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A arquitectura dos comboios azuis, das noites ao luar e das cidades intermináveis
A Razão
Dead Combo – Cuba 1970
O Embate
Fanu - Amok
A Textura
John Murphy – In The House In a Heartbeat
A Ordem
I Hear Sirens – Like A Leaf From A Tree In It´s Dying Season
A Escala
65daysofstatic – Retreat! Retreat!
Madchester
Toundra - Bizancio
As Redes
My Sleeping Karma - Shiva
O Oasis
Bon Iver – Perth
O Privado
Kings Of Convenience - Homesick
A Estrada Perdida
Eddie Vedder - Society
O Legado
Battles - Atlas
O Invisível
Apparat – You Don´t Know Me
O Labirinto
Explosions In The Sky - First Breath After Coma
O Caderno Preto
Talons - Peter Pan
Namasté!
John Murphy – The Surface Of The Sun
PEDALAR CONTRA O VENTO
A arquitectura dos comboios azuis, das noites ao luar e das cidades intermináveis
9 Resumo
11 Resumé
13 Abstract
18 A Razão - Introdução
32 O Embate – Delhi
40 A Textura – Chandigarh
64 Madchester - Ahmedabad
- Morfologia
- Crescimento
- Aura
78 As Redes
- A Rua
- As Pols
- As Fachadas
94 O Oásis - Sangath
5
102 O Privado - Uma nova forma de habitar
249 Bibliografia
253 Glossário
7
Resumo
9
Resumé
11
Abstract
This master thesis intends to show the inner journey taken, in a travel to
India within the Erasmus program. This journey is a result of a close interaction of
Experience, Photography, Drawing, the Project and the Sound Landscape. The
objective is not only to acknowledge events and principles during that period in
the distant country where the program took place, as well as comprehend and
amplify a huge range of feelings and episodes in order to understand what stood
unchangeable in the way of thinking and acting after returning.
The final purpose is to convey and describe, through these different dimensions,
the lived experience in a different reality so distant and yet so many times very
close to the one we live.
Thus, the written experience symbolizes a personal touch that is diffused
through spatial references completed by thoughts, sounds and smells.
The Photography helps, revealing a whole ocean of discoveries.
The Drawing on the travelling sketchbook illustrates us a relaxed and disen-
gaged approach of a traveler that is willing to grab and memorize as much of
the unique and unrepeatable moments that he is testifying.
The Project studies and suggests, after the approach to the site and environ-
ment, speculating about the public and the private, the scale and the “place”,
the value of religion and the fleeting illusion of an architectural control.
The sound evocations aim to thicken the atmosphere, therefore sharing
with the reader the soundtrack that accompanied not only the experience but
also writing.
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Prova de Avaliação
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* – Sarkhej Roza, o monumento vivo, é um complexo religioso datado de 1458,
constituído por um conjunto de edifícios e jardins de planta ortogonal em torno
de um amplo espelho de água, que interliga as várias esferas de contacto so-
cial, religioso e real.
É foco cultural e simbólico da riqueza histórica e arquitectónica da cidade
de Ahmedabad.
Metodologia:
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A Razão, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Caminho, Palitana. Fotografia do autor
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A Razão – Introdução
O Tigre Branco - ser singular que apenas surge uma vez em cada geração,
iluminado e astuto, ambicioso e prudente, o escolhido.
Numa noite quente e húmida, na luta contra o tédio, procuro algo para
ler numa Bombaim do avesso, num serpentear entre prateleiras de bijutaria ba-
rata e mundana, miniaturas do gate of India, entre alfarrabistas, cuja sabedoria
assentava sobre longas e grisalhas barbas manchadas pelo paan que masca-
vam até ao infinito. Encontro uma imagem perseguidora desde o início de tudo,
quase desde que pus pé pela primeira vez nesse País remoto, com uma capa na
qual repousava um tigre branco e um galo.
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O Quotidiano, Varanasi. Fotografia do autor
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paraísos esquecidos ou estados de espírito Zen e ascensão celestial, eu não os
encontrei, receio que dificilmente os encontre.
A Índia! País das milhentas contradições. Da incerteza de noventa e nove
vírgula nove por cento contra as certezas da evolução, crescimento e desenvol-
vimento dos restantes zero vírgula um por cento, um Grand Canyon os separa
como o negativo e o positivo, a chuva e a seca, o sol e a lua, a água e o ar. Por
muito que se toquem, que convivam, que necessitem um do outro para persistir,
serão sempre tão distantes ainda que tão próximos, que é impossível desagregá-
-los. A sua ascensão, o boom populacional, a independência, o mercado livre,
a tecnologia de ponta, o nuclear, o vasto território, a colorida e bela religião.
Uma verdadeira Potência Mundial, no topo da cadeia alimentar, no auge civili-
zacional aos olhos de quem olha à distância de uma chamada intercontinental,
sentado numa poltrona enquanto folheia o New York Times e segue pelo canto
do olho o Bloomberg e os seus pequenos números em rodapé.
Se há uma razão que nos move, também ela aqui persiste, ainda que nem
sempre visível, ainda que muitas vezes cingida e fixada e presa ao sistema de
castas, para que isto seja uma grande mentira disfarçada de verdade irredutível.
Mas voltando à personagem, Balram vivia numa aldeia, algures na escu-
ridão, com a sua numerosa família e o seu búfalo. A mãe morreu quando ele
era apenas uma criança e desde logo associou o Ganges e Varanasi à sua cre-
mação, nas margens negras que atraem e absorvem a morte sobre a promessa
da salvação divina. O pai morreu de tuberculose num hospital público, onde o
médico, com as senhas de presença falsificadas, não atendia havia meses. As
dívidas do dote, do casamento da sua irmã, hipotecaram o resto das suas mí-
seras e turvas perspectivas, retirando-o da escola, a ele e aos irmãos, para que
alimentassem também o sistema quase feudal, cujos haveres pertenciam ao seu
landlord, pai, irmão e avó incluídos, a sua alma incluída também. E é aqui que
entra a melhor amiga da razão: a família. Porque esta é a extensão de si, o nu-
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A Varanda, Mumbai. Fotografia do autor
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meroso conjunto de indivíduos que garantem a ordem, o cumprimento dos de-
veres, pois quando tal não acontece, serão também eles a extensão da sua dor.
E se isso no “nosso mundo” também acontece, o sistema perdoa muito menos
na escuridão. Chamemos a este seguro, que se herda de geração em geração,
apenas de “A Garantia”.
Mas a razão, depois de procurada vezes sem fim, em conversas ou tertú-
lias, especulações e devaneios aparte, jaz na mais ínfima das comparações, a
capoeira. The coop.
Há uma maravilhosa passagem, ainda que dura e manchada de sangue,
no livro de Aravind Adiga, onde a comparação entre a sociedade e o indiví-
duo se resume ao galo preso na capoeira. No mercado, por detrás da Jama
Masjid, Delhi, as pessoas amontoam-se, gritam e discutem, negociam-se preços,
trocam-se rupias por tudo o que a necessidade obriga. Num desses recantos,
as gaiolas atropelam-se encaixadas entre si como pequenos cubos nos quais
as penas brotam pelas finas linhas de arame, o cheiro a excrementos e sangue
é intenso, a morte, a raiva, a loucura e a vingança também. É aí que os galos
estão, amassados uns contra os outros e de olhos postos na tábua riscada onde
o cutelo encaixa na perfeição. E um a um vão sendo decapitados, até que o
último, na sua espera previsível, enfrenta também o seu final, depois de assistir à
partida de todos os amigos e familiares.
A Gaiola é a razão pela qual ninguém consegue sair dela, pela qual todos
se atropelam, pela qual o sistema funciona. Se um sair dela, termina o seu cami-
nho de um modo ainda mais fugaz que o dos que atrás ficaram, seja pelas mãos
do seu dono, seja pela dor da morte dos seus irmãos que sofrerão a vingança.
Uns míseros segundos fora e ela logo cobra o seu preço. Porque até quem dela
escapa, terá de enfrentar quem ainda por lá anda, pois a inveja é um sentimen-
to recorrente quando o amor e a serenidade não nos habitam.
É este o controlador social, que juntamente com “A Garantia”, na luz ou
na escuridão, permite que o topo se regozije com os nossos modelos ocidentais
importados, com a democracia comprada, com o luxo e o desprezo submergi-
do pelo uso primordial das castas, familiares próximos da “Gaiola”.
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O Convívio, Varanasi. Fotografia do autor
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“The Great Indian Rooster Coop. Do you have something like that in China
too? I doubt it, Mr Jiabao. Or you wouldn´t need the Communist Party to shoot
people and a secret police to raid their houses at night and put them in jail like
I´ve heard you have over there. Here in India we have no dictatorship. No secret
police.
That´s because we have the coop.
Never before in human history have so few owed so much to so many, Mr
Jiabao. A handful of men in this country have trained the remaning 99.9 per cent
– as strong, as talented, as intelligent in every way – to exist in perpetual servitude;
a servitude so strong that you can put the key of his emancipation in a man´s
hands and he will throw it back at you with a curse. (…)
Now, a thinking man like you, Mr Premier, must ask two questions.
Why does the Rooster Coop Work? How does it trap so many millions of
men and women so effectively?
Secondly, can a man break out of the coop? What if one day, for instance,
a driver took his employer´s money and ran? What would his life be like?
I will answer both for you, sir.
The answer to the first question is that the pride and glory of our nation,
the repository of all our love and sacrifice, the subject of no doubt considerable
space in the pamphlet that the prime minister will hand over to you, the Indian
family, is the reason we are trapped and tied to the coop.
The answer to the second question is that only a man who is prepared to
see his family destroyed – hunted, beaten, and buried alive by the masters – can
break out of the coop. That would take no normal human being, but a freak, a
pervert of nature.
It would, in fact, take a White Tiger. You are listening to the story of a social
entrepreneur, sir.”
The White Tiger, Aravind Adiga
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Rajasthan Royal, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Mas voltando a esta dissertação, narrativa disfarçada sob o olhar já distante
mas não distanciado, pretendo atingir na sua dimensão o alcance de várias,
que tratarei de tentar explicar e justificar. Julgo que nenhuma destas dimensões
se deve hierarquizar, apresentando todas elas uma razão de ser, um sentido
que se pode sobrepor ao das restantes, mas que não creio ter nexo nomear
por ordem de importância como se de mais ou menos relevantes se tratassem.
Constituem um todo que vale pela soma de todas as partes, por mais ínfimas
que algumas possam parecer.
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A Matilha, Mumbai. Fotografia do autor
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O Desenho, como disciplina base, como registo dos tempos mortos, como
prazer e legado deixado pela viagem. Uma apropriação dos espaços, dos am-
bientes, das formas, das escalas e métricas e partículas que chocavam enquan-
to estes aconteciam.
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O Embate, Delhi. Fotografia do autor
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A Praça, Delhi. Fotografia do autor
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O Embate
Para que se escreva um relato, ou uma história, ou mesmo uma tese com
uma pequena dose de ficção gerada pelo nosso subconsciente, aquele toque
que o nosso interior acrescenta depois de submetida a experiência para o cam-
po do memorável e eterno, é preciso rever todo um percurso, desde a chegada
até à partida, e é agora, passados uns largos meses, que me proponho a relatar
a experiência vivida na Índia. Este relato, não se prende unicamente ao campo
da Arquitectura, sendo mais um aglomerado de recordações, situações, vivên-
cias que se agruparam e formaram uma opinião mais ou menos empírica, com
a teoria da discussão de grupo, na troca de palavras entre estudantes de arqui-
tectura que ao mesmo tempo foram companheiros de viagem e “room mates”.
A nossa percepção tem como base um vasto conjunto de factores que
ao longo dos anos se vai apurando e focando de acordo com os nossos inte-
resses e motivações pessoais, subjacente à nossa educação, quer académica
quer familiar. Com bastante frequência a minha interpretação e análise do que
via, divergiu dos comentários e reflexões dos meus colegas Holandeses.
Esta dissertação, apresentará também ela uma visão pessoal das variáveis, de
uma Índia vista através de um ainda estudante de arquitectura. Um Sociólogo
focar-se-ia na raiz social do problema, nas relações entre castas e extractos so-
ciais. Um historiador dissecaria os milénios e interpretaria o estado actual do País
através de um histórico de acontecimentos que levara a uma consequência. No
meu caso, foram os anos na Escola que me levaram a analisar o Caos como um
ponto de Ordem, o improviso como algo quotidiano e o básico como algo bem
mais essencial que o falso essencial no qual vivemos neste nosso perfeito Mundo
Ocidental.
Uma nova realidade é isso mesmo, algo à qual por via de tantos anos
ligados a uma outra, nos é estranha, anormal e que nos incomoda de forma
contínua no inicial período de adaptação. Podia até descrever esta mudança
com base nos elementos básicos da nossa vida por cá: alimentação, transporte,
repouso, higiene, lazer ou rotina, mas esta seria apenas uma análise superficial
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O Ruído, Delhi. Fotografia do autor
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e errada de tamanha mudança efectuada, onde os limites do “básico” serão
reformulados e ganham porventura um novo significado.
Delhi foi o primeiro contacto e como tal, a sua imagem forte permaneceu
na minha memória como uma referência de metrópole suja e mundana, uma
imagem de desespero e anarquia.
O ar era pesado com um suave trago a aditivos fosseis, era diferente, es-
pecial, prevendo-se alguma alteração na ordem natural das coisas. Não havia
mística, pois ali só existia necessidade de viver mais um dia, de poder contar
algumas horas a mais, de poder ver um outro pôr-do-sol. Recordo-me da desi-
lusão com a falta de condições do quarto de hotel Shelton e das imagens das
gentes a lavarem-se sobre as águas de um qualquer camião cisterna, numa das
muitas vielas pelas quais passamos durante a madrugada tentando encontrar o
repouso de uma cama lavada e de um local resguardado. Desde o aeroporto,
seguimos por entre uma floresta de betão, altos viadutos que abrigavam os in-
digentes, largas estradas esburacadas e em estado de sítio, camiões de merca-
dorias em marcha lenta, tendas acampadas à margem da estrada.
Durante os dias seguintes, o período de refeição ajudava a acalmar, a
baixar os índices de ansiedade e consternação.
Era uma pequena fuga à realidade que sabia que iria fazer parte dos pró-
ximos meses, tomando conta de cada segundo que passava.
O embate é feito por via da comunicação rápida, do borbulhar de ce-
nários extraordinários que nos ultrapassam, que se projectam contra nós e não
nos deixam indiferentes. Recordo-me de estar no final de mais um dia em Nova
Delhi, Main Bazar, enlameado, rodeado de trânsito, encostado a uma pequena
loja de fotografia sem me poder mover. À minha volta tudo girava, tudo rolava
de forma contínua, aparentemente normal mas simultaneamente sem aparen-
te regra. Só consegui apreciar toda esta fluidez, numa rua com sensivelmente
três metros e meio de largura, onde o cheiro a gasolina se misturava com o
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A Contradição, Delhi. Fotografia do autor
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cheiro a chamuças quentes, confeccionadas nesse arruamento e competindo
directamente com os motociclos e as vacas nuns escassos metros quadrados.
Senti no início aquela necessidade de registar, de apontar, de querer con-
trolar tudo aquilo que via e que não fazia parte do meu contexto, ou que, fazen-
do parte dele, estaria fora do mesmo e apresentava um enorme grau de impro-
viso ou então uma nova interpretação do seu uso ou objectivo. Uma vontade
imensa de parar o tempo, de me abstrair por uns segundos de todo o caos, de
assimilar os acontecimentos, de os compreender à primeira, de reagir com na-
turalidade.
Surgiram desde logo as primeiras ideias sobre uma Arquitectura de todos,
onde todos tinham uma opinião e um modo de fazer as coisas, uma operativi-
dade constante baseada no senso comum, mas que seria o motor de todo o
desenvolvimento pessoal e colectivo. Uma forma de arte sem arte, um sentido
funcional a sobrepor-se ao estético.
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A Textura, Chandigarh. Fotografia do autor
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O Supremo, Chandigarh. Fotografia do autor
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A Textura
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O Jogo, Chandigarh. Fotografia do Autor
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-me demasiado pequeno, infinitamente ultrapassado por uma imagem que vira
em milhentos livros de história da arquitectura moderna ou referenciado noutras
quantas aulas de projecto. Há qualquer coisa mágica neste lugar…
Invade-nos um sentimento à “Lost” que se assemelhou à season finale da
segunda temporada, quando se avista o pé de quatro dedos de Taweret, Deus
egípcio do nascimento e reencarnação.
Ao subir a colina, o Supremo Tribunal impôs o seu supremo respeito, a lei
da horizontalidade e repetição, a curva enquadrou a paisagem, a cor deu vida
ao betão massacrado ano após ano. Alguém me chamou, voltei-me e recal-
quei uma imagem de miúdo sentado na sala a ver “Encontros imediatos de 3º
grau”, e novamente me senti esmagado pela imagem da Assembleia em pri-
meiro plano seguida da do Secretariado.
É complicado pensar na quantidade de vezes que imaginamos um mo-
mento, imaginamos o espaço de uma outra forma, organizado de outro modo,
com proporções que não correspondem à realidade. Neste caso, a realidade
transmitiu um peso superior ao que esperava, aniquilou a minha mísera existên-
cia e deixou-me respirar o ar limpo daquele espaço completamente vazio, qua-
se que perdido ao abandono, à persistência da chuva das monções e ao sol
tórrido do período seco. A militarização, o factor “terrorismo”, o medo instalado
na capital do estado de Punjab, tornou o espaço enclausurado por uma redo-
ma de vidro, por linhas de arame farpado e militares fortemente armados e que
na sua grande maioria encaravam o dia-a-dia como uma precaução e menos
como uma ameaça. No final fica a Cidade, a Utopia Moderna, o Gesto, a Aura
e o Invisível, que já se começava a descortinar, a apertar o coração já de si rá-
pido e em permanente sobressalto.
Ficou-me um sabor amargo na boca, uma vontade de berrar bem alto,
e voltei a tocar o betão, a sentir a pulsação da história, a tentar guardar o im-
pacto ao ver o ritmo do alçado horizontal do Supremo Tribunal, de adivinhar o
colorido e o seu jogo com a sombra, de imaginar o ziguezague geométrico e
de tentar desenhar para guardar a medida no caderno, para registar e melhor
compreender algo que após ser construído se tornou natural, abraçou o sítio, a
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O Juiz, Chandigarh. Fotografia do Autor
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terra, o lugar, se coseu ao espaço que lhe fora confinado.
Apesar de todo este sentimento suspeito, o de um aspirante a Arquitecto,
que já vira demasiadas vezes a obra e a intenção, há que reclamar alguma
verdade na descrição. Ela está presente na escala que em pouco se aproxima
da típica e comum cidade indiana, apenas encontrando alguma semelhança
com a monumentalidade da área Presidencial de Delhi, sua axialidade e impo-
nência, sendo o desenvolvimento urbano de Chandigarh levado a cabo de um
modo lento e quase que ainda por acontecer.
As largas vias conseguem dissolver o caótico trânsito, apenas sentindo na
hora de ponta algum burburinho em nada comparado com qualquer outro lo-
cal do País. É uma organização quase anti-natura, uma contradição e um pa-
radoxo. Se o ciclo da vida se tem desenvolvido de uma forma mais ou menos
certa, com as perdas e ganhos a si inerentes, tentar organizar e colocar cada
coisa em seu lugar torna-se um gesto descontextualizado, talvez um pouco au-
tista e “Godlike”. É difícil defender que não deverá haver organização num es-
paço onde sempre imperou a desordem ou colocando a questão de um modo
mais suave, onde toda a realidade se rege por outras leis e sentidos, levando-
-nos a interpretá-la como caótica e desequilibrada. Mas por outro lado, há uma
maravilhosa interpretação do caos e naturalidade na desordem, que uma vez
reposta, se veste do acto de domesticar um animal selvagem que nunca havia
vivido segundo a inflexibilidade da regra.
Será porventura a rigidez do quarteirão, o Corte transversal do arruamen-
to, o planeamento da Escala e a previsão do choque entre os vários meios de
locomoção quer motora quer animal, das mais variadas formas e feitios, que
fazem com que a Cidade apresente esta fluidez que ao mesmo tempo é falsa
no sentido de resolver (que se poderá entender como uma negação à verda-
deira natureza do lugar) os problemas que o tráfego tráz à metrópole indiana.
Falta densidade e compressão, falta o irrespirável ar, a atmosfera densa
de cheiros e ruídos, existe ordem mas deixa também de existir referência espa-
cial, levando a uma padronização de todo o espaço urbano. Talvez falte uma
diagonal, ou um elemento vertical que nos posicionasse na malha urbana. O
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O Capitólio, Chandigarh. Fotografia do Autor
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Sector 17, ainda que o centro da cidade, num modelo de espaço público cen-
tral, praça rodeada de arcadas onde o comércio se desenvolve, com uma das
suas quatro frentes destinada ao Cinema, reflecte um pensamento Europeu de
espaço livre e transitável, num só material, claro e limpo.
A Análise cairá sempre na tentação de encarar o Sector 1, O Capitólio, como
um pedaço de história, estudando as suas relações entre volumes e vazios, topo-
grafia e percurso, detalhe e construção, largando para lá todo o resto do Corpo,
tal qual, quem sabe, Le Corbusier o fez aquando do desenho do plano.
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A Ordem, Agra. Fotografia do autor
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O Rigor, Fatehpur Sikri. Fotografia do Autor
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A Ordem
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O Tanque, Amritsar. Fotografia do Autor
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duas vigas diagonais, apoiadas nos vértices do quadrado, conversava com os
seus conselheiros posicionados nas extremidades da estrutura, numa alusão ao
simbolismo budista e suas primeiras formas de expressão, na imponente coluna
central, representante da entidade superiora.
Confesso que a minha leitura de Fatehpur Sikri, me emocionou ao ponto
de despoletar em mim uma crença na arquitectura e na sua transmissão de sen-
timento, no impacto da simplicidade, na força matriz de um processo brilhante.
Mais que o próprio Taj Mahal, comprimido pela sedenta fome de capital, centra-
lidade mundial e fonte de rendimento da população de uma das cidades mais
pobres e degradadas de toda a Índia, Agra. Um autêntico íman, com a muralha
a separar o caos do paraíso, concedendo algum equilíbrio mediante a hora de
visita, da contemplação, ao confronto com as massas que por ali deambulam,
termina em suspiro de desalento. Há o outro lado, poucas vezes referenciado,
que se esmaga sobre a muralha tal qual o tsunami numa represa em betão,
salpicando e tentando ultrapassar o obstáculo com a força que nele se vai acu-
mulando.
Paralelo a tudo isto, pela espiritualidade e mística, Amritsar foi sem dúvida
a alma reconquistada, o divino na terra. Se a arquitectura nos deve tocar por
tudo o que é materializado e pelo que a presença física desencadeia dentro
de cada indivíduo, a atmosfera do lugar, o seu pulso e forma de estar, de se dar
a conhecer, de se percorrer e a sua influência no espírito de cada indivíduo, é
uma outra virtude. Se de um lado o modelo arquitectónico do engenho e da
ordem, do outro a imponência branca do amor, foi a crença que naquele mo-
mento arrepiou o meu mais profundo desconhecimento acerca do metafísico,
do que será o depois de amanhã, de tudo o que representa a pequena palavra
“fé”.
Há uma dualidade de morte e sangue derramado. Em 1984 numa esca-
lada de violência, Indira Gandhi ordenou a invasão do Templo Dourado, com
nome de código “estrela azul”, último reduto da defensiva na qual o templo foi
destruído e a resistência Sikh massacrada.
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O Banho, Amritsar. Fotografia do Autor
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A cidade de Amritsar, a escassos quilómetros do Paquistão, é um outro
caso de cidade que se “alimenta” do seu lugar de culto, apesar de, ao contrário
de Agra, a “Fátima” da religião Sikh, ser um espaço de contribuição comunitá-
ria, de entrega, partilha e de voluntária razão.
O complexo é rodeado por bazaars, complexas teias comerciais que se
vão desenvolvendo ao longo da malha urbana, apertadas e irrespiráveis, um
fervilhar de pessoas atropelam-se e há uma constante sobreposição de pala-
vras. Há uma necessidade pura de aproveitar o acontecimento, a ida ao tem-
plo para conseguir amealhar umas quantas rupias. A arquitectura como cen-
tralidade, como símbolo de uma religião e cidade, como força viva e motor do
comércio e actividades locais.
À entrada do complexo religioso, descalçam-se os sapatos, a celebração
é feita no sentido dos ponteiros de relógio, com o templo ao centro do vasto
espelho de água. Lavam-se os pés, e ao longo do percurso há momentos de pa-
ragem e oração. As cabeças coloridas, sempre tapadas, seguem em direcção
ao edifício banhado a ouro, que reluz no centro deste microcosmo.
Entretanto, ao tentar desenhar o templo, tive de me levantar do mármore
fresco e densamente trabalhado com motivos geométricos, para que, com bal-
des, se lavasse todo o “chão sagrado”.
No interior do Templo Dourado, são orados os cânticos que se ouvem no
exterior, e ainda na plataforma adjacente ao edifício, bebe-se a água do gran-
de tanque e come-se uma espécie de pão amassado no local envolvido numa
folha da qual não me recordo a árvore.
Por último segue-se o banho final sempre com a cabeça coberta pelos
exuberantes turbantes.
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A Escala, Chandigarh-Agra. Fotografia do autor
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O Corredor, Sleepertrain N11. Fotografia do Autor
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A Escala - A primeira experiência minimal.
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O Piso de Cima, Sleepertrain N11. Fotografia do Autor
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“Pani, pani, pani water!”
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Madchester, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Planta de desenvolvimento de Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação de Riyaz
Tayyibji
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Madchester - Ahmedabad
“Ten years ago, they say, there was nothing in Gurgaon, just water and
fat Punjabi farmers. Today it´s the modernest suburb of Delhi. American Express,
Microsoft, all the big American companies have offices there. The main road is
full of shopping malls – each mall has a cinema inside! So if Pinky Madam missed
America, this was the best place to bring her.”
The White Tiger, Aravind Adiga
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A Comunidade, Ahmedabad. Fotografia do autor
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da malha se interligam e estão intimamente relacionadas entre os vários pontos
que constituem o centro histórico, criava assim um contexto único onde as tipo-
logias como a Pol ou o Chowk, originam espaços sublimes. Uma hierarquia se
forma, várias camadas constituem a cidade, havendo uma completa ligação
entre o meio, religião, sociedade e arquitectura.
A segunda, o novo desenvolvimento do lado Oeste, reflecte uma Ahme-
dabad que, segundo Vivek Nanda, é uma completa contradição ao que ou-
trora fora a cidade, ironicamente renegando todas as características singulares
da velha malha, do velho centro, dos velhos costumes. O betão amontoa-se,
a escala torna-se quase que desumana e repete o que já fora visto em milhen-
tas outras metrópoles, desrespeitando os princípios base que tornam a vida no
velho centro sustentável e mais aprazível, rasgando-se grandes vias, criando-se
marcos no território, modernizando-se e vendendo a alma ao Corporativismo e
Capitalismo.
Esta nova face do lado de lá do rio Sabarmati, que não cessa de se ex-
pandir, de se ir formando, de se ir transformando numa selva de betão, auto-
-rickshaws, autocarros e ferros-velhos, possui também a face de uma nova Índia
de desenvolvimento rápido, que substitui a construção dedicada que conjuga
as várias artes por uma padronizada e impessoal. Consigo recordar bem Ashram
Road, ou mesmo a Drive-in Road, com longas vias de vinte e cinco metros de
largura, separador central pintado às riscas pretas e brancas como se de um
circuito automóvel se tratasse, edifícios com uma cércia de quatro a cinco pi-
sos, de uma arquitectura completamente descontextualizada e anormal. É uma
consequência do crescimento e do êxodo para a metrópole, sendo a Índia um
País com mais de um bilião e cem milhões de habitantes, estima-se que cerca
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O Tráfego, Ahmedabad. Fotografia do autor
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de trinta por cento desta mesma população viva em áreas urbanas.
Toda a riqueza histórica, todo um passado engenhoso, substituído por uma
busca incessante pelo mais moderno, pelo actual, pelo estilo internacional que
se vem a desenvolver nas últimas décadas, pelos shoppings e grandes superfí-
cies, pelas várias vias que descongestionam o tráfego, pelos inúteis planos de
desenvolvimento que deveriam ter.
Foram frequentes as visitas ao Himalaya Mall, a grande superfície comer-
cial, de triplo pé-direito, estrutura metálica, néons, animação, MacDonalds e
Nike entre todas as outras marcas e todo o complexo resto que bem conhece-
mos das nossas centenas de exemplos negativos e catastróficos, com os quais
lidamos no nosso quotidiano. Era um alvoroço incompreendido, inexplicável
adaptação a um contexto que não fazia parte do mecanismo. Uma falsa natu-
ralidade deambulava no seu interior.
“É desta onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como
uma esponja e se dilata. Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter
o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas,
nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios,
nos postes das bandeiras, cada segmente marcado por sua vez de arranhões,
cortes e entalhes.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
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A Evolução, Ahmedabad. Fotografia do autor
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dernidade. Depois de tanta insistência, da pacífica resistência ao Colonialismo,
das várias vagas que assolaram o “Continente Indiano”, as gerações presentes
começam finalmente a ceder ao facilitismo da Imagem sobre o Simbólico. Há
também o controlo das massas, ou o sustento do País reforçado por um peque-
no grupo de empresas que possuem cidades-fábrica. Verdadeiros campos de
concentração, competindo com a produção Europeia, sem condições mínimas
de trabalho e remuneração, numa verdadeira corrida de contra-relógio, onde
a nossa longevidade começa a perder a consistência de uma maratona, em
que a Tata ou a Reliance, assumem um reinado que coordena desde o simples
tijolo ao último modelo informático. Há um domínio absoluto do mercado onde
a oferta é nacional, altamente especializada, e acima de tudo barata. Assusta
pensar que há uma cidade como Jamshedpur, cidade da tecnologia, onde a
Tata desenvolve todos os seus equipamentos com extensas linhas de montagem
e uma indústria de siderurgia e informática sem igual.
riques
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O Equilíbrio, Ahmedabad. Fotografia do autor
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forte investimento político e social por parte da família Sarabhai, impulsionando
a construção de grandes obras modernas, desde o museu da cidade de Le Cor-
busier à magnífica IIM (Indian Institute of Management) de Louis Kahn, possuindo
um vasto espólio arquitectónico ainda hoje protegido pela aura de continuida-
de de um dos últimos ícones da arquitectura indiana vivo, B.V.Doshi.
Ao longo do tempo que lá estive, senti que perdi vários quilos de bens
materiais, perdi também peso devido à alimentação baseada em vegetais e
condimentos vários, mas mais importante que tudo isto, ou menos preocupante,
foi o facto de me sentir mais leve, nas intenções, na alma, no espírito, retirando
a muita responsabilidade e preocupação inútil que existe a toda a hora e nes-
te preciso momento, em Portugal ou em qualquer outro lugar que não aquele.
Será porventura a nossa religião, centenas de anos sobre a tensão do Cristianis-
mo, sobre a luta entre o Bem e o Mal, entre o Paraíso e o Inferno, entre o Cas-
tigo Eterno ou a Recompensa Divina que nos formatou como desconfiados e
tacanhos, vivendo vidas que em nada reflectem os “ensinamentos de Cristo”,
ou a velha máxima “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”?. Será a nossa
Arquitectura um autêntico reflexo de uma vida num único sentido, de resposta
dupla, calculista e fria, comedida e concentrada no dia de amanhã e na boa
acção do hoje?
Rodeamo-nos de imenso lixo mental, e normalmente as nossas preocupa-
ções e metas não passam disso mesmo, de lixo que apesar de não ocupar um
lugar físico no espaço público, ou de não encher prateleiras ou poluir cursos de
água, nos consome a nós, sob o conceito de stress ou depressão. Senti realmen-
te, vivendo naquele País, que as lixeiras mentais de cada um daqueles seres se
resumem a equações bem mais importantes e menos superficiais que as nossas.
O Mundo Terreno encontra-se coberto por uma película de surrealismo, de um
lirismo puro, de uma crença inabalável que nos toca com frequência seja pela
iconoclastia dominante, ou pelos constantes “namasté” e acenares de cabeça.
Revejo as conversas que tive com alguns amigos indianos sobre o Hinduís-
mo, sobre o Equilíbrio de todas as coisas, e sobre o percurso que cada um de nós
vai conquistando até Nirvana. Numa ocasião, caminhando na rua apinhada de
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O Heterogéneo, Ahmedabad. Fotografia do autor
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gente com a Manisha a meu lado, em busca por uns quantos rolos de 35mm
para a câmara fotográfica, num aperto tive necessidade de passar por cima
de um cão que dormia no passeio sobre a sombra do edifício a si pertencen-
te. A Manisha observou, dizendo que nenhum ser vivo teria o direito de passar
por cima de outro, de calcar ou espezinhar, de se opor pela presença física,
independentemente da raça ou “encarnação” pela qual o espírito, ou Atman,
se materializa. O cerne da questão residia na pergunta “gostavas que alguém
passasse por cima de ti?”. O meu redondo Não, resignou-se à minha vergonha,
à minha posterior reflexão sobre as simples palavras de uma miúda de um metro
e meio, que aparentava ser mais nova que eu uns bons dez anos, ainda que não
o sendo!
“Ancient Indian spiritual thought integrates humans with the cosmos pre-
senting an understanding that the processes of the cosmos are directly related to
human existence. With this understanding, ancient Indian civilization has always
respected its environment”
Modern Traditions – Contemporary Architecture in India, Klaus-Peter Gast
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As Redes, Ahmedabad. Fotografia do autor
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As Camadas, Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação de Riyaz Tayyibji
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As Redes
A Rua
Imagine-se uma cidade medieval, ruas estreitas, problemas graves de sa-
neamento e higiene pública, alta densidade e um “pré-pós-revolução indus-
trial”, onde os vários meios de deslocação, quer motora, quer animal, convivem
das mais diversas formas, misturando-se o camelo e a mota, o triciclo e o maca-
co, o carro e a vaca. Ao invés de construções em pedra, o betão empilha-se,
a chapa remata, os pisos sucedem-se, a ventilação escasseia. A vida decorre
normal e sem sobressaltos à cota da rua.
É na Rua que tudo se sucede, sem ser um mero corredor ou linha direita
que une vários pontos da cidade. É nela que várias vertentes da vida social,
comercial e doméstica se desenvolvem em espaços que se vão sucedendo,
multiplicando, nos chamados Bazaars, onde tudo se vende, tudo se consome,
tudo se cruza. O arruamento de um quarteirão condensa um sem número de
camadas visíveis e invisíveis.
A necessidade de extensão do espaço privado para a esfera pública,
num misto entre o produto que vai até ao cliente e o cliente que se confronta no
imediato com o produto. Ou a básica ideia de aumentar o espaço de exposição
e arrumação, ocupando o máximo de área possível. É nesta troca dinâmica, di-
recta e que não se limita ao lote, montra ou vitrine, unificando e amplificando a
comunicação horizontal entre os espaços, que se cria uma continuidade entre
o interior e o exterior, consequentemente transformando o todo num só. Daqui
nasce um conceito de rua em movimento, em mutação e em constante dife-
renciação, tendo como principal factor o método, a matéria-prima e o modus
operandi do vendedor. Além do ruído sonoro, o visual é uma constante e faz
parte da táctica de persuasão, como um zapping constante, projectando-nos
várias imagens numa questão de segundos, levando-nos a um movimento rápi-
do do olhar que se cruza com os transeuntes ou os veículos motorizados.
O trânsito será um espelho dessa diferença, com um código da estrada
renegado onde o que importa é a ocasião, furar pelo denso tráfego preenchi-
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A Papelaria, Ahmedabad. Fotografia do autor
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do pelos mais variados meios de locomoção motora e animal. Neste contexto,
onde se confunde a revolução industrial e a agrícola, onde todos os elementos
que constituem a nossa imagem de rural se sobrepõem à densidade urbana e
às suas características inerentes, misturam-se dois alfabetos originadores de uma
língua nova, apta e tremendamente fluída. Um caos que se vai organizando
com um chega para lá, um toque aqui, um toque acolá, um desenrasque cons-
tante. Neste alfabeto conseguimos falar e escrever com a dualidade, com o
antagónico, onde a ordem implementada no mundo Ocidental que hierarquiza
e organiza a via pública, se inverte numa anarquia harmoniosa que só pode ser
compreendida quando vista a funcionar. É um vasto fluxo de gentes, mercado-
rias, meios motorizados e animais, que se cruza e preenche os limites do espaço
público sempre em metamorfose. Uma massa disforme, heterogénea, ruidosa e
dinâmica vai preenchendo as ruas, os bazaars, as avenidas, as praças e os mer-
cados.
Senti que passava uma esponja sobre o vidro molhado, ia sugando as
gotas, a pouco e pouco formando uma opinião. Tudo ia ganhando um sentido,
ainda que completamente contrário ao modelo a que estava habituado, no
Porto, em Delft ou em qualquer outro lado onde já tivesse estado.
Talvez o reforço da ordem e rigidez que a Europa Central me tinha vindo
a ensinar desde o início do ano de Erasmus, fosse a preparação para a viagem.
Agora sinto que para valorizar a paz, precisamos da guerra, para valorizar o si-
lêncio precisamos do intenso ruído.
“...a rede das passagens não está disposta num só estrato, mas segue
todo um subir e descer de escadas, patamares, pontes em arco, ruas suspensas.
Combinando segmentos dos diferentes trajectos aéreos ou à superfície, os habi-
tantes dão-se todos dias à distracção de um novo itinerário para ir aos mesmos
lugares. As vidas mais rotineiras e tranquilas em Esmeraldina decorrem sem se
repetirem.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
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A Rua, Varanasi. Fotografia do autor
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Recordo-me de Delft, uma peça única, um espaço de continuidades, de
coerência material e de uma lógica que remonta a uma Europa Central fria
e calculista, controlada e controladora. A ordem das coisas nunca me pare-
ceu tão certa quanto surreal, tão correcta como imperfeita, tão previsível como
artificial. A sobreposição das duas imagens, da primeira, de um espaço onde
uma janela não ousa deslocar-se de uma métrica global ou um peão não ousa
atravessar a rua fora da passadeira e sem um sinal verde, ou uma segunda na
qual nada será previsível, se rege por uma regra unitária ou se repete de forma
contínua ou diária.
Estima-se que a principal fonte de rendimento é esta escala de comércio
minimal, assente em produtos do dia-a-dia de uma realidade básica e adaptá-
vel, com um enorme fluxo de trocas. É normal que o mesmo local de trabalho,
podendo ter desde um metro de largura por quarenta centímetros de profundi-
dade, seja também ele a habitação.
Este princípio é espalhado por toda a cidade, e passando ao ponto in-
termédio do local de trabalho, seja ele temporário ou efectivo, ele é bastante
flexível e adaptável. O mercado permuta de locais da manhã para a tarde,
também com base na exposição solar, ou numa rotina, um percurso por si toma-
do de modo a “alimentar” determinada área. O comércio de pequena escala,
quase que um mini-mercado, aparece como um dos principais meios de subsis-
tência, com o aproveitamento de pequenos espaços, frequentemente pratelei-
ras entre vãos, armários em paredes exteriores, que com a flexibilidade e gestão
de recursos dos nativos, se sucede com naturalidade em espaços mínimos no
qual o aproveitamento é máximo. Os chamados “serviços informais”, de baixo
custo e que tendencialmente cada vez mais especializados e locais fazem parte
da economia paralela, das chamadas industrias sombra, segundo Patralekha
Chatterjee, as vidas sombra dos que alimentam a máquina do capitalismo por
míseros dólares. São eles quem limpam o lixo dos condomínios, lavam os auto-
móveis de alta cilindrada ou entregam o jornal matinal.
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As Portadas, Ahmedabad. Fotografia do autor
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As Fachadas
Imaginando o arruamento com uma largura não superior aos três metros,
com uma quantidade infindável de acontecimentos extraordinários e sem par,
num constante alvoroço e sem repetição, onde a surpresa nos abala de minuto
em minuto, ou com maior frequência ainda, a profundidade é negada com a
persistência da sobreposição de planos, ao invés de uma linha direita da qual
avistamos um fim, a rua sucede-se em catarata, criando uma espécie de zigue-
zague e as fachadas confrontam-nos à medida que vamos deambulando pelo
espaço. É como imaginar um desdobrável que se vai adivinhando num cons-
tante multiplicar de imagens, entre detalhes e reflexos, ritmados pelas portadas
abertas, pelas janelas fechadas, pelas roupas nos estendais ou pelas esguias
figuras que se pronunciam janela fora. Nas fachadas, densamente decoradas
com fios e cabos e rolos eléctricos sem fim, painéis publicitários ou néons colori-
dos, antenas parabólicas e guarda-sóis, símios e pássaros entre acontecimentos
mil, a vida e o quotidiano decorrem num segundo anel como nos estádios, onde
se observam e se desenrolam maioritariamente novos desenvolvimentos da vida
em comunidade. Um “layer” que se sobrepõe ao já sobrelotado e composto da
cota da rua.
Os alçados camuflam as gentes, por entre uma parafernália de tecidos
de todas as cores e feitios, ou tapados pelos artigos diversos das várias drogarias
apertadas entre paredes de meação, em busca de mais espaço para que se
exponha tudo aquilo que no momento julgamos precisar mas que ao fim de dias
concluímos ter a mais na despensa ou na sala de estar, na cozinha ou no quarto.
Existe um plano cinematográfico que bem caracteriza e expressa este
sentimento, esta sensação de instantâneo bombardeamento informativo, onde
nos vemos parados no meio do turbilhão, o stopmotion. A cabeça parada, a
face esgazeada, o meio que nos envolve em constante transformação e me-
tamorfose, como líquidos de consistências e pigmentos distintos que se mistu-
ram e confundem, para nossa surpresa. Esta é uma aproximação válida, numa
tentativa de relacionar uma técnica do cinema à leitura que se debruça sobre
algo tão aberto a explicações e relações, necessitando deste reforço para que
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O Segundo Anel, Varanasi. Fotografia do autor
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ganhe algum sentido e intensidade. Ao descortinar esta relação, apelo ao leitor
a busca por essa imagem, agora transfigurada à talha com a tinta vermelha a
descascar, as paredes rebocadas manchadas, o emaranhado de linhas e va-
randas e marquises e vultos, guardas em ferro forjado ou alvenaria partida, todos
colocados no mesmo balde, coloridos de modo diferente, mexidos com uma
colher como quem mistura as massas de um bolo adquirindo a consistência para
ir ao forno.
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O Chowk, Ahmedabad. Fotografia do autor
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As Pols
Tipologias primordiais da cidade velha de Ahmedabad, constituem os co-
rações dos quarteirões, sendo o seu bater que alimenta a vida no centro da
cidade, e principalmente as relações familiares e comunitárias, em que cada
Pol tem funções básicas determinadas aos seus habitantes e até mesmo um
templo para orações. Se procurássemos uma resposta rápida num modelo Eu-
ropeu, poderia ser visto como um condomínio fechado rudimentar. A diferença
está na intimidade criada pelas galerias e lavabos partilhados pela comunidade
e nas suas áreas mínimas. Os quartos viram-se para os espaços de circulação e
para o pátio central, sendo a maioria dos fogos organizada segundo uma sala
multi-funções e uma cozinha. Normalmente possuem uma ou duas entradas, o
tráfego é limitado no seu interior e cada pol pertence a um meio religioso/social
ou mesmo laboral.
É neste pequeno mundo interior onde se podem verificar os elementos
base da sociedade indiana, na hierarquia familiar e na divisão de tarefas en-
tre homem e mulher. A educação das crianças é feita através deste meio tão
controlado, onde as famílias partilham experiências e modos de subsistência. Há
também a necessidade de trabalhar no local da habitação, onde os processos
manuais imperam e micro economias se desenvolvem. Há uma mística muito
forte nas pols, criada pela sua escala reduzida e intensa, pelo contacto muito
forte e pelo conhecimento mútuo. Um contacto que no mundo Ocidental se
torna cada vez mais pontual, frio e distante, entre vizinhos e moradores do mes-
mo bairro ou área residencial. Esta escala familiar/comunitária interliga as várias
famílias e as várias actividades, estabelecendo laços e relações fortíssimas e es-
pecíficas a cada lugar.
Partindo da família para a comunidade, e consequentemente desta para
a cidade, é neste princípio, estilo de vida local e comunitário, que muitas das
actividades económicas fundamentais à subsistência de inúmeras famílias in-
dianas se desenvolvem no meio habitacional. Aliando o local de trabalho ao
local de residência, poupa-se um novo espaço intermédio que surge entre a
produção e escoamento do produto, reduzindo-se custos e consequentemente
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A Privacidade, Ahmedabad. Fotografia do autor
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controlando-se outros factores que em tudo têm a ver com a relação entre fa-
mília e comunidade onde se insere.
A questão da identidade, referida através da classe, da profissão ou reli-
gião, atinge um grau de definição e expressão no trabalho decorativo das fa-
chadas, dos capitéis das colunas ou frescos, utilizando-se motivos vegetalistas,
humanistas e religiosos.
Existe na Pol um lado invisível, cuja amplitude assume como base o religio-
so, sem esquecer os factores sociais e culturais, criando um lado metafísico, um
entendimento invisível e de difícil compreensão para o Ocidente. Os espaços
são mínimos, as vidas são partilhadas, o carácter quase comunista de uma par-
tilha obrigatória e uma vida em contínua troca e permuta de bens e serviços,
na qual uma hierarquia básica estabelece os contactos e as regras de um meio
demasiado pequeno para ser compreendido por nós como um modelo váli-
do. Pernoita-se nos corredores quando a temperatura assim o exige, as crianças
brincam nas galerias e as mulheres educam todas as crianças como se dos pró-
prios filhos se tratasse, e os templos são locais sagrados que trazem harmonia ao
centro da Pol.
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O Oásis, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Karma, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Oásis
Acredito que para se ser bom no que se faz, há que aprender com os
melhores, beber das suas palavras, registar os momentos e claro, persistir nas
constantes tentativas e erros. É também verdade que nem sempre o melhor
Arquitecto é o melhor professor, talvez porque a sensibilidade e a intuição do
desenho seja tão pessoal e tão interior que transmiti-la se traduza numa difícil
tarefa, ou até porque nem sempre se possui o dom da oratória, ou a paciência
para ensinar, ou até nem parta de quem a recebe, essa vontade de aprender.
Doshi privou com os geniais, em conversas que imagino valer mais que vá-
rios anos de estudo ou pesquisa solitária. Foi o seu trabalho em projectos como
o de Chandigarh ou o IIM, que lhe transmitiram conhecimento, experiência e
paixão, referências num mundo demasiado gratuito e esteticamente rendido.
Assim se compreende como a sua arquitectura pode espelhar tamanha certe-
za, tamanha reflexão sobre o lugar das coisas, o percurso, a aura. A razão de
ser sempre questionada, a relação íntima entre a família, a crença, a textura, e
segundo ele, a vontade de manter a frescura dos anos de infância, não levando
demasiado a sério a vida para poder respirar o dia de amanhã.
O seu ateliê, nosso local de trabalho, fez parte e contribuiu em muito para
a compreensão de várias temáticas que antes desconhecia…
Sangath aparecia dissimulado, seguindo pela Drive-In Road, à frente da
enorme antena de televisão em betão armado, por detrás de um muro em bai-
xo relevo geometricamente ornamentado. Por entre as enormes árvores, o lo-
bby exterior acolhia-nos, dávamos entrada numa nova realidade, bem distan-
te da que se desenrolava na rua, numa recta perfeitamente paralela que eu
acredito que só no mais distante infinito se toque, o edifício era um hino a tudo
o que dessa aprendizagem atrás referida pode significar. A aproximação era
feita pela lateral, obrigando-nos a penetrar na vegetação, ver o reflexo do edi-
fício no pequeno espelho de água faseado, em cascata, com rãs e nenúfares,
enormes peixes vermelhos a deslizarem suavemente no seu fundo, sinal da Vida.
Os macacos por vezes apareciam para nos saudar. No percurso até à entrada,
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Os Nenúfares, Ahmedabad. Fotografia do autor
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tocávamos o sino de bom Karma, tentávamos a nossa sorte e a entrada, sobre
a abóbada da esquerda, levava-nos ao nicho, à antecâmara que nos tráz a in-
timidade com a imagem de uma divindade ao lado da porta. Da luz reflectida
no branco forte do exterior, amplificado pela água que vertia da cobertura no
revestimento do edifício, em pleno contraste com o cinzento-escuro do betão,
dá lugar a uma passagem escura onde a nossa visão se tenta adaptar à fresca
temperatura e ao momentâneo desconhecido. Será à semelhança da entrada
do CEPT, Faculdade de Arquitectura do mesmo autor e na mesma cidade, uma
plena passagem entre exterior e interior, sendo os nossos sentidos o cerne de
toda a interpretação. O forçar a adaptação, a cegueira temporária e o des-
conhecido, as primeiras imagens a aparecer, a escultórica escada destacada
com a sua guarda vermelha, os desenhos e as maquetas afixadas às paredes,
os esquissos de Louis e Jeanneret, o legado, as fotos dos tempos de juventude,
os postais as cartas as memórias. Uma densa introdução.
Os lanternins iam ditando o caminho até à nave central, com um pé di-
reito duplo que se relacionava com a cobertura praticável, o ruído da água a
ecoar na circular cobertura, a sucessão de mesas a marcar o ritmo do trabalho.
Ao subir as escadas, um novo espaço duplo aparece à direita, o meu gabinete
de trabalho com uma curta e íngreme escada até ao último piso, escassos cinco
metros quadrados de corredor e mesa de trabalho. A intimidade do piso superior
era o resguardo da reflexão, tal qual os gabinetes adornados por trepadeiras e
cores quentes, das quais Barragan não se envergonharia, que na penumbra e
abraçada pela suave brisa que a percorria, acrescentavam um toque humano
ao espaço, um alegre apontamento de calma que apaziguava o espírito com
o reconforto do sorriso no nosso rosto.
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O Eterno, Shelter. Digitalização do autor
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“Back to a place I wish I never left. Back to a place because I’m feeling
so bereft today.
Where saints and sages walk right down the street. As they kick the dust
The monkeys chase the peacocks all around. While a Sadhu offers pray-
Because I’ve been living without giving back and losing touch with what’s
A resting place to finally belong. A land where every step’s a dance and
These costumes I wear get heavier day by day. Want to strip it off and
I want to go back!”
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O Privado, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Quarto, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Privado - Uma nova forma de habitar
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O Terraço, Ahmedabad. Fotografia do autor
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viagem atrás de viagem.
Gostava de caminhar até à rua, dar mais uns passos até ao cruzamento,
mirar o pequeno quiosque instalado à frente do cunhal do quarteirão mais pró-
ximo, um amontoado de tijolos toscamente rebocados, pintado de vermelho
sobre o patrocínio de uma qualquer marca de telecomunicações, rematado
superiormente pela chapa ondulada e com a ligação directa à rede de electri-
cidade urbana. Sentava-me no banco revestido a pastilha colorida e de novo
vislumbrava o cruzamento, dissecando-o como se de uma proveta da socieda-
de se tratasse, dois sentidos sem prioridade, sem regra, interrompido ora freneti-
camente ora monotonamente, marcando o ritmo da adversidade.
Quando a noite chegava, o terraço era o meu quarto, o meu e de quase
todo o resto do grupo, deixando a privacidade e o pudor de lado, aprendendo
a viver sem os limites outrora impostos pelo quotidiano, ou melhor dizendo, as
limitações, possuindo todo o espaço que pretendesse até ao vazio das estrelas.
Se a Arquitectura existe para nos abrigar, também existe para nos aproximar das
incertezas de dias como os de hoje, alimentados pelo nada que nos consome,
pelo escuro do desconhecido. Assim me senti, ao olhar os inúmeros pontos bran-
cos, ouvindo o apito do comboio lá longe, a perder de vista.
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A Estrada Perdida, Boticas. Fotografia do autor
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As Covas, Boticas. Fotografia do autor
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A Estrada Perdida
gem queimada que ainda há pouco tempo era de um verde gritante, onde os
vários planos se vão sucedendo numa profundidade sem fim na qual o nevoeiro
confere uma certa mística, emergiu um acordar agitado num comboio que fez
árida paisagem, aqui e ali pontuada por pequenos sinais da presença humana.
Hoje, escrevo sobre a Índia com o reflexo em Portugal, no que mais intrín-
visado sobre a nova laje da casa assente no antigo muro de pedra. Nesta negra
sala, onde muita carne já foi fumada, com o guindaste da panela por detrás
partida solitária de milhares que se revoltaram contra o fado da terra, numa paz
que talvez só tenha paralelo no Alentejo, silêncio que nos abraça e envolve e
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O Espigueiro, Boticas. Fotografia do autor
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que nos afaga de uma forma totalmente diferente daquela que encontrei no
tão distintas, tão enraizadas e ligadas a um modo de estar e a uma cultura es-
vidos de interesse num mundo aos quais não pertencem, é agora, sentado nesta
sala escura e rodeado por reflexos amarelados e sombras esguias que repenso
o nosso Portugal, retirando de Covas do Barroso a sua alma única. O seu Atman.
vendida ou iludida por tudo que há de novo na “nova” Cidade. Sejam eles o
café que lhe surge desde casa até à pequena povoação, e que de modo in-
mam este pequeno meio rural, é um perfeito reflexo desta paradoxal simplicida-
de.
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O Legado, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Palácio, Sarkhej Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Legado - Sarkhej Roza
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A Seca ,Sarkhej Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor
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falta de fundamento ou investigação. Foi um período em que um dos grandes
ensinamentos foi a questão do faseamento, do saber parar, da investigação
objectiva, da interpretação madura mas rápida que pudesse dar resposta a um
programa de habitação social com cento e cinquenta fogos, numa importante
área de Ahmedabad.
Acredito que para um estudante local, a dificuldade fosse já acrescida,
falávamos de uma zona delicada, de um ícone da cidade, uma questão de or-
gulho, uma questão de passado ultrapassado pelas buscas do presente. Recor-
do-me das palavras de Balkrishna Doshi, sempre metodica e cuidadosamente
escolhidas de modo a conseguir transmitir a solenidade do tema, da interven-
ção na abordagem a Sarkhej Roza como uma imagem de um passado feliz, do
convívio nas enormes escadarias que terminavam no vasto espelho de água,
de todas as esferas que se cruzavam num único espaço central, num autêntico
“monumento vivo”. Era necessário reabilitar a área envolvente, devolver o brio,
parar a especulação imobiliária e também voltar a preencher o vasto espelho
de água.
O Monumento
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As Nervuras, Ahmedabad. Imagem de Neelkanth Chhaya
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cheias de gentes a lavar roupa, a banharem-se, a conversar nos seus degraus.
Em vez de tudo isso, a cor sépia da terra seca, das fissuras e estrias, do desolado
abandono, preenchem-nos de um vazio equivalente ao da ausência da água.
Há um grave problema na evolução, na especulação crescente. Sarkhej já não
é excepção de há uns escassos anos para cá.
A Topografia
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O Adeus, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Sarkhej Roza é directamente influenciada por estes dois períodos, sendo
ciclicamente reposta a água do seu enorme “tanque”. Porém, a nova vaga de
construções que se foram desenvolvendo na sua envolvente, desconectou vá-
rios cursos de água e consequentemente debilitou o reabastecimento do gran-
de espaço central. Há um metódico e natural ciclo de drenagem de águas que
nos últimos anos tem sido cortado gradualmente, contribuindo fatalmente para
o abandono e decadência do monumento e também do próspero cultivo que
outrora compôs esta área rural.
O Objectivo
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A Conversa, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Este conjunto de valores é o primordial ponto de equilíbrio no exercício de
projecto, o principal foco na concretização do plano de desenvolvimento para
Sarkhej Roza, onde se enquadravam o desenho de cento e cinquenta fogos e
consequente espaço público e infra-estruturas necessárias.
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O Negócio de Família, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Ahmedabad Times, da escalada de terror registaram-se 790 muçulmanos e 254
Hindus mortos.
A vaca como animal sagrado, que no bairro Hindu é um medidor socio-
económico, cuja aparência é um reflexo do grau de rendimento do bairro onde
vive e consequentemente se alimenta, converge na contradição da sua vulga-
ridade na comunidade Muçulmana, criando até uma situação antagónica na
qual o seu sacrifício para alimento se traduz num acto imperdoável aos olhos do
Hinduísmo.
Mas é relevante compreender o que se verifica em Sarkhej e na grande
maioria das favelas, onde, sempre que os “squatters”, habitantes ilegais, ultra-
passam o limiar da pobreza, sem condições para uma separação, a necessida-
de dita a aproximação e convívio entre as comunidades. Os bairros conjugam
estas duas facções, ou possuem limites entre eles quase imperceptíveis. A mes-
quita de Sarkhej Roza é um local para onde converge a comunidade Muçulma-
na mas co-existem outros templos Hindus nas proximidades, relacionados tam-
bém eles com pequenos bairros da mesma religião.
Esta vasta área habitacional é caracterizada por construções faseadas,
que se vão prolongando no tempo, feitas em tijolo e com coberturas em zinco,
ou em fases mais avançadas em lages aligeiradas que vão evoluindo mediante
as posses dos seus proprietários. Há uma visível transformação, ano após ano,
das fachadas e das ruas, mantendo-se quase sempre o espaço público em terra
batida, com o desperdício e esgoto aí depositados. Um pormenor interessante é
o controlo do espaço imediatamente adjacente à habitação, limpo, num alcan-
ce que é variável e que demonstra um sentimento de pertença além do espaço
interior da habitação. Este sentimento de pertença engloba-se numa complexa
hierarquia do espaço público que se desenvolve na cidade e particularmente
em áreas como esta, na qual a escassez de espaço interior promove a procura
de novas soluções que integram os espaços exteriores. Esta vida na rua é parte
integrante da habitação, ainda que haja uma clara e marcada separação en-
tre público e privado, são os espaços ao ar livre principais focos de dinâmicas
sociais e actividades quotidianas. A extensão do interior para o exterior possui o
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Análise da evolução da habitação. Desenho do autor
128
dom de manter limpos os estreitos arruamentos, o que já não acontece quando
há uma distância superior entre as fachadas, originando espaços centrais bas-
tante descuidados nos quais se vão acumulando dejectos e lixo das mais varia-
das formas, cores e feitios. É interessante percebermos a ténue linha que separa
este jogo de espaços e as regras que o pautam, compreendendo que há uma
íntima relação entre o vazio e o abandono, entre a sombra e a ocupação, entre
a escala e a pertença.
Ao percorrermos a malha, apercebemo-nos das várias camadas e da sua
transformação à medida que nos afastamos dos principais arruamentos, surgin-
do uma grande variedade de soluções tipológicas e de uma riquíssima varieda-
de de soluções construtivas e materiais.
Junto às estradas e principais acessos, a habitação desenvolve-se em
duas frentes, uma que se relaciona com a via em si, estabelecendo actividades
económicas que sustentam o seio familiar, e outra localizando-se no seu lado
oposto, a esfera privada e as actividades do quotidiano. Há uma repetição do
estreito lote, com um espaço comercial na fachada frontal meramente separa-
do por uma parede em relação aos espaços privados da habitação. À medida
que nos afastamos destes arruamentos e penetramos no interior poroso e de-
sorganizado dos improvisados quarteirões, iniciamos um percurso que nos leva
gradualmente a soluções mais fugazes e temporárias, com construções mais
precárias e com diferentes estados evolutivos. A habitação torna-se então um
reflexo do meio que percorremos e de quem a habita, relacionando-se direc-
tamente com o grau de rendimento do seu “proprietário”. As soluções encon-
tradas em áreas mais pobres englobam o uso de materiais baratos e de baixo
custo frequentemente reaproveitados. A pedra, tijolo ou blocos de cimento de
habitações com um índice de rendimento superior contrastam com os recursos
mais básicos como a lama, adobe, pedaços de chapa ou plástico dos meros
abrigos que nascem como cogumelos nos cada vez mais raros espaços vazios.
129
O Desenrasque, Ahmedabad. Fotografia do autor
130
“Não há nada de básico na habitação básica”
How the other half lives, Center for Minimum Cost Housing, McGill University, Montreal
“At the door to my house, you´ll see the most important member of my fa-
mily.
The water buffalo.
She was the fattest thing in our family; this was true in every house in the
village. All day long, the women fed her and fed her her fresh grass; feeding her
was the main thing in their lives. All their hopes were concentrated in her fatness,
sir.
If she gave enough milk, the women could sell some of it, and there might
be a little more money at the end of the day.”
The White Tiger, Aravind Adiga
131
O Desenvolvimento, Ahmedabad. Fotografia do autor
132
diferentes do planeamento urbanístico escasso e limitado das Instituições Mu-
nicipais, são o principal meio de expressão e o espelho de uma sociedade em
crescimento estonteante. Assim se espalha a cidade como um balde de água
sobre o pavimento, criando-se novos centros, ainda que minimais, novos focos
de produção e subsistência que não competem com o velho coração da cida-
de mas que criam permanências e sustentam esta nova textura urbana.
Esta vasta área é parte constituinte da grande massa que se vai aproxi-
mando a pouco e pouco de Sarkhej Roza, rodeando a sua entrada a Este, e
girando sobre a ela.
O oposto desenvolve-se a norte, onde a densidade é trocada por cos-
mopolitas e urbanas referências à habitação perfeita, aos jardins privados e às
piscinas em pastilha azul. Há a multiplicação do género “condomínio fechado”,
do videoporteiro, do segurança do complexo, da vida Ocidental. Um Admirável
Mundo Novo. A escola pública ao ar livre dá lugar ao ensino privado separado
pela grande muralha, o verde do campo de jogos, o ar condicionado do seu
interior, contrastando com o ar que sopra nas folhas da escola dos meninos po-
bres. Retiro deste fenómeno um pouco aquilo a que chamo a doença do Euro-
peu, a nossa ânsia por protecção e controlo, o horário de entrega da criança
e o horário de a retirar de uma das muitas escolas ATL, centros de explicações,
onde no fundo esperamos que sejam lugares nos quais as crianças possam ser
educadas sem que risquem as paredes dos nossos apartamentos, sem que es-
murrem os joelhos, sem que nos façam todas as perguntas que nós fazíamos aos
nossos pais, sem que se percam pelos pátios e quintais e jardins e ruas da nossa
133
O Acesso, Ahmedabad. Fotografia do autor
134
vizinhança que não conhecemos, o vizinho do 4ªEsq ou o dono do café em fren-
te. Interessante perceber que até na Índia, onde vi crianças a correr despidas
pelo lamaçal feito rua, ou a jogar intermináveis horas de cricket ou entregues às
várias mães do cluster onde viviam, haja quem possa optar por inverter e subver-
ter a sua realidade e educação, em prol de modelos “limpos e civilizados” que
formatam a geração de hoje para as não adversidades do amanhã.
“At the present housing developments seems to have become almost sy-
nonymous to uniform – standardized group o dwellings, restricting man´s natural,
cultural tendencies towards variety, differentiation, hierarchy and individuality.”
Appropriating One´s Space: Process and result in the Indian context, Sunita Kalsaniya
“Se por um lado este país não pára de fascinar e surpreender, quer pelo
património (... maioritariamente ao abandono e pouco cuidado, o que em Pe-
nafiel se faz com a Rota do Românico, aqui se faria com milhentas outras coisas)
cultura e religião, a outra parte da Índia é dura.
Sofremos da doença do Europeu. Actualmente viciados no mundo digital,
com os putos em infantários e escolas das 8 às 18h, a aprender a mexer no Ma-
galhães e a falar Inglês, vacinados contra tudo, a lavar as mãos a cada hora,
com paracetemol para as gripes e constipações, com os pais apressados para o
trabalho, ou a pensar nas inúmeras imbecilidades do dia-a-dia, sem tempo para
criar ou deixar os putos viver (se é que eles realmente querem viver). Aqui não
há passeios, as lojas são à moda antiga, os mercados aparecem porque são
carregados durante quilómetros, há pó e há lama, as pessoas andam descalças
dentro e fora de casa, as vacas dormem e andam pela rua, não há leis de trân-
135
A Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor
136
sito, não há novas modas e ainda se anda com bocas de sino, os putos andam
largados nas ruelas, pulam, saltam e brincam com garrafas de plástico, riem e
parecem mais felizes que 90% das crianças que conheço da Vila Gualdina. Aqui
não se troca de roupa nem se toma banho, não se escovam dentes a não ser
com cana-de-açúcar e os comboios e meios de transporte públicos levam 6 ou
7 vezes a sua capacidade máxima. As pessoas caem e riem-se, (...) correm por
todo lado, os pais não se preocupam com os raptos e há velhotes em todo lado.
A religião é colorida e não oprime, eles vivem as vidas que precisarem para che-
garem a Nirvana e parecem não se importar com mais nada.
Enfim, parece que todos esses deuses se esqueceram da Índia, de Ganesh
a Brahma (...) mas as coisas apesar de caóticas, vão funcionando. (...) come-se
com as mãos, bebe-se água da torneira e não há mosquito que os mate.”
Um Delicado Sentido de Equilíbrio, Nuno Sousa
137
Vistas aéreas de Sarkhej Roza
138
O Plano
139
Esquemas de densidade das várias tipologias propostas em Sarkhej Roza
140
se aproximar do novo acesso através de três tipologias distintas. Na primeira,
que faz a frente de rua, o meu colega Jelmer pretendeu relacionar o espaço
comercial com o habitacional, através da arcada e de duas cotas que se vão
entrelaçando quer à cota baixa quer à cota da rua, obtendo sombra através
das árvores que são parte constituinte do desenho do espaço público. Numa
segunda camada, propus uma zona de crescimento e transição que pudesse
estabelecer desde logo uma intenção ainda que controlada, uma base para
a imprevisível ordem de todas as coisas. No limite do terreno e numa zona agrí-
cola, é o carácter comunitário e orgânico do crescimento horizontal o principal
motivo do desenho. A Clara, reinterpretou o cluster e seus moldes, tentando di-
namizar e criar uma tipologia em constante metamorfose, directamente rela-
cionada com o cultivo do terreno, o dos corpos de água e sua importância, e
acima de tudo, a conjugação entre o meio e as capacidades de socialização
que os pequenos espaços de tensão criam entre os vários habitantes.
A oeste, a intenção era de ultrapassar a barreira imposta pela linha férrea,
ligando e unificando, criando uma nova praça que serviria de ponto de chega-
da na qual o espaço minimal da densa malha desafoga e dá lugar a uma área
de convívio e trocas comerciais, fortemente relacionadas com um equipamen-
to que desde o início se adivinhava como sendo uma Estação de Comboios.
A este, um pequeno corpo de água apresentava-se como principal meio
de sustento do trabalho da cerâmica local, anexando a si um conjunto de ha-
bitações em lonas e plástico, temporárias, onde as comunidades migratórias
viviam durante o período de produção levada a cabo através da terra húmida
extraída do corpo de água. Aqui surge a intenção de não só recuperar a sua
produção como de lhe conferir condições, restabelecendo os limites e devol-
vendo a água ao vazio que se encontrava por preencher.
Há neste eixo por nós proposto, uma relação com o principal percurso
da velha malha de Ahmedabad que interliga o Forte de Bhadra, a mesquita
de Jama Masjid e a pol de Muhurat. Este núcleo duro, que interligava o poder
de decisão, o poder religioso e a área residencial, expandiu-se segundo dois
eixos e baseou-se, segundo Vivek Nanda, num Nandyavarta Mandala, rectan-
141
A Porosidade de Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação do arq. Neelkanth
Chhaya
142
gular relação entre quarteirões que se unifica através de dois eixos. O principal,
este-oeste, interliga o Bhadra Fort, Jama Masjid, Mausoléu do Rei, Mausoléu da
Rainha e de seguida a vasta área residencial composta de um sem número de
pols: o Pura. Esta densidade é consolidada através de uma permuta de escalas,
desde a habitação à comunidade, ao bairro, quarteirão e cidade. A relação
que se retira do eixo, meramente simbólica, não evoca directamente a hierar-
quia institucional atrás referida, nem lhe pretende conferir a mesma escala, é
sim, uma reflexão e uma referência sobre a qual nos debruçamos nas transições
e relações entre as várias texturas e escalas da habitação e espaço público.
O percurso estabelece então, nesta nova entrada para Sarkhej Roza, uma
relação entre o sector urbano e habitacional, os templos que se embebem na
malha, o corpo de água existente e agora renovado, a valorização da eco-
nomia local através do apoio à cerâmica e da criação de novos espaços de
trocas, e uma nova plataforma intermodal capaz de incutir novos fluxos a esta
área. Não é este gesto uma linha recta, mas antes uma linha que vai de en-
contro a situações específicas que se cruzam com as tipologias e volumetrias
propostas para o novo arruamento, à semelhança do que acontece na velha
Ahmedabad.
143
144
O Tétris, Ahmedabad. Fotomontagem do autor
145
Esquissos base. Desenho do autor
146
O Tétris do Privado
147
A Base. Desenho do autor
148
os objectos sobre ela pousados.
Surgiu então a ideia de uma Base que indicasse um caminho, que lan-
çasse uma regra e criasse um modelo simples de habitação. Este modelo era
composto por um pequeno espaço exterior, de introdução e relação com a rua
e que funcionaria como primeiro filtro para a esfera privada. Este ténue patamar
separa o interior e indica um limite na sua relação com a cota do arruamento.
Há nestes pequenos espaços determinadas funções que se relacionam sempre
com o espaço público, como por exemplo lavagem de roupa, confecção de
alimentos, resguardo para bicicletas ou mesmo uma cama extra que em noi-
tes quentes é colocada neste pequeno alpendre. As extensões posteriores na
fachada principal das habitações, são um acrescento comum e frequente, au-
mentando o espaço e a coesão e interacção sociais. A sombra por ela criada,
para além de tornar o espaço agradável, controla a temperatura da parede
exterior da habitação, reduzindo assim a superfície de contacto solar.
No seu interior, procurou-se um espaço contínuo, simples, polivalente e
capaz de responder ao maior número de situações sem que condicionasse a
sua utilização. Daí o espaço da cozinha ser a zona mais resguardada, embebi-
da na fachada de tardoz e ligada ao pátio. A intenção é a de criar dois pólos
exteriores, um ligado com o público e outro exclusivamente privado, e este últi-
mo adiciona o conforto do céu aberto e da ligação com o meio à natureza. A
árvore e a sua sombra.
Numa fase posterior, pode eventualmente sofrer modificações que o tor-
nem num novo compartimento ou numa outra área semi-coberta e ventilada.
Recordo-me de uma moradia que visitei na nova Ahmedabad, uma pequena
reabilitação, cuja cozinha se estendia para um minimal pátio, apenas composto
por uma mesa e uma cobertura vegetal que permitia a passagem de ar e con-
sequente ventilação. Era uma extensão agradável, um espaço que apelava à
contemplação do micro-cosmos pelo homem criado.
No centro um pátio interior debita luz no seu âmago, resolvendo também
questões que se relacionam com uma adequada ventilação transversal da ha-
bitação. Um espelho de água deveria surgir, recuperar o reflexo para o seu inte-
149
A Proposta. Maquete do autor
150
rior, transmitir calma e simultaneamente constituir um ponto de armazenamento
das águas pluviais. O seu encerramento propõe-se como ténue, sem quebrar a
relação com a água e seu simbolismo. Este pequeno vazio estabelece-se tam-
bém como ponto de diálogo com o crescimento da habitação, que, ao se de-
senvolver através da escada que compõe o volume dos lavabos, enunciará um
sentido de chowk, uma referência de espaço comum interior sobre o qual os
espaços de circulação superiores se debruçarão.
Este único volume das escadas constitui os lavabos. Este compartimento
é normalmente um espaço de dimensões mínimas, apresentando apenas um
ralo para escoamento de águas saponárias provenientes do banho, e um vaso
sanitário embutido no pavimento. A redução dos custos alia-se assim à falta de
espaço. Em várias conversas se falou na simples water tap e no buraco no chão,
simplicidade e acutilância.
Este modelo é uma interpretação da tipologia “Site and Services”, con-
ceito que traduz o planeamento através do loteamento no qual cada lote é
apenas constituído pelos serviços de saneamento e abastecimento de água
básicos.
O complexo de Aranya, projecto da Vastu Shilpa Foundation para Indore,
Índia, é um exemplo de sucesso. O planeamento é então um exercício de nega-
tivo-positivo na relação entre o espaço público e o vazio, na qual se projectam
as linhas principais e se calculam as relações entre os espaços exteriores, que
irão condicionar e contaminar o construído. A imagem da planície vazia, ape-
nas demarcada pelos passeios e estradas, polvilhada de pequenas “caixas”.
O construído, por sua vez, será o produto da evolução individual tal qual
as principais premissas da cidade não planeada. Há uma intrínseca relação en-
151
A Adaptação. Fotomontagem do autor
152
tre este plano e tudo o que compõe a malha e a forma da urbe indiana, retirada
de um intenso estudo e conhecimento da realidade e contexto que o envolve.
O assenta na “mesa”, como um tétris, com a sobreposição de variadas
volumetrias sobre o terraço da cobertura. O terraço é também ele, lugar de re-
pouso, contemplação e espaço de eleição.
“To the poor in their cramped dwellings, the roof terrace and the courtyard
represent na addictional room”
The Blessings of the Sky, Charles Correa
153
154
A Estação, Ahmedabad. Fotomontagem do autor
155
As Mercadorias, Ahmedabad. Fotografia do autor
156
A Estação
“A major event in Indian history took place in 1991 when the government
abandoned the socialist Project in favour of a liberalized economy, integrating
the Indian economy with global realities. This “liberalization” had a huge impact
upon urban Indian Architecture. Corporate Architecture connected with global
finance became a significance chunk of architectural activity with its glass and
aluminum façades and universalized expressions.”
Modern Traditions – Contemporary Architecture in India, Klaus-Peter Gast
157
Organigrama entre a Estação e as várias partes que compõem a envolvente
158
do para a cidade em busca de novas oportunidades em típicos paralelepípe-
dos de ferro e chapa, criativamente decorados, manifestando a sua presença
através dos mais variados sons de buzina, matizando as estradas num vai-e-vem
vertiginoso e non-stop, amontoando-se nas extremidades das estreitas estradas,
em áreas de serviço, autênticos descampados apenas com uma construção
central na qual se podia aceder aos escuros lavabos e a uma refeição que em
último caso teria de servir de ceia e contento.
Mas se a rede de estradas é impressionante e caótica, é no caminho-de-
-ferro que a Índia encontra a sua maior rede de transportes.
Uma estação de comboio poderá, à primeira vista, não passar de mais
do que uma simples plataforma intermodal, sistemática e funcional, que serve
como ponto de partida e chegada, como elo de ligação entre a cidade e o
país, que no seu sentido mais básico estabelece um conjunto de linhas com o
intuito de unir vários lugares. Um desenho pautado por pontos numerados num
estilo infantil de quem desenha nos cadernos de folha cinza reciclada. Frequen-
temente, ao se unir os pontos de forma abstracta, criam-se barreiras na cidade,
linhas dificilmente transponíveis e que causam problemas, quebram rotinas, blo-
queiam fluxos para que outros nasçam. No caso de Sarkhej Roza, são duas as
linhas intransponíveis, consequências da moderna mobilidade, a auto-estrada e
a linha de caminho-de-ferro que se apertam, estabelecendo entre si um espaço
extenso e fino. Há então a necessidade de desenvolver uma relação, de trans-
por esse limite recente com a criação de um equipamento de transição, uma
nova ponte que interligasse e proporcionasse uma nova comunicação com o
Monumento e seu acesso.
Como a linha já lá estava, surge a estação.
Na verdade, numa cidade indiana, a estação de comboios é mais que
um simples equipamento, sendo ao mesmo tempo uma praça, uma superfície
comercial e um abrigo onde todas as classes sociais se encontram devido à mul-
tiplicidade de ligações conferidas pelo comboio e pelo seu uso generalizado e
transversal a todo o país.
159
PRODUCED BY AN AUTODESK EDUCATIONAL PRODUCT
160
Produz emprego e é fonte de rendimento e de diferentes escalas de tro-
cas económicas. O já referido carácter das economias paralelas, da sua grande
versatilidade e capacidade de intervenção e interpretação do que é público,
no urbano e na sociedade, com um forte carisma tradicional e local, empreen-
dedor, onde o artesanal se sobrepõe ao padronizado e industrializado, é tam-
bém aqui na estação que tudo se desenvolve. As mais pequenas e comuns ban-
cas vendem revistas, tabaco de mascar, água fresca ou refrigerantes. Alguns
aventuram-se na selva de pessoas, transportando frigideiras e um sem número
de dosas, samosas e pav bhaji que vão sendo produzidos à medida que são
consumidos. As bases deste fenómeno prendem-se na relação entre meio de
trabalho e habitação, fortemente condicionados pela mobilidade, escassa e
sobrelotada, que leva a que se conceba novos focos de subsistência fora dos
centros urbanos. A tal economia sombra em paralelo com a convencional que
se aproveita do espaço, não só físico mas também imaginário, o que sobra de
todo o resto, a chamada “brecha” na qual todos tentam entrar.
“At the community level, the need of daily necessities and goods encou-
rages commercial developments to take place in any residential area. This is also
encouraged by the necessity to generate work or income means in the nearest
possible location”
Appropriating one´s space: Process and result in the Indian context, Sunita Kalsariya
161
O Caderno Vermelho. Imagem do autor
162
camarárias de funcionamento e quilometragem. Também eles se concentram
nas novas e velhas centralidades da cidade. Um conjunto de pontos amarelos
a furar pelo tráfego com o único intuito de juntar umas rupias.
Durante os vastos períodos de viagem, as estações adivinharam-se as-
sim, locais de uma grande sobreposição de camadas, texturas, cores e cheiros,
num impressionante despoletar dos sentidos de quem as percorre e não lhes
pertence, condicionando no seu interior os transeuntes que esperavam pela
sua partida deitados sobre a pequena manta, num retalho de muitas outras do
lobby principal, entre vacas e cães, mercadorias e malas, das quais ainda hoje
me recordo e enquadram a minha imagem mental da estação de Varanasi.
A linha propriamente dita, era um local demasiado sujo, equiparando-se a um
esgoto a céu aberto, onde míseros rapazes e raparigas o percorriam em busca
de algum alimento perdido junto dos fugidios ratos.
Uma Estação. Uma Estação que é ponte, é praça, é abrigo, é corpo de
água, é sombra e é mercado, é residência e é o sentido da mobilidade, a via-
gem.
Um volume esbelto, capaz de se impor sem agressão, de criar uma “pare-
de” em relação à auto-estrada, deixando-se simultaneamente penetrar, trans-
parecendo calma e serenidade ao mesmo tempo que quebra e ultrapassa a
contínua azáfama da linha. Um miradouro sobre o monumento e novo arrua-
mento, um espaço aprazível para que se contemple a cidade, suas histórias e
intrigas.
É um gesto entre linhas transversais, entre uma outra linha que termina na
praça, orgânica, a curva que abraça o espaço público, que confronta com a
rigidez da massa que envolve. É também esta rampa motivo do percurso que
não é directo, que celebra o ciclo da vida através da ascensão, e que retoma
o ritmo da água na sua estrutura, concentrando-a numa “bolha” que serve a
povoação e equilibra o espaço a si adjacente. Esse espelho de água reforça o
valor social e de contacto entre gentes, podendo ser um local de banhos, de
limpeza e de trabalho também.
A cobertura do edifício é um percurso que interliga o jardim e espaço
163
Os Esquissos. Desenhos do autor
164
verde com a água que cai directamente na tensão com o vazio, originando
um espaço interior que reflecte a luz e transmite tranquilidade ao seu interior.
Este ponto produz uma ligação com o corpo de água exterior, armazenando-
-se água na cave do edifício de modo a conseguir reter o máximo possível para
o período seco, e a temperatura da água arrefecer o piso térreo, ajudando a
controlar a climatização do espaço interior sem recurso a meios mecânicos.
No seu interior, a bilheteira é o volume orgânico que compõe o espaço de
entrada, o grande lobby de pé direito total, mantendo-se uma clareza espacial
da fachada de tardoz que se guia pela rampa, sendo também ela o brise-soleil
e coberto que ampara da chuva e do sol. Um volume escuro se destaca desta
capa uniforme, acolhendo os serviços da estação, lavabos e nos pisos superiores
um módulo de habitação minimal.
Este módulo pretende dar resposta aos movimentos sazonais da produ-
ção de cerâmica, concentrando os seus esforços no novo ponto que colecta
as águas pluviais, trazendo novas dinâmicas para a esfera pública. Cada fogo
possui três níveis distintos, directamente relacionados com o grau de iluminação
e usos, atingindo a privacidade necessária através da rampa exterior. Um pe-
queno compartimento com um sanitário, lavatório e chuveiro, destaca-se do
espaço comum e cozinha, acedendo a um segundo nível já com um grau de
iluminação inferior de repouso e salvaguardado, e num terceiro, o espaço de
meditação e retiro na penumbra, com luz indirecta proveniente do corredor ex-
terior e da franca abertura vertical que compõe a fachada principal.
Pretendi ver nesta escultura que remata a chegada à estação, a interpre-
tação pragmática do invisível, de todo um país que se vai articulando, multipli-
cando, fornecendo respostas às mais complicadas e exigentes questões. É esta
a minha resposta, a nossa resposta.
A discussão com o Charles foi uma constante. Não sobre o projecto
em si, ambos estávamos de acordo com a implantação, com a relação entre a
área de intervenção de ambos e interligação entre as mesmas. A discussão fora
quase sempre acerca da vida, da oportunidade, da celebração de tão vasta
aprendizagem e no alegre fado que nos bafejou. Porque quanto à atitude, na
165
A Maquete 1/500
166
cooperação e desenho, ambos concordamos que deveríamos deixar margem
de manobra, lugar ao improviso e interpretação. Um espelho do que acontecia
à nossa volta.
A planta livre, um volume de serviços no seu interior, a fachada cega que
apenas marca a entrada e retira relação com o interior. O circulo da bilheteira
que se deixa envolver pelos fluxos das gentes e dos pertences. A intensa escuri-
dão da entrada lateral, o seu alto pé-direito e monumentalidade que se inspirou
nas muitas obras modernas que vislumbramos em Ahmedabad e Chandigarh, o
lugar do sagrado, o seu balaço constante entre o caos e o equilíbrio da bonan-
ça.
Mais importante do que perceber de que forma seria construída, ou se
a discussão incidia sobre a materialidade, agora afastado e ao repensar no
projecto, acredito que o exercício fosse sempre este, o de conseguir sintetizar,
através de toda uma viagem, as pequenas lições que juntamente com a nossa
Escola do Porto na bagagem, se aliariam ao desenho e compreensão do que
era a cidade, o bairro, a comunidade, a praça e a mutação d e tudo isto.
Talvez passeando todas as imagens, esta seria uma soma de todas as pre-
missas, sonhos, noites, conversas, discussões, diálogos e monólogos, ardor no es-
tômago e cansaço.
Nota:
As primeiras ideias, esquissos, discussões e estudo da Estação levados a cabo com o mais que
167
168
O Invisível, Varanasi. Fotografia do autor
169
A Árvore, Varanasi. Fotografia do autor
170
O Invisível
171
O Ziguezague, Varanasi. Fotografia do autor
172
sendo depositadas no rio junto dos que se banham, ou dos que se lavam ou
simplesmente escovam os dentes. Há este limite sempre ultrapassado de forma
quotidiana, paulatinamente, sem que nada de anormal se passasse. Um conví-
vio entre os mortos e os vivos, sendo o corpo uma mera representação da nossa
alma, da nossa passagem efémera e intermitente, no tempo e na vida, em vá-
rios ciclos. Há uma predominância da alma sobre o corpo, do simbólico sobre o
material, e isso reflecte-se directamente na Arquitectura pela sua espontaneida-
de, num acto meramente prático de modo a resolver um problema de abrigo,
de espaço, de economia.
O edificado abraça a natureza, parece tudo demasiado específico, uma
franca pertença à topografia do terreno sagrado que se pisa, e os espaços su-
cedem-se como num thriller, o psicológico alerta-nos para o desconhecido. Esse
equilíbrio, a balança entre as várias partes é a imagem da grande árvore entre
a massa edificada, o adorno do arruamento, a sua razão de ser nunca ultrapas-
sada. O seu corte por razões de segurança, ou porque retira a vista, ou simples-
mente por estar no meio do caminho, não é razão suficiente para retirar a vida.
Havia também em Sangath uma cicatriz da árvore que fora retirada para que
o percurso de entrada se concretizasse, um memorial, um forte simbolismo intrín-
seco ao modo de construir, de ditar o futuro da terra onde se materializa a obra
de arquitectura. Há simplesmente respeito.
Na Índia, esse lado invisível é parte integrante da Cidade, do seu estilo de
vida, da sua arte e do seu modo de estar. Poderia ser o único mediador entre
o caos e a ordem, a única regra, a metafísica. O respeito pelo divino é a maior
plataforma de entendimento, o que une todo um mundo antagónico e hete-
rogéneo. Ao percorre-la, os sinais são evidentes e parte constituinte do mundo
agora visível, seja em templos, imagens sagradas, esculturas, símbolos cravados
na pedra, rangolis em degraus, yantras, mesmo que estejamos perante um dos
muitos novos centros comerciais que nascem como símbolo da evolução e se-
guimento dos modelos europeus. São estes elementos, segundo Charles Correa,
as paixões invisíveis que nos guiam, os elementos fundamentais da existência
e da crença no divino e na sua relação com o real, e na Cidade indiana essa
173
O Infinito, Varanasi. Fotografia do autor
174
busca ganha uma nova expressão e dimensão.
É difícil de descrever, o controlo total do corpo por baixo desta atmosfe-
ra. Há gentes que se deslocam a Banaras para morrer, para terminar o ciclo da
vida, atingir a salvação, a paz. Encontrei casas pátio frequentadas por quem se
deixa vencer, numa derrota com sabor a vitória, ornamentada por um último
banho no Ganges.
A cidade precipita-se para o rio num astuto e sistemático sistema de plata-
formas, os Ghats, onde se sucedem todas as actividades religiosas e quotidianas,
desde os mercados aos templos, ao banhos e até escolas de natação. A cidade
é aliás, o rio. Tudo o resto de si é desprovido de sentido ou interesse, é a mera ex-
pansão pela expansão, sendo o seu âmago prolongado pelo leito do Ganges,
nas suas plataformas e finos vasos capilares que coordenam a sua densa malha.
Do outro lado, numa clara contradição entre a densidade e a falta dela,
o deserto, num infinito plano que encontra uma linha sinuosa e caótica. Numa
manhã de neblina, o vasto espelho de água confunde-se com o horizonte, há
um vazio que nos envolve, uma cortina cinza esbranquiçada que nos vai reve-
lando aqui e ali vultos, disformes silhuetas de barcos ou objectos flutuantes, que
à semelhança do que se passa na densa malha urbana, vão-se adivinhando
de modo faseado. Interessante comparar como o vazio do nada consegue ter
tanto em comum com o seu oposto cósmico de acontecimentos existentes na
rua palpável e material, o construído que se opõe ao vazio.
175
A Hierarquia, Varanasi. Fotografia do autor
176
a viagem faz-se, acompanhados por hábeis nadadores ou crianças curiosas, e
vai-se percorrendo a margem, observando o quotidiano, a vida que por linhas
tortas vai passando, e com alguma estupefacção observamos as mil e uma coi-
sas que julgáramos impossíveis e se vão sucedendo com a maior naturalidade.
“What would happen to Banaras if the Ganges river was developed to look
like the Seine”
Blessings of the skies, Charles Correa
Om Namo Shivaya
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O Labirinto, Mumbai. Fotografia do autor
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A Corporação, Mumbai. Fotografia do autor
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O Labirinto
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O Retrovisor, Mumbai. Fotografia do autor
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constantemente enquanto percorri Bombaim?
“Yet how long will this last? How long before the neglect, the piles of debris,
the stinking garbage take their toll and the élan, the enthusiasm, of the citizens
slowly disintegrates? Then, as in the case of Calcutta, a kind of apathy begins to
set in, a stultifying indifference...”
Great City, Terrible Place…, Charles Correa
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O Bon Vivant, Mumbai. Fotografia do autor
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o olhar desgastado da íris baça que vive para contar o dia seguinte, nem que
este signifique desbloquear o nível abaixo. O livro de Pedro Juan Gutierrez, escri-
tor cubano que se deparou com a pronunciada decadência de Cuba nos seus
anos noventa, Trilogia suja de Havana, retrata o seu quotidiano e este constante
reformular do básico, da necessidade adiada, da descrença no dia-a-dia e no
que poderia ser sempre pior. O racional ultrapassado, a necessidade recalcula-
da e o futuro incerto.
Penetramos na área residencial e na escuridão anunciada uma fresta de
luz encadeou no corpo desgastado sobre a água e o sabão de um banho to-
mado numa larga bacia azul, sem constrangimento, sob o nosso olhar atento.
À direita, o enorme corredor. Uns curtos sessenta centímetros de largura, uns
baixos metro e oitenta sob a cablagem eléctrica, sobre as lajetas improvisa-
das por cima do esgoto. Neste corredor, com uns cem metros de comprimento,
lembrei-me do desafogo do corredor da minha Faculdade, da sua extensão e
aceleração de perspectiva, no calor rítmico dos seus cacifos. Lá em cima, o céu
desenhava uma escassa tripa rabiscada de fios e ritmada pelos remates ondu-
lados da chapa de zinco exposta ao sol. A diferença de temperatura era abis-
mal, mas o sentimento de claustrofobia imperava, o ar era irrespirável, o cheiro
intenso, a ventilação inexistente. As portas iam introduzindo os sinais privados de
interiores expostos a uma rua que era corredor, seis metros quadrados que eram
sala, cozinha e quarto que, com sorte, se ligavam verticalmente a outro espaço
de dormir. Depois de algum tempo, difícil recordar com precisão se segundos ou
vários minutos, viramos à esquerda para o pátio comum, vala de despejo dos
dejectos da comunidade, dos restos quotidianos, do desperdício humano.
Cada slumdog ou slumdollar declarava uma morada, um número na sua
porta, uma estrutura sanitária comunitária e uma lixeira pública, que as entida-
des municipais se comprometiam a esvaziar uma vez por mês, para novamen-
te se preencher e se povoar das necessidades básicas de quem ali habita. A
questão posta pelo nosso guia improvisado, era que entre irmos aos minúsculos
e sombrios Wcs comunitários e simplesmente subir o morro de lixo e dejectos, a
segunda hipótese era ventilada e ao ar livre. AC toilet.
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O Caos, Mumbai. Fotografia do autor
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Tão simples como somar dois mais dois.
Há uma passagem de Charles Correa no seu ensaio Great city… Terrible
places onde é descrita a cidade de Mumbai como o exemplo de uma rã e uma
panela com água a ferver. Se a atirarmos para dentro da panela com água a
ferver, o seu reflexo será o de saltar para o lado de fora, seguindo o instinto de
sobrevivência. Mas se colocarmos a mesma rã, numa panela com água morna
e gradualmente formos aumentando a temperatura da água, a rã irá relaxar,
encarar a situação e deixar-se-á ficar a arder em fogo lento, até que o relaxa-
mento dite o seu afastamento físico e mental, acabando por sucumbir à tem-
peratura da água. Serão estas as nossas cidades que gradualmente nos conso-
mem, de um modo ou de outro, lentamente levando-nos ao ocupado e muitas
vezes monótono abandono dos nossos sonhos e ambições, facilmente trocados
por outros interesses comuns e generalizados, acabando por nos aniquilar gra-
dualmente tal e qual a rã no seu relaxado banho de imersão?
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A Dualidade, Mumbai. Fotografia do autor
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“As cidades subtis. 4.
Se te descrevo Olívia, cidade rica de produtos e de lucros, para significar
a sua prosperidade não tenho outro meio que não seja falar de palácios de fili-
grana com coxins de franjas nos parapeitos das janelas geminadas; para lá das
grades de um pátio uma girândola de repuxos rega um prado onde um pavão
branco abre em leque a sua cauda. Mas deste discurso tu compreendes logo
que Olívia está envolvida numa nuvem de fuligem e gordura que se pega às
paredes das casas; que no tropel das ruas os reboques em manobra esmagam
os peões contra as paredes. Se devo contar-te da laboriosidade dos habitantes,
falo das oficinas dos arreeiros odorosas de couro, das mulheres que tagarelam
entrançando tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as
pás dos moinhos: mas a imagem que estas palavras evocam na tua consciên-
cia iluminada é o gesto que acompanha o mandril contra os dentes da fresa
repetido por milhares de mãos milhares de vezes ao ritmo fixado pelos turnos
das equipas de trabalho. Se devo explicar-te de que maneira o espírito de Olívia
tem a tendência para uma vida livre e uma civilização requintada, falar-te-ei
de damas que navegam cantando de noite em canoas iluminadas por entre
as margens de um verde estuário; mas é só para te recordar que nos subúrbios
onde desembarcam todas as noites homens e mulheres como filas de sonâmbu-
los, há sempre quem no meio do escuro desate a rir, quem dê o sinal de partida
às brincadeiras e aos sarcasmos.
Isto talvez tu não saibas: que para falar de Olívia não poderia fazer outro
discurso. Se houvesse uma Olívia realmente de janelas e pavões, de arreeiros e
tecelões de tapetes e canoas e estuários, seria um miserável buraco negro de
moscas, e para o descrever deveria recorrer às metáforas da fuligem, do chiar
das rodas, dos gestos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso,
está nas coisas.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
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A Catedral, Léon. Desenho do autor
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O Caderno Preto
Há vícios que se vão acumulando, uns mais intensos, outros mais fugazes,
outros que duram uma vida, alguns que afinal não passam de momentâneas
persistências, poucos aqueles que se tornam intrínsecos a nós.
O desenho, entre o primeiro que me lembro do Fred Flinstone a cortar a rel-
va com um dinossauro, até aos que entre pequenos pedaços de papeis, folhas
de segundas vias e cantos de cadernos de linhas, devaneios que apenas ocu-
pavam a mente nesse curto espaço de tempo e pequenos lugares isolados em
folhas e guardanapos e bilhetes de comboio, tornou-se um vício, do riscar por
riscar. Eram uma instantânea ocupação da necessidade de fazer algo mesmo
sentado, enquanto palavras entravam e saíam com a mesma facilidade com
que as linhas corriam a folha.
Com as aulas de desenho, descobri todas as regras que raramente tive
paciência de seguir, fosse o ponto central, fosse o enquadramento, fosse a li-
nha de horizonte. Talvez na minha ignorância, e sem que me aperceba, estas
referências surjam camufladas, nos confins perdidos do meu subconsciente. O
nervosismo e a hiperactividade, a constante motivação para ver acontecer,
retiram-me a calma e o tempo, tentando alcançar uma imagem mais ou me-
nos torta do que vejo e sinto, num instante curto e incisivo. Daí os desenhos não
terem um fim, começarem onde bem começam, e expandirem-se até os limites
da folha, numa perspectiva que se prolonga com o virar da cabeça, deambu-
lando com o olhar sobre aquilo que pretendo representar. As A4 facilmente se
transformaram em A3…
O repto lançado no quarto ano, na cadeira de História da Arquitectura
Portuguesa, do registo no caderno das viagens pelo Portugal frequentemente
perdido, marcou-me pelo prazer despoletado que até então desconhecia, de
conhecer os lugares, os edifícios, as ruas e vielas, através da contemplação do
desenho.
Quando parti para a Índia, achei interessante dar continuidade a este
processo. Um caderno de capa dura, preto, com ar resistente, passou a ter lugar
191
O Templo, Ahmedabad. Desenho do autor
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na minha mochila de quarenta litros. A espinha dorsal da viagem.
De desenhos mais contidos e retraídos, senti a evolução à sombra ou ao
sol, ou salpicado por tímidas chuvas, nos traços que me ajudavam a memorizar,
a gravar e a medir, num formato que ia bem além do ultra-rápido clicar de má-
quina fotográfica. E assim lá fui eu, obrigado a paragens de quarenta minutos,
trinta minutos, que progressivamente foram sendo reduzidas pelo à vontade e
comunhão entre mim e o caderno preto. Houve quem por mim esperasse e hou-
ve quem não quisesse esperar.
No final, passados uns meses, abri de novo esse caderno, raspado, roça-
do, roto nos cantos, com fita-cola a abraçar a lombada, e voltei a viajar no
tempo. De novo me sentei no passeio do primeiro desenho de Delhi (fig.1) entre
vendedores de bigodes falsos, flores e paan, ou rodeado de crianças que ob-
servavam atentamente e apontavam para o Humayun´s Tomb (fig2). Comprimi
de novo o peito, na imensidão da razão do Tribunal Supremo (fig.3), nas tímidas
chuvas que pontilharam a Assembleia e o Secretariado (fig.4), no rápido esquis-
so do Capitólio (fig.6) ou na suave linha da Escola de Belas Artes (fig.5). A paz
vermelha e azul de Fatepur Sikri (fig.7) chocou com o caos de Agra (fig.8) e na
sua alta muralha, divisão eterna entre duas realidades. Ahmedabad tomou de
assalto o meu olfacto na árvore sobre a qual me debrucei para desenhar o Tem-
plo do Sol (fig.11), na infindável escadaria do Stepwell (fig.9), na penumbra do
Museu de Ahmedabad (fig.10), ao lado da máquina de tear de Gandhi (fig.12),
no Oásis de Sangath (fig.14) ou num continuado e demorado adeus, deslizando
sobre a rampa de Le Corbusier (fig.15). Também James Bond me saudou no lago
de Udaipur (fig.13).
E nem nos últimos fôlegos de Kathmandu, sobre o templo (fig.16), na pe-
dra preta gasta, a ouvir cantigas de saudade aniquilado pela invejável alma
de Durbar Square (fig.17), me senti cansado de recordar, de voltar a ver, medir,
interpretar, nos registos mais fluidos e emotivos que no caderno constam…
Achei interessante resgatá-los como contadores de estórias que possuem
o condão de reflectir não só o olhar como também o estado de espírito que os
envolveu.
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Esquissos de Viagem, caderno 216, Índia, Álvaro Siza
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“A minha arte de pintar foi mais fecundada pelas ideias de Delacroix...era
um pintor de grande categoria, que tinha o Sol na cabeça e a Tempestade no
coração “.
Vincent Van Gogh
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[fig.1] Dal Killa, Delhi. Desenho do autor
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[fig.2] Humayun´s Tomb, Delhi. Desenho do autor
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[fig.3] O Tribunal Supremo, Chandigarh. Desenho do autor
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[fig.4] A Assembleia e o Secretariado, Chandigarh. Desenho do autor
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203
[fig.5] A escola de Belas Artes, Chandigarh. Desenho do autor
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[fig.6] O Capitólio, Chandigarh. Desenho do autor
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[fig.7] O Palácio, Fatepur Sikri. Desenho do autor
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[fig.8] O Taj, Agra. Desenho do autor
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[fig.9] Stepwell, Adalaj. Desenho do autor
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[fig.10] Museu da Cidade, Ahmedabad. Desenho do autor
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[fig.11] Templo do Sol, Ahmedabad. Desenho do autor
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[fig.12] Museu de Gandhi, Ahmedabad. Desenho do autor
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[fig.13] O Lago, Udaipur. Desenho do autor
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[fig.14] O Sangath, Ahmedabad.
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Desenho do autor com dedicatória de B.V. Doshi
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[fig.15] Millowner´s Association, Ahmedabad. Desenho do autor
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[fig.16] Durbar Square, Kathmandu. Desenho do autor
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[fig.17] Durbar Square, Patan. Desenho do autor
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Índice de Desenhos
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Namasté!, Kathmandu. Fotografia do autor
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O Escarlate, Kathmandu. Fotografia do autor
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Namasté!
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CEPT, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Vi Le Corbusier com as nossas marquises e caixilharias em alumínio do mais
baixo nível, vi os vidros estalados e as madeiras gastas, sentei-me nos relvados
secos e saltei para dentro dos vastos tanques sem água e com a tinta a descas-
car. Mas apesar de tudo isso, ganhou a Arquitectura e o tempo que sobre ela se
manifestou.
Nos meus primeiros dias em Ahmedabad, transmiti o meu encanto e sur-
presa pela falta de reabilitação e manutenção do espólio arquitectónico que,
ao invés de perder as suas qualidades iniciais, ganhava uma nova dimensão, o
tempo, transpirando personalidade e maturidade ao envelhecer. A resposta foi
simples e directa:
“Aos sessenta, não te vestirás do mesmo modo que aos dez, terás rugas no
rosto, a tua expressão transparecerá os dissabores e as alegrias da vida e a tua
idade será sinal de respeito. O mesmo se passa com a Arquitectura”
Abhijeet Singh
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A Silhueta, Ahmedabad. Fotografia do autor
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pertence a um processo individual.
Tudo isto é Arquitectura e tudo isto é vida, tão vital como a respiração e
tão livre de interpretação como um poema de Rilke.
O mecanismo era demasiado bom e apurado para se deixar anular por
tamanhos pormenores. O gesto fora experimentado um pouco por todo o mun-
do, afinal de contas o Modernismo simboliza isso mesmo, a adaptabilidade sem
a mesma, a repetição como verdadeira antítese da mesma, em qualquer lugar
poder existir uma cidade radiosa, uma curva da minha montanha, uma mão
aberta que dá e recebe. Uma enorme esquadria pronta a ser desenhada por
cada um, ocupada e interpretada, tornada única dentro das suas quatro pare-
des com vista para o infinito.
É assim que eu descubro a minha janela, no meio de tantas outras.
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A Escadaria Vermelho e Branca, Varanasi. Fotografia do autor
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tacto directo a nível do espaço percorrido e não apenas no imaginário visitado,
que me dediquei a transmiti-la, a realçá-la, a tentar alcançar as palavras e as
sensações, o apelo ao mais íntimo pormenor na relação com um meio distinto e
vasto, distantemente afastado do nosso. Será assim possível que a experiência
marque, o factor “trauma” reforce e demarque o acontecimento e a sua inten-
sidade faça eco em incontáveis noites onde se regressa à cobertura de Rana
Park, ao preenchido jardim daquele ateliê, às tremendas paisagens vazias que
se avistavam do comboio azul em andamento ou das poucas refeições quentes
e a horas sem repercussões de maior.
241
Invertendo Dimensões, Varanasi. Fotografia do autor
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do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho, nos lugares
estranhos e não possuídos.
Poderia ter escrito sobre a Rua, dissecando os seus diferentes níveis, obser-
vando as multidões chocarem como ínfimas colisões entre átomos ou dissertar
sobre a densidade, a falta de espaço, a claustrofobia, o caos minimal, a fuga
impossível de lugares sem fim. Debruçar-me somente sobre a religião e a sua in-
fluência fulcral na Arquitectura, o sagrado sobre todas as outras coisas, o Vastu
Vidya e os seus ensinamentos cromáticos. A praça ou o desenvolvimento da
cidade, o apelo ao Ocidente e o renegar crescente do passado como base fun-
damental e pilar forte de toda uma manta de retalhos à qual hoje chamamos
Índia. Poderia até cair numa articulada comparação entre o nosso e o vosso, o
meu e o teu, o deste lado e o do lado de lá. Apenas esta comparação serviria
de ponto de partida para inúmeras e variadas discussões e tertúlias. É apetecível
olhar nos olhos da mudança, interrogarmo-nos sobre o caminho que por lá se
toma, e simultaneamente atingir bem as profundezas do nosso próprio cosmos
e perceber que algo tem, merece, necessita, anseia e desespera por uma mu-
dança. Pensar localmente, thinking local.
Mas mais importante que tudo isto, é poder ter observado o mecanismo a
funcionar, filtrar a realidade e tentar adaptá-la de certo modo à vida que reto-
mei cá, seja na atitude, na perseverança, num novo olhar sobre todas as coisas
e sobre a sua ordem e relação com o caos, o modo como a Arquitectura pa-
rece tão simples quando na mão das pessoas e das suas metas. Foi para mim o
perfeito remate académico, o ensinamento que me faltava. E porquê? Porque
se apresenta como derradeiro e marcante desafio, o da distância, da perda, da
adaptação a um mundo predisposto à mudança e na rápida transformação/
interpretação do que o ordena e organiza. Todo este baralhar e voltar a dar, me
fez repensar várias vezes sobre o nosso papel aqui, o nosso objectivo, a nossa
meta final e, por incrível que pareça, esse aspecto está tão relacionado com a
Arquitectura como com o Humanismo, a Ciência ou a Religião. Essa é a pergun-
ta pela qual nos debatemos e auto controlamos, tentando responder de uma
forma que serene o nosso interior, acalme a revolta do incerto.
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O Sagrado, Varanasi. Fotografia do autor
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“Don´t worry too much, live your lives just like when you were a kid, with
childish dreams and thoughts”
Balkrishna Doshi
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A Cadeira, Ahmedabad. Fotografia do autor
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casa, lar, continuará a ocupar o mesmo espaço cósmico que até hoje sabemos
ocupar... poderemos é não ter condições de o fazer!
E agora que me aproximo de um final anunciado, tão prolongado e lento
que desperta em mim um sentimento de perda, de ausência deste universo que
descrevo, defino como meu primordial objectivo a transmissão sensorial do que
foi este percurso, ou melhor, toda esta viagem. Se porventura servir para que o
cheiro a caril misturado com combustíveis fósseis e materiais biodegradáveis,
penetre ainda que por fugazes momentos, o olfacto de quem lê, ou que, com
alguma perícia, se adivinhe o estreito corredor de Dharavi e a sua claustrofobia,
associada ao Sleepertrain N11, aniquile e reduza o interior de quem lê estas pa-
lavras, será para mim sinal de meta alcançada.
O que é tudo isto senão a partilha de paixões, vitórias e derrotas, sabedo-
ria e conhecimento?
Tudo o resto, será, certamente, apenas paisagem!
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248
Bibliografia
- ADIGA, Aravind (2008). The White Tiger. New Delhi: Harper Collins.
- CORREA, Charles (1989). The New Landscape : urbanization in the third world.
[S.l.] : Mimar Book.
- KALSARIYA, Sunita (2001). Appropriating one´s space: Process and Result in the
Indian Context. Ahmedabad: School of Architecture CEPT.
249
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- PANDYA, Yatin (2002). The Ahmedabad Chronicle: Imprints of a millennium.
Ahmedabad: Vastu-Shilpa Foundation for Studies and Research in Environmental
Design.
- RAJAN, Nalini (2010). The Indian Public Sphere. Nova Delhi: Arvind Rajagopal.
- VIEIRA, Álvaro Siza (2006). Imaginar a Evidência, trad. Soares da Costa. Lisboa:
Edições 70.
251
252
Glossário
Banaras - Varanasi.
Chowk – Pátio.
Cluster – Grupo.
Nirvana – Ascensão e união com o último estado sagrado. Paz absoluta e objec-
tivo final do percurso da vida e da morte.
Pani – Água.
Pav Bhaji – Comida rápida constituída por um molho composto por caril e outras
especiarias, acompanhado com pão.
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Rangolis – Motivos religiosos frequentemente feitos em paredes ou pavimentos.
Samosas - Chamuças.
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Os Nichos, Kathmandu. Fotografia do autor
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Explosões no céu originaram a primeira respiração depois do coma.
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