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DEVIR-CASA

CORPOS, TERRITÓRIO E FABULAÇÕES

Lucas Alcides Justino/PPGCOMS-UFT1


lucasjustinogratidao@gmail.com
Renata Ferreira da Silva /PPGCOMS-UFT2
renataferreira@mail.uft.edu.br

RESUMO
Este texto partilha fabulações do Grupo de Pesquisa GESTO – Poéticas da criação da Universidade
Federal do Tocantins para a pesquisa baseado em artes. Os pesquisadores participantes dialogam neste período de
isolamento social sobre a casa enquanto espaço de pesquisação poética e , para tanto desenvolvem experimentos
a partir de registros sonoros, visuais e de escrita de forma remota se propondo a fabulação da casa enquanto
espaço, território em um modo artístico de pesquisa. A experimentação documental da realidade dos pesquisadores
reflete sobre este corpo, sobre a espacialidade e territóriedade pandêmica, bem como a perdurabilidade da
incidência artística na relação entre o mundo da representação e o mundo dito como real, utilizando para tanto de
meios virtuais e audiovisuais no processo criativo de pesquisa. Estimulam os pensamentos teóricos como Deleuze,
Casimir, Ismail Xavier e Chirstine Greiner.

PALAVRAS-CHAVE: CORPO; TERRITÓRIO; FABULAÇÃO; DEVIR; PROCESSO CRIATIVO.

Introdução

Um grupo de pesquisadores de diversas regiões do país se reúne virtualmente para que


processos de pesquisa ativados sejam vinculados a formas de experiências artísticas e
indagando em que medida as artes podem dar conta da investigação. Para Irwin (2013) a
pesquisa baseada em arte, aceita, de uma forma normalizada, diferentes formatos de escritura
utilizando procedimentos artísticos, literários, visuais e performativos para dar conta da prática
de experiência que não se fazem visíveis em outros tipos de pesquisa e assim as artes aparecem
como método, forma de análise, tema, forma de conhecimento emocional e cognitivo. Gilles
Deleuze (1990) comunica sobre a proliferação infinita de imagens a qual somos expostos todos
os dias e discorre sobre o termo sociedade do controle, onde, a imagem vista apenas como
informação é tida como parte integrante de estratégias de vigilância e de controle na sociedade,
sobretudo esteticamente. Mas, em grupo nos propomos a desestigmatizar a imagem imposta e
dar movimento aos corpos pandêmicos, ousando uni-los de diferentes territórios num devir-
casa.

Desenvolvimento

A noção de territorialidade pode estar vinculada ao esforço de determinado grupo


social para usufruir, ocupar, obter controle e identificar-se com seu ambiente biofísico, ou uma
parte dele, configurando como seu “território”. Casimir (1992) dialoga sobre a territorialidade

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal do
Tocantins;
[1] Professora Docente do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Sociedade
(PPGCOMS-UFT), renataferreira@uft.edu.br;
como força pulsante em qualquer grupo, onde manifestações declaradas coexistem as
circunstâncias históricas. Há outros aspectos da territorialidade humana, bastante pluralista,
ligada a multiplicidade de expressões e comportamentos socioculturais. Para tanto e
antropologicamente falando faz-se necessária abordagens etnográficas para compreender os
múltiplos formatos específicos dessa diversidade de territórios. Durante a realidade que
vivemos e o ambiente caótico que nos encontramos causado pela pandemia de COVID-19 que
nos obriga ao isolamento social, nos colocamos a experenciar a relação corpo e casa, corpo e
ambiente, corpo e territorialização.
Cada percurso metodológico tem uma forma de perguntar, uma língua própria e, cada
percurso de pesquisa apresenta a realidade respondendo à pergunta na sua própria língua. Nesse
sentido nos interessa perguntar: “Como compomos este movimento que investigamos? “A
produção de dados ao invés de coleta, o jogo de forças implícito no movimento de pesquisa, o
que está em contínuo movimento ao invés do que se estabiliza (SILVA,2020, p.239).
As artes levam ao fazer e, utilizar elementos artísticos e estéticos nos provocam
outras maneiras de olhar e representar a experiência, a desvelar aquilo que não se fala.
Pensamento, neste contexto, não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, ou
mesmo “categorizar” e “contar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo
dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.
Justamente, nos acontece de sermos levados a “observar o comportamento a partir das
ações corporais, das relações entre corpo e ambiente, dos diferentes níveis de consciência, da
intencionalidade expressa através do movimento e da maneira como os universos simbólicos
são organizados na ação” (GREINER, 2012, p.37). Esta experimentação o espaço e nossos
corpos nos oferece muitas possibilidades investigativas, e a partir disto vivenciarmos a ideia de
que a relação corpo biológico e corpo cultural torna-se um aspecto fundamental para
mapearmos o corpo como um sistema e “não mais como um instrumento ou produto”
(GREINER, 2012, p.37). Como habitamos a casa? O que nossas ações corporificam na casa, e
vice-versa?
Confinados pelo contexto pandêmico, fabular a espacialidade da casa e suas diferentes
maneiras de coexistir nos possibilita experenciar o devir -casa dentro do espaço que residimos
e os múltiplos movimentos cabíveis dentro dele. A noção entre espaço, ambiente, território,
corpo, movimento e tempo instiga o grupo as experiências estéticas e artísticas fabulosas acerca
da própria realidade.

Gilles Deleuze entende a fabulação como uma forma de criação, de pensamento


que faz crer em um novo real. Em um real minoritário. Ela é algo que possibilita
a constituição de um novo corpo, de algo ainda não existente. É algo capaz de
afetar e, consequentemente, fazer crer em um modo de existência outro (ZEPPINI;
ZACHARIAS, 2018, p.281)

Durante os encontros somos provocados por nossas próprias questões a investigar a


relação espacial coletiva que se forma. Os encontros realizados via plataforma digital delimitam
cada participante a um retângulo, um frame, um enquadramento previsto aguçou aguçando o
desejo de aproximação entre os participantes, como se mesmo estando em diferentes espaços
habitássemos a mesma casa e a partir deste ponto passamos a investigar possíveis encontros e
desencontros cotidianos para além do espaço, mas a partir de um tempo em comum o que
culminou na produção do Documentário Devir Casa. O grupo de Pesquisa GESTO, nasce já
durante o período de isolamento social, logo nos reunimos sempre via plataforma e aplicativos
virtuais/digitais, o que no princípio nos delimitava tornou-se um modo singular. A partir desta
relação estabelecida no ambiente virtual, mas expandida pela interface entre linguagens, ou
seja, mesmo estando em diferentes espaços, passamos a habitar a mesma tela e com auxílio da
edição passamos a integrar a mesma casa, um mesmo espaço e passamos a investigar e provocar
estes possíveis encontros e desencontros. Dispostos a rever nosso conceito de casa e expandi-
lo para diferentes configurações que explorem sentidos e sentimentos: casa-mundo, casa-
concretude, casa-corpo, casa-universo, casa-território, casa-casulo, casa-conforto, casa-lar nos
indagamos: o que pode a casa?
Sobe visão da cosmografia (Little 2001), um grupo social utiliza os saberes ambientais,
ideológicos e identitários, oriundos do coletivo e situados no contexto histórico, para
estabelecerem um território comum. Podemos dimensionar ainda o vínculo social, simbólico
neste ambiente biofísico, para Tuan (1977), a geografia, entende diferentes espacialidades
distinguindo o “espaço” abstrato e genérico e um “lugar” concreto e habitado que poderão dotar
um espaço com sentimento e significado. Little afirma que “A noção de lugar também se
expressa nos valores diferenciados que um grupo social atribui aos diferentes aspectos de seu
ambiente. Essa valorização é “uma função direta do sistema de conhecimento ambiental do
grupo e suas respectivas tecnologias” (Little, 2012 p.8).
O Grupo GESTO é composto por pesquisadores de diferentes territórios, que
investigam os campos da literatura, teatro, comunicação e educação e que mediante dispositivos
de criação, tomados como motor de experimentação.
Programa é motor de experimentação porque a prática do programa cria
corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa
circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa.
Programa é motor de experimentação psicofísica e política. Ou, para citar palavra cara
ao projeto político e teórico de Hanna Arendt, programas são iniciativas. Muito
objetivamente, o programa é o enunciado da performance: um conjunto de ações
previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser
realizado pelo artista, pelo público ou por ambos sem ensaio prévio. Ou seja, a
temporalidade do programa é muito diferente daquela do espetáculo, do ensaio, da
improvisação, da coreografia. (FABIÃO, 2013, p.4)

Neste sentido o programa funciona para o grupo como enunciado que norteia as
experimentações. Os programas abaixo, foram elaborados coletivamente pelos integrantes do
grupo de pesquisa GESTO:
Programa I: Deixe seu gravador ligado em um canto da casa; capte o som emitido às
19h de segunda-feira; envie o minuto sonoro para o editor que fará a sobreposição de todos os
áudios do grupo.
Programa II: Grave um vídeo de 1 minuto utilizando o áudio criado coletivamente
como estímulo para movimentos e ações no plano baixo (base solo, chão).
Programa III: Grave 1 minuto de vídeo na terça-feira às 16 horas. Celular disposto na vertical.
Área de gravação interno (1 Cômodo dentro da casa). Plano geral.
Os áudios dos propostos pelo programa I, foram compactados e sobrepostos por um
integrante do grupo o transformando em uma única faixa sonora de 1 minuto. A partir desta
faixa experimentamos a reverberação do som em nosso corpo em contato com o chão, base da
casa, ou seja, o programa 02 fez com que dançássemos esta sonoridade em plano baixo, de
forma individualizada e registrássemos em vídeo o experimento.
Desta vez cruzamos as imagens em camadas, sobrepondo-as umas às outras e o
resultado gerou encontros dos movimentos sobrepostos, uma coreografia do cotidiano do acaso
que nos fez “encontrar”, bailarmos entre imagens, unificando territorialmente o grupo ainda
que longínquos. O grupo fabula sobre a realidade individual e constitui um universo espaço-
tempo coletivo. Deleuze (1990) aponta que a fabulação ocorre quando em determinado
momento não mais se distingue aquilo que é real e aquilo que é imaginado “A verdade não tem
de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada” (DELEUZE, 1990, p.178).
No experimento 03, cada integrante se programou para filmar um minuto do que
estivesse fazendo “naturalmente” sem pré-produzir apenas , gravar o “real”. Desta vez as
imagens não foram sobrepostas, mas montadas em camadas uma do lado da outra, com
transições entre si, ocupando sempre na tela pelo menos três pesquisadores distintos e mais uma
vez, também neste exercício, houve encontros e desencontros entre os participantes e demais
elementos presentes no quadro da câmera. A título de exemplo: duas pesquisadoras em lugares
distintos estavam em seus cômodos de casa acompanhadas por seus pets e na edição, no mesmo
instante quando um deles se senta no sofá o outro sai para brincar. O encontro permitiu na
imagem documentada, ainda que editada, uma outra realidade de convívio e interação. Ao ver
a representação do acaso, e na sobreposição de imagens pelo audiovisual temos encontros e
realidades espaciais e nos deleitamos sobre o conceito de fabulação de Deleuze como aposta
metodológica.

Conclusões:

O processo criativo advindo dos encontros virtuais do grupo de pesquisa são “meio”,
é o entre o que já fomos e o que seremos, mas caminhamos juntos no que entendemos ser apenas
o início do encontro entre nossas pesquisas. Mediante o que caminhamos podemos inferir que
seguimos fabulando numa experiência de cinema documentário, e se documentários não são
uma reprodução da realidade e sim uma “representação do mundo em que vivemos” (BILL
NICHOLS, 2016 p.36) nossos corpos e nossas casas representam de forma performativa,
fabulosa. Identificamos que o material já produzido pelo grupo se configura como um videoarte
com teor de cinema documentário e que as pesquisas e questões de cada integrante do grupo
influenciam diretamente no processo criativo. Se na construção de uma obra audiovisual há
duas operações básicas: a filmagem “que envolve a opção de como os vários registros serão
feitos” (XAVIER,2012, P.19) e a montagem, “que envolve a escolha do modo como as imagens
obtidas serão combinadas e ritmadas.” (XAVIER,2012, P.19), filmamos o nosso “real”, sendo
este cabível de “fabulação”. Editado e montado nossos corpos e territórios se unem, e
descobrimos novas formas de estar e criar juntos em relação com o ambiente constituído pela
liberdade de fabular geografias intensivas.

Referências:

CASIMIR, M. 1992. “The dimensions of territoriality: An introduction.” In Mobility and territoriality.


M. J. Casimir and A. Rao, eds., 1-26. New York: Berg.
DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: o corpo em experiência. In: ILINX-Revista do Lume,
UNICAMP: n°4, 2013.
LITTLE, Paul E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da
territorialidade. UNB, 2002.
TUAN, Yi-fu. 1977. Space and place: The perspective of experience. Minneapolis: University of
Minnesota Press.

XAVIER, I. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra,
2008. 2ª impressão, 2012.
ZEPPINI, Paola Sanfelice; ZACHARIAS, Pamela. Sobre aprender a fabular em educação. In.: Linha
Mestra, N.35, P.278-285, MAIO.AGO.2018
IRWIN, R. (Org.) Pesquisa Educacional Baseada em Arte: a/r/tografia. Santa Maria: Edufsm,
2013. p. 6-12.
SILVA, Renata F. Os dramas da pesquisa ou sobre escrita acadêmica e vida. ALEGRAR nº 25
- jan/jul, 2020, p. 238-249. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1C6I5Hs6crWe4rUzgcPZTBHEQCC9XfiOs/view
Acessado em 01 de junho de 2021.

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