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Trovadorismo: as cantigas trovadorescas e as novelas de cavalaria

AS CANTIGAS LÍRICAS

As cantigas líricas são divididas em cantigas de amor e cantigas de amigo.

CANTIGAS DE AMOR

Como as cantigas provençais, das quais se originam, as cantigas de amor galego-portuguesas


exprimem a paixão infeliz, o amor não correspondido que um trovador dedica a sua senhora, como
na “Cantiga da Ribeirinha”.

Aspectos formais e de conteúdo

A cantiga de amor pode ser identificada por alguns elementos característicos. O eu lírico é
sempre masculino e representa o trovador que dirige os elogios a uma dama. O trovador, que sofre
com frequência, se autodenomina coitado, cativo, aflito, enlouquecido, sofredor. A dama é
identificada por termos que destacam suas qualidades físicas (fremosa, delgada, de bem parecer),
morais (bondade, lealdade, comprida de bem), sociais (bom sen, falar mui ben). Ao comparar sua
dama às outras da mesma corte, o eu lírico a apresenta como superior. As comparações também são
utilizadas para acentuar as características do trovador: sua dor é maior do que a de todos os outros e
seus talentos superam os de seus rivais.
Os trovadores galego-portugueses utilizavam versos com sete sílabas métricas (redondilha
maior). O refrão é uma inovação em relação aos provençais.

Cantiga d’amor de refran Cantiga de amor de refrão

Quantos an gran coita d’amor Quantos o amor faz padecer


eno mundo, qual og’ eu ei, penas que tenho padecido,
querrian morrer, eu o sei, querem morrer e não duvido
o averian én sabor. que alegremente queiram morrer.
Mais mentr’ eu vos vir’, mia senhor, Porém enquanto vos puder ver,
sempre m’eu querria viver, vivendo assim eu quero estar
e atender e atender! e esperar, e esperar.

Pero ja non posso guarir, Sei que a sofrer estou condenado


ca ja cegan os olhos meus e por vós cegam os olhos meus.
por vos, e non me val i Deus Não me acudis; nem vós, nem Deus.
nem vos; mais por vos non mentir, Mas, se sabendo-me abandonado,
enquant’ eu vos, mi senhor, vir’, ver-vos, senhora, me for dado,
sempre m’eu querria viver, vivendo assim eu quero estar
e atender e atender! e esperar, e esperar.

E tenho que fazen mal-sen Esses que veem tristemente


quantos d’amor coitados son desamparada sua paixão,
de querer sa morte, se non querendo morrer, loucos estão.
ouveron nunca d’amor ben, Minha fortuna não é diferente;
com’ eu faç’. E, senhor, por én porém eu digo constantemente:
sempre m’eu querria viver, vivendo assim eu quero estar
e atender e atender! e esperar, e esperar.

GARCIA DE GHILHADE, João. In: CORREIA, Natália CORREIA, Natália (Adap.). Cantares dos trovadores
(Sel,. intro. e notas). Cantares dos trovadores galeog- galego-portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa,
portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 1978. p. 125.
124.

Definição do tema: o sofrimento (coita) de amor.

Vassalagem amorosa: os termos utilizados para identificar a dama fazem referência às relações de
vassalagem da sociedade feudal.

Refrão: os versos repetidos no fim de cada estrofe reforçam a subordinação do eu lírico a sua senhora. Ele
vive à espera de uma nova possibilidade de vê-la.

Cegueira do olhar: desdobramento da temática do sofrimento amoroso. Após ver a amada, o eu lírico fica
“cego” para todas as outras pessoas.

Desejo de morrer: associado nessa cantiga ao comportamento de outros trovadores, também é uma
expressão da coita de amor.

Comparação com os demais trovadores: procedimento frequente nas cantigas de amor, como recurso
expressivo para ressaltar uma prova de maior cortesia do eu lírico, porque ele sofre mais que todos os outros
pelo amor de sua dama, ou está disposto a fazer o que ninguém mais faz. No caso dessa cantiga: continuar
esperando ser recompensado com um olhar da dama.

O servilismo amoroso é simbolizado, no texto, pela expressão mia senhor, presente em todas
as produções do gênero. A coita de amor, nomeada no primeiro verso, é caracterizada
principalmente pela declaração do desejo de morrer que toma conta dos amantes não
correspondidos. O eu lírico dessa cantiga considera viver sem o amor de sua senhora um castigo
pior que a morte. Afirma, por isso, a determinação de permanecer vivo, sofrendo, somente pela
possibilidade de continuar vendo sua senhora.
CANTIGAS DE AMIGO

De modo geral, as cantigas de amigo falam de uma relação amorosa concreta que acontece
entre pessoas simples, que vivem no campo. O tema central dessas cantigas é a saudade.

Aspectos formais e de conteúdo

As personagens, o ambiente e a linguagem presentes nas cantigas líricas fazem com que elas
representem diferentes universos da sociedade medieval. Nas cantigas de amigo, todas as
referências dizem respeito aos sentimentos e à vida campesina, às moças simples que vivem nas
aldeias e nos campos.

O eu lírico das cantigas de amigo é sempre feminino e representa a voz de uma mulher
(amiga) que manifesta a saudade pela ausência do amigo (namorado ou amante).

O cenário é muito importante nesses textos e sempre caracteriza um ambiente campesino.


Várias personagens participam do “universo amoroso” criado na cantiga de amigo, além da donzela
e de seu amante: mãe, amigas, damas de companhia. Essas personagens são testemunhas do amor
que a amiga dedica ao seu namorado. A mãe, às vezes, representa um obstáculo para a realização
dos encontros entre os amigos.

O tom das cantigas de amigo é mais positivo e otimista que o das cantigas de amor, porque,
embora falem da saudade, tratam de um amor que é real e ocorre entre pessoas de condição social
semelhante. Por esse motivo, a amiga se define frequentemente como alegre (leda).

Essas canções sempre apresentam refrão. Os versos utilizados nessas composições


costumam ter cinco sílabas métricas (redondilha menor). A organização dos versos e das estrofes
das cantigas de amigo é muito mais regular que a das outras cantigas. Os trovadores utilizam versos
muito semelhantes em estrofes diferentes, criando assim uma estrutura com paralelismo.

Como o refrão é repetido ao final de todas as estrofes, ele não sofre as alterações de posição
que criam o paralelismo entre os versos da cantiga:

Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias; A Paralelismo: repetição do verso inicial,
todas-las aves do mundo d’amor diziam: B com uma ligeira alteração de sua parte
leda m’and’eu final. O objetivo é manter o paralelismo
sem alterar muito os sentidos dos versos.

Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas A’ Leixa-pren: tipo especial de paralelismo
Todas-las aves do mundo d’amor cantavam: B’ no qual ocorre a repetição do último verso
leda m’and’eu da estrofe anterior ou de parte dele.
toda-las aves do mundo d’amor dizian; B’’
do meu amor e do voss’em ment’avian:
leda m’and’eu Refrão

TORNEOL, Nuno Fernandes. In: CORREIA, Natália (Sel., int. e notas). Cantares dos trovadores galego-portugueses.
2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 218. (Fragmento).

A cantiga de Nuno Fernandes Torneol é um exemplo de estrutura paralelística perfeita e


demonstra a grande habilidade do trovador para intercalar os versos, garantindo equivalência de
estrutura e de sentido entre as estrofes.

As cores diferentes mostram como a estrutura paralelística é construída na cantiga .

Cantiga d’amigo Cantiga de amigo (alba)

Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias; Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!
todas-las aves do mundo d’amor dizian: Todas as aves do mundo, de amor, diziam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas; Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs claras!
todas-las aves do mundo d’amor cantavan: Todas as aves do mundo, de amor, cantavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Todas-las aves do mundo d’amor dizian; Todas as aves do mundo, de amor, diziam;
do meu amor e do voss’en ment’avian: do meu amor e do teu se lembrariam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Todas-las aves do mundo d’amor cantavan; Todas as aves do mundo, de amor, cantavam;
do meu amor e do voss’i enmentavan: do meu amor e do teu se recordavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Do meu amor e do voss’en ment’avian; Do meu amor e do teu se lembrariam;


vós lhi tolhestes os ramos em que siian: tu lhes tolheste os ramos em que eu as via:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Do meu amor e do voss’i enmentavan; Do meu amor e do teu se recordavam;


vos lhis tolhestes os ramos en que pousavan: tu lhes tolheste os ramos em que pousavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Vós lhi tolhestes os ramos em que siian Tu lhes tolheste os ramos em que eu as via;
e lhis secastes as fontes em que bevian: e lhes secaste as fontes em que bebiam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

Vós lhi tolhestes os ramos em que pousavan Tu lhes tolheste os ramos em que pousavam;
e lhis secastes as fontes u se banhavan: e lhes secaste as fontes que as refrescavam:
leda m’and’eu. alegre eu ando.

TORNEOL, Nuno Fernandes. In: CORREIA, Natália CORREIA, Natália (Adap.). Cantares dos trovadores
(Sel., int. e notas). Cantares dos trovadores galego- galego-portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa,
portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 1978. p. 219-221.
218-220.
AS CANTIGAS SATÍRICAS

As cantigas de caráter satírico apresentavam críticas ao comportamento social de seus pares,


difamavam alguns nobres ou denunciavam as damas que deixavam de cumprir seu papel no jogo do
amor cortês. Elas podem ser de escárnio ou de maldizer.

CANTIGAS DE ESCÁRNIO

Nas cantigas de escárnio, o trovador critica alguém por meio de palavras de duplo sentido,
para que não sejam facilmente compreendidas. O efeito satírico que caracteriza essas cantigas é
obtido por meio de ironias, trocadilhos e jogos semânticos. De modo geral, ridicularizam o
comportamento de nobres ou denunciam as mulheres que não seguem o código do amor cortês .

Cantiga de escárnio

Ai, dona fea, fostes-vos queixar


que vos nunca louv’en (o) meu cantar;
mais ora quero fazer un cantar Dona fea, nunca vos eu loei
en que vos loarei toda via; en meu trobar, pero muito trobei;
e vedes como vos quero loar: mais ora já un bon cantar farei,
dona fea, velha e sandia! en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
Dona fea, se Deus mi pardon, dona fea, velha e sandia!
pois avedes (a) tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via; GARCIA DE GUILHADE, João. In: CORREIA, Natália
e vedes qual será a loaçon: (Sel., int. e notas). Cantares dos trovadores galego-
dona fea, velha e sandia! portugueses. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p.
136.

“Que vos nunca louv’en (o) meu cantar”: que nunca vos louvei em meu cantar.
Loarei: louvarei. Sandia: louca.
“Se Deus mi pardon”: que Deus me perdoe.
Coraçon: vontade.
Loaçon: elogio, louvação.

O trovador, nessa cantiga, manifesta seu descontentamento por uma senhora ter-se queixado,
dizendo que ele não a elogiava em suas composições.

Para revidar a ofensa sofrida, ele promete louvá-la e diz que ela é feia, velha e louca. Não
há, no texto, a nomeação da mulher a quem o eu lírico se dirige e, embora a linguagem seja
ofensiva, o trovador opta por utilizar mais a ironia do que termos grosseiros.
CANTIGAS DE MALDIZER

Nas cantigas de maldizer, o trovador faz suas críticas de modo direto, explícito,
identificando a pessoa satirizada. Essas cantigas costumam apresentar linguagem ofensiva e
palavras de baixo calão. Muitas vezes, tratam das indiscrições amorosas de nobres e membros do
clero.

AS NOVELAS DE CAVALARIA

As novelas de cavalaria são os primeiros romances, ou seja, longas narrativas em verso,


surgidas no século XII. Elas contam as aventuras vividas pelos cavaleiros andantes e tiveram
origem no declínio do prestígio da poesia dos trovadores. Tiveram intensa circulação pelas cortes
medievais e ajudaram a divulgar os valores e a visão de mundo característicos da sociedade desse
período.

Estão organizadas em três ciclos, de acordo com o tema que desenvolvem e com o tipo de
herói que apresentam:

• Ciclo clássico: novelas que narram a guerra de Troia e as aventuras de Alexandre, o Grande. O
ciclo recebe essa denominação porque seus heróis vêm do mundo clássico mediterrâneo.

• Ciclo arturiano ou bretão: histórias envolvendo o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda.
Nessas novelas podem ser identificados vários núcleos temáticos: a história de Percival, a história
de Tristão e Isolda, as aventuras dos cavaleiros da corte do rei Artur e a demanda do Santo Graal.

• Ciclo carolíngio ou francês: histórias sobre o rei Carlos Magno e os 12 pares de França.

Dos três ciclos, o arturiano permanece como um dos temas literários mais explorados, sendo objeto
de romances, poemas, filmes e óperas até hoje.

CRONICÕES, NOBILIÁRIOS E HAGIOGRAFIAS

Textos de caráter mais documental foram produzidos na Idade Média. Eram conhecidos
como cronicões e nobiliários. Os cronicões registravam os acontecimentos marcantes da vida dos
nobres e dos reis em ordem cronológica. Os nobiliários registravam os nascimentos, os casamentos
e as mortes de uma determinada família de nobres. Outros textos que circulavam pelas cortes
medievais eram as hagiografias, relatos da vida dos santos.

ABAURRE, M. L.; ABAURRE, M. B. & PONTARA, M. Português: contexto, interlocução e sentido. São Paulo:
Editora Moderna, 2013. p.70-76.

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