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Cuidar de crianças Saudades: um estudo de cartas

escritas por alunos de uma classe


do quarto ano primário desejando
melhoras a um colega

É a vez dele de cuidar do bebê. Ele está irritado. O presente estudo trata de vinte e sete cartas escritas por
Diz, "Nunca tenho tempo para nada". alunos de uma classe do quarto ano primário para seu colega Ste-
O bebê também está de mau humor. phen, quando este esteve internado recuperando-se de uma gra-
Ele dá ao bebê uma mamadeira de suco e o senta bem no ve osteomielite.
fundo de uma poltrona bem grande. A doença surgiu após um misterioso acidente envolvendo
Senta-se em outra poltrona e liga a televisão. um automóvel. O jovem Stephen, segundo depoimento do pró-
Assistem juntos a Um estranho casal. prio e uma breve nota no jornal local, estava voltando sozinho
para casa ao anoitecer, no início de dezembro. Desceu da cal-
çada, preparando-se para atravessar a rua, e foi atingido lateral-
mente por um automóvel em baixa velocidade, não com muita
força, mas com força suficiente para derrubá-lo. O motorista,
um homem de idade não determinada, parou e desceu do veícu-
lo para ver se o menino se machucara. Averiguando que não fora
o caso, seguiu seu caminho. Na verdade, o menino machucara
o joelho, mas não contou o acidente a seus pais, por vergonha
ou por achar que de alguma forma fora culpa sua. O joelho, sem
tratamento, infeccionou; a bactéria da osteomielite entrou pelo
ferimento; o menino ficou gravemente doente e foi internado.

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Após algumas semanas de muita preocupação por parte de mé- ruas são arborizadas, com árvores frondosas, e as casas são, em
dicos, família e amigos, Stephen se recuperou, graças em parte a sua maioria, residências de classe média, espaçosas e confortá-
uma medicação recém-descoberta, a penicilina, e teve alta. veis, mas sem ostentação. Os jardins são, em sua maioria, modes-
Na época da internação de Stephen, seus pais puseram o tos, com algumas exceções. Têm em geral um gramado, muitas
seguinte anúncio no jornal, na tentativa de encontrar o moto- árvores, arbustos e canteiros de flores. Em sua maior parte, as
rista do carro. O título do anúncio era PAIS TENTAM ENCONTRAR crianças moram perto e vão à escola a pé, sozinhas ou com ami-
MOTORISTA DE AUTOMÓVEL ENVOLVIDO EM ACIDENTE. 0 corpo gos, pelas calçadas bem conservadas, porém com rachaduras em
do anúncio dizia: alguns pontos, devido às raízes das árvores maiores. O próprio
Stephen, juntamente com seus vizinhos Carol e Jonathan, mora
Na primeira semana de dezembro, Stephen, filho do sr. e da sra. a um quarteirão da escola. Na esquina da rua onde fica a escola
B., da rua 94 N ., estava na esquina das ruas Elm e Crescent, no fi- há uma venda que pertence a uma senhora corpulenta com um
nal da tarde, quando foi atingido levemente por um veículo cujo ar um pouco ameaçador. O estabelecimento vende balas e uma
motorista desceu para examinar o menino e falar com ele sobre o pequena variedade de alimentos, e é frequentado pelas crianças
acidente. Depois disso, cada um seguiu seu caminho. depois da aula. Em frente à loja, há uma rua que desce na dire-
Os pais do menino gostariam de conversar com o motorista do ção de um rio raso em que as crianças não podem nadar devido
veículo e pedem que ele entre em contato. aos efluentes das fábricas a montante. O edifício da escola está
cercado por um grande playground, sem equipamentos como
Não receberam resposta. balanços e trepa-trepas. As salas de aula são bem iluminadas,
Após as férias de Natal, os colegas de Stephen voltaram às com luz natural entrando por amplas janelas.
aulas. A professora das crianças, srta. F., pediu, como tarefa de
classe, que os alunos lhe escrevessem desejando melhoras. Ela
então fez poucas, porém cuidadosas, correções e mandou as car- APARÊNCIA E FORMATO GERAL DAS CARTAS
tas para Stephen. Era um exercício dirigido, claramente feito
em sala de aula, a julgar pelas características comuns aos textos, As cartas foram escritas em papel pautado para elaboração
que tinha como objetivo ensinar as crianças a redigir uma carta. de exercícios, de dois tamanhos. A maioria das crianças emprega
o papel menor, do tipo carta, de 216 por 279 milímetros, sendo
que quatro optam pelo tamanho maior, do tipo ofício, de 216 por
A ESCOLA 356 milímetros. Apesar de ter sido fabricado há sessenta anos e
ser de baixa gramatura, o papel conservou a lisura, alvura e tex-
A escola onde as cartas foram escritas ficava num edifício tura, e as letras ainda são claramente legíveis. Alguns alunos em
grande, de tijolinhos, com turmas do jardim de infância à quarta particular escreveram com força, marcando as letras no papel.
série do ginásio, localizado num bairro residencial agradável. As As cartas são todas escritas a tinta, que é, ora preta, ora azul, ora

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mais escura, ora mais clara, ora com linhas mais espessas, ora ga" (três meninas e dois meninos); "Seu chapa" (quatro meninos);
com linhas mais finas . "Atenciosamente" (um menino); "Um abraço" (um menino); e
A letra cursiva dos alunos é em geral boa, i.e., a inclinação "Seu amigão" (um menino, Jonathan, muito amigo de Stephen).
para a direita é consistente, a maioria das letras toca na linha Deve-se notar que apenas os meninos usam o coloquial "chapa",
inferior e tem espaçamento regular, o alto das letras não toca na enquanto quase duas vezes mais meninas que meninos empre-
linha superior etc., ainda que as variações na espessura da escrita gam "amigo(a)", um termo mais formal.
e na formação das letras, assim como o traço vacilante, denotem as A professora incluiu, com tinta mais escura e letra menor,
mãos trêmulas e os esforços penosos de novatos em letra cursiva. algumas correções. Acrescentou vírgulas onde faltavam, princi-
Algumas maiúsculas são, assim mesmo, formadas com elegância palmente na saudação, "Querido Stephen", e no fecho, como
e bem torneadas. em "Seu (Sua) amigo(a )" e entre o nome da cidade e o do esta-
Há vinte e sete cartas no total, escritas por treze meninas e do ) e pontos de interrogação onde necessário. Corrigiu também
catorze meninos. Vinte e quatro são de 4 de janeiro, evidente- alguns erros de ortografia "felis", "treiná", "passeo", "presenti",
mente o dia em que a professora deu à classe essa tarefa; duas "Estamos cum saudades de você". Num caso ela teve, surpreen-
são de 5 de janeiro, e uma de 8 de janeiro, indicando que os dentemente, que corrigir a ortografia do nome de uma menina,
alunos em questão estavam ausentes no dia em que o exercício reduzindo "Arilene" a "Arlene". Acrescentou duas palavras que
foi passado. faltavam. Vários erros deixaram de ser corrigidos. De um modo
Todas as cartas contêm o mesmo cabeçalho, certamente de- geral, a ortografia e a pontuação estão corretas; a professora faz,
terminado pela professora, em três linhas no canto superior direi- em média, apenas uma correção por página, em sua maioria de
to: o nome da escola; a cidade e o estado; e a data. As linhas são erros de pontuação. Ou os alunos aprenderam bem a lição ou, o
traçadas à mão, com lápis, na margem esquerda, o que fornece que é mais provável, estas são cópias passadas a limpo de rascu-
um recuo uniforme para o início de cada uma delas, com exce- nhos corrigidos anteriormente.
ção da carta de 8 de janeiro - este retardatário claramente não Vinte e duas crianças assinaram o nome inteiro. Um assina
recebeu as mesmas instruções que os outros, ou não as entendeu "Billy J." e os outros quatro usam apenas o primeiro nome. (Por
direito - e daquelas escritas em papel do tipo ofício, que apre- razões de confidencialidade, apenas a inicial dos sobrenomes
senta uma linha impressa na margem esquerda. As linhas feitas das crianças será citada aqui.)
com ajuda de régua variam: algumas são finas e retas, outras
espessas e enviesadas, e uma termina numa curvatura na parte
inferior da página, o aluno tendo evidentemente chegado ao fi- Extensão
nal da régua antes de chegar ao final da página.
As saudações são todas iguais: "Querido Stephen". Os fe- Excluindo-se a saudação e o fecho, as cartas variam em ex-
chos variam de acordo com uma gama limitada de opções: "Seu tensão de três a oito linhas e de duas a oito frases. Nenhum dos
(Sua) amigo(a)" (cinco meninos e dez meninas); "Seu (Sua) cole- meninos escreveu uma carta com mais de cinco frases, enquan-

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to entre as meninas há cartas de seis, sete e oito frases. Apesar de tando uma brincadeira com trenó e o progresso com relação à
haver mais meninos do que meninas na turma, estas são mais mesma atividade no ano anterior: "Foi muito divertido lá na La-
comunicativas, contribuindo com oitenta e quatro linhas, con- deira do Hospital. A gente pulou um murundu e deu um saltão.
tra sessenta e seis para os meninos, e com sessenta e uma frases Este ano eu saltei mais alto do que consegui no ano passado".
contra cinquenta e três.
Nem todas as meninas, no entanto, são comunicativas. Duas
escrevem cartas com apenas três linhas e três frases. Uma é a Estrutura frasal
melancólica carta escrita por Sally citada a seguir. A segunda
carta breve, escrita por Susan B., inclui o que pode ser uma re- Nas cartas, predominam frases simples (por exemplo, "Teve
ferência invejosa a respeito de uma caixa de chocolates. De um uma guerra de bola de neve lá fora" ), sendo que em alguns casos
vemos frases complexas, contendo orações coordenadas, subor-
modo geral, a extensão e o conteúdo das cartas mais curtas pare-
dinadas, ou mesmo ambas na mesma frase.
cem indicar estados mentais com tendências depressivas e uma
certa apatia por parte de seus autores. As cartas mais longas, por
outro lado, podem ser uma indicação de temperamentos mais
Frases complexas
alegres e extrovertidos. As cartas de extensão média expressam
alternadamente um realismo tenaz (galhos partidos e bonecos
Orações coordenadas
de neve destruídos), clichês neutros (ver Maureen, a seguir), e
sentimentos e personalidade fortes (Scott dizendo "eu te arran-
A carta mais curta (duas frases) foi escrita por Peter. É o
caria da cama"). mesmo menino que traçou uma linha grossa e inacabada na
margem esquerda do papel. Ele é, entretanto, um dos poucos
que usam orações coordenadas, e ao fazê-lo emprega a adversativa
Coerência "mas", uma conjunção mais rara e interessante: "Estamos nos
divertindo muito mas sentimos sua falta".
Há uma certa tendência à descontinuidade de argumenta- Outra criança que emprega a adversativa "mas" é Cynthia,
ção: uma frase não tem relação com a precedente ou com a que uma das realistas da turma: "Fiz bonecos de neve mas eles caí-
a segue (por exemplo, "A temperatura muda o tempo todo. Mal ram todos".
posso esperar você voltar para a escola"). Susan A., outra realista, usa "só que" para modificar sua des-
Algumas cartas, contudo, demonstram um desenvolvimen- crição da terra encantada, como veremos a seguir.
to consistente e persuasivo das ideias apresentadas. Um exemplo Outras conjunções empregadas nas cartas são: "logo" (duas),
é a melancólica carta escrita por Sally, outro é a entusiasmada, "porque" (duas), e a mais comum e inexpressiva, ou neutra: "e"
e um pouco violenta, carta de Scott ameaçando "arrancar" Ste- (sete).
phen da cama, além da carta informativa escrita por Alex rela- Uma menina, Carol, emprega a conjunção porque, forman-

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do duas orações coordenadas numa carta de apenas três frases: alunos a empregar orações coordenadas e subordinadas numa
"Espero que você volte logo para a escola porque estamos com única frase, apesar de omitir palavras e de se contradizer (ver seu
saudades" e "No Ano-Novo sua Irmã [menor] dormiu lá em casa uso do verbo "pensar"): "Penso que é só para contar [si c] porque
porque seu Pai e sua Mãe e sua Irmã [mais velha] foram a uma eu não consigo mais pensar".
festa". Como ela emprega estruturas frasais mais complexas, sua Jonathan também emprega uma frase com orações coor-
carta é uma das mais longas, com oito linhas, porém com um denadas e subordinadas. Ele é mais expansivo, porém usa uma
número menor de frases (três). conjunção menos expressiva: "Espero que você tenha gostado da
A conjunção mais comum, e menos expressiva, é a aditiva caixa de chocolates e mal posso esperar você voltar para casa".
"e" (sete ocorrências), como na frase de Alex: "Foi muito diverti- Susan A. usa a perífrase com valor de conjunção adversati-
do lá na Ladeira do Hospital. A gente pulou um murundu e deu va, só que carregada de significado: "Quando acabou ficou tudo
um saltão". Uma menina, Diane, forma uma frase complexa a parecendo a terra encantada só que cheia de galhos caídos e
partir de imperativos: "Fique bom e volte logo" . quebrados". A essa frase ela pospõe outra, também de estrutura
complexa, empregando a conjunção "então" e um imperativo:
Orações subordinadas "Estamos muito tristes porque você está no hospital, então fique
bom logo".
Fora algumas orações subordinadas corriqueiras começan-
do com "Espero" (por exemplo, "Espero que você melhore") e Verbos
"Queria" (por exemplo, "Queria que você visse"), há poucos
exemplos de orações subordinadas: Alguns dos tempos ·verbais empregados pelas crianças não
Fred: "Bom, acho que é só isso que eu tenho para contar".
estão claros.
Theodore: "Ganhei do grupo que lutou contra o meu".
A respeito de um filme, Theodore escreve: "Queria que você
Alex: "Este ano eu saltei mais alto do que consegui no ano
visse". Não é possível depreender se isso significa "Queria que
passado".
você fosse ver [o filme]" ou "Queria que você tivesse visto [o
Susan B.: "O Jonathan A. me contou que mando [sic] para você
filme]".
uma caixa de chocolates muito grande".
Billy T. escreve: "Você vai comer direito, espero". Não fica
Kingsley usa duas orações subordinadas em sequência: "O
que você acha que vai ganhar de Natal?" e "Eu ganhei tudo que claro quando ou onde Stephen deveria comer direito.
Joseph A. escreve: "Espero que você se divirta". Não fica
eu queria".
claro quando ou onde Stephen deveria se divertir. Tanto Billy
Orações coordenadas e subordinadas quanto Joseph parecem haver tentado expressar o significado
contido em "esteja comendo direito" e "esteja se divertindo".
Van, o menino que admite estar sem inspiração e cuja car- O verbo mais enérgico é "arrancar".
ta é uma das mais curtas, é também, contudo, um dos poucos

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Imperativos logo reforçar a ideia com uma estrutura paralela: "Seu enfeite
de Natal não está pronto".
Os únicos exemplos de uso do imperativo (quatro, sendo que Podemos dizer que Scott também atinge um equilíbrio
um suavizado com "Por favor") aparecem nas cartas das meni- agradável, alternando, nas quatro linhas de sua persuasiva car-
nas. Isso pode representar apenas uma tendência de "comandar" ta, "aí onde você está" com "aqui onde nós estamos" e "lá em
ou de "liderar", talvez mais forte por parte das meninas, mas
cima" com "aqui outra vez", criando um movimento de vaivém
também pode ser irrelevante em termos estatísticos, dado o pe-
que tem o efeito, mais evidente neste exemplo do que nas outras
queno número de cartas nesta amostra.
cartas, de aproximar Stephen de seus colegas.
Estilo
Conteúdo
O estilo das cartas é de um modo geral informal, i.e., nem
excessivamente formal nem extremamente coloquial. Em al- Algumas cartas são prosaicas e/ou inexpressivas, enquanto
guns casos, o estilo torna-se descontraído: há dois exemplos de outras são informativas e originais, e/ou expressam a personali-
frases começando com "Bom" (ambas omitem a vírgula obriga- dade do autor de maneira mais incisiva.
tória que se seguiria). Há um verbo coloquial bastante enérgico, A carta mais prosaica de todas, possivelmente, é a de Mau-
"arrancar", na carta de Scott. Devemos notar, entretanto, ao me- reen. Inclui todas as fórmulas mais comuns de expressão de
nos uma marca de formalidade importante, comum à maioria sentimentos, lista apenas "notícias" muito gerais, é de todo con-
das crianças: podendo escolher, como parece ter sido o caso, vencional, tanto em estilo quanto em conteúdo, e não deixa
a maioria assina o nome completo no fecho da carta. Há tam- transparecer nenhum traço da personalidade da autora. Mesmo
bém dois casos em que os autores se referem a outras crianças,
sendo uma carta inquestionavelmente simpática e alegre, a sim-
e em ambos empregam o nome completo do colega referido,
patia e a alegria parecem artificiais: "Como você está? Estou com
mesmo que, devido ao contexto, Stephen pudesse deduzir sem
muitas saudades. Espero que você volte logo para a escola. Gosto
dificuldade de quem se tratava. Isso talvez seja resultado de que,
muito da escola. Nos divertimos muito na neve". A caligrafia de
num ambiente escolar, a professora use nomes completos com
tanta frequência ao fazer a chamada ou ao chamar a atenção das Maureen é arredondada, inclinando-se levemente para a direita,
crianças que, ao escrever nesse mesmo ambiente, elas incorpo- com uma exceção marcante: a palavra "eu", que aparece sempre
rem o hábito, identificando a si mesmas e aos colegas pelo nome na vertical. Não seria despropositado imaginar esses "eus", em
completo. contraste tão claro com o restante da carta, como a expressão
Duas crianças atingem momentos de elegância estilística. de uma rebeldia sublimada, um desejo reprimido de ser menos
Uma, Susan A., cria uma imagem viva e concreta, reforçada pe- conformista e obediente do que esta menina evidentemente é.
lo uso da aliteração e de um ritmo marcado: "galhos caídos e Outra carta relativamente prosaica, escrita com uma letra
quebrados". A outra, Sally, abre a carta com uma imagem po- pequena e redonda, é a de Mary. Esta é um pouco mais enfática
derosa e bastante específica - "Seu lugar está vazio" - para do que a de Maureen - "Todos estamos com muitas saudades

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de você" - e acrescenta ao menos um fato específico: "Me di- mos) com saudades" ou "eu estou (nós estamos) com muitas
verti muito brincando com meu trenó na neve". saudades", frequentemente seguida de "espero (esperamos) que
O conteúdo das cartas pode ser assim resumido seguindo as você volte logo".
duas categorias mais gerais de expressões de simpatia e "notícias": Van abre sua missiva expressando dois sentimentos, mas logo
se perde: numa caligrafia fina e trêmula, com tão pouco espaço
Expressões convencionais de simpatia entre as palavras que elas quase se tocam, encerra com "Penso
que é só para contar [si c ] porque eu não consigo mais pensar".
volte logo/ queria que você estivesse aqui Algumas letras tocam corretamente na linha inferior, outras flu-
(dezessete ocorrências em vinte e sete cartas) tuam por sobre a linha, e outras ainda atravessam a linha in-
como você está/ espero que esteja melhor (dezesseis) ferior. É possível - nesse caso, como em outros em que fica
saudades (nove) evidente certa ansiedade - que as letras não acompanhem a
experiência no hospital/ comida (quatro) linha porque a criança está tentando compensar sua inseguran-
empatia: eu sei como é (duas) ça: por medo de deixar que as letras afundem, ela as faz levitar;
por medo de vê-las flutuando, força-as para baixo, atravessando a
Notícias linha. É preciso lembrar, ao imaginarmos essas crianças apren-
dendo letra cursiva, que uma linha não é um lugar natural para
brincando na neve (nove) uma letra descansar. É uma marca conceitual, e bem fina até, e
Natal/ presentes de Natal (sete) o novato na escrita cursiva tem dificuldade em fazer que todas as
escola/ estudos (quatro) letras toquem na linha. Há, portanto, um pouco de ansiedade,
alimentação/ ato de comer (quatro) presente em algumas crianças até no próprio ato de escrever,
clima (três) que independe do que estão tentando dizer.
fazendo compras com a mãe ou com o pai (duas)
Joan é mais específica, e mais comovente, evocando a sala
cinema (duas) de aula de forma imediata: "Sentimos sua falta na nossa fileira".
animais de estimação (uma)
Ela transmite, além disso, um sentimento de solidariedade entre
Ano-Novo (uma)
as crianças daquela fileira - "nossa fileira".
a família de Stephen (uma)
Sally é ainda mais específica, e sua carta, apesar de ser uma
festa (uma)
das mais curtas, apresenta a carga emotiva mais forte, e tam-
bém mais sombria: "Espero que você esteja melhor. Seu lugar
Expressões convencionais de simpatia
está vazio. Seu enfeite de Natal não está pronto". Esta última
frase termina num ponto final. Porém, de um modo um pouco
ambíguo, ao ponto segue-se um m minúsculo, de maneira que
Saudades
não há como saber se a menina pretendia continuar a frase ou
Muitas das cartas incluem a expressão-padrão "estou (esta- começar uma nova quando diz, mais uma vez atendo-se às pers-

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pectivas mais funestas: "mas eu não acho que você vai terminar Volte logo/ queria que você estivesse aqui
ele". A função do "mas" também não é fácil de identificar. Sally
escreve com linhas finas e fracas, numa caligrafia muito peque- Lois, que consegue comprimir oito frases em seis linhas,
expressa esse sentimento duas vezes, uma no início da carta-
na. A exceção, claramente resultado de não ter compreendido
"Quando você volta?" - e outra, empregando uma ordem poli-
as instruções da professora, são as letras longas, como h e l, que
da, no final - "Por favor tente voltar logo".
se estendem hesitantes até tocar a linha superior. O conteúdo,
A carta de Carol, citada anteriormente, acrescenta a expli-
juntamente com a brevidade da carta e a caligrafia pequena,
cação marcante "porque estamos sozinhos aqui sem você", um
parecem indicar um pessimismo inato, ou baixa autoestima, a comentário talvez sincero, uma vez que Carol e Stephen são
despeito da exuberância impressionante de seu E maiúsculo. vizinhos e podem ser grandes amigos, mas que demonstra, no
mínimo, gentileza por parte da menina. Devemos notar que a
Como você está/ espero que esteja melhor relação de Carol com Stephen é privilegiada quando comparada
com a das outras crianças, uma vez que as famílias são amigas,
Outro sentimento expresso repetidas vezes é: "Esperamos como a carta demonstra claramente.
(espero) que você esteja bem/ vai ficar bom logo/ vai se sentir O entusiasmado Joseph vai mais longe, expressando impa-
melhor logo/ como você está?". ciência: "Mal posso esperar você voltar para a escola".
Billy J. abre a carta com "Espero que você esteja bem", en- Jonathan, o amigo de Stephen, cuja caligrafia é bem forma-
cerra com "Espero que você volte logo", e acrescenta apenas da, com pouca inclinação, apoiada firmemente na linha, empre-
uma frase entre abertura e encerramento: "Não estamos fazendo ga quase as mesmas palavras: "Mal posso esperar você voltar para
muita coisa por aqui". As palavras "não estamos fazendo muita casa". Podemos supor que ele substitui "voltar para a escola",
que seria mais natural, por "voltar para casa" porque, além de
coisa" são menores e mais compactas do que as outras, talvez
vizinho, é muito amigo de Stephen.
como um reflexo do conteúdo do comentário. As letras de Billy
Outra colega, Diane, expressa o mesmo sentimento, quase
também tendem a atravessar a linha inferior, em consonância
nas mesmas palavras - "Mal posso esperar sua volta para a esco-
com o clima da única notícia transmitida - a de que não estão la" - , reforçando a ideia com uma segunda frase que emprega
avançando muito. dois imperativos: "Fique bom e volte logo".
Lois usa um tom de conversa, raro entre seus colegas, quan- Sua amiga Mary K. se expressa de maneira mais precisa e
do escreve, em letra de fôrma escura apoiada firmemente sobre um pouco severa, esperando que Stephen "esteja de volta na
a linha, porém às vezes desaparecendo do lado direito da página: escola em bem pouco tempo".
"Como você está se sentindo agora? Melhor, eu espero". Billy T. enfatiza a alta de Stephen do hospital, em vez da
Joseph A., em vez de escrever "Como vai?", escreve volta dele à escola. Ele dedica duas das três frases de sua lacôni-
"Como?". A professora não repara. ca carta a essa ideia: "Quando você sai? Espero que saia logo".
Outro menino, Scott, expressa o mesmo sentimento numa
das cartas mais persuasivas, em que cada frase segue a lógica

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da anterior. Começa com uma expressão de empatia: "Eu sei A vizinha de Stephen, Carol, é mais específica: "A comida
como é aí", para depois desenvolver a ideia, primeiro repetindo aí é boa?".
a expressão de empatia (caso raro entre as cartas): "Acho que Billy T. também se preocupa com a alimentação de Ste-
você ia gostar mais de estar aqui com a gente". Em seguida dá phen, referindo-se, supomos, à comida do hospital, ainda que a
a seu texto um tom dramático, juntamente com o raro emprego conjugação perifrástica escolhida por ele não deixe isso inteira-
do subjuntivo: "E se eu estivesse aí em cima com você eu te mente claro: "Você vai comer direito, espero" .
arrancaria da cama". Finalmente ele completa a estrutura de Arlene, que ou não sabia escrever o próprio nome ou prefe-
vaivém com outra referência à escola e com um conectivo lógi- riu decorá-lo acrescentando a letra i, agrega um tom urgente e
co- "Aí" - , resultado da ação imaginada de arrancar Stephen até peremptório à sua carta, com duas perguntas breves, porém
da cama: "Aí você podia voltar para cá". (Os exemplos "aí" e "aí precisas: "Quem é a sua enfermeira? Ouem é o seu médico?".
em cima" demonstram consciência de que o hospital fica a uma Concluímos, no entanto, ao chegarmos ao final da carta, que
certa distância da cidade e numa área elevada, fato corroborado seu interesse é "profissional": "Ganhei um kit de enfermeira de
Natal".
pelo emprego, por Jonathan, de "aí em cima" e pela referência,
feita por uma terceira criança, à Ladeira do Hospital, numa des-
Empatia: eu sei como é
crição da brincadeira de trenó.)
Uma menina, Susan B., numa das cartas mais sucintas (três
Scott abre seu texto com uma expressão de empatia- "Eu
linhas, três frases), expressa apenas os sentimentos mais comuns
sei como é aí" - antes de ameaçar Stephen com uma visita.
e conclui repetindo um boato ouvido de um colega: "O Jona-
Joseph O. também abre com algo que parece empatia ge-
than A. me contou que mando [si c] para você uma caixa de cho-
nerosa: "Sei como você se sente". Continua, porém, com uma
colates muito grande". Sua caligrafia muda de maneira marcan-
frase que aparentemente não dá seguimento ao raciocínio: "Vou
te na parte final dessa frase: o traço escuro, vertical e confiante ganhar um casaco novo com capuz".
do início da carta torna-se cada vez mais fraco e mais inclinado
para a direita até chegar à palavra "chocolates", leve e delicada, Notícias
quase deitada de lado sobre a linha.
Clima
Experiência no hospital/ alimentação
Algumas crianças falam do clima.
São poucas as crianças que demonstram curiosidade pela Joseph A. diz, de maneira lacônica, ou apenas prática: "A
experiência de Stephen no hospital. temperatura muda o tempo todo".
Kingsley pergunta: "Você gosta do hospital?". Cynthia, que demonstra boa compreensão da importância
O amigo de Stephen, Jonathan, também se interessa pelo que detalhes e precisão podem ter (ver a seguir), escreve: "Está
assunto: "Como é aí em cima?". tudo conjelado [sic]lá fora hoje".

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Outra menina, Susan A., fala do clima de maneira mais Ao mesmo tempo, levando-se em conta a inclusão de seus ir-
poética, empregando a única metáfora nesta amostragem. Ainda mãos e irmãs em sua carta (ver a seguir), assim como sua ami-
que seja uma metáfora gasta, ela aperfeiçoa a imagem logo em zade com Mary e uma menção a um passeio que fizeram juntas
seguida com uma descrição de um realismo potente: "Semana para esquiar, conclui-se que Diane é extrovertida, sociável, mui-
passada teve uma tempestade de granizo. Quando acabou ficou to ligada à família e fisicamente ativa.
tudo parecendo a terra encantada só que cheia de galhos caídos A amiga citada anteriormente, Mary K., depois de descrever
e quebrados". A visão pé no chão e realista do seu entorno vê-se o passeio de esqui com Diane, encerra a carta dizendo: "Bom es-
refletida na caligrafia da menina, que é bastante regular, com ex- tamos começando a leitura agora então tenho que dizer 'Txau"'.
ceção de alguns traços um pouco trêmulos nas letras mais altas. (A professora corrigiu a ortografia de "tchau", mas não inseriu a
vírgula após "Bom".) Mary é a única a evocar a sala de aula no
Alimentação/ ato de comer momento em que as crianças escrevem, mencionando uma ati-
vidade escolar iminente. Ela evidentemente compartilha o gosto
Com exceção das duas alusões à alimentação de Stephen pela leitura de sua amiga Diane.
no hospital, citadas anteriormente, as únicas referências a co- A terceira menção à escola, mas apenas de um modo muito
mida são as duas menções à caixa de chocolates oferecida por geral, é o comentário prosaico de Maureen citado anteriormen-
Jonathan, uma vez na carta do próprio Jonathan ("Espero que te: "Gosto muito da escola". Como observamos anteriormente,
você tenha gostado da caixa de chocolates") e outra na carta da contudo, Maureen não gosta da escola tanto quanto diz gostar.
possivelmente invejosa Susan B. Uma quarta menina, Lois, fala de outra área de estudo, tal-
vez uma área de que goste mais do que leitura: "Ainda estamos
Escola/ estudos aprendendo a tabuada". Esse comentário é precedido, entre-
tanto, pelo aviso: "Não estamos trabalhando muito". Devemos
Fora o desejo, repetido diversas vezes, de que Stephen se notar que, a despeito do cuidado evidente com que a professora
restabeleça e volte às aulas, a escola e os estudos não estão entre preparou esse exercício, dois alunos dizem que "não estamos fa-
os assuntos tratados nas cartas, talvez devido ao fato de terem zendo muita coisa/ não estamos trabalhando muito". Isso pode
sido escritas em sala de aula. ser verdade ou, o que é mais provável, pode ser simplesmente
Diane é a única aluna a mencionar um livro didático: "Es- a percepção da situação por parte desses alunos em particular.
tamos lendo Síngíng Wheels". Baseando-nos em seu gosto pela Talvez estes sejam mais inteligentes ou mais rápidos do que os
leitura, numa alusão posterior a uma vitrola que ganhou de Na- outros, e por isso terminem o dever antes. Por outro lado, podem
tal, possível indicação de interesse musical, e em sua caligrafia também ser mais desinteressados. (Seja qual for o caso, a pro-
inconsistente (letras por vezes inclinadas, por vezes verticais, por fessora permitiu que os comentários constassem dos trabalhos.)
vezes atravessando a linha inferior etc. ), podemos inferir que
Diane tem um temperamento intelectual, artístico e "criativo".

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uns meninos na minha rua. Ganhei do grupo que lutou contra
Fazendo compras com a mãe ou com o pai
o meu".
Cynthia, a realista, menos combativa que os meninos, es-
As crianças vão ao centro fazer compras, e compram roupas
creve num traço escuro e firme: "Fui brincar de trenó uma vez
de inverno, e vão acompanhadas das mães. e foi divertido. Fiz bonecos de neve mas eles caíram todos". A
Fred escreve: "Minha mãe e eu vamos ao centro comprar
inclinação consistente de sua caligrafia, sua sensibilidade ao em-
um anoraque. Minha Irmã vai ganhar uma roupa de esqui nova prego de paralelismos, a precisão com relação à frequência e aos
e um gorro". Nisso consiste todo o conteúdo da carta, exceto a resultados de suas atividades, tudo isso indica que ela pode ser
frase de encerramento: "Bom acho que é só isso que tenho para boa aluna.
contar". (Mais uma vez, a professora deixou de inserir a vírgula Mary K. é uma das únicas a usar o nome de outra criança:
após "Bom".) "Segunda-feira passada Diane T. e eu fomos esquiar. Tem um
obstáculo pequeno no meio da descida e foi difícil pular". Seu
Brincando na neve estilo um pouco severo "espero que você [... ] esteja de volta na
escola em bem pouco tempo", juntamente com a especificidade
Os alunos tendem a expressar-se com mais vivacidade quan- de "obstáculo pequeno" e "foi difícil pular", indicam uma ten-
do falam sobre as brincadeiras na neve do que ao tratar de qual- dência a ser exigente consigo mesma e com os outros.
quer outro assunto, muitas vezes incluindo informações sobre Janet acrescenta um elemento imprevisto: "Fui esquiar e
nomes de lugares e outros detalhes. andar de trenó e os gatos foram comigo". Este parece ser o úni-
Alex escreve: "Foi muito divertido lá na Ladeira do Hospi- co exemplo, nas cartas estudadas, em que um autor insere uma
tal. A gente pulou um murundu e deu um saltão. Este ano eu informação de interesse incontestável. Antes de concluir, ela
saltei mais alto do que consegui no ano passado". Sua caligrafia, acrescenta, de forma menos intrigante: "Eles também dormem
talvez em consonância com seu espírito aventureiro, é inconsis- comigo".
tente, as letras por vezes seguindo a linha, por vezes acima ou A referência que Lois faz à neve é genérica, e portanto me-
abaixo dela, o traço alternadamente fino e elegante, ou irregular nos interessante. Ela é, contudo, a única que inclui Stephen na
e desajeitado. atividade descrita: "Que pena que você não pode vir conosco
Dois meninos descrevem guerras. John D . escreve: "Teve brincar na neve".
uma guerra de bola de neve lá fora. Ouase todos os grupos luta-
ram". Uma vez que qualquer guerra de bola de neve necessaria- Cinema
mente teria que acontecer do lado de fora, seu uso de "lá fora"
Stephen também é incluído no relatório que Theodore faz
deve referir-se a um lugar específico, indicando o pátio da esco-
sobre uma ida ao cinema: "Há uns dias atrás eu fui ver Inferno no
la, principalmente se "quase todos os grupos" estavam presentes.
Pacífico e A diligência marcada. Pena que você não viu".
É de supor que Stephen saberia exatamente quem está incluído
John C. também escreve sobre ir ao cinema e lista não ape-
em "todos os grupos".
nas os filmes, mas também a cidade. Seu uso de "E", contudo,
Theodore escreve: "Entrei numa guerra de bola de neve com

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6z
não é claro: "Fui a P. [uma cidade próxima]. E fui ao cinema presentes que Stephen ganhou : "Você ganhou muitos brinque-
uma vez em P. Vi A marca rubra". Sua caligrafia é elegante, dos de Natal?".
porém atravessa a linha inferior com rara consistência. Isso pode Janet não se interessa tanto por quantidade e quer detalhes:
indicar uma busca por estabilidade, medo da própria imagina- "O que você ganhou de Natal?". Continua o assunto com uma
ção ou, ao contrário, uma personalidade firme e centrada. A segunda pergunta que pode tratar tanto de qualidade como de
menção ao cinema, entretanto, nos permite sugerir que ele se quantidade: "O Papai Noel foi bonzinho com você?".
sente atraído por atividades que resultam da imaginação criativa, Kingsley é o único a supor, corretamente ou não, que por
ao mesmo tempo que reage à apresentação perturbadora de uma Stephen estar no hospital ainda não teria comemorado o Natal:
realidade alternativa tentando centrar-se mais firmemente em "O que você acha que vai ganhar de Natal?". Talvez de acordo
sua própria realidade. com sua pergunta hesitante, a palavra "acha" paira sobre a li-
É digno de nota o fato de que as crianças, tão lacônicas quan- nha, retornando a ela no final. Ele pospõe a essa pergunta uma
do se trata de outros assuntos, fazem questão de dar o nome dos declaração genérica de satisfação: "Ganhei tudo que eu queria" .
filmes a que assistiram. Algumas letras são maiores do que outras, por exemplo, o m em
"melhor" e o N em "Natal" - ambas palavras que podem ter
Natal/ presentes de Natal um significado especial para o menino.

Algumas crianças listam seus presentes de Natal sem mais


CONCLUSÃO: VIDA COTIDIANA, NOÇÃO DE TEMPO E ESPAÇO,
esclarecimentos. Outras dão esclarecimentos gerais, porém sem
PERSONALIDADE E ESTADO DE ESPÍRITO
especificar o que ganharam.
Diane inclui seus irmãos e irmãs na lista: "Ganhei uma
A partir desse material podemos chegar, com certa seguran-
vitrola de Natal. Minha irmã ganhou um carrinho de boneca.
ça, a algumas conclusões a respeito da vida cotidiana, persona-
Meu irmão ganhou uma bola de futebol". Não é possível depreen-
lidade e estado de espírito das crianças envolvidas neste estudo,
der se esses foram seus únicos presentes, ou apenas aqueles dig-
ainda que por vezes as cartas não sejam um retrato exato da rea-
nos de nota.
lidade devido às circunstâncias em que foram escritas. A pro-
John C ., por outro lado, parece dar uma enumeração com- fessora pode haver limitado as escolhas com relação a assuntos
pleta, e demonstra bom sentido de ordem ao progredir do maior apropriados para uma carta, e estava certamente presente em
ao menor número: "Ganhei de Natal três livros de caubói, dois sala supervisionando a atividade; as crianças não escolheram es-
jogos e uma lanterna". crever, foram obrigadas a fazê-lo; estavam também conscientes
Joan não fornece detalhes, mas fala de um irmão e introduz de que o tempo era limitado e que a esta se seguiria outra ativi-
sua frase sobre presentes de Natal com uma declaração geral: dade ("Bom estamos começando a leitura agora") .
"Tive um ótimo Natal. Meu irmão e eu ganhamos presentes
muito bons".
Jonathan é uma das três crianças que perguntam sobre os

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Vida cotidiana Espaço

Se dermos fé à informação contida nas cartas, podemos ao As cartas também demonstram uma concepção clara e pre-
menos concluir o seguinte sobre os alunos: são crianças de pou- cisa de localização no espaço. Sentados em sala de aula escre-
cas posses - ou ao menos se satisfazem com presentes de Natal vendo, os alunos sabem que estão mais próximos da periferia
relativamente modestos (ver John C. ), mesmo que quantidade da cidade. Referem-se, de maneira coloquial, porém correta, ao
seja claramente um fator importante (ver Jonathan). Passam lugar onde fazem compras como "centro". Estão, no entanto,
bastante tempo com a família e colegas da escola. Suas ativida- mais perto do centro do que do hospital, que localizam como
des incluem brincar na neve (trenó e esqui), ir ao cinema, fazer "aí". A escola fica num ponto mais baixo em relação à área ele-
compras no centro e ocasionalmente fazer um passeio fora da vada onde se localiza o hospital, à qual se referem como "aí em
cidade. Algumas têm bichos de estimação e amizades especiais, cima". Essa expressão sugere também conhecimento de que o
ou gostam de estudar. Alguns meninos gostam de caubóis, de hospital fica um pouco ao norte da cidade.
leitura, de jogar futebol, de ir ao cinema; há meninas que se Pode ser pertinente notar que na palavra "aí" vemos uma
interessam por música, bonecas e enfermagem. Tanto meninos rara coincidência de lugar real e psicológico, no sentido de que
como meninas gostam de brincar ao ar livre. o uso da palavra indica um possível desejo de distanciar-se com
firmeza do hospital e de sua aura de doença e morte.
O espaço imediato da sala de aula é evocado por Joan e por
Susan B., com suas referências, respectivamente, a "na nossa fi-
Tempo
leira" e "Seu lugar está vazio".
Devemos assinalar igualmente que alguns alunos demons-
De um modo geral, as crianças têm uma noção bem de-
tram mais interesse por atividades ao ar livre ("Fomos esquiar")
senvolvida de tempo e espaço. As cartas demonstram uma clara
enquanto outros se concentram em espaços fechados (sala de
ideia do passado (por exemplo, o que ganharam de Natal), do
aula, fileira ou lugar; hospital). Além do distanciamento cau-
presente ("Seu lugar está vazio") e do futuro ("Minha Irmã vai
sado por "aí", há, de um modo geral, uma identificação, talvez
ganhar uma roupa de esqui nova"). Algumas crianças também
resultado de ansiedade por parte das crianças, com movimento
anseiam pelo retorno futuro de Stephen. Jonathan é o único a
para fora, vista no uso de "sair" (Billy T.: "Ouando você sai?"),
incentivar uma continuação da comunicação: "Vou mandar ou-
contrastando com a identificação reconfortante da escola como
tras cartas depois". o lugar para onde se "volta" (Mary K. ).
O futuro imediato no momento da escrita é evocado, ex-
cepcionalmente, por Mary K. ("Bom estamos começando a lei-
tura agora"). Personalidade e estado de espírito

A professora, mesmo que controlando cuidadosamente a

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forma e o conteúdo das cartas, parece ter deixado os alunos se- rotas (bonecos de neve destruídos, galhos caídos e quebrados);
guirem seus impulsos com relação a assuntos específicos e estilo, ou ainda dão vazão a inveja/ciúmes/privação (outra criança ga-
talvez segundo limites preestabelecidos. Sendo assim, as esco- nhou uma caixa de chocolates). Outras usam um tom peremp-
lhas das crianças no que se refere aos temas tratados, juntamen- tório (o emprego do imperativo pelas meninas), mas há também
te com o tratamento dado a cada tema, podem fornecer pistas as afetuosas (o evidente afeto que Janet sente por seus bichos de
sobre sua personalidade e temperamento. estimação). Certos alunos são mais sensíveis à dificuldade e à so-
Algumas demonstram uma autossuficiência razoável, diver- lidão do que outros. Todos, no entanto, são capazes de expressar
tindo-se sem a ajuda de adultos (brincadeiras ao ar livre), en- sentimentos de simpatia com um colega que se encontra numa
quanto outras revelam certa dependência, vista na preferência situação difícil, ao menos quando são obrigados a fazê-lo.
por um tipo de entretenimento "pronto" ou "predefinido" (dois Certos alunos apresentam traços contraditórios ou indicati-
casos de ida ao cinema). Há crianças que demonstram mais in- vos de conflitos internos, como apontado no caso de Maureen,
teresse por atividades, sejam físicas ou culturais (brincar ao ar li- anteriormente. Outro exemplo é Arlene: apesar de ser uma me-
vre, cinema), enquanto outras se preocupam mais com questões nina prática, e de parecer sincera em seu desejo de escolher a
materiais (presentes de Natal, compras). Finalmente, a maioria profissão de enfermeira, ela deixa transparecer um romantismo
se concentra em atividades dirigidas ou interativas de vários ti- reprimido (e consequentemente uma atração por uma vocação
pos (brincar, fazer compras), enquanto uma minoria parece dar menos prática) na alteração extremamente incomum que faz do
mais atenção a estados mentais (você foi embora, seu lugar está próprio nome, passando de Arlene, um nome circunspecto, para
vazio, "não consigo mais pensar"). Arilene, um nome mais bonito e imaginativo.
Há crianças com tendência a interagir socialmente com o Mesmo que o tom geral das cartas seja positivo e otimista,
mundo fora do círculo familiar imediato ("Diane T. e eu"); e há as escolhas de tema e estilo permitem entrever medo ou incerte-
as que circulam mais na esfera doméstica ou familiar (compras za, ou consciência do lado mais sombrio de suas vidas (guerras
com a Mãe). A inclusão de irmãos e irmãs em relatos sobre as de bola de neve, dificuldade de pular), e esse medo genérico
férias de Natal ("Minha irmã ganhou um carrinho de boneca. pode manifestar-se em todas as crianças, até certo ponto (por
Meu irmão ganhou uma bola de futebol") pode revelar insegu- exemplo, a repetição incessante de "eu espero ... eu espero ...").
rança e necessidade de se identificar com a unidade familiar. De fato, ainda que seu mundo seja relativamente seguro -
Algumas demonstram audácia ("eu te arrancaria da cama"); incluindo andar de trenó, presentes de Natal, fazer compras com
ou necessidade de aventura ("Este ano eu saltei mais alto do que a Mãe - , ele apresenta também um lado mais sinistro: galhos
consegui no ano passado"); enquanto outras reiteram questões caídos e quebrados, bonecos de neve destruídos, o lugar vazio e
de falta ou ausência ("não consigo mais pensar"; e o refrão de o enfeite inacabado, a caixa de chocolates dada a outra criança.
"Estou com saudades" e "Estamos com saudades"). Há as que O que elas sentiram quando estavam brincando na Ladeira do
dão um tom de tristeza à sua mensagem (Carol com "sozinhos"; Hospital, à sombra ameaçadora do edifício do hospital? Estavam
Sally falando do "lugar vazio"); ou aludem a fracassos e/ou der- conscientes de Stephen, sozinho, talvez vendo-as brincar? Ou

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talvez percebessem, mesmo que inconscientemente, que o aci-
dente de Stephen poderia ter acontecido a qualquer uma delas?
Gases
Devemos lembrar que essas crianças já tinham conhecimento
do ambiente paradoxal, confuso e até ameaçador em que vi-
viam: a diversão ao ar livre sempre à sombra do hospital; as balas
depois da escola só acessíveis através da interação com a hostil
dona da venda e desembrulhadas à vista do rio, correndo lento e
perigoso ao pé da ladeira íngreme. De maneira mais geral, pode-
mos inclusive postular que essas crianças, presas entre a ameaça
implícita do hospital no alto do morro e a ameaça explícita do
rio no fim da ladeira, podem ter desejado intensamente fugir,
como de fato fazem com frequência, na direção do "centro",
com sua oferta de mercadorias tentadoras em companhia de
Mamãe, ou até mesmo para fora da cidade (um passeio a P.), ou
para o mundo da ficção encontrado em filmes, livros de caubói, Ela não sabia se tinha sido ele ou o cachorro. Ela é que não
e na imaginação ("terra encantada"). tinha sido. O cachorro estava deitado no tapete entre os dois, ela
estava no sofá e seu visitante, um pouco tenso, afundado numa
poltrona baixa, quando o cheiro, suave até, encheu o ar. Ela pri-
ADENDO meiro achou que tinha sido ele e estranhou porque ninguém sol-
ta pum em público, ao menos não que dê para notar. Enquanto
Um elemento interessante, como termo de comparação, é conversavam, continuou pensando que tinha sido ele. Ficou com
uma carta escrita por Stephen, numa página sem pauta, para um pouco de pena, porque achou que ele estava nervoso e cons-
uma professora, agradecendo um presente evidentemente re- trangido por estar ali, com ela, e que por isso soltara um pum.
cebido durante sua convalescença. A carta é um rascunho, in- Aí lhe ocorreu, de repente, que talvez não tivesse sido ele, que
cluindo um erro de ortografia e erros de pontuação, e pode ser poderia ter sido o cachorro, e pior ainda, se fora o cachorro, o
semelhante aos rascunhos escritos por seus colegas de sala, se os visitante podia pensar que tinha sido ela. É verdade que o ca-
havia . Está datada de "zo de fevereiro de 1951" e diz: "Querida chorro havia roubado um pão inteiro de manhã, e comera tudo,
Srta. R., Obrigado pelo livro. Já saí do hospital e não tenho mais o que explicaria os gases, coisa que ele não costumava ter. Quis
que usar moleta Com carinho Stephen". explicar, para que o visitante ao menos soubesse que não tinha
sido ela. Claro que talvez ele nem tivesse reparado, mas era in-
teligente e atento e, se ela reparara, não havia por que ele não
ter reparado também. A não ser que estivesse nervoso demais. O

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