções para pesquisas em enciclopédias, dicionários ou Internet; o aluno entra o tema da participação da população na escola, pois dificilmente será
pode ser filho de pais analfabetos que, mesmo desejando ajudar mais conseguida alguma mudança se não se partir de uma postura positiva da insti-
profundamente os estudos do filho, não tenham condições de fazê-lo; tuição com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos
estudantes, oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente
o aluno pode conviver com familiares que não estimulam os estudos humana, em suma, de participação na vida da escola. Levar o aluno a querer
e não têm condições de dar apoio pedagógico. O professor espera que aprender implica um acordo tanto com educandos, fazendo-os sujeitos, quan-
as famílias cumpram seu papel de também educar e espera que os pais to com seus pais, trazendo-os para o convívio da escola, mostrando-lhes quão
apoiem os estudos dos filhos. Mas se esquece de confirmar as condi- importante é sua participação e fazendo uma escola pública de acordo com
seus interesses de cidadãos. (PARO, 2000, p. 66-67).
ções para isso. Tomam-nas como algo dado. E, na maioria das vezes, a
realidade é bem diferente da esperada. A escola reconhece, valoriza e demanda a participação da famí-
Dessa falta de conhecimento mútuo e de diálogo, tem surgido lia ou dos responsáveis na educação dos filhos, mas, tradicionalmen-
conflitos, acusações e cobranças. O que fazer, então? Empobrecer o te, não tem sido capaz de dar respostas acertadas para a construção
processo de aprendizagem já que a realidade é limitadora? Antes de dessa interação. Consolida expectativas e desencadeia processos sem
fazer cobranças aos pais e ou familiares ou prescrever uma lista de pro- fazer o que Paulo Freire (1921-1997) chamava de “Leitura do Mun-
vidências para o bom desempenho do filho, a escola precisa conhecer do”. As políticas educacionais atuais têm acentuado a preocupação
a vida dos educandos e suas respectivas famílias e construir, com elas com a interação escola-família. E uma das ações fundamentais que
e a partir da realidade delas, caminhos possíveis. O planejamento da vêm ganhando relevância está relacionada com o conhecimento do
ação pedagógica da escola como um todo e de cada professor não pode educando, da suas características, da sua identidade, da sua situação
continuar sendo construído ignorando os contextos. familiar e do seu respectivo contexto social. Inúmeras iniciativas vêm
sendo implementadas nessa direção e apresentando resultados posi-
Experiências inovadoras têm mostrado que, se é verdade que tivos. A Leitura do Mundo, ou seja, o conhecimento do contexto do
a escola, ao se abrir para o conhecimento do seu entorno, dos seus educando, das suas condições de vida, das suas expectativas, pode
alunos, ela se aproxima de problemas, é mais verdade ainda que ela contribuir, de forma decisiva, para a (re)definição do currículo, do

132 Múltiplos olhares 133


projeto político-pedagógico e das práticas educacionais, aproximando Referências
mais a escola das famílias e ampliando sua rede de relações e parce-
rias, aumentando o leque de possibilidades na busca de soluções para ANTUNES, Ângela. Aceita um conselho? Como organizar o Colegiado
os problemas com os quais depara. Escolar. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002a.
No contexto em que vivemos, vem se intensificando os processos ______. Leitura do mundo no contexto da planetarização:por uma ped-
de territorialização das políticas sociais, articulando-os a partir dos es- agogia da sustentabilidade. 2002. Tese (Doutorado) – Faculdade de
paços escolares, por meio do diálogo intragovernamental, com comuni- Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002b.
dades locais, fortalecendo a prática pedagógica que afirma a educação
como direito. “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem BORDENAVE, Juan Diaz. O que é participação? São Paulo: Brasil-
ela tampouco a sociedade muda”, já nos ensinava Paulo Freire. A esco- iense, 1994.
la vem sendo chamada a assumir o papel de articuladora dos diversos CASTRO, Jane Margareth; REGATTIERI, Marilza (Org.). Intera-
espaços do conhecimento que existem em cada localidade, em cada re- ção escola-família:subsídios para práticas escolares. Brasília, DF:
gião. A governabilidade social passou a depender, cada vez mais, da par- Unesco/MEC, 2009.
ticipação dos diversos sujeitos do fazer social: o Estado, a sociedade civil, CENPEC; AÇÃO EDUCATIVA. Seminário Nacional Tecendo Redes
a comunidade e o próprio público para o qual a ação pública é dirigida. para Educação Integral.São Paulo: Cenpec/Ação Educativa, 2006.
Há um reconhecimento, cada vez maior, da incompletude e necessária
complementaridade entre serviços e sujeitos sociais. FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

Na atualidade, vem sendo fortalecida uma arquitetura de gestão pú- ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-
blica fundamentada na lógica da cidadania, da participação, da democra- tiva. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
cia que promove ações integradoras em torno do cidadão e do local. Esse ______. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993.
movimento vem ao encontro de uma melhor interação entre escola-famí-
GADOTTI, Moacir. Convocados, uma vez mais: , continuidade e de-
lia-comunidade. Aprendem professores. Aprendem pais, familiares e
safios do PDE. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008.
comunidade. Na escola, aprende-se a agir em rede, de forma colaborativa,
cooperativa e complementar. Os alunos aprendem a conhecer e a compre- ______; ROMÃO; José Eustáquio (Org.). Autonomia da escola, princí-
ender a realidade onde vivem e onde serão chamados a participar como pios e propostas. São Paulo: Cortez, 1997.
cidadãos e como profissionais. Todos aprendem a promover articulações PADILHA, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos:reflexões e can-
e a estabelecer uma convivência mais orgânica entre programas e serviços ções por uma educação intertranscultural. São Paulo: Instituto
públicos estatais e não estatais, de iniciativa da comunidade e sociedade civil. Paulo Freire, 2007.
Aprende-se a superar a visão tradicional dicotômica, onde, de um lado, fi-
______. Município que educa: nova arquitetura da gestão pública. São
cavam as iniciativas individuais ou de pequenos grupos isolados e, de outro,
Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. (Cadernos
as organizações, estatais ou privadas. Aprende-se a construir iniciativas co-
de Formação, 2).
laborativas no território, envolvendo a sociedade civil organizada, as ONGs,
as associações comunitárias; todos mobilizados na construção de uma so- ______. Planejamento dialógico: como construir o projeto político-ped-
ciedade que gradualmente aprende a articular interesses diferenciados e agógico da escola. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2005.
complementares. A cidadania e o poder local saem fortalecidos. E o que PARO, Vitor Henrique. Qualidade de ensino: a contribuição dos pais.
é mais fundamental: aumentam consideravelmente as chances de o direito São Paulo: Xamã, 2000.
de aprender ser respeitado e garantido.

134 Múltiplos olhares 135


POVO QUE EDUCA, MUNICÍPIO QUE EDUCA:
NOVOS DESAFIOS
Oqcekt"Icfqvvk"

O paradigma emergente hoje na educação está associado à infor-


malidade. Aprende-se fora da escola, ou melhor, o planeta tornou-se
uma escola. Aprendemos o tempo todo. Mas, como se aprende fora da
escola? Do mesmo jeito que se aprende nela? O que se pode aprender
fora da escola? O que a escola pode aprender da sociedade?
O foco atual das teorias da educação, buscando a qualidade,
está na aprendizagem. Isso está ocorrendo por vários motivos. En-
tre eles, destaco dois: de um lado, porque, durante décadas, tem-se
insistido na necessidade de melhorar a qualidade, ora privilegiando
a docência, ora acentuando a autonomia do aluno; de outro lado,
não se tem clareza em relação ao que é qualidade da educação e,
muito menos, como se aprende. Enquanto as práticas educativas
continuam relativamente estáveis e até estagnadas, as teorias desta
aprendizagem se multiplicam.
Os currículos monoculturais do passado, voltados para si mes-
mos, etnocêntricos, desprezavam o que se passava fora da escola
como o não formal como extraescolar, ao passo que os currículos
interculturais de hoje reconhecem a informalidade como uma carac-
terística fundamental da educação. O currículo intercultural e “in-
tertranscultural” (PADILHA, 2004, 2007) engloba todas as ações e
relações da escola; engloba o conhecimento científico, os saberes da
humanidade, os saberes das comunidades, as artes e as ciências, a
experiência imediata das pessoas, as suas vivências e convivências;
inclui a formação permanente de todos os segmentos que compõem
a escola, a conscientização, o conhecimento e a sensibilidade huma-
na, o sentir e o pensar “sentipensante” (FALS BORDA, 2009); con-
sidera a educação como um processo sempre dinâmico, interativo,
complexo e criativo.
Por outro lado, também existem escolas que estão mais preocu- “Pedagogia Social” a educação indígena, a educação em saúde, a educação
padas com a segurança do que com a aprendizagem. É certo, vivemos em cidadania e direitos humanos, a educação ambiental, a educação no
tempos violentos, mas, a solução não está em colocar mais vigilantes, campo, a educação rural, a educação em valores, a educação para a
mais câmeras ocultas ou guardas armados nas nossas escolas. Não se paz, a educação para o trabalho, a educação política, a educação
supera o desafio da violência no entorno escolar e, muito menos, da para o trânsito, a educação hospitalar, a educação alimentar e outras edu-
qualidade da educação, com um Batalhão Escolar, como defendem al- cações. A educação não formal precisa ser definida por aquilo que ela é,
guns políticos, e nem por meio da construção de escolas de segurança pela sua especificidade e não por sua oposição à educação formal. É o que
máxima, como querem outros. Em vez de policiais na escola, é preciso aponta essa visão da Pedagogia Social. Para os autores dessa concepção pe-
colocar o povo na escola. A escola tem um potencial de mobilização dagógica (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009, p. 10), a noção de edu-
social que não foi ainda suficientemente utilizado por ela. cação não formal “soa profundamente incômoda”, mesmo reconhecendo
que esse é o “campo preferencial de atuação da Pedagogia Social”. Por isso,
No momento em que discutimos, no Instituto Paulo Freire (IPF),
eles se recusam a usar o termo educação não formal, considerando-o “não
o programa Município que Educa aproximando-o de um novo concei-
científico” e, em vez dele, utilizam o conceito de “Pedagogia Social”.
to, o de “povo que educa” (Gadotti, 2010), entendendo-o como “povo
soberano” (Tamarit, 1996), gostaria de acrescentar mais uma pequena De qualquer forma, o que se convencionou chamar de “educa-
reflexão, posicionado-me sobre o tema da educação não-formal, im- ção não-formal” (TORRES, 1992), com respeitada tradição na história
plicado nesse conceito. Ao mesmo tempo, gostaria de refletir sobre a das ideias pedagógicas, ultrapassa os limites do ensino escolar formal
necessidade de uma revisão conceitual no que diz respeito à relação e engloba as experiências de vida e os processos de aprendizagem não
entre escola (pública) e sociedade e, consequentemente, entre estado e formais, que desenvolvem a autonomia, tanto da criança quanto do
sociedade civil, buscando complementar a reflexão anterior. O Progra- adulto. Como diz Paulo Freire,
ma Município que Educa implica uma completa reinvenção da relação [...] se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possí-
entre a educação formal e não-formal e entre a relação entre Estado e vel ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências
Sociedade Civil onde se destaca a crescente presença das Organizações informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos
pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo,
Não-Governamentais. de pessoal docente se cruzam cheios de significação (1997, p. 50).
Define-se educação não formal como “toda atividade educacional Paulo Freire não chegou a utilizar o conceito de Pedagogia Social,
organizada, sistemática, executada fora do quadro do sistema formal embora ele seja considerado um de seus grandes inspiradores.
para oferecer tipos selecionados de ensino a determinados subgrupos
da população” (LA BELLE, 1982, p. 2). Esta é uma definição que mos- A educação formal tem objetivos claros e específicos e é representada
tra a ambiguidade dessa modalidade de educação, já que ela se define principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz
em oposição (negação) a um outro tipo de educação: a educação for- educacional centralizada, como o currículo, com estruturas hierárquicas
mal. Usualmente, define-se a educação não formal por uma ausência, e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores
em comparação com a escola, tomando a educação formal como único dos ministérios da educação. A educação não formal é mais difusa, menos
paradigma, como se a educação formal escolar também não pudesse hierárquica e menos burocrática. Exige mais autonomia do aprenden-
aceitar a informalidade, o chamado extraescolar. Na definição da edu- te. Os programas de educação não formal não precisam necessariamente
cação não formal predomina o paradigma formal. seguir um sistema sequencial e hierárquico de progressão. Podem ter du-
ração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem.
Estudos recentes (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009, p. 27) Isso não significa que a educação não formal seja menos “científica” do
procuram ir além do conceito de não formal, englobando no conceito de que a educação formal (SILVA, 2009, p. 179-193).

138 Múltiplos olhares 139


Toda educação é formal, no sentido de ser intencional, mas o cená- A democracia participativa não substitui a democracia represen-
rio pode ser diferente: o espaço da escola é marcado pela formalidade, tativa. Ela a enriquece. No Brasil, as administrações municipais pro-
pela regularidade, pela sequencialidade. O espaço da cidade (apenas gressistas foram as primeiras a entender esse conceito e a implementar
para definir um cenário da educação não formal e da educação social) a democracia participativa, criando mecanismos de gestão pública não
é marcado pela descontinuidade, pela eventualidade, pela informali- estatal, como o orçamento participativo. Como afirma Luiz Dulci, “a
dade. A educação não formal é também uma atividade educacional or- participação cidadã enriquece as instituições representativas, criando
ganizada e sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí verdadeira corresponsabilidade social e evitando o risco de apatia civil
também alguns a chamarem impropriamente de educação informal. A e a negação autoritária da política que ameaça todas as democracias
educação informal é outra coisa. Ela é mais diluída no espaço-tempo contemporâneas” (2005, p. 3). A gestão democrática é um dos pila-
do que a educação não formal. res do Programa Município que Educa. Como sustenta a professora da
Universidade de Concepción (Chile), doutora em Currículo, Donatila
São múltiplos os espaços da educação não formal. Além das pró-
Ferrada Torres,
prias escolas (onde pode ser oferecida educação não formal), temos as
organizações não governamentais (também definidas em oposição ao [...] a escola só vai sobreviver se se abrir espaço para a participação das famílias
e, principalmente, dos estudantes na discussão sobre o currículo […]. A socie-
governamental), as igrejas, os sindicatos, os partidos, a mídia, as asso-
dade atual, constantemente conectada, exige que o conhecimento seja construí-
ciações de bairro etc. Na educação não formal, a categoria espaço é tão do de forma colaborativa e ofereça os conteúdos de forma comunicativa e crítica
importante quanto a categoria tempo. O tempo da aprendizagem na (TORRES, 2010, p. A22).
educação não formal pode ser mais flexível, respeitando as diferenças
Entretanto, é preciso reconhecer que o conceito de sociedade
e as capacidades de cada um, de cada uma. Uma das características
civil é ambíguo, polissêmico. Ele foi criado pelos iluministas que o
da educação não formal é sua flexibilidade tanto em relação ao tempo
contrapunham à noção de Estado. Ele foi retomado por Hegel, Marx,
quanto em relação à criação e recriação dos seus múltiplos espaços.
Alexis de Toqueville, entre outros. Gramsci e Habermas o empregaram
Trata-se de um conceito amplo, muito associado ao conceito de cul- largamente em suas teorias. Gramsci distingue “sociedade política” –
tura. Daí ela estar ligada fortemente à aprendizagem política dos direitos constituída pelo aparato legal e institucional do Estado – e “sociedade
dos indivíduos enquanto cidadãos e à participação em atividades grupais, civil”, constituída pela esfera privada não estatal, que inclui associa-
sejam adultos ou crianças, aproximando-se muito dos objetivos da cha- ções religiosas, esportivas, educativas, meios de comunicação etc. Ele
mada Pedagogia Social. Segundo Maria da Glória Gohn (1999, p. 98-99), a descreve a sociedade civil como uma esfera pública não estatal, de-
educação não formal designa um processo de formação para a cidadania, nunciando o fascismo, que controlava a sociedade civil para manter a
de capacitação para o trabalho, de organização comunitária e de apren- sua hegemonia. Jürgen Habermas também fala de uma “esfera pública
dizagem dos conteúdos escolares em ambientes diferenciados. Por isso ela cidadã”, de um “mundo da vida”, espaço existente entre o Estado (so-
também é muitas vezes associada à educação popular e à educação comu- ciedade política) e o mercado (sociedade econômica). O fortalecimen-
nitária. A educação não formal estendeu-se de forma impressionante nas to da sociedade civil nas últimas décadas é amplamente reconhecido
últimas décadas em todo o mundo como “educação ao longo de toda a (NOGUEIRA, 2004).
vida” (conceito difundido pela Unesco), englobando toda sorte de apren-
Muitas coisas podem caber no conceito de sociedade civil. Nele
dizagens para a vida, para a arte de bem viver e conviver.
podem-se incluir as organizações populares e movimentos sociais, as or-
Em qualquer espaço de aprendizagem é importante superar a di- ganizações profissionais, as organizações religiosas e, inclusive, o mundo
cotomia entre o formal, o informal e o não formal. Este é, certamente, acadêmico. Como uma arena em luta, como uma esfera separada dos
um dos desafios do Programa Município que Educa. Um outro desafio interesses do Estado e do mercado, em muitos casos, a sociedade civil
é superar a dicotomia entre Estado e sociedade civil. serviu de abrigo, principalmente na América Latina, para a resistência

140 Múltiplos olhares 141


contra regimes autoritários. No seio destas lutas, a sociedade civil surgiu Referências
e se fortaleceu como esfera pública não estatal, orientada
[...] para a representação de interesses de coletivos e minorias sociais, para a ARGENTINA (República). MEC. Aprendizage y servicio solidario en
transparência e a participação nas decisões (em sentido democrático), para uma las organizaciones de la sociedade civil. Buenos Aires: Ministerio
cultura popular e para o conhecimento construído fora dos grupos de poder de Educación, Ciencia y Tecnologia, 2007.
econômico e político tradicionais e ainda para que o estado respeite a vontade
majoritária (ARGENTINA, 2007, p. 71). DULCI, Luiz . Participação e mudança social. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 18 dez. 2005. p. 3.
No seio da sociedade civil destaca-se, hoje, o papel das organizações
não governamentais (ONGs). Elas passaram a ocupar, no Brasil, um es- FALS BOR DA, Orlando. Una sociología sentipensante para América
paço específico, a partir dos anos de 1960, prestando assessoria aos mo- Lantina. Antologia. Compilador Víctor Manuel Moncayo. Bogotá:
vimentos sociais de resistência ao regime militar. Em alguns casos, elas Siglo del Hombre Editores y Clacso, 2009.
foram essenciais na intermediação entre o Estado autoritário e grupos so- FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
ciais perseguidos pela ditadura, crescendo como atores e sujeitos políticos educativa. São Paulo: Cortez, 1997.
voltados para a defesa da democracia na perspectiva dos direitos sociais.
GADOTTI, Moacir. Povo soberano, povo que educa. São Paulo:
Mas foi a partir dos anos de 1990 que houve a grande explosão do Instituto Paulo Freire, 2010. Mimeografado.
número de ONGs, principalmente a partir do Fórum Global da Rio 92 e a
crise dos partidos de esquerda. Militantes desses partidos, insatisfeitos ou GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e cultura política. São
decepcionados com a queda do comunismo no Leste Europeu, migraram Paulo: Cortez, 1999.
para organizações da sociedade civil, mais flexíveis do que os partidos e, LA BELLE, Thomas. Nonformal Education in Latin American and the
como defendiam causas vinculadas aos interesses dos cidadãos comuns Caribbean. Stability, Reform or Revolution? New York: Praeger, 1986.
e não a uma classe social, dividiram-se em miríades de advocacy groups,
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um estado para a sociedade civil: temas
grupos de defensores de causas específicas (negros, quilombolas, indíge-
éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2004.
nas, mulheres, jovens, deficientes...), em defesa do meio ambiente, dos di-
reitos humanos etc. De lá para cá continuaram crescendo. É uma grande e PADILHA, Paulo Roberto. Currículo intertranscultural: novos itinerários
auspiciosa novidade do final do século 20 e deste início de milênio. Traba- para a educação. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2004.
lhando em rede, sem hierarquias, essas organizações, associadas aos mo- ______ . Educar em todos os cantos: reflexões e canções por uma educação
vimentos sociais, lutam pela inclusão social através de campanhas, fóruns, intertranscultural. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2007.
marchas etc., radicalizando a democracia, conquistando novos direitos.
SILVA, Roberto da. As bases científicas da educação não-formal. In:
Superar essas dicotomias, atuar em rede e apostar em ações in- SILVA, Roberto da; SOUZA NETO, João Clemente de; MOURA,
tertransculturais e intersetoriais, são desafios de programas como o do Rogério Adolfo de (Org.). Pedagogia social. São Paulo: Expressão
Município que Educa. Novos processos educativos, como os que se ins- e Arte, 2009. p. 179-193.
tauram com esse programa, exigem abertura das mentes, superação de
dualismos e muita vontade de aprender caminhando, em diálogo. Por ______; SOUZA NETO, João Clemente de; MOURA, Rogério Adolfo
meio dele, deseja-se criar as condições para a instauração de relações de (Org.). Pedagogia social. São Paulo: Expressão e Arte, 2009.
educacionais mais produtivas e de sociedades mais sustentáveis em TAMARIT, José. Educar o soberano: crítica ao iluminismo
busca de uma vida pessoal mais plena e feliz para todos e todas. pedagógico de ontem e de hoje. São Paulo: Cortez/Instituto
Paulo Freire, 1996.

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TORRES, Carlos Alberto. A política da educação não-formal na
América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
TORRES, Donatila Ferrada. Se não dialogar, a escola vai se extinguir.
Entrevista.O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 set. 2010. p. A22.

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