Você está na página 1de 9

f ~"

!
I
i

II~'fi:
,
I ," •

i
1
---
Mia Couto
VOZES :'~~i
"

ANOITECIDAS '..

, ,

f
i

i
j"-r'. ,,#[ I

o último aviso
do corvo falador
Foi ali, no meio da praça, cheio da gente ~i-
chando na cantina. Zuzé Paraza, pintor refôt-
mado, cuspiu migalhas do cigarro «mata-rátos».
Depois, tossiu sacudindo a magreza do seu todo
corpo. Então, assim contam os que viram, ~1e
vomitou um corvo vivo. O pássaro saiu intett·()
das entranhas dele. Estivera tanto tempo lá den-
tro que já sabia falar. Embrulhado nos cuspes;
ao princípio não parecia. A gente rodou à vb1ta
do Zuzé, espreitando o pássado caído da sUá
tosse. O bicho sacudiu os ranhos, levantê.>tiri
bico e, para espanto geral, disse as palavras. Sem
boa pronúncia, mas com convicção. Os presentes
perguntaram:
- Está falar, o gajo? 'I ,;

Riram-se, alguns. Mas a voz das mulheres


interrompeu-lhes:
-- Não ria11l-se.
Zuzé Paraza aconselhou: J3
MIA COUTO ________ VOZES ANOITECtbAs

~ Isto não é um pdssaro qualquer. S bom no ano corrente, cinquenta escudos; comUrtlei-
ter respeito. ção com anos transactos, cento e einqUeiltA:
- Ei, Zuzé. Traduza ld o discurso dele. Você mortos fora de prazo, duzentos e cinqtie~td ..
deve saber o dialecto do corvo. E aqui entra na história Dona Candida, trlti-
- Com certeza, sei. Mas agora não, agora não lata de volumosa bondade, mulher sem inimigo.
quero traduzir. - Já centro das atenções, acres- Recém-viúva, já ex-viúva. Casou rápido seguriClit
centou: - Esse corvo é dono de muitos segredos. vez, desforrando os destemperos da ausência.
E arrumando a ave no ombro esquerdo, reti- Quando recasou, escolheu Sulemane Atna(b~i
rou-se. Atrás ficaram os comentários. Agora já comerciante indiano da povoação. Não tinhá p~~-
entendiam os ataques de tosse do pintor. Era sado tempo desde que morrera Evaristo Mü-
um pedaço de céu que estava-lhe dentro. Ou tal- changa, seu primeiro marido. .
vez eram as penas a comicharem-Ihe a garganta. Mas Candida não podia guardar a vida dela.
As dúvidas somavam mais que as respostas. Seu corpo ainda estava para ser mexido, podid
- Um homem pode parir nos pulmões? até ser mãe. Verdade é que, nesse intervdto,
-Dar parto um pdssaro? Só se o velho nunca foi muito viúva. Era uma solitária ~e àd-
namorava as corvas ld nas drvores. dente, não de crença. Nunca abrandou de s~r
- Vão ver que é a alma da mulher falecida mulher. .,
que transferiu no viúvo. _ Casei. E depois? Preciso explicar o qUê?
No dia seguinte, Zuzé confirmou esta última E nestas palavras, Dona Candida começ~u
versão. O corvo vinha lá da fronteira da vida, sua queixa para Zuzé Paraza. Quando se sbUbe
ninhara nos seus interiores e escolhera o mo- solicitado, o adivinho até adiantou a data ~a
mento público da sua aparição. consulta. Nunca tinha chegado uma mulata. ()s
Os outros que aproveitassem obter informa- préstimos de Zuzé nunca tinham sido cháll1àdtis
ções dos defuntos, situação e paradeiro dos ante- tão acima.
passados. O corvo, através da sua tradução, res- _ Não sou qualquer, Sr. Paraza. Como é qUê
ponderia às perguntas. Os pedidos logo acorre- me sucede uma coisa dessas?
ram, numerosos. Zuzé já não tinha quarto, era A gorda senhora explicou suas aflições: d se-
gabinete. Não dava conversa, eram consultas. gundo casamento decorria sem demais. Até qUe
Prestava favores, adiava as datas, demorava o novo marido, o Sulemane, passou a sofrer de
34 atendimentos. Pagava-se com tabela: morri dos estranhos ataques. Aconteciam à noite, nos iDo- J$
MIA COUTO VOZES ANOITECiDAS

mentos em que preparavam namoros. Ela tirava Paraza, intrigado, parece ainda duvidar.
o soutiã, o Sulemane chegava-se, pesado. Era - Matou o cabrito?
então que aparecia o feitiço: grunhidos em lugar
-Matei.
da fala, babas nos lábios, vesgueira nos olhos.
Sulemane, confessava ela, o meu Sulemane salta
_ O bicho gritou enquanto a senhora caU-
da cama e assim, todo despido, gatinha, fareja, tava?
esfrega no chão e, por fim, focinha no tapete. - Gritou, sim.
Depois, todo suado, o coitadinho pede água, - E que mais, Dona Candida?
acaba um garrafão. Não fica logo-logo o mesmo: - Fui ao rio lavar-me da morte dele. Leva-
demora a recuperar. Gagueja, só ouve do direito ram-me as viúvas, banharam comigo. Tiraram
e adormece de olhos abertos. A noite inteira, um vidro e cortaram-me aqui, nas virilhas. Dis-
aqueles olhos tortos a mentir que olham, é um seram que era ali que o meu marido dormia.
horror. Ai, Sr. Zuzé, me salve. Sofro de mais, Coitadas , se soubessem onde o Evaristo dor-
até tenho dúvidas de Deus. Isto é obra de Eva- mia ...
risto, maldição dele. Éramos felizes eu e Sule- - E o sangue saiu bem?
mane. Agora, nós ambos já somos três. Meu _ Hemorragia completa. As Vluvas viratrt.
Deus, por que não esperei? Por que ele não me Pelo sangue disseram que me entendia bem com
deixa? ele. Não aesmenti, preferi assim.
Zuzé Paraza cruzou as mãos, acariciou o Zuzé Paraza meditou, teatroso. Depois, sol-
corvo. Tinha suas suspeitas: Evaristo era de raça tou o corvo. O bicho esvoaçou e pousou no om-
negra, natural da região. Dona Candida, com bro amplo da Candida. Ela encolheu as carnes,
certeza não cumprira as cerimónias da tradição arrepiada das cócegas. Espreitou o animal, des-
para afastar a morte do primeiro marido. En- confiada. Olhado assim, o corvo era feio por de
gano seu, ela cumprira. mais. Quem quiser apreciar a beleza de um pás-
- Cerimónias completas? saro não pode olhar as patas. Os pés das aves
- Claro, Sr. Paraza. guardam o seu passado escamoso, herança dós
- Mas como? A senhora assim mulata da rastejantes lagartos. . ,
sua pele, quase branca da sua alma? O corvo rodou no poleiro redondo da mulata.
- Ele era preto, o senhor sabe. Pedido foi _ Desculpe, Sr. Zuzé: ele não me vai cagat
36 da família dele, eu segui. em cima? 37

• fiiJb
MIA COUTO VOZES ANOITECIDAS

I I - Não fale, Dona Candida. o bicho precisa - O falecido, Dona Candida, está pedir unia
concentrar. mala cheia com roupa dele, dessa que ele ctJs-
Por fim, o pássaro pronunciou-se. Zuzé es- tumava usar.
cutava de olhos fechados, ocupado no esforço da - Roupa dele? Já não tenho. Eu não disse
tradução. que pratiquei essas vossas cerimónias? Rasguei,
- Que foi que disse ele? esburaquei a roupa, quando ele morreu. Foi
- Não foi o pássaro que falou. Foi o Varisto. assim que me mandaram. Disseram que devia
- Evaristo?- desconfiou ela. - Com aquela fazer buracos para a roupa soltar o último sus-
voz? piro. Sim, eu sei: se fosse agora não cortava
nada. Aproveitava tudo. Mas naquele tempo,
- Falou através do bico, não esqueça.
Sr. Paraza ...
A gorda ficou séria, ganhando créditos.
- E uma maçada, Dona Candida. O defunto
- Sr. Zuzé aproveite a ligação para lhe pe- está mesmo precisado. Nem imagina os frios qUe
dir ... peça-lhe ... dão lá nos mortos.
Arrependendo-se, Dona Candida desiste do A mulata ficou parada, imaginando Evaristo
intermediário e começa ela de berrar no corvo tremendo, sem amparo dos tecidos. Apesár dás
poleirado no seu ombro: maldades que ele causara, não merecia tal vlli~
- Evaristo, me deixa em paz. Faça-me o gança. Remediou os ditos: havia de rouba~ as
favor, deixa-me sozinha, sossegada na minha roupas do Sulemane e trazer tudo num embrii-
vida. lho escondido.
O pássaro, incomodado com a gritaria, sal- - O Sulemane não pode saber disto. Meu
tou do poiso. Paraza impôs a ordem: Deus, se ele desconfia!
- Dona Candida não vale a pena agitar. - Fica descansada, Dona Candida. Ningtiém
Viu? q pássaro sustou. vai saber. Só eu e o corvo.
A consultante, esgotada, chorou. E, no último instante, antes de sair, a gordâ:
- A senhora escutou o pedido do falecido? - Como será que o Evaristo pode aceit4t,
Com a cabeça, ela negou. Ouvira só o corvo, naquele ciúme que levou para o outro mwidd,
igual aos demais, desses que saltitam nos coquei- como é que pode aceitar a roupa do meU.nove>
38 ros. marido? 39
-....··~i,': MIA COUTO VOZES ANOITECtDÁS

, , - Aceita. Roupas são roupas. O frio manda via ter ficado descuecado. O seu guarda-fatoéHi
, mais que ciúme. agora um guarda-nada. . .
-' Tem a certeza, Sr. Paraza? Vestido das aldrabices da sua invenção, zUzé
- Experiência que tenho é essa. Os mortos Paraza puxou a garrafa de xicadjú. Para festejáf,
ficam friorentos porque são ventados e chuvis- somou mais de dez copos. Foi então que o
cados. Daí que ganham inveja da quentura dos álcool começou a aldrabar a esperteza dele, tam-
vivos. Vai ver, Dona Candida, que essa roupa vai bém. Havia uma voz que teimava de dentro:
acalmar as vinganças do Evaristo. - Essas roupas são minhas próprias, não foi
E a gorda mulata confessou o seu receio, nem ninguém que deu, não vieram de nenhuma parte.
bem com os mortos nem bem com os vivos: São minhas!
- O meu medo, agora, é o Sulemane. Ele E assim, convencido que era dono dos enfei-
mata-me, a mim e ao senhor. tes, decidiu sair, gingar fora. Parou na cantma,
Zuzé Paraza levantou-se, confiante. Colocou mostrou as vaidades, casacado, gravatadd. Á§
a mão no braço da cliente e acalmou-a: vozes em volta encheram-se de invejas:
- Estive assim pensageiro, Dona Candida. - Aquela roupa não é dele. Parece já vi üm
E encontrei a solução. A senhora é que vai des- alguém com ela.
cobrir o roubo e comunicar o seu marido. Pronto, E os presentes, lembrando, chegaram ao
foi um ladrão qualquer, há tantos deles aqui. dono: eram de Sulemane Amade. Exactamettte,
eram. Como foram parar aquelas roupas rio
Uma semana depois, chegou uma mala Zuzé, sacana, telefonista das almas? Roubou, d
cheiinha. Calças, camisas, cuecas, gravatas, tudo. gajo. Esse corvciro entrou na casa do Sulemarie.
Uma fortuna. Zuzé começou de experimentar o E partiram a avisar o indiano.
fato castanho. Estava largo, medida era de um Desconhecendo as manobras, Zuzé continuoU
comerciante, homem de esperar sentado, comer exibindo suas despertenças. O corvo acompanha-
bem. Enquanto ele, um pintor, puxava tamanho va-o, grasnando-lhe em cima. Ele, desendireitáH-
menor. Era tão magro que nem pulgáS nem do-se, fazia o coro.
piolhos lhe escolhiam. Foi então que, no cruzamento da caritiha,
Procurou na mala uma gravata a condizer. surgiu Sulemane, espumando fúrias. AvançoU ho
Havia mais de dez. Junto com cuecas .de perna pintor e apertou-lhe o pescoço. Zuzé balançava
40 comprida, peúgas sem remendos. Sulemane de- dentro do fato largo. 41
MIA COUTO -------- VOZES ANOITECíbAs

- Onde ê que tiraste este fato, ladrão? - Sulemane se você mataste o corvo, ê.Htb
O pintor queria explicar mas desconseguia. mal com a sua vida.
Em volta, o corvo saltitava, tentando pousar-lhe - Estou mal, o caraças! Quem é que acrediUi
na cabeça instável. Quando o indiano aliviou, num corvo a falar com espiritos?
Zuzé murmurou: Zuzé a sangrar do nariz respondeu, com gHi-
- Sulemane, não me mate. Não roubei. Esta vidade:
roupa fui dado. - Se você num acredita, deixa. Mas esse
O indiano não abandonara violências. Mudara corvo que deste porrada vai-lhe trazer desgraça.
de táctica: do pescoço para pontapés. Zuzé pu- Má lembrança do Zuzé Paraza. O indiano re-
lava em concorrência com o corvo. começou a pancadaria. Duas porradas foram
- Quem te deu a minha roupa, grande aldra- dadas, três falharam. O pintor diminuía resis-
bão? tência. O álcool no seu sangue atrapalhava-lhe ô~
- Pdra de me dar pontapés! Vou explicar. desvios. Até que um soco derruba Zuzé. Desani-·
Zuzé Paraza aproveitou uma trégua e atirou, parado, cai em cima do corvo. No meio da poeità
certeiro: Zuzé Paraza retira o pássaro morto debaixo de
- Foi a tua mulher, Sulemane. Foi Dona si. Ergue o corvo mágico e aponta-o para o Ih-
Candida que me deu essa roupa. diano.
- Candida deu-te? Mentira, sacana. - Mataste o pássaro, Sulemane! Estds lixado.
Choveram murros, pontapés, bofetadas. A Vais ver que o que te vai acontecer! Hd-des gatf.
assistência, em volta, aplaudia. nlzar como um porco!
- Fala verdade, Paraza. Não me vergonhes Então, deu-se o incrível. Sulemane começa as
com essa história da minha mulher. tremuras, grunhidos, roncos, babas e espUma.
Ma.s o velho pintor não falava, demasiado Cai sobre os joelhos, rasteja, revolve-se nás
ocupado em se desviar das porradas. Uma dessas areias. O povo aterrado foge: a maldição do Zuzé
bofetadas que voava na direcção do nariz do ficara verdade. Sulemane, convulso, parece utrlâ
Paraza foi embater no pássaro. Arremessado, o galinha a quem se cortou a cabeça. Por fim, pátd,
corvo volteou no chão, asa partida, esperneando cansado dos demónios que o sacudiram. Ztizé
os finais. Todos pararam à volta da agonia da sabe que a seguir ele vai sentir sede. Aproveita
42 ave. As vozes aflitas: e ordena: 41
MIA COUTO

- Vais ficar com sedeí seuporco-e$pinho!


Vais chorar por dgua!
Provas do poder de Zuzé estavam ali: o Sule-
mane joelhado suplicando água, chorando para
que matassem a sede que o matava.
A notícia, como um relâmpago, correu a po-
voação. Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo.
Dono de bruxezas, realmente. No dia seguinte,
todos levantaram cedo. Correram a casa de Zuzé
Paraza. Todos queriam ver o pintor, todos que-
riam-lhe pedir favor, encomendar felicidades.
Quando chegaram, encontraram a casa vazia.
Zuzé Paraza tinha partido. Procuram no hori-
zonte vestígios do adivinho. Mas os olhares mor-
reram nos capins do longe onde os grilos se
calam. Revistaram a casa abandonada. O velho
tinha levado todas as coisas. Ficara uma gaiola
pendurada no tecto. Baloiçava, viúva, hóspede
do silêncio. Com o medo crescendo dentro, os
visitantes saíram para as traseiras. Foi então
que, no pátio, viram o sinal da maldição: um
pássaro morto, desenterrado. Sobre a vida quieta
soprava uma brisa que, aos poucos, arrancava
e lançava no ar as penas magras do corvo fa-
lador.
Aceitando o aviso, os habitantes começaram
a abandonar a povoação. Saíram em grupos uns,
sozinhos outros, e por muitos dias vaguearam
errantes como as penas que o vento desman-
44 chava na distância.

Você também pode gostar