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alunos-para-alem-dos-calculos

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 321, 01 de Abril | 2019

Matemática

Letramento matemático leva


alunos para além dos cálculos
Na Base, a Matemática vai além dos cálculos: ela passa pela capacidade
de raciocínio e de argumentação
Beatriz Vichessi

“Quero que as crianças aprendam a investigar os números e as relações entre eles e não
simplesmente que resolvam contas de forma mecânica e decorem a tabuada sem
compreendê-la”, diz Mariana de Gouvêa, professora do 1º ano da EE Brasilio Machado, na
capital paulista. A maneira com que a educadora expõe a forma como trabalha tem tudo a ver
com uma diretriz importante descrita na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): o letramento
matemático.

De acordo com o documento, o letramento matemático pode ser definido como as


competências e habilidades de raciocinar, representar, comunicar e argumentar
matematicamente, de modo a favorecer o estabelecimento de conjecturas, a formulação e a
resolução de problemas em uma variedade de contextos, utilizando conceitos, procedimentos,
fatos e ferramentas matemáticas. “Trabalhar nessa perspectiva pressupõe privilegiar o esforço
produtivo da turma, refletir sobre o processo, deixando para trás a ideia de que saber
Matemática implica só acertar resultados e sempre com rapidez”, diz Cristiane Chica, gestora
pedagógica do Mathema. O sujeito matematicamente letrado usa ideias matemáticas como
forma de leitura de mundo.

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“Ele sabe fazer cálculos aproximados para descobrir o quanto de juros está embutido em um
pagamento a prazo e tem segurança para dizer se o resultado de uma conta é razoável ou
não”, explica Luciana Tenuta, formadora de professores e assessora da rede municipal de
Educação de Belo Horizonte. Claudia Siqueira, diretora do Instituto Sidarta, em São Paulo,
completa: pessoas letradas em Matemática fazem uso da função utilitária da disciplina e
também sabem lidar com reflexões puramente matemáticas.

Esse jeito de enxergar e ensinar a disciplina, com todos esses objetivos, soa familiar? De fato, o
letramento matemático não é uma novidade e tem tudo a ver com o que Constance Kamii, Guy
Brousseau, Susana Wolman e outros estudiosos da didática da área defendem há tempos: o
saber matemático vai muito além do cálculo e está diretamente relacionado à construção do
raciocínio e à argumentação. A ideia de letramento, porém, não aparecia com esse nome em
documentos oficiais, como os Parâmetros Nacionais Curriculares (PCNs). Antes, eram usados
termos como numeramento, numeracia ou alfabetização matemática. Cristiane explica: “Na
Base, o letramento é claramente declarado uma aprendizagem essencial que deve nortear
currículos e propostas pedagógicas. Na prática, a escola deve proporcionar condições didáticas
para a turma raciocinar, usar conceitos e ferramentas para dizer, explicar e predizer
matematicamente dentro e fora da sala de aula”.

COMO ABRIR ESPAÇO PARA A APRENDIZAGEM MATEMÁTICA?


As tarefas aumentam a possibilidade de os alunos aprenderem quando:

1. São possíveis de serem trabalhadas por meio de diversas representações.


2. Dão oportunidade de investigação aos alunos.
3. São apresentadas antes de o professor expor o método de resolução.
4. Têm componentes visuais.
5. São desafiadoras e ao mesmo tempo acessíveis - têm “piso mais baixo e teto mais
alto”.
6. Desafiam os alunos a argumentar com razões cada vez mais completas para
convencer os colegas e ter uma postura cética.

Fonte: Livro Mentalidades Matemáticas, Jo Boaler (Editora Penso)

Mais do que resolver, é preciso refletir


Formar alunos letrados em Matemática tem a ver com incentivá-los a estar em ação durante a
aula, a interagir com colegas e elaborar conjecturas e hipóteses, além de usar os números para
alcançar respostas significativas para formular conceitos e participar de correções coletivas em
que se discutem os resultados. “A força de trabalho fica nas mãos das crianças”, defende
Luciana. Segundo ela, ao professor cabe perguntar, ouvir respostas e provocar, intervindo de
modo construtivo. E mais: ele precisa, de acordo com Claudia, acolher as diferentes formas de
se chegar a um resultado e também proporcionar aulas em que diferentes resoluções sejam
compartilhadas e gerem discussões entre os estudantes a fim de a gerar inputs para outras
crianças.

“Nem sempre a Matemática na escola é pauta de reflexão, está mais só para constatação. E isso
precisa mudar”, diz. Jo Boaler, no livro Mentalidades Matemáticas (Editora Penso), escreve:
“Quando meus alunos me pedem ajuda, tenho todo o cuidado para não fazer o raciocínio
matemático para eles”. Na obra, Jo explica a importância de não decompor os problemas para
a turma, de modo a facilitá-los, subtraindo a demanda cognitiva. Defende que não ajudar os
estudantes é, com frequência, o melhor que pode ser feito por eles. Prefere incentivar a turma
a desenhar o problema, buscar outros recursos para tentar visualizar a questão e, então,
solucioná-la. Ela também recomenda o uso em sala de aula de tarefas matemáticas de
mentalidade de crescimento para abrir espaço para o aprendizado (confira suas características
abaixo), em vez das atividades estreitas e procedimentais, que simplesmente exigem a
realização de um cálculo.

Na sala de aula de Mariana, na EE Brasilio Machado, esse jeito de explorar Matemática está nos
detalhes. Está, por exemplo, no calendário exposto no quadro e usado pelos alunos para
contar quantos dias faltam para determinado evento. Está também na sequência numérica que
serve de apoio até que eles se apropriem dela por completo e na priorização da via de
resolução de problemas - uma das formas privilegiadas, de acordo com a BNCC, para
desenvolver o letramento (saiba mais no quadro abaixo). Sem reduzir a Matemática à
memorização, Mariana reforça a essência da disciplina e do aprimoramento do raciocínio
lógico.

LETRAMENTO MATEMÁTICO EM FOCO


Confira três estratégias para desenvolver a habilidade em sala de aula
Resolução de problemas
É a atividade central na Matemática, com destaque para o
desenvolvimento de processos pessoais de resolução, usando
diferentes recursos. O aluno aprende enquanto resolve o desafio e
na discussão com os colegas.

Investigação
O aluno é estimulado a buscar padrões na Matemática e organizar
textos sobre isso. Para tal, usa-se especulação. Por exemplo: o que
acontece com um número quando é multiplicado por 10 ou 100? E se
for um número decimal?

Projetos e modelagem
Ao estudar um tema significativo com a turma, uma grande pergunta
norteia o projeto, cujo produto final é feito com base nos conteúdos
explorados. Na modelagem, aprende-se a construir modelos para
resolver uma situação matemática apoiando-se em exemplos já
conhecidos.

Embora possa parecer que lançar mão de contextos da vida real seja imperativo para tornar os
alunos letrados em Matemática, alto lá! Situações cotidianas, que façam sentido para os alunos
são bem-vindas, mas não podem ser as únicas. “Existem contextos intrínsecos à Matemática e
eles devem aparecer nas aulas desde o primeiro ano do Ensino Fundamental”, explica Luciana.
A tabela de Pitágoras, por exemplo, coloca em cena contextos puramente matemáticos. “Como
saber o resultado de 7 vezes 8 investigando outras colunas que não a desses números? Posso
usar a do 5 e do 2, por exemplo: 5 vezes 8 (40) mais 2 vezes 8 (16)”, explica.

Na Educação Infantil, as crianças da pré-escola também já devem trabalhar com problemas


matemáticos. Mesmo ainda sem saber a sequência numérica de cor ou escrever os algarismos
de modo convencional. Brincadeiras, jogos e questões cotidianas podem ser usados para fazer
os pequenos se envolverem com a Matemática. Como dividir os blocos de montar da sala, de
modo que todos recebam a mesma quantidade? Esse é um exemplo de uma das situações que
podem ser propostas a eles. O objetivo não é que o grupo chegue à resposta certa, mas que se
envolva com modos de resolver o desafio. As crianças costumam ir distribuindo item por item
entre si, até que não reste mais nenhum. Ao final, têm de ser estimuladas a analisar se essa
saída funcionou: todos receberam a mesma quantidade de blocos? Incentivar o registro do
procedimento e do resultado é importante para que o grupo vá avançando no que diz respeito
à elaboração do conhecimento no nível da representação, fundamental para a aprendizagem
de cálculos e do recurso da antecipação.

É trabalhando com a linguagem e o jeito de fazer matemática que as crianças aprendem a


trabalhar tal como os matemáticos, indo além da repetição de conteúdos (leia o quadro abaixo
sobre a Teoria das Situações Didáticas formulada por Guy Brousseau). Com isso, têm chance de
conquistar, de verdade, o letramento matemático para fazer uso dele pelo resto da vida, dando
utilidade ao que é aprendido na escola.

TEORIA DAS SITUAÇÕES DIDÁTICAS

A proposta de Guy Brousseau é de que, na escola, o professor ensine dando condições


aos estudantes para construírem o conhecimento

1. Desafiar os alunos a tomar decisões, de modo que formulem ideias


2. Fazer com que eles coloquem essas decisões em jogo, de modo a prová-las

3. Organizar debates para que o grupo discuta estratégias de resolução: quais são mais adequadas?

Fonte: Introdução ao Estudo das Situações Didáticas - Conteúdos e Métodos de Ensino, Guy Brousseau. Editora
Ática

Fonte: BNCC Consultoria: Cristiane Chica, gestora pedagógica do Mathema


Fotos: Patrícia Monteiro/NOVA ESCOLA

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