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O presente estudo, de caráter preliminar, visa buscar compreender o mais

recente discurso da mineração, sob o título de “transição justa” (“just transition”). Com
este fim, em 28/04/2021 foi realizada bibliometria na base de dados Web of Science que
resultou em 188 artigos mapeados, cuja breve análise aponta para a ampla ausência de
países da América Latina, sendo estes grandes exportadores de commodities exatamente
para os precursores destas ideias, através de investimento de capital estrangeiro dos
Estados Unidos da América, Alemanha, Inglaterra, China e outros, ao passo que as
publicações proliferam a partir dos anos 2000, sobretudo a partir de 2018 (17
ocorrências), 2019 (37), 2020 (73) e 2021 (25 publicações até a data desta pesquisa).
Nacionalmente, tem destaque a atuação da Fundação Getúlio Vargas – FGV
divisão Europa, instituição de ensino e pesquisa privada que tem atuado em parceria
técnica com o Consulado da Alemanha e o governo do estado de Minas Gerais no Brasil
na promoção de uma série de eventos em 2020 e 2021 exultando esta nova estratégia da
indústria, a chamada “mineração 4,0”, “mineração sustentável”, tentando claramente
associar esta atividade, marcadamente violadora dos direitos humanos, de povos e
comunidades tradicionais, e agressora do meio ambiente com setores mais inovadores e
de ampla adoção de inovações tecnológicas, presumindo um menor impacto ambiental e
maior aceitação social.
Este discurso da transição justa se evidencia em situações práticas nas quais a
indústria tenta abafar o conflito com flertes para um suposto consenso vindo de cima
(Acselrad, 2004; Chateauraynaud, 2017), no qual o meio ambiente e modos de vida de
populações previamente localizadas em suas áreas de exploração são negociados,
alterados e por fim, extintos pela prática extrativista mineral. Em Minas Gerais temos o
exemplo de Brumadinho, Mariana e Itabira com a extração de minério de ferro,
esgotamento de reservas e rompimentos de barragem consecutivos. Em contraste é
possível encontrar mobilizações para o fortalecimento da indústria de energia limpa e
carros elétricos, além de mineradoras de lítio que fornecem para fabricantes de baterias.
Já no Rio Grande do Sul, potencial nova fronteira extrativista mineral nacional
(Viero e Silva, 2010; SME, 2018), vemos um eco deste discurso por exemplo na fase de
licenciamento do projeto Mina Guaíba (exploração de carvão) pela empresa Copelmi
que conta com investimento de capital norte-americano e chinês, consoante documento
do poder público “Roadmap Tecnológico para Uso Mais Limpo do Carvão” (CGEE,
2012) e pela promoção pela federação das indústrias locais – FIEGS em 2017 do
seminário "Alternativas Sustentáveis do Uso do Carvão: Oportunidades do Complexo
Carboquímico no Brasil – Marco regulatório para atração de investimentos", assim
como ampla revisão de seu marco regulatório com a promulgação da política de carvão
estadual (2017), com o planejamento para o estabelecimento de dois polos
carboquímicos na região.
Desta maneira, analisando a situação sob o viés da sociologia pragmática
(Barthé et al, 2016; Chateauraynud, 2017) verifica-se a articulação tanto de agentes de
justificação, favoráveis a uma lógica de consenso e à implementação do
empreendimento, como de suas contrapartes críticas, estes últimos alicerçados na
“afirmação de valores ou de modos de existência irredutíveis” (Chateauraynaud, 2017:
37), o que nos remete à necessidade de aprofundamento e de estudos futuros acerca dos
apoios materiais de cada um destes atores para provar o que se afirma, justifica e como
agem publicamente.
A identificação e evidenciação desses pontos de interesse, principalmente com
relação ao público mais vulnerável e vizinho a esses empreendimentos é ponto chave
para entender os contrastes das ações e lacunas de atuação dessa transição justa.
Historicamente, populações atingidas por esse empreendimento vivem uma série de
violações dos direitos humanos e alto impacto ambiental, de forma que a mudança de
matrizes energéticas não contempla a realidade destes (Svampa, 2019; Araóz, 2020).
O que parece ser executado até o momento são práticas de Responsabilidade
Social Corporativa que tem o intuito de atender a anseios regulatórios e de mercado,
sem fazer modificações estruturais nas comunidades atingidas pelos empreendimentos,
tornando-se na verdade práticas Políticas de Responsabilidade Social Corporativa
(Banerjee, 2008).
Ao mesmo tempo em que as empresas investem grandes quantias em eficiência
energética que retorna em economia financeira futuramente, as mesmas não reparam os
passivos ambientais deixados por suas operações, como descontaminação ambiental,
reconstrução de ecossistema, preservação de mananciais e descaracterização de
barragens (Acosta, 2018; Escobar, 2005).
Reparar os passivos ambientais e atender as demandas da população atingida
parece ser economicamente inviável para as empresas, impossibilitando o seu
funcionamento (Acserald, 2018). Por esse motivo o estado assume uma forma híbrida
na regulação para o funcionamento do extrativismo em discursos “sustentáveis”,
negligencia os “insustentáveis” e não privilegia as comunidades atingidas durante o
conflito (Gudynas, 2009; Svampa; 2020).
Até o momento, apesar de reduzir alguns impactos ambientais a longo prazo
dentro das fronteiras da empresa, essas práticas e discursos de eficiência energética
parecem atender a anseios de investidores estrangeiros e negociações com o estado, ao
passo que os impactos ambientais de larga escala causados pelo extrativismo não são
priorizados.
Faz-se necessário aprofundar nas experiências de transição energética dos países
que discutem a “Just Transition” e entender a aproximação com as demandas
comunitárias, bem como isso tem impactado as regiões locais, além de compreender
melhor também as implicações para as redes de produção em países base do
extrativismo.

Referências

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