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Resgatando afetos: uma etnografia sobre o papel da rede solidária de proteção

animal no contexto urbano de Porto Alegre/RS

Leandra Pinto1

Resumo
O presente estudo visa analisar novas moralidades e sensibilidades envolvendo
relações interespecíficas, partindo de um caso etnográfico particular: a rede de apoio aos
animais que residem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob proteção de três
organizações sociais. A partir disso, pretende-se com essa investigação responder ao
seguinte questionamento: em que medida uma etnografia sobre animais comunitários
pode contribuir para compreender o lugar dos animais no universo social? A problemática
norteadora permite refletir sobre as controvérsias em torno do estatuto dos animais
domésticos, especificamente a população de cães e gatos abandonados que vivem nas
ruas, um dos principais focos dos movimentos sociais de defesa animal urbana. Logo, o
presente estudo sugere que as comunidades de animais, como exemplo de novos arranjos
sociais, revelam a necessidade de pensar a família e a sociedade para além dos coletivos
humanos. Bem como, indica a crescente valorização de uma ética em relação aos animais
domésticos promovida pela rede de proteção animal urbana, cujo empenho representa um
“resgate” não apenas dos animais em situação de abandono, mas sobretudo, da sociedade
para a questão animal.

Palavras-chave: antropologia das relações humano-animais; proteção animal;


animais comunitários.

Introdução

A questão animal não tem se caracterizado apenas pela mobilização e


representatividade no campo do ativismo político, mas também configura um tema de
estudo emergente na antropologia. A temática tem recebido atenção, visto que
desestabiliza noções centrais do paradigma científico moderno, desafiando o pesquisador
a enfrentar o dilema da centralidade do homem na investigação social, que distancia

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
natureza e cultura, e por consequência, aparta das ciências sociais a interação do homem
com outras espécies vivas. Assim, sob influência do estruturalismo, bem como da
fenomenologia, a antropologia contemporânea tem expressado a necessidade de rever
algumas premissas da prática científica, tendo em vista produzir conhecimento para além
das divisões conceituais consagradas pela epistemologia naturalista.

Essas abordagens expressam a motivação de novas sínteses teóricas que ao mesmo


tempo em que desequilibram as fronteiras ontológicas, também possibilitam o diálogo
entre áreas do conhecimento localizadas em polos distantes da hierarquia disciplinar. No
caso dos estudos humano-animais esse movimento é aparente, devido ao aspecto
multidisciplinar da temática. Além do debate com outras áreas, a revisão da literatura
aponta a dimensão que as etnografias multiespécies (Kirksey,Hilmreich, 2010) têm
assumido em diversas linhas de pesquisa antropológica. A metodologia segue como norte
uma visão pós-humanista e pós-doméstica interessada em compreender o homem em
relação ao ambiente em que está inserido, assim como, o lugar do animal no âmbito social,
considerando os coletivos implicados por agenciamentos humanos e não-humanos
(Lestel, 2008).

Assim, com o objetivo de contribuir para o debate, em um primeiro momento


pretendo com esse artigo visitar as críticas e contribuições da antropologia das relações
humano-animais, na tentativa de compreender como as relações interespecíficas tem sido
pensadas na atualidade. Partindo disso, tratarei de um caso particular de interação entre
humanos e animais de estimação, a partir da análise do trabalho desenvolvido por uma
rede de proteção animal de Porto Alegre. Trata-se da rede solidária da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, que pode ser considerada como um exemplo específico de
arranjo social envolvendo coletivos de animais em ambientes urbanos, sob proteção de
entidades e/ou de protetores independentes, motivados pela sensibilidade ao problema
social do abandono de animais.

O campo foi escolhido levando-se em consideração que o resgate e manutenção


de animais promovido por protetores independentes ou grupos de defesa animal que
atuam em comunidades tanto públicas, quanto privadas, origina-se do fato de serem
espaços propícios para o descarte de animais. Em algumas situações, esses locais acabam
desenvolvendo estruturas de apoio, como é o caso da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul que abriga três entidades de proteção animal, além de um número indefinido de
voluntários independentes engajados no cuidado com os cães e gatos que foram
descartados nas imediações da Universidade.

Logo, tendo delineado o campo etnográfico, o material de análise deste artigo


resultou da observação participante realizada a partir de 2014 nas comunidades de apoio
aos cães e gatos residentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
especificamente no Campus do Vale, assistidos pelos projetos sociais atuantes. Assim
como, cabe ressaltar que a motivação para a pesquisa é fruto de minha participação como
ativista da rede de proteção animal de Porto Alegre desde 2011. Assim, esse estudo
também pode ser considerado como uma abordagem auto-etnográfica, tema que tem sido
debatido na antropologia desde o interpretativismo de Geertz (1979), e mais
recentemente, a partir das abordagens pós-coloniais dos estudos feministas como o de
Lila Abu-Lughod (1991) e Marilyn Strathern (1988). Assim como, de antropólogos
nativos como Epeli Hau’ofa (1993), em torno da necessidade de produzir um texto
polivocal, que leve em consideração não apenas a perspectiva nativa, mas sua escrita
etnográfica, ou auto-etnográfica, como proponho nesse estudo, a partir da noção definida
por Danahay (1997):

As a form of self-narrative that places the self within a social context. It is both
a method and a text, as in the case of ethnografy. Autoethnography can be done
by either an anthropologist who is doing “home” or “native” ethnography or
by a non-anthropologist/ ethnographer. It can also be done by an
autobriographer who places the story of his or her life within a story of the
social context in whitch it occurs. (Reed-Danahay, 1997, p. 9)

Nesse sentido, tendo em vista considerar aqueles aspectos que vivenciados na


prática, tornam-se fundamentais para o tema desse estudo e que não necessariamente
foram problematizados a partir da etnografia, além da observação participante, entrevistas
não-diretivas e produção do diário de campo realizado durante o levantamento dos dados
etnográficos, esse estudo também se sustenta no meu conhecimento como membro da
rede em defesa animal de Porto Alegre.

Com esse intuito, esse artigo visa compreender o debate em torno do estatuto atual
dos animais de rua. Assim, procurou-se refletir sobre as práticas no âmbito da rede em
defesa dos animais, bem como, suas negociações com as comunidades onde os animais
residem. Portanto, trata-se de considerar o papel das organizações animalistas na
construção do fenômeno pet, como também passa por reconhecer a posição da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul face à realidade de ser um local de descarte
de animais, foco do abandono de tutores irresponsáveis, e sua relação com os projetos
sociais que atuam no resgate e manutenção desses animais.

Por fim, esse estudo também intencionou mapear o processo pelo qual os animais
de rua tornam-se pets, tendo em vista o trabalho de transformação corporal e moral
proporcionado pelos projetos sociais, que preparam os animais resgatados, com a
finalidade de remover seus aspectos "selvagens", produzindo uma nova condição, na qual
o animal seja visto como um pet pelos candidatos à adoção. Assim, identifico como
desdobramento desse estudo a transformação que se evidencia na passagem do animal de
rua para o pet, tendo como foco o papel da rede de proteção animal como etapa
intermediária e fundamental no processo de passagem de um estatuto a outro.

Nesse sentido, destaca-se a teia de relações e negociações presentes nesse


processo, que inicia com o abandono de animais nas imediações da universidade, vistos
como objetos que podem ser descartados, para em seguida ser intermediada pela
responsabilidade e ética pública (Varner, 2000) das redes sociotécnicas envolvidas com
a manutenção e fortalecimento dessas comunidades, nas quais os animais são vistos como
sujeitos morais que precisam ser respeitados e assistidos pelos cuidados e afeto humano.
Para enfim ser concluído, em caso do processo ter sido bem-sucedido, através da adoção
do animal comunitário por uma família responsável, que deverá oferecer e garantir os
cuidados com o animal, que continuará sob proteção do projeto, por meio do contrato de
adoção assinado em comum acordo entre o adotante e o projeto social, ambos
responsáveis pela proteção permanente do animal adotado.

Os animais na antropologia

O interesse pelas interações entre humanos e outras espécies de animais sempre


esteve presente no pensamento científico. No entanto, as considerações modificaram-se
muito, de acordo com a época e corrente que dedicou-se ao tema. Tendo em vista a
humanidade como bem-maior, tanto a filosofia clássica quanto as correntes científicas
modernas trataram os animais a partir de um olhar utilitarista, ao considerar que exercem
determinadas funções em benefício dos humanos.
Adotada por grande parte dos intelectuais modernos, a visão utilitarista considera
que os animais são recursos naturais disponíveis e passíveis de controle nas mais diversas
atividades, expostos às condições de vida e finalidade que escolhemos, que por sua vez,
responde à demanda do contexto em que estamos inseridos. O enfoque funcionalista é
característico da ontologia naturalista, visto que considera a primazia da agência humana
frente outras espécies animais. O restante do reino animal é definido por sua falta de
intencionalidade, destinado à uma vida subordinada aos instintos naturais, em oposição à
humanidade marcada por sua essência dual, formada simultaneamente por processos
orgânicos e culturais.

Entre as principais considerações sobre esse debate, destaca-se a análise de


Descola (2002) ao considerar o dilema entre natureza e cultura como tema central do
estruturalismo francês. A tensão em torno dos dois domínios permanece durante toda a
obra de Levi-Strauss, podendo ser encontrada nos estudos sobre o parentesco, como as
considerações sobre o tabu do incesto e o problema do totemismo.

Assim, como crítica ao modelo utilitarista, a antropologia estrutural de Levi-


Strauss considerou a questão animal sob o ponto de vista de sua qualidade
representacional. Logo, em “Le Totémisme Aujourd'hui” (1962), o autor conclui que os
animais não são necessários apenas à produção da vida material como a tese utilitarista
supunha, mas também servem de modelo para classificação, refletindo na criação das
categorias simbólicas do pensamento humano.

A partir do momento em que desmistificou a crença no pensamento selvagem,


demonstrando que a ciência é fruto das mesmas estruturas mentais que permite o
desenvolvimento do pensamento mítico, Levi-Strauss abriu caminho para refletir sobre
outras alteridades. Ao reconhecer a natureza orgânica dos processos sociais, o autor
demonstrou as contradições da ciência moderna, apontando o caráter etnocêntrico de suas
proposições. Assim, como decorrência de uma crise do paradigma moderno, surge na
antropologia contemporânea uma geração de intelectuais interessados em reagregar as
tradicionais oposições.

Um bom exemplo desse movimento pode ser verificado na contestação por parte
da etnologia no que diz respeito à universalidade da classificação que diferencia humanos
de outras espécies de animais e vegetais. Essa proposta pode ser encontrada no
perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro (2004). Uma abordagem semelhante é
encontrada nos estudos de Descola (2004) sobre os modos de relação com os animais em
sociedades animistas. As concepções apresentadas atentam para o fato de que muitas
sociedades não compactuam com a divisão ontológica entre humanos e animais. Por isso,
o empenho em compreender como outras culturas pensam e se relacionam com as
espécies vivas de seu meio, e a partir disso significam suas cosmo-ontologias, acabam
por revelar as antíteses da visão naturalista, caracterizada pelo ponto de vista da
“excepcionalidade da espécie humana”, como observou Schafer (2009).

Considerando que a paisagem social não pode ser separada do ambiente orgânico,
o olhar se direciona para os limites entre humanidade e animalidade, colocando em pauta
se a noção de agência pode ser considerada como natureza intrínseca de nossa espécie,
ou então uma condição passível de ser acessada por outras formas de vida. Assim,
partindo das contribuições da antropologia fenomenológica na compreensão de que o
social é construído a partir da experiência de vida, pela percepção e interação com o meio
ambiente (Merleau-Ponty, 1969), Ingold propõe pensarmos em um Ambiente Sem
Objetos (ASO). Na tentativa de desconstruir as noções clássicas, o autor prioriza o termo
"coisas" em lugar de "objetos", partindo da premissa que a agência não é atributo
exclusivo da nossa espécie. Além disso, levando em consideração o “caráter fluido do
processo vital” (2012, p. 39), Ingold sustenta a necessidade de reaproximar a investigação
social dos processos naturais, por meio de uma “educação da atenção” (2010, p. 19).

Sob outro ângulo, a partir da etnografia com os Runa no Equador, o antropólogo


Eduardo Kohn (2007) sugere realizar uma antropologia da vida. Nesse sentido,
reconhecer a vida como categoria central de pensamento desvia o dilema entre
animalidade e humanidade. Uma tentativa de superar as dicotomias humano/não-humano
mente/corpo, forma/substância, pode ser conferida na proposta de Descola (1996) que
mantem a lógica dualista, mas numa nova configuração, assumindo a preferência pelos
conceitos de “fisicalidade” e “interioridade”, que de acordo com o autor seriam noções
universais.

Para Latour (2004, 2012), superar o congelamento dos domínios constitui o


principal desafio da antropologia contemporânea. Esse parece ser o objetivo da Teoria do
Ator-rede, que sugere pensarmos num projeto científico capaz de dar conta da dimensão
híbrida dos fenômenos sociais, compreendidos a partir da síntese entre agenciamentos
humanos e não-humanos. Também cabe ressaltar a crítica de Latour (2011) à
epistemologia que considera o desenvolvimento científico apartado da política e a ciência
como processo de purificação, visto que o conhecimento científico não está isento de
relações de poder. Nesse caso, trata-se de compreender que as fronteiras disciplinares são
construções sociais, e que as categorias analíticas não refletem essências puras, mas são
ferramentas conceituais à serviço dos modelos cognitivos.

Quando definimos taxonomias e isolamos disciplinas para desenvolvermos


conhecimento especializado, muitas vezes perdemos de vista a interlocução com outras
áreas, e com isso, a possibilidade de acessar novas perspectivas de análise. No entanto,
não se trata de afirmar que não devam existir disciplinas ou categorias, mas a proposta de
uma antropologia simétrica busca investir no aspecto multidisciplinar e híbrido das
configurações sociais. Para Latour, ao invés de partir de um social coerente para explicar
sua manifestação, o que importa é seguir as redes de controvérsias e encontrar as
associações que configuram essas redes.

Assim, considerando que a questão animal suscita questionamentos no campo da


teoria antropológica, visto que tensiona o paradigma moderno que instaura a humanidade
como valor excepcional da nossa espécie, frente às evidências da crescente incorporação
dos animais no cotidiano social, o estado da arte em estudos humano-animais remete à
necessidade de pensar a sociedade e a investigação antropológica para além dos coletivos
humanos.

A questão animal como problema social

Alguns estudos tem destacado o impacto que vem ocorrendo na paisagem urbana
das sociedades contemporâneas devido à inclusão de animais de estimação no convívio
social. Entre as principais transformações evidenciadas está a crescente familiarização de
animais de companhia, considerada por alguns antropólogos como uma espécie de
"filhotização”. A crescente incorporação de animais de estimação em ambientes de
sociabilidade, tem despertado o interesse das ciências sociais, motivando a produção e
divulgação de pesquisas sobre o universo pet.

Essas investigações tem enfatizado o desenvolvimento da indústria pet, que já


assume uma posição de destaque no mercado de bens de consumo. Donna Haraway
(2007) analisa a dimensão do fenômeno nos Estados Unidos, enquanto Jean-Pierre Digard
(2009) indica a mesma situação na França. Isso pode ser percebido pelo crescimento da
demanda por especializações veterinárias e pet shops, assim como, pelo aumento de locais
que aderiram ao conceito pet friendly. 2 Essas abordagens demonstram que a tendência
em antropomorfizar animais de estimação tem resultado em um amplo sistema de
procedimentos médicos e estéticos, que define a diversidade de intervenções às quais
esses animais, em sua maioria cães e gatos, são submetidos cotidianamente, como bem
apontado por Segata (2012), em pesquisa sobre cães com depressão.

Nessa mesma direção, encontramos o estudo de Kulick (2009) que analisou as


estratégias do mercado das grandes marcas de ração do mercado industrial e as ações de
penalização por parte do poder público frente à obesidade de cães de companhia, vista
como doença desencadeada pela negligência de seus tutores. Para o autor, o que está em
jogo são novas moralidades envolvendo relações interespecíficas capazes de “dissolver
as fronteiras entre as espécies”. Isso pode ser notado pela visibilidade que a questão
animal tem assumido na esfera político-midiática, demonstrando uma crescente simpatia
da opinião pública pela causa animal.

Em comparação com as sociedades complexas, a antropologia também tem


produzido investigações pertinentes sobre relações humano-animais em populações
indígenas. Levando em consideração o ponto de vista relacional da interação
homem/meio, Philippe Erikson (2012) analisa os xerimbabos, a partir da etnografia com
os Matis que vivem no sudoeste do Estado do Amazonas. Outra abordagem pode ser
conferida na proposta de Felipe Vander Velden (2010) sobre o processo de familiarização
de animais, principalmente de cães pelos Karitiana, grupo indígena que habita o Estado
de Rondônia. Ambos analisam o processo de adoção dos filhotes de presas capturadas na
caça, ou de animais abandonados no âmbito das aldeias que são incorporados pelos
grupos indígenas, que assumem uma relação de adoção com os animais resgatados.

O problema que surge quando pensamos em animais abandonados é compreender


onde se localizam na classificação habitual sobre animais domésticos. Assim, vemos que
o quesito proximidade/distância em relação aos seres humanos tem sido o ponto de vista
adotado. De acordo com isso, são denominados selvagens ou silvestres aqueles animais
com quem mantemos uma significativa distância, enquanto que os animais domésticos se
caracterizam pela sua proximidade e inclusão no cotidiano social. A partir dessa

2
São considerados Pet Friendly, os estabelecimentos comerciais ou espaços públicos que permitem a
entrada e permanência de animais de estimação no interior do local.
classificação preliminar, encontramos ainda mais duas subdivisões: uma que diz respeito
à fauna selvagem como aquela composta por animais nativos e animais exóticos, e a
segunda diferenciação ocorre no grupo doméstico pela distinção entre animais de criação
e animais de estimação.

Se reconhecemos que os animais de criação se denominam dessa forma pois de


fato são criados pela indústria pecuária e de experimentação animal, a categoria dos
animais de estimação não se sustenta, visto que supõe que todos os animais sejam
realmente estimados, algo que de fato não se confirma na realidade. Se pensarmos que
essa expressão é muitas vezes substituída por animais de companhia, a questão se
mantém, pois sugere que todos os animais sejam acompanhados, fato que pode ser
igualmente contestado.

O problema dessa classificação remete ao problema em torno da noção de


domesticidade, que por consequência estipula que selvagens são aquelas espécies de
animais que vivem independentemente dos cuidados humanos, enquanto que os
domesticados são vistos como nossa responsabilidade, pela qual temos o dever de provê-
los com os devidos cuidados. Assim, a questão em torno dos animais abandonados reflete
a dificuldade de pensar aqueles indivíduos considerados domésticos que não se
encontram em relações de proteção. Essa realidade pode ser observada nos centros
urbanos, onde cães e gatos sobrevivem independentes dos cuidados de tutores humanos,
despertando indagações éticas sobre o bem-estar desses animais.

Considerando isso, os estudos sobre relações humano-animais tem demonstrado


um olhar diferenciado para os processos de domesticação. Nesse intuito, cabe ressaltar a
visão pós-doméstica de Bulliet (2005) que aponta para uma incoerência na relação das
sociedades contemporâneas com seus animais domésticos. Em uma outra abordagem,
Digard (2012) atenta que a domesticação trata-se de um processo diverso e contínuo, que
pode ser interrompido a qualquer instante, acarretando o retorno dos animais à vida
selvagem. Assim como, trata-se de um processo de mão dupla, por meio do qual humanos
e animais estão sendo igualmente domesticados.

Em diálogo com esses autores, as pesquisas do grupo de pesquisa Espelho Animal


tem demonstrado a necessidade de pensar o dilema humano da relação com outras
espécies, apontando o contraste entre a domesticação para o consumo e a domesticação
para o afeto. Podemos observar esse conflito nos estudos de Lewgoy e Sordi (2012) sobre
a disputa entre defensores e críticos do consumo de carne no Brasil. Assim como, parece
propício pensar nas novas sensibilidades que estão sendo incorporadas na agenda política
por meio da articulação de organizações sociais, órgãos governamentais e opinião pública
em favor da causa animal, seja pela perspectiva abolicionista da abordagem de Sordi
(2011), ou pelo cunho bem-estarista como dissertou Pastori (2012).

No caso dos cães, a questão é ainda mais complexa, ao constatarmos sua longa
história de convivência com seres humanos em processos de domesticação, que remonta
a 12.000 anos (Piette, 2002). Em primeiro lugar vemos que representa a maior
proximidade dos seres humanos entre as espécies animais, sendo reconhecido como o
animal de estimação por excelência, com algumas exceções onde não são condicionados
ao convívio íntimo com humanos. Assim como, trata-se da espécie que atrai uma
mobilização maior por parte da proteção animal urbana. No entanto, cães abandonados,
também são foco de preocupação, sendo considerados como um problema crônico dos
centros urbanos. Em comparação com outros indivíduos ou espécies de animais que
representam ameaça ao equilíbrio ecológico e/ou social, os animais de rua não ocupam o
mesmo status dos pets, integrando a lista sob vigília constante dos órgãos de vigilância
sanitária.

Visto que na mesma espécie podemos encontrar animais que estão sendo
constantemente domesticados, ao passo que outros estão sobrevivendo sem proteção
humana, precisamos considerar uma outra dimensão no interior da classificação, que
represente a distinção entre animais de estimação e animais de rua. Essa diferenciação é
bem perceptível e se define pelo estatuto do animal. A primeira identifica uma tutoria, na
qual o animal se encontra sob responsabilidade de seres humanos, enquanto que a segunda
indica aqueles animais que vivem sem cuidados permanentes. Como consequência da
ausência de proteção, os animais que se encontram nas ruas podem representar um retorno
ao comportamento selvagem, suscitando reações de indiferença, descaso, rejeição,
crueldade, e inclusive ações de extermínio.

Nesse sentido, percebe-se que o estatuto do animal não está automaticamente


determinado de acordo com sua espécie. Assim, cães e gatos, vistos como animais
domésticos, podem ou não assumir o estatuto pet. Como também, pode ocorrer o oposto
quando se encontram em situação de rua e assumem outra posição, mais próxima de
espécies vistas como pragas, como é o caso de animais indesejados em ambientes urbanos
e animais exóticos invasores.
Além disso, compreende-se que os animais de rua transitam entre um polo
negativo e um polo positivo dependendo do contexto analisado. De um lado mobilizam a
categoria de vítima do abandono, provocando o mal-estar por termos responsabilidade no
processo de domesticação da espécie e estarmos rompendo um compromisso que
deveríamos honrar. No entanto, a realidade é que não há humanos suficientes interessados
em se responsabilizar pelos animais que vivem nas ruas, que considerados como vetores
de zoonoses, assumem o status de animal-risco, sobrevivendo com a ajuda das entidades
protetoras, empenhadas em políticas de esterilização, abrigagem e guarda responsável via
adoção.

Visto que são domésticos, porém não se encontram no âmbito da casa como pets,
os animais de rua parecem expressar um bom exemplo do problema verificado em casos
onde as definições tradicionais não se aplicam. Assim, independente da diversidade de
casos verificados em campo onde atuam redes de apoio aos animais abandonados, aquilo
que une todas as formas nas quais o fenômeno se manifesta é o fato de serem alvo de
relações de proteção, cujo foco é a inserção do animal no cotidiano familiar.

Tendo isso em vista, Osório (2011) e Mattos (2012) guiaram suas etnografias para
a relevância das ações de grupos de proteção animal em contextos urbanos, com o intuito
de compreender práticas que refletem a sensibilidade frente ao abandono e maus-tratos
de animais. A relevância desses estudos se confirmam pelo destaque que a questão animal
tem expressado na atualidade, integrando de forma expressiva a agenda social das
sociedades contemporâneas. Isso pode ser compreendido como fruto de novas
sensibilidades em relação aos animais, que tem contribuído para a construção de marcos
legislativos, cujos princípios servem de base para o planejamento e execução de políticas
públicas e ações da sociedade civil voltadas à proteção animal.

Um exemplo disso são as redes solidárias de apoio aos animais abandonados, que
podem ser pensadas como uma nova forma de moralidade, na qual os animais começam
a ser inseridos nas reflexões sobre normatização do espaço público. Assim como,
iniciativas em benefício dos animais tornam-se cada vez mais organizadas, expressando
uma economia moral (Fassin, 2009) específica da proteção animal urbana, cujo principal
objetivo é o resgate da sociedade para a questão animal.
O caso da rede de proteção animal da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS)

Situando-se em uma grande área na divisa de Porto Alegre e Viamão, com acesso
liberado pela entrada principal e caracterizado pela existência de várias estradas internas
que servem para o tráfego entre as unidades, o Campus do Vale é visto como um lugar
atrativo para o descarte de animais. Por outro lado, também representa um local
privilegiado para observar a dinâmica de uma rede de proteção aos animais domésticos
em contextos urbanos, visto que que mobiliza três entidades protecionistas: Bichos do
Campus, com atuação desde 1996, Patas Dadas, com início em 2008, e Animal é Tri, a
partir de 2011.

Os três grupos são formados por alunos, funcionários, professores e terceirizados


conveniados com a universidade, assim como, de voluntários externos que participam
esporadicamente, em diversas funções relacionadas tanto no cuidado direto com os
animais, quanto na manutenção dos projetos. Entre as principais ações desenvolvidas
pelos projetos sociais estão o resgate e cuidado por meio de assistência veterinária,
esterilização, alimentação, adestramento e adoção dos animais que são mantidos pelos
integrantes dos projetos locais.

O grupo Bichos do Campus é o mais antigo com atuação no Campus do vale desde
1996. Quando a questão animal ainda não tinha a visibilidade atual, teve origem a
Associação Dos Animais do Campus. Os animais mantidos pelo Bichos do Campus
vivem soltos no Campus do Vale, identificados pelo nome do animal e do projeto na
coleira, e com pontos fixos para alimentação e abrigo, com exceção daqueles que estão
em clínicas veterinárias, casas de passagem ou lares temporários para tratamento,
esterilização ou aguardando adoção.

O Projeto Patas Dadas foi criado em 2008 e é responsável pelo canil que está
localizado no Campus do Vale, onde vivem em torno de 70 cães que são assistidos pelos
voluntários em duas escalas diárias, nos sete dias da semana. O projeto destaca-se pela
mobilização de mais de 90 voluntários que atuam tanto no cuidado com os animais,
quanto nas campanhas para adoção nas mídias e redes sociais, eventos e brechós em
benefício dos animais mantidos pelo projeto. Alguns animais do Patas Dadas também
vivem soltos no Campus do Vale, e, portanto não há como identificar de qual projeto é o
animal, até verificar sua identificação.
Durante o trabalho de campo, ainda foram identificados outros pontos onde
residem animais comunitários no Campus do Vale, como é o caso dos cães que vivem na
Casa do Estudante do Campus do Vale, que são atendidos pelos estudantes moradores da
casa e que recebem apoio esporádico do Projeto Animal é Tri. Como também há cães
residentes no Colégio de aplicação da UFRGS que estão sob responsabilidade do Bichos
do Campus e que desenvolve um projeto permanente de educação para a questão animal
na escola. Além desses casos, ainda é preciso considerar a permissão para que moradores
que residem no interior do campus tenham animais de estimação, assim como, pela
existência de animais que circulam em uma ampla dimensão territorial do campus, tendo
em vista que, com exceção do canil, onde estão a maioria dos animais mantidos pelo
projeto Patas Dadas, o restante dos animais vivem soltos no espaço acadêmico. Contudo,
como estes casos estão relacionados com os projetos já citados, serão considerados como
parte da rede de manutenção de animais da UFRGS, coordenada e mantida pelos projetos
de proteção animal que atuam no local.

O Projeto Animal é Tri teve origem em 2011, e atua na manutenção da


comunidade de gatos residente do Campus Central da UFRGS. Porém, o fato de ser
integrante do projeto resultou na decisão de focar a pesquisa nos grupos que atuam no
Campus do Vale, deixando fora do estudo o caso da comunidade de gatos residente do
Campus Central sob responsabilidade do projeto do qual faço parte. No entanto, ressalto
que minha experiência pessoal desenvolvida com a proteção animal foi fundamental para
o depertar de questões centrais sobre o tema de pesquisa proponho, cujo empenho
investigativo tem se caracterizado por um contínuo exercício de transformar o familiar
em exótico.

O primeiro passo para entender o fenômeno das redes de apoio aos animais
consiste em identificar que a origem desse processo está no abandono dos animais. Antes
mesmo de traçar o percurso que leva um animal de rua a ser visto como um pet, é preciso
destacar que esse animal foi vítima de abandono. Isso se faz necessário, visto que muitas
pessoas acreditam que os animais que vivem nas ruas são animais independentes, e por
esse motivo sabem sobreviver sozinhos, não dependendo da ajuda humana, ou então que
não são passíveis de domesticação. Essa constatação contribui para o abandono de
animais, que muitas vezes por problemas comportamentais, e pelo alto custo de um
tratamento com especialistas, são abandonados à sua própria sorte.
Esse fato é ainda mais evidente, quando pensamos que muitos animais que vivem
em cativeiro classificados como selvagens, precisam de um longo período de adaptação
para poderem ser introduzidos novamente em seu habitat natural. Assim, a maioria dos
animais que são abandonados nas grandes cidades, não sobrevivem, pois acostumados
com suas necessidades atendidas pelos humanos, não conseguem se alimentar sozinhos e
acabam padecendo por causa da fome, sede e frio. Após a consideração de que os animais
que estão nas ruas são vítimas do abandono humano, em seguida é preciso compreender
o processo pelo qual um animal de rua torna-se um animal de estimação.

O corpo de um cão ou de um gato, animais de companhia mais comuns, expressa


quais as condições em que esse animal se encontra. Assim como os indivíduos excluídos
socialmente, que vivem nas ruas, e levam sua história de vida marcada no corpo, pelos
sinais evidentes da marginalidade, que sensibilizam alguns, no entanto, afastam a grande
maioria de pessoas que consideram perigoso o contato com moradores de rua, os cães e
gatos residentes das ruas de nossas cidades, também carregam no corpo os sinais do
abandono e dos maus-tratos. Por esse motivo, logo percebemos quando estamos na
presença de um animal de rua, ele é imediatamente identificado devido à sua aparência
física.

De acordo com os interlocutores desse estudo, quando um animal desconhecido


surge e se estabelece em algum local específico, a primeira reação é observar se está bem
cuidado ou não. O primeiro indício é o uso de coleiras que demonstram imediatamente
que o animal já recebeu alguma assistência, porém não comprova se ele possui um
responsável. O fato de estar com coleira pode ter diversas causas. Ele pode ter fugido do
local onde era mantido e acabou se perdendo, ou ainda, pode ter sido abandonado com a
coleira para que não seja confundido com um animal de rua, aumentando suas chances de
ser resgatado e adotado. Mesmo com a ajuda de grupos nas redes sociais destinados à
divulgação de animais perdidos, muitas vezes não há como descobrir às origens do animal
perambulante.

Um exame mais detalhado de sua aparência talvez possa indicar algumas


evidências sobre sua história. Se o animal está magro e com aspecto de fraqueza é sinal
que já faz algum tempo que vive nas ruas e sua aproximação e permanência em uma
comunidade pode estar relacionado ao fato de não estar em condições de continuar sua
rotina de sobrevivência. Nesse caso, vai depender da comunidade aceitá-lo e oferecer os
cuidados necessários para que se recupere e possa continuar na rua, ou com sorte, ser
adotado. Essa é uma das origens das redes de apoio aos animais, que muitas vezes surge
por uma iniciativa de assistência oferecida à um animal de rua, que torna-se membro
dessa comunidade, e passa a receber frequentemente os cuidados necessários por parte de
pessoas sensíveis à situação de abandono dos animais.

Por outro lado, caso o animal esteja bem cuidado, pode ocorrer de ser adotado
rapidamente, principalmente se for de raça, ou então o animal após o resgate passa a ser
divulgado para adoção. Atualmente com as redes sociais, o processo de adoção de animais
resgatados das ruas ficou mais fácil e acessível. Na rede social facebook existem milhares
de grupos e páginas destinados à adoção de animais, cujos membros em sua maioria, são
protetores independentes, integrantes de organizações sociais de defesa animal,
simpatizantes da causa animal, ou então candidatos que buscam adoção de um animal de
estimação.

Após o resgate, em muitos casos os animais precisam ser isolados dos demais, por
motivo de feralidade, ou então por apresentar alguma patologia contagiosa, que demanda
um cuidado individualizado ao animal, assim como, uma adoção especial consciente de
suas futuras necessidades. No primeiro caso, constatamos que longe de serem animais
domésticos por uma natureza inata, a domesticação é fruto de um contínuo “sistema
domesticatório” (Digard, 2012) que pode ser rompida, caso os animais sigam livres da
interação com os humanos. Nesse sentido, destaca-se o fato da domesticação ser um fato
social, que classifica a relação de distanciamento e proximidade que estabelecemos com
as espécies no meio em que vivemos. O segundo caso retoma à questão em torno da
correspondência dos diagnósticos humanos em animais, como por exemplo o caso da
Aids felina, que tem recebido atenção não apenas da medicina veterinária, mas de toda a
rede em defesa dos animais, que vem buscando orientações sobre como detectar e tratar
as principais patologias causadoras de óbitos em animais de estimação.

Em sequência do resgate, para evitar que os animais sejam vistos como animais
de rua, a primeira medida tomada pelos projetos que atuam com os animais comunitários
da UFRGS quando resgatam ou encontram um animal abandonado é identificá-lo com
um nome e coleira, para que seja incorporado ao grupo e registrado como integrante de
um dos projetos. A partir de então esse animal será acompanhado até o fim de sua vida.
Essa medida demonstra a necessidade de dar uma identidade ao animal, que muitas vezes
também recebe algumas características para compor seu perfil nos anúncios de adoção
publicados nas redes sociais. O fato de receber uma identidade, confere ao animal o
estatuto pet, que a partir de então possui uma rotina e um status definidos pelos projeto
até sua adoção ser concretizada, quando sua responsabilidade passa ao tutor adotante,
onde receberá uma nova posição no seio familiar. Logo, observamos a importância do
processo de construção do animal como sujeito pessoalizado, para que configure como
um pet em potencial.

O processo de passagem do animal de rua ao animal de estimação é realizado


seguindo todas as etapas necessárias, no sentido de garantir que os animais resgatados
passem pelo período de transformação do corpo, e muitas vezes também do
comportamento, para então serem vistos como animais de companhia pelos candidatos à
adoção. Essa transformação é altamente ritualizada, a partir de diversos procedimentos
estéticos, como banho e tosa, assim como pela medicalização de anti-parasitários que são
administrados imediatamente após o resgate dos animais. Esses procedimentos são
seguidos de tratamento clínico quando há necessidade, vacinação e esterilização
obrigatória, respeitando-se a idade permitida que depende da espécie animal. A
esterilização e vacinação pode ser realizada pelo projeto responsável ou negociado como
condição para confirmar uma adoção, caso o adotante se comprometa.

Por último, esses animais serão fotografados e incluídos em anúncios de adoção


em diversos meios virtuais, e a partir daí, iniciará seu processo de adoção resposável, por
meio de questionário de adoção para conhecer melhor a rotina do candidato à adoção, e,
caso a adoção seja confirmada, o animal será levado em sua casa mediante contrato de
adoção que garante a proteção permanente do animal adotado. Esses critérios são
flexíveis, de acordo com o grupo e situação específica, mas em geral, é seguido um
protocolo de adoção para garantir a guarda responsável do animal adotado. Logo,
podemos considerar que a transformação do animal de rua em pet, que muitas vezes passa
pela condição como animais comunitários é um processo complexo e gradual, que não
garante que o animal consiga ser adotado, porém é etapa fundamental para que o sucesso
da adoção ocorra.

Esse processo pode resultar em dois fins diferentes para os animais assistidos
pelos projetos sociais que foram analisados. O fim esperado e comemorado é quando a
adoção é concretizada, tendo em vista que o trabalho desenvolvido com os animais
abandonados é visto inicialmente pelos protetores como um meio para atingir o fim que
se efetiva na adoção. Caso esse fim não se realize, ainda resta a possibilidade de pensar
na comunidade de animais como um ambiente onde os animais resgatados e incorporados
na coletividade local, possam permanecer vivendo suas vidas da melhor forma possível,
livres de fome, sede e frio, assim como de sofrimento ou descaso, enquanto viverem.

A etnografia sobre comunidades de animais demonstra que o acesso ao estatuto


de animais de estimação realizado através da adoção, é promovido principalmente por
protetores independentes ou entidades protecionistas. No caso dos animais que estão
sendo mantidos individualmente em ações esporádicas, como muitas vezes não há
estrutura previamente negociada para a manutenção, pode ocasionar resistência e
desconfiança na comunidade. Além disso, em muitos casos os animais são integrados de
tal forma que a adoção não é um objetivo a ser perseguido e os animais continuam a viver
na rua permanentemente mantidos por seus cuidadores.3

Por fim, o caso analisado sugere que para acessar o estatuto de animal de
estimação não basta receber os devidos cuidados, mas é preciso estar inserido em um
ambiente familiar, recebendo o afeto necessário à condição do animal como membro da
família. E isso, para os interlocutores desse estudo, só é possível quando o animal se
encontra na segurança de uma adoção responsável. Logo, as redes de apoio não se
empenham apenas na manutenção dos animais sob sua responsabilidade, mas também se
esforçam para que os animais que tiveram a chance de serem adotados, permaneçam sob
proteção permanente, utilizando-se para isso de ferramentas de controle como o contrato
de adoção, que é assinado pelo adotante e protetor responsável, tendo em vista garantir o
bem-estar do animal.

Isso demonstra que essas ações não significam apenas uma proteção para o animal
de rua, mas também configuram mecanismos de regulação das moralidades envolvendo
animais domésticos em contextos urbanos, constituindo-se ao mesmo tempo como um
resgate dos animais para a vida no ambiente íntimo do lar, assim como dos humanos,
visto que sensibilizam a sociedade para a responsabilidade com a população de animais
desamparados.

No que diz respeito às relações estabelecidas com as redes sociotécnicas


protecionistas que atuam no Campus do Vale da UFRGS, constatou-se que a atual
condição dos projetos sociais precisam ser constantemente negociada, tendo em vista que

3
Isso ocorre na Casa do Estudante do Campus do Vale, na qual alguns estudantes mantém cerca
de 8 cães que não possuem responsável definido, no entanto também não se encontram para
adoção.
muitos indivíduos não gostam de animais, e fazem questão de evitar a convivência com
eles. Assim, foi possível detectar consideráveis disputas no campo biopolítico (Foucault,
2008) entre os integrantes do projeto e os funcionários e representantes das instituições
envolvidas com o problema do abandono dos animais de rua nas vias públicas, como é o
caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ser o locus dessa problemática,
assim como, pelo apoio da Secretaria Especial dos Direitos Animais, no que concerne às
negociações e alianças pela permanência e manutenção das comunidades de animais no
espaço universitário.

Isso demonstra que apesar dos animais estarem sendo abandonados no âmbito da
universidade, toda a responsabilidade por sua manutenção tem sido da rede atuante no
Campus do Vale. Apesar dos dois projetos foco deste estudo configurarem ações de
extensão vinculadas à universidade, as negociações em torno do bem-estar desse animais
parte sempre da iniciativa dos grupos protetores, que com muito empenho conseguiram
desenvolver suas ações no interior da universidade, demonstrando o conflito e o jogo de
forças necessário para estabelecer a normatividade do espaço público quando se relaciona
com a questão animal. (Blanc, 2003)

Quanto à relação dos projetos sociais com a comunidade acadêmica geral, a


questão é mais sutil. Os animais não são bem-vindos nas imediações dos estabelecimentos
comerciais alimentícios e também são foco de muitas reclamações devido ao fato do canil
do Patas Dadas estar instalado atrás do prédio de salas de aulas, representando muito
barulho por causa dos latidos dos cães, o que perturba muitas pessoas, e que por esse
motivo, posicionam-se contrárias aos projetos sociais que atuam no Campus do Vale. No
entanto, também observamos que os animais são constantemente vistos nas salas de aula,
e considerados por muitos como mascotes, mesmo que seja ignorado pela maioria, a
existência dos projetos de proteção animal que atuam no local, tendo em vista que não há
nenhuma placa ou banner informando que existem comunidades de animais incorporadas
e assistidas por esses projetos no Campus do Vale. Desse modo, nesse momento da
pesquisa, não há como indicar a dimensão das relações entre os animais e a comunidade
acadêmica ampliada, porém, é um aspecto considerado e que, por isso, será foco de um
empenho etnográfico posterior.

Considerações Finais
Ao mesmo tempo em que observamos, por um lado, que existe todo um esforço
concentrado no convívio desejável com os animais de estimação, no entanto, por outro
lado, ainda há muito preconceito na adoção e na interação com os animais abandonados
nas ruas, que vistos como pragas, e por esse motivo, desamparados à sua própria sorte,
acabam tornando-se vítimas da crueldade humana. A conotação que os animais de rua
carregam é de serem animais indesejados, visto que perturbam a ordem pública, levando
em consideração que deveriam estar no âmbito privado, sob responsabilidade de um tutor
humano.

Assim, verifica-se que o drama social característico do dilema brasileiro apontado


por Da Matta (1997) entre mundo da casa e mundo da rua, também é evidenciado nas
relações com os animais que vivem nas ruas dos centros urbanos, a partir das práticas de
maus-tratos cometidos contra os cães, gatos e cavalos, que desmoralizados por sua
condição, acabam sendo vistos como verdadeiros estigmas das sociedades
contemporâneas. Devido à isso, muitos defendem a proibição da alimentação de animais
de rua, ou então, aqueles mais radicais se empenham no extermínio desses animais, como
uma tentativa de higienização urbana.

Nesse sentido, destaca-se a iniciativa da rede em defesa dos animais de Porto


alegre, que apesar de sua diversidade, congrega os mesmos objetivos, que é garantir os
direitos e bem-estar dos animais vítimas das mais surpreendentes formas de opressão,
exploração e violência que são perpetuadas diariamente contra os animais abandonados.
A partir do trabalho muitas vezes voluntário durante o tempo livre, ou então assumido em
jornada exclusiva no cuidado e defesa dos animais de rua, os protetores de animais,
engajados em políticas de solidariedade, tem mobilizado diversos atores sociais em uma
rede sociotécnica complexa que, tem despertado a atenção de outros setores sociais para
a cidadania dos animais domésticos, concretizando uma ampla rede de pessoas que
trabalham para que os animais resgatados das ruas possam ter a oportunidade de um dia
serem adotados.

Assim, o caso analisado demonstra que a tendência à familiarização de animais


de estimação extrapolou o limite do pet como animal de raça, objeto de consumo da classe
média urbana, mas tem se manifestado como uma nova relação entre humanos e seus pets,
marcada pela ênfase nos processos de proteção e adoção de animais abandonados,
incorporados ao cotidiano da cidade por intermediação de protetores independentes e
organizações de defesa animal.
Tendo em vista que a condição para ser um animal de estimação não é dada, e sim,
construída socialmente, o caso analisado sugere pensar que as redes de apoio aos animais
abandonados operam um verdadeiro resgate de afetos, desde o momento que assumem a
iniciativa de integrar o animal na comunidade, passando pelo processo de criação de um
perfil que será divulgado nas redes sociais, até chegar ao objetivo principal que está na
adoção. Assim, podemos concluir que essas relações não tem sido significativas apenas
por oferecer os cuidados necessários aos animais de rua, mas principalmente por
reestabelecer a responsabilidade dos humanos pelos animais abandonados, visando sua
inserção no meio social.

Além disso, a análise também sugere que ações de proteção animal, como
observado no caso da rede de apoio examinada, podem ser pensadas como reação ao
sofrimento social causado pelos inúmeros abandonos que são frequentemente efetuados
em locais de descarte, apresentando-se como realidade insuportável para alguns dos
interlocutores desse estudo, que resolveram transformar a compaixão pelos animais de
rua, em ações concretas em defesa desses animais. Isso pode ser evidenciado a partir do
relato de origem do projeto Patas Dadas, que ganhou força após a ocorrência de um
massacre de mascotes que viviam no campus, sob os cuidados de alguns estudantes e
professores.

Por isso, pensar que o cuidado do outro, é um cuidado de si parece pertinente


quando se trata de protetores de animais. Isso se evidencia quando percebemos que as
ações protecionistas não são fruto apenas da compaixão com o sofrimento vivenciado
pelos animais, mas porque a empatia faz com que alguns de nós ao vê-los em sofrimento,
sofra na mesma proporção.

Por outro lado, vemos que o antropocentrismo não está apenas nos alicerces da
ciência moderna, mas também se manifesta no discurso dos movimentos ecológicos
(Hurn, 2012), que culpabilizam a espécie humana pelo sofrimento dos animais e ao
defender uma posição ética nas relações interespecíficas, inevitavelmente confirmam a
centralidade da condição humana. Assim, o enfoque na espécie humana talvez não se
expressa apenas na visão daqueles que defendem que a vida dos seres humanos vale mais
que a vida de outros seres vivos, como no caso do paradigma moderno, mas de pensar
que o valor atribuído à vida das outras espécies parte do reconhecimento da vida humana
como condição única, e a partir da qual a própria reflexão se faz possível.
Por esse ângulo, reconhecer que a rede de apoio aos animais reproduz uma
ideologia antropocêntrica ao cobrar da sociedade a responsabilidade sobre os animais de
rua, não implica desconsiderar a crítica ao especismo (Noske, 1997), liderada pelo
movimento abolicionista, ao denunciar a desmedida dominação do reino animal
promovida pelos humanos. Pois compreender que a morte de animais é inevitável, tratado
como fato comum e justificado por inúmeros argumentos, não abstrai o mal-estar de tirar
uma vida ou ter empatia por aquele que a perde. Assim, antes de propor explicações de
como é possível uma equivalência de agenciamentos humanos e não-humanos, pensar a
alteridade interespecífica obriga-nos a retomar as inquietações sobre a percepção de uma
vida consciente refletindo sobre sua própria condição de existência.

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