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ANÁLISE FÍLMICA

“TERRA ESTRANGEIRA”
Walter Salles e Daniela Thomas, 1995

Logo nos primeiros momentos, Terra Estrangeira se revela uma obra cinematográfica que
transborda influências expressionistas em um amontoado charmoso. A São Paulo estilizada e
plástica, inicialmente apresentada, estabelece um ambiente que transcende a mera
ambientação para se tornar um elemento simbólico da atmosfera decadente que permeia o
filme. Um encarte nos situa historicamente e nos faz interpretar estas imagens iniciais com um
olhar simpatizante, antes mesmo de conhecermos de fato quem são os personagens que vamos
acompanhar durante o filme. Paco (Fernando Alves Pinto), um jovem paulistano que almeja ser
ator de teatro, mora com sua mãe Manuela (Laura Cardoso) que sonha em retornar para sua
cidade natal na Europa. Juntando suas economias, Manuela é um exemplo de muitos brasileiros
que sofreram com o congelamento das contas pelo governo de Fernando Collor. Com esse
contratempo financeiro, a personagem de Laura Cardoso não reconhece mais sentido na vida e
desiste, abandonando o seu filho desesperançoso em um país decadente.

Confesso que assistindo Paco encontrar a mãe morta, julguei precocemente a escolha de planos
detalhe, focado nas mãos de ambos. Mas, logo em seguida fui surpreendido pela escolha
certeira dos diretores que combinado com os detalhes engradece o momento.

Em uma das cenas mais poéticas e visualmente deslumbrantes do filme, Walter e Daniela jogam
na tela o desespero de um filho em luto e transformam a dor do personagem em um vislumbre
técnico que transpassa a delicadeza da situação muito precisamente. Com uma iluminação
muito significativa que perpassa pela janela e alcança Paco sentado no sofá, assistimos ele
segurar o corpo desfalecido da mãe e sucumbir. A luz não dura, ela vem e vai constantemente,
sempre em movimento, um ritmo e um tempo que dentro daquela sala escura estagnou.
Mesmo que talvez a incidência dessa luz não seja realisticamente justificável, o que importa aqui
é o resultado através da forma: muito sagaz e inteligente.
Agora, vale mencionar que todo o filme é em preto e branco, o que pode ter sido apenas uma
facilidade de custo de produção, mas com certeza reforça o esmorecimento que a narrativa
busca retratar. Essa escolha – ou não escolha - também cria uma sensação mais pura e simples
da realidade, forçando o espetador a se atentar nas ações e no momento.

Paco, desolado pela perda, conhece Igor (Luís Melo) e se enrosca em seus esquemas de
contrabando com a intenção de viajar para Portugal. Lá, Alex (Fernanda Torres) é uma imigrante
brasileira que trabalha em um boteco e mantém um relacionando com o português aspirante a
cantor, Miguel (Alexandre Borges). O casal vive um cotidiano conturbado e isso se reflete em
uma câmera com muitos movimentos e uma montagem apressada. Na verdade, o filme inteiro
é uma mistura de montagem ansiosa e planos rápidos, contrapostos com moomentos em que
tudo isso é dilatado de maneira que nos permite compreender a inconsistência da vida dessas
pessoas. A narrativa se desenrola calmamente, tomando seu próprio tempo. Os diretores sabem
muito bem quando abrir ou fechar o nosso olhar, para manter essa perspectiva mais real e ainda
assim não deixar que certos acontecimentos passem despercebidos. O rosto e corpo de cada
ator é valorizado, com muitos encadeamentos de primeiríssimo plano seguido de outro
primeiríssimo plano, que muitas vezes duram cenas inteiras. Esses encadeamentos funcionam
como uma excelente ferramenta para a empatia do público, aproximar-se tanto dos rostos dos
personagens oferece uma conexão quase visceral, definitivamente íntima.

O filme segue com o paralelo Brasil/ Portugal, e uma coisa que me incomodou de forma bem
mínima foi o uso frequente de planos das cidades sempre que o núcleo muda, com a intenção
de localizar o país. Mas na minha perspectiva, uma vez que conhecemos os personagens e
entendemos onde cada história está se passando, esses planos de localização se tornam
desnecessários.
Continuando, assistimos a discussão acalorada do casal em Portugal, com uma atuação sutil e
naturalista, a câmera adentra invisível a briga de um casal que poderia ser qualquer outro;
como se estivéssemos observando um verdadeiro relacionamento conflituoso. Essa
abordagem se estende aos movimentos de câmera e escolha dos cortes que são
cuidadosamente coreografados. Nesse ponto, os realizadores já se mostraram maestros que
sabem o que estão fazendo, os elementos são pensados para enfatizar a emoção e encobrir a
técnica.

Apesar da direção naturalista, existe a criatividade em incorporar cenas que não possuem um
valor em avançar a narrativa, servem mais para aumentar a dramaticidade do que impulsionar
diretamente a trama adiante. A cena em que Paco colapsa no chuveiro, com a água arrastando
retratos pela casa, é um exemplo. Isso adiciona uma camada simbólica, onde a água, que
geralmente simboliza limpeza e renovação, aqui carrega as fotos para a escuridão, evocando
uma sensação de perda e desolação.

A trilha sonora e musical é precisa e potencializa momentos do filme que já são importantes
por si, desempenha um papel integral em aprofundar a atmosfera do filme e amplificar a
emoção. Ela trabalha em conjunto com os visuais para criar momentos de grande impacto
emocional. Se quando possível tudo acontece demoradamente, em um ritmo vagaroso para
enfatizar a realidade, quando paco precisa fugir de Ígor as elipses de tempo e espaço tomam
conta e a edição adota um ritmo mais rápido para transmitir a urgência da situação. Não que
anteriormente não houvesse, mas quando a trama se intensifica a frequência é maior, ele vai
de um lugar ao outro em um corte rápido. Paco quebra a porta da casa de Alex? Não
precisamos ver que ela não está lá dentro, um corte dele em outro lugar serve para sacarmos
isso.

Um momento especial que me emocionou foi a viagem de carro de Paco e Alex, em que ela
descreve com cores a roupa que ele está usando. Por motivos óbvios, nunca parei para pensar
nas cores das roupas dos personagens durante o filme, que aparecem sempre em uma escala
de cinza, preto e branco. Mas, para uma cena descontraída em que os dois riem juntos, falar
sobre cores em um filme preto e branco parece significativo.

Em última análise, "Terra Estrangeira" transcende os limites de uma narrativa simples e


emerge como uma reflexão artística sobre a complexidade da vida e das interações humanas.
O filme aproveita suas influências expressionistas para retratar a busca universal por
significado em um mundo instável. Através do uso criativo de elementos visuais e sonoros,
juntamente com uma direção habilidosa, a obra cria uma experiência cinematográfica que
permanece conosco, convidando-nos a explorar as nuances da experiência humana em meio à
incerteza do pertencimento.

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