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Estado eficiente: ‘São

privilégios que teríamos


vergonha de defender’,
diz economista sobre
penduricalhos
Ana Carla Abrão, especialista no
setor público, defende uma
reforma administrativa que revise
carreiras, faça avaliação de
desempenho e acabe com os
‘penduricalhos’

Ana Carla Abrão, especialista em gestão pública e


ex-secretária da Fazenda de Goiás — Foto: Edilson
Dantas/Agência O Globo

Para ela, o caminho é rever carreiras, ter


avaliação de desempenho, além do
combate aos supersalários.

Quais os pontos que a reforma


administrativa deve tratar?

O primeiro ponto é a racionalização do


número de carreiras e isso vale para os
níveis federal, estadual e municipal.
Precisamos reduzir o número de
carreiras e a complexidade da máquina
pública brasileira, em função dessa
fragmentação de carreiras. Hoje, há
carreiras com excesso de trabalhadores
e outra muito correlata com escassez de
força de trabalho. Você tem que abrir o
concurso porque não existe essa
mobilidade.

Outra distorção é que uma carreira está


sempre competindo com outra no
atendimento às suas demandas. Uma
carreira consegue um aumento e isso
tem um efeito dominó. Acaba gerando
um inchaço, embora a sensação das
pessoas seja de que não há gente
suficiente para atender, porque essa
alocação de pessoas não é a melhor
possível, não é a mais eficiente.

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Republicanos entraram no governo

É a primeira coisa a se fazer, e isso não é


simples. Tem que negociar com muitas
categorias, com servidores que acham a
sua carreira a mais importante.

Qual o segundo ponto?

O segundo aspecto é a avaliação de


desempenho. Tem que regulamentar o
artigo 41 da Constituição (que trata da
estabilidade e da avaliação de
desempenho). Ele prevê a demissão por
baixo do desempenho, só que esse
artigo não foi regulamentado para
definir o que é baixo desempenho, como
é que esse desempenho é medido e as
formas de provar que, de fato, o
servidor tem baixo desempenho para
permitir a sua demissão de forma justa,
sem perseguições nem
apadrinhamento.

É importante para diferenciar os


servidores pelo mérito. Isso tem efeitos
negativos na motivação do servidor,
porque aquele que trabalha muito e
aquele que não trabalha acabam
ganhando a mesma coisa. Vários países,
não por acaso aqueles onde o serviço
público é mais bem avaliado, têm
modelos de avaliação de desempenho
muito claros.

Isso permite que gestores públicos


possam fazer o desligamento das
pessoas que não que têm o
desempenho adequado. Hoje, eu não
posso desligá-las mesmo que elas
reiteradamente façam mal o serviço.

E como resolver a questão dos


supersalários?

Temos que tratar dos penduricalhos,


das distorções que existem aos montes,
menos no governo federal, mas ainda no
governo federal. Mas muito em estados
e municípios e fortemente no Judiciário
e também no Legislativo, que são férias
de 60 dias, aposentadoria compulsória
remunerada como penalidade, licença
para concorrer a cargo público de forma
remunerada, progressões automáticas,
tudo isso precisa ser eliminado.

São privilégios que teríamos vergonha


de defender. O próprio servidor teria
vergonha de defender. Isso é um bom
parâmetro para dizer que não pode
acontecer, que não é aceitável num país
tão desigual.

Como envolver o Judiciário e o


Legislativo na reforma?

Esse talvez seja o maior desafio, porque


seriam os únicos dois aspectos que
ensejariam mudança constitucional. O
primeiro é o Judiciário (que tem
autonomia garantida na Constituição) e
o segundo são os entes federados,
estados e municípios. Nos entes,
quando o estado ou município pedir um
aval para empréstimo, o Tesouro
poderia exigir como condicionante a
reforma administrativa.

Presidente Lula na ONU

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78ª sessão da Assembleia Geral


acontece na sede das Nações Unidas
em Nova York, Estados Unidos

No caso do Judiciário, acredito que até


uma mudança constitucional seria
questionada. O maior desafio, hoje, é
fazer uma reforma no Judiciário, onde
se concentram várias distorções.
Depende do próprio Judiciário se
convencer da necessidade da mudança.

Logo depois da aprovação da Reforma


da Previdência (2019), o então
deputado Rodrigo Maia tinha a intenção
de fazer uma reforma no Legislativo e
havia uma articulação na época para o
próprio Judiciário começar a fazer essa
discussão internamente.

Essa mudança no Judiciário só se faz


por meio do convencimento dos outros
poderes. Com esse processo iniciado,
as distorções vão ficando mais claras.
Mas é uma questão que só se resolve
por meio do diálogo, da pressão social e
de uma articulação política.

O governo está no caminho certo?

É o caminho que temos defendido do


ponto de vista técnico e acadêmico:
atuar com um conjunto de ações que
não necessitam de uma grande reforma
constitucional. Não adianta querer virar
a mesa. É um assunto que exige
maturidade e, para isso, tem que
dialogar, discutir em um processo de
convencimento. Pelo que tenho
acompanhado, o governo tem ido nessa
direção.

Não vamos ter uma reforma mais


profunda então?

Depende do que você chama de reforma


profunda. Eu acho que se conseguirmos
revisar e reestruturar as carreiras já é
uma reforma relevante. Porque tem
gente que acha que reforma profunda é
acabar com a estabilidade. Não tenho a
menor dúvida de que o governo não vai
fazer isso.

As cidades mais caras do mundo


para se viver, em 2023

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Agora, reestruturar carreiras e começar


a mudar o modelo de avaliação de
desempenho, para mim, é uma reforma
profunda. Pelas declarações que temos
ouvido da ministra (Esther Dweck, da
Gestão e Inovação) e do próprio ministro
(da Fazenda, Fernando) Haddad mais
recentemente, esses temas estão na
pauta.

É uma transformação profunda que a


gente precisa começar com essas ações
(o governo quer reduzir o número de
carreiras de 150 para 20 ou 30). Do
ponto de vista legislativo, nem são tão
complicadas, mas precisam de diálogo,
de construção e de implementação.

Acha possível reduzir o gasto com


funcionalismo?

Com a reforma, vamos ganhando


eficiência e poderemos precisar de
menos servidores do que temos hoje.
Poderemos criar condições de capacitar
esse servidor, implementar processos
mais digitais, mas não é uma pauta
fiscal. Quando se começa a discussão
como uma pauta fiscal, cria-se uma
enorme resistência por parte do próprio
corpo dos servidores, porque fica
parecendo que o ajuste fiscal vai ser
feito em cima dos salários.

E não se trata disso. Precisamos investir


na máquina pública para ela ser mais
digital, dar mais instrumentos de
trabalho para o servidor e garantir que
ele está capacitado para prestar o
melhor serviço. Isso hoje não existe
porque o volume de recursos que é
consumido para despesa de pessoal
não deixa margem.

A nossa máquina pública tem baixa


produtividade?

Não existe estudos sobre a


produtividade do setor público. Mas,
quando olhamos a nossa produtividade
total, que está estagnada nos últimos
30 anos, é muito difícil não imaginar que
isso tem uma participação relevante do
setor público puxando essa
produtividade para baixo.

Outra evidência é a constante elevação


do número de servidores na máquina
pública. Se a gente quiser aumentar a
produtividade da economia brasileira,
primeiro precisamos ter no setor público
uma alavanca de aumento de
produtividade.

Como a experiência internacional


pode ajudar?

Primeiro, mostrando que as reformas


são possíveis. A maior dificuldade
quando se fala de reforma
administrativa é que as pessoas não
querem nem começar a discutir,
dizendo que não vai dar certo. A
experiência internacional mostra que
outros países, que têm dificuldades
políticas como o Brasil, conseguiram.

A segunda é que os resultados são


reais. Reino Unido, Canadá, Austrália,
Portugal e Chile são países em que,
após a reforma, a qualidade do serviço
público melhorou e a quantidade de
servidores diminuiu. Temos exemplo
aqui também, como Espírito Santo e Rio
Grande do Sul. Portanto, é possível.

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