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LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA: EXPERIÊNCIAS NO

APOIO A CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Angela Belém de Carvalho Brasil


Brasil, Angela Belém de Carvalho.
Ludoterapia Centrada na Criança: experiências no apoio a
crianças com Transtorno do Espectro Autista

Angela Belém de Carvalho Brasil. - João Pessoa, 2022.


23 f.

Monografia (Curso de Especialização)


Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ
LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA: EXPERIÊNCIAS NO
APOIO A CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

ANGELA BELÉM DE CARVALHO BRASIL

Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Psicologia Humanista e


Abordagem Centrada na Pessoa do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ,
como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista, obtendo.
Conceito 10 (dez)

Data: 29/06/2022

( X ) Aprovado
( ) Reprovado

AVALIADOR

_____________________________________
Prof. Dr. Flávio Lúcio Almeida Lima
(Orientador - UFCG)
1

LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA: EXPERIÊNCIAS NO


APOIO A CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Angela Belém de Carvalho Brasil

RESUMO

O presente artigo teve por finalidade analisar a aplicação da Ludoterapia Centrada na


Criança no acompanhamento psicoterápico de crianças diagnosticadas com Transtorno do
Espectro Autista (TEA). Como surge normalmente na infância, a ludoterapia, imbuída dos
princípios da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) – aceitação incondicional, congruência
e empatia –, proporciona ao terapeuta uma excelente ferramenta para estabelecer o vínculo
com a criança, a fim de que ela possa, por meio dos recursos ludoterápicos, externar seus
sentimentos e emoções. Logo, o presente trabalho teve como objetivo principal discutir a
Ludoterapia Centrada na Criança (LCC) como proposta psicoterápica promotora do
crescimento emocional de crianças com TEA. No intuito de responder à problemática acerca
da forma como a psicoterapia de base centrada na pessoa contribui para a construção da
subjetividade de crianças autistas, o presente trabalho adotou o método heurístico,
caracterizando-se como um relato de experiência, pois descreveu o acompanhamento de
três crianças diagnosticadas com TEA no contexto da psicoterapia desenvolvida no
consultório. As crianças, através das suas vivências, puderam libertar sentimentos e
emoções que com palavras seriam difíceis de externar, como abraços ao final das sessões,
diminuição da agressividade, diminuição da ecolalia, melhora na interação com adultos e no
desempenho escolar.

Palavras-chave: Autismo. Abordagem Centrada na Pessoa. Ludoterapia. Criança.


Graduada em Psicologia pela URCAMP-RS. Pós-graduanda em Psicologia Humanista e Abordagem Centrada
na Pessoa pela UNIPÊ-PB. Atua como Psicóloga Clínica. Email: angelabelem.psi@hotmail.com
2

ABSTRACT

This article aimed to analyze the application of Child-Centered Play Therapy in the psychotherapeutic
follow-up of children diagnosed with Autism Spectrum Disorder (ASD). As it normally appears in
childhood, play therapy, imbued with the principles of the Person-Centered Approach (PCA) –
unconditional acceptance, congruence and empathy –, provides the therapist with an excellent tool
to establish a bond with the child, so that he can, through ludotherapy resources, express their
feelings and emotions. Therefore, the present work had as main objective to discuss Child-Centered
Play Therapy (LCC) as a psychotherapeutic proposal that promotes the emotional growth of children
with ASD. In order to answer the problem about the way in which the person-centered
psychotherapy contributes to the construction of the subjectivity of autistic children, the present
work adopted the heuristic method, characterized as an experience report, as it described the follow-
up of three children diagnosed with ASD in the context of psychotherapy developed in the office. The
children, through their experiences, were able to release feelings and emotions that would be
difficult to express with words, such as hugs at the end of the sessions, decreased aggression,
decreased echolalia, improved interaction with adults and school performance.

Keywords: Autism. Person Centered Approach. Play Therapy. Child.


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INTRODUÇÃO

A prática da clínica em psicologia sempre foi marcada por grandes desafios.


Desde o surgimento da psicologia clínica como área reconhecida de atuação
profissional, em 1896, com a abertura da primeira clínica de psicologia por Lightner
Witmer (SCHULTZ; SCHULTZ, 2011), até os dias atuais, dedicar-se ao atendimento
das mais variadas demandas, relacionadas a diferentes tipos de pessoas, não é
tarefa das mais fáceis, embora extremamente gratificante. Observa-se, portanto, que
a psicologia clínica tem em seu escopo uma diversidade de demandas humanas que
merecem serem refletidas para uma melhor atuação profissional.
Um exemplo marcante de desafio atual da clínica psicológica refere-se ao
significativo aumento de pais e mães em busca de acompanhamento psicológico
para filhos diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Segundo a
Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 160 crianças no mundo todo é
afetada pelo TEA, o que revela a magnitude do problema.
O Transtorno do Espectro Autista é um dos transtornos do
neurodesenvolvimento classificado no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-5), cujas características mais evidentes são atraso e
desvio sociais – não necessariamente indicando deficiência intelectual –, problemas
de comunicação e movimentos estereotipados (ASSUMPÇÃO JR; PIMENTEL,
2000). Essas características, em particular os problemas de comunicação e
socialização, representam um obstáculo extra ao acompanhamento pela(o)
psicóloga(o), uma vez que a interação por meio da fala, na maioria dos casos, fica
prejudicada. Ante tal panorama, surge a questão de como acessar, de maneira
eficiente, a subjetividade de uma criança com TEA, no intuito de auxiliá-la no seu
processo de desenvolvimento.
Nesse propósito, a escolha da abordagem terapêutica na clínica psicológica
torna-se assunto de suma importância, haja vista a psicoterapia ser um
procedimento técnico e relacional, no qual a(o) psicóloga(o), embasada(o) em algum
referencial teórico/científico, disponibilizará tais recursos na promoção da saúde
emocional de seus clientes. Atualmente, a psicoterapia é compreendida como
ferramenta preventiva, ultrapassando a simples ideia de tratamento curativo, uma
vez que tem como meta promover o crescimento pessoal através da tomada de
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consciência das suas necessidades, visando a evoluções em atitudes e


comportamentos (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998 Apud PAIVA, 2009).
A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), sistema de psicoterapia
humanista criado pelo psicólogo norte-americano Carl Rogers (1942), tem como
perspectiva clínica abordar o outro em sua subjetividade, por meio de uma
orientação não-diretiva. Partindo do pressuposto de que o cerne da personalidade é
positivo e possuidor de um impulso natural à realização, a ACP lança como base
para a atuação da(o) psicoterapeuta a aceitação incondicional, a empatia e a
congruência. Dessa forma, atua como facilitadora, proporcionando as condições
para o desenvolvimento do cliente.
À luz do exposto, o presente trabalho teve como objetivo principal discutir a
Ludoterapia Centrada na Criança como proposta psicoterápica promotora do
crescimento emocional de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Por
meio do relato de experiências vivenciadas na psicologia clínica, este artigo se
propôs demonstrar de que forma os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP), quando aplicados à ludoterapia, influenciam o processo psicoterápico de
crianças com TEA.

METODOLOGIA

A produção do conhecimento, já há um bom tempo, deixou de seguir


estritamente o paradigma das ciências naturais. Particularmente no campo das
pesquisas humanas, diversos modelos – inclusive propondo verdadeiras rupturas –
passaram a contemplar e admitir a presença e a interferência da dimensão subjetiva,
tanto dos sujeitos investigados quanto dos pesquisadores (SALES; SOUZA;
JUNIOR, 2012).
Com intuito de responder à problemática acerca da forma como a
psicoterapia de base centrada na pessoa contribui para a construção da
subjetividade de crianças autistas, o presente trabalho adotou o método heurístico,
proposto por Clark Moustakas (MOUSTAKAS, 1985 Apud SALES; SOUZA; JUNIOR,
2012). Tal método baseia-se em princípios autobiográficos que buscam delinear os
significados de determinada experiência humana pessoal; logo, a prioridade de sua
epistemologia está em permitir, em termos metodológicos, a liberdade do
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pesquisador, em vez de impor regras ou mecanismos que impediriam o fluxo de


autodescoberta (SALES; SOUZA; JUNIOR, 2012).
Diante do exposto, esse estudo caracterizou-se como um relato de
experiência, pois descreve o acompanhamento de três crianças diagnosticadas com
TEA autistas no contexto da psicoterapia desenvolvida no consultório. O relato de
experiência pode ser compreendido como a descrição precisa de determinada
experiência que possua o condão de contribuir significativamente para determinada
área de atuação (YIN, 2001). Embora o foco seja relatar a experiência e refletir
sobre a experiência vivida, o relato de experiência se dá de modo contextualizado,
com a objetividade e o aporte teórico necessários à sua separação de uma simples
narrativa subjetiva (YIN, 2001).
Não foram abordados os casos em si, mas os trabalhos desenvolvidos pelo
profissional da psicologia durante as sessões de psicoterapia e os resultados obtidos
com cada trabalho, sempre apresentando o devido referencial teórico. Por questões
éticas e de sigilo profissional, não foram citados nomes, condições particulares das
crianças ou dos pais, ou mesmo falas dos clientes, limitando-se apenas o relato às
questões de cunho terapêutico dentro da ACP. As crianças foram identificadas como
CRIANÇA 1, CRIANÇA 2 e CRIANÇA 3.
Inicialmente foi revista a literatura acerca do Transtorno do Espectro Autista,
apresentando as diferentes concepções e abordagens que tratam do assunto. Na
sequência, tratou-se da Abordagem Centrada na Pessoa, apresentando seus
conceitos, princípios, fundamentos e práticas. A última parte do trabalho está
descrita a relação com as crianças, optou-se por dividir o relato em três grandes
momentos: o primeiro contato com as crianças e suas mães; as atividades
desenvolvidas ao longo das sessões de psicoterapia que estabeleceram o rapport; e
os resultados obtidos até o momento.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

AUTISMO: UM MUNDO A PARTE OU PARTE DO MUNDO?

O autismo foi descrito pela primeira vez em 1943, no artigo “Autistic


Disturbances of Affective Contact” (Distúrbios Autista do Contato Afetivo), de autoria
do psiquiatra austríaco Leo Kanner (1894 – 1981). Kanner relatou 11 (onze) casos
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de crianças que, embora diferentes entre si, e nascidas em lugares distintos,


apresentavam certos comportamentos característicos comuns (FADDA, 2013).
Essas crianças, referidas pelos pais como “autossuficientes”, “como uma
concha”, “felizes quando estavam sós”, “agiam como se as pessoas não existissem”,
compartilhavam dificuldades em se relacionar socialmente, dificuldades na
linguagem, excelente memória, fixação por objetos, gosto por movimentos giratórios,
aversão a sons altos e limitado repertório para atividades espontâneas (KANNER
Apud FADDA, 2013, p. 14-15). Todas essas características apontavam para o que
Kanner viria a chamar de “Autismo Infantil”, diferenciando da esquizofrenia infantil.
Com o advento da Classificação de Transtornos Mentais e de
Comportamento da Organização Mundial da Saúde (1993), 10ª revisão (CID-10), o
autismo infantil – dentro do qual também foi incluída a Síndrome de Asperger, como
ficou conhecida a psicopatia autista na infância – foi classificado nos Transtornos
Globais do Desenvolvimento, tendo por características alterações qualitativas da
interação social e modalidades de comunicação, e por um repertório de interesses e
atividades restrito e estereotipado que se manifestam antes dos três anos. Por seu
turno, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação
Psiquiátrica Americana (2002), (DSM-IV-TR), incluiu tanto o autismo infantil quanto a
síndrome de Asperger dentro dos Transtornos Globais do Desenvolvimento,
marcados por graves distúrbios nas áreas de interação social e repertório restrito de
interesses e atividades (FADDA, 2013).
Atualmente, o autismo está classificado no Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana (2014), DSM-5 na
seção II, dentro dos Transtornos do Neurodesenvolvimento. Cinco critérios são
considerados para o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA): prejuízo
persistente na comunicação social recíproca e na interação social (critério A);
padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (critério
B); presença desde o início da infância (critério C); limitação ou prejuízo do
funcionamento diário (critério D). O último critério (critério E) esclarece que os
demais não são mais bem explicados por deficiência intelectual ou atraso global do
desenvolvimento, o que significa que a comunicação social estando no nível ao
menos esperado para o nível de desenvolvimento, deve-se diagnosticar como TEA.
Sua incidência é maior em meninos – aproximadamente na proporção de 4 a 5 para
7

1 –, embora haja evidências de que as meninas sejam mais severamente atingidas


(CALLIAS; BOSA, 2000).
Não obstante, as características que permitem o diagnóstico do TEA estejam
bem estabelecidas, pouco se sabe ainda sobre sua causa. Diversas abordagens
procuraram explicar como o TEA surge na criança, descrevendo as condicionantes
pessoais, afetivas e do ambiente que contribuem para esse surgimento.
Uma tentativa de explicar esse fenômeno é oferecido pela psicanálise, por
meio das teorias psicanalíticas. Melanie Klein, Margareth Mahler, Francis Tustin,
Bruno Bethelheim e muitos outros psicanalistas apontaram, em linhas gerais, que o
isolamento do bebê autista decorria da “falha na modulação das pulsões instintivas,
na organização das suas reações formativas e defesas, o que impediria o
desenvolvimento de uma verdadeira relação objetal” (CALLIAS; BOSA, 2000, p. 03).
Em dado momento, no início de seu desenvolvimento, o bebê vivenciava alguma
situação que o impedia de relacionar-se de maneira satisfatória com o mundo à sua
volta, resultando no autismo. Neste caso, o autismo seria a reação a uma “rejeição
materna”, cisão precoce do ego, vazio de manifestações espontâneas de
sentimentos, falta de diferenciação entre o animado e o inanimado e dificuldades em
formar representações ícones entre as primeiras representações mentais e áreas
somáticas (CALLIAS; BOSA, 2000).
Outras teorias que se lançaram na árdua tarefa de perscrutar as causas do
autismo foram as chamadas teorias afetivas, as quais apontam que
[...] o autismo se origina de uma disfunção primária do sistema afetivo, qual
seja, uma inabilidade inata básica para interagir emocionalmente com os
outros, o que levaria a uma falha no reconhecimento de estados mentais e a
um prejuízo na habilidade de abstrair e simbolizar (CALLIAS; BOSA, 2000,
p. 04).

Tal concepção deixa implícita a ideia de que o autismo pudesse ter como
causa fatores etiológicos. O grande representante dessa vertente foi o psiquiatra
Peter Hobson.
A Teoria da Mente, conforme delineada por David Premack e G. Woodruff
(1978), define a capacidade para atribuir estados mentais a outras pessoas e,
partindo dessas atribuições, predizer o comportamento alheio. Segundo Harris
(1994) e Wellman (1994), por volta dos três anos a criança já possui condições de
distinguir estados mentais de físicos, bem como aparência de realidade; faria
comentários a respeito de seus estados mentais para depois comentar o de outras
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pessoas, e assim predizer o comportamento delas. Isso é o que se chama de


representação – expressão de um objeto ou evento por meio de categorias alheias a
esses mesmos objetos/eventos. A partir dos dois anos, a representação não
necessita ser operada de forma direta, apenas por meio da própria percepção – é a
representação da representação, ou meta-representação. No caso das crianças com
TEA, a dificuldade em desenvolver uma teoria da mente resulta em déficits no
comportamento social e na linguagem: no primeiro, dificuldade em dar sentido ao
que as pessoas pensam e como se comportam; no segundo, a incapacidade de se
comunicar com outras pessoas a respeito de estados mentais (CALLIAS; BOSA,
2000).
Outra hipótese provável para as causas do TEA é a que considera haver
uma base genética, associada a fatores ambientais, provocando algumas
modificações neuronais (FADDA, 2013). Um estudo recente, conduzido pelo
cientista Sven Sandin (FERNANDES, 2018) apontou que mães adolescentes (até os
18 anos); mães com mais de 40 anos; mais de 10 anos de diferença na idade dos
pais e homens que são pais com mais de 50 anos configuram-se em fatores de risco
para o desenvolvimento do autismo.
Todavia, sabe-se que os estudos relacionados à genética ainda não são
suficientes para resultados mais conclusivos. O autismo, considerado sob o aspecto
genético, é um transtorno deveras complexo, e de acordo com as pesquisas já
realizadas há entre 5 e 100 loci (local fixo de um cromossomo onde está localizado
um gene) que podem estar relacionados ao TEA. Ainda assim, sabendo que vários
cromossomos estão ligados com a síndrome, não há nenhuma resposta definitiva
(GADIA et al, 2004).

Não obstante, a ciência de que o autismo afeta o funcionamento cerebral,


sua causa específica ainda é desconhecida. De fato, a maioria dos autores defende
uma etiologia multifatorial, sendo que cada uma dessas múltiplas causas pode
manifestar-se em diferentes formas ou subtipos de autismo. A partir de tal afirmação,
Vilela, Diogo e Sequeira (2009) afirmam que

O comportamento autista tem sido relatado nas patologias clínicas do lobo


temporal. As disfunções das regiões temporais podem explicar grande parte
dos sintomas clínicos (défice perceptivo, emocional e cognitivo) observados
no autismo. Além disso, as regiões associativas temporais estão
estreitamente conectadas aos sistemas sensoriais associativos frontais,
parietais e límbico (VILELA; DIOGO; SEQUEIRA, 2009, p. 07).
9

Percebe-se que o lobo temporal é de suma importância para que ocorra o


processamento de vários estímulos internos e externos no funcionamento do
Sistema Nervoso Central. Dessa forma, é muito importante também pelo
processamento dos estímulos, “dando origem às experiências vivenciadas em nosso
mundo” (VILELA; DIOGO; SEQUEIRA, 2009).
Em que pese todas essas considerações, a verdade é que cada criança é
única, e mesmo o Transtorno do Espectro Autista uma vez diagnosticado, não será
uniforme (daí o nome “espectro”), tornando cada criança com TEA um ser humano
único a ser desvendado nos seus comportamentos e interesses.

ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: DA NÃO-DIRETIVIDADE À


EXPERIENCIAÇÃO

O ser humano na sua integralidade. A busca por essa compreensão é a


essência do Humanismo, corrente de pensamento filosófica fundamentada de
maneira precípua nos interesses, potencialidades e faculdades do ser humano
(HOLANDA Apud FADDA, 2013, p. 20). Esse pensamento acabou sendo absorvido
pela psicologia, fruto das reflexões do psicólogo americano Abraham Maslow
(SCHULTZ; SCHULTZ, 2004). No entender de Maslow, os métodos tradicionais
davam destaque somente aos aspectos disfuncionais da pessoa, desconsiderando o
que ela possuía de potencialidades.
Posteriormente, o psicólogo americano Carl Ransom Rogers, partindo de
seu trabalho clínico com crianças, publicou em 1939 o livro O tratamento clínico da
criança problema, onde propôs o conceito que tornou-se o núcleo de todo o seu
pensamento: a ideia de tendência atualizante (MOREIRA, 2010). Segundo o próprio
Rogers,
Todo organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas
as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua
conservação e enriquecimento. Observemos que a tendência atualizante
não visa somente (...) a manutenção das condições elementares de
subsistência como as necessidades de ar, de alimentação etc. Ela preside,
igualmente, atividades mais complexas e mais evoluídas tais como a
diferenciação crescente dos órgãos e funções; a revalorização do ser por
meio de aprendizagens de ordem intelectual, social, prática (ROGERS &
KINGET, 1977ª, p. 159-160).
Para se compreender melhor os principais aspectos do pensamento de
Rogers, deve-se ter em mente que ao longo da sua carreira seu pensamento foi
amadurecendo e sua proposta teórica sendo aos poucos devidamente lapidada.
10

Inicialmente, foi denominada Psicoterapia não-diretiva ou Aconselhamento não-


diretivo, tal como publicado em 1942 em seu livro Psicoterapia e consulta
psicológica, posteriormente passou a denominá-la Terapia Centrada no Cliente;
mais adiante, Ensino Centrado no Aluno; Liderança Centrada no Grupo e, por último,
Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), que, segundo ele, é a denominação mais
adequada à sua teoria (ROGERS, 1983). Essas mudanças de denominação se
devem aos diferentes interesses que Rogers foi assumindo como foco de seu
trabalho ao longo da vida (MOREIRA, 2010), o que permite, em termos didáticos,
uma divisão do pensamento rogeriano em três grandes fases.
A primeira fase, denominada Psicoterapia Não Diretiva, surgiu como
contraponto às ideias dominantes de que o terapeuta deveria conduzir o
atendimento; o núcleo era a não direção, caracterizando-se esta pelo uso da
reflexão de sentimentos, de maior compreensão e sensibilidade no ouvir, “de uma
postura permissiva do terapeuta, com aceitação, e que confiava no processo de
mudança do cliente” (BOAINAIN JR. Apud PEREIRA; MIRANDA, 2021, p. 114).
Entretanto, houve muitos equívocos acerca dos termos não-diretividade e não-
direção: o primeiro, indicando uma ideia de uso, interpretações, conselhos,
prescrições e sugestões; o segundo, indicando a ideia de significação. Esses
equívocos geraram críticas ao pensamento inovador de Rogers (BOAINAIN JR.
Apud PEREIRA; MIRANDA, 2021).
A segunda fase, conhecida como Psicoterapia Centrada no Cliente,
apontava para um desenvolvimento na maneira como Rogers pensava e agia, dando
ênfase às condições facilitadoras (congruência, aceitação e compreensão empática)
como motor da evolução da personalidade e a tendência atualizante como
fundamentos para a atuação do terapeuta (BOAINAIN JR. Apud PEREIRA;
MIRANDA, 2021).
A terceira fase, chamada Psicoterapia Experiencial, destaca o
entrelaçamento das experiências do cliente e do terapeuta em contato com o cliente,
no processo psicoterápico. Dessa forma, a relação terapêutica ganha maiores
contornos de encontro, presença e congruência. Nesse processo, “há o olhar sobre
o que o cliente está experienciando e há o olhar sobre o que o terapeuta está
experienciando em contato com o cliente” (BOAINAIN JR. Apud PEREIRA;
MIRANDA, 2021, p. 115).
11

No que tange às crianças, tomando por base sua experiência clínica, Carl
Ransom Rogers e Godelieve Marian Kinget (1977) esboçaram uma teoria de
personalidade centrada na pessoa na qual a criança percebe a sua experiência
como sendo a realidade; estas possuem a tendência ao desenvolvimento pleno de
suas potencialidades, comportam-se sempre satisfazendo suas necessidades em
direção à atualização. Eles perceberam que nelas existe uma avaliação organísmica
que atribui valor positivo às vivências favoráveis à preservação, e negativas às
contrárias ao seu bem-estar. Buscam vivenciar experiências que interpretam como
positivas e evitam as negativas. Dessa forma, a constituição do self é marcada pela
existência de um aspecto da tendência atualizante à diferenciação, desenvolvendo a
consciência de existir. E através da interação da criança com o seu meio
sociofamiliar, organizar-se-á progressivamente a sua noção do eu.
Embora essa interação inicial da criança ocorra, via de regra, com os pais
(ou algum parente próximo), nem sempre essa experiência resulta satisfatória. De
fato, Rogers já apontava que uma interação positiva com as pessoas-referência era
vital para o desenvolvimento saudável da criança; contudo, ainda que isso ocorresse
de forma diversa, sempre haveria a oportunidade de se relacionar positivamente no
futuro com outras pessoas e receber delas a aceitação e consideração
indispensáveis à sua atualização (ROGERS; KINGET, 1977).
Dessa maneira, postula-se que mesmo em crianças que estejam
vivenciando processos de adoecimento ou sofrimentos severos, ou que possuam
dificuldades em se expressar e interagir – a exemplo das crianças com TEA –,
existem nelas recursos internos que poderão ser acionados e que as levará à
reconstrução dos processos de saúde e bem-estar. Isso decorre, segundo Rogers,
do fato do ser humano possuir naturalmente a tendência a crescer e se atualizar.
Mesmo sob a interferência de diversos fatores externos que possam atrasar tal
movimento, “a tendência fundamental é em direção ao crescimento, ao seu próprio
preenchimento ou satisfação.” (ROGERS Apud FADDA, 2013)
Exemplo claro da aplicação dessa ideia pode-se verificar nas intervenções
que o terapeuta faz no sentido de chamar a atenção do cliente para os sentimentos
expressados por vezes de forma inconsciente, tanto em palavras como por atitudes,
e que são denominadas respostas-reflexo (ROGERS; KINGET, 1977).
Dos três tipos de respostas-reflexo – a reiteração ou reflexo simples, o
reflexo de sentimentos ou reflexo propriamente dito e a elucidação –, a mais
12

relevante para o presente estudo é o reflexo de sentimentos, que, nos dizeres de


Tambara e Freire (2007, p. 130), “é a intervenção através da qual o terapeuta
comunica ao cliente os sentimentos, presentes e vivenciados por este no aqui-agora
da relação, e que o terapeuta percebe nas ‘entrelinhas’ de suas palavras”.
A percepção desses sentimentos e sua consequente comunicação, contudo,
ganha novos contornos quando se trata de crianças com TEA, uma vez que a forma
de comunicação muitas vezes não se dará de maneira verbal. Assim, um sorriso, um
som específico, um gesto, até mesmo um olhar que o terapeuta retribui
desempenhará essa função de maneira bastante assertiva com a criança, conforme
se poderá perceber nos relatos a seguir.

LUDOTERAPIA CENTRADA NA CRIANÇA: RELATANDO EXPERIÊNCIAS NO


CONTEXTO PSICOTERÁPICO

Não se pode falar em psicoterapia dentro da ACP sem que estejam


presentes as condições facilitadoras da tendência atualizante: congruência,
aceitação positiva incondicional e compreensão empática (ROGERS, 1983). No
tocante às crianças, essas atitudes facilitadoras são extremamente importantes para
que elas possam se sentir aceitas e respeitadas em sua singularidade
(AXLINE,1984).
Analisando de forma mais minuciosa, empatia é um mergulho experiencial
na existência do outro, na subjetividade do outro, o que envolve uma postura de
aceitação do outro como ele é, sem críticas, propiciando uma atitude positiva
incondicional, que para Rogers (1983) é uma aceitação genuína do outro que se
mantém constante independentemente daquilo que o cliente seja naquele momento.
Esta é uma condição básica para a mudança nesta abordagem (AMATUZZI, 2012).
Os pontos citados acima estão intrinsecamente associados a atitudes de
autenticidade ou congruência, que segundo Freire (2007) é a capacidade de ser o
que realmente se é, sendo esta uma atitude de suma importância. Um terapeuta que
esteja incongruente não promoverá a fluidez do cliente; deve, antes de tudo, estar
atento à comunicação explícita e implícita da criança. Decorrente disso entende-se
que a proposta da relação terapêutica consiste em proporcionar uma atmosfera
adequada e segura ao crescimento da criança, levando a um desenvolvimento
13

saudável. Colocar-se no lugar do outro, ver o mundo como o outro vê e aceitar isso
incondicionalmente são as bases para o sucesso da terapia (DORFMAN, 1992).
Mas como acessar o “eu” da criança com TEA? Como se colocar no lugar de
alguém que não consegue interagir? Como ver o mundo como a criança que não
comunica sua forma de vê-lo? Se na maior parte dos casos uma criança já tem a
dificuldade natural de expressar sentimentos, a criança com TEA apresenta uma
extra: ela apresenta dificuldades em interagir e, na maioria dos casos, em se
comunicar. Na verdade, não significa que ela não o faça, apenas externa isso de
maneira diferente; e é nesse momento que a Ludoterapia Centrada na Criança
mostra toda sua potencialidade, pois coloca à disposição da criança diversos
instrumentos por meio dos quais ela pode se expressar e comunicar seus
sentimentos (DORFMAN, 1992).
A Ludoterapia Não-Diretiva ou Centrada na Criança é uma proposta
psicoterápica que tem como objetivo promover o crescimento emocional das
crianças, libertando-as dos conflitos existenciais através de atividades lúdicas
(FADDA, 2013). Nela, uma variável de extrema importância para o desenvolvimento
do processo psicoterápico é justamente a relação terapeuta-cliente (AMATUZZI,
2012). Entende-se que os recursos verbais, os jogos e os brinquedos são
facilitadores, mas o essencial é vivenciar as atitudes facilitadoras da compreensão
empática, atitude positiva incondicional, autenticidade ou congruência na relação
terapêutica (AXLINE, 1984).
Ao longo de dois anos tive a oportunidade de acompanhar três crianças com
TEA, sendo todas do sexo masculino e com idade variando entre quatro e sete anos.
Essas crianças já chegaram ao serviço com o diagnóstico prévio de TEA, realizado
pelo psiquiatra e/ou neurologista infantil. As sessões tiveram início há um ano e meio
para duas das crianças, e há dois anos para a outra.

O PRIMEIRO CONTATO
Ao olharmos para uma criança, facilmente somos conduzidos a ter
pensamentos bons – principalmente se tivermos filhos –, e muito provavelmente não
vamos imaginar problemas rondando aquela vida. Por isso, uma criança que chega
a um consultório de psicologia de imediato nos leva a refletir: o que será que a
trouxe aqui?
14

O primeiro atendimento ocorre, via de regra, somente com os pais e/ou


responsáveis, no intuito de se realizar a anamnese; porém, nos três casos em
comento, as mães também estavam presentes na primeira sessão com as crianças.
Pude observar o quanto elas estavam extremamente fragilizadas e sentindo-se
desamparadas; algumas depressivas e já em acompanhamento psiquiátrico.
Segundo Bowlby (2006 b, p. 55), “a mãe, nos primeiros anos de vida da
criança, funciona como sua personalidade e consciência”. Da mesma forma, Bion
apud Zimerman (2010) usou a expressão “relação continente-conteúdo” para
traduzir a capacidade da mãe de acolher e processar os diversos sentimentos e
anseios de seu filho. Sentir dessa forma gera nelas muitas frustrações, lutos e
aceitações, observando-se a necessidade de se ter um olhar mais focado nessas
cuidadoras.
Passada essa sessão de transição, onde mães e filhos estiveram juntos,
iniciamos as sessões só com as crianças. Alguns instantes de observação – cada
uma no seu momento, pois chegaram em épocas distintas – revelaram em todas
uma característica bem marcante do TEA: o movimento estereotipado. Embora o
DSM-5 indique o Transtorno do Movimento Estereotipado como possível diagnóstico
diferencial em relação a essa condição, o fato de nenhuma delas ter respondido aos
meus cumprimentos nem falado nada comigo confirmou que estava diante de
crianças com TEA.
Segundo Axline (1972), o contato inicial é de suma importância para o
rapport e o sucesso da terapia como um todo, pois os princípios como compreensão
e aceitação são demonstrados à criança a partir deste contato. O primeiro encontro
deu-se somente com os pais (mais propriamente as mães), no intuito de conhecer
ao máximo a história pregressa da criança e estruturar a anamnese; após esse
encontro, realizei a primeira sessão com as crianças acompanhadas das mães, a fim
de permitir que a criança se sentisse mais confiante ao adentrar em um ambiente
desconhecido, como forma de diminuir a ansiedade diante de uma nova pessoa.
Outro motivo que me levou a adotar tal conduta foi perceber como as mães lidavam
com seus filhos.
Embora tal medida seja importante para o primeiro contato, logo percebi que
as mães, no ímpeto de auxiliar no processo de seus filhos, acabavam por tolher a
liberdade e a aceitação de que as crianças necessitavam. Na Ludoterapia Centrada
na Criança, o processo se dá através da relação entre o terapeuta e a criança: o
15

terapeuta, acreditando no potencial de cada indivíduo, oferece à criança uma


situação de permissividade e aceitação, levando-a a se sentir valorizada, livre de
recriminações e pressões, de modo que suas emoções possam ser externadas e
respeitadas, e através desse acolhimento levá-la a se conhecer e ser ela mesma
(AXLINE, 1972). Por isso mesmo, procurei não apresentar para as crianças modelos
ou propostas prontas, pois o ambiente do consultório era um mundo novo para elas.
Em suma, no primeiro contato – em que podemos agrupar a anamnese
inicial com os pais, a primeira sessão com a criança acompanhada da mãe e a
primeira sessão exclusivamente com a criança – são estabelecidas as bases do que
Rogers (1997, p. 78) definiu como compreensão empática:

“O que eu sou e aquilo que sinto pode perfeitamente servir de base para a
terapia, se eu pudesse ser transparente o que sou e o que sinto nas minhas
relações com ele. Então talvez ele possa ser aquilo que é, abertamente e
sem receio.”

A EVOLUÇÃO DAS SESSÕES


A palavra “autismo” vem do grego “autós” e significa “eu mesmo”, o que
segundo Grinker (2010) leva à reflexão de que o autista mergulha dentro de si
mesmo e que desde o primeiro contato com a criança faz-se necessário respeitar
seu mundo, sua individualidade. Superadas as barreiras das primeiras duas
sessões, tiveram início as sessões exclusivamente com as crianças.
Munida das informações prévias colhidas na anamnese e nas observações,
pude preparar o ambiente de maneira adequada. Ao adentrarem sozinhas nesse
novo universo, as crianças tiveram a oportunidade de escolher diante da oferta de
brinquedos e livros (inclusive musicais), jogos, desenhos, pintura, CD’s, fantoches,
argila, massa de modelar, amoeba 1 etc. Segundo Axline (1972), as crianças
necessitam de atividades lúdicas para conseguir transmitir seus sentimentos, tais
como medo, tristeza, alegria etc. Decorrente dessa necessidade de atividades
lúdicas o terapeuta deve refletir como será o ambiente, prezando pelo conforto,
segurança e liberdade da criança. Tal preparação é vital para o processo, pois por
meio do brincar a criança consegue projetar mais facilmente as coisas relacionadas
consigo mesma, estabelecendo o vínculo entre ela e o terapeuta (OAKLANDER,
1980).

1
Também conhecida por geleca ou Slime,, é um brinquedo em forma de massa gelatinosa. Ele tem a possibilidade de formar
bolha, esticar, enrolar, enfim, ter várias formas, e isso o torna um brinquedo muito atrativo e relaxante
16

A sessão sempre começava retirando junto com a criança os objetos dos


locais onde eram guardados. Em seguida colocávamos tudo nas mesas e no tapete
para que ela pudesse escolher o que lhe agradasse. Nesse primeiro dia, sozinhas,
todas elas ficaram um pouco sem saber o que escolher e/ou brincar, mas olharam
tudo e brincaram um pouco com cada coisa.
Posteriormente, as crianças começaram a se sentir mais à vontade, e
quando escolhiam um dos itens citados anteriormente – sempre de forma
espontânea –, a partir daí era desenvolvido um trabalho lúdico, no qual cada uma se
sentiu aceita, ouvida e acolhida. Durante esses trabalhos fui identificando outras
características do TEA presentes nas crianças: uma delas apresentava ecolalia e
disfunção sensorial (CRIANÇA 2); outra, atraso na linguagem (CRIANÇA 3); e em
um dos casos pude perceber fortes indícios da comorbidade com o Transtorno
Opositor Desafiador (TOD), embora não tenha sido fechado um diagnóstico nesse
sentido (CRIANÇA 1). O DSM-5 indica que cerca de 70% das pessoas com TEA
podem ter um transtorno mental comórbido, o que foi identificado neste último caso.
Esse transtorno, segundo Teixeira (2015), é definido por “padrões persistentes de
comportamentos negativistas, hostis, desafiadores e desobedientes observados nas
interações sociais da criança com adultos (figuras de autoridade) e, também, com
seus pares.”
Axline (1972) alertou para que o terapeuta, após o cuidado com o ambiente,
estivesse atento aos oito princípios básicos que norteiam o seu contato não diretivo
na Ludoterapia Centrada na Criança. Tais princípios são: a) desenvolver um bom
relacionamento com a criança para o estabelecimento do rapport; b) aceitar a
criança completamente; c) estabelecer um sentimento de permissividade; d)
reconhecer e refletir os sentimentos; e) manter o respeito pela criança; f) a criança
indicar o caminho; g) a terapia não pode ser apressada; h) o valor dos limites.
Foi possível observar o quanto a aceitação incondicional ajuda no processo
subjetivo da criança. Um exemplo disso foi observado na CRIANÇA 1: nas primeiras
sessões ela demonstrava muita agressividade e não aceitava que houvesse um
diálogo com ela, impondo assim limites e resistência. Contudo, gostava muito de
fantoches e os colocava na mão, conversando com eles, indicando, dessa forma, o
caminho passível de ser seguido. No intuito de ultrapassar a resistência, respeitei-a
de forma incondicional, aceitando-a completamente. De vez em quando ela
direcionava seu olhar para mim, até que chegou o momento de me oferecer o
17

fantoche, apresentando dessa forma os novos limites a serem respeitados e


sinalizando que o caminho estava sendo trilhado de maneira satisfatória; coloquei-o
na mão e nesse momento começamos a brincar, ou seja, estava estabelecido o
vínculo. Ela sorria muito, e ao sorrir de volta, pude viabilizar para ela uma resposta-
reflexo adequada à sua compreensão. Depois passou a se permitir brincar com
texturas, algo que segundo sua genitora ela não gostava de fazer, demonstrando
assim a ampliação de seus limites. Um fato importante foi quando ela começou a
brincar com a massinha de modelar e colocou-a dentro do vaso sanitário da casinha
de brinquedo (ele gostava muito desse vaso e em todas as sessões ele o pegava);
em seguida me olhou fixamente e começou a brincar com os bonecos, entregando-
me um e dizendo que era o amigo e que eu podia guardar o vaso na casinha. Até
então, ela falava comigo como se estivesse falando com o boneco; daí em diante
passou a falar diretamente comigo chamando-me de “tia”. Depois dessa sessão a
mãe relatou que ela passou a ficar menos agressiva. Também passamos a trabalhar
bastante com tinta e com argila, no intuito de estimular o sensorial, com a ressalva
de que ela não oferecia resistência em trabalhar sujando as mãos e os pés com
tinta.
A CRIANÇA 2 apresentava disfunção sensorial, mas eu sempre colocava um
recipiente com bolinhas de sagu 2 na mesa, visando desenvolver um bom
relacionamento com ela; ela olhava, pegava minha mão e colocava no recipiente;
então eu mostrava as bolinhas, no intuito de trabalhar a interação e o aspecto
sensorial, e ela tocava com a ponta do dedo indicador. Essa foi a sua maneira de
demonstrar o seu limite. Em um determinado dia ela colocou a mão em cima da
minha, e a partir daí passou a colocar a mão inteira no recipiente, mexendo nas
bolinhas. Esse movimento demonstrou a forma como a criança se permitiu ampliar
os seus limites, corroborando a necessidade de se respeitar o tempo necessário do
processo terapêutico e o caminho indicado pela criança. Ocasionalmente ela
brincava com a amoeba. Quanto aos sons, brincava com o carrinho de bombeiro
que emite o som da viatura, e o carro de polícia. Ao optar pelos livros musicais ela
trabalhava o sensorial, e no ritmo e na trilha apontada pela criança, a terapia seguia
seu curso; depois disso passou a dar abraços e ler o livro para mim. Também
passou a pegar na minha mão para que eu apontasse num local indicado,
2
O sagu é uma sobremesa originária da Serra Gaúcha, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, sendo bastante popular em
toda a região Sul do país. Ela é feita com bolinhas de fécula de mandioca cozidas, mas para as atividades lúdicas é utilizada
crua.
18

normalmente uma figura, e repetisse o que era. Isso fazia com que ela sorrisse
muito. Depois de fazer, ela me abraçava, indicando que se sentia aceita,
compreendida e respeitada. Posteriormente, ela pedia para dançar e fazia alguns
passos com os pés em cima dos meus, como se fosse uma valsa, conduzia assim
tanto a dança quanto a própria terapia. Como resultado de tudo isso, observou-se a
significativa diminuição dos movimentos estereotipados e a redução da ecolalia.
Por sua vez, a CRIANÇA 3 apresentava problemas de linguagem muito
acentuados e só balbuciava alguns sons. Logo no início, não olhava para mim e nem
interagia de forma alguma: foram limites iniciais bem rigorosos. Nesse período, a
família relatou que ele andava muito em círculo e apresentava um prejuízo muito
acentuado na interação. Ultrapassar esse tipo de resistência é algo que deve ser
feito de forma bastante sutil, devendo o terapeuta se valer dos mais variados
recursos à disposição para a criança, sem impor nada, a fim de conquistar sua
confiança. Dentre os diversos materiais disponíveis, ela tinha predileção pelos
brinquedos, e em particular pelo pião, por ser colorido e possuir luz. A escolha do
pião como objeto lúdico foi o ponto de inflexão que viabilizou a interação com ele,
pois por várias vezes ela não conseguia colocar o pião para girar, até que em um
dado momento começou a colocar o pião na minha mão, e eu agradecia a ela pelo
brinquedo, colocando-o para funcionar.
Ela também gostava muito de escutar músicas e as ouvia algumas vezes:
essa foi a forma e o ritmo indicados pela criança para que a terapia se
desenvolvesse. Nesses momentos, ela ficava bem tranquila, diminuindo os
movimentos estereotipados, e depois buscava brincar com a casinha. Em várias
ocasiões, preparei previamente para os encontros papel picado bem colorido e papel
inteiro para que ela pudesse picar e trabalhar o sensorial, que era muito aguçado.
Isso também a fazia sorrir muito e me abraçar, reconhecendo e refletindo seus
sentimentos. Outra observação importante foi o fato dela ter dificuldade para segurar
o lápis. Sugeri aos pais utilizarem um lápis triangular para facilitar esse momento, o
que se mostrou bastante eficaz. Assim, aos poucos ela começou a interagir comigo,
o que também se refletiu na escola, pois começou a interagir com alguns
coleguinhas. Importante destacar que o vínculo estabelecido foi tão forte que ela
passou a não querer sair da sala ao final da sessão, e tivemos que trabalhar uma
música que marcasse o final do encontro: quando estava chegando a hora eu
começava a cantar e ela ia guardando comigo os brinquedos.
19

A identificação dos princípios da Ludoterapia Centrada na Criança,


desenvolvidos por Axline, evocam sentimentos de profunda satisfação, ficando atrás
apenas do momento mesmo em que os fatos se deram. Não obstante, a própria
Axline (1972, p. 79) adverte que “o terapeuta não deve se envolver emocionalmente
com a criança, pois quando isso acontece, a terapia desvirtua-se, e a criança não se
beneficia nestas complicadas circunstâncias”.

RESULTADOS ATÉ O MOMENTO

De todos os avanços verificados até o momento, um dos que mais marcou,


tanto pela notoriedade quanto pela espontaneidade, foram os abraços ao final das
sessões. Todas as crianças, cada uma após determinado tempo, passaram a me
abraçar antes de iniciar e ao término das sessões. Algumas até passaram a dar
beijos no rosto.
Todas também apresentaram significativa melhora no comportamento e
atenuação das características iniciais. A CRIANÇA 1 encontra-se menos agressiva,
interage melhor com outras pessoas, principalmente as crianças de seu âmbito
escolar; a CRIANÇA 2 diminuiu acentuadamente a ecolalia, melhorou a interação
com adultos – embora ainda apresente alguma resistência com crianças –, passou a
desenvolver outras atividades, tais como leitura, organização de alguns objetos no
quarto (relato da mãe), melhorou a interação com a mãe e com a professora, o que
antes não ocorria, e até aceita dançar nas sessões (ele mesmo quem propõe); e a
CRIANÇA 3 melhorou significativamente a interação com os colegas de escola, faz
as atividades que a escola propõe, já consegue pronunciar algumas palavras
(“mamãe”, “papai”, “irmão”, “tia”, o nome de alguns amiguinhos mais próximos).
Evidentemente, não se pode atribuir exclusivamente à Ludoterapia Centrada
na Criança o mérito de todas as conquistas que essas crianças obtiveram. O avanço
da idade, o apoio dos pais e o trabalho da equipe multiprofissional certamente
contribuíram para a melhora geral das crianças. Contudo, em termos de
acompanhamento psicológico, a Ludoterapia Centrada na Criança se mostrou um
poderoso aliado para que as crianças encontrassem o ambiente de acolhimento
favorável à compreensão de suas necessidades, e assim, mais livres, pudessem
externar seus sentimentos e emoções.
20

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar sobre o autismo ainda não é algo simples. E talvez nunca venha a ser.
Não se sabe. O certo é que, da mesma forma que um indivíduo não é igual a
nenhum outro, não existe “autismo” como algo uniforme. Nos dizeres de Fadda
(2013, p. 17), “não existem duas pessoas diagnosticadas com autismo que sejam
iguais. Não existe um tipo de autismo. Há vários autismos visto que não há dois
cérebros iguais no mundo”.
A Psicologia Humanista, na sua busca pela compreensão do “ser integral”,
nos coloca diante dessa premissa. Sendo assim, no seu labor diário, o psicólogo que
trabalha com os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa no acompanhamento
de crianças com TEA deve ter sempre em mente que todo ser humano, ali em seu
consultório, é único, e o caminho até aquela individualidade passará,
necessariamente, pela aceitação incondicional, pela congruência e pela empatia.
A ludoterapia, por si só, já tem o poder de libertar sentimentos e emoções
que com palavras seriam difíceis de externar; quando a isso se soma a não-
diretividade e a criança como centro das atenções, tal como ocorre na Ludoterapia
Centrada na Criança, com a liberdade e a aceitação do outro em sua plenitude, esse
poder se potencializa de tal forma que mesmo uma criança com problemas de
interação – a exemplo dos autistas – consegue encontrar o seu caminho para liberar
suas emoções, revelar-se ao mundo como é e com isso fluir sua tendência
atualizante.
E nesse processo, o terapeuta não é um mero observador: é antes um
facilitador, mas que acompanha o processo junto com a criança. Ele observa,
acolhe, aceita sem julgamentos, respeita o tempo da criança, seus gostos, seus
limites e convicções. Em outras palavras, ele contempla o ser integral, espera,
respeita, pois o encontro com o outro só é possível quando o aceitamos
incondicionalmente.
Por ter se tratado de um relato de experiência, e considerando o escopo do
presente trabalho, bem como o universo relatado (apenas três casos), não se pode,
ainda, estabelecer bases para uma teoria que indique a Ludoterapia Centrada na
Criança como a melhor ferramenta para se trabalhar com crianças com TEA.
Estudos mais aprofundados, com amostras mais significativas, certamente podem
21

apontar rumos mais precisos nessa jornada que é o acesso ao ser integral de uma
criança autista.
Além disso, falar sobre crianças com TEA implica, necessariamente, em
abordar o principal coadjuvante nesse processo, e que muitas vezes não é levado
em conta: os pais, em especial as mães. Por questões de delimitação metodológica,
não se pôde aprofundar mais na questão do papel das mães no acompanhamento
dos seus filhos autistas, embora tenha se evidenciado que essas cuidadoras
necessitam também vivenciar a experiência de serem cuidadas com a mesma
aceitação incondicional, congruência e empatia.

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