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Combustão do gospel

Resenha de A explosão gospel. Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico
no Brasil. CUNHA, Magali do Nascimento. Rio de Janeiro: Mauad X, Mysterium, 2007.

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº.1

O movimento gospel brasileiro teve crescimento exponencial a partir da década de 1990


graças – dentre outros fatores – à associação entre artistas evangélicos e igrejas que têm no

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Doutorando em História Social pela USP, mestre em História do Tempo Presente pela UDESC, especialista
em Marketing e Comunicação Social pela Cásper Líbero, bacharel e licenciado em História pela USP.
Pesquisador do NEHO-USP. Contato: edumeinberg@gmail.com
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espetáculo e na mídia potentes formas de atração de fiéis, e este é um dos temas fulcrais de
A Explosão gospel, da pesquisadora Magali do Nascimento Cunha. Cunha é mestre em
Memória Social e Documento pela Universidade do Rio de Janeiro, doutora em Ciências
da Comunicação pela Metodista de São Paulo e professora de cursos diversos nesta
instituição, transitando por temas como Igreja e Sociedade, Ecumenismo e Comunicação e
Religião.

Nesta obra de 231 páginas, a autora identifica a explosão do gospel como o momento da
década de 1990 quando os conjuntos de rock evangélico passam por uma adaptação
poético-musical em que as composições atravessam temas mais contemporaneizados e
associados à juventude, por vezes com diminuição do conteúdo religioso e maior uso de
linguagem coloquial; e as melodias escolhem gêneros como o heavy metal e o hard rock
como matrizes possíveis.

Cunha apresenta exemplo do uso de coloquialidade na poética através da composição


Baião, do pioneiro conjunto de rock evangélico Rebanhão, onde se escuta: “se essas ruas,
se essas ruas fossem minhas, eu pregava cartaz, eu comprava spray, escrevinhava nelas
todas: Jesus, the only way. Jesus é o único caminho, prá quem quiser morar no céu, quem
quiser atalhar, vai pro beleléu.” (CUNHA, 2007, p. 81.) Para Cunha, este conjunto formado
no Rio de Janeiro por músicos de igrejas evangélicas diferentes foi o precursor do rock
gospel brasileiro, gravando discos pelas majors Polygram e Continental, o que sublinha o
interesse da mídia secular por este gênero poético-musical.

O conjunto marcou a passagem de uma música litúrgica tradicional a outra mais adequada à
contemporaneidade, com poética e música entendidas como expressões demoníacas por
algumas igrejas e pelo despojamento dos artistas em relação ao uso de vestimentas e da
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informalidade da linguagem. Atendendo a demandas de parte dos fiéis, igrejas como a


Renascer em Cristo, fundada em 1986 em São Paulo pelo casal Estevam e Sônia
Hernandes, investiram no rock n’ roll como gênero musical condutor da liturgia: a maior
parte dos conjuntos ligados à igreja teve seus fonogramas reproduzidos na Gospel Records,
estúdio próprio da instituição e divulgados em rádios e teledifusoras a ela vinculados,
apontando para a importância da mesma como formadora dos novos rumos da canção
gospel no século XX.

A autora sublinha que foi Hernandes quem patenteou o termo gospel no Brasil, ainda
detendo seus direitos de uso e registrando uma série de produtos religiosos: a gravadora
Gospel Records, a teledifusora Rede Gospel, a radiodifusora Gospel FM, o festival SOS da
Vida Gospel, a Editora Gospel, o portal da internet Igospel, o sistema de atendimento
telefônico Gospel Ligaki, o periódico Gospel. E para além destas mídias, o termo ainda foi
utilizado em empreendimentos como o curso pré-vestibular Gospel e o cartão de crédito
Gospel Card Bradesco.

Cunha nota uma terminologia específica utilizada pelos evangélicos quando o assunto é
música. Assim, os artistas são convencionados ministros de louvor ou levitas; a canção é
chamada louvor ou adoração; as apresentações chamadas de cultos de adoração e os shows
em série ou turnês, de jornadas proféticas. As canções destes conjuntos, ou ministérios de
louvor e adoração, vão ao encontro das teologias da prosperidade e da batalha espiritual
costumeiramente utilizadas pelas igrejas (neo) pentecostais, utilizam-se de linguagem
acessível e apropriam-se de gêneros musicais populares como o samba, o axé, o pagode, o
rap. O uso da teologia da prosperidade é exemplificado em trechos de canções como “tudo
o que Jesus conquistou na cruz, é direito nosso, é nossa herança, todas as bençãos de Deus
para nós, tomamos posse”, do Ministério Koinonia; e da batalha espiritual em Nosso
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general, de Adhemar de Campos: “pelo Senhor, marchamos sim, seu exército poderoso é,
sua glória será vista em toda a terra, vamos cantar o canto da vitória, Glória a Deus!
Vencemos a batalha, toda arma contra nós perecerá”, seguida do refrão “o nosso general é
Cristo, seguimos os seus passos, nenhum inimigo nos resistirá.”

Em um show vivenciado pela autora, a cantora Ana Paula Valadão teria pedido a Deus que
perdoasse as pessoas pela idolatria praticada no Brasil antes da chegada dos portugueses,
quando “outros deuses eram cultuados”, apresentando a nação como invocadora das trevas
e “prostituída espiritualmente”(p. 133). Expressões usadas por Valadão como
“entronizamos potestades” e “diante do trono do Rei dos Reis” (p. 134) identificariam a
separação feita pelos evangélicos entre eles e as religiões de tradição indígena, afro-
brasileira e católico-romanas. A cantora pediu ainda que Deus restaurasse a sexualidade dos
brasileiros, forjando do brasileiro sensual um povo santo, apontando para o conceito de
castidade dos evangélicos, entendido como “santidade”.

Para Cunha, na lógica do mercado consumir bens e serviços é ser cidadão, e na “lógica da
cultura gospel, consumir bens e serviços religiosos é ser cidadão do Reino de Deus.” (p.
138.) O cristão como segmento de mercado é ilustrado através da Expocristã, evento
realizado por empresa de marketing cristão de membros da Igreja Batista de Atibaia e
realizada anualmente em São Paulo. Nesta, stands com produtos diversos - livros, revistas,
CDs, DVDs, cosméticos, objetos rituais, alimentos, brinquedos, material escolar,
eletroeletrônicos e instrumentos musicais - convivem com serviços oferecidos por
seguradoras, bancos, cartões de crédito, buffets, gráficas e empresas de turismo, todas
utilizando alcunhas como gospel, cristão e de Jesus. Folderes dos mais variados ministérios
anunciam palestras sobre temas como marketing pessoal e institucional e espetáculos
musicais.
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O consumo é entendido atualmente pelos evangélicos como positivo, uma maneira a mais
de se achegarem a Deus, o que se mostra em slogans como “a serviço do Rei” e
“propriedade de Jesus”, inseridos em mercadorias e que possibilitam que o consumidor
evangélico seja identificado como tal pelos demais, dando sinais também de sua
prosperidade econômica.

Cunha considera que na cultura gospel o entretenimento e o consumo não sejam apenas
ações que respondam à lógica do mercado e da mídia mas “constituam elementos
produtores de valores e sentidos religiosos”, manifestando-se assim como mediadora de um
“sagrado mais disponível, acessível e próximo. A mídia se alimentaria das aspirações dessa
comunidade de consumidores de bens espirituais e materiais lhes devolvendo “mensagens,
orientações, estímulos e consolos” (p. 170) e promovendo uma unidade de
consumidores/fiéis.

Para a autora, o gospel é híbrido ao interpolar aspectos da modernidade e da tradição, ainda


que não represente nenhuma mudança de vida. Haveria assim uma “transformação no
invólucro com conservação na profundidade” (p. 206), o que ela traduz através da
expressão “vinho novo em odres velhos”. A cultura gospel teria como características a
inserção na modernidade em que vivemos, a sacralização de gêneros musicais populares, o
abrandamento da tradição de restrição de costumes e o não-enraizamento da vivência
religiosa em grupos evangélicos específicos.
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O gospel é cultura de manutenção, não desafiando os paradigmas e demandas do cosmos


evangélico que se embebeda no tempo presente, é estratégia de integração a um meio
midiatizado pelos produtos de consumo e entretenimento, reproduzindo traços hegemônicos
da tradição discursiva evangélica como os dualismos igreja-mundo, sagrado-profano, o
exclusivismo religioso, o antiecumenismo, o antiintelectualismo, a infernalização de
expressões religiosas concorrentes e o sectarismo. A explosão gospel é uma boa leitura para
quem quer colocar em uma grade de compreensão o fenômeno da indústria e mercado
evangélicos em expansão.

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