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O Globo, 4.8.2016

Medalha de bronze para empreiteiras

Jason Tércio
Escritor e jornalista

Com as Olimpíadas, as vísceras e os vícios do Brasil estão expostos


ao mundo inteiro: lentidão, falta de espírito prático, mau
planejamento, gestão incompetente, mania de improviso e
desperdício de dinheiro público. Mas nem sempre fomos assim. O
país que construiu sua capital em três anos, agora não consegue
construir uma vila em quatro sem precisar de reparos de última
hora.
Brasília começou a ser construída em março de 1957 numa região
totalmente deserta, sem água encanada, sem eletricidade,
iluminação à base de gerador, a mais de mil quilômetros do Rio de
Janeiro, máquinas e materiais transportados por caminhão em
precárias estradas de terra (às vezes avião), chuvas diárias no
mínimo quatro meses ao ano.
No dia da inauguração, 21 de abril de 1960, estavam prontos os
principais palácios, com arquitetura sofisticada, o Congresso
Nacional, a maioria dos ministérios, quase três mil apartamentos de
alto padrão, um canal de TV, um lago artificial, 17 viadutos, duas
escolas, um hospital, clubes, restaurantes, dois grandes hotéis,
bancos, linha telefônica, aeroporto, 300 quilômetros de energia
elétrica subterrânea. E ao mesmo tempo se organizou a mudança de
parlamentares e milhares de funcionários públicos.
Quase 50 anos depois, em outubro de 2009, o Brasil foi escolhido
para sediar as Olimpíadas. As obras ficaram a cargo das construtoras
mais experientes no país, equipadas com tecnologia de ponta e
modernas máquinas de construção pesada, todos os materiais
disponíveis, facilidade de transporte, dinheiro à vontade e sete anos
de prazo para construir tudo.
Às vésperas do início dos Jogos, faltam acabamentos numa Vila
Olímpica (quatro anos em obras) com 31 prédios comuns de 17
andares, um mercadinho e um refeitório. Inaugurou-se um
Velódromo (dois anos de obras) inacabado. A linha 4 do metrô (seis
anos de obras) com 16 quilômetros de extensão, não está pronta,
apesar do custo ter quase dobrado, de R$ 5 bilhões para quase R$ 10
bilhões.
Na Copa do Mundo não foi diferente. Além dos atrasos
injustificáveis, os Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia
constataram má qualidade no acabamento e falhas técnicas em
estádios, aeroportos, meios de transporte. Sem falar das obras
inacabadas e abandonadas, após bilhões de reais gastos.
É estarrecedora a quantidade de obras públicas mal planejadas e
mal executadas no Brasil, descumprindo normas técnicas
fundamentais. Os resultados são defeitos visíveis dias após a
inauguração: rachaduras e infiltração em moradias do Minha Casa
Minha Vida, buracos no elevado do Joá, defeito na cobertura do
Engenhão, rachaduras em asfalto com pouco tempo de uso,
desabamento de ciclovia por falta de previsão do impacto das ondas,
que já existiam ali muito antes da chegada de Estácio de Sá.
Provavelmente a qualidade das obras da Vila Olímpica também é
ruim. Pior para quem for morar lá depois.
É uma estranha mistura de incompetência e esperteza. A má
qualidade das obras se deve a incompetência e ao uso de materiais
baratos, para se lucrar mais. O atraso nos prazos costuma ser
deliberado para se embutirem nos contratos os famigerados aditivos
que aumentam o valor final. A licitação e contratação costumam ser
feitas por critérios mais políticos que técnicos.
Mas a responsabilidade cabe também ao poder público, que
terceirizou a fiscalização a partir do Regime Diferenciado de
Contratações, vigente desde 2011. A própria empreiteira que executa
uma obra é responsável pelo projeto e pela fiscalização, uma tarefa
que deveria ser feita pelo poder público ou entidades independentes.
Por essas e outras, a engenharia brasileira ganharia no máximo
uma medalha de bronze numa Olimpíada de obras públicas. No caso
de Brasília, houve um fator decisivo para a conclusão das obras
dentro do prazo fixado e com boa qualidade técnica. Do início ao
fim, tudo foi acompanhado pessoalmente por um líder determinado
e dinâmico, o presidente Juscelino Kubitschek, que ia quase toda
semana supervisionar o andamento dos trabalhos e exigir o
cumprimento do cronograma.
Lá no céu ele deve dar boas gargalhadas quando ouve Lula em sua
egotrip dizer que foi o melhor presidente brasileiro de todos os
tempos.

A Lei 12.462, de 2011 criou o Regime Diferenciado de Contratações Públicas para a


Copa e Olimpíadas, mas acabou sendo ampliado para outras áreas, inclusive do PAC.
No art. 9º, § 1º essa lei admitiu o regime de “contratação integrada” que permite à
empreiteira “elaboração e desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a
execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a
pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega
final do objeto”.
O controle da execução e da fiscalização da obra, qualidade dos materiais empregados
e o cronograma de execução ficaram com a empreiteira.
Como escreveu Rafaela Fonseca Aparecida, “a transferência do planejamento e da
concepção técnica da obra ou serviço de engenharia do contratado também confere
dificuldades técnicas no acompanhamento e na fiscalização da obra pela administração
pública, em razão do domínio da técnica construtiva pelo contratado, criando também
condições propícias para toda espécie de distorções e desvios.” (“O regime
diferenciado de contratação e governança pública no Brasil”, dissertação de
Mestrado).
o acompanhamento e a fiscalização deveriam ser feitos por um representante da
Administração Pública.

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