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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 19, 21 de Setembro | 2016

Matemática | Reportagens

Problemas sem problema


Entender o que dizem os enunciados é o primeiro passo para decifrar
enigmas matemáticos. Percorra as características do gênero para resolver as
operações propostas
Cleusa Acosta

"Meus alunos não sabem interpretar o que os problemas pedem" é uma reclamação recorrente entre
os professores de Matemática. A explicação também está na ponta da língua: a garotada não consegue
relacionar o que está escrito em palavras com as operações matemáticas necessárias para solucionar a
proposta. O que permanece um mistério para muita gente é como mudar esse quadro. "Enquanto os
estudantes não atingem certo nível de proficiência em leitura, não compreendem adequadamente
enunciados de problemas, principalmente dos mais complexos", afirma Daniela Padovan, mestre em
Didática da Matemática e coordenadora pedagógica da rede municipal de ensino de São Paulo. Além de
enunciados e exercícios, gráficos e tabelas precisam ser analisados e discutidos para que sejam mais
bem entendidos.

Claro que a disciplina tem uma linguagem própria, com números e sinais. Mas, sem o aporte da leitura
e da escrita, a apropriação dos códigos específicos é pobre - no pior dos casos, mecânica e sem sentido.
Assim, ler em Matemática envolve usar o ponto de vista matemático para compreender textos em
diversos gêneros.

Como em outras disciplinas, é importante sondar o conhecimento prévio da turma sobre o tema que
será discutido, antecipando a ideia principal e a formulação das primeiras hipóteses. Seguindo essa
perspectiva, Edson do Carmo, professor da EMEF Sérgio Milliet, na capital paulista, sugeriu que as
turmas de 6ª e 7ª séries trabalhassem com um texto sobre a história da Matemática. "Ao associar o
título Números Primos à imagem de uma pessoa de vestes gregas, os alunos sacaram: 'Esse povo criou
os números primos' antes de saber o que eles eram", testemunha o professor. O mesmo raciocínio vale
para reportagens de jornais e revistas: explore destaques como títulos, subtítulos, fotos, legendas e
gráficos, deixando que a garotada relate o que imagina que virá a seguir.

O mesmo vale para a análise de tabelas e de gráficos. Julio Cesar Juns Gonçalves, professor da EMEF
Marechal Deodoro da Fonseca, na capital paulista, começa o trabalho com uma sondagem preliminar:
"Levanto perguntas como 'que informações estão contidas ali?' e 'que relações os gráficos e as tabelas
estabelecem com a reportagem que acompanham?'". Nessa etapa de entendimento, os aspectos
técnicos também devem ser debatidos: que grandezas estão representadas nos eixos horizontal e
vertical? Qual o tipo de gráfico e por que ele foi escolhido? Que dados estão representados nas
legendas?

Vocabulário específico deve estar na ponta da língua

Ao mergulhar na leitura, você vai notar que, muitas vezes, pode ser preciso esclarecer o vocabulário
específico da área. Foi o que ocorreu com Edson do Carmo e o tal texto sobre números primos. Na
primeira passada de olhos, a garotada estranhou termos como "divisor", "número natural" e
"múltiplos": mesmo já estando acostumada a usá-los em algoritmos, ela desconhecia a nomenclatura.
Nesses casos, vale a pena realizar uma breve revisão de conteúdo antes de seguir em frente.

Já a leitura de enunciados merece uma atenção especial. Priscila Monteiro, coordenadora da formação
em Matemática da prefeitura de São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, e formadora do projeto
Matemática É D+, da Fundação Victor Civita (FVC), dimensiona o tamanho do desafio: "É preciso debater
o que está sendo pedido, se há mais ou menos informações do que é necessário e, só depois disso,
definir o tratamento matemático que deve ser aplicado aos dados propostos".

Não se trata de uma tarefa trivial, especialmente para quem ensaia os primeiros passos na trilha dos
números. Um exemplo ilustrativo, tomando por base um enunciado não muito complicado, é que há
muita diferença entre perguntar "se eu tenho 3 figurinhas e ganho 4, com quantas fico?" ou "se eu
tenho 3 figurinhas e meu amigo 4, quantas ele tem a mais do que eu?". Perceba que, no primeiro caso,
a "tradução" para a linguagem matemática envolve uma operação de adição cuja ordem dos termos
não interfere no resultado final. No segundo, por outro lado, pode ser utilizada a subtração, tirando o
número de figurinhas que possuo do total que tem o meu amigo.

Do 6º ao 9º ano, com o aumento da complexidade dos conteúdos, a variedade, e mesmo a posição dos
elementos, gera mudanças nos procedimentos necessários. Um problema sobre a compra de um
computador pode colocar diversas situações. Por exemplo: "Quero comprar um computador de 2 mil
reais, guardei 500 e meu amigo me deve 500. Se eu juntar essas quantias e guardar 100 reais
mensalmente, durante seis meses, conseguirei comprá-lo à vista, levando em conta que terei 10% de
desconto nessa forma de pagamento?" Aqui, é preciso combinar soma e multiplicação para obter o
total que possuo (500 + 500 + 6 x 100 = 1.600), calcular, por meio de uma porcentagem, o valor
promocional para compras à vista (2.000 - (2.000 x 0,10) = 1.800) e então subtrair desse número minhas
economias (1.800 - 1.600) para chegar à resposta correta: "Não. Ainda faltarão 200 reais".

É preciso selecionar os dados que encaminham a solução

Há também enunciados sem números e problemas sem solução, que questionam a necessidade -
muitas vezes fortemente arraigada na cabeça das crianças - de os enigmas terem uma resposta. Para
elas, isso às vezes é fonte de confusão. O Referencial de Expectativas para o Desenvolvimento da
Competência Leitora e Escritora no Ciclo II do Ensino Fundamental da rede municipal de ensino de São
Paulo traz um caso curioso, relatado por dois educadores franceses. Na ânsia de resolver a questão
"Em uma embarcação há 26 carneiros e 10 cabras: qual a idade do capitão?", 76 de 97 alunos
responderam 36, num automatismo de manejar os dados e apresentar a solução.

Novamente, é importante esclarecer as dúvidas de vocabulário - muitas vezes, é aí que mora boa parte
dos mal-entendidos. Julio Cesar Juns Gonçalves conta um exemplo trabalhado na 8ª série:
"Multiplicando a idade que Maria terá daqui a 3 anos com sua idade há 2 anos, o número obtido é 84.
Calcule a idade de Maria e confira sua resposta". A turma não entendeu que o verbo haver indicava
tempo decorrido, passado. Os dados foram mal relacionados e, consequentemente, transpostos
inadequadamente para a linguagem matemática: a equação proposta pela moçada foi (a + 3) X (a + 2) -
sendo "a" a idade de Maria - quando o correto seria (a + 3) X (a - 2).

Em todos esses casos, cabe a você estimular discussões coletivas com perguntas que favoreçam a
interpretação. As principais delas: "O que foi pedido?" e "Quais dados o problema oferece?", "Quais
estão sobrando?" e "Quais são indispensáveis?". Nessa etapa, o caderno é um companheiro importante
para os alunos. Anotações breves, com as hipóteses de respostas às questões de apoio que você
formula, destaques aos dados principais e hipóteses de procedimentos matemáticos a serem utilizados
auxiliam a montar o quebra-cabeça que, muitas vezes, está presente em enunciados mais
desafiadores. Percorrer junto com os estudantes esse caminho é fundamental para que eles possam
identificar quais conhecimentos específicos da área devem ser usados na resolução - e de que maneira
isso precisa ocorrer.

Além de usar a escrita para realizar cálculos e operações, é possível e desejável percorrer o trajeto
inverso. "Uma medida urgente no ensino da disciplina é apostar em justificativas, pois, sem elas, os
alunos só tentam aplicar fórmulas e regras passadas pelo professor sem entender o que estão
fazendo", afirma Priscila. É o que ocorre, por exemplo, quando a moçada decora que a ordem dos
fatores não altera o produto sem produzir com suas palavras uma explicação para a propriedade
comutativa.

Aprender com o erro e socializar as argumentações

Dessa perspectiva, a justificativa é uma maneira de a garotada ler e interpretar a própria prática.
Ademir Pereira Júnior, professor do Colégio Estadual Adaile Maria Leite, em Maringá, a 428 quilômetros
de Curitiba, não abre mão do procedimento nas aulas com as turmas de 6º a 8º ano. "A verdadeira
aprendizagem em Matemática é saber os porquês. Fazer contas é mais simples", diz ele. Em breves
parágrafos que acompanham os cálculos, os alunos têm espaço para se expressar e defender decisões
que tomaram na resolução de problemas e exercícios. Muitas vezes, as diferentes argumentações são
socializadas e debatidas por toda a classe. "Discutimos os erros, em vez apagá-los. Com a prática, a
turma produz textos cada vez mais claros e coesos", diz Ademir. Com a leitura e a escrita como aliada,
aprendem Matemática mais e melhor.

Gêneros privilegiados em Matemática

Enunciado de problema Tipo de texto que formula uma pergunta e, para sua resolução, apresenta
dados, que possuem certa relação entre si e com o que deve ser respondido. Na maioria dos
problemas, há um contexto que situa os dados - podem ser relatos, explicações, descrições etc. O
enunciado se distingue dos exercícios (em geral mais simples, como "resolva a equação 5x + 4 = 24")
por não corresponder à aplicação imediata de uma propriedade, fórmula ou definição. Por ser mais
complexo, exige reflexão ou alguma adaptação antes de colocar o conhecimento em prática.

Tabela e gráfico Não são exatamente gêneros de escrita, mas maneiras de tratar e apresentar a
informação. No caso das tabelas, as dificuldades são maiores nas de dupla entrada (que possuem duas
categorias ou mais), quando é preciso observar cada um dos elementos presentes para poder
identificá-los e cruzá-los. Já no caso dos gráficos, antes de enveredar pelas distinções que caracterizam
os diferentes tipos (de barras, de setores, de linhas etc.), é preciso conhecer as características comuns,
como legendas, rótulos de dados e título - a análise desses destaques gráficos ajuda a antecipar o
conteúdo do texto.

Enunciados decifrados

No Colégio Estadual Adaile Maria Leite, a turma do 6º ano debate e destaca os dados principais e
explica o raciocínio da resolução

No início... Destacar os dados numéricos e as palavras que podem mostrar a relação entre os números
é a primeira etapa da resolução

...E no fim Além de usar cálculos e fórmulas, falar com as próprias palavras sobre os caminhos para a
solução ajuda cada um a entender o que faz

Procedimento de estudo - Justificativa

Explicando como pensaram ao realizar operações e aplicar fórmulas, os alunos entendem por que e
como são realizados os cálculos
Descrições detalhadas de conteúdos trabalhados ou procedimentos utilizados na resolução de
problemas geralmente são produzidos ao término de uma aula ou etapa de aprendizagem. "A
justificativa serve para explicar como se pensou alcançar determinado resultado, relatar hipóteses e
conclusões e descrever estratégias", diz Daniela Padovan. A grande vantagem de sugeri-la é abrir
espaço para que os alunos tomem consciência dos cálculos, entendendo por que e como são
realizados. Dependendo do propósito da atividade, ela pode ser feita individualmente, em duplas ou
grupos - os dois últimos casos favorecem o intercâmbio de conhecimentos. Para que a turma se
aproprie da nomenclatura matemática e saiba usá-la nos textos, vale disponibilizar dicionários
específicos da disciplina, de modo que todos possam checar o significado dos termos mais
complicados.

Quer saber mais?

Contatos

Colégio Estadual Adaile Maria Leite, R. Armando Crippa, 735, 87047-140, Maringá, PR, tel. (44)
3228-5633
Daniela Padovan
EMEF Marechal Deodoro da Fonseca, Pça. Imprensa Paulista, 30, 05517-020, São Paulo, SP, tel.
(11) 3721-3843
EMEF Sérgio Milliet, R. Dr. Paulo de Andrade Arantes, 125, 03451-010, São Paulo, SP, tel. (11)
2783-3463
Priscila Monteiro

Bibliografia

O Homem que Calculava, Malba Tahan, 286 págs., Ed. Record, tel. (21) 2585-2000, 34,90 reais

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