Você está na página 1de 4

1

NEM HERESIA, NEM ANARQUIA!

“Tudo, porém, seja feito com decência e


ordem” (1Co 14.40).

A Igreja Presbiteriana do Brasil é conhecida por dois traços bastante característicos:


a sua firmeza doutrinária e a sua solidez governamental. Tais predicados, altamente
louvados por algumas denominações e duramente criticados por outras, não se devem ao
acaso. Ambos são fruto da adoção e respeito a dois grupos de documentos
denominacionais chamados Símbolos de Fé – Confissão de Fé de Westminster (CFW),
Catecismo Maior de Westminster (CMW) e Breve Catecismo de Westminster (BCW) e
os Símbolos de Ordem – Constituição da Igreja (CI), Código de Disciplina (CD) e
Princípios de Liturgia (PL).
Os três primeiros são resultado do trabalho magnífico realizado pela Assembleia de
Westminster (1643-1653) e, devido à sua reconhecida solidez, sofreram discretas e
compreensíveis revisões, mais especificamente a CFW, nos anos 1788, 1887, 1903 e
1936. Hodge destaca o caráter maravilhosamente democrático da Assembleia assim:
“Homens de todos os matizes de opinião quanto ao governo da Igreja foram incluídos
nessa preclara companhia – episcopais, presbiterianos, independentes e erastianos”.1
Lamentavelmente, alguns preciosistas não aceitam as revisões imperiosas que foram
inevitavelmente impostas ao texto original. Quanto a isso, as palavras de Dixhoorn são
extremamente pertinentes:

A Confissão é um texto abundante em teologia, que oferece uma riqueza de


reflexão bíblica e doutrinária. Ela não é isenta de falhas. Ainda assim é
muito boa. Na minha opinião, sua idade avançada é mais um benefício do
que uma desvantagem. É bom estudar textos que nos lembram que o
cristianismo não foi inventado na semana passada.2

Os três últimos são da década de 1950. A Constituição da Igreja foi promulgada em


20 de julho de 1950. O Código de Disciplina e os Princípios de Liturgia receberam
aprovação pelo Supremo Concílio apenas no ano seguinte, 1951. Ao longo de tantos anos
sendo usados como ferramentas úteis no ordenamento eclesiástico da denominação, pelo
simples fato de serem documentos imperfeitos que precisam por isso de constantes
revisões, ainda assim receberam discretas e compreensíveis mudanças nos seus textos,
mais especificamente a CI e o CD. A simples aplicação desses instrumentos não garante
êxito automaticamente. Como consta do Preâmbulo da CI/IPB, datado de 20 de julho de
1950:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós, legítimos representantes


da Igreja Cristã Presbiteriana do Brasil [...] depositamos toda nossa confiança
na bênção do Deus Altíssimo e tendo em vista a promoção da paz, disciplina,
unidade e edificação do povo de Cristo, elaboramos, decretamos e
promulgamos para a glória de Deus o seguinte [...].3

1
HODGE, A. A. Confissão de Westminster comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Editora Os Puritanos,
1999, p.41.
2
DIXHOORN, Chad Van. Guia de Estudos da Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura
Cristã, 2017, p.12.
3
Manual Presbiteriano, 15a. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.7.
2

Diante do que foi exposto acima, compete a cada crente presbiteriano, a cada
Oficial da Igreja (Diáconos, Presbíteros e Pastores), a cada Presbitério, a cada Sínodo e,
obviamente, ao Supremo Concílio, zelar pelo respeito, pela observância e pelo
cumprimento das disposições doutrinárias, constitucionais, disciplinares e litúrgicas
defendidas e regulamentadas pela Igreja Presbiteriana do Brasil.
Quando, por um lado, os padrões confessionais da Igreja são depreciados, às vezes
até achincalhados como obsoletos e ultrapassados, corre-se o risco do flerte com a
heresia, uma vez que os referenciais de autoridade, instituídos para a preservação da
unidade doutrinária, são negligenciados. Romeiro observa, ao prefaciar a obra
referenciada, que “não é preciso grande dose de perspicácia para constatar que, nas
últimas décadas, muitos evangélicos se distanciaram dos postulados da Reforma
Protestante [...] Já há vários anos essa crise doutrinária e ética se alastra em grande parte
do campo evangélico brasileiro”4. Por ocasião das celebrações dos 500 anos da Reforma
Protestante em 2017, muitas vozes se levantaram tendo em vista a confusão doutrinária
reinante na Igreja Evangélica Brasileira. “Creio que a voz profética da Igreja, ouvida
durante a Reforma Protestante de 1517, ressoaria como música de esperança aos ouvidos
dos necessitados, enquanto trovoaria na consciência daqueles que a enfrentam”, declara
Bitun5. Carpenter menciona a questão da heresia como um problema da igreja
contemporânea brasileira:

Uns clamam por um olhar mais concentrado sobre Jesus, e um cuidado


maior com as Escrituras. Alguns focam o perigo das ameaças à Igreja:
heresias [grifo nosso], seitas, falta de contato com a palavra, pobreza
espiritual, mercantilismo, bairrismo, agressividade, isolacionismo, falta de
teologia pública, liberalismo e outras.6

Obviamente, não se advoga aqui aquele espírito patrulheiro e minucioso, típico da


conduta dos fariseus do tempo de Jesus, que coa mosquitos e engole camelos (Mt 23.24).
O ideal é tentar cultivar o saudável senso de tolerância, conforme exposto por um certo
Rupert Meldenius, talvez um pseudônimo de Richard Baxter, cujo enunciado é o seguinte:
“Em coisa essenciais, unidade; nas não-essenciais, liberdade; em todas as coisas,
caridade”7. Taylor alista “os benefícios práticos e os perigos da subscrição” doutrinária
assim: Benefícios – Amor pelo Deus da Verdade e pela Verdade de Deus, Edificação
Mútua, Promoção da Pureza da Igreja, Promoção da Paz da Igreja, Promoção do
Progresso da Igreja, Estimulação da Investigação e da Discussão Teológica, Manutenção
da Integridade dos Oficiais; Perigos – Amar mais a Teologia do que amar a Deus, Ignorar
companheiros crentes, Diluir a Pureza da Igreja, Perturbar a Paz da Igreja, Impedir o
Progresso da Igreja, Sufocar a Investigação e Discussão Teológica, Comprometer a
Integridade dos Oficiais8. Assim, Igrejas Presbiterianas dentro da IPB defendendo e
vivenciando doutrinas pentecostais, liberais ou neopuritanas são uma anomalia que
lamentavelmente se observa nos dias atuais, configuram contradições irresolvíveis à luz
dos padrões confessionais da denominação.

4
LOPES, Augustus Nicodemus. O que estão fazendo com a Igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p.7.
5
BITUN, Ricardo. Breves considerações sobre a Reforma Protestante e seu caráter profético nos dias
de hoje In: A Reforma Protestante – História, teologia e Desafios. Org. Ricardo Bitun. São Paulo: Mundo
Cristão, 2017, p.62.
6
CARPENTER, Mark. Prefácio. In: ZÁGARI, Maurício (Org.). Uma Nova Reforma – Após 500 anos, o que
ainda precisa mudar? São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p.10.
7
STOTT, J. R. W. Cristianismo Equilibrado. Rio de Janeiro: CPAD, 1982, p.15.
8
TAYLOR, L. Roy. Os Benefícios Práticos e os Perigos da Subscrição. In: HALL, David W. A Prática da
Subscrição Confessional. Natal (RN): Nadere Reformatie Publicações, 2021, p.375-387.
3

Por outro lado, quando os Símbolos de Ordem são igualmente depreciados, ou pior,
deliberadamente desobedecidos, instaura-se no âmbito eclesiástico o flerte com a
anarquia. O saudável espírito conciliar da Igreja Presbiteriana exige rigorosamente o
respeito e a observância dos referenciais que promovem a unidade local e denominacional.
Nenhum membro tem o direito de se comportar à revelia daquilo que prescrevem tais
Símbolos, pelo contrário, por ocasião da própria Profissão de Fé, o adulto que é
solenemente recebido na membresia da Igreja local declara publicamente a sua submissão
tanto aos padrões confessionais quanto aos governamentais. Nenhum Pastor, nenhum
Conselho, nenhum Presbitério, nenhum Sínodo e, obviamente nem o Supremo Concílio,
tem a liberdade de flexibilizar a obediência a tais normas, seja por ignorância no bom
sentido, seja por conveniência ou pior por covardia.
A CI/IPB traz inúmeras recomendações no Art. 14 sobre os deveres dos membros,
dentre os quais se destaca “obedecer às autoridades da Igreja, enquanto estas
permanecerem fiéis às Sagradas Escrituras” (alínea “d”); no Art. 50, se observa que os
Presbíteros Regentes “juntamente com o Pastor, exercem o governo, a disciplina e o zelo
pelos interesses da Igreja”; no Art. 70 se diz que os Concílios devem “velar pelo fiel
cumprimento da presente Constituição” e isso inclui os Conselhos de Igrejas, Presbitérios,
Sínodos e Supremo Concílio. O Art. 30 dos Princípios de Liturgia prescreve: “A Igreja
comprometer-se-á a reconhecer o Oficial eleito e prometerá, diante de Deus, tributar-lhe o
respeito e a obediência a que tem direito de acordo com as Escrituras Sagradas”. Logo,
quando se vê a deliberada desobediência, insubmissão e insolência quanto à observância
das normas constitucionais, inevitavelmente, perde-se um dos mais preciosos traços do
presbiterianismo clássico. Não existe espírito conciliar quando as regras são subvertidas
consciente ou inconscientemente. Na eclesiologia presbiteriana não existe o dogma da
“autonomia absoluta da Igreja local”, até porque na Teologia Bíblica do Novo Testamento
as Igrejas dos dias apostólicos estavam ligadas pelas entranhas, conforme se vê nas
decisões aprovadas pelo Concílio de Jerusalém (At 15), cujas normas deveriam ser
acatadas por todas. No regime presbiteriano, a membresia das diversas Igrejas se
encontra nos eventos federativos e os Oficiais, Pastores e Presbíteros, tomam decisões
válidas para todos na esfera do Presbitério.
Frequentemente, se diz que uma Igreja verdadeiramente reformada é reconhecida
pelos seguintes pilares: Pregação Genuinamente Bíblica, Administração Correta dos
Sacramentos e Exercício Amoroso da Disciplina. Porém, não raro, se vê muita fraqueza no
último item, seja por negligência quanto à aplicação do instrumento ou por resistência
quanto a ser submetido ao corretivo quando necessário. Silva está certo quando assevera
que “a disciplina eclesiástica parece fora de moda”9. Existem Igrejas Presbiterianas que
funcionam com um nível de desorganização pavoroso, outras que se isolam pela
incapacidade crônica de se relacionarem com outras que pensam minimamente diferente,
mas são estranhezas alheias ao espírito presbiteriano, cujo modelo se deve evitar. Eis o
ensino de Calvino quanto a isso:

[...] Não há sociedade nem casa, por menor que seja a família, que possa
subsistir em bom estado sem disciplina, muito mais necessária será na
Igreja, que deve permanecer perfeitamente ordenada [...] assim como a
doutrina de Cristo é a alma da Igreja, assim a disciplina é como seus
nervos, mediante a qual os membros do corpo da Igreja se mantém cada
um no seu devido lugar10.

9
SILVA, Lucas Ribeiro da. Disciplina Eclesiástica na IPB. Curitiba: Editora Prismas, 2017, p.9.
10
CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã - Livro IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.106.
4

Cabe aqui pensar em algumas aplicações relacionadas à reflexão acima. Apenas


duas para ser econômico nas ponderações. Primeira, a heresia e a anarquia são dois
venenos mortíferos para a unidade da Igreja. Heresia e anarquia frequentemente
conduzem a rupturas no tecido eclesiástico, um dos pecados mais graves mencionados
exaustivamente nas Escrituras. A clássica e irretocável definição de John Owen (1616-
1683) merece ser mencionada: “O cisma, pois, aqui descrito pelo Apóstolo e por ele
censurado, consiste (e aqui está a definição vital) de diferenças e conflitos infundados,
entre os membros de uma igreja particular, contrários àquele exercício de amor, da
prudência e da indulgência que se requer que eles exerçam entre si e uns para com os
outros”11. Lloyd-Jones replica a definição de Owen assim:

Nos termos do esboço da definição do Apóstolo Paulo, especialmente na


Primeira Epístola aos Coríntios, cisma é uma divisão entre membros da
verdadeira Igreja visível acerca de questões não são suficientemente
importantes para justificarem uma divisão [...] É a divisão entre pessoas que
estão de acordo em pontos essenciais e centrais, mas que se separam por
questões secundárias e menos importantes12.

Segunda, a heresia e a anarquia ao quebrarem a unidade da Igreja provocam um


estrago ainda maior, o atrofiamento do crescimento numérico e espiritual do Corpo de
Cristo. É interessante lembrar que em todos os processos reformistas da história na era
protestante, desde o século XVI até agora, houve divisões imperiosas e justas que
culminaram com o avanço das fronteiras do reino de Deus. Tais rompimentos não devem
ser considerados cismas porque as razões que fundamentaram tais situações não foram
provocadas por causas pecaminosas. Em tais casos, veio sobre os reformadores fiéis a
bênção de Deus, muitas vezes até numa medida superlativa, tal como se deu naqueles
dias antigos – “Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo
salvos” (At 2.47b).
Ao descrever o estado caótico dos seus dias, Lloyd-Jones acentuou que o mundo
estava sem freios, abusando escandalosamente da própria liberdade, tanto nas suas
crenças quanto nos seus relacionamentos. Ele escreveu que “isto é parte da punição de
Deus. Quando a humanidade não dá ouvidos a Deus, não ouve Seus apelos e rejeita Suas
ofertas, então, Deus começa a punir, e uma das punições é a de retirar Suas restrições”13.
O mais grave de tudo isto é que a Igreja não está imune de ser maculada na sua santidade
por tal espírito mundano. Swindoll conclui a sua análise eclesiológica com um diagnóstico
doloroso e com um desafio comovente:

Vivemos em uma época perigosa, selvagem, sombria. Não é de admirar que


o mundo tenha se perdido. Somente a cruz de Cristo se interpõe entre o
abismo da destruição e a vida de bilhões de pessoas suspensas à beira da
ruína. E quem é o mensageiro dessa cruz? A Igreja14.

Belém (PA), 04 de agosto de 2023 – Pr. João Leal Eiró da Silva.

11
LLOYD-JONES, D. M. Os Puritanos – suas origens e seus sucessores. São Paulo: PES, 1993,
p.91.
12
_________________ Discernindo os tempos. São Paulo: PES, 1994, p. 269.
13
_________________ Uma nação sob a ira de Deus. 2ª ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p.215.
14
SWINDOLL, Charles R. A Igreja Desviada: Um chamado urgente para uma nova reforma. São
Paulo: Mundo Cristão, 2012, p.290.

Você também pode gostar