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PEDALAR CONTRA O VENTO

A arquitectura dos comboios azuis, das noites ao luar e das cidades intermináveis

Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura


FAUP - ano lectivo de 2010/2011
Nuno André Coelho de Melo e Sousa
Neste ponto final da Viagem académica, com algumas palavras expresso o meu
profundo agradecimento.
À Familía, pelo sempre presente apoio e motivação.
Aos Amigos e Docentes, pela partilha de longas e calorosas horas de trabalho,
discussão e convivío...
O Burburinho - Atelier musical

A Razão
Dead Combo – Cuba 1970
O Embate
Fanu - Amok
A Textura
John Murphy – In The House In a Heartbeat
A Ordem
I Hear Sirens – Like A Leaf From A Tree In It´s Dying Season
A Escala
65daysofstatic – Retreat! Retreat!
Madchester
Toundra - Bizancio
As Redes
My Sleeping Karma - Shiva
O Oasis
Bon Iver – Perth
O Privado
Kings Of Convenience - Homesick
A Estrada Perdida
Eddie Vedder - Society
O Legado
Battles - Atlas
O Invisível
Apparat – You Don´t Know Me
O Labirinto
Explosions In The Sky - First Breath After Coma
O Caderno Preto
Talons - Peter Pan
Namasté!
John Murphy – The Surface Of The Sun
PEDALAR CONTRA O VENTO
A arquitectura dos comboios azuis, das noites ao luar e das cidades intermináveis

Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura


FAUP - ano lectivo de 2010/2011
Nuno André Coelho de Melo e Sousa
2
O Índice, Varanasi. Fotografia do autor
3
Índice

9 Resumo
11 Resumé
13 Abstract

15 O Objecto, Objectivo de Estudo e Metodologia

18 A Razão - Introdução

32 O Embate – Delhi

40 A Textura – Chandigarh

50 A Ordem – Armitsar/ Fatepur Sikri/ Agra

58 A Escala – N11 Sleepertrain

64 Madchester - Ahmedabad
- Morfologia
- Crescimento
- Aura

78 As Redes
- A Rua
- As Pols
- As Fachadas

94 O Oásis - Sangath

5
102 O Privado - Uma nova forma de habitar

108 A Estrada Perdida - A Memória

114 O Legado - Sarkhej Roza


- O Monumento
- Topografia
- Objectivo
- Abordagem ao caso de estudo
- O Tetris do privado
- A Estação de caminho-de-ferro

168 O Invisível – Varanasi

178 O Labirinto - Mumbai

190 O Caderno Preto - Desenhos

232 Namasté! – Reflexões finais

249 Bibliografia

253 Glossário

7
Resumo

Esta Dissertação pretende reflectir sobre uma viagem efectuada à Índia,


subjacente ao programa Erasmus, através da interligação de várias esferas que
procuram cruzar a Experiência, a Fotografia, o Desenho, o Projecto e a Paisa-
gem Sonora. Pretende-se com isto, não só reinterpretar acontecimentos ocorri-
dos durante o período de Erasmus passado nesse distante país, conhecimentos
e premissas aí recolhidas, como através do olhar presente e mais distanciado
dessa realidade, interpretar e amplificar todo um leque de sensações e episó-
dios de modo a compreender o que permaneceu activo e constante na forma
de pensar e agir depois do regresso.
O intuito final é o de transmitir e descrever, através destas diferentes di-
mensões, a experiência numa realidade tão distante e tantas vezes tão próxima
daquela onde vivemos.
Deste modo, o relato da experiência denota um cunho pessoal que é vei-
culado por referências espaciais, complementadas por pensamentos, ruídos e
odores.
A Fotografia auxilia, revelando todo um mar de descobertas.
O Desenho do caderno de viagens ilustra o registo descomprometido de
quem viaja, de quem quer conhecer e de quem anseia por agarrar o máximo
possível do irrepetível e singular.
O Projecto estuda e propõe, depois da aproximação ao terreno e ao
meio, especulando sobre o público e o privado, sobre a escala e o lugar, sobre
o valor da religião e a ilusão fugaz do controle Arquitectónico.
Os registos e evocações sonoras pretendem adensar a atmosfera, parti-
lhando assim com o leitor a banda sonora que acompanhou não só as vivências
mas também a escrita.

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Resumé

Cette thèse vise à réfléchir sur un voyage en Inde, en vertu du programme


Erasmus, grâce à l’interconnexion des différentes sphères qui cherchent à traver-
ser l’expérience, la photographie, le dessin, le projet et le paysage sonore.
Ceci a pour but non seulement de réinterpréter les événements survenus dans ce
pays pendant la période d’Erasmus, et des connaissances et des hypothèses qui
y ont été recueillies, comme interpréter et amplifier toute une gamme de senti-
ments et d’épisodes, à travers les yeux du présent et plus loin de la réalité, afin
de comprendre ce qui restait actif et constant dans la façon de penser et d’agir
après le retour.
Le but ultime est celui de transmettre et de décrire l’expérience, une réalité
si lointaine et souvent si proche de l’endroit où nous vivons, à travers ces diffé-
rentes dimensions.
Ainsi, le compte de l’expérience indique une touche personnelle qui est
véhiculée par des références spatiales, complétées par des pensées, des sons et
des odeurs.
La Photographie aide, révélant tout un océan de découvertes.
Le Dessin du carnet de voyage montre l’enregistrement de celui qui voyage
sans compromis, qui veut savoir, et qui aspire à saisir autant que possible l’unique
et l’irremplaçable.
Le Projet étude et il propose, après l’approche au terrain et à l’environne-
ment, en spéculant sur le secteur public et privé, sur l’ampleur et sur le lieu, sur la
valeur de la religion et l’illusion éphémère d’une architecture de contrôle.
L’enregistrement et les évocations sonores veulent à épaissir l’atmosphère,
partageant ainsi avec le lecteur la bande sonore qui a accompagné non seule-
ment l’expérience mais aussi l’écriture.

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Abstract

This master thesis intends to show the inner journey taken, in a travel to
India within the Erasmus program. This journey is a result of a close interaction of
Experience, Photography, Drawing, the Project and the Sound Landscape. The
objective is not only to acknowledge events and principles during that period in
the distant country where the program took place, as well as comprehend and
amplify a huge range of feelings and episodes in order to understand what stood
unchangeable in the way of thinking and acting after returning.
The final purpose is to convey and describe, through these different dimensions,
the lived experience in a different reality so distant and yet so many times very
close to the one we live.
Thus, the written experience symbolizes a personal touch that is diffused
through spatial references completed by thoughts, sounds and smells.
The Photography helps, revealing a whole ocean of discoveries.
The Drawing on the travelling sketchbook illustrates us a relaxed and disen-
gaged approach of a traveler that is willing to grab and memorize as much of
the unique and unrepeatable moments that he is testifying.
The Project studies and suggests, after the approach to the site and environ-
ment, speculating about the public and the private, the scale and the “place”,
the value of religion and the fleeting illusion of an architectural control.
The sound evocations aim to thicken the atmosphere, therefore sharing
with the reader the soundtrack that accompanied not only the experience but
also writing.

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Prova de Avaliação

Aluno: Nuno André Coelho de Melo Sousa


Orientador: Professor José Manuel Soares
Título: Pedalar Contra o Vento - A Arquitectura dos comboios azuis, das noites ao
luar e das cidades intermináveis

Objectivo e Objecto de Estudo:

A Experiência ditou a aproximação, e também a adaptação faseada à


realidade distinta de um país multifacetado e de versões antagónicas. O Ob-
jectivo desta dissertação de mestrado integrado, é transmitir, finda a viagem, e
agora de uma forma mais racional e distanciada, a minha aprendizagem e re-
flexão sobre a cidade indiana e o seu quotidiano, levantando questões acerca
da formatação e hierarquização do “espaço ocidental”, sem a mesma abertu-
ra à diferença e improviso indianos.
O Objecto de estudo tem como referência os principais denominadores
sociais, religiosos, comerciais e económicos que controlam e diversificam a es-
fera pública e privada da cidade de Ahmedabad, que intensamente percorri e
onde vivi.
Depois da Introdução, proponho analisar e apresentar o projecto elabora-
do para a área de Sarkhej Roza, Ahmedabad:
- A estação de caminho-de-ferro como ponto de partida e chegada, como
plataforma da mobilidade e contacto social entre todas as classes. A estação
como introdução ao Monumento*, criadora de novas dinâmicas no espaço pú-
blico e a sua relação com o “novo” desenvolvimento.
- A habitação como reflexo da esfera privada, a necessidade e a capacida-
de de adaptação da população. O uso de uma arquitectura sustentável, com
base na construção local e de materiais de baixo custo. O papel do arquitecto
no desenho e a abertura à espontaneidade e ritmo de crescimento que cada
família terá com base no módulo.

15
* – Sarkhej Roza, o monumento vivo, é um complexo religioso datado de 1458,
constituído por um conjunto de edifícios e jardins de planta ortogonal em torno
de um amplo espelho de água, que interliga as várias esferas de contacto so-
cial, religioso e real.
É foco cultural e simbólico da riqueza histórica e arquitectónica da cidade
de Ahmedabad.

Metodologia:

Estas experiências canalizam a aprendizagem de campo para uma refle-


xão acerca de temas como a adaptabilidade, crescimento, necessidades bási-
cas materializadas sob a forma de um equipamento e um módulo de habitação
social, devidamente inseridos no contexto urbano da cidade de Ahmedabad,
numa área de intervenção na qual o património ora é asfixiado pelo crescimen-
to desmesurado regido por regras religiosas e económicas, ora se submete à
ocidentalização com novos modelos de urbanização, confrontando-se com os
limites físicos criados pelas vias-férreas e rodoviárias.
É muito importante uma contextualização do problema através de uma
breve introdução à Viagem, sendo o percurso desde a chegada até Ahmeda-
bad, um conjunto de situações que localizam a acção e retratam as várias am-
biências vividas.
A dissertação assentará numa base prática forte, resultado da experiên-
cia de campo e trabalho de projecto desenvolvido e correctamente contextu-
alizado.
A reflexão tenta não só acompanhar a nova interpretação dos dados e
vivências, como também ensaia recriar e ilustrar, através de imagens ou peque-
nos excertos de textos, os problemas levantados durante o processo.

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18
A Razão, Ahmedabad. Fotografia do autor
19
O Caminho, Palitana. Fotografia do autor

20
A Razão – Introdução

O Tigre Branco - ser singular que apenas surge uma vez em cada geração,
iluminado e astuto, ambicioso e prudente, o escolhido.
Numa noite quente e húmida, na luta contra o tédio, procuro algo para
ler numa Bombaim do avesso, num serpentear entre prateleiras de bijutaria ba-
rata e mundana, miniaturas do gate of India, entre alfarrabistas, cuja sabedoria
assentava sobre longas e grisalhas barbas manchadas pelo paan que masca-
vam até ao infinito. Encontro uma imagem perseguidora desde o início de tudo,
quase desde que pus pé pela primeira vez nesse País remoto, com uma capa na
qual repousava um tigre branco e um galo.

“A Masterpiece” – The Times.

“Blazingly savage and brilliant” – Sunday Telegraph.

Só o acabei de ler depois de estar mais que habituado à minha anterior


vida, e pareceu-me tão evidente e verídico, numa ficção mordaz e capaz, in-
cisiva e auto-critica, que me deixou abismado com tamanho testemunho. Fazia
todo o sentido.
Balram, outrora Munna, ao longo de sete noites, escreve e descreve numa
carta endereçada ao actual primeiro-ministro chinês Wen Jiabao, a sua antagó-
nica Índia de duas faces tão díspares como a luz da escuridão, dois conceitos
que, segundo a personagem principal, dividem o País e se tornam as duas con-
dições mais básicas para a vida: ou se vive na escuridão, ou se vive na luz, não
há lugar para a situação intermédia.
Antes de ler, tal qual Aravind Adiga o faz, eu mesmo tratarei de explicar,
introduzir e guiar neste primeiro instante, o que passarei a descrever como o
lugar das minhas memórias, vivências e conclusões, uma passagem com per-
manência por esse País cada vez mais fetiche de qualquer viajante que a si se
intitule de tal. Desengane-se quem pense antever estórias das mil e uma noites,

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O Quotidiano, Varanasi. Fotografia do autor

22
paraísos esquecidos ou estados de espírito Zen e ascensão celestial, eu não os
encontrei, receio que dificilmente os encontre.
A Índia! País das milhentas contradições. Da incerteza de noventa e nove
vírgula nove por cento contra as certezas da evolução, crescimento e desenvol-
vimento dos restantes zero vírgula um por cento, um Grand Canyon os separa
como o negativo e o positivo, a chuva e a seca, o sol e a lua, a água e o ar. Por
muito que se toquem, que convivam, que necessitem um do outro para persistir,
serão sempre tão distantes ainda que tão próximos, que é impossível desagregá-
-los. A sua ascensão, o boom populacional, a independência, o mercado livre,
a tecnologia de ponta, o nuclear, o vasto território, a colorida e bela religião.
Uma verdadeira Potência Mundial, no topo da cadeia alimentar, no auge civili-
zacional aos olhos de quem olha à distância de uma chamada intercontinental,
sentado numa poltrona enquanto folheia o New York Times e segue pelo canto
do olho o Bloomberg e os seus pequenos números em rodapé.

“What a fucking joke!”

Se há uma razão que nos move, também ela aqui persiste, ainda que nem
sempre visível, ainda que muitas vezes cingida e fixada e presa ao sistema de
castas, para que isto seja uma grande mentira disfarçada de verdade irredutível.
Mas voltando à personagem, Balram vivia numa aldeia, algures na escu-
ridão, com a sua numerosa família e o seu búfalo. A mãe morreu quando ele
era apenas uma criança e desde logo associou o Ganges e Varanasi à sua cre-
mação, nas margens negras que atraem e absorvem a morte sobre a promessa
da salvação divina. O pai morreu de tuberculose num hospital público, onde o
médico, com as senhas de presença falsificadas, não atendia havia meses. As
dívidas do dote, do casamento da sua irmã, hipotecaram o resto das suas mí-
seras e turvas perspectivas, retirando-o da escola, a ele e aos irmãos, para que
alimentassem também o sistema quase feudal, cujos haveres pertenciam ao seu
landlord, pai, irmão e avó incluídos, a sua alma incluída também. E é aqui que
entra a melhor amiga da razão: a família. Porque esta é a extensão de si, o nu-

23
A Varanda, Mumbai. Fotografia do autor

24
meroso conjunto de indivíduos que garantem a ordem, o cumprimento dos de-
veres, pois quando tal não acontece, serão também eles a extensão da sua dor.
E se isso no “nosso mundo” também acontece, o sistema perdoa muito menos
na escuridão. Chamemos a este seguro, que se herda de geração em geração,
apenas de “A Garantia”.
Mas a razão, depois de procurada vezes sem fim, em conversas ou tertú-
lias, especulações e devaneios aparte, jaz na mais ínfima das comparações, a
capoeira. The coop.
Há uma maravilhosa passagem, ainda que dura e manchada de sangue,
no livro de Aravind Adiga, onde a comparação entre a sociedade e o indiví-
duo se resume ao galo preso na capoeira. No mercado, por detrás da Jama
Masjid, Delhi, as pessoas amontoam-se, gritam e discutem, negociam-se preços,
trocam-se rupias por tudo o que a necessidade obriga. Num desses recantos,
as gaiolas atropelam-se encaixadas entre si como pequenos cubos nos quais
as penas brotam pelas finas linhas de arame, o cheiro a excrementos e sangue
é intenso, a morte, a raiva, a loucura e a vingança também. É aí que os galos
estão, amassados uns contra os outros e de olhos postos na tábua riscada onde
o cutelo encaixa na perfeição. E um a um vão sendo decapitados, até que o
último, na sua espera previsível, enfrenta também o seu final, depois de assistir à
partida de todos os amigos e familiares.
A Gaiola é a razão pela qual ninguém consegue sair dela, pela qual todos
se atropelam, pela qual o sistema funciona. Se um sair dela, termina o seu cami-
nho de um modo ainda mais fugaz que o dos que atrás ficaram, seja pelas mãos
do seu dono, seja pela dor da morte dos seus irmãos que sofrerão a vingança.
Uns míseros segundos fora e ela logo cobra o seu preço. Porque até quem dela
escapa, terá de enfrentar quem ainda por lá anda, pois a inveja é um sentimen-
to recorrente quando o amor e a serenidade não nos habitam.
É este o controlador social, que juntamente com “A Garantia”, na luz ou
na escuridão, permite que o topo se regozije com os nossos modelos ocidentais
importados, com a democracia comprada, com o luxo e o desprezo submergi-
do pelo uso primordial das castas, familiares próximos da “Gaiola”.

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O Convívio, Varanasi. Fotografia do autor

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“The Great Indian Rooster Coop. Do you have something like that in China
too? I doubt it, Mr Jiabao. Or you wouldn´t need the Communist Party to shoot
people and a secret police to raid their houses at night and put them in jail like
I´ve heard you have over there. Here in India we have no dictatorship. No secret
police.
That´s because we have the coop.
Never before in human history have so few owed so much to so many, Mr
Jiabao. A handful of men in this country have trained the remaning 99.9 per cent
– as strong, as talented, as intelligent in every way – to exist in perpetual servitude;
a servitude so strong that you can put the key of his emancipation in a man´s
hands and he will throw it back at you with a curse. (…)
Now, a thinking man like you, Mr Premier, must ask two questions.
Why does the Rooster Coop Work? How does it trap so many millions of
men and women so effectively?
Secondly, can a man break out of the coop? What if one day, for instance,
a driver took his employer´s money and ran? What would his life be like?
I will answer both for you, sir.
The answer to the first question is that the pride and glory of our nation,
the repository of all our love and sacrifice, the subject of no doubt considerable
space in the pamphlet that the prime minister will hand over to you, the Indian
family, is the reason we are trapped and tied to the coop.
The answer to the second question is that only a man who is prepared to
see his family destroyed – hunted, beaten, and buried alive by the masters – can
break out of the coop. That would take no normal human being, but a freak, a
pervert of nature.
It would, in fact, take a White Tiger. You are listening to the story of a social
entrepreneur, sir.”
The White Tiger, Aravind Adiga

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Rajasthan Royal, Ahmedabad. Fotografia do autor

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Mas voltando a esta dissertação, narrativa disfarçada sob o olhar já distante
mas não distanciado, pretendo atingir na sua dimensão o alcance de várias,
que tratarei de tentar explicar e justificar. Julgo que nenhuma destas dimensões
se deve hierarquizar, apresentando todas elas uma razão de ser, um sentido
que se pode sobrepor ao das restantes, mas que não creio ter nexo nomear
por ordem de importância como se de mais ou menos relevantes se tratassem.
Constituem um todo que vale pela soma de todas as partes, por mais ínfimas
que algumas possam parecer.

A Experiência como relato, testemunho e retrato. A escrita tenta transmitir,


colar imagens através de palavras, reaccionárias tentativas de despoletar senti-
mentos, numa comunhão entre o seu vasto sentido e interpretação e sua tradu-
ção no meio e realidade que pretendem descrever. Não é um diário, não é um
romance. É uma forma que me pareceu natural e libertina, um habitat no qual
eu me senti à vontade, e se este aglomerado de palavras constitui um último fô-
lego académico, sinto que este deve ser levado alegremente e sem insistências.
Um prazer sem limitações ou obrigações.

A Fotografia, disparada pela objectiva de 50mm, procura a coerência do


filme de trinta e cinco milímetros, num espólio in situ, e é uma referência física
do que fora visto, marcos incontornáveis que baseiam e ilustram o diálogo entre
mim, sujeito que escreve, e quem neste momento se encontra a ler. Apenas em
raros momentos, situações nas quais o registo é obrigatoriamente outro, estas
imagens deixam de auxiliar o leitor.

O Projecto, e seu desenho, processo, memórias, alucinações e relações,


exercícios mentais de posicionamento de uma resposta concreta para um lugar
nunca antes visitado, no qual é necessário a amplificação dos nossos mecanis-
mos de recepção, encaixando e revendo todas as premissas da história.

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A Matilha, Mumbai. Fotografia do autor

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O Desenho, como disciplina base, como registo dos tempos mortos, como
prazer e legado deixado pela viagem. Uma apropriação dos espaços, dos am-
bientes, das formas, das escalas e métricas e partículas que chocavam enquan-
to estes aconteciam.

A Lírica, presente no título, e que quase me sinto tentado a explicar e re-


lacionar mas prefiro não o fazer, deixando em aberto a sua interpretação, que
apesar de poder expandir-se a vários episódios, campos e soluções, creio ser
bastante evidente e absolutamente intrínseca ao tema e ao País ao qual me
refiro, no qual vivi e viajei e pilar fundamental ao sustento das afirmações, ques-
tões, reflexões e conclusões que nesta dissertação surgem.

A Música, integra toda esta composição, realçando a importância dos


sons, ruídos, burburinhos, sussurros, suspiros de banda sonora como reflector de
emoções e esgares, autêntica companhia de horas a circular já com a vista
cansada, a coluna vertebral mole, o interior apertado, ou em frente do ecrã a
debitar palavras à velocidade mais ou menos constante das atmosferas e pai-
sagens auditivas sugeridas para a sua leitura.
Há uma enorme necessidade pessoal de transmitir o sentimento envolvido
neste processo, seja o de hoje, olhando para trás pelo retrovisor das memórias,
seja o outro que já fora vivido, também ele polvilhado de notas e melodias a si
inerentes, referências que com o decorrer da leitura se demarcam e ganham o
seu espaço e relevo por entre todos os outros elementos que a compõe.

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O Embate, Delhi. Fotografia do autor
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A Praça, Delhi. Fotografia do autor

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O Embate

Para que se escreva um relato, ou uma história, ou mesmo uma tese com
uma pequena dose de ficção gerada pelo nosso subconsciente, aquele toque
que o nosso interior acrescenta depois de submetida a experiência para o cam-
po do memorável e eterno, é preciso rever todo um percurso, desde a chegada
até à partida, e é agora, passados uns largos meses, que me proponho a relatar
a experiência vivida na Índia. Este relato, não se prende unicamente ao campo
da Arquitectura, sendo mais um aglomerado de recordações, situações, vivên-
cias que se agruparam e formaram uma opinião mais ou menos empírica, com
a teoria da discussão de grupo, na troca de palavras entre estudantes de arqui-
tectura que ao mesmo tempo foram companheiros de viagem e “room mates”.
A nossa percepção tem como base um vasto conjunto de factores que
ao longo dos anos se vai apurando e focando de acordo com os nossos inte-
resses e motivações pessoais, subjacente à nossa educação, quer académica
quer familiar. Com bastante frequência a minha interpretação e análise do que
via, divergiu dos comentários e reflexões dos meus colegas Holandeses.
Esta dissertação, apresentará também ela uma visão pessoal das variáveis, de
uma Índia vista através de um ainda estudante de arquitectura. Um Sociólogo
focar-se-ia na raiz social do problema, nas relações entre castas e extractos so-
ciais. Um historiador dissecaria os milénios e interpretaria o estado actual do País
através de um histórico de acontecimentos que levara a uma consequência. No
meu caso, foram os anos na Escola que me levaram a analisar o Caos como um
ponto de Ordem, o improviso como algo quotidiano e o básico como algo bem
mais essencial que o falso essencial no qual vivemos neste nosso perfeito Mundo
Ocidental.
Uma nova realidade é isso mesmo, algo à qual por via de tantos anos
ligados a uma outra, nos é estranha, anormal e que nos incomoda de forma
contínua no inicial período de adaptação. Podia até descrever esta mudança
com base nos elementos básicos da nossa vida por cá: alimentação, transporte,
repouso, higiene, lazer ou rotina, mas esta seria apenas uma análise superficial

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O Ruído, Delhi. Fotografia do autor

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e errada de tamanha mudança efectuada, onde os limites do “básico” serão
reformulados e ganham porventura um novo significado.

“Follow the signals”, discurso da primeira aula em Ahmedabad de B.V.Doshi.

Delhi foi o primeiro contacto e como tal, a sua imagem forte permaneceu
na minha memória como uma referência de metrópole suja e mundana, uma
imagem de desespero e anarquia.
O ar era pesado com um suave trago a aditivos fosseis, era diferente, es-
pecial, prevendo-se alguma alteração na ordem natural das coisas. Não havia
mística, pois ali só existia necessidade de viver mais um dia, de poder contar
algumas horas a mais, de poder ver um outro pôr-do-sol. Recordo-me da desi-
lusão com a falta de condições do quarto de hotel Shelton e das imagens das
gentes a lavarem-se sobre as águas de um qualquer camião cisterna, numa das
muitas vielas pelas quais passamos durante a madrugada tentando encontrar o
repouso de uma cama lavada e de um local resguardado. Desde o aeroporto,
seguimos por entre uma floresta de betão, altos viadutos que abrigavam os in-
digentes, largas estradas esburacadas e em estado de sítio, camiões de merca-
dorias em marcha lenta, tendas acampadas à margem da estrada.
Durante os dias seguintes, o período de refeição ajudava a acalmar, a
baixar os índices de ansiedade e consternação.
Era uma pequena fuga à realidade que sabia que iria fazer parte dos pró-
ximos meses, tomando conta de cada segundo que passava.
O embate é feito por via da comunicação rápida, do borbulhar de ce-
nários extraordinários que nos ultrapassam, que se projectam contra nós e não
nos deixam indiferentes. Recordo-me de estar no final de mais um dia em Nova
Delhi, Main Bazar, enlameado, rodeado de trânsito, encostado a uma pequena
loja de fotografia sem me poder mover. À minha volta tudo girava, tudo rolava
de forma contínua, aparentemente normal mas simultaneamente sem aparen-
te regra. Só consegui apreciar toda esta fluidez, numa rua com sensivelmente
três metros e meio de largura, onde o cheiro a gasolina se misturava com o

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A Contradição, Delhi. Fotografia do autor

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cheiro a chamuças quentes, confeccionadas nesse arruamento e competindo
directamente com os motociclos e as vacas nuns escassos metros quadrados.
Senti no início aquela necessidade de registar, de apontar, de querer con-
trolar tudo aquilo que via e que não fazia parte do meu contexto, ou que, fazen-
do parte dele, estaria fora do mesmo e apresentava um enorme grau de impro-
viso ou então uma nova interpretação do seu uso ou objectivo. Uma vontade
imensa de parar o tempo, de me abstrair por uns segundos de todo o caos, de
assimilar os acontecimentos, de os compreender à primeira, de reagir com na-
turalidade.
Surgiram desde logo as primeiras ideias sobre uma Arquitectura de todos,
onde todos tinham uma opinião e um modo de fazer as coisas, uma operativi-
dade constante baseada no senso comum, mas que seria o motor de todo o
desenvolvimento pessoal e colectivo. Uma forma de arte sem arte, um sentido
funcional a sobrepor-se ao estético.

“The artificial transformation of nature is followed by the negotiation of its


condition… Ambiguous boundaries pulsate with movements, time and weather.
Continuously metamorphosing with motion, it presents an experience inculcated
by the continuity of relationships. There must be profound experiences unseen in
architecture by seeking spatial potentials in a constant reassessment of ambigu-
ous peripheries.
Architecture is a garden with a roof. Garden is architecture without a roof”
Primitive Future, Sou Fujimoto

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A Textura, Chandigarh. Fotografia do autor
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O Supremo, Chandigarh. Fotografia do autor

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A Textura

Não se percorreram muralhas ou palácios, não fora erguido em pedra


mas em betão e o seu toque transmitiu a orientação solene de quem escrevera
um pedaço de história cinza num pais de crenças coloridas e pigmentado até à
sua mais ínfima parcela.
Seguiu-se Chandigarh. O meu fascínio vinha de uma aula de Urbanismo,
terceiro ano, dada pela Arqª Maria Manuel Oliveira onde foram expostos vá-
rios slides sobre a cidade, a utopia, e uma interpretação também pessoal e na
primeira pessoa acerca de uma viagem à Índia, tendo como foco principal a
cidade de Chandigarh. A monumentalidade tocou-me.
Ao chegar a Chandigarh, acabamos no “Transit Lodge”, albergue situado
no piso superior da estação de Expressos, traços modernistas, arquitectura de li-
nha e sentidos forte. Local de indigentes, sem abrigo e condutores de Rickshaws.
Apesar da sujidade, da aparente degradação e efervescência constante à
cota da rua, com o aceso leilão por um lugar num dos muitos “paralelepípedos
motorizados”, sentia-se uma serenidade, talvez directamente relacionada com
um sentimento de apatia generalizado.
Chandigarh é uma cidade museu, um legado deixado ao ar livre, numa
lenta mutação, talvez mais lenta do que aquela que seria prevista ou até previ-
sível, deixando um sentimento de algo grandioso ainda por concretizar.
Le Corbusier pensou-a como um recomeçar do zero, um regresso ao bá-
sico, ao elementar, a um desenho ortogonal e um corte monumental e desafo-
gado. Renegou à partida o que de errado está na cidade indiana e conferiu-lhe
um método, um modus operandi, pela força da medida e do planeamento,
incutindo uma regra a um País pouco habituado a isso.
Quando me vi no sector 1, no Capitólio, a percorrer a faixa intermédia
num sentido perpendicular à orientação Este/Oeste, a uma cota inferior à do
grande plateau que interliga o Supremo Tribunal e a Assembleia, entre os dois
muros de betão que suportavam o passadiço superior, avistei a “mão aberta
que dá e que recebe” e senti que estava a viver um pedaço de história. Senti-

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O Jogo, Chandigarh. Fotografia do Autor

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-me demasiado pequeno, infinitamente ultrapassado por uma imagem que vira
em milhentos livros de história da arquitectura moderna ou referenciado noutras
quantas aulas de projecto. Há qualquer coisa mágica neste lugar…
Invade-nos um sentimento à “Lost” que se assemelhou à season finale da
segunda temporada, quando se avista o pé de quatro dedos de Taweret, Deus
egípcio do nascimento e reencarnação.
Ao subir a colina, o Supremo Tribunal impôs o seu supremo respeito, a lei
da horizontalidade e repetição, a curva enquadrou a paisagem, a cor deu vida
ao betão massacrado ano após ano. Alguém me chamou, voltei-me e recal-
quei uma imagem de miúdo sentado na sala a ver “Encontros imediatos de 3º
grau”, e novamente me senti esmagado pela imagem da Assembleia em pri-
meiro plano seguida da do Secretariado.
É complicado pensar na quantidade de vezes que imaginamos um mo-
mento, imaginamos o espaço de uma outra forma, organizado de outro modo,
com proporções que não correspondem à realidade. Neste caso, a realidade
transmitiu um peso superior ao que esperava, aniquilou a minha mísera existên-
cia e deixou-me respirar o ar limpo daquele espaço completamente vazio, qua-
se que perdido ao abandono, à persistência da chuva das monções e ao sol
tórrido do período seco. A militarização, o factor “terrorismo”, o medo instalado
na capital do estado de Punjab, tornou o espaço enclausurado por uma redo-
ma de vidro, por linhas de arame farpado e militares fortemente armados e que
na sua grande maioria encaravam o dia-a-dia como uma precaução e menos
como uma ameaça. No final fica a Cidade, a Utopia Moderna, o Gesto, a Aura
e o Invisível, que já se começava a descortinar, a apertar o coração já de si rá-
pido e em permanente sobressalto.
Ficou-me um sabor amargo na boca, uma vontade de berrar bem alto,
e voltei a tocar o betão, a sentir a pulsação da história, a tentar guardar o im-
pacto ao ver o ritmo do alçado horizontal do Supremo Tribunal, de adivinhar o
colorido e o seu jogo com a sombra, de imaginar o ziguezague geométrico e
de tentar desenhar para guardar a medida no caderno, para registar e melhor
compreender algo que após ser construído se tornou natural, abraçou o sítio, a

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O Juiz, Chandigarh. Fotografia do Autor

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terra, o lugar, se coseu ao espaço que lhe fora confinado.
Apesar de todo este sentimento suspeito, o de um aspirante a Arquitecto,
que já vira demasiadas vezes a obra e a intenção, há que reclamar alguma
verdade na descrição. Ela está presente na escala que em pouco se aproxima
da típica e comum cidade indiana, apenas encontrando alguma semelhança
com a monumentalidade da área Presidencial de Delhi, sua axialidade e impo-
nência, sendo o desenvolvimento urbano de Chandigarh levado a cabo de um
modo lento e quase que ainda por acontecer.
As largas vias conseguem dissolver o caótico trânsito, apenas sentindo na
hora de ponta algum burburinho em nada comparado com qualquer outro lo-
cal do País. É uma organização quase anti-natura, uma contradição e um pa-
radoxo. Se o ciclo da vida se tem desenvolvido de uma forma mais ou menos
certa, com as perdas e ganhos a si inerentes, tentar organizar e colocar cada
coisa em seu lugar torna-se um gesto descontextualizado, talvez um pouco au-
tista e “Godlike”. É difícil defender que não deverá haver organização num es-
paço onde sempre imperou a desordem ou colocando a questão de um modo
mais suave, onde toda a realidade se rege por outras leis e sentidos, levando-
-nos a interpretá-la como caótica e desequilibrada. Mas por outro lado, há uma
maravilhosa interpretação do caos e naturalidade na desordem, que uma vez
reposta, se veste do acto de domesticar um animal selvagem que nunca havia
vivido segundo a inflexibilidade da regra.
Será porventura a rigidez do quarteirão, o Corte transversal do arruamen-
to, o planeamento da Escala e a previsão do choque entre os vários meios de
locomoção quer motora quer animal, das mais variadas formas e feitios, que
fazem com que a Cidade apresente esta fluidez que ao mesmo tempo é falsa
no sentido de resolver (que se poderá entender como uma negação à verda-
deira natureza do lugar) os problemas que o tráfego tráz à metrópole indiana.
Falta densidade e compressão, falta o irrespirável ar, a atmosfera densa
de cheiros e ruídos, existe ordem mas deixa também de existir referência espa-
cial, levando a uma padronização de todo o espaço urbano. Talvez falte uma
diagonal, ou um elemento vertical que nos posicionasse na malha urbana. O

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O Capitólio, Chandigarh. Fotografia do Autor

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Sector 17, ainda que o centro da cidade, num modelo de espaço público cen-
tral, praça rodeada de arcadas onde o comércio se desenvolve, com uma das
suas quatro frentes destinada ao Cinema, reflecte um pensamento Europeu de
espaço livre e transitável, num só material, claro e limpo.
A Análise cairá sempre na tentação de encarar o Sector 1, O Capitólio, como
um pedaço de história, estudando as suas relações entre volumes e vazios, topo-
grafia e percurso, detalhe e construção, largando para lá todo o resto do Corpo,
tal qual, quem sabe, Le Corbusier o fez aquando do desenho do plano.

“A ideia de um espaço perfeito em si mesmo, onde o humano estivesse


em plena harmonia com o meio, a natureza e a sociedade, onde encontrasse
as suas necessidades cumpridas, em suma, a busca do espaço/lugar-modelo,
preencheu o imaginário ocidental e deu lugar às mais diversas propostas, na sua
maioria de carácter literário, e foi, fundamentalmente, o ponto de partida para
visões urbanístico-arquitectónicas.”
O outro lado da utopia, ARQ A nº59/60, Ana Coelho

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A Ordem, Agra. Fotografia do autor
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O Rigor, Fatehpur Sikri. Fotografia do Autor

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A Ordem

Ao longo de todo o percurso na faculdade, somos introduzidos ao lugar,


ao espírito inerente a cada local, à pulsação do território. O discurso pausado
alerta para as referências, para a interpretação, para o constante questionar
sobre a folha em branco que representa um projecto.
Fatehpur Sikri respira, a pedra vermelha ganhou raízes, parece eternamen-
te ligada ao lugar onde se implanta, no alto da colina disfarçada por azinhei-
ras e vegetação baixa, ampla, solene e subtil. Incrível como tal perfeição fora
alcançada tantos séculos antes de nós, do nosso tempo de feras mecânicas e
processos construtivos inovadores, cálculos matemáticos avançadíssimos e teo-
rias várias sobre tudo o que de imprevisível a vida possui.
É a clareza que esmaga, a certeza e o rigor, o engenho. O equilíbrio entre
todas as partes, o claro e o escuro, a noite e o dia, a vegetação e a água. Ao
percorrer as galerias, senti o infinito sobre as colunas, no dobrar da esquina as
várias fachadas transmitiram-me a profundidade, ao penetrar no seu interior saí,
entrando noutro lugar numa rápida permuta entre público e privado, entre o sol
quente e a pedra fria, entre o espaço livre e o íntimo contido. O método pare-
ceu-me demasiado aperfeiçoado, a hierarquia dos espaços, a sua sucessão e
as cércias encaixavam o negativo do céu.
Na grande praça, a complexa rede de canais e espelhos de água reflec-
tiam as linhas de ordem horizontais do palácio do imperador, o seu pé-direito
baixo enquadrava o pano vermelho que constituía o pavimento, rematado pelo
Diwan-i-Khas que, segundo Charles Correa, era uma máquina de governar.

“a machine for governing an empire”

A planta quadrangular com quatro aberturas à cota de entrada, a trans-


parência e permeabilidade escondem no seu duplo pé-direito um segundo pla-
no superior, o que governa. O imperador Akbar ao centro, no pilar suportado por

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O Tanque, Amritsar. Fotografia do Autor

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duas vigas diagonais, apoiadas nos vértices do quadrado, conversava com os
seus conselheiros posicionados nas extremidades da estrutura, numa alusão ao
simbolismo budista e suas primeiras formas de expressão, na imponente coluna
central, representante da entidade superiora.
Confesso que a minha leitura de Fatehpur Sikri, me emocionou ao ponto
de despoletar em mim uma crença na arquitectura e na sua transmissão de sen-
timento, no impacto da simplicidade, na força matriz de um processo brilhante.
Mais que o próprio Taj Mahal, comprimido pela sedenta fome de capital, centra-
lidade mundial e fonte de rendimento da população de uma das cidades mais
pobres e degradadas de toda a Índia, Agra. Um autêntico íman, com a muralha
a separar o caos do paraíso, concedendo algum equilíbrio mediante a hora de
visita, da contemplação, ao confronto com as massas que por ali deambulam,
termina em suspiro de desalento. Há o outro lado, poucas vezes referenciado,
que se esmaga sobre a muralha tal qual o tsunami numa represa em betão,
salpicando e tentando ultrapassar o obstáculo com a força que nele se vai acu-
mulando.
Paralelo a tudo isto, pela espiritualidade e mística, Amritsar foi sem dúvida
a alma reconquistada, o divino na terra. Se a arquitectura nos deve tocar por
tudo o que é materializado e pelo que a presença física desencadeia dentro
de cada indivíduo, a atmosfera do lugar, o seu pulso e forma de estar, de se dar
a conhecer, de se percorrer e a sua influência no espírito de cada indivíduo, é
uma outra virtude. Se de um lado o modelo arquitectónico do engenho e da
ordem, do outro a imponência branca do amor, foi a crença que naquele mo-
mento arrepiou o meu mais profundo desconhecimento acerca do metafísico,
do que será o depois de amanhã, de tudo o que representa a pequena palavra
“fé”.
Há uma dualidade de morte e sangue derramado. Em 1984 numa esca-
lada de violência, Indira Gandhi ordenou a invasão do Templo Dourado, com
nome de código “estrela azul”, último reduto da defensiva na qual o templo foi
destruído e a resistência Sikh massacrada.

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O Banho, Amritsar. Fotografia do Autor

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A cidade de Amritsar, a escassos quilómetros do Paquistão, é um outro
caso de cidade que se “alimenta” do seu lugar de culto, apesar de, ao contrário
de Agra, a “Fátima” da religião Sikh, ser um espaço de contribuição comunitá-
ria, de entrega, partilha e de voluntária razão.
O complexo é rodeado por bazaars, complexas teias comerciais que se
vão desenvolvendo ao longo da malha urbana, apertadas e irrespiráveis, um
fervilhar de pessoas atropelam-se e há uma constante sobreposição de pala-
vras. Há uma necessidade pura de aproveitar o acontecimento, a ida ao tem-
plo para conseguir amealhar umas quantas rupias. A arquitectura como cen-
tralidade, como símbolo de uma religião e cidade, como força viva e motor do
comércio e actividades locais.
À entrada do complexo religioso, descalçam-se os sapatos, a celebração
é feita no sentido dos ponteiros de relógio, com o templo ao centro do vasto
espelho de água. Lavam-se os pés, e ao longo do percurso há momentos de pa-
ragem e oração. As cabeças coloridas, sempre tapadas, seguem em direcção
ao edifício banhado a ouro, que reluz no centro deste microcosmo.
Entretanto, ao tentar desenhar o templo, tive de me levantar do mármore
fresco e densamente trabalhado com motivos geométricos, para que, com bal-
des, se lavasse todo o “chão sagrado”.
No interior do Templo Dourado, são orados os cânticos que se ouvem no
exterior, e ainda na plataforma adjacente ao edifício, bebe-se a água do gran-
de tanque e come-se uma espécie de pão amassado no local envolvido numa
folha da qual não me recordo a árvore.
Por último segue-se o banho final sempre com a cabeça coberta pelos
exuberantes turbantes.

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A Escala, Chandigarh-Agra. Fotografia do autor
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O Corredor, Sleepertrain N11. Fotografia do Autor

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A Escala - A primeira experiência minimal.

O primeiro impacto é a imagem da prisão, do espaço sobrelotado no


qual se vislumbram os membros superiores quebrando a barreira das grades,
mas aqui, num corredor de cinquenta centímetros por dois metros e trinta, “aper-
tado” pela massa de gente que se vai empoleirando ao longo dos três níveis
existentes de camas, quer transversais à área de circulação, quer adjacentes à
mesma, o nosso corpo molda-se ao escasso vazio que nos envolve. É um ar satu-
rado, polvilhado de gentes e de cheiros, mal iluminado e que requer uma certa
habituação ao novo contexto. As nove horas seguintes adivinham-se difíceis,
assusta pensar muito no tema e circunstância. Importava sim, expulsar quem
dormia no nosso beliche.
Fiquei no “3º Andar”, bem junto à cobertura em “abóbada de canhão”.
O beliche era delimitado por uma grelha metálica pintada de um “branco sujo”,
no qual o limite do tecido azul-turquesa já gasto acumulava todo o lixo de todos
os anos que não fora limpo, sendo assim um espaço de circulação de vários
insectos, uns mais rijos que outros. No pavimento em metal, com as estrias indus-
triais do interior dos automóveis desportivos, havia quem arriscasse tirar umas
horas de sono afagadas pelo frio material que ajudava a baixar a temperatura
corporal.
A densidade. Não era só a ocupação humana do espaço e as condições
de tal ocupação, mas sim a atmosfera, a falta de iluminação, as silhuetas que
povoavam o afunilado espaço, a densidade material, apesar de muitos não vi-
verem com mais do que o que traziam no corpo, normalmente os únicos perten-
ces amovíveis eram o calçado, colocado sob o beliche à cota baixa ou sobre as
ventoinhas fixadas ao tecto e que já tinham deixado de funcionar havia alguns
anos. A noção de claustrofobia, de sentimento de asfixia espacial derivada de
um espaço que nos consome ou do espaço que é consumido por nós, nos deixa
na ânsia de conseguir um pouco mais de “liberdade”, traduzida neste caso nos
acessos à carruagem, onde de porta aberta e com o desconhecido a deslizar
lentamente no exterior, algum desafogo era alcançado.

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O Piso de Cima, Sleepertrain N11. Fotografia do Autor

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“Pani, pani, pani water!”

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Madchester, Ahmedabad. Fotografia do autor
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Planta de desenvolvimento de Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação de Riyaz
Tayyibji
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Madchester - Ahmedabad

“Ten years ago, they say, there was nothing in Gurgaon, just water and
fat Punjabi farmers. Today it´s the modernest suburb of Delhi. American Express,
Microsoft, all the big American companies have offices there. The main road is
full of shopping malls – each mall has a cinema inside! So if Pinky Madam missed
America, this was the best place to bring her.”
The White Tiger, Aravind Adiga

Ahmedabad foi o foco de toda a minha actividade, das minhas vivências


e quotidiano ao longo de uns longos e quase eternos dois meses. A relatividade
do tempo nunca me pareceu tão subjectiva e dinâmica. Os dias e as noites su-
cederam-se em catarata, em slowmotion ou simplesmente em flashes ora curtos
ora muito rápidos, que me retiravam a noção de tempo.
Foi um período de forte assimilação, de forte aprendizagem e intensa rela-
ção com o meio, e passo a passo, primeiro porque o dia-a-dia se encarrega de
colocar as coisas no lugar, segundo porque há coisas que mesmo com o passar
do tempo parecem sempre fora do seu lugar, foi-se vivendo e interpretando os
sinais, recalcando o passado, reconstruindo o presente segundo milhares de no-
vas premissas.
Fundada em 1411, Ahmedabad teve vários períodos marcados ora pela
prosperidade ora pela decadência, até à sua recuperação em 1572 pelo Impé-
rio Persa, tornando-se “The Manchester of India”.
Tony Wilson e a Madchester de Joy Division, a Happy Mondays, ficariam
orgulhosos de tal comparação.
O movimento moderno e a industrialização, trouxeram uma nova Ahme-
dabad sedenta de modelos Ocidentais, de exemplos novos e estilos de vida di-
ferente e cosmopolitas. Há um antes e um depois, duas margens que reflectem
dois tempos e duas épocas.
A primeira, representado a rosa no mapa do lado Este, é de uma riqueza
arquitectónica imensa, onde o contacto social, a pequena escala e a textura

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A Comunidade, Ahmedabad. Fotografia do autor

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da malha se interligam e estão intimamente relacionadas entre os vários pontos
que constituem o centro histórico, criava assim um contexto único onde as tipo-
logias como a Pol ou o Chowk, originam espaços sublimes. Uma hierarquia se
forma, várias camadas constituem a cidade, havendo uma completa ligação
entre o meio, religião, sociedade e arquitectura.
A segunda, o novo desenvolvimento do lado Oeste, reflecte uma Ahme-
dabad que, segundo Vivek Nanda, é uma completa contradição ao que ou-
trora fora a cidade, ironicamente renegando todas as características singulares
da velha malha, do velho centro, dos velhos costumes. O betão amontoa-se,
a escala torna-se quase que desumana e repete o que já fora visto em milhen-
tas outras metrópoles, desrespeitando os princípios base que tornam a vida no
velho centro sustentável e mais aprazível, rasgando-se grandes vias, criando-se
marcos no território, modernizando-se e vendendo a alma ao Corporativismo e
Capitalismo.

“The morphology of modern Ahmedabad is a contradiction with that of its


past. It is ironic that not only is all historical continuity severed, but that fundamen-
tal relationships are revoked”
Urbanism, Tradition and Continuity in Ahmedabad, Vivek Nanda

Esta nova face do lado de lá do rio Sabarmati, que não cessa de se ex-
pandir, de se ir formando, de se ir transformando numa selva de betão, auto-
-rickshaws, autocarros e ferros-velhos, possui também a face de uma nova Índia
de desenvolvimento rápido, que substitui a construção dedicada que conjuga
as várias artes por uma padronizada e impessoal. Consigo recordar bem Ashram
Road, ou mesmo a Drive-in Road, com longas vias de vinte e cinco metros de
largura, separador central pintado às riscas pretas e brancas como se de um
circuito automóvel se tratasse, edifícios com uma cércia de quatro a cinco pi-
sos, de uma arquitectura completamente descontextualizada e anormal. É uma
consequência do crescimento e do êxodo para a metrópole, sendo a Índia um
País com mais de um bilião e cem milhões de habitantes, estima-se que cerca

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O Tráfego, Ahmedabad. Fotografia do autor

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de trinta por cento desta mesma população viva em áreas urbanas.
Toda a riqueza histórica, todo um passado engenhoso, substituído por uma
busca incessante pelo mais moderno, pelo actual, pelo estilo internacional que
se vem a desenvolver nas últimas décadas, pelos shoppings e grandes superfí-
cies, pelas várias vias que descongestionam o tráfego, pelos inúteis planos de
desenvolvimento que deveriam ter.
Foram frequentes as visitas ao Himalaya Mall, a grande superfície comer-
cial, de triplo pé-direito, estrutura metálica, néons, animação, MacDonalds e
Nike entre todas as outras marcas e todo o complexo resto que bem conhece-
mos das nossas centenas de exemplos negativos e catastróficos, com os quais
lidamos no nosso quotidiano. Era um alvoroço incompreendido, inexplicável
adaptação a um contexto que não fazia parte do mecanismo. Uma falsa natu-
ralidade deambulava no seu interior.

“É desta onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como
uma esponja e se dilata. Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter
o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas,
nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios,
nos postes das bandeiras, cada segmente marcado por sua vez de arranhões,
cortes e entalhes.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

A importação dos nossos modelos, um pouco à semelhança do que


aconteceu na década de noventa em Portugal com a explosão e ilusão em
torno dos centros comerciais, salvadores do consumidor e carrascos do comér-
cio tradicional, em Ahmedabad, e um pouco por toda a Índia, é este o cami-
nho que se segue actualmente, e que, apesar de não deixar o centro deserto,
ameaça a cada dia que passa conquistar mais e mais neste já gigantesco País.
É preocupante apercebermo-nos que o Vírus se alastrou, que o consumismo se
agita e que “Eles” querem ser como “Nós”, havendo um peculiar e antagónico
processo no qual o Ocidente se idolatra pelo brilho, pelo glamour, pela mo-

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A Evolução, Ahmedabad. Fotografia do autor

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dernidade. Depois de tanta insistência, da pacífica resistência ao Colonialismo,
das várias vagas que assolaram o “Continente Indiano”, as gerações presentes
começam finalmente a ceder ao facilitismo da Imagem sobre o Simbólico. Há
também o controlo das massas, ou o sustento do País reforçado por um peque-
no grupo de empresas que possuem cidades-fábrica. Verdadeiros campos de
concentração, competindo com a produção Europeia, sem condições mínimas
de trabalho e remuneração, numa verdadeira corrida de contra-relógio, onde
a nossa longevidade começa a perder a consistência de uma maratona, em
que a Tata ou a Reliance, assumem um reinado que coordena desde o simples
tijolo ao último modelo informático. Há um domínio absoluto do mercado onde
a oferta é nacional, altamente especializada, e acima de tudo barata. Assusta
pensar que há uma cidade como Jamshedpur, cidade da tecnologia, onde a
Tata desenvolve todos os seus equipamentos com extensas linhas de montagem
e uma indústria de siderurgia e informática sem igual.

“É que, na Índia, a indústria está a tornar-se extremamente poderosa na


forma como influencia a política, ao nível local, nacional, a todos os níveis. Ba-
sicamente, o que o Governo tem de fazer é enfrentar os grupos industriais. Mas
isso é praticamente impossível, porque depende destes grupos para financiar os
partidos políticos. É muito dificil encontrar uma solução. (...) A Liberalização criou
uma espécie de infantilização dos indianos (...)”
Entrevista feita a Amitav Ghosh,Jornal Público, 6 de Agosto de 2011, por Francisca Gorjão Hen-

riques

Aqui me deixei embalar, aos quatro minutos e quinze segundos de uma


música de Toundra chamada Bizancio.
Ahmedabad que na sua área metropolitana aloja cerca de cinco milhões
e quinhentas mil pessoas, é nos dias de hoje a maior cidade do estado do Guja-
rat, famosa pela indústria dos têxteis ou por ser o maior foco cultural do estado.
A cidade em si respira a história de várias personalidades, sendo referência por
ter sido o ponto de partida de Mahatma Gandhi na sua marcha da paz, pelo

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O Equilíbrio, Ahmedabad. Fotografia do autor

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forte investimento político e social por parte da família Sarabhai, impulsionando
a construção de grandes obras modernas, desde o museu da cidade de Le Cor-
busier à magnífica IIM (Indian Institute of Management) de Louis Kahn, possuindo
um vasto espólio arquitectónico ainda hoje protegido pela aura de continuida-
de de um dos últimos ícones da arquitectura indiana vivo, B.V.Doshi.
Ao longo do tempo que lá estive, senti que perdi vários quilos de bens
materiais, perdi também peso devido à alimentação baseada em vegetais e
condimentos vários, mas mais importante que tudo isto, ou menos preocupante,
foi o facto de me sentir mais leve, nas intenções, na alma, no espírito, retirando
a muita responsabilidade e preocupação inútil que existe a toda a hora e nes-
te preciso momento, em Portugal ou em qualquer outro lugar que não aquele.
Será porventura a nossa religião, centenas de anos sobre a tensão do Cristianis-
mo, sobre a luta entre o Bem e o Mal, entre o Paraíso e o Inferno, entre o Cas-
tigo Eterno ou a Recompensa Divina que nos formatou como desconfiados e
tacanhos, vivendo vidas que em nada reflectem os “ensinamentos de Cristo”,
ou a velha máxima “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”?. Será a nossa
Arquitectura um autêntico reflexo de uma vida num único sentido, de resposta
dupla, calculista e fria, comedida e concentrada no dia de amanhã e na boa
acção do hoje?
Rodeamo-nos de imenso lixo mental, e normalmente as nossas preocupa-
ções e metas não passam disso mesmo, de lixo que apesar de não ocupar um
lugar físico no espaço público, ou de não encher prateleiras ou poluir cursos de
água, nos consome a nós, sob o conceito de stress ou depressão. Senti realmen-
te, vivendo naquele País, que as lixeiras mentais de cada um daqueles seres se
resumem a equações bem mais importantes e menos superficiais que as nossas.
O Mundo Terreno encontra-se coberto por uma película de surrealismo, de um
lirismo puro, de uma crença inabalável que nos toca com frequência seja pela
iconoclastia dominante, ou pelos constantes “namasté” e acenares de cabeça.
Revejo as conversas que tive com alguns amigos indianos sobre o Hinduís-
mo, sobre o Equilíbrio de todas as coisas, e sobre o percurso que cada um de nós
vai conquistando até Nirvana. Numa ocasião, caminhando na rua apinhada de

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O Heterogéneo, Ahmedabad. Fotografia do autor

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gente com a Manisha a meu lado, em busca por uns quantos rolos de 35mm
para a câmara fotográfica, num aperto tive necessidade de passar por cima
de um cão que dormia no passeio sobre a sombra do edifício a si pertencen-
te. A Manisha observou, dizendo que nenhum ser vivo teria o direito de passar
por cima de outro, de calcar ou espezinhar, de se opor pela presença física,
independentemente da raça ou “encarnação” pela qual o espírito, ou Atman,
se materializa. O cerne da questão residia na pergunta “gostavas que alguém
passasse por cima de ti?”. O meu redondo Não, resignou-se à minha vergonha,
à minha posterior reflexão sobre as simples palavras de uma miúda de um metro
e meio, que aparentava ser mais nova que eu uns bons dez anos, ainda que não
o sendo!

“Ancient Indian spiritual thought integrates humans with the cosmos pre-
senting an understanding that the processes of the cosmos are directly related to
human existence. With this understanding, ancient Indian civilization has always
respected its environment”
Modern Traditions – Contemporary Architecture in India, Klaus-Peter Gast

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As Redes, Ahmedabad. Fotografia do autor
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As Camadas, Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação de Riyaz Tayyibji

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As Redes

A Rua
Imagine-se uma cidade medieval, ruas estreitas, problemas graves de sa-
neamento e higiene pública, alta densidade e um “pré-pós-revolução indus-
trial”, onde os vários meios de deslocação, quer motora, quer animal, convivem
das mais diversas formas, misturando-se o camelo e a mota, o triciclo e o maca-
co, o carro e a vaca. Ao invés de construções em pedra, o betão empilha-se,
a chapa remata, os pisos sucedem-se, a ventilação escasseia. A vida decorre
normal e sem sobressaltos à cota da rua.
É na Rua que tudo se sucede, sem ser um mero corredor ou linha direita
que une vários pontos da cidade. É nela que várias vertentes da vida social,
comercial e doméstica se desenvolvem em espaços que se vão sucedendo,
multiplicando, nos chamados Bazaars, onde tudo se vende, tudo se consome,
tudo se cruza. O arruamento de um quarteirão condensa um sem número de
camadas visíveis e invisíveis.
A necessidade de extensão do espaço privado para a esfera pública,
num misto entre o produto que vai até ao cliente e o cliente que se confronta no
imediato com o produto. Ou a básica ideia de aumentar o espaço de exposição
e arrumação, ocupando o máximo de área possível. É nesta troca dinâmica, di-
recta e que não se limita ao lote, montra ou vitrine, unificando e amplificando a
comunicação horizontal entre os espaços, que se cria uma continuidade entre
o interior e o exterior, consequentemente transformando o todo num só. Daqui
nasce um conceito de rua em movimento, em mutação e em constante dife-
renciação, tendo como principal factor o método, a matéria-prima e o modus
operandi do vendedor. Além do ruído sonoro, o visual é uma constante e faz
parte da táctica de persuasão, como um zapping constante, projectando-nos
várias imagens numa questão de segundos, levando-nos a um movimento rápi-
do do olhar que se cruza com os transeuntes ou os veículos motorizados.
O trânsito será um espelho dessa diferença, com um código da estrada
renegado onde o que importa é a ocasião, furar pelo denso tráfego preenchi-

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A Papelaria, Ahmedabad. Fotografia do autor

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do pelos mais variados meios de locomoção motora e animal. Neste contexto,
onde se confunde a revolução industrial e a agrícola, onde todos os elementos
que constituem a nossa imagem de rural se sobrepõem à densidade urbana e
às suas características inerentes, misturam-se dois alfabetos originadores de uma
língua nova, apta e tremendamente fluída. Um caos que se vai organizando
com um chega para lá, um toque aqui, um toque acolá, um desenrasque cons-
tante. Neste alfabeto conseguimos falar e escrever com a dualidade, com o
antagónico, onde a ordem implementada no mundo Ocidental que hierarquiza
e organiza a via pública, se inverte numa anarquia harmoniosa que só pode ser
compreendida quando vista a funcionar. É um vasto fluxo de gentes, mercado-
rias, meios motorizados e animais, que se cruza e preenche os limites do espaço
público sempre em metamorfose. Uma massa disforme, heterogénea, ruidosa e
dinâmica vai preenchendo as ruas, os bazaars, as avenidas, as praças e os mer-
cados.
Senti que passava uma esponja sobre o vidro molhado, ia sugando as
gotas, a pouco e pouco formando uma opinião. Tudo ia ganhando um sentido,
ainda que completamente contrário ao modelo a que estava habituado, no
Porto, em Delft ou em qualquer outro lado onde já tivesse estado.
Talvez o reforço da ordem e rigidez que a Europa Central me tinha vindo
a ensinar desde o início do ano de Erasmus, fosse a preparação para a viagem.
Agora sinto que para valorizar a paz, precisamos da guerra, para valorizar o si-
lêncio precisamos do intenso ruído.

“...a rede das passagens não está disposta num só estrato, mas segue
todo um subir e descer de escadas, patamares, pontes em arco, ruas suspensas.
Combinando segmentos dos diferentes trajectos aéreos ou à superfície, os habi-
tantes dão-se todos dias à distracção de um novo itinerário para ir aos mesmos
lugares. As vidas mais rotineiras e tranquilas em Esmeraldina decorrem sem se
repetirem.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

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A Rua, Varanasi. Fotografia do autor

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Recordo-me de Delft, uma peça única, um espaço de continuidades, de
coerência material e de uma lógica que remonta a uma Europa Central fria
e calculista, controlada e controladora. A ordem das coisas nunca me pare-
ceu tão certa quanto surreal, tão correcta como imperfeita, tão previsível como
artificial. A sobreposição das duas imagens, da primeira, de um espaço onde
uma janela não ousa deslocar-se de uma métrica global ou um peão não ousa
atravessar a rua fora da passadeira e sem um sinal verde, ou uma segunda na
qual nada será previsível, se rege por uma regra unitária ou se repete de forma
contínua ou diária.
Estima-se que a principal fonte de rendimento é esta escala de comércio
minimal, assente em produtos do dia-a-dia de uma realidade básica e adaptá-
vel, com um enorme fluxo de trocas. É normal que o mesmo local de trabalho,
podendo ter desde um metro de largura por quarenta centímetros de profundi-
dade, seja também ele a habitação.
Este princípio é espalhado por toda a cidade, e passando ao ponto in-
termédio do local de trabalho, seja ele temporário ou efectivo, ele é bastante
flexível e adaptável. O mercado permuta de locais da manhã para a tarde,
também com base na exposição solar, ou numa rotina, um percurso por si toma-
do de modo a “alimentar” determinada área. O comércio de pequena escala,
quase que um mini-mercado, aparece como um dos principais meios de subsis-
tência, com o aproveitamento de pequenos espaços, frequentemente pratelei-
ras entre vãos, armários em paredes exteriores, que com a flexibilidade e gestão
de recursos dos nativos, se sucede com naturalidade em espaços mínimos no
qual o aproveitamento é máximo. Os chamados “serviços informais”, de baixo
custo e que tendencialmente cada vez mais especializados e locais fazem parte
da economia paralela, das chamadas industrias sombra, segundo Patralekha
Chatterjee, as vidas sombra dos que alimentam a máquina do capitalismo por
míseros dólares. São eles quem limpam o lixo dos condomínios, lavam os auto-
móveis de alta cilindrada ou entregam o jornal matinal.

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As Portadas, Ahmedabad. Fotografia do autor

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As Fachadas
Imaginando o arruamento com uma largura não superior aos três metros,
com uma quantidade infindável de acontecimentos extraordinários e sem par,
num constante alvoroço e sem repetição, onde a surpresa nos abala de minuto
em minuto, ou com maior frequência ainda, a profundidade é negada com a
persistência da sobreposição de planos, ao invés de uma linha direita da qual
avistamos um fim, a rua sucede-se em catarata, criando uma espécie de zigue-
zague e as fachadas confrontam-nos à medida que vamos deambulando pelo
espaço. É como imaginar um desdobrável que se vai adivinhando num cons-
tante multiplicar de imagens, entre detalhes e reflexos, ritmados pelas portadas
abertas, pelas janelas fechadas, pelas roupas nos estendais ou pelas esguias
figuras que se pronunciam janela fora. Nas fachadas, densamente decoradas
com fios e cabos e rolos eléctricos sem fim, painéis publicitários ou néons colori-
dos, antenas parabólicas e guarda-sóis, símios e pássaros entre acontecimentos
mil, a vida e o quotidiano decorrem num segundo anel como nos estádios, onde
se observam e se desenrolam maioritariamente novos desenvolvimentos da vida
em comunidade. Um “layer” que se sobrepõe ao já sobrelotado e composto da
cota da rua.
Os alçados camuflam as gentes, por entre uma parafernália de tecidos
de todas as cores e feitios, ou tapados pelos artigos diversos das várias drogarias
apertadas entre paredes de meação, em busca de mais espaço para que se
exponha tudo aquilo que no momento julgamos precisar mas que ao fim de dias
concluímos ter a mais na despensa ou na sala de estar, na cozinha ou no quarto.
Existe um plano cinematográfico que bem caracteriza e expressa este
sentimento, esta sensação de instantâneo bombardeamento informativo, onde
nos vemos parados no meio do turbilhão, o stopmotion. A cabeça parada, a
face esgazeada, o meio que nos envolve em constante transformação e me-
tamorfose, como líquidos de consistências e pigmentos distintos que se mistu-
ram e confundem, para nossa surpresa. Esta é uma aproximação válida, numa
tentativa de relacionar uma técnica do cinema à leitura que se debruça sobre
algo tão aberto a explicações e relações, necessitando deste reforço para que

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O Segundo Anel, Varanasi. Fotografia do autor

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ganhe algum sentido e intensidade. Ao descortinar esta relação, apelo ao leitor
a busca por essa imagem, agora transfigurada à talha com a tinta vermelha a
descascar, as paredes rebocadas manchadas, o emaranhado de linhas e va-
randas e marquises e vultos, guardas em ferro forjado ou alvenaria partida, todos
colocados no mesmo balde, coloridos de modo diferente, mexidos com uma
colher como quem mistura as massas de um bolo adquirindo a consistência para
ir ao forno.

As Fachadas, Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação de Riyaz Tayyibji

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O Chowk, Ahmedabad. Fotografia do autor

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As Pols
Tipologias primordiais da cidade velha de Ahmedabad, constituem os co-
rações dos quarteirões, sendo o seu bater que alimenta a vida no centro da
cidade, e principalmente as relações familiares e comunitárias, em que cada
Pol tem funções básicas determinadas aos seus habitantes e até mesmo um
templo para orações. Se procurássemos uma resposta rápida num modelo Eu-
ropeu, poderia ser visto como um condomínio fechado rudimentar. A diferença
está na intimidade criada pelas galerias e lavabos partilhados pela comunidade
e nas suas áreas mínimas. Os quartos viram-se para os espaços de circulação e
para o pátio central, sendo a maioria dos fogos organizada segundo uma sala
multi-funções e uma cozinha. Normalmente possuem uma ou duas entradas, o
tráfego é limitado no seu interior e cada pol pertence a um meio religioso/social
ou mesmo laboral.
É neste pequeno mundo interior onde se podem verificar os elementos
base da sociedade indiana, na hierarquia familiar e na divisão de tarefas en-
tre homem e mulher. A educação das crianças é feita através deste meio tão
controlado, onde as famílias partilham experiências e modos de subsistência. Há
também a necessidade de trabalhar no local da habitação, onde os processos
manuais imperam e micro economias se desenvolvem. Há uma mística muito
forte nas pols, criada pela sua escala reduzida e intensa, pelo contacto muito
forte e pelo conhecimento mútuo. Um contacto que no mundo Ocidental se
torna cada vez mais pontual, frio e distante, entre vizinhos e moradores do mes-
mo bairro ou área residencial. Esta escala familiar/comunitária interliga as várias
famílias e as várias actividades, estabelecendo laços e relações fortíssimas e es-
pecíficas a cada lugar.
Partindo da família para a comunidade, e consequentemente desta para
a cidade, é neste princípio, estilo de vida local e comunitário, que muitas das
actividades económicas fundamentais à subsistência de inúmeras famílias in-
dianas se desenvolvem no meio habitacional. Aliando o local de trabalho ao
local de residência, poupa-se um novo espaço intermédio que surge entre a
produção e escoamento do produto, reduzindo-se custos e consequentemente

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A Privacidade, Ahmedabad. Fotografia do autor

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controlando-se outros factores que em tudo têm a ver com a relação entre fa-
mília e comunidade onde se insere.
A questão da identidade, referida através da classe, da profissão ou reli-
gião, atinge um grau de definição e expressão no trabalho decorativo das fa-
chadas, dos capitéis das colunas ou frescos, utilizando-se motivos vegetalistas,
humanistas e religiosos.
Existe na Pol um lado invisível, cuja amplitude assume como base o religio-
so, sem esquecer os factores sociais e culturais, criando um lado metafísico, um
entendimento invisível e de difícil compreensão para o Ocidente. Os espaços
são mínimos, as vidas são partilhadas, o carácter quase comunista de uma par-
tilha obrigatória e uma vida em contínua troca e permuta de bens e serviços,
na qual uma hierarquia básica estabelece os contactos e as regras de um meio
demasiado pequeno para ser compreendido por nós como um modelo váli-
do. Pernoita-se nos corredores quando a temperatura assim o exige, as crianças
brincam nas galerias e as mulheres educam todas as crianças como se dos pró-
prios filhos se tratasse, e os templos são locais sagrados que trazem harmonia ao
centro da Pol.

Assim se traduz a Cidade Indiana, que é mais do que um mero conjun-


to de construções, arruamentos, pessoas e situações. Ahmedabad possui uma
aura paralela, uma mística e um lado invisível, metafísico, que frequentemente
se sente e não se vê. Sem tal atributo, a cidade cai no esquecimento, no cinzen-
to do seu betão, ou fica-se pelo verde da sua apatia.

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O Oásis, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Karma, Ahmedabad. Fotografia do autor

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O Oásis

Acredito que para se ser bom no que se faz, há que aprender com os
melhores, beber das suas palavras, registar os momentos e claro, persistir nas
constantes tentativas e erros. É também verdade que nem sempre o melhor
Arquitecto é o melhor professor, talvez porque a sensibilidade e a intuição do
desenho seja tão pessoal e tão interior que transmiti-la se traduza numa difícil
tarefa, ou até porque nem sempre se possui o dom da oratória, ou a paciência
para ensinar, ou até nem parta de quem a recebe, essa vontade de aprender.
Doshi privou com os geniais, em conversas que imagino valer mais que vá-
rios anos de estudo ou pesquisa solitária. Foi o seu trabalho em projectos como
o de Chandigarh ou o IIM, que lhe transmitiram conhecimento, experiência e
paixão, referências num mundo demasiado gratuito e esteticamente rendido.
Assim se compreende como a sua arquitectura pode espelhar tamanha certe-
za, tamanha reflexão sobre o lugar das coisas, o percurso, a aura. A razão de
ser sempre questionada, a relação íntima entre a família, a crença, a textura, e
segundo ele, a vontade de manter a frescura dos anos de infância, não levando
demasiado a sério a vida para poder respirar o dia de amanhã.
O seu ateliê, nosso local de trabalho, fez parte e contribuiu em muito para
a compreensão de várias temáticas que antes desconhecia…
Sangath aparecia dissimulado, seguindo pela Drive-In Road, à frente da
enorme antena de televisão em betão armado, por detrás de um muro em bai-
xo relevo geometricamente ornamentado. Por entre as enormes árvores, o lo-
bby exterior acolhia-nos, dávamos entrada numa nova realidade, bem distan-
te da que se desenrolava na rua, numa recta perfeitamente paralela que eu
acredito que só no mais distante infinito se toque, o edifício era um hino a tudo
o que dessa aprendizagem atrás referida pode significar. A aproximação era
feita pela lateral, obrigando-nos a penetrar na vegetação, ver o reflexo do edi-
fício no pequeno espelho de água faseado, em cascata, com rãs e nenúfares,
enormes peixes vermelhos a deslizarem suavemente no seu fundo, sinal da Vida.
Os macacos por vezes apareciam para nos saudar. No percurso até à entrada,

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Os Nenúfares, Ahmedabad. Fotografia do autor

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tocávamos o sino de bom Karma, tentávamos a nossa sorte e a entrada, sobre
a abóbada da esquerda, levava-nos ao nicho, à antecâmara que nos tráz a in-
timidade com a imagem de uma divindade ao lado da porta. Da luz reflectida
no branco forte do exterior, amplificado pela água que vertia da cobertura no
revestimento do edifício, em pleno contraste com o cinzento-escuro do betão,
dá lugar a uma passagem escura onde a nossa visão se tenta adaptar à fresca
temperatura e ao momentâneo desconhecido. Será à semelhança da entrada
do CEPT, Faculdade de Arquitectura do mesmo autor e na mesma cidade, uma
plena passagem entre exterior e interior, sendo os nossos sentidos o cerne de
toda a interpretação. O forçar a adaptação, a cegueira temporária e o des-
conhecido, as primeiras imagens a aparecer, a escultórica escada destacada
com a sua guarda vermelha, os desenhos e as maquetas afixadas às paredes,
os esquissos de Louis e Jeanneret, o legado, as fotos dos tempos de juventude,
os postais as cartas as memórias. Uma densa introdução.
Os lanternins iam ditando o caminho até à nave central, com um pé di-
reito duplo que se relacionava com a cobertura praticável, o ruído da água a
ecoar na circular cobertura, a sucessão de mesas a marcar o ritmo do trabalho.
Ao subir as escadas, um novo espaço duplo aparece à direita, o meu gabinete
de trabalho com uma curta e íngreme escada até ao último piso, escassos cinco
metros quadrados de corredor e mesa de trabalho. A intimidade do piso superior
era o resguardo da reflexão, tal qual os gabinetes adornados por trepadeiras e
cores quentes, das quais Barragan não se envergonharia, que na penumbra e
abraçada pela suave brisa que a percorria, acrescentavam um toque humano
ao espaço, um alegre apontamento de calma que apaziguava o espírito com
o reconforto do sorriso no nosso rosto.

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O Eterno, Shelter. Digitalização do autor

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“Back to a place I wish I never left. Back to a place because I’m feeling

so bereft today.

Where saints and sages walk right down the street. As they kick the dust

up with their lotus feet.

The monkeys chase the peacocks all around. While a Sadhu offers pray-

ing lying face flat on the ground.

A place where I can go but I can’t cheat. Where everybody knows

what’s inside of me and I’m sitting here so desperately.

Because I’ve been living without giving back and losing touch with what’s

inside of me and the fact is I want to go back.

A resting place to finally belong. A land where every step’s a dance and

each word’s a song.

These costumes I wear get heavier day by day. Want to strip it off and

throw it all away. Entangled in a world my head spins.

Can’t remember how I dropped right in anymore.

Temporary rooms are where I dwell.

Looking for that home from where I fell

I want to go back!”

“Back to Vrindavan” - Eternal, Shelter

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O Privado, Ahmedabad. Fotografia do autor
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O Quarto, Ahmedabad. Fotografia do autor

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O Privado - Uma nova forma de habitar

A vivenda abrigou catorze pessoas, de três diferentes nacionalidades, em


quatro quartos, uma sala de estar com um pé direito duplo que se relacionava
com o vão do quarto de casal, um espaço de refeição mais baixo com um ni-
cho virado para o jardim fielmente regado pelo vizinho. O hall de entrada era
um espaço amplo que se interligava directamente com os espaços comuns e
do lado esquerdo de quem entrava, tinha uma escultura a relembrar os anos
sessenta, a relembrar o estilo de vida californiano. Posso dizer que era uma mo-
radia Ocidental, retrovisor com vista para a Mulholland Drive e com o amplo
terraço da cobertura a fazer as delícias de tantas noites ao relento, só com o
tecto estrelado e escuro, o intenso vazio por cima de uma mente cada vez mais
desprovida do que outrora foram as consumições do real.
Até aqui me vi forçado a viver sem privacidade, buscando um pequeno
espaço no jardim da casa, afastando-me do confronto de escalas e espaços
minimais que iam aparecendo ao longo da habitação, quer fosse no pequeno
quarto de camas com setenta centímetros de largura e colchão com três de
espessura, uma palaciana rede mosquiteira e os meus outros três companheiros
a partilharem comigo o pouco ar que ainda se podia respirar em longas noites
temperadas à temperatura de uns sufocantes trinta e muitos graus, ou na plati-
banda da cobertura, onde a introspectiva e a reflexão reinavam.
A água era fria, as refeições eram comunitárias e dependiam das peque-
nas mercearias que se iam amontoando ao longo da rua transversal ao nosso
cul-de-sac, o sofá estava partido e a televisão deixara de funcionar há anos.
O espelho e o cobertor das escadas eram de uma mármore esverdeada, a
lembrar as manchas de humidade atropelando-se pelas paredes abaixo, man-
chando o branco já de si pálido, com a facilidade de quem as desce várias ve-
zes por noite para poder beber um pouco de água quente do filtro de carbono.
As guardas pintadas de branco, revestidas a borracha vermelha, numa mistura
de cores equilibrada. Um luxo, assim o entenda, comparado com toda a misé-
ria e condições desumanas coleccionadas dia após dia, passeio após passeio,

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O Terraço, Ahmedabad. Fotografia do autor

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viagem atrás de viagem.
Gostava de caminhar até à rua, dar mais uns passos até ao cruzamento,
mirar o pequeno quiosque instalado à frente do cunhal do quarteirão mais pró-
ximo, um amontoado de tijolos toscamente rebocados, pintado de vermelho
sobre o patrocínio de uma qualquer marca de telecomunicações, rematado
superiormente pela chapa ondulada e com a ligação directa à rede de electri-
cidade urbana. Sentava-me no banco revestido a pastilha colorida e de novo
vislumbrava o cruzamento, dissecando-o como se de uma proveta da socieda-
de se tratasse, dois sentidos sem prioridade, sem regra, interrompido ora freneti-
camente ora monotonamente, marcando o ritmo da adversidade.
Quando a noite chegava, o terraço era o meu quarto, o meu e de quase
todo o resto do grupo, deixando a privacidade e o pudor de lado, aprendendo
a viver sem os limites outrora impostos pelo quotidiano, ou melhor dizendo, as
limitações, possuindo todo o espaço que pretendesse até ao vazio das estrelas.
Se a Arquitectura existe para nos abrigar, também existe para nos aproximar das
incertezas de dias como os de hoje, alimentados pelo nada que nos consome,
pelo escuro do desconhecido. Assim me senti, ao olhar os inúmeros pontos bran-
cos, ouvindo o apito do comboio lá longe, a perder de vista.

“A verdadeira inspiração não pode ser atingida no interior de uma caixa


fechada. A mesma necessita do ar-livre, debaixo do Céu-aberto”
The Blessings of the Skies, Charles Correa

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A Estrada Perdida, Boticas. Fotografia do autor
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As Covas, Boticas. Fotografia do autor

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A Estrada Perdida

A Estrada dava a conhecer-se, a luz ia desaparecendo a pouco e pouco,

deixando passar as linhas negras dos pinheiros queimados, as nervosas vírgulas

que um agitado fogo tinha tragado no verão passado. O desalento da paisa-

gem queimada que ainda há pouco tempo era de um verde gritante, onde os

vários planos se vão sucedendo numa profundidade sem fim na qual o nevoeiro

confere uma certa mística, emergiu um acordar agitado num comboio que fez

a ligação entre Ahmedabad e Mumbai, onde ia adivinhando os contornos da

árida paisagem, aqui e ali pontuada por pequenos sinais da presença humana.

Hoje, escrevo sobre a Índia com o reflexo em Portugal, no que mais intrín-

seco e verdadeiro há na nossa cultura e arquitectura vernacular. Neste preciso

momento, são as amplas labaredas da fogueira da cozinha que me iluminam,

num compartimento de onde vislumbro o pátio e a escadaria da outrora casa

senhorial, da galeria de acesso à grande sala, das vinhas e do galinheiro impro-

visado sobre a nova laje da casa assente no antigo muro de pedra. Nesta negra

sala, onde muita carne já foi fumada, com o guindaste da panela por detrás

de mim, neste vazio que me absorve, contemplo a simplicidade e eficácia da

Arquitectura do senso comum.

Aquando à minha chegada, o cheiro a excrementos e o gado que pasta-

va na propriedade iniciaram uma nova viagem dentro daquele fim-de-semana

prolongado. Covas do Barroso lembrou-me as Pols, trouxe-me as galerias com a

talha trabalhada, a intimidade dos Chowks, a vida em comunidade, os animais

a serem passeados pelos arruamentos, levemente me trouxeram à memória to-

dos os outros que circulavam livremente pelas selvas de betão Indianas.

Irónico ser em Trás-os-Montes, no longínquo Portugal esquecido, alvo da

partida solitária de milhares que se revoltaram contra o fado da terra, numa paz

que talvez só tenha paralelo no Alentejo, silêncio que nos abraça e envolve e

111
O Espigueiro, Boticas. Fotografia do autor

112
que nos afaga de uma forma totalmente diferente daquela que encontrei no

antigo “Vice-Reino da Índia Oriental”. Interessante perceber como duas coisas

tão distintas, tão enraizadas e ligadas a um modo de estar e a uma cultura es-

pecífica, irrepetíveis e únicas, possuem tanto em comum.

Ao reflectir sobre o peso da evolução na nova Ahmedabad, ao enumerar

a Ocidentalização e apropriação de modelos completamente alheios e despro-

vidos de interesse num mundo aos quais não pertencem, é agora, sentado nesta

sala escura e rodeado por reflexos amarelados e sombras esguias que repenso

o nosso Portugal, retirando de Covas do Barroso a sua alma única. O seu Atman.

Pretendo com isto questionar, na comparação de um lado que se modernizou

e imitou novos modelos e de outro que não se deixou modernizar ou pura e

simplesmente não teve sequer oportunidade para tal, caindo no esquecimento

de um País de esforços centralizados, qual das atitudes fora a mais provinciana,

vendida ou iludida por tudo que há de novo na “nova” Cidade. Sejam eles o

modo de estar, os centros comerciais, os boulevards, os pubs e a vida nocturna,

os enormes bairros e os condomínios fechados que salpicam os subúrbios.

A caricata situação do agricultor que conduz o tractor até ao primeiro

café que lhe surge desde casa até à pequena povoação, e que de modo in-

termitente vai percorrendo no veículo as restantes e escassas tabernas que ani-

mam este pequeno meio rural, é um perfeito reflexo desta paradoxal simplicida-

de.

“We’ve met before, haven’t we?” Mistery Man


Lost Highway, David Lynch

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114
O Legado, Ahmedabad. Fotografia do autor
115
O Palácio, Sarkhej Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor

116
O Legado - Sarkhej Roza

O capítulo que se segue é um processo dessa aprendizagem, desta pe-


quena guerra de interpretação, às vezes teórica, às vezes prática, poucas vezes
objectiva. Isto porque cada indivíduo possui um determinado método e back-
ground, um acumular de experiências e vivências que o tornam um ser único,
ainda que frequentemente comparado a este ou àquele, pelo temperamento
ou pelas atitudes, pela linguagem ou pelo “gosto”, será sempre diferente e essa
diferença, mais tarde ou mais cedo, há-de ser notada. É porventura no trabalho
de grupo, no qual a nossa opinião possui igual peso à dos nossos colegas, que
estas diferentes educações e perspectivas se tocam, se cruzam e muitas vezes
se atropelam, até pelo Ego.
O meu grupo era distinto e heterogéneo, em vários níveis de formação e
com escolas demasiado distantes a nível de processo. Eu era somente um infil-
trado português da escola de Delft, num grupo de trabalho composto por um
outro holandês, o Jelmer, duas madrilenas de seu nome Clara e Patrícia, a fria
e distante Klara de Hacken e o simpático e prestável Varun de Hyderabad, da
Índia.
Desde o início houve uma dedicação à investigação e pesquisa, pelas
razões, por uma causa-efeito, uma inequívoca procura pelo âmago da ques-
tão, dissecando reacções e comportamentos do panorama que nos envolvia,
tentando, através de relações com o nosso passado Europeu, encontrar com-
parações que nos guiassem neste admirável mundo novo.
A ténue linha do tempo, o trabalho desenvolver-se-ia durante dois meses,
das nove da manhã até às sete da tarde, era um constante alarme à navega-
ção, um aviso que a cada dia que passava nos impunha a pressão da prática.
Pelo menos assim entendi eu.
A discussão fora quase sempre relacionada com as abordagens ao pro-
jecto na sua vertente mais teórica, onde tudo era questionado mas não se apre-
sentavam soluções à facção da prática que forçava uma ou várias soluções,
com o objectivo de criar e “fazer arquitectura”, que também poderia pecar por

117
A Seca ,Sarkhej Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor

118
falta de fundamento ou investigação. Foi um período em que um dos grandes
ensinamentos foi a questão do faseamento, do saber parar, da investigação
objectiva, da interpretação madura mas rápida que pudesse dar resposta a um
programa de habitação social com cento e cinquenta fogos, numa importante
área de Ahmedabad.
Acredito que para um estudante local, a dificuldade fosse já acrescida,
falávamos de uma zona delicada, de um ícone da cidade, uma questão de or-
gulho, uma questão de passado ultrapassado pelas buscas do presente. Recor-
do-me das palavras de Balkrishna Doshi, sempre metodica e cuidadosamente
escolhidas de modo a conseguir transmitir a solenidade do tema, da interven-
ção na abordagem a Sarkhej Roza como uma imagem de um passado feliz, do
convívio nas enormes escadarias que terminavam no vasto espelho de água,
de todas as esferas que se cruzavam num único espaço central, num autêntico
“monumento vivo”. Era necessário reabilitar a área envolvente, devolver o brio,
parar a especulação imobiliária e também voltar a preencher o vasto espelho
de água.

O Monumento

Sarkhej Roza, datado de 1458, localiza-se sensivelmente a dez quilómetros


do centro de Ahmedabad, na margem oeste do rio Sabarmati e foi em tempos
o retiro de eleição do sultunado do Gujarat. Nos dias de hoje, o crescimento
massivo da cidade e sua expansão para a margem oeste do Sabarmati, ditou
a aproximação cada vez mais rápida ao monumento, asfixiando-o. Levantam-
-se várias questões e é interessante perceber que cada pedaço de tecido que
envolve Sarkhej Roza representa diferentes extractos sociais e religiosos. Sarkhej,
na sua aproximação pelo lado oeste, é árida, numa terra batida que serve de
campo de cricket para as várias crianças da povoação, subindo-se um morro
e acedendo ao complexo pelo palácio real. Há uma primeira reacção, provo-
cada pela grandeza do espaço, pelo seu quase infinito espaço central outro-
ra cheio de água e de vida. Imagino qual seria o impacto de ver as margens

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As Nervuras, Ahmedabad. Imagem de Neelkanth Chhaya

120
cheias de gentes a lavar roupa, a banharem-se, a conversar nos seus degraus.
Em vez de tudo isso, a cor sépia da terra seca, das fissuras e estrias, do desolado
abandono, preenchem-nos de um vazio equivalente ao da ausência da água.
Há um grave problema na evolução, na especulação crescente. Sarkhej já não
é excepção de há uns escassos anos para cá.

A Topografia

Nestas duas sublimes imagens retiradas de uma aula do Arquitecto Nee-


lkanth Chhaya, conseguimos compreender a importância da reticula invisível de
ligações que conjugam um equilíbrio actualmente quebrado pelo crescimento
urbano. Para além da monção, que revitaliza e volta a preencher o vasto espe-
lho de água, é o lago Makarba, um grande corpo de água, que directamente
abastece Sarkhej Roza. Com a complexa rede de águas interrompida, o ciclo
natural é alterado e consequentemente a quantidade de água proveniente do
Makarba não é suficiente para encher em pleno a área de Sarkhej Roza. Há en-
tão uma necessidade de recuperar e captar o máximo de águas provenientes
da monção, elemento simbólico mas também vital para o quotidiano e peque-
nas economias locais.
A água é um elemento fundamental que reflecte a alma, duplica os es-
paços, conjuga e concentra no seu âmago vários factores transversais à cultura
Hindu. São vários os exemplos desta importância, seja no convívio nas margens
do lago Gadisar em Jaisalmer, Chandigarh e o lago Sukhna, Pushkar que se en-
volve num enorme espelho de água central ou na tradicional e a paranormal
Varanasi e o rio Ganges. Na Índia, o antagonismo entre os períodos de monção
e seca proporcionam um antes e depois, a mutação dos espaços e do estilo de
vida que a temporada da monção exige. Em Goa, por exemplo, há todo um
ritual de construção/ desconstrução nos períodos que antecedem e procedem
a monção, desmontando-se os bungalows das praias para novamente se er-
guerem após as intermináveis chuvas.

121
O Adeus, Ahmedabad. Fotografia do autor

122
Sarkhej Roza é directamente influenciada por estes dois períodos, sendo
ciclicamente reposta a água do seu enorme “tanque”. Porém, a nova vaga de
construções que se foram desenvolvendo na sua envolvente, desconectou vá-
rios cursos de água e consequentemente debilitou o reabastecimento do gran-
de espaço central. Há um metódico e natural ciclo de drenagem de águas que
nos últimos anos tem sido cortado gradualmente, contribuindo fatalmente para
o abandono e decadência do monumento e também do próspero cultivo que
outrora compôs esta área rural.

O Objectivo

Há ao longo deste discurso, constantes referências à multidisciplinaridade


da cidade, as suas milhentas soluções e formas, a sua capacidade de materia-
lização e improvisação, numa dinâmica sedução na qual a sua complexidade
só pode ser interpretada e abraçada através de um olhar sensível e espiritual. É
necessária uma total absorção e compromisso com o meio que nos envolve. É
um jogo entre a modernidade e a tradição, uma reflexão que cruza o árduo e
contínuo trabalho artesanal com os processos mecânicos e industrializados de
um presente sedento de produção. A cidade é uma resposta e um espelho des-
te actual paradoxo Indiano. A sua densidade traduz uma cultura de apropria-
ção e aproveitamento espontâneo a uma escala que compila infra-estruturas,
factores socioculturais e crenças sem que um limite se consiga impor.

“Architecture is the manifestation in form of the order of our experience. It is


a model of our consciousness, the fitting of ourselves between the earth and the
sky, the patterns in which we relate one to another, and the physical presence of
our institutions”.
Between Silence and Light. Spirit in the Architecture of Louis L. Kahn., John Lobell

123
A Conversa, Ahmedabad. Fotografia do autor

124
Este conjunto de valores é o primordial ponto de equilíbrio no exercício de
projecto, o principal foco na concretização do plano de desenvolvimento para
Sarkhej Roza, onde se enquadravam o desenho de cento e cinquenta fogos e
consequente espaço público e infra-estruturas necessárias.

Abordagem ao caso de estudo

Numa primeira abordagem à área de estudo, num raio de um quilómetro


fez-se o levantamento dos usos, graus de rendimento mensal, estrato social ou
ocupação laboral. A tentativa de dissecar o existente, de recolher uma amostra
que consiga responder às várias questões de modo a que o projecto se apro-
xime da realidade e que, desta forma, não seja um acto descontextualizado e
meramente especulativo. A tarefa desde logo se adivinha árdua devido à nossa
falta de conhecimento de causa, sem uma orientação objectiva e com a envol-
vente de Sarkhej Roza dividida em seis parcelas, uma para cada grupo, e todos
os grupos divididos por nacionalidades e escolas.
Percorrendo o espaço envolvente apercebi-me da complexidade do pro-
blema, ou dos problemas, existindo situações bastante antagónicas a coexistir
com grande intensidade.
Há um aspecto bastante interessante que caracteriza a povoação que
envolve o complexo de Sarkhej Roza. Sendo uma área de crescimento espontâ-
neo, sem regra, fruto do desenvolvimento individual e da apropriação de terre-
no, onde se expõem as grandes limitações de saneamento e ausência de pla-
neamento, confrontamo-nos então com um território muitíssimo pobre e no qual
a necessidade obriga várias comunidades a se relacionar o que numa situação
normal não aconteceria. Há uma forte relação entre a Religião e o meio, levan-
do as comunidades Hindus e Muçulmanas a viver em bairros distintos, separa-
dos, havendo uma divisão forte que somente não ultrapassa a condição social.
Ahmedabad foi palco de violentos e sangrentos confrontos religiosos, recuando
até 2002 quando um grupo radical Muçulmano incendiou uma carruagem do
Sabarmati Express, cheia de peregrinos Hindus, em Godhra. Segundo o jornal

125
O Negócio de Família, Ahmedabad. Fotografia do autor

126
Ahmedabad Times, da escalada de terror registaram-se 790 muçulmanos e 254
Hindus mortos.
A vaca como animal sagrado, que no bairro Hindu é um medidor socio-
económico, cuja aparência é um reflexo do grau de rendimento do bairro onde
vive e consequentemente se alimenta, converge na contradição da sua vulga-
ridade na comunidade Muçulmana, criando até uma situação antagónica na
qual o seu sacrifício para alimento se traduz num acto imperdoável aos olhos do
Hinduísmo.
Mas é relevante compreender o que se verifica em Sarkhej e na grande
maioria das favelas, onde, sempre que os “squatters”, habitantes ilegais, ultra-
passam o limiar da pobreza, sem condições para uma separação, a necessida-
de dita a aproximação e convívio entre as comunidades. Os bairros conjugam
estas duas facções, ou possuem limites entre eles quase imperceptíveis. A mes-
quita de Sarkhej Roza é um local para onde converge a comunidade Muçulma-
na mas co-existem outros templos Hindus nas proximidades, relacionados tam-
bém eles com pequenos bairros da mesma religião.
Esta vasta área habitacional é caracterizada por construções faseadas,
que se vão prolongando no tempo, feitas em tijolo e com coberturas em zinco,
ou em fases mais avançadas em lages aligeiradas que vão evoluindo mediante
as posses dos seus proprietários. Há uma visível transformação, ano após ano,
das fachadas e das ruas, mantendo-se quase sempre o espaço público em terra
batida, com o desperdício e esgoto aí depositados. Um pormenor interessante é
o controlo do espaço imediatamente adjacente à habitação, limpo, num alcan-
ce que é variável e que demonstra um sentimento de pertença além do espaço
interior da habitação. Este sentimento de pertença engloba-se numa complexa
hierarquia do espaço público que se desenvolve na cidade e particularmente
em áreas como esta, na qual a escassez de espaço interior promove a procura
de novas soluções que integram os espaços exteriores. Esta vida na rua é parte
integrante da habitação, ainda que haja uma clara e marcada separação en-
tre público e privado, são os espaços ao ar livre principais focos de dinâmicas
sociais e actividades quotidianas. A extensão do interior para o exterior possui o

127
Análise da evolução da habitação. Desenho do autor

128
dom de manter limpos os estreitos arruamentos, o que já não acontece quando
há uma distância superior entre as fachadas, originando espaços centrais bas-
tante descuidados nos quais se vão acumulando dejectos e lixo das mais varia-
das formas, cores e feitios. É interessante percebermos a ténue linha que separa
este jogo de espaços e as regras que o pautam, compreendendo que há uma
íntima relação entre o vazio e o abandono, entre a sombra e a ocupação, entre
a escala e a pertença.
Ao percorrermos a malha, apercebemo-nos das várias camadas e da sua
transformação à medida que nos afastamos dos principais arruamentos, surgin-
do uma grande variedade de soluções tipológicas e de uma riquíssima varieda-
de de soluções construtivas e materiais.
Junto às estradas e principais acessos, a habitação desenvolve-se em
duas frentes, uma que se relaciona com a via em si, estabelecendo actividades
económicas que sustentam o seio familiar, e outra localizando-se no seu lado
oposto, a esfera privada e as actividades do quotidiano. Há uma repetição do
estreito lote, com um espaço comercial na fachada frontal meramente separa-
do por uma parede em relação aos espaços privados da habitação. À medida
que nos afastamos destes arruamentos e penetramos no interior poroso e de-
sorganizado dos improvisados quarteirões, iniciamos um percurso que nos leva
gradualmente a soluções mais fugazes e temporárias, com construções mais
precárias e com diferentes estados evolutivos. A habitação torna-se então um
reflexo do meio que percorremos e de quem a habita, relacionando-se direc-
tamente com o grau de rendimento do seu “proprietário”. As soluções encon-
tradas em áreas mais pobres englobam o uso de materiais baratos e de baixo
custo frequentemente reaproveitados. A pedra, tijolo ou blocos de cimento de
habitações com um índice de rendimento superior contrastam com os recursos
mais básicos como a lama, adobe, pedaços de chapa ou plástico dos meros
abrigos que nascem como cogumelos nos cada vez mais raros espaços vazios.

129
O Desenrasque, Ahmedabad. Fotografia do autor

130
“Não há nada de básico na habitação básica”
How the other half lives, Center for Minimum Cost Housing, McGill University, Montreal

Ao atingirmos uma distância considerável em relação ao arruamento prin-


cipal no qual se acede pela zona Este a Sarkhej Roza, deparamo-nos com uma
crescente ruralidade que vive da pastorícia e da agricultura. Numa dessas in-
cursões, uma família muçulmana orgulhosamente mostrou-nos o seu pátio onde
criava os dois bezerros que mais tarde lhe iriam servir de alimento e sustento.

“At the door to my house, you´ll see the most important member of my fa-
mily.
The water buffalo.
She was the fattest thing in our family; this was true in every house in the
village. All day long, the women fed her and fed her her fresh grass; feeding her
was the main thing in their lives. All their hopes were concentrated in her fatness,
sir.
If she gave enough milk, the women could sell some of it, and there might
be a little more money at the end of the day.”
The White Tiger, Aravind Adiga

Há então uma radical alteração numa curta distância, passando a habi-


tação a possuir um pequeno espaço de cultivo ou criação de animais, havendo
também a fabricação manual de tijolo através do uso do solo.
A procura é espontânea, invertem-se os valores, a força da vontade so-
brepõe-se ao valor da estética. A evolução da habitação além de medidora
social, reflecte uma permanente acção que é fruto da vontade de cada indiví-
duo, realçando aspectos importantes na vida de quem habita estes espaços.
Não é líquido, nem sequer linear, o modo como evoluem as habitações,
havendo uma improvisação que apenas depende dos objectivos de quem a
habita e das suas prioridades, mantendo constantemente “a favela” em muta-
ção. Os objectivos da construção ilegal e de quem a leva a cabo, ainda que

131
O Desenvolvimento, Ahmedabad. Fotografia do autor

132
diferentes do planeamento urbanístico escasso e limitado das Instituições Mu-
nicipais, são o principal meio de expressão e o espelho de uma sociedade em
crescimento estonteante. Assim se espalha a cidade como um balde de água
sobre o pavimento, criando-se novos centros, ainda que minimais, novos focos
de produção e subsistência que não competem com o velho coração da cida-
de mas que criam permanências e sustentam esta nova textura urbana.

“If we take a look at housing colony that is planned and constructed


around us, its design and dimensions may differ according to the income levels
of the people, but within one kind of income group all the units are identical, no
matter how varied the actual patterns of lives of the people are, who have to live
in them.”
Appropriating One´s Space: Process and result in the Indian context, Sunita Kalsaniya

Esta vasta área é parte constituinte da grande massa que se vai aproxi-
mando a pouco e pouco de Sarkhej Roza, rodeando a sua entrada a Este, e
girando sobre a ela.
O oposto desenvolve-se a norte, onde a densidade é trocada por cos-
mopolitas e urbanas referências à habitação perfeita, aos jardins privados e às
piscinas em pastilha azul. Há a multiplicação do género “condomínio fechado”,
do videoporteiro, do segurança do complexo, da vida Ocidental. Um Admirável
Mundo Novo. A escola pública ao ar livre dá lugar ao ensino privado separado
pela grande muralha, o verde do campo de jogos, o ar condicionado do seu
interior, contrastando com o ar que sopra nas folhas da escola dos meninos po-
bres. Retiro deste fenómeno um pouco aquilo a que chamo a doença do Euro-
peu, a nossa ânsia por protecção e controlo, o horário de entrega da criança
e o horário de a retirar de uma das muitas escolas ATL, centros de explicações,
onde no fundo esperamos que sejam lugares nos quais as crianças possam ser
educadas sem que risquem as paredes dos nossos apartamentos, sem que es-
murrem os joelhos, sem que nos façam todas as perguntas que nós fazíamos aos
nossos pais, sem que se percam pelos pátios e quintais e jardins e ruas da nossa

133
O Acesso, Ahmedabad. Fotografia do autor

134
vizinhança que não conhecemos, o vizinho do 4ªEsq ou o dono do café em fren-
te. Interessante perceber que até na Índia, onde vi crianças a correr despidas
pelo lamaçal feito rua, ou a jogar intermináveis horas de cricket ou entregues às
várias mães do cluster onde viviam, haja quem possa optar por inverter e subver-
ter a sua realidade e educação, em prol de modelos “limpos e civilizados” que
formatam a geração de hoje para as não adversidades do amanhã.

“At the present housing developments seems to have become almost sy-
nonymous to uniform – standardized group o dwellings, restricting man´s natural,
cultural tendencies towards variety, differentiation, hierarchy and individuality.”
Appropriating One´s Space: Process and result in the Indian context, Sunita Kalsaniya

Durante a minha estada na Índia escrevi um pequeno texto sobre esta


frescura que via no dia-a-dia pelas ruas da cidade, nesta liberdade perdida da
qual ouço os meus avós e pais a falar quando retratam a sua infância preenchi-
da de aventuras no bairro ou no campo, de uma dita liberdade perdida, uma
inconsciência esquecida, um à vontade para vaguear sem grandes reflexões.

“Se por um lado este país não pára de fascinar e surpreender, quer pelo
património (... maioritariamente ao abandono e pouco cuidado, o que em Pe-
nafiel se faz com a Rota do Românico, aqui se faria com milhentas outras coisas)
cultura e religião, a outra parte da Índia é dura.
Sofremos da doença do Europeu. Actualmente viciados no mundo digital,
com os putos em infantários e escolas das 8 às 18h, a aprender a mexer no Ma-
galhães e a falar Inglês, vacinados contra tudo, a lavar as mãos a cada hora,
com paracetemol para as gripes e constipações, com os pais apressados para o
trabalho, ou a pensar nas inúmeras imbecilidades do dia-a-dia, sem tempo para
criar ou deixar os putos viver (se é que eles realmente querem viver). Aqui não
há passeios, as lojas são à moda antiga, os mercados aparecem porque são
carregados durante quilómetros, há pó e há lama, as pessoas andam descalças
dentro e fora de casa, as vacas dormem e andam pela rua, não há leis de trân-

135
A Roza, Ahmedabad. Fotografia do autor

136
sito, não há novas modas e ainda se anda com bocas de sino, os putos andam
largados nas ruelas, pulam, saltam e brincam com garrafas de plástico, riem e
parecem mais felizes que 90% das crianças que conheço da Vila Gualdina. Aqui
não se troca de roupa nem se toma banho, não se escovam dentes a não ser
com cana-de-açúcar e os comboios e meios de transporte públicos levam 6 ou
7 vezes a sua capacidade máxima. As pessoas caem e riem-se, (...) correm por
todo lado, os pais não se preocupam com os raptos e há velhotes em todo lado.
A religião é colorida e não oprime, eles vivem as vidas que precisarem para che-
garem a Nirvana e parecem não se importar com mais nada.
Enfim, parece que todos esses deuses se esqueceram da Índia, de Ganesh
a Brahma (...) mas as coisas apesar de caóticas, vão funcionando. (...) come-se
com as mãos, bebe-se água da torneira e não há mosquito que os mate.”
Um Delicado Sentido de Equilíbrio, Nuno Sousa

Sarkhej Roza é, deste modo, uma proveta, um ensaio sobre um universo


onde tantos factores e tantas faces desta Índia se cruzam. Uma riqueza tal de
situações, que se revelou um exercício de projecto bastante exigente e trans-
cendente, no qual o carácter humano de cada um, a visão formatada que pos-
suíamos, precisou de se abrir e abraçar toda uma descoberta de novos sentidos,
sensações e valores que outrora julgavamos perdidos por aí, pela organizada
rua da actual Londres ou na rigorosa e metódica Delft.

137
Vistas aéreas de Sarkhej Roza

138
O Plano

Com a divisão da área de trabalho, o sector a nós destinado, era deter-


minado por uma grande heterogeneidade e pelo facto de compreender em si
o futuro acesso ao monumento. Não só era uma zona de ligação e de remate,
como também relatava vários pólos de desenvolvimento e levantava questões
pertinentes acerca do modo, rígido ou orgânico, onde deveríamos intervir.
A ideia básica de um eixo que interligasse Sarkhej Roza, a nova malha que
“encaixaria” no existente, e consequentemente ultrapassasse a barreira do ca-
minho-de-ferro e ancorasse o novo desenvolvimento entre esta e a auto-estra-
da. Havia então uma clara intenção de unificar, clarificar e preparar o percurso
até ao êxtase final no cimo da colina.
A discussão assentou então na abordagem a este percurso. Seria ele uma
linha recta, inspirada no traço modernista e que de forma mais rígida se dese-
nha, prendendo-se a elementos soltos que rematam as várias cerceas e vazios,
ligando assim de forma directa e capaz o novo e o velho?
Ou era ele uma interpretação da simbologia do percurso na religião hin-
du, dos vários pontos de interesse e da linha que não é recta mas sim orgânica,
perfurando e abraçando o novo desenvolvimento em volta dos pontos de inte-
resse, de modo a criar uma comunhão entre o público e o privado, “o percurso
que cose”?
A norte, a escola privada e o seu muro criavam uma barreira e um gesto
que precisava de ser anulado, estancado esta nova forma de desenvolvimento.
Numa tipologia que conjuga o crescimento horizontal com o vertical, em fogos
que podem ir até aos dois pisos, cujo espaço público vai sendo apropriado para
originar novos comportamentos. A isto chamamos de cluster, de intensa essên-
cia comunitária, constituído por um conjunto de fogos que se relacionam entre
si, não sendo autónomos mas sim pertencendo a um núcleo interactivo.
A sul, uma vasta área agrícola apresentava-se como um espaço de pas-
sagem entre o velho e o novo, originando uma forte intenção de gradualmente

139
Esquemas de densidade das várias tipologias propostas em Sarkhej Roza

140
se aproximar do novo acesso através de três tipologias distintas. Na primeira,
que faz a frente de rua, o meu colega Jelmer pretendeu relacionar o espaço
comercial com o habitacional, através da arcada e de duas cotas que se vão
entrelaçando quer à cota baixa quer à cota da rua, obtendo sombra através
das árvores que são parte constituinte do desenho do espaço público. Numa
segunda camada, propus uma zona de crescimento e transição que pudesse
estabelecer desde logo uma intenção ainda que controlada, uma base para
a imprevisível ordem de todas as coisas. No limite do terreno e numa zona agrí-
cola, é o carácter comunitário e orgânico do crescimento horizontal o principal
motivo do desenho. A Clara, reinterpretou o cluster e seus moldes, tentando di-
namizar e criar uma tipologia em constante metamorfose, directamente rela-
cionada com o cultivo do terreno, o dos corpos de água e sua importância, e
acima de tudo, a conjugação entre o meio e as capacidades de socialização
que os pequenos espaços de tensão criam entre os vários habitantes.
A oeste, a intenção era de ultrapassar a barreira imposta pela linha férrea,
ligando e unificando, criando uma nova praça que serviria de ponto de chega-
da na qual o espaço minimal da densa malha desafoga e dá lugar a uma área
de convívio e trocas comerciais, fortemente relacionadas com um equipamen-
to que desde o início se adivinhava como sendo uma Estação de Comboios.
A este, um pequeno corpo de água apresentava-se como principal meio
de sustento do trabalho da cerâmica local, anexando a si um conjunto de ha-
bitações em lonas e plástico, temporárias, onde as comunidades migratórias
viviam durante o período de produção levada a cabo através da terra húmida
extraída do corpo de água. Aqui surge a intenção de não só recuperar a sua
produção como de lhe conferir condições, restabelecendo os limites e devol-
vendo a água ao vazio que se encontrava por preencher.
Há neste eixo por nós proposto, uma relação com o principal percurso
da velha malha de Ahmedabad que interliga o Forte de Bhadra, a mesquita
de Jama Masjid e a pol de Muhurat. Este núcleo duro, que interligava o poder
de decisão, o poder religioso e a área residencial, expandiu-se segundo dois
eixos e baseou-se, segundo Vivek Nanda, num Nandyavarta Mandala, rectan-

141
A Porosidade de Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação do arq. Neelkanth

Chhaya

O Desenvolvimento do centro histórico de Ahmedabad. Imagem retirada de apresenta-

ção do arq. Neelkanth Chhaya

O Eixo de Ahmedabad. Imagem retirada de apresentação do arq. Neelkanth Chhaya

142
gular relação entre quarteirões que se unifica através de dois eixos. O principal,
este-oeste, interliga o Bhadra Fort, Jama Masjid, Mausoléu do Rei, Mausoléu da
Rainha e de seguida a vasta área residencial composta de um sem número de
pols: o Pura. Esta densidade é consolidada através de uma permuta de escalas,
desde a habitação à comunidade, ao bairro, quarteirão e cidade. A relação
que se retira do eixo, meramente simbólica, não evoca directamente a hierar-
quia institucional atrás referida, nem lhe pretende conferir a mesma escala, é
sim, uma reflexão e uma referência sobre a qual nos debruçamos nas transições
e relações entre as várias texturas e escalas da habitação e espaço público.
O percurso estabelece então, nesta nova entrada para Sarkhej Roza, uma
relação entre o sector urbano e habitacional, os templos que se embebem na
malha, o corpo de água existente e agora renovado, a valorização da eco-
nomia local através do apoio à cerâmica e da criação de novos espaços de
trocas, e uma nova plataforma intermodal capaz de incutir novos fluxos a esta
área. Não é este gesto uma linha recta, mas antes uma linha que vai de en-
contro a situações específicas que se cruzam com as tipologias e volumetrias
propostas para o novo arruamento, à semelhança do que acontece na velha
Ahmedabad.

O Eixo de Sarkhej. Imagem do autor

143
144
O Tétris, Ahmedabad. Fotomontagem do autor
145
Esquissos base. Desenho do autor

Planta e corte da proposta

146
O Tétris do Privado

Com o passar do tempo, ganhei certeza da incerteza da nossa função,


do nosso trabalho, do alcance da nossa profissão. Até onde, até quando, por
que razão, com que intuito, deveríamos nós fazer de Deus, decidir pelos outros,
escolher o caminho. Até que ponto éramos nós necessários ou bem-vindos.
Decidi então deixar tudo em aberto, sem previsões de um futuro incons-
tante e imprevisível, procurei uma solução que conseguisse encarar esta nébula,
fruto de tudo aquilo que acima enumerei sobre o crescimento e sobre a regra.
Há uma passagem do Wild At Heart que me ajuda, em certa medida, a expli-
car este imprevisível estado de espírito da malha, da cidade, das pessoas e da
mudança.

“The way your head works is God’s own private mystery.”


Diálogo entre Sailor e Lula em Wild At Heart, David Lynch

O construído deveria servir a população e, apesar de desenhado e deci-


dido pelo sujeito que cria, conseguir obter uma determinada margem de mano-
bra, a flexibilidade que lhe permitisse uma evolução de mãos dadas com quem
o habita. O acto de remar contra a maré, os esforços e pesquisas efectuadas
pela Vastu Shilpa Foundation conotam a construção de elevados custos, assu-
mida pelo governo no boom entre 1950 e 1970, deixando rapidamente de ser
acessível aos mais pobres, como padronizada e cinzenta. Estas políticas de refor-
mulação de favelas e meios urbanos desfavorecidos com o objectivo de orde-
nar, legalizar e “catalogar”, apresentaram resultados extremamente negativos,
desprovidos de individualidade e liberdade, sem atenção a factores climáticos
e tratamento de espaços públicos.
Uma quebra com o tradicional.
Lembrei-me do projecto de Eduardo Souto de Moura para um edifício co-
mercial na Avenida da Boavista. Esta influência não se relaciona directamente
com a proposta em si nem com o seu propósito, apenas reinterpreta a “mesa” e

147
A Base. Desenho do autor

O Interior. Fotografia do autor

148
os objectos sobre ela pousados.
Surgiu então a ideia de uma Base que indicasse um caminho, que lan-
çasse uma regra e criasse um modelo simples de habitação. Este modelo era
composto por um pequeno espaço exterior, de introdução e relação com a rua
e que funcionaria como primeiro filtro para a esfera privada. Este ténue patamar
separa o interior e indica um limite na sua relação com a cota do arruamento.
Há nestes pequenos espaços determinadas funções que se relacionam sempre
com o espaço público, como por exemplo lavagem de roupa, confecção de
alimentos, resguardo para bicicletas ou mesmo uma cama extra que em noi-
tes quentes é colocada neste pequeno alpendre. As extensões posteriores na
fachada principal das habitações, são um acrescento comum e frequente, au-
mentando o espaço e a coesão e interacção sociais. A sombra por ela criada,
para além de tornar o espaço agradável, controla a temperatura da parede
exterior da habitação, reduzindo assim a superfície de contacto solar.
No seu interior, procurou-se um espaço contínuo, simples, polivalente e
capaz de responder ao maior número de situações sem que condicionasse a
sua utilização. Daí o espaço da cozinha ser a zona mais resguardada, embebi-
da na fachada de tardoz e ligada ao pátio. A intenção é a de criar dois pólos
exteriores, um ligado com o público e outro exclusivamente privado, e este últi-
mo adiciona o conforto do céu aberto e da ligação com o meio à natureza. A
árvore e a sua sombra.
Numa fase posterior, pode eventualmente sofrer modificações que o tor-
nem num novo compartimento ou numa outra área semi-coberta e ventilada.
Recordo-me de uma moradia que visitei na nova Ahmedabad, uma pequena
reabilitação, cuja cozinha se estendia para um minimal pátio, apenas composto
por uma mesa e uma cobertura vegetal que permitia a passagem de ar e con-
sequente ventilação. Era uma extensão agradável, um espaço que apelava à
contemplação do micro-cosmos pelo homem criado.
No centro um pátio interior debita luz no seu âmago, resolvendo também
questões que se relacionam com uma adequada ventilação transversal da ha-
bitação. Um espelho de água deveria surgir, recuperar o reflexo para o seu inte-

149
A Proposta. Maquete do autor

150
rior, transmitir calma e simultaneamente constituir um ponto de armazenamento
das águas pluviais. O seu encerramento propõe-se como ténue, sem quebrar a
relação com a água e seu simbolismo. Este pequeno vazio estabelece-se tam-
bém como ponto de diálogo com o crescimento da habitação, que, ao se de-
senvolver através da escada que compõe o volume dos lavabos, enunciará um
sentido de chowk, uma referência de espaço comum interior sobre o qual os
espaços de circulação superiores se debruçarão.
Este único volume das escadas constitui os lavabos. Este compartimento
é normalmente um espaço de dimensões mínimas, apresentando apenas um
ralo para escoamento de águas saponárias provenientes do banho, e um vaso
sanitário embutido no pavimento. A redução dos custos alia-se assim à falta de
espaço. Em várias conversas se falou na simples water tap e no buraco no chão,
simplicidade e acutilância.
Este modelo é uma interpretação da tipologia “Site and Services”, con-
ceito que traduz o planeamento através do loteamento no qual cada lote é
apenas constituído pelos serviços de saneamento e abastecimento de água
básicos.
O complexo de Aranya, projecto da Vastu Shilpa Foundation para Indore,
Índia, é um exemplo de sucesso. O planeamento é então um exercício de nega-
tivo-positivo na relação entre o espaço público e o vazio, na qual se projectam
as linhas principais e se calculam as relações entre os espaços exteriores, que
irão condicionar e contaminar o construído. A imagem da planície vazia, ape-
nas demarcada pelos passeios e estradas, polvilhada de pequenas “caixas”.

“O padrão e a distribuição dos espaços ao ar livre estão intimamente in-


terligados com a localização das várias infra-estruturas, serviços, equipamentos
e os arruamentos de modo a desenvolver uma estrutura para o aldeamento”
ARANYA An Aproach to Settlement Design, Vastu Shilpa Foundation

O construído, por sua vez, será o produto da evolução individual tal qual
as principais premissas da cidade não planeada. Há uma intrínseca relação en-

151
A Adaptação. Fotomontagem do autor

152
tre este plano e tudo o que compõe a malha e a forma da urbe indiana, retirada
de um intenso estudo e conhecimento da realidade e contexto que o envolve.
O assenta na “mesa”, como um tétris, com a sobreposição de variadas
volumetrias sobre o terraço da cobertura. O terraço é também ele, lugar de re-
pouso, contemplação e espaço de eleição.

“To the poor in their cramped dwellings, the roof terrace and the courtyard
represent na addictional room”
The Blessings of the Sky, Charles Correa

Num rendilhado de altimetrias e feitios variáveis, cores e remates diversos,


em materiais independentes do unitário betão da sua base, num apelo à imagi-
nação e criatividade. Não são já estes os principais factores de desenvolvimen-
to? Foram estas as premissas que vi multiplicar a massa construída, este jeito es-
pontâneo de alterar e adicionar novas peças à habitação num jogo que pode
não ter fim, tendo em conta a passagem do lugar onde se vive de geração em
geração, no respeito para com as origens e tradição familiar.
É esta a liberdade que se pretende conferir ao crescimento espontâneo
ainda que baseado na escolha do arquitecto, sobre o que o desenho controla
e produz, sobre o que se enumera como princípio.

153
154
A Estação, Ahmedabad. Fotomontagem do autor
155
As Mercadorias, Ahmedabad. Fotografia do autor

156
A Estação

“É na gare de caminho-de-ferro, àgora da povoação, que empola e


amaina diariamente o fervilhar contínuo do formigueiro. O comboio, incansável
lançadeira, eterna vítima de horários, sobe e desce a fumegar, num vaivém sem
descanso. E leva e traz anseios, aproxima e afasta esperanças, carrega e des-
carrega desilusões.”
Vindima, Miguel Torga

Com a liberalização da economia no princípio dos anos noventa, uma


forte mudança ocorre na Índia. Não só significou a entrada massiva da Arqui-
tectura do espectáculo, da sedução em larga escala e descontrolada, como
marcou um fase de enorme crescimento demográfico, urbano e económico
que não foi acompanhado por uma ampla modernização das vias e meios de
transporte e respectivo ajuste infra-estrutural.

“A major event in Indian history took place in 1991 when the government
abandoned the socialist Project in favour of a liberalized economy, integrating
the Indian economy with global realities. This “liberalization” had a huge impact
upon urban Indian Architecture. Corporate Architecture connected with global
finance became a significance chunk of architectural activity with its glass and
aluminum façades and universalized expressions.”
Modern Traditions – Contemporary Architecture in India, Klaus-Peter Gast

Se no meio urbano os fluxos são principal e maioritariamente pedonais, uti-


lizando a bicicleta ou transportes públicos, conjugando um alargado conjunto
de soluções que também se cruzam e interligam através de meios motorizados
de duas rodas ou triciclos, é da cidade para o resto da nação que se traduz a
grande e abismal diferença. Neste caso, são as precárias estradas altamente
frequentadas e com condições péssimas de pavimento que fazem mover o país.
Assistimos até, do rural para o urbano, a uma azáfama incrível, um contínuo êxo-

157
Organigrama entre a Estação e as várias partes que compõem a envolvente

158
do para a cidade em busca de novas oportunidades em típicos paralelepípe-
dos de ferro e chapa, criativamente decorados, manifestando a sua presença
através dos mais variados sons de buzina, matizando as estradas num vai-e-vem
vertiginoso e non-stop, amontoando-se nas extremidades das estreitas estradas,
em áreas de serviço, autênticos descampados apenas com uma construção
central na qual se podia aceder aos escuros lavabos e a uma refeição que em
último caso teria de servir de ceia e contento.
Mas se a rede de estradas é impressionante e caótica, é no caminho-de-
-ferro que a Índia encontra a sua maior rede de transportes.
Uma estação de comboio poderá, à primeira vista, não passar de mais
do que uma simples plataforma intermodal, sistemática e funcional, que serve
como ponto de partida e chegada, como elo de ligação entre a cidade e o
país, que no seu sentido mais básico estabelece um conjunto de linhas com o
intuito de unir vários lugares. Um desenho pautado por pontos numerados num
estilo infantil de quem desenha nos cadernos de folha cinza reciclada. Frequen-
temente, ao se unir os pontos de forma abstracta, criam-se barreiras na cidade,
linhas dificilmente transponíveis e que causam problemas, quebram rotinas, blo-
queiam fluxos para que outros nasçam. No caso de Sarkhej Roza, são duas as
linhas intransponíveis, consequências da moderna mobilidade, a auto-estrada e
a linha de caminho-de-ferro que se apertam, estabelecendo entre si um espaço
extenso e fino. Há então a necessidade de desenvolver uma relação, de trans-
por esse limite recente com a criação de um equipamento de transição, uma
nova ponte que interligasse e proporcionasse uma nova comunicação com o
Monumento e seu acesso.
Como a linha já lá estava, surge a estação.
Na verdade, numa cidade indiana, a estação de comboios é mais que
um simples equipamento, sendo ao mesmo tempo uma praça, uma superfície
comercial e um abrigo onde todas as classes sociais se encontram devido à mul-
tiplicidade de ligações conferidas pelo comboio e pelo seu uso generalizado e
transversal a todo o país.

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PRODUCED BY AN AUTODESK EDUCATIONAL PRODUCT

PRODUCED BY AN AUTODESK EDUCATIONAL PRODUCT

Esquema de recolha de águas da monção e do espaço público. Imagens do autor

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Produz emprego e é fonte de rendimento e de diferentes escalas de tro-
cas económicas. O já referido carácter das economias paralelas, da sua grande
versatilidade e capacidade de intervenção e interpretação do que é público,
no urbano e na sociedade, com um forte carisma tradicional e local, empreen-
dedor, onde o artesanal se sobrepõe ao padronizado e industrializado, é tam-
bém aqui na estação que tudo se desenvolve. As mais pequenas e comuns ban-
cas vendem revistas, tabaco de mascar, água fresca ou refrigerantes. Alguns
aventuram-se na selva de pessoas, transportando frigideiras e um sem número
de dosas, samosas e pav bhaji que vão sendo produzidos à medida que são
consumidos. As bases deste fenómeno prendem-se na relação entre meio de
trabalho e habitação, fortemente condicionados pela mobilidade, escassa e
sobrelotada, que leva a que se conceba novos focos de subsistência fora dos
centros urbanos. A tal economia sombra em paralelo com a convencional que
se aproveita do espaço, não só físico mas também imaginário, o que sobra de
todo o resto, a chamada “brecha” na qual todos tentam entrar.

“At the community level, the need of daily necessities and goods encou-
rages commercial developments to take place in any residential area. This is also
encouraged by the necessity to generate work or income means in the nearest
possible location”
Appropriating one´s space: Process and result in the Indian context, Sunita Kalsariya

A estação é um ponto de encontro, de entrada e saída da metrópole, e


como tal, a ligação aos outros meios de transporte torna-se necessária. Além
dos autocarros, camionetas de longo percurso ou táxis, os auto-rickshaws são
a mancha amarela que interliga a estação à cidade. Será também uma das
bases da sociedade, um reflexo fiel de quão flexível pode ser a metrópole na
sua procura por soluções que relacionem vários factores numa única resposta. E
normalmente rápida. São fontes de rendimento móveis que se transformam em
abrigo durante a noite onde muitos, a grande maioria sem carta de condução,
vivem sobre o seu pequeno tecto de lona, sustentando-se apenas com as taxas

161
O Caderno Vermelho. Imagem do autor

162
camarárias de funcionamento e quilometragem. Também eles se concentram
nas novas e velhas centralidades da cidade. Um conjunto de pontos amarelos
a furar pelo tráfego com o único intuito de juntar umas rupias.
Durante os vastos períodos de viagem, as estações adivinharam-se as-
sim, locais de uma grande sobreposição de camadas, texturas, cores e cheiros,
num impressionante despoletar dos sentidos de quem as percorre e não lhes
pertence, condicionando no seu interior os transeuntes que esperavam pela
sua partida deitados sobre a pequena manta, num retalho de muitas outras do
lobby principal, entre vacas e cães, mercadorias e malas, das quais ainda hoje
me recordo e enquadram a minha imagem mental da estação de Varanasi.
A linha propriamente dita, era um local demasiado sujo, equiparando-se a um
esgoto a céu aberto, onde míseros rapazes e raparigas o percorriam em busca
de algum alimento perdido junto dos fugidios ratos.
Uma Estação. Uma Estação que é ponte, é praça, é abrigo, é corpo de
água, é sombra e é mercado, é residência e é o sentido da mobilidade, a via-
gem.
Um volume esbelto, capaz de se impor sem agressão, de criar uma “pare-
de” em relação à auto-estrada, deixando-se simultaneamente penetrar, trans-
parecendo calma e serenidade ao mesmo tempo que quebra e ultrapassa a
contínua azáfama da linha. Um miradouro sobre o monumento e novo arrua-
mento, um espaço aprazível para que se contemple a cidade, suas histórias e
intrigas.
É um gesto entre linhas transversais, entre uma outra linha que termina na
praça, orgânica, a curva que abraça o espaço público, que confronta com a
rigidez da massa que envolve. É também esta rampa motivo do percurso que
não é directo, que celebra o ciclo da vida através da ascensão, e que retoma
o ritmo da água na sua estrutura, concentrando-a numa “bolha” que serve a
povoação e equilibra o espaço a si adjacente. Esse espelho de água reforça o
valor social e de contacto entre gentes, podendo ser um local de banhos, de
limpeza e de trabalho também.
A cobertura do edifício é um percurso que interliga o jardim e espaço

163
Os Esquissos. Desenhos do autor

164
verde com a água que cai directamente na tensão com o vazio, originando
um espaço interior que reflecte a luz e transmite tranquilidade ao seu interior.
Este ponto produz uma ligação com o corpo de água exterior, armazenando-
-se água na cave do edifício de modo a conseguir reter o máximo possível para
o período seco, e a temperatura da água arrefecer o piso térreo, ajudando a
controlar a climatização do espaço interior sem recurso a meios mecânicos.
No seu interior, a bilheteira é o volume orgânico que compõe o espaço de
entrada, o grande lobby de pé direito total, mantendo-se uma clareza espacial
da fachada de tardoz que se guia pela rampa, sendo também ela o brise-soleil
e coberto que ampara da chuva e do sol. Um volume escuro se destaca desta
capa uniforme, acolhendo os serviços da estação, lavabos e nos pisos superiores
um módulo de habitação minimal.
Este módulo pretende dar resposta aos movimentos sazonais da produ-
ção de cerâmica, concentrando os seus esforços no novo ponto que colecta
as águas pluviais, trazendo novas dinâmicas para a esfera pública. Cada fogo
possui três níveis distintos, directamente relacionados com o grau de iluminação
e usos, atingindo a privacidade necessária através da rampa exterior. Um pe-
queno compartimento com um sanitário, lavatório e chuveiro, destaca-se do
espaço comum e cozinha, acedendo a um segundo nível já com um grau de
iluminação inferior de repouso e salvaguardado, e num terceiro, o espaço de
meditação e retiro na penumbra, com luz indirecta proveniente do corredor ex-
terior e da franca abertura vertical que compõe a fachada principal.
Pretendi ver nesta escultura que remata a chegada à estação, a interpre-
tação pragmática do invisível, de todo um país que se vai articulando, multipli-
cando, fornecendo respostas às mais complicadas e exigentes questões. É esta
a minha resposta, a nossa resposta.
A discussão com o Charles foi uma constante. Não sobre o projecto
em si, ambos estávamos de acordo com a implantação, com a relação entre a
área de intervenção de ambos e interligação entre as mesmas. A discussão fora
quase sempre acerca da vida, da oportunidade, da celebração de tão vasta
aprendizagem e no alegre fado que nos bafejou. Porque quanto à atitude, na

165
A Maquete 1/500

166
cooperação e desenho, ambos concordamos que deveríamos deixar margem
de manobra, lugar ao improviso e interpretação. Um espelho do que acontecia
à nossa volta.
A planta livre, um volume de serviços no seu interior, a fachada cega que
apenas marca a entrada e retira relação com o interior. O circulo da bilheteira
que se deixa envolver pelos fluxos das gentes e dos pertences. A intensa escuri-
dão da entrada lateral, o seu alto pé-direito e monumentalidade que se inspirou
nas muitas obras modernas que vislumbramos em Ahmedabad e Chandigarh, o
lugar do sagrado, o seu balaço constante entre o caos e o equilíbrio da bonan-
ça.
Mais importante do que perceber de que forma seria construída, ou se
a discussão incidia sobre a materialidade, agora afastado e ao repensar no
projecto, acredito que o exercício fosse sempre este, o de conseguir sintetizar,
através de toda uma viagem, as pequenas lições que juntamente com a nossa
Escola do Porto na bagagem, se aliariam ao desenho e compreensão do que
era a cidade, o bairro, a comunidade, a praça e a mutação d e tudo isto.
Talvez passeando todas as imagens, esta seria uma soma de todas as pre-
missas, sonhos, noites, conversas, discussões, diálogos e monólogos, ardor no es-
tômago e cansaço.

Nota:

As primeiras ideias, esquissos, discussões e estudo da Estação levados a cabo com o mais que

amigo e companheiro de viagem Charles Rocha.

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168
O Invisível, Varanasi. Fotografia do autor
169
A Árvore, Varanasi. Fotografia do autor

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O Invisível

O ar era pesado, o ruído era intenso, o motor, o visual, o olfacto encontra-


va-se em estado de constante alerta. Uma forte sensação de peso sobre nós se
abatia, algo que transcendia os limites do físico, do palpável, de todas as coisas
que podem ser observadas a olho nu.
Por entre um complexo sistema de pequenas vias, algumas com pouco
mais de um metro de largura, sucediam-se espaços, cores, cabos de electrici-
dade, fiéis orando, cães, vacas moribundas ou apenas moribundos. O sol era fil-
trado por longos panos, ou pelas esguias fachadas amplamente inclinadas pelo
tempo. Era um verdadeiro negativo/ positivo, uma massa que parecera escava-
da, uma cidade que multiplicava os conceitos de urbanismo atrás enumerados,
onde apesar de toda a desordem e aparente emaranhado qual fio de novelo
desenrolado, se conseguia percorrer sempre atentos ao mágico e extraordiná-
rio.
A intensidade aqui descrita, refere-se ao lado invisível da cidade, a mística
profunda do lugar, a compreensão de que há coisas que não podem ser trans-
mitidas ou perceptíveis sem que sejam abraçadas e respeitadas. Há o Shinya e
o Bindu. O primeiro está para o vazio como o segundo está para a origem de
toda a energia, uma analogia que também servirá para o que irei descrever de
seguida, da planície ao caos.
Creio que ali caminhei sobre um ponto delicado de equilíbrio entre am-
bos, um equilíbrio que tem sido mantido por uma eternidade, pela multiplicação
do tempo, pela fé e pela ordem natural das coisas. Varanasi, é o sagrado. O
Ganges é a fonte de vida, o banho da redenção, da purificação, do renascer
diário e mecânico, enquanto seres vivos. É também onde o último banho é to-
mado nos burning ghats, brisas de cremação onde o fogo divino arde sem parar
há séculos. É uma zona de interesses, de grande especulação, onde se pagam
as três horas desta última e derradeira passagem do terreno para o celestial. A
última passagem pelo Ganges antes da viagem final ao paraíso. Há partes do
corpo que não ardem durante as três horas “reservadas” para cada cremação,

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O Ziguezague, Varanasi. Fotografia do autor

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sendo depositadas no rio junto dos que se banham, ou dos que se lavam ou
simplesmente escovam os dentes. Há este limite sempre ultrapassado de forma
quotidiana, paulatinamente, sem que nada de anormal se passasse. Um conví-
vio entre os mortos e os vivos, sendo o corpo uma mera representação da nossa
alma, da nossa passagem efémera e intermitente, no tempo e na vida, em vá-
rios ciclos. Há uma predominância da alma sobre o corpo, do simbólico sobre o
material, e isso reflecte-se directamente na Arquitectura pela sua espontaneida-
de, num acto meramente prático de modo a resolver um problema de abrigo,
de espaço, de economia.
O edificado abraça a natureza, parece tudo demasiado específico, uma
franca pertença à topografia do terreno sagrado que se pisa, e os espaços su-
cedem-se como num thriller, o psicológico alerta-nos para o desconhecido. Esse
equilíbrio, a balança entre as várias partes é a imagem da grande árvore entre
a massa edificada, o adorno do arruamento, a sua razão de ser nunca ultrapas-
sada. O seu corte por razões de segurança, ou porque retira a vista, ou simples-
mente por estar no meio do caminho, não é razão suficiente para retirar a vida.
Havia também em Sangath uma cicatriz da árvore que fora retirada para que
o percurso de entrada se concretizasse, um memorial, um forte simbolismo intrín-
seco ao modo de construir, de ditar o futuro da terra onde se materializa a obra
de arquitectura. Há simplesmente respeito.
Na Índia, esse lado invisível é parte integrante da Cidade, do seu estilo de
vida, da sua arte e do seu modo de estar. Poderia ser o único mediador entre
o caos e a ordem, a única regra, a metafísica. O respeito pelo divino é a maior
plataforma de entendimento, o que une todo um mundo antagónico e hete-
rogéneo. Ao percorre-la, os sinais são evidentes e parte constituinte do mundo
agora visível, seja em templos, imagens sagradas, esculturas, símbolos cravados
na pedra, rangolis em degraus, yantras, mesmo que estejamos perante um dos
muitos novos centros comerciais que nascem como símbolo da evolução e se-
guimento dos modelos europeus. São estes elementos, segundo Charles Correa,
as paixões invisíveis que nos guiam, os elementos fundamentais da existência
e da crença no divino e na sua relação com o real, e na Cidade indiana essa

173
O Infinito, Varanasi. Fotografia do autor

174
busca ganha uma nova expressão e dimensão.
É difícil de descrever, o controlo total do corpo por baixo desta atmosfe-
ra. Há gentes que se deslocam a Banaras para morrer, para terminar o ciclo da
vida, atingir a salvação, a paz. Encontrei casas pátio frequentadas por quem se
deixa vencer, numa derrota com sabor a vitória, ornamentada por um último
banho no Ganges.
A cidade precipita-se para o rio num astuto e sistemático sistema de plata-
formas, os Ghats, onde se sucedem todas as actividades religiosas e quotidianas,
desde os mercados aos templos, ao banhos e até escolas de natação. A cidade
é aliás, o rio. Tudo o resto de si é desprovido de sentido ou interesse, é a mera ex-
pansão pela expansão, sendo o seu âmago prolongado pelo leito do Ganges,
nas suas plataformas e finos vasos capilares que coordenam a sua densa malha.
Do outro lado, numa clara contradição entre a densidade e a falta dela,
o deserto, num infinito plano que encontra uma linha sinuosa e caótica. Numa
manhã de neblina, o vasto espelho de água confunde-se com o horizonte, há
um vazio que nos envolve, uma cortina cinza esbranquiçada que nos vai reve-
lando aqui e ali vultos, disformes silhuetas de barcos ou objectos flutuantes, que
à semelhança do que se passa na densa malha urbana, vão-se adivinhando
de modo faseado. Interessante comparar como o vazio do nada consegue ter
tanto em comum com o seu oposto cósmico de acontecimentos existentes na
rua palpável e material, o construído que se opõe ao vazio.

“Dentro de um ou dois segundos encontrei-me de novo no meio da massa


branca, opaca e silenciosa. Fiquei perfeitamente imóvel, a contar as batidas do
meu coração, e penso que estive sem respirar até alcançar a centena. Então
desisti.(…)”
As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain

As embarcações preenchem o rio e ao longo do dia vão dinamizando


as margens, aglomerando-se nos locais religiosos como verdadeiras bancadas
flutuantes, onde os nativos se congestionam e oram. Por meia dúzia de rupees

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A Hierarquia, Varanasi. Fotografia do autor

176
a viagem faz-se, acompanhados por hábeis nadadores ou crianças curiosas, e
vai-se percorrendo a margem, observando o quotidiano, a vida que por linhas
tortas vai passando, e com alguma estupefacção observamos as mil e uma coi-
sas que julgáramos impossíveis e se vão sucedendo com a maior naturalidade.

“What would happen to Banaras if the Ganges river was developed to look
like the Seine”
Blessings of the skies, Charles Correa

É neste ponto que me debruço sobre a crença, sobre a dedicação, sobre


tudo aquilo que torna um lugar especial, mágico, diferente, incomparável e irre-
petível.
As várias esferas, do público, privado e do sagrado, ao longo do tempo
expostas pela evolução, pelos descobrimentos, pelo momento de colonização
e invasão de novos costumes ocidentais, pela introdução da razão e evolução
técnica, sofreram mutações profundas, principalmente a nível do público, man-
tendo o privado e o sagrado fiéis aos seus princípios. Esta será porventura a base
de uma sociedade sólida e forte, como no Japão e no seu diálogo intenso entre
a evolução tecnológica de ponta e a sua mais tradicional face.

“Ao contemplar estas paisagens essenciais, Kublai reflectia sobre a ordem


invisível que governa as cidades, sobre as regras a que corresponde o seu surgir
e tomar forma e prosperar e adaptar-se às estações e murchar e arruinar-se.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

Om Namo Shivaya

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O Labirinto, Mumbai. Fotografia do autor
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A Corporação, Mumbai. Fotografia do autor

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O Labirinto

“1 estrutura composta por vários caminhos interligados de tal forma que


se torna difícil encontrar a única saída; dédalo; 2 edifício cujas divisões são tão
confusamente dispostas que tornam difícil a quem esteja dentro dele encontrar
a saída; 3 [fig] confusão; enredo; (...)”
Dicionário da Língua Portuguesa 2010, Porto Editora

Primeiro aprendi a sair do comboio em andamento, a jogar com os vultos


que se amontoavam à minha volta, o sururu que me acolhia naquele admirável
mundo novo. Se me seduzia pela sua complexidade, pela sua infindável procura
de soluções, pelo seu vasto domínio de todas as artes, pela sua heterogeneida-
de, pela sua vontade de crescer e de se expandir, ultrapassando-se, ultrapas-
sando-nos, superando-se, por outro lado, assustava-me o sacrifício humano, a
descrença no mundo moderno, na evolução, na industrialização e a sua desi-
gualdade.
Mumbai é tudo isto, é a máquina actual que renega o tradicional, o recan-
to gigantesco do mundo, o baralho de cartas pronto a partir e a dar. Ninguém
é de Mumbai, ninguém fica tempo demasiado para contar a história, todos vêm
e todos vão, há um prazo de validade inerente à persistência naquele lugar.
O seu centro é europeu: passeiam-se mercedes e bebe-se cerveja, há ba-
res, discotecas e muita vida nocturna, há tudo no seu coração vazio de ideais e
fraco em reconhecer o seu passado.
Há uma antítese de toda uma India de descobertas e crenças. Poderia ser
Piccadilly Circus, poderia ter um enorme “FOR SALE” na fachada colonial que o
adorna. Na sua infindável extensão, que se prolonga durante uns vastos quaren-
ta quilómetros, há um vazio que possui tudo. Um vazio nos bolsos, uma quotidia-
na procura pela sobrevivência, um amontoar de vontades, milhões delas, que
se sobrepõem ao cosmopolita ocidente que tomou conta da central Wellington
Circus. Existe esta relação do vazio com o todo, com o cheio, porque há falta
de espaço. Então qual é este vazio de que falo, que cito, no qual me debrucei

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O Retrovisor, Mumbai. Fotografia do autor

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constantemente enquanto percorri Bombaim?

“Yet how long will this last? How long before the neglect, the piles of debris,
the stinking garbage take their toll and the élan, the enthusiasm, of the citizens
slowly disintegrates? Then, as in the case of Calcutta, a kind of apathy begins to
set in, a stultifying indifference...”
Great City, Terrible Place…, Charles Correa

E, num dos muitos universos paralelos, há um sítio inacreditável, um lugar


único, que nos recorda a nossa sorte, nos faz repensar o presente, nos acorda
para a realidade que não é nossa mas que poderia ser, porque até para nas-
cer é preciso ter sorte. Seu nome é Dharavi, e por si só escrever-se-iam inúmeras
teses, doutoramentos, romances, ou se rodavam milhares de “Slumdog Millionai-
res”.
A sua indústria de reciclagem de plástico recupera todo o desperdício do
nosso mundo, toda a mão-de-obra que ninguém quer ter, remunerada a troca
de míseras rupias, levada a cabo em meros cubículos, espaços que são oficina,
lugar de refeição e dormitório. Geram milhares de milhões de dólares por ano
dos quais um ínfimo passa para quem trabalha seis dias e meio por semana, ca-
torze horas por dia, sem luz natural ou o mínimo de privacidade. A zona industrial
era constituída por arruamentos estreitos, com os esgotos a céu aberto, ao seu
redor edificadas por amontoados de papelão ou chapa, aqui e ali pontuados
por construções em tijolo. Há uma aparente normalidade, um ruído intenso e
cheiro a trabalho. Há um sem fim de percursos, uma frequente desorientação.
É uma das muitas artérias que alimenta a cidade, que faz a máquina funcionar,
a área técnica que se tenta esconder de um edifício vasto e sedento de produ-
ção.
Mas quando pensávamos que o fundo era este, havia outro túnel para
romper, outro caminho a traçar, outras barreiras a transpor. Dharavi é uma “East
Hastings” tocada a sessenta bpm´s, é e será o símbolo da nossa desgraça, o
início do fim. É o limite cada dia ultrapassado, a fasquia demasiado baixa sobre

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O Bon Vivant, Mumbai. Fotografia do autor

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o olhar desgastado da íris baça que vive para contar o dia seguinte, nem que
este signifique desbloquear o nível abaixo. O livro de Pedro Juan Gutierrez, escri-
tor cubano que se deparou com a pronunciada decadência de Cuba nos seus
anos noventa, Trilogia suja de Havana, retrata o seu quotidiano e este constante
reformular do básico, da necessidade adiada, da descrença no dia-a-dia e no
que poderia ser sempre pior. O racional ultrapassado, a necessidade recalcula-
da e o futuro incerto.
Penetramos na área residencial e na escuridão anunciada uma fresta de
luz encadeou no corpo desgastado sobre a água e o sabão de um banho to-
mado numa larga bacia azul, sem constrangimento, sob o nosso olhar atento.
À direita, o enorme corredor. Uns curtos sessenta centímetros de largura, uns
baixos metro e oitenta sob a cablagem eléctrica, sobre as lajetas improvisa-
das por cima do esgoto. Neste corredor, com uns cem metros de comprimento,
lembrei-me do desafogo do corredor da minha Faculdade, da sua extensão e
aceleração de perspectiva, no calor rítmico dos seus cacifos. Lá em cima, o céu
desenhava uma escassa tripa rabiscada de fios e ritmada pelos remates ondu-
lados da chapa de zinco exposta ao sol. A diferença de temperatura era abis-
mal, mas o sentimento de claustrofobia imperava, o ar era irrespirável, o cheiro
intenso, a ventilação inexistente. As portas iam introduzindo os sinais privados de
interiores expostos a uma rua que era corredor, seis metros quadrados que eram
sala, cozinha e quarto que, com sorte, se ligavam verticalmente a outro espaço
de dormir. Depois de algum tempo, difícil recordar com precisão se segundos ou
vários minutos, viramos à esquerda para o pátio comum, vala de despejo dos
dejectos da comunidade, dos restos quotidianos, do desperdício humano.
Cada slumdog ou slumdollar declarava uma morada, um número na sua
porta, uma estrutura sanitária comunitária e uma lixeira pública, que as entida-
des municipais se comprometiam a esvaziar uma vez por mês, para novamen-
te se preencher e se povoar das necessidades básicas de quem ali habita. A
questão posta pelo nosso guia improvisado, era que entre irmos aos minúsculos
e sombrios Wcs comunitários e simplesmente subir o morro de lixo e dejectos, a
segunda hipótese era ventilada e ao ar livre. AC toilet.

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O Caos, Mumbai. Fotografia do autor

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Tão simples como somar dois mais dois.
Há uma passagem de Charles Correa no seu ensaio Great city… Terrible
places onde é descrita a cidade de Mumbai como o exemplo de uma rã e uma
panela com água a ferver. Se a atirarmos para dentro da panela com água a
ferver, o seu reflexo será o de saltar para o lado de fora, seguindo o instinto de
sobrevivência. Mas se colocarmos a mesma rã, numa panela com água morna
e gradualmente formos aumentando a temperatura da água, a rã irá relaxar,
encarar a situação e deixar-se-á ficar a arder em fogo lento, até que o relaxa-
mento dite o seu afastamento físico e mental, acabando por sucumbir à tem-
peratura da água. Serão estas as nossas cidades que gradualmente nos conso-
mem, de um modo ou de outro, lentamente levando-nos ao ocupado e muitas
vezes monótono abandono dos nossos sonhos e ambições, facilmente trocados
por outros interesses comuns e generalizados, acabando por nos aniquilar gra-
dualmente tal e qual a rã no seu relaxado banho de imersão?

Godspeed You Black Emperor! – Static

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A Dualidade, Mumbai. Fotografia do autor

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“As cidades subtis. 4.
Se te descrevo Olívia, cidade rica de produtos e de lucros, para significar
a sua prosperidade não tenho outro meio que não seja falar de palácios de fili-
grana com coxins de franjas nos parapeitos das janelas geminadas; para lá das
grades de um pátio uma girândola de repuxos rega um prado onde um pavão
branco abre em leque a sua cauda. Mas deste discurso tu compreendes logo
que Olívia está envolvida numa nuvem de fuligem e gordura que se pega às
paredes das casas; que no tropel das ruas os reboques em manobra esmagam
os peões contra as paredes. Se devo contar-te da laboriosidade dos habitantes,
falo das oficinas dos arreeiros odorosas de couro, das mulheres que tagarelam
entrançando tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as
pás dos moinhos: mas a imagem que estas palavras evocam na tua consciên-
cia iluminada é o gesto que acompanha o mandril contra os dentes da fresa
repetido por milhares de mãos milhares de vezes ao ritmo fixado pelos turnos
das equipas de trabalho. Se devo explicar-te de que maneira o espírito de Olívia
tem a tendência para uma vida livre e uma civilização requintada, falar-te-ei
de damas que navegam cantando de noite em canoas iluminadas por entre
as margens de um verde estuário; mas é só para te recordar que nos subúrbios
onde desembarcam todas as noites homens e mulheres como filas de sonâmbu-
los, há sempre quem no meio do escuro desate a rir, quem dê o sinal de partida
às brincadeiras e aos sarcasmos.
Isto talvez tu não saibas: que para falar de Olívia não poderia fazer outro
discurso. Se houvesse uma Olívia realmente de janelas e pavões, de arreeiros e
tecelões de tapetes e canoas e estuários, seria um miserável buraco negro de
moscas, e para o descrever deveria recorrer às metáforas da fuligem, do chiar
das rodas, dos gestos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso,
está nas coisas.”
As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

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A Catedral, Léon. Desenho do autor

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O Caderno Preto

Há vícios que se vão acumulando, uns mais intensos, outros mais fugazes,
outros que duram uma vida, alguns que afinal não passam de momentâneas
persistências, poucos aqueles que se tornam intrínsecos a nós.
O desenho, entre o primeiro que me lembro do Fred Flinstone a cortar a rel-
va com um dinossauro, até aos que entre pequenos pedaços de papeis, folhas
de segundas vias e cantos de cadernos de linhas, devaneios que apenas ocu-
pavam a mente nesse curto espaço de tempo e pequenos lugares isolados em
folhas e guardanapos e bilhetes de comboio, tornou-se um vício, do riscar por
riscar. Eram uma instantânea ocupação da necessidade de fazer algo mesmo
sentado, enquanto palavras entravam e saíam com a mesma facilidade com
que as linhas corriam a folha.
Com as aulas de desenho, descobri todas as regras que raramente tive
paciência de seguir, fosse o ponto central, fosse o enquadramento, fosse a li-
nha de horizonte. Talvez na minha ignorância, e sem que me aperceba, estas
referências surjam camufladas, nos confins perdidos do meu subconsciente. O
nervosismo e a hiperactividade, a constante motivação para ver acontecer,
retiram-me a calma e o tempo, tentando alcançar uma imagem mais ou me-
nos torta do que vejo e sinto, num instante curto e incisivo. Daí os desenhos não
terem um fim, começarem onde bem começam, e expandirem-se até os limites
da folha, numa perspectiva que se prolonga com o virar da cabeça, deambu-
lando com o olhar sobre aquilo que pretendo representar. As A4 facilmente se
transformaram em A3…
O repto lançado no quarto ano, na cadeira de História da Arquitectura
Portuguesa, do registo no caderno das viagens pelo Portugal frequentemente
perdido, marcou-me pelo prazer despoletado que até então desconhecia, de
conhecer os lugares, os edifícios, as ruas e vielas, através da contemplação do
desenho.
Quando parti para a Índia, achei interessante dar continuidade a este
processo. Um caderno de capa dura, preto, com ar resistente, passou a ter lugar

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O Templo, Ahmedabad. Desenho do autor

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na minha mochila de quarenta litros. A espinha dorsal da viagem.
De desenhos mais contidos e retraídos, senti a evolução à sombra ou ao
sol, ou salpicado por tímidas chuvas, nos traços que me ajudavam a memorizar,
a gravar e a medir, num formato que ia bem além do ultra-rápido clicar de má-
quina fotográfica. E assim lá fui eu, obrigado a paragens de quarenta minutos,
trinta minutos, que progressivamente foram sendo reduzidas pelo à vontade e
comunhão entre mim e o caderno preto. Houve quem por mim esperasse e hou-
ve quem não quisesse esperar.
No final, passados uns meses, abri de novo esse caderno, raspado, roça-
do, roto nos cantos, com fita-cola a abraçar a lombada, e voltei a viajar no
tempo. De novo me sentei no passeio do primeiro desenho de Delhi (fig.1) entre
vendedores de bigodes falsos, flores e paan, ou rodeado de crianças que ob-
servavam atentamente e apontavam para o Humayun´s Tomb (fig2). Comprimi
de novo o peito, na imensidão da razão do Tribunal Supremo (fig.3), nas tímidas
chuvas que pontilharam a Assembleia e o Secretariado (fig.4), no rápido esquis-
so do Capitólio (fig.6) ou na suave linha da Escola de Belas Artes (fig.5). A paz
vermelha e azul de Fatepur Sikri (fig.7) chocou com o caos de Agra (fig.8) e na
sua alta muralha, divisão eterna entre duas realidades. Ahmedabad tomou de
assalto o meu olfacto na árvore sobre a qual me debrucei para desenhar o Tem-
plo do Sol (fig.11), na infindável escadaria do Stepwell (fig.9), na penumbra do
Museu de Ahmedabad (fig.10), ao lado da máquina de tear de Gandhi (fig.12),
no Oásis de Sangath (fig.14) ou num continuado e demorado adeus, deslizando
sobre a rampa de Le Corbusier (fig.15). Também James Bond me saudou no lago
de Udaipur (fig.13).
E nem nos últimos fôlegos de Kathmandu, sobre o templo (fig.16), na pe-
dra preta gasta, a ouvir cantigas de saudade aniquilado pela invejável alma
de Durbar Square (fig.17), me senti cansado de recordar, de voltar a ver, medir,
interpretar, nos registos mais fluidos e emotivos que no caderno constam…
Achei interessante resgatá-los como contadores de estórias que possuem
o condão de reflectir não só o olhar como também o estado de espírito que os
envolveu.

193
Esquissos de Viagem, caderno 216, Índia, Álvaro Siza

194
“A minha arte de pintar foi mais fecundada pelas ideias de Delacroix...era
um pintor de grande categoria, que tinha o Sol na cabeça e a Tempestade no
coração “.
Vincent Van Gogh

"Nenhum desenho me dá tanto prazer como estes: desenhos de viagem.


Viajar é como prova de fogo, individual ou colectivamente.
Cada um de nós esquece à partida um saco cheio de preocupações,
aborrecimentos, stress, tédio, preconceitos.
Simultaneamente perdemos um mundo de pequenas comodidades e os
encantos perversos de rotina.
Viajantes íntimos ou desconhecidos dividem-se em dois tipos: admiráveis
e insuportáveis.
Um bom amigo sofre verdadeiramente porque o Mundo é grande. Jamais
poderá permitir-se – diz – repetir uma visita; abala nervoso, crispado, olhos a sal-
tar das órbitas.
Por mim gosto de sacrificar muita coisa, de ver apenas o que imediata-
mente me atrai, de passear ao acaso, sem mapa e com uma absurda sensação
de descobridor.
Haverá melhor do que sentar numa esplanada, em Roma, ao fim da tar-
de, experimentando o anonimato e uma bebida de cor esquisita – monumentos
e monumentos por ver e a preguiça avançando docemente?
De súbito o lápis ou a bic começam a fixar imagens, rostos em primeiro
plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores, as mãos que os desenham.
Riscos primeiro tímidos, presos, pouco precisos, logo obstinadamente analíticos,
por instantes vertiginosamente definitivos, libertos até à embriaguez; depois fati-
gados e gradualmente irrelevantes.
Num intervalo de verdadeira Viagem aos olhos, e por eles a mente, ga-
nham insuspeita capacidade.
Apreendemos desmedidamente; o que aprendemos reaparece, dissolvi-
do nos riscos que depois traçamos.

Boston, Abril de 1988


Álvaro Siza”

Esquissos de Viagem, Álvaro Siza

195
[fig.1] Dal Killa, Delhi. Desenho do autor

196
197
[fig.2] Humayun´s Tomb, Delhi. Desenho do autor

198
199
[fig.3] O Tribunal Supremo, Chandigarh. Desenho do autor

200
201
[fig.4] A Assembleia e o Secretariado, Chandigarh. Desenho do autor

202
203
[fig.5] A escola de Belas Artes, Chandigarh. Desenho do autor

204
205
[fig.6] O Capitólio, Chandigarh. Desenho do autor

206
207
[fig.7] O Palácio, Fatepur Sikri. Desenho do autor

208
209
[fig.8] O Taj, Agra. Desenho do autor

210
211
[fig.9] Stepwell, Adalaj. Desenho do autor

212
213
[fig.10] Museu da Cidade, Ahmedabad. Desenho do autor

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215
[fig.11] Templo do Sol, Ahmedabad. Desenho do autor

216
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[fig.12] Museu de Gandhi, Ahmedabad. Desenho do autor

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219
[fig.13] O Lago, Udaipur. Desenho do autor

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221
[fig.14] O Sangath, Ahmedabad.
222
Desenho do autor com dedicatória de B.V. Doshi
223
[fig.15] Millowner´s Association, Ahmedabad. Desenho do autor

224
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[fig.16] Durbar Square, Kathmandu. Desenho do autor

226
227
[fig.17] Durbar Square, Patan. Desenho do autor

228
229
230
Índice de Desenhos

[fig.1] Dal Killa, Delhi. Desenho do autor


[fig.2] Humayun´s Tomb, Delhi. Desenho do autor
[fig.3] O Tribunal Supremo, Chandigarh. Desenho do autor
[fig.4] A Assembleia e o Secretariado, Chandigarh. Desenho do autor
[fig.5] A escola de Belas Artes, Chandigarh. Desenho do autor
[fig.6] O Capitólio, Chandigarh. Desenho do autor
[fig.7] O Palácio, Fatepur Sikri. Desenho do autor
[fig.8] O Taj, Agra. Desenho do autor
[fig.9] Stepwell, Adalaj. Desenho do autor
[fig.10] Museu da Cidade, Ahmedabad. Desenho do autor
[fig.11] Templo do Sol, Ahmedabad. Desenho do autor
[fig.12] Museu de Gandhi, Ahmedabad. Desenho do autor
[fig.13] O Lago, Udaipur. Desenho do autor
[fig.14] O Sangath, Ahmedabad. Desenho do autor com dedicatória de
B.V. Doshi
[fig.15] Millowner´s Association, Ahmedabad. Desenho do autor
[fig.16] Durbar Square, Kathmandu. Desenho do autor
[fig.17] Durbar Square, Patan. Desenho do autor

231
232
Namasté!, Kathmandu. Fotografia do autor
233
O Escarlate, Kathmandu. Fotografia do autor

234
Namasté!

“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”


A Viagem do Elefante, José Saramago

Seria contraditório tentar procurar uma conclusão, atingir um fim, haven-


do uma partida e uma chegada física já efectuadas, num processo onde se
foram colando recordações, reflectindo acerca de vivências e onde e nas quais
se pretendeu projectar um grande conjunto de aprendizagens só possíveis atra-
vés do contacto e da permanência.
Numa destas noites de amena Primavera, tentei exprimir a dois amigos,
que não estudam arquitectura, o teor da minha tese, a minha intenção. Talvez
por ter tentado simplificar e contextualizar de forma sintética e directa o intuito
e as questões fundamentais que levantava ao escrever a dissertação, cheguei
à conclusão que a mesma era determinantemente inerente ao seu conteúdo.
Pela soma de todas as partes, por todo o meu processo de formação, não só
como Arquitecto, mas também como pessoa, as minhas crenças, ensinamentos
familiares, todo o conjunto de pequenas grandes coisas que me foram moldan-
do ao longo destes vinte e três anos e que foram instrumento base à filtragem
desta nova realidade que aprendi a respeitar e à qual agradeço tamanha lição
académica e de vida. O ponto de chegada prende-se à necessidade de inter-
pretar uma situação tão distinta, adversa, multiplicada sobre milhentas soluções
e metamorfoses, não linear, mas que no fundo é tão valida e básica como o nos-
so normal e aparente contexto e consequentemente adaptá-la ao que agora
vejo no meu dia-a-dia.
Uma máquina de um automóvel, o seu motor, a sua estrutura, o seu ob-
jectivo, serve-nos em Portugal, seja com o carro ocupado legalmente por cinco
pessoas, ou apenas com o seu condutor. O mesmo veículo, na Índia, levaria o
dobro das pessoas, provavelmente consumiria mais combustível, mas a sua es-
trutura, propósito, máquina, era a mesma.

235
CEPT, Ahmedabad. Fotografia do autor

236
Vi Le Corbusier com as nossas marquises e caixilharias em alumínio do mais
baixo nível, vi os vidros estalados e as madeiras gastas, sentei-me nos relvados
secos e saltei para dentro dos vastos tanques sem água e com a tinta a descas-
car. Mas apesar de tudo isso, ganhou a Arquitectura e o tempo que sobre ela se
manifestou.
Nos meus primeiros dias em Ahmedabad, transmiti o meu encanto e sur-
presa pela falta de reabilitação e manutenção do espólio arquitectónico que,
ao invés de perder as suas qualidades iniciais, ganhava uma nova dimensão, o
tempo, transpirando personalidade e maturidade ao envelhecer. A resposta foi
simples e directa:

“Aos sessenta, não te vestirás do mesmo modo que aos dez, terás rugas no
rosto, a tua expressão transparecerá os dissabores e as alegrias da vida e a tua
idade será sinal de respeito. O mesmo se passa com a Arquitectura”
Abhijeet Singh

Nesta situação em concreto, tomo como referência o Institute of Manage-


ment de Louis L.Kahn, Ahmedabad, para realçar o quanto me marcaram as suas
paredes de tijolo burro áspero e rude, as fissuras na parede, a mármore desgas-
tada e suja, as colmeias suspensas nos enormes vazios circulares que vestiam o
vasto complexo. Ou então o impacto de me ver, ainda que imaginando ver-me
pelo olhar de um pássaro, como um pequeno ponto no planalto de Chandi-
garh, entre a Assembleia e o Tribunal, abatendo-se sobre mim o enorme vazio,
o suspiro e as borboletas na barriga. A momentânea cegueira que nos fulmina
assim que penetramos na isolante sombra da entrada no CEPT, pousando a nos-
sa mão sobre a fina guarda de betão que guia escadas acima, com uma leve
aragem a passar por nós enquanto se adivinha o que sucede.
A vivência e a visita persistem nesta frágil linha para com a Arquitectura,
tal como a música ouvida num qualquer aparelho está para o concerto ao vivo.
Os sentimentos despoletados nestes momentos são tão expostos à interpreta-
ção, à apreciação e à maturação pessoal, que a assimilação destes estímulos

237
A Silhueta, Ahmedabad. Fotografia do autor

238
pertence a um processo individual.
Tudo isto é Arquitectura e tudo isto é vida, tão vital como a respiração e
tão livre de interpretação como um poema de Rilke.
O mecanismo era demasiado bom e apurado para se deixar anular por
tamanhos pormenores. O gesto fora experimentado um pouco por todo o mun-
do, afinal de contas o Modernismo simboliza isso mesmo, a adaptabilidade sem
a mesma, a repetição como verdadeira antítese da mesma, em qualquer lugar
poder existir uma cidade radiosa, uma curva da minha montanha, uma mão
aberta que dá e recebe. Uma enorme esquadria pronta a ser desenhada por
cada um, ocupada e interpretada, tornada única dentro das suas quatro pare-
des com vista para o infinito.
É assim que eu descubro a minha janela, no meio de tantas outras.

“No entanto, o contínuo legado do Movimento Moderno, ensinou-nos


também a olhar para trás, para os lados, para o lugar e para o homem”
Rethinking Le Corbusier ARQ A nº59/60, José Manuel Rodrigues

Busco um paralelo, situação que me pudesse ajudar na comparação, sim-


plificasse a intenção pela evidente simplicidade e aproximação com o real, o
quotidiano, o dia-a-dia. Recordei-me da boa música que nos desperta, pelo
percurso que fizemos ao ouvi-la, pela companhia que foi, pelo entusiasmo que
transmite. Elevei-a ao acto, ao concerto e à transmissão directa de todos esses
momentos passados que nesse instante desfilam perante nós. Comparo a sua
força de expressão com a da Arquitectura, é como tocá-la em diferentes sítios,
para diferentes públicos, e a reacção, apropriação ou interpretação, superam
barreiras socioculturais. Há a memória a si anexada, o seu significado por nós
apreendido, o que em nós se transforma ao ouvi-la e que por sua vez se associa
à experiência passada, agora vivida sobre uma outra banda sonora e que cicli-
camente trará novas recordações numa ocasião futura onde a cantiga voltará
a tocar.
E, na realidade, é na experiência como antítese da especulação, no con-

239
A Escadaria Vermelho e Branca, Varanasi. Fotografia do autor

240
tacto directo a nível do espaço percorrido e não apenas no imaginário visitado,
que me dediquei a transmiti-la, a realçá-la, a tentar alcançar as palavras e as
sensações, o apelo ao mais íntimo pormenor na relação com um meio distinto e
vasto, distantemente afastado do nosso. Será assim possível que a experiência
marque, o factor “trauma” reforce e demarque o acontecimento e a sua inten-
sidade faça eco em incontáveis noites onde se regressa à cobertura de Rana
Park, ao preenchido jardim daquele ateliê, às tremendas paisagens vazias que
se avistavam do comboio azul em andamento ou das poucas refeições quentes
e a horas sem repercussões de maior.

Godspeed You Black Emperor! - 09-15-00 (part one)

Talvez a melhor forma de descrever todo este processo, tão assente na


descoberta, no contacto, no embate, na força da expressão e transmissão de
sentidos, actos, situações, numa mescla de ficção e realidade, contínua procura
pela emoção a si inerente, inquestionável reduto de quem viaja, será escolher
na sobreposição de texturas sonoras, atmosferas turvas sem paralelo, interminá-
veis horas sentado a ver a paisagem mudar, papilas gustativas ardentes, retinas
lacrimejantes, acessos de um perturbante caos que desfila ao lado da serena
apatia e calma, colocando-lhes o tom solene de Marco Polo presente em As Ci-
dades Invisíveis de Italo Calvino, divagando nas suas conversas com Kublai Kan,
onde o próprio narrador se esforça por descrever o já descrito, acrescentando
um pouco mais sobre o seu Viajante.
Tudo para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar que explicava,
ou imaginarem que explicava ou conseguir finalmente explicar a si próprio que
aquilo que procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo se tra-
tando do passado era um passado que mudava à medida que avançava na
sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário
realizado, digamos não o passado próximo em que cada dia que passa acres-
centa um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade
o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza

241
Invertendo Dimensões, Varanasi. Fotografia do autor

242
do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho, nos lugares
estranhos e não possuídos.
Poderia ter escrito sobre a Rua, dissecando os seus diferentes níveis, obser-
vando as multidões chocarem como ínfimas colisões entre átomos ou dissertar
sobre a densidade, a falta de espaço, a claustrofobia, o caos minimal, a fuga
impossível de lugares sem fim. Debruçar-me somente sobre a religião e a sua in-
fluência fulcral na Arquitectura, o sagrado sobre todas as outras coisas, o Vastu
Vidya e os seus ensinamentos cromáticos. A praça ou o desenvolvimento da
cidade, o apelo ao Ocidente e o renegar crescente do passado como base fun-
damental e pilar forte de toda uma manta de retalhos à qual hoje chamamos
Índia. Poderia até cair numa articulada comparação entre o nosso e o vosso, o
meu e o teu, o deste lado e o do lado de lá. Apenas esta comparação serviria
de ponto de partida para inúmeras e variadas discussões e tertúlias. É apetecível
olhar nos olhos da mudança, interrogarmo-nos sobre o caminho que por lá se
toma, e simultaneamente atingir bem as profundezas do nosso próprio cosmos
e perceber que algo tem, merece, necessita, anseia e desespera por uma mu-
dança. Pensar localmente, thinking local.
Mas mais importante que tudo isto, é poder ter observado o mecanismo a
funcionar, filtrar a realidade e tentar adaptá-la de certo modo à vida que reto-
mei cá, seja na atitude, na perseverança, num novo olhar sobre todas as coisas
e sobre a sua ordem e relação com o caos, o modo como a Arquitectura pa-
rece tão simples quando na mão das pessoas e das suas metas. Foi para mim o
perfeito remate académico, o ensinamento que me faltava. E porquê? Porque
se apresenta como derradeiro e marcante desafio, o da distância, da perda, da
adaptação a um mundo predisposto à mudança e na rápida transformação/
interpretação do que o ordena e organiza. Todo este baralhar e voltar a dar, me
fez repensar várias vezes sobre o nosso papel aqui, o nosso objectivo, a nossa
meta final e, por incrível que pareça, esse aspecto está tão relacionado com a
Arquitectura como com o Humanismo, a Ciência ou a Religião. Essa é a pergun-
ta pela qual nos debatemos e auto controlamos, tentando responder de uma
forma que serene o nosso interior, acalme a revolta do incerto.

243
O Sagrado, Varanasi. Fotografia do autor

244
“Don´t worry too much, live your lives just like when you were a kid, with
childish dreams and thoughts”
Balkrishna Doshi

A Arquitectura encaixa-se sobre todas as formas em mutação, sobre qual-


quer prateleira embebida na parede azul ciano num dos muitos becos que
enlaçavam a cidade e a sua teia, como se de finos fios de khadi se tratasse. A
Arquitectura respira sobre a árvore que é abraçada pelo betão que o vai esta-
lando com as suas raízes fortes e rijas, respirando o ar quente que a trespassa,
suportando sobre si o peso da sombra escura que relaxa os músculos e apela à
conversa. A Arquitectura está na imagem de deuses que, apesar de desapa-
recidos, sopram o seu bafo divino contra aqueles que se arriscam a percorrer
o sagrado terreno da planície e do deserto, da floresta verdejante ou de outra
feita de blocos de cimento amontoado e erguido através de altos guindastes
metálicos a reluzir ao sol à imagem dos outdoors amontoados nas fachadas das
casas, dos prédios e dos barracões.
A Arquitectura do eu, do nós, do deles, de divindades, que se interliga e se
introduz como o ar que se armazena nos pulmões, percorrendo e revitalizando,
mantendo o sistema operacional, longe do cataclismo, longe da perdição e
perto da vida. A Arquitectura das cores fortes e sinceras, naturais, que perten-
cem ao lugar, que se agarram à parede e a percorrem como o suor na pele ar-
dente. Todos os ensinamentos que a Arquitectura compreende, mas que tratam
das relações entre as pessoas, entre as relações dos deuses, entre as relações da
natureza e entre as relações da construção.
E nós, os Arquitectos, teremos de ser pensadores, filósofos, psicólogos do
habitat por nós criado, livres reflexos do que pretendemos não para amanhã,
mas para bem depois desse amanhã, alimentados pela paixão da multidiscipli-
nariedade, porque se não nós, quem? O passado ensinou-nos demasiadas ve-
zes que a longevidade é um dom de todo o projecto reflectido, e sim, hoje será
o momento de começarmos a pensar que isto a que nós chamamos de planeta,

245
A Cadeira, Ahmedabad. Fotografia do autor

246
casa, lar, continuará a ocupar o mesmo espaço cósmico que até hoje sabemos
ocupar... poderemos é não ter condições de o fazer!
E agora que me aproximo de um final anunciado, tão prolongado e lento
que desperta em mim um sentimento de perda, de ausência deste universo que
descrevo, defino como meu primordial objectivo a transmissão sensorial do que
foi este percurso, ou melhor, toda esta viagem. Se porventura servir para que o
cheiro a caril misturado com combustíveis fósseis e materiais biodegradáveis,
penetre ainda que por fugazes momentos, o olfacto de quem lê, ou que, com
alguma perícia, se adivinhe o estreito corredor de Dharavi e a sua claustrofobia,
associada ao Sleepertrain N11, aniquile e reduza o interior de quem lê estas pa-
lavras, será para mim sinal de meta alcançada.
O que é tudo isto senão a partilha de paixões, vitórias e derrotas, sabedo-
ria e conhecimento?
Tudo o resto, será, certamente, apenas paisagem!

Explosions in the sky – “Be Comfortable, Creature”

247
248
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251
252
Glossário

Atman – Conceito de alma frequentemente associado à religião Hindu, Jain,


Sikh e Budista.

Auto-rickshaws – Triciclos para transporte de passageiros movidos a combustí-


veis fosseis ou gás.

Banaras - Varanasi.

Bazaar – Mercado típico indiano.

Bindu – Simbologia sagrada do universo, origem e criação de tudo.

Chowk – Pátio.

Cluster – Grupo.

Dosas – Espécie de crepe indiano normalmente recheado com batata.

Ghats – Sistema de plataformas e escadas até ao rio.

Khadi - Tecido típico indiano.

Mandala – Regra e representação geométrica que relaciona a medida do ho-


mem com a medida do universo.

Namasté – Cumprimento, saudação: “Eu te saúdo”.

Nirvana – Ascensão e união com o último estado sagrado. Paz absoluta e objec-
tivo final do percurso da vida e da morte.

Om Namo Shivaya - Oração a Shiva. “A Ti eu me reverencio”.

Paan – Tabaco de mascar de cor avermelhada.

Pani – Água.

Pav Bhaji – Comida rápida constituída por um molho composto por caril e outras
especiarias, acompanhado com pão.

Pol – Tipologia primordial de habitação colectiva de forte carácter comunitário


muito presente em Ahmedabad e no Gujarat.

Pura – Bairro típico do centro histórico de Ahmedabad.

253
254
Rangolis – Motivos religiosos frequentemente feitos em paredes ou pavimentos.

Reliance - Empresa indiana.

Rickshaws – Triciclos para transporte de passageiros puxados a pedal.

Samosas - Chamuças.

Slumdog – Morador de bairro de lata.

Slumdollar – Morador de bairro de lata cujo trabalho, actividade e rendimentos


provêm de fontes exteriores ao seu lugar de residência.

Shinya – O vazio, antítese da criação. Vácuo.

Tata - Empresa indiana.

Vastu Vidya – Ciência do bem morar.

Yantra – Representação simbólica da divindade, de motivos geométricos e uti-


lizada como instrumento de meditação.

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Os Nichos, Kathmandu. Fotografia do autor

256
Explosões no céu originaram a primeira respiração depois do coma.

Nuno André Coelho de Melo e Sousa


2010/2011

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