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Metodologias
para o espaço construído
Natália Rodrigues de Melo
INTRODUÇÃO
Enquanto pesquisadora do Laboratório Arquitetura, Subjetividade e Cultura
desde 2011, tive a possibilidade de melhor compreender conceitos que debatem o
espaço construído das cidades e entendê-los principalmente pelo viés subjetivo e
cultural. Dentre alguns desses conceitos, destaco a Ambiência, pois ela entrelaça, como
bem colocou Duarte (2011), aspectos funcionais, formais e ambientais dos espaço antes
tratados como fatores isolados.
A ambiência, segundo Thibaud (2004), precede e condiciona um espaço com
todos seus elementos - físicos e sensíveis - em conjunto com as relações humanas e
pode ser considerada, de acordo com Augoyard (2004), uma atmosfera material e moral
que envolve um lugar e as pessoas que delem fazem parte. Assim, podemos dizer que
a ambiência permeia todos os espaços de nossa vida cotidiana, porém sem que nós
percebamos de imediato a sua existência. Entretanto, ela está lá, passando como um
rio que se modifica diariamente, mas sempre unificando tudo que faz parte do lugar. São
as ambiências que possibilitam a interação entre a percepção, as emoções e as ações
das pessoas em suas representações sociais e culturais.
Esse conceito, no entanto, não é fechado, uma vez que sua principal
característica é nos levar a refletir sobre tipos de experiência, percepção e ação em
determinados e específicos contextos urbanos, segundo Duarte (2011). Dessa forma, a
definição de ambiência está muito mais próxima do campo empírico que teórico e isso
implica num caráter pragmático do conceito que, para ser tematizado, requer um retorno
ao concreto com ações de observação e vivência.
Envolta no fascínio por esse conceito e buscando contribuir para o
aprimoramento do significado da ambiência, realizei pesquisas junto ao LASC cuja a
compreensão do espaço urbano foi construída sobretudo por trabalhos empíricos dentro
dessa atmosfera. Sob a batuta de Cristiane Duarte e Regina Cohen, desenvolvemos no
mestrado uma análise sobre a acessibilidade das cidades históricas, partindo do
pressuposto de que as pessoas com deficiência criam estratégias sensoriais, cognitivas
e de deslocamento para engendrar uma relação de afeto com a ambiência de uma
localidade reconhecida como patrimônio. Mesmo com grandes dificuldades de acesso
existentes aos bens tombados e com a falta de planejamento dessas cidades para as
pessoas com deficiência, verificamos que a ambiência contribui para uma construção
identitária com o lugar, bem como possibilita, através do pertencimento e da apropriação
do espaço, entender melhor as falhas urbanas e lançar proposições para melhorias da
acessibilidade. O trabalho foi intitulado “Pelos percursos da acessibilidade: afeto e
apropriação nas ambiências de uma cidade histórica. Estudo de caso em Ouro Preto,
MG”.
No curso do doutoramento, novamente sob a orientação de Cristiane Duarte,
mas agora em parceria de Paula Uglione, mudamos um pouco o lócus de análise e nos
fixamos nos estádios de futebol reformados para a Copa do Mundo que ocorreu no
Brasil em 2014. Na tese “O grande palco futebolístico. Ambiência e memória no estádio
do maracanã pós-reforma para a copa de 2014”, partimos do fato de que as
reformas/reconstruções dos estádios geraram discussões sobre as imposições a
respeito dos novos hábitos de torcer, o aumento de preços dos ingressos e a
transformação arquitetônica dos espaços. Diante destes argumentos, nós verificamos
que a ambiência tem papel preponderante na reinterpretação dos novos espaços físicos,
surgidos pelas reformas dos estádios para os megaeventos, além de funcionar como o
elo entre o passado e a situação atual. A atmosfera do lugar, portanto, foi capaz de
possibilitar a [re]significação dos espaços por meio das práticas e das crenças
compartilhadas nesta nova situação.
Como a ambiência é fácil de sentir, porém difícil de explicar, segundo Augoyard
(2007), fez-se necessário, para ambas as pesquisas, um arsenal metodológico muito
bem desenhado e ancorado em uma investigação empírica. Cercamo-nos, assim, de
um leque metodológico interdisciplinar que abarcasse uma diversidade de experiências
a fim de trazer maior completude a um conceito complexo e em constate construção.
Assim sendo, o objetivo deste ensaio é, em breves linhas, descrever um pouco da
metodologia utilizada nesses dois trabalhos desenvolvidos junto ao LASC e elucidar a
importância da ambiência em cada um deles.
QUADRO DE RELATOS
Da mesma forma que no Arquivo Mnemônico do lugar, tratamos em nossa
pesquisa do doutorado da condição inexata dos lugares acreditando que todo lugar é
“inventado”, construído pela força significadora da subjetividade. Ademais, entendemos
que a ambiência, nosso conceito-chave, pode ser apreendida em um lugar outrora
apropriado, mas modificado por reformas. Buscamos, assim, observar os relatos sem
autoria dos informantes, transformando as entrevistas em uma massa polifônica e
buscando averiguar a presença de traços.
Usamos a técnica do agrupamento de relatos em um quadro único e, assim como
no Arquivo Mnemônico do Lugar, buscamos identificar as ideias e metáforas mais
significantes que emergiram do texto. Essas metáforas presentes nos depoimentos,
captadas por fragmentos e traços, surgiram de ideias repetidas e constantes que
emergiram dos relatos e nos permitiram elegê-las enquanto vestígio da relação dos
torcedores com o Maracanã. De fato, segundo Uglione (2008), o sujeito faz uma
ascensão ao simbólico por meio da linguagem e assim constrói a sua verdade.
As etapas do método foram: escolha do local; observação e abordagem dos
torcedores para capturar os relatos; registro dos relatos em frases soltas por meio de
traços que se reverberavam; identificação e realce das principais ideias e metáforas por
meio da filtragem; e, por fim, análise dos significados que emergiam de cada relato.
Posteriormente a estas etapas, criamos os extratos metafóricos com base nos
metáforas e fragmentos a elas relacionados. As descrições e análises foram
desenvolvidas com base nessas metáforas, porém havendo a interposição das
anotações originadas com as observações de campo realizadas a partir da análise
etnotopográfica. Esses extratos foram essenciais na busca por respostas sobre os
significados atribuídos pelos frequentadores ao Maracanã novo e ao antigo estádio.
A etimologia da palavra extrato é uma pequena parte que pode ser retirada de
um texto, passagem, resumo, trecho ou fala. No caso da pesquisa em questão,
utilizamos a palavra extrato como uma síntese, ideia ou essência do que emergiu da
reverberação da fala dos envolvidos, evidenciado como a ideia principal das narrativas
sobre o significado do Maracanã.
Para chegarmos aos extratos empregados, usamos palavras que se repetiam e
que em alguns momentos eram igualmente comuns nos diversos comentários dos
informantes. Para os extratos metafóricos, nos amparamos em Uglione (2008), que
atesta que a metáfora numa narrativa sinaliza tanto o que foi significativo nas vivências,
mas que foi reprimido, quanto “efeitos de sucesso” da memória, pois a metáfora é um
traço que consegue na sua repetição se conectar às inscrições psíquicas e chega
“encadeada” na consciência atribuindo significações do lugar. Segundo a autora: “A
metáfora é uma ‘invenção’ do inconsciente para garantir a simbolização de um traço,
até então, ‘apagado’ na memória” (2008, p. 67).
Ao todo, identificamos cinco extratos que denominamos: Campo de Batalha,
Colosso, Lugar Mágico, Engomadinho e Teatro de Sonhos e Emoções. Ao final do
Quadro de Relatos, afirmamos que essa ferramenta nos levou a pensar as relações do
torcedor a partir das oscilações dos sentimentos de cada um que frequenta o estádio.
Podemos, com base nos dados estatísticos levantados, ter um resultado mais exato que
mensura e avalia o processo de retomada ou repulsa do Maracanã. Porém, o quadro de
relatos nos mostrou que os significados sempre buscam um contraponto, uma oscilação,
como se todo novo significado precisasse ter um respaldo da grandeza e da importância
do local tem para seus usuários.
As figuras abaixo dão um panorama do impacto que o novo Maracanã tem
ocasionado na vida do público e como a relação com o espaço reformulado perpassa
pelas oscilações entre as referências passadas e o que existe de novo, além das
imposições/rupturas com as formas de transgredir/readequar ao estádio.
O uso do Quadro de Relatos nos auxiliou no encadeamento das ideias deveras
soltas do caderno de campo que coletamos. Ao final conseguimos examinar um a um
dos extratos e chegamos a concluir que mesmo com as alterações “traumáticas” que
aconteceram no Maracanã e que representaram uma ruptura nos hábitos e visões do
torcedor, ainda foi possível encontrar traços do passado e como eles impactam nas
novas ocupações e novas aderências com o atual Maracanã.
BIBLIOGRAFIA