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Leandra Pinto1
Resumo
O presente estudo visa analisar novas moralidades e sensibilidades envolvendo
relações interespecíficas, partindo de um caso etnográfico particular: a rede de apoio aos
animais que residem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob proteção de três
organizações sociais. A partir disso, pretende-se com essa investigação responder ao
seguinte questionamento: em que medida uma etnografia sobre animais comunitários
pode contribuir para compreender o lugar dos animais no universo social? A problemática
norteadora permite refletir sobre as controvérsias em torno do estatuto dos animais
domésticos, especificamente a população de cães e gatos abandonados que vivem nas
ruas, um dos principais focos dos movimentos sociais de defesa animal urbana. Logo, o
presente estudo sugere que as comunidades de animais, como exemplo de novos arranjos
sociais, revelam a necessidade de pensar a família e a sociedade para além dos coletivos
humanos. Bem como, indica a crescente valorização de uma ética em relação aos animais
domésticos promovida pela rede de proteção animal urbana, cujo empenho representa um
“resgate” não apenas dos animais em situação de abandono, mas sobretudo, da sociedade
para a questão animal.
Introdução
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
natureza e cultura, e por consequência, aparta das ciências sociais a interação do homem
com outras espécies vivas. Assim, sob influência do estruturalismo, bem como da
fenomenologia, a antropologia contemporânea tem expressado a necessidade de rever
algumas premissas da prática científica, tendo em vista produzir conhecimento para além
das divisões conceituais consagradas pela epistemologia naturalista.
As a form of self-narrative that places the self within a social context. It is both
a method and a text, as in the case of ethnografy. Autoethnography can be done
by either an anthropologist who is doing “home” or “native” ethnography or
by a non-anthropologist/ ethnographer. It can also be done by an
autobriographer who places the story of his or her life within a story of the
social context in whitch it occurs. (Reed-Danahay, 1997, p. 9)
Com esse intuito, esse artigo visa compreender o debate em torno do estatuto atual
dos animais de rua. Assim, procurou-se refletir sobre as práticas no âmbito da rede em
defesa dos animais, bem como, suas negociações com as comunidades onde os animais
residem. Portanto, trata-se de considerar o papel das organizações animalistas na
construção do fenômeno pet, como também passa por reconhecer a posição da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul face à realidade de ser um local de descarte
de animais, foco do abandono de tutores irresponsáveis, e sua relação com os projetos
sociais que atuam no resgate e manutenção desses animais.
Por fim, esse estudo também intencionou mapear o processo pelo qual os animais
de rua tornam-se pets, tendo em vista o trabalho de transformação corporal e moral
proporcionado pelos projetos sociais, que preparam os animais resgatados, com a
finalidade de remover seus aspectos "selvagens", produzindo uma nova condição, na qual
o animal seja visto como um pet pelos candidatos à adoção. Assim, identifico como
desdobramento desse estudo a transformação que se evidencia na passagem do animal de
rua para o pet, tendo como foco o papel da rede de proteção animal como etapa
intermediária e fundamental no processo de passagem de um estatuto a outro.
Os animais na antropologia
Um bom exemplo desse movimento pode ser verificado na contestação por parte
da etnologia no que diz respeito à universalidade da classificação que diferencia humanos
de outras espécies de animais e vegetais. Essa proposta pode ser encontrada no
perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro (2004). Uma abordagem semelhante é
encontrada nos estudos de Descola (2004) sobre os modos de relação com os animais em
sociedades animistas. As concepções apresentadas atentam para o fato de que muitas
sociedades não compactuam com a divisão ontológica entre humanos e animais. Por isso,
o empenho em compreender como outras culturas pensam e se relacionam com as
espécies vivas de seu meio, e a partir disso significam suas cosmo-ontologias, acabam
por revelar as antíteses da visão naturalista, caracterizada pelo ponto de vista da
“excepcionalidade da espécie humana”, como observou Schafer (2009).
Considerando que a paisagem social não pode ser separada do ambiente orgânico,
o olhar se direciona para os limites entre humanidade e animalidade, colocando em pauta
se a noção de agência pode ser considerada como natureza intrínseca de nossa espécie,
ou então uma condição passível de ser acessada por outras formas de vida. Assim,
partindo das contribuições da antropologia fenomenológica na compreensão de que o
social é construído a partir da experiência de vida, pela percepção e interação com o meio
ambiente (Merleau-Ponty, 1969), Ingold propõe pensarmos em um Ambiente Sem
Objetos (ASO). Na tentativa de desconstruir as noções clássicas, o autor prioriza o termo
"coisas" em lugar de "objetos", partindo da premissa que a agência não é atributo
exclusivo da nossa espécie. Além disso, levando em consideração o “caráter fluido do
processo vital” (2012, p. 39), Ingold sustenta a necessidade de reaproximar a investigação
social dos processos naturais, por meio de uma “educação da atenção” (2010, p. 19).
Alguns estudos tem destacado o impacto que vem ocorrendo na paisagem urbana
das sociedades contemporâneas devido à inclusão de animais de estimação no convívio
social. Entre as principais transformações evidenciadas está a crescente familiarização de
animais de companhia, considerada por alguns antropólogos como uma espécie de
"filhotização”. A crescente incorporação de animais de estimação em ambientes de
sociabilidade, tem despertado o interesse das ciências sociais, motivando a produção e
divulgação de pesquisas sobre o universo pet.
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São considerados Pet Friendly, os estabelecimentos comerciais ou espaços públicos que permitem a
entrada e permanência de animais de estimação no interior do local.
classificação preliminar, encontramos ainda mais duas subdivisões: uma que diz respeito
à fauna selvagem como aquela composta por animais nativos e animais exóticos, e a
segunda diferenciação ocorre no grupo doméstico pela distinção entre animais de criação
e animais de estimação.
No caso dos cães, a questão é ainda mais complexa, ao constatarmos sua longa
história de convivência com seres humanos em processos de domesticação, que remonta
a 12.000 anos (Piette, 2002). Em primeiro lugar vemos que representa a maior
proximidade dos seres humanos entre as espécies animais, sendo reconhecido como o
animal de estimação por excelência, com algumas exceções onde não são condicionados
ao convívio íntimo com humanos. Assim como, trata-se da espécie que atrai uma
mobilização maior por parte da proteção animal urbana. No entanto, cães abandonados,
também são foco de preocupação, sendo considerados como um problema crônico dos
centros urbanos. Em comparação com outros indivíduos ou espécies de animais que
representam ameaça ao equilíbrio ecológico e/ou social, os animais de rua não ocupam o
mesmo status dos pets, integrando a lista sob vigília constante dos órgãos de vigilância
sanitária.
Visto que na mesma espécie podemos encontrar animais que estão sendo
constantemente domesticados, ao passo que outros estão sobrevivendo sem proteção
humana, precisamos considerar uma outra dimensão no interior da classificação, que
represente a distinção entre animais de estimação e animais de rua. Essa diferenciação é
bem perceptível e se define pelo estatuto do animal. A primeira identifica uma tutoria, na
qual o animal se encontra sob responsabilidade de seres humanos, enquanto que a segunda
indica aqueles animais que vivem sem cuidados permanentes. Como consequência da
ausência de proteção, os animais que se encontram nas ruas podem representar um retorno
ao comportamento selvagem, suscitando reações de indiferença, descaso, rejeição,
crueldade, e inclusive ações de extermínio.
Visto que são domésticos, porém não se encontram no âmbito da casa como pets,
os animais de rua parecem expressar um bom exemplo do problema verificado em casos
onde as definições tradicionais não se aplicam. Assim, independente da diversidade de
casos verificados em campo onde atuam redes de apoio aos animais abandonados, aquilo
que une todas as formas nas quais o fenômeno se manifesta é o fato de serem alvo de
relações de proteção, cujo foco é a inserção do animal no cotidiano familiar.
Tendo isso em vista, Osório (2011) e Mattos (2012) guiaram suas etnografias para
a relevância das ações de grupos de proteção animal em contextos urbanos, com o intuito
de compreender práticas que refletem a sensibilidade frente ao abandono e maus-tratos
de animais. A relevância desses estudos se confirmam pelo destaque que a questão animal
tem expressado na atualidade, integrando de forma expressiva a agenda social das
sociedades contemporâneas. Isso pode ser compreendido como fruto de novas
sensibilidades em relação aos animais, que tem contribuído para a construção de marcos
legislativos, cujos princípios servem de base para o planejamento e execução de políticas
públicas e ações da sociedade civil voltadas à proteção animal.
Um exemplo disso são as redes solidárias de apoio aos animais abandonados, que
podem ser pensadas como uma nova forma de moralidade, na qual os animais começam
a ser inseridos nas reflexões sobre normatização do espaço público. Assim como,
iniciativas em benefício dos animais tornam-se cada vez mais organizadas, expressando
uma economia moral (Fassin, 2009) específica da proteção animal urbana, cujo principal
objetivo é o resgate da sociedade para a questão animal.
O caso da rede de proteção animal da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS)
Situando-se em uma grande área na divisa de Porto Alegre e Viamão, com acesso
liberado pela entrada principal e caracterizado pela existência de várias estradas internas
que servem para o tráfego entre as unidades, o Campus do Vale é visto como um lugar
atrativo para o descarte de animais. Por outro lado, também representa um local
privilegiado para observar a dinâmica de uma rede de proteção aos animais domésticos
em contextos urbanos, visto que que mobiliza três entidades protecionistas: Bichos do
Campus, com atuação desde 1996, Patas Dadas, com início em 2008, e Animal é Tri, a
partir de 2011.
O grupo Bichos do Campus é o mais antigo com atuação no Campus do vale desde
1996. Quando a questão animal ainda não tinha a visibilidade atual, teve origem a
Associação Dos Animais do Campus. Os animais mantidos pelo Bichos do Campus
vivem soltos no Campus do Vale, identificados pelo nome do animal e do projeto na
coleira, e com pontos fixos para alimentação e abrigo, com exceção daqueles que estão
em clínicas veterinárias, casas de passagem ou lares temporários para tratamento,
esterilização ou aguardando adoção.
O Projeto Patas Dadas foi criado em 2008 e é responsável pelo canil que está
localizado no Campus do Vale, onde vivem em torno de 70 cães que são assistidos pelos
voluntários em duas escalas diárias, nos sete dias da semana. O projeto destaca-se pela
mobilização de mais de 90 voluntários que atuam tanto no cuidado com os animais,
quanto nas campanhas para adoção nas mídias e redes sociais, eventos e brechós em
benefício dos animais mantidos pelo projeto. Alguns animais do Patas Dadas também
vivem soltos no Campus do Vale, e, portanto não há como identificar de qual projeto é o
animal, até verificar sua identificação.
Durante o trabalho de campo, ainda foram identificados outros pontos onde
residem animais comunitários no Campus do Vale, como é o caso dos cães que vivem na
Casa do Estudante do Campus do Vale, que são atendidos pelos estudantes moradores da
casa e que recebem apoio esporádico do Projeto Animal é Tri. Como também há cães
residentes no Colégio de aplicação da UFRGS que estão sob responsabilidade do Bichos
do Campus e que desenvolve um projeto permanente de educação para a questão animal
na escola. Além desses casos, ainda é preciso considerar a permissão para que moradores
que residem no interior do campus tenham animais de estimação, assim como, pela
existência de animais que circulam em uma ampla dimensão territorial do campus, tendo
em vista que, com exceção do canil, onde estão a maioria dos animais mantidos pelo
projeto Patas Dadas, o restante dos animais vivem soltos no espaço acadêmico. Contudo,
como estes casos estão relacionados com os projetos já citados, serão considerados como
parte da rede de manutenção de animais da UFRGS, coordenada e mantida pelos projetos
de proteção animal que atuam no local.
O primeiro passo para entender o fenômeno das redes de apoio aos animais
consiste em identificar que a origem desse processo está no abandono dos animais. Antes
mesmo de traçar o percurso que leva um animal de rua a ser visto como um pet, é preciso
destacar que esse animal foi vítima de abandono. Isso se faz necessário, visto que muitas
pessoas acreditam que os animais que vivem nas ruas são animais independentes, e por
esse motivo sabem sobreviver sozinhos, não dependendo da ajuda humana, ou então que
não são passíveis de domesticação. Essa constatação contribui para o abandono de
animais, que muitas vezes por problemas comportamentais, e pelo alto custo de um
tratamento com especialistas, são abandonados à sua própria sorte.
Esse fato é ainda mais evidente, quando pensamos que muitos animais que vivem
em cativeiro classificados como selvagens, precisam de um longo período de adaptação
para poderem ser introduzidos novamente em seu habitat natural. Assim, a maioria dos
animais que são abandonados nas grandes cidades, não sobrevivem, pois acostumados
com suas necessidades atendidas pelos humanos, não conseguem se alimentar sozinhos e
acabam padecendo por causa da fome, sede e frio. Após a consideração de que os animais
que estão nas ruas são vítimas do abandono humano, em seguida é preciso compreender
o processo pelo qual um animal de rua torna-se um animal de estimação.
Por outro lado, caso o animal esteja bem cuidado, pode ocorrer de ser adotado
rapidamente, principalmente se for de raça, ou então o animal após o resgate passa a ser
divulgado para adoção. Atualmente com as redes sociais, o processo de adoção de animais
resgatados das ruas ficou mais fácil e acessível. Na rede social facebook existem milhares
de grupos e páginas destinados à adoção de animais, cujos membros em sua maioria, são
protetores independentes, integrantes de organizações sociais de defesa animal,
simpatizantes da causa animal, ou então candidatos que buscam adoção de um animal de
estimação.
Após o resgate, em muitos casos os animais precisam ser isolados dos demais, por
motivo de feralidade, ou então por apresentar alguma patologia contagiosa, que demanda
um cuidado individualizado ao animal, assim como, uma adoção especial consciente de
suas futuras necessidades. No primeiro caso, constatamos que longe de serem animais
domésticos por uma natureza inata, a domesticação é fruto de um contínuo “sistema
domesticatório” (Digard, 2012) que pode ser rompida, caso os animais sigam livres da
interação com os humanos. Nesse sentido, destaca-se o fato da domesticação ser um fato
social, que classifica a relação de distanciamento e proximidade que estabelecemos com
as espécies no meio em que vivemos. O segundo caso retoma à questão em torno da
correspondência dos diagnósticos humanos em animais, como por exemplo o caso da
Aids felina, que tem recebido atenção não apenas da medicina veterinária, mas de toda a
rede em defesa dos animais, que vem buscando orientações sobre como detectar e tratar
as principais patologias causadoras de óbitos em animais de estimação.
Em sequência do resgate, para evitar que os animais sejam vistos como animais
de rua, a primeira medida tomada pelos projetos que atuam com os animais comunitários
da UFRGS quando resgatam ou encontram um animal abandonado é identificá-lo com
um nome e coleira, para que seja incorporado ao grupo e registrado como integrante de
um dos projetos. A partir de então esse animal será acompanhado até o fim de sua vida.
Essa medida demonstra a necessidade de dar uma identidade ao animal, que muitas vezes
também recebe algumas características para compor seu perfil nos anúncios de adoção
publicados nas redes sociais. O fato de receber uma identidade, confere ao animal o
estatuto pet, que a partir de então possui uma rotina e um status definidos pelos projeto
até sua adoção ser concretizada, quando sua responsabilidade passa ao tutor adotante,
onde receberá uma nova posição no seio familiar. Logo, observamos a importância do
processo de construção do animal como sujeito pessoalizado, para que configure como
um pet em potencial.
Esse processo pode resultar em dois fins diferentes para os animais assistidos
pelos projetos sociais que foram analisados. O fim esperado e comemorado é quando a
adoção é concretizada, tendo em vista que o trabalho desenvolvido com os animais
abandonados é visto inicialmente pelos protetores como um meio para atingir o fim que
se efetiva na adoção. Caso esse fim não se realize, ainda resta a possibilidade de pensar
na comunidade de animais como um ambiente onde os animais resgatados e incorporados
na coletividade local, possam permanecer vivendo suas vidas da melhor forma possível,
livres de fome, sede e frio, assim como de sofrimento ou descaso, enquanto viverem.
Por fim, o caso analisado sugere que para acessar o estatuto de animal de
estimação não basta receber os devidos cuidados, mas é preciso estar inserido em um
ambiente familiar, recebendo o afeto necessário à condição do animal como membro da
família. E isso, para os interlocutores desse estudo, só é possível quando o animal se
encontra na segurança de uma adoção responsável. Logo, as redes de apoio não se
empenham apenas na manutenção dos animais sob sua responsabilidade, mas também se
esforçam para que os animais que tiveram a chance de serem adotados, permaneçam sob
proteção permanente, utilizando-se para isso de ferramentas de controle como o contrato
de adoção, que é assinado pelo adotante e protetor responsável, tendo em vista garantir o
bem-estar do animal.
Isso demonstra que essas ações não significam apenas uma proteção para o animal
de rua, mas também configuram mecanismos de regulação das moralidades envolvendo
animais domésticos em contextos urbanos, constituindo-se ao mesmo tempo como um
resgate dos animais para a vida no ambiente íntimo do lar, assim como dos humanos,
visto que sensibilizam a sociedade para a responsabilidade com a população de animais
desamparados.
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Isso ocorre na Casa do Estudante do Campus do Vale, na qual alguns estudantes mantém cerca
de 8 cães que não possuem responsável definido, no entanto também não se encontram para
adoção.
muitos indivíduos não gostam de animais, e fazem questão de evitar a convivência com
eles. Assim, foi possível detectar consideráveis disputas no campo biopolítico (Foucault,
2008) entre os integrantes do projeto e os funcionários e representantes das instituições
envolvidas com o problema do abandono dos animais de rua nas vias públicas, como é o
caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ser o locus dessa problemática,
assim como, pelo apoio da Secretaria Especial dos Direitos Animais, no que concerne às
negociações e alianças pela permanência e manutenção das comunidades de animais no
espaço universitário.
Isso demonstra que apesar dos animais estarem sendo abandonados no âmbito da
universidade, toda a responsabilidade por sua manutenção tem sido da rede atuante no
Campus do Vale. Apesar dos dois projetos foco deste estudo configurarem ações de
extensão vinculadas à universidade, as negociações em torno do bem-estar desse animais
parte sempre da iniciativa dos grupos protetores, que com muito empenho conseguiram
desenvolver suas ações no interior da universidade, demonstrando o conflito e o jogo de
forças necessário para estabelecer a normatividade do espaço público quando se relaciona
com a questão animal. (Blanc, 2003)
Considerações Finais
Ao mesmo tempo em que observamos, por um lado, que existe todo um esforço
concentrado no convívio desejável com os animais de estimação, no entanto, por outro
lado, ainda há muito preconceito na adoção e na interação com os animais abandonados
nas ruas, que vistos como pragas, e por esse motivo, desamparados à sua própria sorte,
acabam tornando-se vítimas da crueldade humana. A conotação que os animais de rua
carregam é de serem animais indesejados, visto que perturbam a ordem pública, levando
em consideração que deveriam estar no âmbito privado, sob responsabilidade de um tutor
humano.
Além disso, a análise também sugere que ações de proteção animal, como
observado no caso da rede de apoio examinada, podem ser pensadas como reação ao
sofrimento social causado pelos inúmeros abandonos que são frequentemente efetuados
em locais de descarte, apresentando-se como realidade insuportável para alguns dos
interlocutores desse estudo, que resolveram transformar a compaixão pelos animais de
rua, em ações concretas em defesa desses animais. Isso pode ser evidenciado a partir do
relato de origem do projeto Patas Dadas, que ganhou força após a ocorrência de um
massacre de mascotes que viviam no campus, sob os cuidados de alguns estudantes e
professores.
Por outro lado, vemos que o antropocentrismo não está apenas nos alicerces da
ciência moderna, mas também se manifesta no discurso dos movimentos ecológicos
(Hurn, 2012), que culpabilizam a espécie humana pelo sofrimento dos animais e ao
defender uma posição ética nas relações interespecíficas, inevitavelmente confirmam a
centralidade da condição humana. Assim, o enfoque na espécie humana talvez não se
expressa apenas na visão daqueles que defendem que a vida dos seres humanos vale mais
que a vida de outros seres vivos, como no caso do paradigma moderno, mas de pensar
que o valor atribuído à vida das outras espécies parte do reconhecimento da vida humana
como condição única, e a partir da qual a própria reflexão se faz possível.
Por esse ângulo, reconhecer que a rede de apoio aos animais reproduz uma
ideologia antropocêntrica ao cobrar da sociedade a responsabilidade sobre os animais de
rua, não implica desconsiderar a crítica ao especismo (Noske, 1997), liderada pelo
movimento abolicionista, ao denunciar a desmedida dominação do reino animal
promovida pelos humanos. Pois compreender que a morte de animais é inevitável, tratado
como fato comum e justificado por inúmeros argumentos, não abstrai o mal-estar de tirar
uma vida ou ter empatia por aquele que a perde. Assim, antes de propor explicações de
como é possível uma equivalência de agenciamentos humanos e não-humanos, pensar a
alteridade interespecífica obriga-nos a retomar as inquietações sobre a percepção de uma
vida consciente refletindo sobre sua própria condição de existência.
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