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instabilidade da economia
soviética: um retorno aos
anos trinta*
Victor Meyer
Universidade Estadual de Feira de Santana
e Universidade Católica de Salvador
Apresentação
*
O presente trabalho é u m a adaptação de p a r t e de um dos capítulos da dissertação
de mestrado do A u t o r , Determinações Históricas da Crise da Economia Soviética, publicada
c o m o livro em 1995 pela E d i t o r a da U n i v e r s i d a d e Federal da Bahia.
Um debate preliminar
N E P : N o v a Política E c o n ô m i c a .
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a polarizar-se em t o r n o de duas concepções opostas, cujos principais
formuladores teóricos foram, respectivamente, Preobrajenski e Bukharin.
Para Preobrajenski (1979), um conflito fundamental lavrava na base
da sociedade soviética: o conflito entre operários e camponeses. Os
camponeses seriam os agentes do desenvolvimento da p r o d u ç ã o m e r -
cantil, a qual forçosamente os conduziria a u m a diferenciação entre
ricos e pobres. Os camponeses ricos (os kulaks), enriqueceriam cada
vez mais rapidamente c o m a N E P e exigiriam crescentes concessões ao
p o d e r soviético. T a m b é m o p e q u e n o comerciante agiria dessa forma e
entraria em conflito c o m o Estado revolucionário. O capital estrangeiro,
inicialmente sob controle, caminharia no sentido do açambarcamento
da grande indústria e logo seria um aliado das forças burguesas assim
renascentes na U R S S . Este sentido geral do d e s e n v o l v i m e n t o era
previsível, segundo Preobrajenski, p o r q u e tal havia sido e continuava
sendo a lógica (já conhecida) da expansão do capital. Nesse contexto,
entendia ele que conviviam na U R S S duas realidades antagônicas: u m a
ilha socialista, subordinada à lei da planificação, e um mar de relações
capitalistas, subordinado à lei do valor. Para que a ilha socialista pudesse
assegurar seus espaços e expandir-se, teria q u e fazê-lo a expensas das
forças tradicionais; seria necessária u m a progressiva expropriação dos
camponeses, b e m c o m o dos arrendatários capitalistas instalados na
indústria e no comércio, mediante taxações sistemáticas que alimentariam
o fundo de acumulação socialista. Em linhas gerais, este seria, segundo ele,
o processo da "acumulação socialista primitiva".
B u k h a r i n (1987),por seu lado,partia de outras premissas e chegava a
conclusões opostas. Em primeiro lugar, não admitia que a p e q u e n a e x -
ploração camponesa, sem o emprego do trabalho assalariado, fosse
considerada capitalista; seria u m a economia privada, mas não capitalista.
A nacionalização da terra, já decretada p o r ato do p o d e r soviético,
impediria o seu desenvolvimento r u m o ao capitalismo. Vendo o Estado
em condições de sobrepor-se à lógica expansiva das forças potencialmen-
te contra-revolucionárias, B u k h a r i n concluía que a pequena exploração
camponesa deveria crescer livremente e, de acordo c o m essa convicção,
defendia a consigna "Enriquecei!", a ser lançada no campo, para preservar
a aliança operário-camponesa. Haveria um desenvolvimento equilibrado
das economias rural e urbana, e o ônus desse caminho seria um avanço
lento da economia socialista. Por isso, seus opositores taxariam essa
alternativa de "socialismo em passo de lesma" (Sachs, 1988).
C o n t u d o , enquanto prosseguia o debate, a dinâmica das lutas sociais
criava novos fatos consumados. R e l e m b r e - s e que, na U R S S da década
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tui um testemunho de que, em datas tão distantes, já se manifestava em
certas alas do partido dirigente u m a noção quanto à inevitabilidade do
recurso à coação extra-econômica na construção das bases do socialismo,
dentro das condições particulares vividas pela U R S S . Aos olhos de
Preobrajenski, o recurso à coação decorria do atraso e c o n ô m i c o da
U R S S , cuja indústria tendia a ser facilmente esmagada pelas forças
maiores da produção capitalista no plano mundial. P o r essa razão, a
U R S S precisava defender-se da concorrência, deixando de enfrentá-la
em c a m p o aberto, e assumindo a necessidade de alguma forma de m u r o
protecionista.
Ainda sob esta ótica, c o m o já foi lembrado acima, a e c o n o m i a c o -
letivizada defrontava-se c o m um obstáculo interno, a p r o d u ç ã o c a m -
ponesa privada, que pressionava de dentro pela expansão das velhas
relações de produção, e limitava os diversos ensaios de planificação da
economia. A ulterior evolução dos fatos mostraria, p o r é m , q u e u m a
outra fonte alimentadora da coação extra-econômica provinha das r e -
lações entre o Estado e a classe operária, ou, mais amplamente, entre o
Estado e os trabalhadores urbanos, fato que se constituiria n u m paradoxo
se confrontado c o m as teorizações sobre o socialismo até então pensadas
no c a m p o do marxismo.
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Várias vezes citada no p r e s e n t e trabalho, c o n q u a n t o n ã o seja aqui t o m a d a c o m o
referencial t e ó r i c o , essa obra de Baykov c o n t é m i m p o r t a n t e d o c u m e n t a ç ã o sobre
o p e r í o d o em análise. O m e s m o se deve dizer da m o n u m e n t a l História da Rússia
Soviética, de E. H. C a r r .
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capitalismo bastante superior no que se refere aos padrões tecnológicos
praticados na p r o d u ç ã o econômica. A época dos primeiros planos
qüinqüenais, a inferioridade dos produtos da indústria soviética c o n -
tinuava bastante visível. A publicação Planovoe Kozyaistvo (Economia
Planificada), afirmava que:
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Informes recolhidos por brigadas do Vesenkha que inspecionaram
certo n ú m e r o de empresas nas indústrias de carvão, de c o q u e e m e -
talúrgica, revelam que, quanto à qualidade, a situação não era satis-
fatória nessas indústrias. [...] A produção de metal em padrões abaixo
da n o r m a e que não se ajusta à prova analítica estabelecida, aumenta
ano a ano, mês a mês. (apud Baykov, 1948: 171).
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Vesenkha — C o n s e l h o S u p r e m o da E c o n o m i a N a c i o n a l .
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Pressões de "baixo para cima":
o mercado dos camponeses
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Kolkhoz — Fazenda C o l e t i v a .
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q u e m venceria, muitos acorreram para o lado do v e n c e d o r [...] As-
sim, os impulsos e influências que determinaram o c o m p o r t a m e n t o
do camponês eram complicados e contraditórios... a l i m e n t a n d o
seu ressentimento n u m a submissão a contragosto. (Deutscher, 1968:
125).
Bases históricas da instabilidade da economia soviética: um retorno aos anos trinta I95
esvaziassem o kolkhoz, em troca das atividades de subsistência. A nova
legislação obrigava o granjeiro coletivizado a dedicar um certo m í n i -
mo de dias de trabalho ao kolkhoz. Na mesma linha, estabelecia que as
tentativas de ampliação dos lotes individuais seriam passíveis de e n -
q u a d r a m e n t o judicial. Ainda assim, u m a inspeção de lotes individuais,
realizada em 1939, revelou que o excesso sobre os limites legais atingia
nacionalmente u m a área equivalente a 2,5 milhões de hectares. Reformas
posteriores, realizadas ainda antes da Segunda Guerra Mundial, visaram
aumentar os atrativos dos Kolkhozes de m o d o a assegurar a funcionalidade
do sistema. Prevaleciam, p o r é m , os mecanismos de coação.
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cursos básicos e n u m baixo nível de civilização das forças produtivas —
m u i t o menos n u m ambiente marcado pela ruptura entre os objetivos
do Estado e a consciência prática dos trabalhadores. C h e g o u - s e a u m a
situação totalmente imprevista: os trabalhadores se faziam agentes das
forças mercantis, em vez de controlá-las, ou ao menos esboçar passos
nesse sentido.
Mudanças diversas, inclusive na composição social dos trabalhadores
urbanos, davam seqüência às transformações vividas pelo proletariado
no c o m e ç o dos anos vinte. De acordo c o m C a r r e Davies (1980a: 493),
em 1929, era a seguinte a fisionomia dos trabalhadores urbanos: 61,6%
dos mineiros, 40% dos metalúrgicos e 3 6 , 1 % dos operários têxteis eram
de origem camponesa. Era também crescente o número de trabalhadores
industriais que, ao m e s m o tempo, mantinham-se c o m o proprietários
de terras: entre os q u e ingressaram entre 1926 e 1929 nas minas de
Donbass, 37,4% conservavam terras de sua propriedade. Nessa mesma
época, entre os recém-recrutados para trabalhar c o m o metalúrgicos em
M o s c o u e na Ucrânia, 28,4% e 27,3%, respectivamente, t a m b é m m a n t i -
n h a m terras. Os mesmos autores citam o periódico Puti Industrializatsii,
n ú m e r o 7,1929 (Carr e Davies, 1980a: 494) segundo o qual,na empresa
do Yuogostal, um observador registrara que um autêntico m e m b r o do
proletariado industrial trabalhava ao lado de um patrão rural, transferido
do campo para a cidade.
Baykov (1948:223) menciona os seguintes dados: no censo operário
de 1929, constatou-se q u e somente a metade dos trabalhadores ocupados
na indústria havia tido experiência industrial antes da R e v o l u ç ã o . No
censo de 1930, esta faixa já havia caído para 42%. Em certas regiões
industriais, esses operários perfaziam apenas 19,6% do total. Por outro
lado, as levas oriundas do campo continuavam afluindo: a expansão
industrial operada sob os primeiros planos qüinqüenais fez c o m que o
n ú m e r o de operários triplicasse no decorrer da década de 1930.
A mudança na composição social dos trabalhadores urbanos, nesses
anos, contribuiu para levar a extremos os processos iniciados durante o
C o m u n i s m o de Guerra, tendentes à desagregação do proletariado en
quanto classe. A burocratização do Estado ganhava novos espaços e cria-
va mecanismos de perpetuação, na medida em que se demarcava u m a
ruptura entre a nova classe operária e aquela que fizera a Revolução.
Isaac Deutscher fez o seguinte comentário sobre este fenômeno, cujos
desdobramentos e conseqüências marcariam profundamente a sociedade
soviética:
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A circulação da m ã o - d e - o b r a aumenta sem cessar... As empresas,
especialmente as obras de construção, são c o m o lugares de trânsito
o n d e se contratam diariamente centenas de novos trabalhadores e
outros tantos, se não mais, se demitem.
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Sovnarkom — C o n s e l h o de Comissários do P o v o .
Principais Conclusões
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p r ó p r i o papel na p r o d u ç ã o . Esse gênero de planificação, t a m b é m
tendencialmente, não dependeria da violência extra-econômica para
reproduzir-se, e nesta medida indicaria a possibilidade do seu avanço
em todas as áreas da sociedade, viabilizando u m a planificação em seu
conjunto desligada do aparelho de repressão.
Levantamos essa hipótese, não tanto c o m o exercício de cenários
alternativos, mas para demonstrar, p o r oposição ou p o r contraste, as
conseqüências econômicas da ruptura da consciência de classe do p r o -
letariado. Isto porque, c o m os trabalhadores transformados em agentes
de forças mercantis e alvo da coerção, fechava-se absolutamente a única
via possível para que o sistema pudesse indicar, ao menos c o m o u m a
tendência, u m a via de autodesenvolvimento sem o recurso à violência
extra-econômica. Assim sendo, consolidou-se um sistema umbilical-
mente d e p e n d e n t e da coerção estatal, sem a qual emergiriam imedia-
tamente e de forma geral as relações capitalistas. Estamos discorrendo
aqui sobre as determinações do "socialismo de Estado".
A dependência do sistema soviético face aos mecanismos estatais de
vigilância e repressão trouxe u m a outra implicação. Todos os processos
e todas as tendências econômicas em marcha levavam a um reforço do
papel do Estado, sem cuja presença o sistema não poderia sobreviver. O
socialismo soviético não poderia, por isso, realizar o processo tendencial
de extinção do Estado, previsto pelo marxismo clássico para o socialismo
em geral. Tendencialmente, o que se verificava era exatamente a expansão
e a hipertrofia do Estado.
A essa altura, o esforço interpretativo sobre o sistema soviético pa-
rece avançar sob a pressão de aparências enganadoras, u m a vez que o
enrijecimento da superestrutura coatora, c o n q u a n t o sugira no plano
das aparências um fortalecimento do sistema, estava de fato demostrando
a sobrevivência apenas " p o r um fio" das novas relações de produção. E,
o n d e a superestrutura repressiva aparecia mais sistemática, mais densa,
precisamente nesses pontos as relações mercantis e mercantil-capitalistas
estavam na verdade m u i t o próximas da superfície. Ao estender o cerco
da coerção aos trabalhadores urbanos, criando para o p e n s a m e n t o
conceituai u m a situação eivada de paradoxos, o sistema demostrava de
fato, in extremis, dificuldades generalizadas para seguir reproduzindo-se.
Referências Bibliográficas
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