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TRABALHAR CANSA / HARD LABOR

Escrito por / Written by


Juliana Rojas & Marco Dutra

Versão Final em Português / Final Portuguese Version:


Abril / April 2010

Direção / Directed by

Juliana Rojas & Marco Dutra

Produção / Produced by

Sara Silveira & Maria Ionescu


Dezenove Som e Imagens

São Paulo, Brazil


Copyright 2010
Dezenove Som e Imagens
dezenove@uol.com.br
sara@dezenove.net
jujurojas@gmail.com
marcodut@gmail.com
1 INT. MERCADINHO - DIA 1

Os corredores estão sujos e, nas prateleiras de metal, há


apenas um ou outro produto antigo, abandonado. Carrinhos
enferrujados estão espalhados pelo local, que é iluminado
por lâmpadas fluorescentes colocadas no teto. Algumas delas
piscam constantemente. A pintura é antiga e gasta.

HELENA - 35 anos, branca, pasta de documentos nas mãos -


está parada na entrada do mercado, entre os caixas e os
corredores, acompanhada por SORAIA - 52 anos. As duas olham
para o teto, na direção de uma das lâmpadas. Soraia fuma.

SORAIA
Olha só o pé-direito, que beleza,
Helena. Esse lugar é um achado.

Helena começa a andar pelos corredores, olhando ao redor.


Soraia a segue.

HELENA
De que ano é a casa?

SORAIA
Do final dos anos cinquenta, mas
é dura que nem pedra. Você viu a
grossura da parede?

Algo na prateleira chama a atenção de Helena. São etiquetas


feitas à mão, que marcam o preço de latas de milho que não
existem mais.

SORAIA
E a fiação tá nova. Antes era
daquelas de pano, sabe? Mas agora
tá ótima.

Helena e Soraia andam até o fundo do mercado. Elas observam


um trecho da parede que está no tijolo, sem acabamento.

HELENA
Não sei, Soraia... Tô achando que
precisa reformar muito.

SORAIA
Que isso, Helena, aqui é pintar,
botar massa e entrar... O último
inquilino trocou os canos dessa
parte aqui, mas largou tudo sem
acabamento. Um trauma. O seu
Alfredo não pode nem ouvir falar
deles. Ele me disse: “Soraia,
agora só alugo pra gente séria.”
Por isso que ficou fechado tanto
tempo.

Helena nota um freezer com porta de vidro num canto e se


aproxima. Seu rosto é iluminado pela luz fria do aparelho,
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 2.

que está ligado e emite um ronco grave. Helena abre o


freezer, que está vazio. Soraia dá uma tragada e sorri.

SORAIA
(com malícia)
Você gostou disso aí, não gostou,
Heleninha? Fala a verdade. Vai
ficar de presente pra você. Os
caixas também. Eles deixaram tudo
pra trás.

Soraia enfia-se atrás do freezer com dificuldade, o cigarro


aceso na mão.

SORAIA
Aliás, deixa eu desligar isso
aqui... Por causa da cataclisma.

Enquanto Soraia desliga o freezer, Helena retira da pasta a


ficha da imobiliária com a descrição do imóvel e faz
anotações. Na ficha, há uma foto impressa da época em que o
mercado funcionava: uma PESSOA retira produtos de uma
estante e um HOMEM, mais próximo, olha para a câmera.
Helena encara a foto e depois o imóvel real, comparando.
Uma placa identifica o mercado em ambos os momentos:
“Mercado Irmãos Botelho - cheques apenas com cadastro”.

SORAIA (O.S.)
Diz que vai mudar tudo, onde faz
calor vai fazer frio... Essa
coisa de onda gigante é por causa
do desperdício. Ainda bem que
aqui não tem praia, né?

Helena olha para Soraia e sorri.

HELENA
É. Ainda bem.

2 INT. MERCADINHO - DIA - MAIS TARDE 2

A porta do mercado é aberta por Soraia. A luz do dia invade


o lugar e ilumina Helena, que está avaliando os caixas. Ela
encontra moedas oxidadas dentro das gavetas.

Soraia anda até um balcão e procura algo em sua bolsa.

SORAIA
O que você achou, Helena? Pode
ser sincera, tá? Honestamente, eu
acho que é bem o que você tava
procurando, não é?

Com as moedas nas mãos, Helena vira-se para Soraia, que


acende um novo cigarro.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 3.

HELENA
O proprietário negocia?

Soraia sorri. Parece animada.

SORAIA
Você pode fazer uma
contraproposta.

Helena vira-se para o caixa e registra um número. A máquina


emite uma nota. Helena arranca o papel e mostra o valor
para Soraia.

3 INT./ EXT. CARRO DE HELENA / RUAS DE SÃO PAULO - DIA 3

O carro está preso num engarrafamento. No rádio, um


programa de humor é transmitido.

No banco de trás, VANESSA - 9 anos, roliça, vestindo


uniforme escolar - olha pela janela e parece chateada.
Helena olha para a filha e faz cócegas em sua perna.

HELENA
Eu ainda vou te ver todo dia no
café da manhã. E à noite eu fico
com você, te ajudo com a lição...

VANESSA
Mas você vai ter que ir trabalhar
todo dia?

HELENA
Vou, que nem no supermercado
perto de casa. Ele abre de
segunda a sábado, né?

VANESSA
Agora você não vai mais gastar
dinheiro com comida.

Helena sorri. Olha para frente e observa o trânsito.


Vanessa enfia o dedo na boca e tenta cutucar um dente.

HELENA
Para de cutucar. Tem que deixar
ele cair sozinho.

VANESSA
A Amanda Lima disse que tem que
amarrar o dente na porta pra ele
cair mais rápido.

HELENA
E você ainda acredita no que a
Amanda fala?
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VANESSA
(rindo)
É... Ela é mentirosa.

4 INT. APARTAMENTO / SALA - DIA 4

A porta da sala é aberta. Vanessa entra correndo seguida


por Helena, que segura sua pasta e a mochila da filha.

Elas veem OTÁVIO - 43 anos, alto, um pouco acima do peso -


sentado no sofá. Sua camisa está um pouco desabotoada e ele
segura uma caneca de criança. O paletó está apoiado no
outro sofá, onde há também algumas roupas de Vanessa
jogadas. Vanessa anda até Otávio e o beija.

VANESSA
Pai!

OTÁVIO
Oi, filha.

Vanessa liga a TV e começa a brincar no seu tapetinho de


dança. Helena deixa as coisas sobre o balcão ao lado da
carteira e das chaves de Otávio.

HELENA
Nossa... Saiu mais cedo?

OTÁVIO
É.

Helena anda até Otávio e o beija.

HELENA
(apontando a caneca)
Por que você tá com essa caneca?

OTÁVIO
Tá sem copo limpo.

Helena pega a caneca da mão de Otávio. Ela olha para o sofá


e recolhe as roupas de Vanessa.

HELENA
Ah... Tá uma bagunça. Prometo que
até semana que vem eu arrumo uma
empregada.

Helena anda na direção da cozinha.

HELENA
Eu fui visitar o imóvel com a
corretora. O lugar é enorme,
Otávio!

Helena entra na cozinha. Otávio permanece encarando a porta,


o olhar um pouco perdido.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 5.

HELENA (O.S.)
Tá meio diferente das fotos, mas
acho que pintando...

Helena para de falar. Volta da cozinha com uma caixa de


papelão e a coloca na mesa. Retira da caixa uma calculadora
e um porta-retrato. Vira-se para Otávio.

HELENA
O que é isso?

VANESSA (O.S.)
Pai, tô batendo o recorde! Vem
ver!

Otávio segue encarando Helena por um tempo.

5 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 5

Helena e Otávio estão sentados à mesa de jantar. Sobre a


mesa há duas garrafas de vinho tinto: uma está vazia e a
outra pela metade. Otávio está recostado na cadeira.

OTÁVIO
Aí no final o cara veio com
aquele papo... “Sinto muito,
Otávio. São os novos tempos”.
Imbecil...

Helena olha para ele, inconformada. Toma um gole do vinho e


resmunga algo incompreensível.

OTÁVIO
Tudo bem aí?

HELENA
Não, eu tô muito puta! Como é que
fazem isso com você? O sujeito
trabalha dez anos no lugar e aí é
cuspido, que nem um... Sei lá...

OTÁVIO
Eles botaram o Flávio no meu
lugar.

HELENA
O Flávio? Ele é maior de idade?

Otávio ri. Serve mais vinho para si.

OTÁVIO
Eu devia ter desconfiado...
Começaram a pagar uns workshops
pra ele.

Helena se debruça sobre a mesa. Fica em silêncio. Otávio


olha para ela, um pouco assustado.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 6.

OTÁVIO
Que foi?

Helena levanta a cabeça. Ela está chorando.

OTÁVIO
Vai ficar tudo bem. Eu vou me
arranjar.

HELENA
Não é isso, é que... É muito azar
isso acontecer logo agora.

Helena se levanta e pega alguns papéis sobre o aparador.


Mostra-os para Otávio.

HELENA
O galpão tá mobiliado com tudo:
prateleira, caixa, até o freezer.
Eu ia levar a papelada amanhã.

Otávio olha para Helena. Examina os papéis sobre a mesa.

OTÁVIO
Não sei. Acho complicado a gente
se comprometer com isso.

Helena encara Otávio por um tempo. Frustrada, pega o


telefone e começa a discar um número.

HELENA
Tá bom. Eu vou ligar pra
corretora e cancelar tudo.

Otávio pega o telefone das mãos de Helena.

OTÁVIO
Calma... Passou da meia-noite.

Helena ri. Coloca a mão no ombro de Otávio.

HELENA
Olha, eu sei que eu vou conseguir
fazer isso dar certo. Deixa eu
tentar.

6 EXT. FACHADA DO MERCADINHO - DIA 6

Vê-se a fachada do mercado. Parada no outro lado da rua,


Helena olha para o imóvel.

O carro está estacionado. Otávio retira do porta-malas


algumas sacolas. Ele fecha o porta-malas.

Helena e Otávio atravessam a rua na direção do mercado.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 7.

7 INT. MERCADINHO / CAIXAS - DIA 7

Otávio abaixa a porta do mercado até a metade. Helena


acende as luzes. Otávio deixa as sacolas perto dos caixas e
olha ao redor.

Helena procura algo dentro das sacolas.

8 INT. MERCADINHO / CORREDORES - DIA 8

Otávio caminha pelo corredor borrifando inseticida ao redor


e sob as estantes.

Helena passa um pano numa das prateleiras. Olha para


Otávio.

9 INT. MERCADINHO - DIA 9

Diante de uma das paredes, Helena mostra para Otávio uma


cartela com amostras de tinta.

HELENA
Qual você prefere?

OTÁVIO
Eu sempre prefiro branco, mas
você diz que suja...

HELENA
É, branco não, Otávio...

DIRCEU (O.S.)
Alfredo?

Helena e Otávio olham em direção à porta. DIRCEU, 70 anos,


está parado na entrada. Ele carrega um abridor de vinho
como se fosse uma arma.

DIRCEU
Tem alguém aí?

Helena e Otávio caminham até Dirceu.

OTÁVIO
Boa tarde. Posso ajudar?

DIRCEU
Quem são vocês? O Alfredo tá aí?

HELENA
Meu nome é Helena. Eu acabei de
alugar aqui.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 8.

DIRCEU
Vi gente entrando, achei que era
ladrão. Esse lugar tá fechado há
tanto tempo...

OTÁVIO
Tá tudo bem. A gente só tá dando
uma olhada.

DIRCEU
Vocês vão montar um comércio, é?

HELENA
Vai ser um mercado. Parecido com
o que tinha antes.

DIRCEU
(sério)
Ah, que maravilha.
(pausa)
Tomara que dê certo.

Dirceu estende a mão para cumprimentar Otávio e em seguida


Helena.

DIRCEU
Meu nome é Dirceu. Eu moro aqui
do lado.

OTÁVIO
Prazer.

Otávio caminha até a porta, acompanhando Dirceu.

DIRCEU
Boa sorte pra vocês.

Dirceu vai embora. Otávio vira-se para Helena. Pisa em algo


crocante. Olha para baixo.

10 INT. MERCADINHO - DIA 10

Helena e Otávio varrem baratas mortas para um canto do


mercado.

OTÁVIO
Vinte e nove.

HELENA
Trinta, trinta e um...

Helena enfia a vassoura sob uma das prateleiras e puxa


diversas baratas para fora com a vassoura. Faz uma careta e
varre-as para o canto, junto com as outras.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 9.

Otávio avista algo no fim do corredor. Corre até lá e ergue


sua vassoura. Golpeia o chão, tentando acertar uma barata
viva.

CORTA PARA:

TÍTULO: TRABALHAR CANSA

11 EXT. RUAS DE HIGIENÓPOLIS - DIA 11

PAULA, garota negra de 21 anos, caminha pelas ruas


arborizadas do bairro de Helena. Checa o endereço num
pedaço de papel e olha ao redor, procurando por placas.

Ela vê uma BABÁ de branco empurrando um carrinho de bebê e


atravessa a rua. Aproxima-se para pedir informações.

12 INT. APARTAMENTO / COZINHA - DIA 12

Paula está apoiada na bancada da pia. A cozinha está muito


bagunçada, com louça suja e panos de prato por todo lado.

O telefone começa a tocar. Paula olha em direção à sala.


Ninguém aparece. Ela se aproxima do aparelho e atende.

PAULA
Alô?
(pausa)
A dona Helena não pode atender no
momento. O senhor quer deixar
recado? Só um minuto.

Paula procura por algo para anotar no meio da bagunça.


Encontra um bloco de papel e uma caneta.

PAULA
Pode falar.
(Paula anota)
Tá bom. De nada.

Vanessa entra na cozinha quando Paula está desligando o


telefone. Ela usa seu uniforme e tem os cabelos molhados.

PAULA
Oi.

Vanessa não responde. Encara Paula com estranhamento e


senta-se à mesa. Paula volta a ficar próxima à bancada.
Vanessa coloca cereal num pote. Helena entra.

HELENA
Desculpa te fazer esperar, Paula.
O tio da perua reclama quando ela
atrasa...
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 10.

PAULA
Tudo bem. Dona Helena...

Paula se aproxima de Helena com o pedaço de papel.

PAULA
O seu Antunes ligou e pediu pra
senhora falar com ele nesse
celular aqui.

Paula entrega o papel para Helena.

HELENA
(pegando o papel)
Ah... Brigada Paula, eu nem ouvi
tocar. Senta um pouco. Você toma
café?

PAULA
Não, brigada.

Helena serve café para si numa xícara. O interfone toca.

HELENA
Chegou.

Vanessa começa a comer muito rápido, ainda encarando Paula.

13 INT. APARTAMENTO / ÁREA DE SERVIÇO / COZINHA - DIA 13

A porta do quarto de empregada é aberta e vê-se o interior


do cômodo: ele está muito bagunçado, cheio de caixas,
jornais, brinquedos quebrados e latas de tinta.

Helena e Paula olham para o quarto.

HELENA
Precisa dar uma limpada, tirar
essa tralha... Com o tempo você
vai arrumando do seu jeito.

Helena olha para Paula, que observa o interior do quarto.

HELENA
A Cida avisou que era pra dormir
no emprego, né?

PAULA
Avisou.

HELENA
Por causa da Vanessa.

Helena fecha a porta e anda até o armário da lavanderia.


Paula a segue. Helena abre o armário e retira alguns
produtos de limpeza dele.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 11.

HELENA
Os produtos de limpeza ficam aqui
em cima. Eu coloco só um
pouquinho de amaciante. Pra dar
um cheirinho. Você sabe usar a
máquina?

PAULA
Sei. A minha tia ensinou.

HELENA
(agachando)
Aqui tem esse cesto de roupa...

PAULA
(interrompendo)
E a senhora paga quanto?

Helena para e volta-se para Paula.

HELENA
Então, eu considero o primeiro
mês um período de experiência.
Começo com um pouco menos de um
mínimo. A partir do segundo mês,
um mínimo mais a condução.

Um curto silêncio se instaura entre as duas.

PAULA
Registrado?

HELENA
Não, não tenho como.

PAULA
A minha tia disse que era
registrado.

HELENA
Eu esqueci de falar pra ela. Fica
muito caro pra mim.

Helena começa a devolver os produtos para o armário e olha


para Paula. Paula anda na direção da cozinha.

HELENA
Se você quiser pensar melhor...
Eu também ainda vou conversar com
outras meninas.

Paula pega sua bolsa e pendura no ombro.

HELENA (O.S.)
Mas é que vai ser difícil achar
um emprego registrado de cara,
sem ter experiência nenhuma. Eu
tô te entrevistando porque você é
(cont)
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 12.

sobrinha da Cida, que é de


confiança.

PAULA
Eu sei, ela disse.
(pausa)
Pra mim tá bom, dona Helena.

14 INT. APARTAMENTO / QUARTO DO CASAL - NOITE 14

Vanessa dorme atravessada no meio da cama. Ouve-se o som de


um desenho animado na TV. Otávio está deitado ao lado de
Helena, olhando para anotações em sua agenda.

OTÁVIO
Hoje eu passei no RH pra assinar
a rescisão. Ficou todo mundo me
olhando com uma cara...
(pausa)
Amanhã eu fiquei de tomar um café
com o Carlos, vamos ver se dá em
alguma coisa.

Helena não responde. Otávio olha para ela. Helena dorme


sentada, com o livro “GESTÃO DE PESSOAS” aberto sobre seu
colo. Otávio a cutuca.

HELENA
Ahn?

OTÁVIO
Você tá dormindo toda torta.

Helena se ajeita na cama. Fecha o livro.

OTÁVIO
Tá gostando do livro?

HELENA
É, interessante...

OTÁVIO
Onde você tá?

Helena mostra o livro e indica um capítulo.

HELENA
Parei aqui: “O que é mais
importante pra você: fazer as
coisas da forma correta,
procurando cumprir os prazos ou
fazer as coisas dentro do prazo,
procurando fazer tudo da forma
correta?” Isso é pegadinha?

OTÁVIO
É mais voltado pra empresa.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 13.

HELENA
Devia ter perguntado essa pra
Paula.

OTÁVIO
Paula?

HELENA
A empregada nova.

OTÁVIO
Você já contratou?

HELENA
Não, mas acho que vou fechar com
ela. É quietinha, tem iniciativa.
Eu gostei dela.

OTÁVIO
Cozinha bem?

HELENA
Não sei. É sobrinha da Cida. A
Cida sabe cozinhar.

OTÁVIO
A Cida cozinha mais ou menos.

Otávio desliga a TV. Helena olha para Vanessa.

HELENA
(para Otávio)
Você leva ela pro quarto?

15 INT. APARTAMENTO / COZINHA - DIA 15

A cozinha está mais arrumada. Helena bebe água e observa


com atenção Paula passar geleia em uma bisnaguinha. Paula
coloca o prato com duas bisnagas diante de Vanessa.

PAULA
Tá bom assim?

Vanessa pega um dos pães e come. Faz que sim. Paula abre um
dos armários procurando por algo.

HELENA
Paula, eu preciso ir. Deixa o
café pro Otávio.

Paula faz que sim para Helena.

VANESSA
Não é nesse armário...

Paula olha para Vanessa, fecha o armário e abre outro.


Retira o chocolate em pó de dentro dele.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 14.

HELENA
A perua dela vai passar daqui a
pouco. Não faz o perueiro esperar
muito.

PAULA
Pode deixar, dona Helena.

Paula prepara o achocolatado e entrega o copo para Vanessa,


que fica olhando para ele antes de beber.

HELENA
Paula...
(pausa)
Essa aqui é a sua cópia.

Helena põe uma chave nas mãos de Paula. Paula olha a chave.

HELENA
Ela abre a porta da cozinha. Toma
cuidado. Nunca deixa sem trancar.

PAULA
Claro.

Helena olha ao redor, hesitante. Paula percebe.

PAULA
Qualquer coisa eu ligo pra
senhora.

Helena faz que sim. Anda até Vanessa, que toma leite, e se
despede com um beijo.

HELENA
Tchau, filha. Até de noite.

VANESSA
(sem olhar para Helena)
Tchau.

16 EXT. FACHADA DO MERCADINHO / CARRO DE HELENA - DIA 16

Diante do mercado estão cerca de 10 DESEMPREGADOS. Eles


aguardam segurando seus currículos. Um furgão está
estacionado sobre a calçada e uma das portas de metal do
mercado está aberta.

Do outro lado da rua, mais afastada, Helena observa a


movimentação por um tempo de dentro do carro.

Depois, ela sai do carro e se aproxima.

Um ENTREGADOR, cerca de 30 anos, retira uma grande caixa de


dentro do furgão e a entrega para ANTUNES, um senhor de 60
anos, que tem a roupa manchada de tinta. Helena passa pelos
desempregados e se aproxima de Antunes.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 15.

ANTUNES
(ofegante)
Bom dia, dona Helena.

HELENA
Oi, seu Antunes... Pode deixar
isso aí, eles carregam.

Antunes caminha com dificuldade até a porta do mercado.

ANTUNES
Que isso, tá moleza...

O entregador se aproxima de Helena com uma prancheta.

ENTREGADOR
A senhora é a dona Helena?

Helena olha para o homem, ainda confusa com a movimentação.


Ele estende a prancheta e entrega uma caneta para ela.

ENTREGADOR
Assina aqui pra mim.

Helena olha para o papel e assina no fim da página. Ela


olha para os desempregados.

HELENA
Bom dia. Já vou chamar vocês.

17 INT. ESCRITÓRIO DE ALTO PADRÃO - DIA 17

Otávio aguarda ao lado de uma grande mesa na sala de


reuniões. Ele observa a vista da janela: prédios comerciais
grandes, com janelas de vidro escuro.

Ele ouve a porta se abrir. Vê MÁRCIA, 28 anos, entrar


carregando uma caixa. Ela estende a mão para ele.

MÁRCIA
Otávio?

OTÁVIO
Sou eu.

MÁRCIA
Prazer. Márcia. Pode sentar.

Otávio senta no lugar indicado. Márcia senta na ponta da


mesa. Retira da caixa um maço de folhas e um fichário e os
organiza sobre a mesa.

OTÁVIO
O Carlos vai demorar muito?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 16.

MÁRCIA
O Carlos não vai poder te receber
hoje. Ele pediu desculpas.

OTÁVIO
Ele disse o motivo?

MÁRCIA
(lamentando)
Foi uma viagem de última hora.
Mas ele me pediu pra te atender.
Você trouxe o currículo?

Otávio hesita.

OTÁVIO
Não... Eu ia conversar com ele. A
gente se conhece há anos.

Márcia encara Otávio, contendo sua frustração.

MÁRCIA
Sei. Tudo bem, depois você me
manda por email. O Carlos te
falou sobre a vaga?

OTÁVIO
Falou... Olha, eu posso voltar
outra hora. Não tem problema.

O telefone sobre a mesa toca.

MÁRCIA
Com licença.
(ela atende)
Márcia. OK. OK.

Enquanto ela fala ao telefone, Otávio olha para o crachá de


Márcia. Na foto, ela parece ainda mais jovem.

Márcia desliga e encara Otávio. A porta da sala se abre


logo depois. Dois JOVENS EXECUTIVOS entram.

MÁRCIA
Oi. Douglas e Maurício?

DOUGLAS
(corrigindo, apontando
para si e Maurício)
Douglas... Maurício.

Márcia sorri, ignorando seu erro.

MÁRCIA
Esse é o Otávio.

DOUGLAS E MAURÍCIO
Oi, Otávio.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 17.

MÁRCIA
Podem sentar.

Os dois executivos sentam perto de Otávio, que olha ao


redor sem entender a situação.

MÁRCIA
Vamos começar? Douglas, só de
olhar para o Otávio, quais são as
três maiores qualidades dele como
profissional?

Douglas vira-se para Otávio.

DOUGLAS
Eu acho que o Otávio tem bastante
experiência...

Márcia retira uma bexiga colorida de dentro da caixa.


Começa a enchê-la.

DOUGLAS
... Poder de decisão e...
(pausa)
... Paciência.

Márcia dá um nó na bexiga.

MÁRCIA
Otávio? O que você diz sobre o
Maurício?

Otávio olha para Márcia. Ela e os dois rapazes o encaram,


esperando uma resposta.

OTÁVIO
(constrangido)
Carisma.

Márcia pega uma caneta e começa a desenhar uma cara na


bexiga.

OTÁVIO.
Boa vontade. Disposição.

Márcia sorri, satisfeita. Pisca para Maurício.

MÁRCIA
Maurício...

Maurício se vira e olha para Douglas. Ameaça começar a


falar, mas Otávio se levanta da cadeira.

OTÁVIO
Desculpa, vou ter que ir.

Márcia e os dois rapazes olham para Otávio. Maurício fica


frustrado com a interrupção.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 18.

MÁRCIA
Otávio, nós não terminamos. Eu
ainda preciso contar a história
do subgerente Joaquim.

Márcia mostra a bexiga com o rosto de homem desenhado.

OTÁVIO
Fala pro Carlos que eu volto a
ligar pra ele pra marcar um
encontro.

Otávio sai da sala.

18 INT. MERCADINHO / FUNDOS - DIA 18

Helena está sentada diante de um RAPAZ (17) que masca


chicletes. Ela olha atentamente para o currículo dele, um
pouco confusa. Helena olha para o rapaz.

RAPAZ
Se a senhora quiser checar a
referência...

HELENA
Tá.

RAPAZ
O nome dela é dona Rosa.

Helena faz uma anotação no currículo.

HELENA
Tá bom, Robson. Eu vou ligar pra
ela, depois te dou retorno.

O rapaz levanta e coloca sua mochila nas costas.

HELENA
Por que você saiu de lá?

RAPAZ
A loja faliu. Abriram um
hipermercado no bairro.

Helena olha para o rapaz, preocupada.

RAPAZ
Acontece né.

Helena faz que sim.

HELENA
Brigada, Robson.

Ele acena para Helena e sai do mercado. Helena coloca o


currículo dele sobre uma pilha de outros currículos.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 19.

Massageia o rosto, cansada. Olha para Antunes, que forra o


chão com lona para começar a pintura das paredes dos
fundos. As laterais já estão pintadas.

HELENA
Nossa, seu Antunes, o senhor não
passa mal com esse cheiro?

ANTUNES
Ih, dona Helena, eu já acostumei,
é o dia inteiro cheirando isso.

Antunes afasta um dos freezers da parede para continuar a


forrar. Helena vai até ele rapidamente e o ajuda.

HELENA
Seu Antunes... Cuidado.

Logo depois, ela vê que Antunes olha para o chão. Helena


olha também. Atrás do freezer há algumas correntes
amontoadas e uma marreta velha.

ANTUNES
(ofegante)
A senhora quer que eu jogue fora
essas coisas?

HELENA
Não, tudo que o senhor achar
deixa no depósito. Depois eu olho
com calma.

Antunes faz que sim, tira um lenço do bolso e seca o rosto.


Helena olha para o relógio e encara Antunes, que volta a
trabalhar.

HELENA
O senhor vai demorar muito?

ANTUNES
Mais uma meia hora... Tudo bem?

Helena olha para ele por um tempo e faz que sim.

19 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 19

Helena entra, vinda da rua. Vê que a cozinha está limpa e


arrumada. Ela olha para a pia e vê um pano de prato com uma
mancha de sangue. Olha ao redor, assustada.

HELENA
Paula?

Helena anda na direção da porta da sala. Paula e Vanessa


entram. Elas estão rindo. Vanessa está com uma das mãos
tapando a boca.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 20.

HELENA
Tá tudo bem com vocês?

VANESSA
Mãe, olha...

Vanessa mostra seu dente para a mãe enquanto Paula pega um


copo no escorredor e enche-o com água da torneira.

HELENA
(pegando o dente)
Ah... Que bom, filha. Finalmente
caiu.

PAULA
Coloca aqui, dona Helena.

Helena coloca o dente no copo e fica olhando para ele.

VANESSA
Mãe, vai se trocar, a gente tá
atrasada!

20 INT. COLÉGIO DE VANESSA / ANFITEATRO - NOITE 20

A plateia do anfiteatro está lotada de espectadores. Uma


peça infantil está sendo apresentada. Alguns PAIS, dentre
eles Otávio e Helena, tiram fotos da peça com máquinas
digitais. No palco, IURI, 9 anos, está pintado de preto e
faz o papel de um Escravo. Outra criança faz o papel de
SENHOR DE ENGENHO e uma terceira faz o papel do NARRADOR.
Há ainda uma criança imóvel, ao fundo, que faz uma NUVEM. O
Escravo está acorrentado a um tronco e recebe chibatadas do
Senhor do Engenho. O Narrador fala à plateia.

NARRADOR
E então, em mil oitocentos e
oitenta e oito, veio a lei.

Uma criança vestida de MENSAGEIRO chega com um papel e o


entrega ao Senhor de Engenho.

MENSAGEIRO
Mensagem de Vossa Majestade.

O Senhor de Engenho lê a carta, faz cara de bravo e liberta


o escravo.

NARRADOR
A lei marcou a extinção da
escravidão no Brasil, o que levou
à libertação de quase 750 mil
escravos, a maioria deles
trazidos da África pelos
portugueses.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 21.

Ouve-se o som de alguns tambores. VÁRIAS CRIANÇAS, Vanessa


entre elas, entram em cena tocando os tambores. Estão
pintadas de preto e vestem roupas brancas de algodão.
Apenas uma CRIANÇA NEGRA não usa maquiagem. Duas duplas
apresentam um número de capoeira.

21 INT. COLÉGIO DE VANESSA / CAMARIM - NOITE 21

Vários PARENTES das crianças estão aglomerados em volta do


camarim. Uma PROFESSORA tenta controlar o fluxo. As mães
das crianças removem a maquiagem preta do rosto delas,
usando algodão e demaquilante.

Helena esfrega o rosto de Vanessa com força. MARA, 38 anos,


está ao lado dela, e também tira a maquiagem de Iuri.

HELENA
Como você conseguiu decorar tudo
aquilo de fala, Iuri?

MARA
Foi de um dia pro outro! Nem era
ele quem ia fazer, mas o Tomás
passou mal com a maquiagem.
Tiveram que substituir. O Iuri
ficou todo contente.
(pausa)
E você Helena? Eu nem te vejo
mais aqui na escola. Tá sumida.

HELENA
Daqui a pouco eu vou abrir o
mercadinho, tô numa correria.

Mara remove a maquiagem com mais força, admirando Helena.

MARA
Que coragem...

Afastados delas, Otávio e ZÉ AUGUSTO, 48, estão parados na


entrada do camarim, perto do palco do teatro. Zé avalia as
fotos em sua câmera digital.

ZÉ AUGUSTO
Cabe até trezentas fotos dentro
desse cartão.

OTÁVIO
Sei.

ZÉ AUGUSTO
O duro é organizar tudo, depois.
Eu posso mandar pro seu email.
Ainda é o mesmo?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 22.

OTÁVIO
(sem interesse)
É sim. Pode mandar.

Otávio olha para o relógio. Em seguida, olha para dentro do


camarim.

OTÁVIO
Helena!

Zé Augusto olha para Otávio, sem assunto.

ZÉ AUGUSTO
E lá na firma, tudo certo? Ouvi
dizer que iam rolar umas
demissões.

OTÁVIO
É. Eles dispensaram umas
pessoas...

Helena e Vanessa se aproximam.

ZÉ AUGUSTO
A coisa tá preta em todo lugar.
Um colega meu do clube teve que
demitir dez num mesmo dia. Ainda
bem que o nosso tá garantido, né?

Zé Augusto dá um tapinha nas costas de Otávio. Otávio dá


uma risada sem graça. Helena encara Otávio, estranhando.

OTÁVIO
Vamos lá? O estacionamento vai
estar um inferno.

Eles se despedem de Zé Augusto, que afaga Vanessa.

ZÉ AUGUSTO
Tchau, princesa!

22 INT. MERCADINHO - DIA 22

JORGE, 50 anos, pendura uma peça de alcatra em um dos


ganchos do açougue. Helena cola um adesivo no vidro do
freezer de carnes: “Servimos Bem Para Servir Sempre”.
Helena olha para o adesivo, sorridente. Jorge apoia-se no
balcão e olha para os corredores do mercado, entediado.

As prateleiras estão agora mais cheias e organizadas. As


portas estão abertas. A loja está vazia, quase sem
clientes. Em um dos corredores, RICARDO, 19 anos, empilha
alguns pacotes de farinha em uma prateleira. Helena se
aproxima dele.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 23.

HELENA
Ricardo, depois que você terminar
isso, você pode fazer uma pilha
de caixa de bombom lá no corredor
dos biscoitos.

RICARDO
Tá.

HELENA
Sabe essas pilhas bonitinhas, que
têm um formato? Você sabe fazer?

RICARDO
Eu vou tentar.

23 INT. MERCADINHO - DIA - MAIS TARDE 23

Helena está sentada dentro do balcão do caixa. Ali há


também um adesivo igual ao colado no açougue. GILDA, 35
anos, dá dicas de como operar a máquina. Sobre o balcão, há
um balde cheio de botões de rosa.

GILDA
Se você digitar assim, ela
calcula o troco. Eu operava uma
igualzinha a essa no meu outro
trabalho. Elas...

Helena interrompe Gilda ao ver que ADELAIDE, senhora de 68


anos, se aproxima do caixa empurrando um carrinho com
apenas uma lata de azeite dentro. Helena sorri.

HELENA
Boa tarde.

ADELAIDE
Boa tarde.

Helena registra o produto.

HELENA
Mais alguma coisa?

ADELAIDE
Eu queria levar um litro de leite
desnatado. Mas o mocinho disse
que tá em falta.

HELENA
Não, a gente recebeu... Gilda,
busca uma caixa pra mim, por
favor?

Gilda anda até um dos corredores.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 24.

HELENA
A senhora me desculpe. Os
funcionários ainda estão em
treinamento.

Adelaide sorri.

ADELAIDE
E o seu cunhado, como vai?

Pausa. Helena encara a senhora, sem saber o que responder.

ADELAIDE
Tá melhor daqueles problemas
dele? Achei que vocês não iam
reabrir nunca.

HELENA
Acho que a senhora tá me
confundindo com outra pessoa... A
gente acabou de inaugurar.

ADELAIDE
Ah, desculpa... Mas então é outra
família! Achei que você era
mulher de um dos irmãos... Não
daquele esquisito.

Gilda retorna ao caixa.

GILDA
(com simpatia)
Acho que o leite acabou mesmo.

HELENA
Mas não é possível...

ADELAIDE
Tudo bem, minha filha. Deixa pra
lá. Quanto deu o azeite?

HELENA
Oito e cinquenta.

Ela entrega o dinheiro para Helena.

ADELAIDE
Tá pela hora da morte, hein?

Gilda ensacola a lata. Adelaide pega o troco e a sacola.

GILDA
É que é “extra virgem”.

Helena entrega uma rosa para Adelaide.

HELENA
Uma lembrancinha de abertura.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 25.

Adelaide sorri, resmungando, e sai apressada.

HELENA
Volte sempre!

ADELAIDE
Brigada.

24 INT. ESCRITÓRIO DE REALOCAMENTO - DIA 24

Otávio olha para um folheto com uma foto de várias PESSOAS


sorridentes se cumprimentando (uma negra bonita, um
japonês, uma loira e um bonitão branco moreno, todos de 20
a 30 anos) e a palavra “networking” escrita. Ele está
sentado junto à mesa de CECÍLIA, 28 anos, que digita alguns
dados em um computador.

CECÍLIA
Você tá desempregado há quanto
tempo, Otávio?

OTÁVIO
Dois meses e meio.

Cecília digita a informação.

OTÁVIO
(receoso)
Você vai por isso no meu perfil?

CECÍLIA
Não, é só pra controle interno. A
gente não repassa para as
empresas.

OTÁVIO
Quanto tempo leva pra eu começar
a ser chamado pras entrevistas?

CECÍLIA
Não tem como prever, Otávio. Nós
vamos jogar o seu perfil no banco
de dados e a partir daí todas as
empresas podem acessar.

Cecília entrega outro folder para Otávio e começa a


explicar, entusiasmada.

CECÍLIA
A empresa promove essas reuniões
de networking todo mês. É ótimo
pra fazer contatos, vem todo tipo
de gente. Tem um coffee break, o
pessoal troca cartão. Aqui tem a
lista de workshops desse mês. E o
pacote inclui também um convênio
com psicólogo.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 26.

OTÁVIO
Eu não posso trocar por convênio
odontológico?

Otávio ri. Cecília ri também, um pouco sem graça.

CECÍLIA
(séria)
Pode parecer estranho, mas o
convênio é muito usado pelos
clientes. Tem casos de gente que
leva um ano, um ano e meio pra
conseguir emprego. É normal ficar
desanimado.

Cecília volta a sorrir. Abre uma gaveta e retira uma câmera


fotográfica.

CECÍLIA
Eu preciso de uma foto sua pro
perfil.

Otávio se endireita na cadeira. Tenta sorrir. Cecília tira


uma foto e vê o resultado.

CECÍLIA
Você quer tirar uma sem gravata?

Otávio começa a desfazer a gravata.

CECÍLIA
Fica com um ar mais jovem.

25 INT. APARTAMENTO / SALA - DIA 25

Paula passa o aspirador na sala de estar. Otávio entra e


para próximo a Paula, que não percebe sua presença. Ele
deixa suas chaves e os folhetos de networking sobre o
balcão.

Paula o vê. Desliga o aspirador.

PAULA
Oi, seu Otávio.

OTÁVIO
Oi. A Vanessa já chegou?

PAULA
Ainda não, a perua passa às seis.

Otávio faz que sim. Paula volta a aspirar o chão. Tenta


empurrar uma poltrona. Otávio se aproxima para ajudá-la.
Paula aspira o local e desliga o aparelho.

PAULA
Já acabei.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 27.

Paula sai da sala carregando o aspirador.

Otávio senta no sofá. Encara a TV por um tempo. Depois,


liga a TV e o tapetinho de Vanessa. Arrisca alguns passos.

26 INT. MERCADINHO / FUNDOS - DIA 26

Jorge e Helena observam uma mancha na parede dos fundos do


mercado. Jorge usa um avental ensanguentado e carrega um
facão. Helena segura alguns papéis.

JORGE
Isso tá com cara de infiltração.

Helena toca na mancha.

JORGE
Tem que chamar alguém pra ver isso,
dona Helena.

Ricardo chega carregando caixas de bombom. Ele coloca as


caixas no chão e começa a organizar uma pilha.

HELENA
A pintura tava novinha...

JORGE
Umidade é muito ruim pras carnes.
Faz estragar mais rápido.

Helena vê Ricardo, que tenta, sem sucesso, fazer a pilha.

HELENA
Tá certo, Jorge. Brigada. Pode
voltar pro açougue.

JORGE
É sério.

Helena faz que sim. Aproxima-se de Ricardo.

HELENA
Ricardo, uma cliente veio reclamar
comigo que não tem mais leite
desnatado. Acho que foi você quem
atendeu ela.

RICARDO
Eu disse que não tinha leite porque
é verdade. Eu revirei o estoque
todo.

HELENA
Foi você quem recebeu a entrega.
Olha só a sua assinatura na nota.

Helena mostra uma fatura para Ricardo.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 28.

HELENA
Você precisa conferir sempre tudo o
que chega. Se tiver faltando alguma
coisa, tem que reclamar na hora.

Ricardo fica quieto. Examina a fatura sem encarar Helena.

RICARDO
Eu vou procurar de novo.

Ricardo anda em direção ao estoque. Helena vira-se para a


parede. Puxa uma estante de biscoitos para a frente da
mancha, tampando-a.

27 EXT. FACHADA DO MERCADINHO - NOITE 27

Vê-se a nova fachada: “Mercado Curumim”. Ricardo aguarda ao


lado da porta. Helena despeja rosas murchas no lixo. Ela
tem uma sacola do mercado nas mãos. Gilda sai, maquiada e
de vestido. Ricardo começa a abaixar a porta rapidamente.

GILDA
Eu achei que hoje o movimento foi
melhor, dona Helena.

HELENA
É, não sei...

GILDA
Não pode desanimar, hein?! No
começo é assim mesmo. Depois vai
chegando gente.

Helena sorri. Repara na roupa de Gilda.

HELENA
Tá bonitona. Vai sair com o
namorado?

Gilda ruboriza.

GILDA
Ai, Dona Helena, por enquanto é
só pretendente. Mas Deus te ouça!

Gilda acena e se afasta deles. Helena olha para o outro


lado da rua. Ao lado do seu carro, um cachorro está parado,
olhando para ela.

Ricardo se aproxima e entrega as chaves para Helena. Olha


para o cachorro. Dá alguns passos na direção dele, batendo
palmas.

RICARDO
Sai, cachorro!

O cachorro se afasta. Helena anda na direção do carro.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 29.

HELENA
Brigada, Ricardo.

RICARDO
(simpático)
Tchau. Bom descanso pra senhora.

Ricardo se afasta. Helena abre a porta do carro.

28 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 28

Helena entra, carregando a mesma sacola. Olha para a sala e


vê Paula e Vanessa sentadas no sofá, assistindo a um
programa infantil na TV. Paula está de short e regata e tem
um prato de comida no colo. Vanessa está de pijama. Helena
se aproxima delas.

HELENA
Oi, tem alguém aí?

Vanessa vê Helena e se levanta do sofá.

VANESSA
Mãe!

Vanessa dá um abraço em Helena, que beija a menina.

HELENA
Oi, filhinha. Tudo bem? Já tá de
pijama...

VANESSA
É.

Helena olha para Paula.

HELENA
Ela já comeu, Paula?

PAULA
Já. Eu deixei um prato separado
pra senhora.

HELENA
E o Otávio, cadê?

PAULA
Ele já deitou. Nem quis jantar.

29 INT. APARTAMENTO / QUARTO DO CASAL - NOITE 29

Otávio está deitado na cama, coberto. O abajur está aceso.


A porta do quarto é aberta. Helena entra devagar, segurando
uma das sacolas que trouxe. Senta na cama, ao lado de
Otávio, e acaricia suas costas. Otávio se vira para Helena.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 30.

HELENA
Oi... Tá tudo bem?

OTÁVIO
Tá. Só tô um pouco cansado.

Helena se inclina e beija Otávio com entusiasmo.

HELENA
Trouxe um vinho pra gente.

Helena tira uma garrafa da sacola. Coloca-a sobre a mesa de


cabeceira. Repara na agenda de Otávio, que está aberta
sobre a cama, com alguns cartões por cima.

HELENA
O que é isso?

OTÁVIO
(retirando a agenda)
Essa é a minha rede de contatos.

Helena deita ao lado de Otávio. Os dois ficam em silêncio


por um instante.

OTÁVIO
Eu nunca mais vou conseguir um
emprego.

Helena olha para Otávio, séria.

HELENA
Cala a boca.

Otávio ri. Helena sorri.

OTÁVIO
Vai querer mandar em mim agora?

30 INT. MERCADINHO / CORREDOR - DIA 30

Otávio está agachado em um dos corredores, ajustando um


boneco de Papai Noel em tamanho real.

O mercado está movimentado e decorado para o Natal. Um


HOMEM DE TERNO, 35 anos, fala ao celular e caminha com uma
cesta pelo corredor, procurando algo entre as prateleiras.
Otávio o observa.

HOMEM
(ao telefone)
Começa com os números, dá a real
pra eles... Isso, é o mesmo
gráfico da última apresentação,
só que em pizza. Beleza. A Lia te
avisou que a reunião vai ser no
cliente?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 31.

O homem se aproxima de Otávio.

HOMEM
Só um minuto.
(para Otávio)
Por favor... Onde ficam as
bebidas?

Otávio se levanta.

OTÁVIO
Eu não trabalho aqui.

HOMEM
Ah... Desculpe.

OTÁVIO
Lá no fundo tem uns freezers.

Otávio aponta o fim do corredor. O homem anda na direção


indicada e volta a falar ao telefone. Otávio o observa.

31 INT. MERCADINHO / FUNDOS - DIA 31

Helena e Gilda estão diante de uma das prateleiras. Elas


agora usam um gorro de Papai Noel e um jaleco com o nome do
mercadinho. Helena manipula algumas embalagens de panetone.
Gilda segura uma prancheta e observa a patroa.

HELENA
Quarenta, quarenta e um...
Quarenta e dois, quarenta e
três... Quanto tá aí?

GILDA
Cinquenta.

Helena se agacha e olha sob a prateleira. Estica o braço.

HELENA
Tem mais um aqui.

Helena retira uma embalagem e a coloca de volta na


prateleira, com raiva.

HELENA
Tá faltando.

Gilda anota o número em sua prancheta.

GILDA
A senhora quer contar de novo?

HELENA
Não, vamos pra outro. No final a
gente repassa tudo.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 32.

Helena e Gilda se encaminham para a seção dos


refrigeradores.

GILDA
Eu tô sentindo um cheiro forte. A
senhora reparou?

Helena respira fundo. Muda de direção e anda pelo corredor,


buscando a origem do cheiro. De repente, começa a andar
mais rápido.

HELENA
Tá vindo daqui.

Ela vê Jorge, que também usa um gorro de Papai Noel,


olhando para o chão no fim do corredor. Helena se aproxima.

O piso está coberto por um líquido escuro e viscoso, que


parece brotar do chão, transbordando entre as ranhuras que
unem as lajotas.

32 INT. MERCADINHO / FUNDOS - NOITE 32

O mercado está vazio e silencioso. Otávio coloca um pano


encharcado com o líquido escuro dentro de um balde. Suas
mãos estão sujas.

OTÁVIO
Tem mais pano?

Helena vira-se para Ricardo, que observa-os um pouco


afastado, já com sua mochila nas costas.

HELENA
Ricardo...

Ricardo faz que sim e se afasta. Otávio vê um pouco do


líquido continuando a brotar do chão.

Helena agacha perto de Otávio e olha para o chão. Vê Otávio


pegar outro pano sujo e impedir que o líquido se espalhe.

HELENA
Tá vendo? Que bom que você tá
aqui.

Otávio não responde. Olha para Helena e força um sorriso.


Um ruído grave parece vir do encanamento. Otávio volta a se
ocupar com os panos. Ricardo volta e, protegendo o nariz,
entrega panos limpos para Otávio.

33 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 33

A porta se abre. Helena entra, acompanhada de Otávio e


INÊS, que arrasta atrás de si uma pequena mala de rodinhas.
Helena e Otávio estão um pouco sujos.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 33.

Eles veem Vanessa e Paula paradas ao lado de uma árvore de


Natal montada, iluminada com as luzinhas do pisca-pisca.
Algumas caixas com enfeites estão espalhadas pela sala.

VANESSA
Surpresa!

Inês, Otávio e Helena olham para a árvore por um instante.


Otávio sorri, se aproxima de Vanessa e a beija.

OTÁVIO
Que linda, filha! Você montou
tudo?

VANESSA
Montei! Vem ver, vovó... Vem,
mãe...

Vanessa anda até Inês, que também sorri.

INÊS
Me dá um beijo antes, né?

Vanessa beija a avó e a leva pela mão até a árvore. Helena


fica afastada por um tempo, encarando Paula.

PAULA
A Vanessa pediu, dona Helena. Ela
tava ansiosa.

HELENA
É que eu monto com ela. Todo ano.

PAULA
Ah... Eu não sabia.

HELENA
Tudo bem.

Helena se aproxima da árvore. Ao lado dela, Vanessa mostra


os enfeites para Otávio e Inês. Otávio aproxima a mão de um
dos enfeites para vê-lo melhor.

VANESSA
Cuidado, pai! Sua mão tá suja!

Paula agacha e recolhe alguns enfeites que estão espalhados


pelo chão. Helena examina um dos galhos da árvore.

HELENA
Esse laço tá errado.

34 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 34

Paula está em frente à pia, lavando a louça do jantar. Inês


está ao seu lado, secando os pratos. Ela pega um prato,
olha bem de perto e devolve a Paula.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 34.

INÊS
Toma. Esse aqui ficou com
sujeira. Precisa lavar melhor.

Paula olha para o prato, tentando achar a sujeira. Ensaboa


bastante o prato. Inês pega a louça seca e abre a porta dos
armários, procurando lugar pra guardar.

PAULA
(apontando outro
armário)
É naquele lá.

Inês abre o armário indicado por Paula e guarda os pratos.

INÊS
A Helena deixa você usar essa
louça todo dia?

PAULA
Ela que pediu.

INÊS
Tem que tomar muito cuidado, viu?
Foi presente de casamento,
importado.

Paula continua lavando a louça. Inês pega um tupperware com


restos no balcão e abre a geladeira pra guardá-lo. Se
surpreende com o que vê.

INÊS
Nossa! Amanhã a gente vai dar uma
geral nessa geladeira. Tá a ponto
de pular um bicho de dentro.
Geladeira precisa limpar todo
mês.

Paula esfrega a louça com raiva.

35 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 35

Helena está parada em frente à árvore de Natal. Ela desfaz


um dos laços e em seguida arruma novamente.

OTÁVIO (O.S.)
Falta somar o gás e a água. As
contas do mercado já chegaram?
(pausa)
Helena?

Helena vira e olha para Otávio. Ele está sentado à mesa do


escritório. Examina várias faturas e faz as contas em uma
calculadora. Helena se aproxima e acha as contas dentre os
papéis espalhados pela mesa. Entrega para Otávio e senta ao
seu lado. Otávio contabiliza os valores.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 35.

HELENA
E aí?

Otávio olha para o resultado da soma, preocupado. Eles


falam baixo.

OTÁVIO
Não sei se vai dar. Tomara que o
conserto do piso não saia caro.
(pausa)
A gente devia cortar umas
coisas... A TV a cabo...

HELENA
Ah não, a Vanessa tá de férias.

OTÁVIO
(dando as contas para
Helena)
Então decide. Tem que cortar
alguma coisa.

HELENA
Chegou uma cobrança da escola,
você viu?

OTÁVIO
(fazendo que sim)
Vi. Eu vou lá falar com eles.

HELENA
Você quer que eu peça um dinheiro
pra minha mãe e pro meu pai?

OTÁVIO
Não, de jeito nenhum. Não se
preocupa, eu vou dar um jeito de
pagar tudo.

Inês entra na sala, sorridente. Otávio recolhe as contas da


mesa.

INÊS
Pronto. Agora a cozinha tá em
ordem.

HELENA
Mãe, não precisava... A Paula
arruma tudo sozinha.

Inês senta na mesa, ao lado de Helena.

INÊS
Eu não ligo. Adoro serviço de
casa, me relaxa.
(para Otávio)
E aí, Otávio? A Helena me disse
(cont)
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 36.

que você conseguiu uma entrevista


de emprego amanhã...

OTÁVIO
É. Numa empresa lá no centro.
Vamos ver...

INÊS
Que bom. Vou ficar de dedos
cruzados.

Otávio se levanta da mesa, levando as contas e a


calculadora.

OTÁVIO
Eu vou lá preparar a sua cama.

INÊS
Brigada, querido.

Inês observa Otávio sair pelo corredor. Vira-se para Helena


e fala com um tom grave.

INÊS
Eu tô achando ele muito abatido,
Helena.

HELENA
Tem dia em que ele fica quieto,
mexendo no computador. Nem troca
de roupa. Mas agora ele tá mais
animado. Apareceram essas
entrevistas...

INÊS
Vocês têm que rezar muito pra ele
se arranjar logo, filha.

HELENA
Mãe, o Otávio nem acredita em
Deus.

INÊS
Mesmo assim. Tem que rezar. Na
idade dele é quase impossível
conseguir emprego.

36 INT. MERCADINHO / FUNDOS - DIA 36

Helena, usando um gorro de Papai Noel, observa seu Antunes


e ANTUNES FILHO, 20 anos, quebrarem o piso.

Antunes retira um cano sujo e examina. O chão ao redor do


buraco está sujo de restos de concreto e do líquido negro.
Jorge, apoiado no balcão do açougue, observa o trabalho dos
dois homens.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 37.

JORGE
Dona Helena, eu não vendi nada
hoje. Ninguém chega perto do
açougue por causa desse cheiro.

Helena tapa o nariz e borrifa um spray de perfume ao redor


do açougue. Seu Antunes e o filho enfiam um arame dentro do
encanamento. Antunes cutuca algo dentro do cano.

ANTUNES
Peguei o desgraçado. Pode puxar,
filho.

Helena se aproxima deles.

HELENA
Achou o problema, seu Antunes?

Antunes Filho puxa o arame. De dentro do cano sai uma


grande bola de pelos.

ANTUNES
É isso que tá entupindo.

Antunes deixa a bola com pelos no chão e volta a desentupir


o encanamento com o arame. Helena olha para o piso,
enojada. Os pelos estão encharcados com uma gosma escura.
Pequenas larvas pretas andam ao redor.

37 INT. MERCADINHO / CORREDOR - DIA 37

No corredor onde há o boneco de Papai Noel, Helena está com o


celular no ouvido e anda de um lado para o outro, irritada. O
boneco tem um sensor de movimentos. Ele dança conforme Helena
passa em frente a ele.

HELENA
Soraia, aqui é a Helena. Preciso
falar com você sobre o encanamento.
Me liga urgente, assim que pegar
esse recado.

Helena desliga o celular. Olha para uma pilha de bolachas em


uma das prateleiras. Começa a contar os pacotes.

Anda até a entrada dos corredores e conta uma pilha de


panetones.

HELENA
Gilda...

Gilda se aproxima de Helena.

GILDA
Que foi, dona Helena?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 38.

HELENA
Quantos panetones tinha aqui?

GILDA
Não sei... Uns vinte e cinco?

HELENA
Vinte e oito. Aqui só tem vinte!

Helena anda pelos corredores. Gilda a segue.

HELENA
E eu acho que tá faltando bolacha
de maisena. A pilha caiu pela
metade. Não pode ter vendido tudo
isso de um dia pro outro.

GILDA
Dona Helena...

HELENA
Eu tô cansada de pagar por
mercadoria que some. A gente vai
reconferir e eu vou descontar de
vocês três o que tiver faltando.

GILDA
(tentando esclarecer)
Dona Helena, a senhora pediu pra
pegar uns panetones e fazer outra
pilha ali.

Gilda aponta para o balcão de um dos caixas. Helena vê uma


pequena pilha de panetones. Olha para Gilda, constrangida.

HELENA
Desculpa. Eu tinha esquecido. É que
some um monte de coisa, eu fico
desconfiada.

Gilda faz um carinho nas costas de Helena, que passa as mãos


no rosto.

GILDA
A senhora tá se sentindo bem?

HELENA
Não aguento mais esse cheiro.

38 INT. SENSUS - DIA 38

Otávio olha para uma pequena sala com três mesas e cerca de
cinco FUNCIONÁRIOS. O ambiente é precário e os computadores
são antigos. Todos os funcionários falam ao telefone. Ao
lado de Otávio está JÚNIOR, o gerente da empresa.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 39.

JÚNIOR
Quando eles não tão em visita, o
pessoal de vendas fica aqui. Ali
é a recepção. Nesse quadro aqui
tem os avisos dos aniversários do
mês. E essa é a minha mesa, que a
gente usa pra reunião também.

Otávio observa a mesa de Júnior, que se afasta, pega um


copinho de plástico e serve café de uma garrafa térmica.

JÚNIOR
Você toma com açúcar ou adoçante?

OTÁVIO
Adoçante.

Júnior adoça o café e serve-o para Otávio.

JÚNIOR
Eu tô evitando o adoçante. Eu li
que o aspartame, em contato com
líquidos quentes, é muito
cancerígeno.

OTÁVIO
Ah...

JÚNIOR
Eu fiquei bem impressionado
quando vi o seu currículo pelo
site.

OTÁVIO
Brigado.

JÚNIOR
Você sabe que a vaga é pra
vendedor, certo?

OTÁVIO
Sei.

Júnior serve café para si.

JÚNIOR
Otávio... Sinceramente, eu acho
você muito qualificado.
(pausa)
Eu preciso saber se você tem
interesse real em trabalhar aqui.

Otávio bebe um gole de café. Encara Júnior.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 40.

39 EXT. RUAS DO CENTRO - DIA 39

Otávio caminha pelos calçadões. Observa diversos HOMENS-


SANDUÍCHE.

Um pouco mais adiante, Otávio vê algumas PESSOAS paradas ao


lado de uma banquinha de madeira olhando para os jornais
pendurados. Uma delas toma nota dos anúncios de emprego em
um caderninho.

NEI (O.S.)
Vai graxa?

Otávio olha para trás e vê NEI, um engraxate de cerca de 30


anos. Otávio o encara por um tempo. Olha para os seus
sapatos e vê que estão gastos.

OTÁVIO
Pode ser.

NEI
Vamos aqui no coberto.

Otávio anda com Nei até o lugar indicado por ele e senta-se
na cadeira. Nei começa a engraxar os sapatos de Otávio.

NEI
Tava precisando, hein?

OTÁVIO
Pois é. Esse já tá velho.

40 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 40

Um rádio está ligado, tocando música. VANDA, 23 anos, está


sentada à mesa da cozinha diante de um copo com refrigerante.
Ela usa uniforme de empregada doméstica e segura um celular.

Paula está encostada na passagem para a área de serviço e


fuma um cigarro. Um avião cruza o céu ao longe. O aparelho de
Vanda emite um som.

VANDA
Olha só o que ele respondeu.

Paula se aproxima da mesa, mantendo a mão para trás. Olha a


mensagem. Vanda digita uma resposta no aparelho.

PAULA
O que você vai dizer?

VANDA
Vou falar pra gente tomar uma
cerveja no Américo.

Vanda olha para Paula e sorri.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 41.

VANDA
Vou falar pra ele chamar o
Alexandre também.

PAULA
Ah, não, Vanda!

VANDA
Ué, que é que tem? Você é muito
travada, Paula. Tem que sair mais,
dançar um pouco. Senão vai ficar
encalhada.

PAULA
Eu nem sei dançar.

VANDA
Magina, é só juntar assim... O
cara te leva...

Vanda finge dançar forró. Paula sorri. Dá uma tragada.

PAULA
Eles tão com visita aqui na casa.
Pega mal eu sair de noite.

Vanda envia a mensagem. Paula olha para ela por um tempo.

PAULA
Você acha que daria pra eu
trabalhar de aeromoça?

VANDA
(sem levar a sério)
Tá maluca? Pra ser aeromoça tem que
fazer curso. Custa uma nota!

PAULA
Eu sei. Mas eles parcelam.

Vanda olha para Paula e vê que ela está séria.

VANDA
E você vai fazer isso que horas,
de madrugada? Trabalhando aqui
todo dia...

O celular de Vanda recebe outra mensagem. Vanda olha o


aparelho.

VANDA
O Alê vai.

PAULA
Ih...
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 42.

Elas ouvem a porta da sala se abrindo. Paula corre até a pia


e apaga o cigarro sob a torneira. Coloca a bituca no bolso do
uniforme.

Logo depois, Inês entra na cozinha. Ela está com o cabelo


arrumado. Olha para Vanda, depois para Paula. Paula abaixa um
pouco o volume do rádio.

INÊS
Boa noite.

PAULA
Boa noite, dona Inês.

Inês anda até o armário da cozinha e o abre. Vanda levanta,


se despede de Paula e vai embora. Inês observa as duas. Paula
pega o copo de refrigerante e coloca-o sobre a pia.

INÊS
Não tem mais creme de leite? Eu ia
fazer um doce pra amanhã.

PAULA
Acabou.

Inês pega o telefone.

INÊS
Vou ter que pedir pra Helena.

PAULA
Acho que a essa hora ela já saiu do
mercado.

INÊS
(ao telefone)
Alô, filha? Onde você tá?
(pausa)
Dá pra você voltar e pegar umas
latas de creme de leite?
(pausa)
Isso. Brigada.

Inês desliga. Sente um cheiro estranho.

INÊS
Tá um cheiro de fumaça aqui, não
tá?

PAULA
Deve ser do vizinho.

Inês olha para ela um tempo, depois relaxa e ajeita o


cabelo com as mãos.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 43.

41 EXT. FACHADA DO MERCADINHO - NOITE 41

A rua do mercadinho está escura e vazia. O carro de Helena se


aproxima e estaciona na frente da entrada do mercado.

Helena desce do carro, já retirando da bolsa o molho de


chaves. Ela ouve um rosnado vindo do outro lado da rua.
Olha para trás e vê três cachorros parados, observando a
entrada do mercado.

42 INT. MERCADINHO - NOITE 42

Helena acende as luzes e olha na direção dos corredores. O


mercado está vazio e silencioso. O buraco no piso está
coberto com uma lona.

Ela passa pelos caixas, pega um cesto e anda na direção de


uma prateleira específica. Pega algumas latas de creme de
leite e anda até outro corredor.

Um ruído repentino a assusta. É o som do Papai Noel se


movendo. Helena anda rapidamente até a região em que ele
foi instalado.

O Papai Noel está balançando os braços e dançando. Depois


de um tempo, ele para.

Helena nota a porta que liga o mercado ao depósito


balançando de leve.

43 INT. MERCADINHO / DEPÓSITO - NOITE 43

Helena acende a luz do depósito e entra nele. Ela olha ao


redor.

Não há sinal de movimento. Helena parece assustada. Ela


vira para sair do depósito. Para subitamente ao ver a
cortina da entrada balançando como se estivesse sendo
atravessada. Em seguida, ouve o ranger da porta de metal.

Helena anda devagar na direção da cortina.

44 INT. MERCADINHO - NOITE 44

Helena sai do depósito. Olha para o mercado vazio.

Segundos depois, o Papai Noel começa a se mover novamente.


Helena apenas o encara até ele parar.

45 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 45

Inês coloca alguns biscoitos champagne dentro de uma forma.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 44.

INÊS
A gente deixa o pavê no
congelador até a ceia. Você vai
ver, vai ficar divino. Seu pai
vai ter que se controlar. O
médico botou ele numa dieta. Só
vai poder provar um pouquinho.

Helena está parada em frente ao fogão. Ela mexe com uma


colher de pau uma panela cheia de creme de leite. Tem o
olhar perdido.

INÊS
Já tá no ponto? Não pode deixar
embolotar.

Inês se aproxima do fogão.

INÊS
Filha! Você não ligou o fogo!

Inês liga o fogo e assume a panela. Olha para Helena, que


se apoia na bancada.

INÊS
Que foi, Helena? Tá passando mal?

HELENA
Não. Tá tudo bem.

INÊS
Você tá com uma cara...

HELENA
É que... Agora à noite, quando eu
voltei pro mercado... Aquele
cachorro tava parado na calçada.
Toda noite ele tá lá, me olhando.
Mas hoje tinha outros, parecia
que...

Helena se vira repentinamente, assustada.

HELENA
Você ouviu isso?

INÊS
O quê?

Paula entra na cozinha, vinda da área de serviço. Inês e


Helena olham para ela.

PAULA
Licença.

Paula anda até a geladeira e enche um copo com água. Helena


tenta se recompor. Inês a observa. Paula nota o clima entre
as duas e volta para o seu quarto.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 45.

INÊS
Senta, filha. Eu vou pegar uma
água.

46 INT. APARTAMENTO / QUARTO DE PAULA - NOITE 46

Paula entra no quarto minúsculo e fecha a porta. Senta na


cama com seu copo de água. Bebe um gole.

47 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 47

Inês e Helena estão sentadas à mesa. Helena termina de


beber seu copo de água.

INÊS
Agora tenta me explicar direito o
que aconteceu. Eu não entendi
nada.

Helena deixa o copo sobre a mesa.

HELENA
Parecia que eu não tava sozinha
lá. Parecia que as paredes tavam
respirando... Acho que eu tô
ficando louca.

Inês faz um carinho em Helena.

INÊS
Isso é stress, filha. É normal.
Você tá trabalhando por dois
nessa casa. Por que o Otávio não
te ajuda?

HELENA
(irritada)
Ah, mãe... Eu só queria entender
o que tá acontecendo. Eu trabalho
que nem uma escrava e todo dia as
coisas dão mais errado.

INÊS
Por quanto tempo você vai levar
esse mercado nas costas sozinha?
Você faz todo o serviço. Precisa
exigir mais desses empregados.
Vai ficar sustentando vagabundo?

Helena encara Inês.

INÊS
Você é boazinha demais pra ser
patroa.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 46.

48 INT. MERCADINHO - DIA 48

Soraia e SEU ALFREDO, 53 anos, observam enquanto seu


Antunes coloca duas lajotas novas sobre o ponto onde o piso
estava quebrado. Antunes Filho varre a sujeira em volta.
Antunes mostra pontos em que ainda há sujeira para Antunes
Filho varrer. Helena está de costas para eles. Observa os
funcionários trabalhando:

Gilda está no caixa, sorridente. Ela entrega as sacolas de


compra para uma CLIENTE e em seguida abre a gaveta do caixa
e conta o dinheiro. Gilda separa algumas notas e as coloca
em um envelope. Guarda o envelope dentro da gaveta do
caixa.

Ricardo examina os pacotes da prateleira de pão. Separa


alguns dos pacotes e coloca em uma caixa. Carrega a caixa
para dentro do estoque.

Soraia se aproxima de Helena acompanhada por seu Alfredo.


Na presença dele, Soraia tem personalidade mais contida.

SORAIA
Helena? O seu Alfredo quer ver as
notas fiscais do conserto do
piso.

Helena olha para Alfredo. Ele a encara, muito sério.

49 INT. MERCADINHO / DEPÓSITO - DIA 49

Ricardo está colocando as embalagens de pão dentro de uma


sacola plástica. Helena entra no depósito acompanhada por
Soraia e Alfredo. Helena olha para Ricardo.

HELENA
Ricardo... O que você tá fazendo?

Ao ver Helena, Ricardo deixa a sacola no chão.

RICARDO
Dona Helena... Eu tô separando os
produtos vencidos.

Helena se aproxima de Ricardo. Olha para a sacola. Retira uma


embalagem de pão e olha seu vencimento. Helena olha para
Ricardo, séria. Soraia e Alfredo observam a cena.

HELENA
Volta pro trabalho. Mais tarde a
gente conversa.

Ricardo sai do depósito. Helena se aproxima de uma mesa e


abre uma gaveta.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 47.

HELENA
(para seu Alfredo e
Soraia)
Desculpa.

SORAIA
Tem que ficar de olho, né, Helena?
Por isso que eu sou autônoma.

Helena retira as notas fiscais de dentro da gaveta e as


entrega para Alfredo. Ele confere as notas com Soraia,
falando baixo.

Helena pega uma caixa e a coloca perto de Alfredo e Soraia.

HELENA
Isso aqui é do senhor?

ALFREDO
Não.

HELENA
Tava aqui quando eu aluguei.

Helena retira da caixa alguns objetos: duas camisas; uma


calça jeans; um par de sapatos; um relógio; a corrente que
estava atrás do freezer. Alfredo para de olhar as notas e
olha com atenção para os objetos. Soraia parece aflita.

ALFREDO
(sério)
É do outro inquilino. Pode jogar
tudo fora.

HELENA
Você ainda tem o contato deles? Eu
posso ligar, ver se eles querem de
volta...

ALFREDO
Não, ninguém vai querer isso.

SORAIA
Não adianta, Heleninha. Eles não
deixaram nenhum contato. Eu mesma
já fui atrás uma época, pra cobrar
um IPTU atrasado. Pode doar isso
aí, sem culpa.

Helena devolve a caixa para a pilha.

50 INT. MERCADINHO / CAIXAS - DIA 50

Gilda atende um CLIENTE, 52 anos. A fila atrás dele é um


pouco longa.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 48.

Num ritmo frenético, Gilda passa os produtos pelo leitor de


códigos de barra. Registra um grande peru congelado.

CLIENTE
(sério)
Esse aí eu quero que embrulhe pra
presente.

Gilda segura o peru e encara o cliente, perplexa.

CLIENTE
Brincadeira.

O cliente sorri. Gilda continua a passar os produtos, com


raiva.

51 INT. MERCADINHO / DEPÓSITO - DIA 51

Ricardo está sentado sobre uma caixa de produtos no depósito.


Helena olha o vencimento do pão, pacote por pacote, até
esvaziar a sacola que Ricardo tinha enchido. Ela olha para
ele.

RICARDO
Tá vendo? Era tudo pão velho. Eu
tava fazendo o que a senhora pediu.

HELENA
Você ia levar isso pra casa. Seu
trabalho é tirar o produto da
prateleira e deixar no depósito.
(pausa)
E o panetone? Tava velho também? E
o leite?

RICARDO
Que que tem?

HELENA
Faz meses que eu tô dando falta
da mercadoria!

RICARDO
Pra que eu ia levar essas coisas?

HELENA
Podia revender.

RICARDO
É. Vou ficar rico vendendo pão.

HELENA
(gritando)
Tá louco de falar assim comigo? Me
respeita.

Ricardo fica intimidado com a bronca.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 49.

HELENA
(ainda irritada)
Você vê o esforço que eu tô fazendo
pra manter esse mercado. É uma
falta de noção você levar coisa pra
casa escondido.

RICARDO
Eu nunca peguei nada daqui. A Gilda
tá de prova. Ela sempre sai junto
comigo.

Os dois se encaram. Helena levanta e vai até a porta do


depósito. Ricardo suspira. Apoia a cabeça nas mãos.

HELENA
(em voz alta)
Gilda.

Helena volta ao depósito. Segundos depois, Gilda aparece na


porta. Ela parece tensa.

HELENA
Você já viu o Ricardo sair com
algum produto da loja?

Gilda hesita por um tempo. Pensa longamente. Encara Ricardo.

GILDA
Não.

Gilda olha para Helena, sem saber mais o que dizer.

HELENA
Volta pro caixa, Gilda.

Gilda troca um olhar com Ricardo e sai. Ricardo levanta.

RICARDO
Posso voltar também?

HELENA
Ricardo, eu vou ter que te demitir.

Ricardo respira fundo. Volta a sentar na caixa. Encara o chão


por um tempo. Olha para Helena. Seus olhos estão marejando.

Tempo.

RICARDO
Dona Helena, não faz isso.

Helena tenta se manter firme.

HELENA
Pode pegar suas coisas e ir embora.
Depois do Natal você passa aqui pra
receber.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 50.

Helena sai do depósito.

52 INT. APARTAMENTO / COZINHA - DIA 52

Paula lava alguns ovos e quebra-os dentro de uma tigela.


Helena mexe nos armários, abrindo e fechando as portas.

PAULA
O que a senhora quer, dona
Helena?

HELENA
Canela.

Paula vai até um dos armários e retira um vidro de tempero.


Helena polvilha a rabanada.

HELENA
Eu não acho mais nada nessa casa.

Paula olha para Helena, que não desvia o olhar da


assadeira. Paula volta a quebrar os ovos. Para de se mover
e encara a tigela.

PAULA
Dona Helena...

Helena olha para Paula, aproxima-se e olha para os ovos


dentro da tigela. Dentro dela há um embrião de pintinho.

PAULA
Era o último ovo.

Helena abre a gaveta e pega uma colher de sopa. Utilizando


a colher, ela retira da tigela a porção de ovo com o
embrião e a coloca no lixo. Helena começa a bater os ovos.

HELENA
Põe a torta no micro-ondas.

Paula pega uma torta na mesa e a coloca no forno. Ela


aperta uma tecla, ligando o aparelho. Após alguns segundos,
o micro-ondas para de funcionar. Helena para de bater os
ovos. Encara Paula, que aperta os botões do aparelho
aleatoriamente. Vanessa entra na cozinha.

VANESSA
Mãe, a TV desligou.

HELENA
Paula, vai lá embaixo ver o que
aconteceu.

Paula tira seu avental e sai. Helena volta a bater os ovos,


sem dar atenção a Vanessa. Vanessa aproxima-se devagar da
mesa, observando Helena. Ela nota a expressão grave da mãe,
mas não fala nada.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 51.

OTÁVIO (O.S.)
Helena...

Helena vira e vê Otávio na porta da cozinha. Ele está


enrolado numa toalha, o corpo ainda molhado.

53 INT. APARTAMENTO / QUARTO DO CASAL - DIA 53

Helena está sentada na cama. Otávio olha para ela, apoiado


numa cômoda.

OTÁVIO
Também não precisa ficar com essa
cara.

HELENA
Qual cara você quer? Me fala, eu
faço pra você.

OTÁVIO
Helena...

HELENA
A conta era uns sessenta reais,
Otávio! Eu tenho isso.

OTÁVIO
Eu sei que você tem.

HELENA
Então por que não pediu?!

OTÁVIO
Eu tava esperando entrar um
dinheiro.

HELENA
De onde, porra?! Que dinheiro que
vai entrar? Vão te fazer uma
doação?

OTÁVIO
Fala baixo.

HELENA
Tá com medo que sua filha ache que
você é um bosta?

Otávio ignora Helena. Começa a se vestir, com raiva. Helena


respira fundo. Depois de um tempo, olha para Otávio.

HELENA
Otávio... Eu falei sem pensar.

OTÁVIO
(interrompendo)
Tá bom, Helena.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 52.

54 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 54

Helena coloca uma sacola cheia de presentes perto da árvore


de Natal. MARCELO, 65 anos, organiza os presentes com a
ajuda de Otávio.

HELENA
Pai, quando tiver pronto você
chama?

MARCELO
Tá.

Marcelo observa Helena se afastar. Olha para Otávio com


desdém.

MARCELO
Não sabia que cortavam a luz na
véspera de Natal.

OTÁVIO
Eu pedi urgência. Eles devem
religar amanhã.

Otávio continua a retirar as caixas da sacola. Evita


encarar Marcelo.

55 INT. APARTAMENTO / QUARTO DE VANESSA - NOITE 55

Helena está ao lado da porta, atenta. Vanessa, Inês e


SAMANTA, 38 anos, estão esperando no quarto, que é
iluminado apenas por velas. Vanessa mostra suas bonecas
para Samanta.

VANESSA
Olha, tia, essa é a roupa de
princesa. Dá pra tirar e botar
esse biquíni.

SAMANTA
Olha, que legal, e aí ela fica
pelada?

Samanta passa a mão no cabelo da boneca. A cabeça da boneca


cai no chão. Vanessa abaixa para pegar. Samanta tenta
encaixar a cabeça de volta.

SAMANTA
Ai, desculpa... E aí, Vanessa,
será que o Papai Noel já passou?

VANESSA
Já!

Helena olha para Samanta, irritada.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 53.

HELENA
Não, acho que ainda não passou.

56 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 56

Todos, incluindo Otávio e Marcelo, estão na sala olhando os


presentes perto da árvore de Natal. Marcelo e Inês estão
próximos e seguram velas perto das caixas para conseguir
ler os nomes dos donos de cada pacote.

MARCELO
Essa aqui é da Vanessa.

INÊS
Esse também!

SAMANTA
Quanta coisa, hein, Vanessa?

Helena olha para Vanessa enquanto ela abre algumas caixas.


Logo depois, olha para Otávio, frustrada.

SAMANTA
(para Otávio)
Otávio, você lembra daquele Natal
no sítio da tia Romilda? Tá tão
escuro aqui, lembrei daquele dia.

Helena senta no chão ao lado de Vanessa e olha para


Samanta. Presta atenção na história.

SAMANTA
(para todos)
Vocês não imaginam. Um morcego
enorme entrou na casa na hora que
a gente tava abrindo os
presentes. Ele ficava se batendo
na parede, foi horrível. Mas eu e
o Otávio conseguimos botar ele
num saco.

O nariz de Helena começa a sangrar sem que ela perceba.

SAMANTA (O.S.)
A gente levou pro caseiro no dia
seguinte. O homem matou ele,
lembra? Com uma injeção. O bicho
gritava.

Samanta imita o som do morcego. Uma gota de sangue cai na


roupa de Helena.

INÊS (O.S.)
Helena?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 54.

Helena olha para Inês. Leva a mão ao nariz e vê o sangue.


Inês se aproxima com um guardanapo o entrega para Helena,
que tenta estancar o sangue com ele.

INÊS
É o tempo seco. Nessa época tinha
que estar chovendo.

57 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE - MAIS TARDE 57

Inês e Samanta estão sentadas no sofá da sala, bebendo e


olhando os presentes que ganharam. Marcelo está dormindo
caído no sofá e Vanessa brinca no chão, perto da árvore.

INÊS
Posso cheirar esse seu creme?

SAMANTA
Deixa eu passar um pouco na
senhora.

Samanta se aproxima. Coloca um pouco de creme na mão de


Inês e a massageia.

SAMANTA
Que mão macia...

INÊS
Brigada, querida...

58 INT. APARTAMENTO / COZINHA - NOITE 58

Helena está organizando a louça na pia. Otávio se aproxima.

HELENA
Oi.

OTÁVIO
Sua mãe e a minha irmã tão se
entendendo...

Helena começa a lavar a louça.

HELENA
Acho que esse é o Natal mais
tosco da minha vida.

OTÁVIO
Quem mandou casar com um bosta?

Helena ri.

HELENA
Desculpa.

Otávio tira uma pequena caixa do bolso e mostra pra Helena.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 55.

HELENA
Otávio...

Helena desliga a torneira e abre a caixa. Há um anel nela.

HELENA
Cê tá louco?

OTÁVIO
Eu parcelei em vinte vezes.

Otávio coloca o anel no dedo de Helena, que ainda está sujo


de espuma de detergente.

HELENA
(rindo)
Eu vou vender isso pra pagar a
conta de luz.

OTÁVIO
Eu consegui o trabalho.

Helena encara Otávio, surpresa.

OTÁVIO
É bom porque é por comissão, eu
trabalho de casa mesmo. Dá pra
continuar procurando uma coisa
melhor.

Helena olha para Otávio com um pouco de pena. Ela o abraça


e dá um beijo nele.

59 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 59

Inês e Samanta estão sentadas, ainda mais próximas.


Continuam conversando animadamente, bêbadas.

INÊS
Você tá certa em não casar...
(ela aponta Marcelo)
Eu me amarrei muito cedo, podia
ter estudado. Estraguei a minha
vida. A Helena também largou a
faculdade pra ficar com o seu
irmão.

SAMANTA
Eu sou independente. Não preciso
de homem nenhum!

Marcelo começa a roncar alto. As duas se assustam.

SAMANTA
Acho que tá na hora da gente
deitar.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 56.

INÊS
Que horas são? Ah, vai ser uma
pena perder a Missa do Galo. Eu
adoro esse Papa novo...

Samanta sorri, desapontada.

60 INT. APARTAMENTO / ÁREA DE SERVIÇO / COZINHA - DIA 60

Paula agora veste um uniforme cinza de doméstica. Ela fala


ao celular, evitando a direção da cozinha. Segura um jornal
na página dos classificados.

PAULA
Mas não tem como ser mais cedo a
entrevista? É porque no fim da
tarde é mais difícil de sair
daqui.
(pausa)
Não, eu vou sim.

O telefone da casa começa a tocar. Paula se apressa.

PAULA
Tá bom, brigada. Até mais.

Ela corre até o aparelho e atende.

PAULA
Alô. Oi, dona Helena. Tudo bem.
Não, ele ainda tá deitado.

Paula faz uma expressão de desagrado.

61 INT. APARTAMENTO / SALA / CORREDOR - DIA 61

Paula sai da cozinha, se aproxima do quarto de Vanessa, dá


uma batidinha na porta e abre.

PAULA
Tá pronta?

VANESSA (O.S.)
Ahan. Você pinta a minha cara?

PAULA
Pinto. Mas primeiro me faz um
favor. Vai lá no quarto e acorda
seu pai. Fala que é tarde.

Vanessa sai do quarto. Ela usa uma roupa de Carnaval que


inclui um cocar de índio. Carrega uma mochila e um estojo
de maquiagem.

VANESSA
Ah, Paula...
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 57.

PAULA
Vai lá. E não diz que eu pedi.

Vanessa resmunga. Paula empurra Vanessa na direção do


quarto de Otávio.

PAULA
É rapidinho.

Vanessa entra no quarto de Otávio. Paula permanece no


corredor esperando. Pouco depois, Vanessa sai.

PAULA
Ele acordou?

VANESSA
Disse que já vai levantar.

PAULA
Então vamos descer. Eu vou
passando sua maquiagem.

Paula pega o estojo da mão de Vanessa. Ela e Vanessa andam


até a porta da sala e saem.

Pouco depois, Otávio sai do quarto. Ele vente pijama e tem


barba e cabelo desgrenhados.

O telefone toca. Otávio atende.

OTÁVIO
Alô? Oi, Helena.
(pausa)
Fica tranquila, eu já tô
trabalhando.
(pausa)
Não sei, acho que ela desceu com
a Vanessa.

62 INT. APARTAMENTO / SALA - DIA 62

Otávio está sentado em frente ao computador, vestindo seu


pijama. Folhas de papel estão espalhadas pela mesa, entre
elas folders com fotos de FAMÍLIAS felizes e sorridentes.
Ele pega o telefone do gancho.

PAULA (O.S.)
Seu Otávio...

Otávio olha para Paula.

PAULA
A minha tia ligou e disse que não
tá bem. Pediu pra eu levar ela no
hospital.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 58.

OTÁVIO
Quando?

PAULA
Eu tenho que ir daqui a pouco. Já
deixei tudo arrumado. Tudo bem?
Eu volto ainda hoje.

OTÁVIO
Tá, tudo bem.

Paula começa a sair. Otávio se vira.

OTÁVIO
Paula?

Paula para e olha para ele.

OTÁVIO
Você me faz um café antes?

PAULA
Claro.

Paula sai. Otávio encara a planilha na tela com uma


expressão cansada. Pega o telefone e disca um número.

OTÁVIO
Olá, bom dia. Eu gostaria de
falar com a senhora Maíra Gomes?
(pausa)
Certo. Em que horário eu consigo
encontrá-la?
(pausa)
É a respeito de uma oportunidade
que a corretora Sensus está
oferecendo... Tudo bem, obrigado.

Otávio desliga o telefone. Olha para a tela novamente.


Disca outro número.

OTÁVIO
Olá, bom dia. A senhora Elisa
Santos se encontra? Oi, senhora
Elisa, como vai? Meu nome é
Otávio e eu trabalho junto à
Sensus Corretora. A senhora
possui seguro de vida?
(pausa)
Nós estamos este mês com uma
promoção especial, com
abrangência para dependentes. A
senhora tem filhos?
(pausa longa)
Entendo. Sinto muito. Com certeza
essa situação é temporária. Vou
fazer o seguinte: vou agendar pra
entrar em contato com a senhora
(cont)
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 59.

novamente daqui a dois meses. De


repente seu marido já está com um
novo emprego e aí pode ser
interessante investir no futuro.
(pausa)
Tá certo. Tá...

Otávio tenta interromper a ligação, mas dona Elisa não o


deixa desligar.

63 INT. MERCADINHO / CAIXAS / FUNDOS - DIA 63

CLOSE na tela de um monitor, que mostra a imagem de quatro


pontos diferentes do mercado. A imagem entra e sai de
sintonia.

WALDEMAR, 45 anos, mexe nos cabos do monitor, que fica


próximo aos caixas. Helena está ao seu lado,
supervisionando a instalação. Ela usa no pescoço um cordão
com algumas chaves penduradas.

RIBEIRO (O.S.)
Waldemar???

WALDEMAR
(gritando)
Oi???

RIBEIRO (O.S.)
Melhorou?

No fundo do mercado, RIBEIRO, 30 anos, está de pé em uma


escada. Ele mexe em uma pequena câmera de vigilância
instalada em um canto. Jorge corta um pedaço de carne com
seu facão e observa o procedimento, desconfiado.

WALDEMAR (O.S.)
Não!

Ribeiro pega uma chave de fenda e aperta as conexões da


câmera.

Gilda entra no mercado arrumada, sem uniforme. Tenta passar


despercebida por Helena.

HELENA
(sem olhar para Gilda)
Gilda, você tá atrasada.

Gilda para. Olha para Helena.

GILDA
Ainda faltam cinco minutos, dona
Helena. Eu tinha que voltar às
três e vinte.

Helena olha em seu relógio de pulso.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 60.

HELENA
No meu relógio já são três e
meia. Vai se trocar logo e volta
aqui.

Gilda caminha em direção ao depósito.

HELENA
Seu Waldemar, eu não tenho o dia
todo. O senhor disse que era
rápido.

WALDEMAR
Só falta resolver essa
interferência na imagem.

HELENA
Já tá ligado na internet?

64 INT. SENSUS - DIA 64

Otávio está sentado à mesa de Júnior, o gerente, que


observa uma planilha de resultados. Júnior aparenta
insatisfação.

JÚNIOR
Você ainda tá me devendo os
relatórios de janeiro, Otávio.

OTÁVIO
Eu sei. Eu vou te passar por e-
mail hoje.

JÚNIOR
E dessa vez, vê se preenche todos
os campos. Esses dados são
importantes pra empresa.

OTÁVIO
Eu sei disso.

Júnior vira uma página da planilha.

OTÁVIO
Posso pegar minha comissão?

JÚNIOR
Não. Eu não acabei de falar. Eu
tô muito decepcionado. A sua
produtividade caiu, você perdeu
três clientes antigos... Eu achei
que uma pessoa calejada que nem
você ia se sair melhor que os
outros funcionários. Você não
tava pensando na meta, Otávio?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 61.

OTÁVIO
(irritado)
Claro que sim. Mas é início de
ano, ninguém quer gastar. Ainda
mais com seguro de vida. Se vocês
me dessem outra coisa pra vender,
como seguro de automóvel...

JÚNIOR
Eu não posso te dar essa carteira
até sentir que você tá vestindo a
camisa da empresa.

Otávio respira fundo.

OTÁVIO
Como assim, Júnior? Eu
praticamente pago pra trabalhar.
Você me deu um produto que não
vende. Você sabe disso.

Júnior olha para Otávio por um tempo.

JÚNIOR
Eu vou te dar uma última chance:
vou te botar trabalhando junto
com o Ronald. O garoto é uma
fera, bateu todas as metas do
“Sensus Vida” ano passado. Você
passa o mês que vem trabalhando
aqui com ele e se os seus números
melhorarem, a gente volta a
conversar.

OTÁVIO
Não, brigado. Pra mim já deu.

Júnior e Otávio se encaram por um tempo. Júnior tira o fone


do gancho.

JÚNIOR
Janaína, prepara a comissão do
Otávio.

65 INT. MERCADINHO - DIA 65

Jorge mói um pedaço de carne. Helena se aproxima segurando


uma prancheta.

HELENA
Jorge, eu preciso bater com você
os horários pra escala de
Carnaval.
(Helena olha para a
prancheta)
A Gilda prefere o turno da manhã,
(cont)
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 62.

no domingo. Terça e quarta ela


disse que tanto faz.

JORGE
Mas terça é feriado. A senhora
falou que não ia abrir.

HELENA
Eu mudei de ideia. Quero
aproveitar, já que a maioria dos
lugares não abre.

JORGE
(moendo outro pedaço de
carne)
Não abre porque é feriado...

HELENA
Olha, se você não quiser fazer eu
chamo um ajudante. A Gilda topou.

Jorge encara Helena.

HELENA
Eu combinei que vou dar duas
folgas pra ela.

JORGE
Tá. Não posso nenhum dia à tarde.
Eu já tinha avisado.

Helena anota a informação na prancheta. Jorge continua seu


trabalho, emburrado. SÔNIA, uma cliente de 40 anos, se
aproxima de Helena. Seu filho RODOLFO, 18, empurra o
carrinho atrás dela. Ele parece muito constrangido com a
atitude da mãe.

SÔNIA
Com licença. A senhora é a
gerente, não é?

Helena olha para Sônia. Faz que sim.

SÔNIA
Olha, é o seguinte: eu não sou
muito de reclamar, mas não é a
primeira vez que isso acontece...
Olha só pra essas frutas.

Sônia mostra uma bandeja de peras para Helena. Metade delas


está podre.

SÔNIA
Vocês colocam duas boas e o resto
tudo podre. Não tem condição,
isso é um desrespeito.

Helena olha para a senhora, impaciente.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 63.

HELENA
Essas frutas chegaram ontem.

Helena anda até o setor de frutas, seguida por Sônia.

HELENA
Eu vou achar uma bandeja boa pra
senhora.

SÔNIA
Vamos lá então.

Helena pega um bandeja e vê que as frutas embrulhadas nela


também estão podres.

SÔNIA
Olha só.

Helena olha para as outras bandejas empilhadas. A maior


parte das frutas está estragada. Helena encara os produtos,
perplexa.

SÔNIA
O preço já é alto... Agora vocês
querem empurrar produto vencido.

HELENA
(chocada)
Eu peço desculpas pra senhora.
Não sei o que aconteceu... Essas
frutas tavam boas.

SÔNIA
Esse mercado já foi melhor. O
serviço daqui piorou muito. Desse
jeito você vai perder todos os
clientes.

HELENA
Vamos até o caixa. Eu vou pegar o
telefone da senhora. Assim que
chegar fruta nova eu mando levar
na sua casa.

SÔNIA
Se estiver podre, não precisa se
incomodar.

HELENA
E eu vou dar um desconto nessa
compra de agora. Pelo incômodo.

A cliente parece se satisfazer. Ela chama o filho, que


empurra o carrinho de compras, indo em direção aos caixas
junto com Sônia e Helena.

SÔNIA
Rodolfo, pega minha carteira.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 64.

66 INT. MERCADINHO - DIA - MAIS TARDE 66

Helena termina de colocar as bandejas com as frutas podres


dentro de um grande saco de lixo.

Ela atravessa os corredores em direção à entrada. À medida


que se aproxima, escuta um burburinho.

Vê Gilda e Jorge conversando em voz baixa no caixa. Jorge


gesticula muito e parece nervoso. Gilda está séria e
balança a cabeça, concordando com Jorge.

67 INT. MERCADINHO / CAIXAS - NOITE 67

Otávio abaixa a porta de entrada até a metade. Helena está


trancando o caixa. Pendura as chaves em seu pescoço. Olha
para Otávio.

HELENA
Você não podia ter aguentado mais
um pouco na empresa?

OTÁVIO
Não, não podia.

Gilda se aproxima, já vestida para sair.

GILDA
Dona Helena...

Gilda abre a bolsa e coloca em cima do caixa. Helena


examina o conteúdo da bolsa.

HELENA
Tá certo. Pode ir, Gilda.

Gilda sai do mercado. Otávio abaixa a porta até o fim.

HELENA
Tem que pegar a corrente lá
atrás.

68 INT. MERCADINHO / DEPÓSITO - NOITE 68

Helena coloca em uma pasta os comprovantes de cartão do


dia. Com um cadeado na mão, Otávio pega uma corrente no
chão e começa a procurar outra.

OTÁVIO
Você devia pegar mais leve com os
funcionários. Daqui a pouco eles
tão fazendo macumba pra você sair
do pé.

Helena ignora o comentário. Otávio vê uma corrente caída


perto de uma estante num canto e anda até ela. Otávio pega
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 65.

a corrente. Quando ele a estica, percebe que ela está presa


à parede. Otávio se agacha próximo à estante.

Helena termina de guardar alguns pertences em sua bolsa.

OTÁVIO (O.S.)
Vem ver isso...

Helena se aproxima de Otávio. Ele arrastou um pouco a


estante. Ao redor do aro que prende a corrente à parede
existem algumas marcas que lembram arranhões.

Helena toca a parede. Otávio mostra para Helena a outra


extremidade da corrente.

OTÁVIO
Vou colocar em você pra te
acalmar.

Na ponta da corrente está presa uma espécie de coleira de


metal, repleta de espinhos.

69 INT. APARTAMENTO / QUARTO DE VANESSA - NOITE 69

Paula está sentada sobre a cama de Vanessa. Ao seu lado,


uma pequena mala de viagem está aberta. Vanessa está
retirando algumas roupas de dentro da gaveta. Paula dobra
uma camiseta e a coloca com cuidado na mala. Vanessa se
aproxima e despeja várias meias dentro da mala.

PAULA
(organizando a pilha)
Tem que arrumar bonitinho. Se
você jogar assim, não vai caber
mais nada.

Vanessa tenta ajudar Paula a organizar as roupas.

VANESSA
Que mais eu ponho?

PAULA
Calcinha. Pega duas pra cada dia.

Vanessa abre outra gaveta da cômoda. Paula acha um gorro de


lã entre a pilha de meias.

PAULA
Vanessa! Você quer levar isso
aqui? Tá fazendo o maior calorão.

Paula joga o gorro de volta para Vanessa.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 66.

70 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 70

Otávio mexe no computador. Helena está sentada numa cadeira


ao lado dele. As imagens da câmera de segurança do mercado
aparecem na tela do monitor, mostrando o mercado fechado e
vazio.

OTÁVIO
Acho que agora conectou.

Helena continua observando as imagens. Vanessa sai de seu


quarto e vai falar com Helena.

VANESSA
Mãe, mãe. Terminei a mala. Você
quer olhar?

HELENA
(concentrada na tela)
Eu já vou, filha. Colocou a
escova de dentes?

Vanessa volta correndo para o quarto.

VANESSA (O.S.)
Ô Paula...

OTÁVIO
Helena, você ainda não fez sua
mala. Amanhã eu quero sair cedo.

HELENA
Eu não vou. Eu vou trabalhar no
feriado.

OTÁVIO
Cê tá maluca? Quem é que abre no
Carnaval?

HELENA
Eu abro. Alguém precisa
trabalhar.
(pausa)
Ou você quer ficar no mercado e
eu vou?

OTÁVIO
Eu só não quero ir pra lá
sozinho.

HELENA
Minha mãe não vai estar lá. Ela
já avisou o caseiro, tá tudo
certo.

OTÁVIO
A gente combinou de ir junto, sua
filha tá esperando isso.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 67.

HELENA
Eu explico pra Vanessa.

Otávio olha para Helena, profundamente irritado.

OTÁVIO
Tá bom. Então você fica aí
sozinha.

Otávio entra no quarto e bate a porta.

71 INT. MERCADINHO - DIA 71

Chove forte. Gilda e Jorge colocam panos perto da porta de


entrada para impedir a água de entrar. Helena usa um rodo
para empurrar a água para fora.

Jorge e Helena baixam a porta do mercado. Helena olha para


o lado e vê duas CLIENTES paradas perto dos caixas, com
cestas cheias de produtos.

Uma rajada de vento quebra repentinamente uma das janelas


de vidro do mercado. Um dos corredores fica cheio de cacos
e água escorre pelas paredes.

Helena e Jorge se aproximam dos cacos. Os dois afastam


algumas estantes soltas, entre elas a de biscoitos que foi
colocada para encobrir a mancha.

Eles se assustam. A mancha cresceu muito e está escura.

72 INT. MERCADINHO - DIA 72

A chuva passou. Seu Antunes, arrumado para um evento


noturno, dá algumas batidas na parede da mancha com a mão.
Sente um trecho oco. Raspa um pedaço da parede. O chão fica
sujo com pedaços de parede. Antunes faz uma careta.

ANTUNES
O cheiro tá dose hein. Tem
banheiro lá em cima?

HELENA
Não, é do outro lado.

ANTUNES
Olha, dona Helena, eu não vou
mentir pra senhora. Não sei o que
tem aqui, a gente tem que abrir
pra saber de onde vem o cheiro.

HELENA
Quanto tempo?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 68.

ANTUNES
Eu acho que é rápido, no máximo
uns dois dias. Mas só dá pra
fazer depois do Carnaval. O
Antunes Filho viajou e eu tenho
um compromisso agora.

Helena parece desolada.

HELENA
Eu vou abrir no feriado! Como eu
vou fazer com a parede nesse
estado, seu Antunes?

ANTUNES
Eu coloco uma tela pra isolar.

Antunes se inclina para retirar algo de sua mala.

73 INT./ EXT. CARRO DE HELENA / CASA DE CAMPO - ENTARDECER 73

POV de dentro do carro: o carro se aproxima de uma casa


antiga no meio das árvores.

74 INT. CASA DE CAMPO / SALA - NOITE 74

Otávio e Vanessa entram na casa pela cozinha. Otávio deixa as


chaves sobre o balcão enquanto Vanessa anda até a sala,
repleta de móveis cobertos por lençóis brancos.

Vanessa puxa um lençol que cobre uma poltrona. Se afasta um


pouco por causa da poeira.

OTÁVIO
Deixa que eu faço isso. Sua vó
falou pra tomar cuidado com bicho.

Vanessa larga o lençol no chão, assustada. Otávio sorri e


termina de tirar todos os lençóis.

VANESSA
Eu vou dormir no carro.

OTÁVIO
Que isso, filha...

VANESSA
E se tiver aranha na minha cama?

Otávio senta num dos sofás.

OTÁVIO
A gente faz amizade com ela.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 69.

Vanessa encara Otávio, séria. Senta no outro sofá com


hesitação. Otávio olha para um porta-retrato sobre uma
mesinha de centro. Na foto, uma jovem Inês carrega um bebê.

VANESSA
Aqui não tem nada pra fazer.

Vanessa percebe que Otávio tem o olhar fixo no porta-retrato.


Olha para ele por um tempo.

VANESSA
Você não vai ligar pra mamãe?

OTÁVIO
(sem tirar os olhos da
foto)
Aqui não tem sinal.

Vanessa faz que sim. Continua olhando para Otávio.

VANESSA
A, B, C, D, E, F...

Otávio olha para ela, estranhando.

VANESSA
Você tem que falar “stop”. G, H, I,
J, K, L...

OTÁVIO
Stop?

VANESSA
Lontra. Você tem que falar um bicho
com L.

OTÁVIO
Um bicho com L...

Otávio fica pensativo.

VANESSA
Demorou demais! Libélula! Agora é
você, fala as letras.

OTÁVIO
A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L,
M, N, O, P, Q... Você não tem que
falar?

VANESSA
(rindo)
Eu falo quando eu quiser! Continua.

OTÁVIO
R, S, T, U, V... W, X, Y, Z.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 70.

VANESSA
Stop! País com Z. Zimbábue.

Vanessa levanta e senta no sofá ao lado de Otávio.

OTÁVIO
Não vale! Só tem esse.

VANESSA
Não, tem mais um.

Otávio fica pensativo novamente.

VANESSA
Essa é difícil. Vou deixar você
pensar bastante.

Otávio olha para ela e ri. Vanessa o encara.

OTÁVIO
País. Com Z...

VANESSA
O próximo vai ser com nome de
profissão.

75 INT. APARTAMENTO / SALA - NOITE 75

Helena está sentada no sofá, com o celular na mão. A TV


está ligada no desfile das escolas de samba, mas ela não
assiste. Encara o chão, com o olhar distante.

De uniforme, Paula entra e anda até o sofá.

PAULA
Dona Helena...

Helena olha para ela.

PAULA
Eu tô indo pro quarto. A senhora
quer mais alguma coisa?

HELENA
Não quero nada.

Paula olha para a TV por um tempo. Helena percebe.

PAULA
Tá bem bonito esse carro.

Helena olha para o desfile.

HELENA
Senta um pouco, Paula, pode
assistir.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 71.

Paula senta ao lado de Helena. As duas encaram a TV,


ouvindo o samba-enredo.

PAULA
Eu gosto desse samba.

Helena não reage. Paula nota o celular.

PAULA
Conseguiu falar com o seu Otávio?

HELENA
Ainda não.

Helena olha para Paula.

HELENA
Quando sobrar dinheiro eu ponho
uma TV no seu quarto.

76 INT. BOSQUE JEQUITIBÁS / MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL - DIA 76

O museu está vazio. Otávio e Vanessa olham para um painel que


representa a fauna do litoral norte paulista. Uma praia falsa
está pintada na parede e vários pássaros empalhados estão
dispostos sobre a areia artificial.

Vanessa caminha e passa por uma vitrine onde estão animais da


mata atlântica empalhados.

VANESSA
Eles são de verdade?

OTÁVIO
São. Quando o bicho morre, eles
ressecam o corpo pra não estragar.

Eles andam mais um pouco. Otávio para em frente a uma vitrine


onde há uma grande coruja com um rato estraçalhado na boca.

VANESSA (O.S.)
Pai!

Otávio vira e vê Vanessa em frente a um painel do lado oposto


da sala. Ele se aproxima de Vanessa. Ela está agachada,
olhando para um bezerro com duas cabeças.

O telefone celular de Otávio toca. Ele se afasta de Vanessa


para atender.

OTÁVIO
Alô? Oi.
(pausa)
É que não tem sinal aqui.
(pausa)
Tá tudo bem.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 72.

Otávio caminha pelo museu e observa os outros painéis


enquanto conversa.

OTÁVIO
A casa tá uma bagunça. Mas a gente
nem tem ficado lá.

Otávio continua se afastando, em silêncio.

77 INT. MERCADINHO - DIA 77

Helena atende uma CLIENTE enquanto conversa ao telefone com


Otávio. Ela passa as compras da cliente pelo leitor.

HELENA
Eu achei que ela tinha mandado
limpar. Tá muito suja?
(pausa)
E onde vocês estão agora?
(pausa)
Nossa, mas ela não tá assustada?
(pausa longa)
Tenta ligar mais, é difícil falar
com vocês aí.
(pausa)
Tá. Tchau.

Helena desliga, triste. Encara a cliente.

HELENA
Deu... Vinte e cinco e cinquenta.

78 INT. BOSQUE JEQUITIBÁS / MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL - DIA 78

Otávio guarda seu celular. Encara uma vitrine com um leão por
um tempo. Um SEGURANÇA DO MUSEU, 42 anos, aparece.

SEGURANÇA
Desculpe. É que nós vamos fechar
em quinze minutos.

OTÁVIO
Tudo bem.

O segurança se afasta. Otávio caminha pelo museu.

OTÁVIO
Vanessa?

Otávio olha ao redor. Não há ninguém.

79 EXT. BOSQUE JEQUITIBÁS / FACHADA DO MUSEU - DIA 79

Otávio caminha apressado em direção a uma das avenidas do


bosque. Olha para os lados, procurando a filha.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 73.

OTÁVIO
Vanessa!

Otávio desce a ladeira e caminha em direção a uma trilha mais


estreita.

80 EXT. BOSQUE JEQUITIBÁS / TRILHA FECHADA - DIA 80

Otávio anda pela trilha, em pânico. Olha ao redor do matagal.

Otávio escuta o som grave e ritmado de um tambor. Continua


andando pela trilha, tentando achar a origem do ruído.

81 EXT. BOSQUE JEQUITIBÁS / PRACINHA - DIA 81

Um burburinho e o som de cornetas se associam ao som do


tambor. Otávio vê uma pracinha, onde uma BANDA DE 4 SENHORES
toca uma marchinha de carnaval. CERCA DE 20 PESSOAS, algumas
fantasiadas, seguem a banda, dançando e jogando confetes e
serpentina.

Otávio se embrenha no grupo. Avista Vanessa, que está parada


ao lado de uma fonte. Ela tem um pacote de confete na mão e
celebra junto com o grupo, um pouco desajeitada.

Otávio anda até Vanessa e a agarra pelo braço, afastando-a do


bloco.

OTÁVIO
Poxa, Vanessa!

VANESSA
Ai, pai!

OTÁVIO
Quase me mata de susto!

VANESSA
Deixa eu ver a banda... Pai...

Otávio continua caminhando para fora do bosque.

82 INT. MERCADINHO - DIA 82

Helena está organizando as notas e moedas na gaveta do


caixa. Paula se aproxima de Helena. Usa um uniforme do
mercado e carrega uma vassoura.

HELENA
Terminou de varrer lá no fundo?

PAULA
Terminei.

Paula encara Helena.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 74.

HELENA
Que foi, Paula?

Paula hesita um segundo. Coloca um objeto no balcão. É um


dente grande e pontiagudo, um pouco amarelado.

PAULA
Isso tava no meio da sujeira da
obra.

Helena olha para o objeto, assustada. Paula espera por uma


resposta.

HELENA
Você já passou o pano nos
corredores?

PAULA
Já. Tá tudo limpo.

Helena pega o dente nas mãos.

HELENA
Então pode ir, Paula. Brigada
pela ajuda.

PAULA
A senhora não quer que eu fique
pra ajudar a fechar?

HELENA
Não precisa.

Paula faz que sim e anda até o balcão lateral, retirando o


avental. Jorge se aproxima, vindo dos fundos do mercado.
Ele usa uma fantasia de Carnaval. Helena esconde a presa.

JORGE
Eu tô indo, dona Helena.

HELENA
(séria)
Bom desfile, Jorge.

Ela espera Jorge sair.

83 INT. CASA DE CAMPO / COZINHA - NOITE 83

Otávio e Vanessa estão sentados à mesa. Os dois acabaram de


comer um lanche. Vanessa toma uma taça de sorvete. Mexe,
com uma colher, o sorvete derretido. Otávio toma uma
cerveja. Vanessa está de cara fechada e não olha para
Otávio.

OTÁVIO
Posso tomar um pouco?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 75.

VANESSA
Não.

Vanessa toma uma colherada de sorvete.

OTÁVIO
Amanhã eu vou dar um jeito na
piscina.

Vanessa não responde. Otávio coloca mais cerveja em seu


copo e toma um gole. Percebe que há algo dentro da bebida.
Tira da boca alguns confetes molhados.

OTÁVIO
Esse negócio tá em toda parte...
Acho que engoli um.

Vanessa olha para Otávio e sorri.

VANESSA
Tem mais no seu cabelo.

Vanessa se aproxima do pai e passa a mão no cabelo dele.


Mais algumas bolinhas caem na mesa. Otávio aproveita para
roubar sorvete de Vanessa.

84 INT. MERCADINHO - NOITE 84

Helena afasta a tela branca colocada por Antunes e olha para


a região da parede. O chão está limpo. O buraco na parede
continua igual.

Helena olha para a presa em suas mãos. Ela solta a tela e


vira-se para voltar aos caixas.

Ela vê Ricardo parado no fim do corredor. Ele olha para ela


por um instante e acena, dando oi. Depois, pega uma garrafa
de refrigerante na prateleira.

Helena volta para o caixa, desconfortável. Sussurra para


Gilda.

HELENA
Você viu quem tá aqui?

GILDA
Vi. Eu já falei “oi”.

HELENA
Vai lá perto e fica de olho nele.

Gilda sai do caixa, sem graça com o pedido. Helena senta e


observa, através do monitor, Ricardo caminhando pelos
corredores. Gilda o segue, fingindo estar ajeitando as
mercadorias nas prateleiras. Ele pega algumas latas de
cerveja e se dirige ao caixa.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 76.

Helena registra os produtos. Ricardo a encara. Coloca o


dinheiro sobre o balcão. Gilda ensacola os produtos. Helena
entrega o troco para ele.

RICARDO
A nota fiscal.

Helena se vira e emite um cupom fiscal. Entrega-o para


Ricardo, que encara Helena, pega as sacolas e sai.

HELENA
Gilda, pode bater o caixa.

GILDA
Já?

85 INT. MERCADINHO - NOITE - MAIS TARDE 85

O mercado está vazio e fechado. Helena vem da região dos


caixas, aproxima-se da parede e passa para o outro lado da
tela branca.

Ela olha para a parede. Coloca a blusa sobre o nariz.


Aproxima-se aos poucos. Pisa sobre restos da parede no
chão.

Ela olha para o buraco bem de perto e fica em silêncio.


Consegue ouvir o ruído distante de gotas pingando.

Helena vê que a parede, mais para o fundo, parece ter


tijolos mais antigos e um pouco de terra. Ela pega um rodo
e cutuca com força a parte interna do buraco. Um tijolo
cai. O cheiro fica pior. Ela cutuca mais, mas a parede não
cede ao rodo.

Helena afasta o rosto, enjoada. Ameaça vomitar, mas


consegue se controlar.

86 INT. MERCADINHO / DEPÓSITO - NOITE 86

Helena revira um canto do depósito. Encontra a marreta


velha que Antunes havia encontrado atrás dos freezers.

87 INT. MERCADINHO - NOITE 87

Helena volta a aproximar-se da tela branca, dessa vez


arrastando a marreta.

Ela passa para o outro lado. Prende o ar, aproxima-se da


parede e dá um golpe de marreta nela.

A princípio, nada acontece. Ela dá outro golpe. Mais um


tijolo cede, e Helena vê algo pontiagudo brotando do
concreto.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 77.

Ela aproxima-se e pega o objeto com as mãos. Puxa com


força. A parede cede aos poucos e parte dela cai, fazendo
barulho.

No segundo puxão, Helena também cai para trás com a força


do próprio impulso, e sobre ela cai algo grande, um
esqueleto animal ainda com pedaços de carne podre.

Helena grita. Joga os restos gosmentos para o lado e, suja,


passa para o outro lado da tela branca.

Fica parada ao lado dos freezers, respirando muito


rapidamente. Olha para a própria mão. Ela ainda está
fechada. Helena abre a mão e vê um pedaço de osso podre
entre os dedos.

Vira-se e olha para a tela branca, que tremula um pouco


mesmo com o mercado fechado. Ela puxa a tela, que se
desprende do teto e cai.

Helena olha para o chão.

88 INT. APARTAMENTO / COZINHA - AMANHECER 88

A cozinha está vazia. Ouve-se o som de uma porta abrindo.


Paula entra na cozinha, vestida com seu uniforme. Pega uma
chaleira de dentro do armário e enche de água. Coloca a
chaleira no fogo.

Paula sai da cozinha, ainda sonolenta.

89 INT. APARTAMENTO / SALA - AMANHECER 89

Paula entra na sala. Percebe que o computador está ligado


no circuito do mercado. Ela olha para o corredor que leva
aos quartos. Há um rastro de pegadas de terra e cimento que
se estende até o quarto do casal, que está com a porta
fechada.

90 INT. APARTAMENTO / SALA - DIA 90

Paula limpa o corredor com um esfregão. O telefone toca.


Paula anda até a sala e atende ao telefone sem fio.

PAULA
Alô? Oi, seu Jorge.
(pausa)
Ela ainda não levantou.
(pausa)
Tá. Só um momento.

Paula anda até o quarto de Helena. Bate na porta. Em


seguida abre cuidadosamente a porta. O quarto está
completamente escuro.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 78.

PAULA
Dona Helena? É o seu Jorge no
telefone. Ele tá esperando a
senhora pra abrir o mercado.

Paula fica parada, aguardando a resposta de Helena. Em


seguida, fecha a porta.

PAULA
Ela disse que tá passando mal e
não vai abrir hoje, não. Disse
para o senhor ir pra casa, que
depois ela liga pra combinar.
(pausa)
Tá bom.

Paula desliga o telefone.

91 INT. APARTAMENTO / COZINHA - DIA 91

Paula está sentada à mesa da cozinha, terminando de


almoçar. O radinho de pilha está sobre a mesa. O telefone
sem fio também. O apartamento está silencioso.

Paula toma um gole de água. Olha para o telefone. Pega o


aparelho e disca um número.

92 INT. APARTAMENTO / QUARTO - NOITE 92

Otávio abre a porta do quarto. Helena está deitada na cama,


de lado, coberta pelo edredom. Usa a mesma roupa. As luzes
estão apagadas. Otávio entra no quarto e fecha a porta. Se
aproxima da cama. Vê que Helena está acordada.

OTÁVIO
Ei...

Otávio senta na lateral da cama, ao lado de Helena.

OTÁVIO
Tudo bem?

Helena olha para Otávio. Otávio repara no lençol da cama,


que está manchado de terra.

HELENA
Vocês voltaram...

No meio do lençol, Otávio vê um objeto escuro, com alguns


pelos. É o pedaço de uma garra, ainda com duas unhas
afiadas.

OTÁVIO
O que é isso?
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 79.

HELENA
Tava na parede. Não mostra pra
Vanessa.

Otávio olha para a garra, chocado.

HELENA
Olha só, que sujeira.

93 INT. MERCADINHO / FUNDOS - NOITE 93

Otávio bate na parede da obra com a marreta. Ela se desfaz


ainda mais. Otávio escava com as mãos os fragmentos de
parede e terra. Retira um pedaço de osso revestido por um
resto de carne apodrecida.

Otávio coloca o osso dentro de um saco preto de lixo. Seca


o suor da testa, exausto. Olha para Helena.

OTÁVIO
Eu vou precisar de mais sacos.

Helena procura o pacote de sacos de lixo no chão. Otávio dá


outra marretada na parede. Puxa algo maior e mais pesado.
Helena se aproxima com o saco. Otávio retira o objeto de
dentro da parede.

É um crânio comprido e com dentes afiados, parecido com o


de um lobo, mas com aspecto humanoide. A arcada dentária
está parcialmente completa. Otávio encara o crânio por um
longo tempo. Depois, joga-o no saco.

94 EXT. FACHADA DO MERCADINHO - NOITE 94

A rua está deserta. Otávio e Helena saem do mercado com


sacos pretos. Helena tem nas mãos também uma sacola do
mercado.

Cerca de dez cachorros estão muito perto do mercado,


olhando para eles.

Eles andam até o carro. Os cachorros se aproximam e começam


a rondá-los. Otávio abre o porta-malas. Joga os sacos para
dentro.

Helena e Otávio entram no carro. Otávio dá a partida.

95 EXT. MATAGAL NA SAÍDA DE SÃO PAULO - NOITE 95

O carro entra em um matagal numa área deserta.

O carro desaparece dentro do terreno. Ouve-se o som dos


dois descendo e de Otávio abrindo o porta-malas.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 80.

96 EXT. CLAREIRA - NOITE 96

Helena e Otávio se aproximam da clareira com os sacos e


lanternas nas mãos. Eles deixam os sacos no chão.

Otávio aponta as lanternas para Helena. Helena abre um saco


de sal. Joga o sal sobre a besta.

Depois, abre o álcool e espalha sobre os sacos.

Eles se afastam. Otávio risca um fósforo e atira-o nos


sacos. Eles queimam rapidamente.

Helena e Otávio observam o fogo.

97 INT./ EXT. CARRO / RUAS DE SÃO PAULO - AMANHECER 97

Otávio dirige o carro. Helena está sentada ao lado dele. Os


dois estão em silêncio. O carro pega a Marginal para voltar
para o centro da cidade. Helena liga o rádio do carro. Um
programa de notícias está sendo transmitido.

Montagem com diversas imagens documentais das ruas de São


Paulo: a Marginal; a Avenida Vinte e Três de Maio; a Avenida
São João, a Avenida Angélica. Aos poucos, o dia vai
amanhecendo e PESSOAS saem para o trabalho.

98 INT. APARTAMENTO / QUARTO DO CASAL - DIA 98

O quarto está iluminado pela luz suave da manhã. Helena está


sentada na cama. Ela está de banho tomado e veste um roupão.
A gaveta do criado-mudo está aberta. Helena olha alguns
papéis.

Otávio se aproxima, secando o cabelo com uma toalha. Ele


usa uma calça de moletom e uma camiseta. Senta ao lado de
Helena e acaricia seus cabelos. Helena chora.

OTÁVIO
Vamos tentar dormir um pouco.

Otávio tira os papéis das mãos de Helena e os coloca sobre o


criado-mudo. Helena olha para Otávio. Ela aparenta muito
cansaço.

HELENA
Eu só quero que tudo dê certo.

Os dois se abraçam. Sobre o criado-mudo, os papéis de locação


do imóvel. Dentre eles está o anúncio de locação com as
anotações de Helena, com a foto do antigo mercado em
funcionamento.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 81.

99 INT. APARTAMENTO / SALA - DIA 99

Pode-se ver o mercado de Helena através de cada uma das


câmeras de vigilância. Há diversos CLIENTES caminhando pelos
corredores. Gilda repõe produtos em uma prateleira e Jorge
trabalha no açougue.

Otávio atende um cliente no caixa.

Helena está sentada diante do computador, que está conectado


nas câmeras do mercado. Paula está sentada ao seu lado. Há um
cesto de roupas no chão. Vanessa está no sofá diante da TV.

PAULA
Foi alguma coisa que eu fiz?

HELENA
Não, Paula. Você foi boa. Sempre
vai ter emprego pra gente que nem
você. Eu tô fazendo isso pra não
te demitir.
(pausa)
O que eu pensei em te propor é o
seguinte: a partir desse mês que
tá começando, você passa a vir
três vezes por semana, sem
precisar dormir aqui. Eu teria
que te pagar um pouco menos. A
gente calcularia uma diária
proporcional.

Paula encara Helena pensativa, um pouco triste.

PAULA
Eu não sei... A senhora não pode me
pagar uma diária um pouco maior?
Pra não fazer tanta diferença pra
mim. Ia ficar muito pouco no final
do mês.

HELENA
Eu não tenho como.

Paula respira fundo. Helena olha para ela, aguardando uma


resposta.

PAULA
Eu não posso, dona Helena. Acho que
é melhor eu procurar outro
trabalho. Você quer que eu peça pra
minha tia te indicar alguém?

Helena hesita.

HELENA
Pode ser.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 82.

PAULA
Deixa eu guardar essas roupas.

Paula levanta com o cesto. Vanessa observa Paula sair.

100 INT. MERCADINHO - DIA 100

A parede do mercado está agora reconstruída, ainda sem


acabamento. Diante dela, estão seu Alfredo, Soraia e
Helena.

Seu Alfredo olha a parede por um tempo. Helena o observa,


tensa.

Alfredo se aproxima e dá um soco de leve na parede,


examinando-a. Helena segura seu Alfredo pelo braço.

HELENA
Cuidado, tá fresco.

Seu Alfredo encara Helena, irritado.

SEU ALFREDO
Posso saber o que tinha de errado
aqui?

Pausa.

HELENA
Tava podre.

SEU ALFREDO
(resmungando)
Que porcaria... Muito mal feito.
(para Helena)
Precisava quebrar tudo?

SORAIA
Calma, seu Alfredo.

SEU ALFREDO
(para Helena, muito
irritado)
A senhora me desculpe, eu sei que a
senhora é nova, não tem experiência
ainda... Mas não é assim que as
coisas são feitas. A senhora não
pode sair quebrando tudo. Esse
lugar não é seu.

SORAIA
Gente, vamos tomar um café?

Seu Alfredo respira fundo.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 83.

SEU ALFREDO
Se você não sabe fazer um trabalho
é melhor não mexer.
(para Soraia)
Tô indo, Soraia.

Seu Alfredo sai. Helena se vira e encara Soraia com firmeza.

SORAIA
Ele tá assim de mau humor porque tá
hospedando os netos em casa. Em
geral ele é um doce.
(pausa)
Eu vou levar as notas pro
escritório e te ligo depois.

HELENA
Eu só preciso do meu reembolso.

Soraia faz que sim, despede-se de Helena e sai. Helena olha


para a parede.

101 INT. MERCADINHO / CAIXAS - DIA 101

Helena se aproxima do caixa. Vanessa está sentada no


banquinho, brincando com algumas notas e moedas.

HELENA
Não filha, não brinca com isso. É
sujo.

Helena afasta o dinheiro de Vanessa.

HELENA
Quer me ajudar com as etiquetas?

VANESSA
Quero.

Helena senta ao lado de Vanessa e coloca as etiquetas


diante da filha. Ela pega uma caneta e marca um preço numa
das etiquetas, mostrando para Vanessa como fazer.

102 INT. SHOPPING CENTER / PRAÇA DE ALIMENTAÇÃO - DIA 102

Na praça de alimentação cheia do shopping, Paula recolhe


bandejas sujas de mesa em mesa. Limpa a sujeira deixada em
algumas delas. Ao fundo, outra FAXINEIRA faz o mesmo
serviço. Elas usam uniforme azul escuro.

103 INT. SHOPPING CENTER / TÉRREO - DIA 103

Paula, já arrumada para ir embora, desce as escadas


rolantes. CAIO, 29 anos, vestido de terno, corre até ela.
TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 84.

CAIO
Paula!

Paula vira-se para ele.

CAIO
Sua carteira. Primeiro registro,
hein? Agora você existe.

Paula sorri, pega sua carteira de trabalho das mãos de Caio


e olha para o registro e para sua foto na primeira página.

104 INT. SALÃO DO PROCESSO SELETIVO - DIA 104

Vários HOMENS DE TERNO estão em pé no salão, posicionados


em fileiras. Há um telão na frente da sala e as cadeiras
estão afastadas nas laterais. Otávio está entre os
executivos. O COORDENADOR DA DINÂMICA, 35 anos, fala ao
microfone. Ele caminha entre os homens e fala com um tom
pausado, profundamente dramático. Uma música colocada pelo
coordenador sublinha a cena.

COORDENADOR
O mercado de trabalho está cada
dia mais competitivo. Saiu uma
pesquisa no jornal de ontem que
dizia que, na capital, pra cada
vaga de emprego que surge, tem em
média - em média - cerca de cem
candidatos. Cem candidatos... É
perto do que a gente tem hoje
aqui dentro dessa sala. Uma
verdadeira selva. A questão é:
como se destacar? Como vencer na
selva? Pra encontrar essas
respostas, o homem moderno tem
que retomar contato com as suas
raízes. Com o seu lado primitivo.
Canalizar essa energia animal pra
sua profissão. Vamos lá, vamos
fazer um exercício. Eu quero que
vocês tirem o paletó, afrouxem a
gravata, tirem toda essa
fantasia, essa máscara de homem
da cidade. E entrem em contato
com o seu lado primitivo. O seu
lado macaco. Vamos lá, gente...
Todo mundo ficando bem à vontade.

Pouco a pouco, alguns participantes tiram seus paletós.

COORDENADOR
Muito bem. Agora eu quero ouvir o
grito da selva.

Ouvem-se gritos tímidos em cantos isolados da sala.


TRABALHAR CANSA / ABRIL 2010 / 85.

COORDENADOR
Ih... Tá fraco. Assim vocês não
duram nem um dia na selva. É pra
gritar mesmo, se soltar.
(ele grita)
Isso! Vamos lá! Vocês querem ou
não querem esse emprego? É de
quem gritar mais alto!

O Coordenador continua dando gritos, até que todos os


homens da sala, inclusive Otávio, estão participando do
exercício.

COORDENADOR
Muito bom! Agora é livre, liberou
geral. Podem soltar tudo!

Os gritos ficam mais intensos. Um homem abre a camisa,


arrancando seus botões. Outros pulam e fazem gestos
expansivos. Otávio arranca a gravata. A cena perde o som, e
veem-se apenas as expressões dos executivos.

CLOSE no rosto de Otávio, que tem suas feições desfiguradas


pelo grito que emite.

FIM

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