RADIOATIVIDADE

HENRI BEQUEREL
VOCÊ JÁ QUEBROU UM OSSO ou engoliu algo sem querer? Enquanto Röntgen trabalhava com raios X, foi
Se sim, é provável que tenha feito um raio X para que um descoberta outra forma de radiação – radioatividade –,
médico pudesse ver dentro do seu corpo sem ter que abri- dessa vez na França. Henri Becquerel (1852-1908) estava
lo. Os raios X são rotina hoje em dia. No fim do século XX, estudando a fluorescência, que é o modo como algumas
causaram sensação. Foram o primeiro tipo de radiação a substâncias brilham ou emitem luz de modo natural.
ser utilizada, mesmo antes que o significado de “radiação” Estava usando um composto de urânio que fazia
fosse compreendido adequadamente. Radioatividade e justamente isso. Quando descobriu que esse composto
bombas atômicas vieram mais tarde. afetava uma placa fotográfica, tal como os raios X de
Na Alemanha, os raios X ainda são, por vezes, chamados de Röntgen, presumiu que havia descoberto outra fonte desse
“raios de Röntgen”, em homenagem a Wilhelm Röntgen misterioso raio. Porém, Becquerel verificou, em 1896, que
(1845-1923). Ele não foi o primeiro a ver seu poder, mas seus raios não se
foi o primeiro a perceber o que havia visto. A ciência comportavam como
costuma ser assim: não basta simplesmente ver – é preciso os de Röntgen.
entender o que se está vendo. Eram um tipo
Na década de 1890, Röntgen, em conjunto com distinto de radiação,
vários outros físicos (lembra-se de J.J. Thomson?), estava sem os evidentes
trabalhando com o tubo de raios de cátodos. Em 8 de efeitos dramáticos
novembro de 1895, percebeu que uma placa fotográfica, a dos raios X, que
certa distância do tubo de raios de cátodos, fora exposta de podiam “ver”
modo misterioso. Havia um papel preto a cobrindo e, através de roupas
naquela época, os cientistas presumiam que os raios de ou pele, mas que
cátodos não tinham efeito a uma distância tão longa. Ele ainda mereciam uma análise mais aprofundada.
passou as próximas seis semanas tentando entender o que
estava ocorrendo. Outros cientistas observaram a mesma Em Paris, esse desafio foi assumido pelo célebre casal
coisa, mas não fizeram nada a respeito. Röntgen descobriu de físicos Pierre e Marie Curie (1859-1906; 1867-1934).
que esses novos raios eram emitidos em linha reta, não Em 1898, os Curie obtiveram uma tonelada de pechblenda,
sendo afetados por campos magnéticos. Diferentemente da algo semelhante ao alcatrão bruto e que contém um pouco
luz, não podiam ser refletidos nem dobrados por uma lente de urânio. Enquanto
de vidro, mas podiam penetrar materiais sólidos, inclusive extraíam o urânio
a mão de sua esposa! Ela posou para a primeira imagem de relativamente puro, a
raio X, com a aliança nitidamente visível junto com os ossos radioatividade queimou
dos dedos. Sem saber ao certo o que eram esses raios, suas mãos. Também
chamou-os descobriram dois novos
apenas de “raios elementos radioativos,
X”. Após as seis que batizaram de tório e
semanas de polônio, este em
trabalho árduo, homenagem à Polônia, terra natal de Marie. Uma vez que
contou a notícia esses elementos tinham propriedades semelhantes às do
ao mundo. urânio, cientistas de todo o mundo se apressaram em
descobrir mais sobre os poderosos raios. Eram eles: raios
Os raios X tornaram-se um sucesso imediato. Os beta (fluxos de elétrons), raios alfa (em 1899, Rutherford
usos médicos foram reconhecidos de imediato, no demonstrou que eram átomos de hélio sem elétrons e com
diagnóstico de ossos quebrados ou na localização de carga positiva) e raios
projéteis ou outros objetos que não deveriam estar gama (sem carga, porém
alojados dentro do corpo. Poucas novidades já foram mais tarde se constatou
adotadas de maneira tão instantânea pelo público geral. que eram radiação
Roupas íntimas “resistentes a raios X” logo estavam à eletromagnética,
venda. Físicos debatiam sobre o que eram exatamente os semelhante aos raios X).
raios X. Os Curie foram, de fato, heroicos na dedicação à ciência.
Após mais de uma década de pesquisas adicionais, Após Pierre morrer em um acidente de trânsito, Marie
demonstrou-se que os raios X são radiação com continuou o trabalho, apesar de precisar cuidar de dois
comprimento de onda e alta energia incomuns. No início, filhos pequenos.
funcionários laboratoriais perceberam que os raios X A promessa antiga da alquimia, de ver um elemento
podiam danificar a carne humana, causando queimaduras, transformar-se em outro, foi quase cumprida pela
por isso foram utilizados em uma tentativa de matar descoberta da radioatividade. Quase, porque o sonho dos
células cancerígenas já em 1896. Levou um pouco mais alquimistas era converter chumbo, ou outro metal de base,
para que as pessoas percebessem como podiam ser em ouro; o que a radioatividade fazia era transmutar
perigosos, e diversos desses primeiros pesquisadores urânio em chumbo, de metal valioso para metal de base!
morreram de envenenamento por radiação ou de um Ainda assim, a natureza podia fazer o que os alquimistas só
câncer sanguíneo chamado de leucemia. Os raios X podiam haviam sonhado.
tanto combater quanto causar o câncer.
 Assim como os raios X, a radioatividade tinha
importantes usos médicos. O rádio, outro elemento
radioativo descoberto por Marie Curie, tinha um valor
especial. Seus raios podiam matar células cancerígenas.
Contudo, assim como os raios X, a radioatividade também
causa câncer se a dose for exagerada. Vários dentre os
primeiros pesquisadores, inclusive Marie Curie, morreram
devido aos efeitos da radiação, antes que fossem
desenvolvidas diretrizes adequadas de segurança. Sua
filha, Irène, ganhou o prêmio Nobel pelo trabalho no
mesmo campo, e morreu jovem do mesmo câncer
sanguíneo que havia matado sua mãe.
Urânio, tório, polônio e rádio são radioativos por
natureza. O que isso significa? Esses elementos radioativos
são o que os físicos chamam de “pesado”. O núcleo deles é
comprimido com uma alta compactação, o que o torna
instável. É essa instabilidade que se detecta na forma de
raios radioativos. Chamava-se de “decaimento radioativo”
porque, quando as partículas se perdiam, o elemento
literalmente decaía, tornando-se um elemento distinto e
tomando um lugar diferente na tabela periódica. O estudo
minucioso desse decaimento deu sequência ao trabalho
crucial de preencher as lacunas de conhecimento na tabela
periódica, além de oferecer uma maneira valiosa para
datar eventos na história terrestre, um processo chamado
“datação radiométrica”. Ernest Rutherford também foi
pioneiro nesse desenvolvimento, sugerindo, em 1905, que
a técnica ajudaria na datação da idade da Terra. Os físicos
calcularam quanto tempo levaria para que metade dos
átomos em um elemento radioativo por natureza (urânio,
por exemplo) decaísse até seu produto final, a versão
diferente do elemento (chumbo, nesse exemplo). Esse
período foi chamado de meia-vida do elemento. As meias-
vidas dos elementos podem variar de alguns segundos a
milhões de anos. Assim que soubessem a meia-vida de um
elemento, os cientistas podiam datar um evento analisando
um fóssil ou uma rocha (qualquer amostra de ocorrência
natural) para ver quanto restava do elemento original e
quanto havia do elemento decaído. Assim, a relação entre
os dois elementos diria a idade da amostra. Uma forma
incomum de carbono é radioativa por natureza, e sua meia-
vida pode ser utilizada para datar os resquícios
fossilizados de animais e vegetais que, um dia, estiveram
vivos. Todas as coisas vivas absorvem carbono durante a
vida. Quando morrem, essa absorção é interrompida.
Portanto, a medição da quantidade de carbono radioativo
em fósseis oferece uma data de sua formação. A datação
radiométrica usa o mesmo princípio para datar rochas,
oferecendo um intervalo de tempo muito mais longo. A
técnica transformou o estudo dos fósseis, já que não são
mais meramente mais antigos ou mais novos – sabe-se sua
idade aproximada.
Os físicos não demoraram em perceber que havia
quantidades enormes de energia envolvidas em emissões
radioativas. Elementos radioativos por natureza, como o
urânio, e as formas radioativas de elementos comuns,
como o carbono, são raros. No entanto, quando átomos são
bombardeados com partículas alfa ou nêutrons, pode-se
obter vários elementos para emitir a energia da
radioatividade de modo artificial. Isso demonstrava
quanta energia está compactada no núcleo do átomo.
Descobrir como fazer uso desse potencial motivou muitos
físicos nos últimos cem anos.
Ao bombardear um átomo e fazê-lo expulsar uma
partícula alfa do núcleo, o átomo é “dividido”, tornando-se
um elemento distinto. Isso é fissão nuclear. O núcleo perde
dois prótons.
A alternativa, fusão nuclear, ocorre quando um átomo
absorve uma partícula e ocupa um novo lugar na tabela
periódica.
Tanto a fissão quanto a fusão liberam energia. A
possibilidade de fusão nuclear foi demonstrada no final da
década de 1930 por físicos alemães e austríacos, inclusive
Lise Meitner (1878-1968). Nascida judia, Meitner se
converteu ao cristianismo, mas ainda teve que fugir da
Alemanha nazista em 1938. Ela examinou a fusão de dois
átomos de hidrogênio para formar um átomo de hélio, o
elemento seguinte na tabela periódica. A partir do estudo
do Sol e de outras estrelas, verificou-se que a conversão de
hidrogênio para hélio era a principal fonte de energia
estelar. Essa reação exige temperaturas altíssimas e, na
década de 1930, não podia ser feita em laboratório. Porém,
em tese, podia-se fazer uma bomba de hidrogênio (uma
bomba de fusão) que liberaria uma vasta quantidade de
energia ao explodir.
Nos anos 1930, era mais fácil fabricar a alternativa –
a bomba atômica ou de fissão. Conforme os nazistas
prosseguiam com a agressão à Europa, a guerra parecia
cada vez mais provável. Cientistas de diversos países,
inclusive a Alemanha, trabalhavam em segredo na
preparação de tais armas devastadoras. Fundamental
nessa dança horripilante rumo à guerra total foi o trabalho
de um físico italiano, Enrico Fermi (1901-1954). Fermi e
seu grupo demonstraram que o bombardeamento de
átomos com nêutrons “lentos” causaria a fissão nuclear
desejada. Fermi deixou a Itália em 1938 para escapar do
regime fascista, que era simpatizante aos nazistas. Foi para
os Estados Unidos, assim como muitos dos mais criativos
cientistas (e escritores, artistas e pensadores) daquele
período. Hoje, às vezes se fala da “fuga de capital humano”,
querendo dizer que os melhores “cérebros” saem da terra
natal para obter melhores condições de trabalho em outros
países: mais dinheiro, um laboratório maior, uma
oportunidade melhor de viver a vida que desejam. As
pessoas no fim da década de 1930 e início da de 1940
emigravam porque eram demitidas ou temiam por suas
vidas. Os nazistas e os fascistas cometeram atos horríveis.
Também alteraram a face da ciência, e a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos receberam a maior parte dessa fuga
forçada de capital humano.
Nos Estados Unidos, muitos refugiados participaram
do ultra confidencial “Projeto Manhattan”. Tratava-se de
um dos mais caros projetos científicos já realizados, mas
eram tempos de desespero crescente. No fim da década de
1930, os aprimoramentos radicais na compreensão dos
elementos radioativos convenceram muitos físicos de que Agora todos conheciam o poder devastador da energia
podiam criar uma explosão nuclear. A dificuldade era nuclear. Nosso mundo mudou para sempre. Muitos dos
controlá-la. Alguns achavam que seria perigoso demais: a cientistas que fizeram essas armas de destruição em massa
reação em cadeia resultante simplesmente explodiria o sabiam que suas descobertas haviam encerrado uma
planeta inteiro. Quando a guerra foi declarada em 1939, guerra terrível, mas preocupavam-se com o que tinham
físicos britânicos e americanos acreditavam que os criado.
cientistas da Alemanha e do Japão continuariam a O incrível poder da energia atômica ainda é importante
trabalhar em busca de uma bomba atômica e que os aliados em nosso mundo, assim como seus riscos. A desconfiança
deviam fazer o mesmo. Uma série de cientistas escreveu ao entre a Rússia e os Estados Unidos continuou após a
presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, Segunda Guerra Mundial, transformando-se na “Guerra
instando-o a autorizar uma resposta dos aliados. Entre eles Fria”. Ambos os países construíram estoques imensos de
estava Albert Einstein, o cientista mais famoso do mundo e armas atômicas ou nucleares. Felizmente, ainda não foram
também um refugiado da Alemanha nazista. utilizadas em um ataque de fúria, e embora o suprimento
tenha se reduzido ao longo dos anos, por meio de acordos,
o número de nações que possuem armas nucleares
aumentou.
A física aprendida durante o Projeto Manhattan
Roosevelt também foi usada para produzir uma liberação mais
concordou. Em locais no Tennessee, em Chicago e no Novo controlada de energia. A energia nuclear pode gerar
México, foram coordenados os vários componentes da eletricidade liberando apenas uma fração dos gases do
fatídica decisão. O Projeto Manhattan foi executado em efeito estufa gerados pela queima de carvão e de outros
termos militares. Os cientistas interromperam a combustíveis fósseis. A França, por exemplo, gera quase
publicação dos achados. Deixaram de lado o valor central três quartos de sua eletricidade por energia nuclear.
da ciência de abertura e do compartilhamento de Todavia, o perigo de acidentes e os riscos de terrorismo
informações. A guerra muda os valores humanos. O deixaram muitos temerosos da energia nuclear, apesar dos
segredo não foi compartilhado nem com a Rússia benefícios. Poucas situações na ciência e na tecnologia
comunista, uma das principais aliadas dos Estados Unidos modernas ilustram melhor a combinação de política e
e da Grã-Bretanha, mas ainda não confiável no assunto de valores sociais do que a seguinte pergunta: o que se deve
bombas confidenciais. Em 1945, o esforço de alemães, fazer com o conhecimento que temos sobre a energia
japoneses e russos para construir bombas atômicas não nuclear?
tinha chegado longe, embora um dos cientistas nos Estados
Unidos tenha fornecido informações em segredo para os
russos. Mesmo assim, o Projeto Manhattan produziu duas
bombas. Uma utilizava urânio, e a outra, plutônio, um
elemento radioativo criado pelo homem. Uma bomba
menor para teste explodiu no deserto americano. E
funcionou. As bombas estavam prontas para uso.
A Alemanha se rendeu em 8 de maio de 1945; assim,
nenhuma bomba foi jogada na Europa. O Japão continuou
com ataques no Pacífico. O novo presidente norte-
americano, Harry Truman, ordenou que a bomba de urânio
fosse jogada na cidade japonesa de Hiroshima em 6 de
agosto. A detonação era feita disparando-se um pedaço de
urânio sobre outro. Mesmo assim, os japoneses não se
renderam. Truman ordenou o lançamento da bomba de
plutônio em uma segunda cidade japonesa, Nagasaki, três
dias mais tarde. Essa ação finalmente acabou com a guerra.
As bombas mataram cerca de trezentas mil pessoas, na
maioria civis, e o Japão então se rendeu.