Você está na página 1de 80

CLUBE DE REVISTAS w

REVISTA
mobile

22.9.2023

O GOLPE
BATEU NA
w

TRAVE

77
CLUBE DE REVISTAS

/ Capa
O GOLPE BATEU NA TRAVE
3 | Almirante Garnier e o naufrágio da
fragata golpista de Bolsonaro, por Plínio
Teodoro
edição #77

/ Política
22 | Os absurdos da Lava Jato, por Henrique
Rodrigues
32 | A resposta do MST ao relatório final de
conteúdo |

Salles na CPI, por Ivan Longo

/ Brasil
39 | Vitória dos povos indígenas: marco
temporal é derrotado, por Raphael Sanz
47 | Mariana (MG): “Nós não acreditamos
mais na Justiça brasileira”, por Raphael Sanz

/ Global
54 | Lula na ONU: o aclamado discurso do
presidente decifrado por especialistas, por
Ivan Longo

/ Moda e política
63 | A gravata da sorte de Lula, por Iara Vidal

/ Cinema
72 | Som da Liberdade é medíocre e
transforma drama infantil em delírio cristão,
por Marcelo Hailer

78 / Expediente
Fotos capa: : Marcos Corrêa/PR e Antônio Cruz/Agência Brasil
CLUBE DE REVISTAS

Foto Alan Santos/PR

Capa

ALMIRANTE GARNIER
E O NAUFRÁGIO DA
FRAGATA GOLPISTA
DE BOLSONARO
por Plínio Teodoro
CLUBE DE REVISTAS

O acordo de delação premiada firmado


pelo tenente-coronel Mauro Cid causou um
rombo no casco da fragata golpista colocada
em curso por Jair Bolsonaro (PL) após a
derrota para Lula nas eleições presidenciais
de 30 de outubro passado

V
azadas a conta-gotas nas últimas
semanas, a divulgação na quinta-feira
(21) de novas informações reveladas por
Cid à Polícia Federal (PF) causou verdadeiro
tsunami na cúpula das Forças Armadas. E
asfixiou principalmente o ex-comandante da
Marinha, o almirante Almir Garnier Santos.
Segundo Cid, Garnier teria embarcado
prontamente na tramoia golpista proposta por
Jair Bolsonaro em reunião secreta com os
comandantes das Forças Armadas.
Servil ao ex-presidente, a quem devia favores,
o marinheiro teria colocado a tropa à disposição
do golpe, cobiçando surfar no mesmo enredo
do vice-almirante Augusto Rademaker, que,
juntamente com o general Costa e Silva e o
tenente-brigadeiro Correia de Melo, compôs a
tríade que decretou o Ato Institucional nº 1 em 9
de abril de 1964.
O golpe só não foi adiante pelo silêncio do
CLUBE DE REVISTAS

“Se o senhor
for em frente
com isso, serei
obrigado a
prendê-lo”
General Marco Antônio
Freire Gomes para
Bolsonaro, segundo
Foto Alan Santos/PR

Mauro Cid

tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida


Baptista Junior — que nas redes e em
entrevistas nunca disfarçou seu apreço pelo
presidente fascista. E, principalmente, pela
pronta reação do general Marco Antônio Freire
Gomes, então comandante do Exército.
“Se o senhor for em frente com isso, serei
obrigado a prendê-lo”, teria dito Freire Gomes,
que foi pressionado e, por fim, considerado um
general "melancia" — verde por fora e vermelho
por dentro — pela horda bolsonarista.
A negativa e a reprimenda, que causaram o
naufrágio do golpe, deram-se porque o general
sabia que os comandantes do Sul (Fernando
Soares), do Sudeste (Thomaz Paiva), do Leste
(André Novaes) e do Nordeste (Richard Nunes)
CLUBE DE REVISTAS
não apoiariam quaisquer aventuras golpistas
de Bolsonaro.
Além disso, Freire Gomes estaria ciente de
que um golpe dado por Bolsonaro não teria
apoio dos Estados Unidos de Joe Biden, tanto
de militares quanto de civis. Seis comitivas
estadunidenses já teriam vindo ao Brasil em
2022 para dar esse recado a Bolsonaro e às
Forças Armadas.

Foto Nelson Jr./SCO/STF

Olavismo e a obsessão
por prender Moraes
Na delação à PF, Cid deu detalhes que ainda
não vieram a público — e que irão inundar ainda
mais as investigações que sufocam Bolsonaro,
civis e militares golpistas.
O que se sabe é que, enquanto fazia cena
nas raras aparições públicas, Bolsonaro
tramava nos porões do Alvorada um plano para
perpetuação no poder em conluio com figuras
CLUBE DE REVISTAS
que ascenderam das trevas fascistas durante
sua gestão.
Na reunião com a cúpula militar, Bolsonaro
teria apresentado uma minuta
golpista recebida das mãos de
Filipe Martins, então assessor
especial para Assuntos
Internacionais da Presidência.
A ideia era testar a receptividade
do golpe na cúpula militar.
Figura prepotente e burlesca, cunhada nas
teorias da conspiração de Olavo de Carvalho,
Martins teria entregado o documento a
Bolsonaro acompanhado de um advogado e de
um padre.
A minuta, segundo Cid, sugeria a
convocação de novas eleições e autorizava o
governo a prender adversários, entre eles Lula e
o ministro Alexandre de Moraes, presidente do
Tribunal Superior Eleitoral.
A PF investiga se se trata do mesmo
documento encontrado na busca e apreensão
em endereço do ex-ministro da Justiça
Anderson Torres, que previa ainda a formação
de uma junta, composta majoritariamente por
militares, para realizar uma intervenção na
Justiça Federal.
Segundo depoimento anterior de Cid, em
março deste ano, a prisão de Moraes era uma
CLUBE DE REVISTAS

Foto Lula Marques/Agência Brasil


O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid

obsessão para Bolsonaro. Em meio às diversas


consultas sobre propostas para tentar reverter
o resultado das eleições, o ex-presidente teria
falado abertamente sobre seu desejo de prender
o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Os próprios generais falavam: 'presidente,
isso aqui é golpe militar; se a gente fizer
qualquer coisa, é golpe militar'", relatou
Cid, afirmando que os militares explicavam
detalhadamente a Bolsonaro as consequências
da incitação golpista.
"O STF vai dar uma ordem anulando o
decreto do senhor e mandando prender o
senhor, e o Congresso duas semanas depois
vai aprovar uma PEC emergencial tirando o 142
CLUBE DE REVISTAS
da Constituição, e aí, qual o papel que a gente
vai cumprir? Quem tiver força. Então, é golpe
militar", alertaram os fardados.

Foto José Dias/PR


Braga Netto e o estudo golpista
Antes de ser levada para apreciação da
cúpula das Forças Armadas, a trama golpista de
Jair Bolsonaro envolveu dois de seus principais
aliados na caserna.
No dia 14 de novembro, o ex-presidente
recebeu em agenda secreta no Palácio da
Alvorada os generais Walter Braga Netto,
candidato a vice em sua chapa, e Paulo Sérgio
Nogueira de Oliveira, então ministro
da Defesa.
Dois dias após o encontro,
Mauro Cid confirma ter
solicitado ao tenente-coronel
Marcelino Haddad um artigo
CLUBE DE REVISTAS
científico apresentado à Escola de Comando
e Estado-Maior do Exército, em 2017, sobre o
"poder moderador das Forças Armadas", tese
encampada por Bolsonaro e seus aliados para
uma "intervenção militar", que desencadearia
um golpe de Estado.
O estudo afirma que, "em situações de não
normalidade, caracterizada pela intervenção
da União nos estados ou no Distrito Federal,
ou pela decretação do estado de defesa ou do
estado de sítio, "seria possível" enquadramento
no texto constitucional, e o emprego das Forças
Armadas seria regulado a partir de um decreto
presidencial (legalidade)".
"Essas possibilidades são as apontadas pela
doutrina majoritária como sendo o emprego
da FA [Forças Armadas] em GPC [Garantia
dos Poderes Constitucionais]”, conclui o
texto, usando a mesma interpretação lunática
do jurista Ives Gandra Martins, propagada
em grupos bolsonaristas, sobre o artigo 142
da Constituição Federal para justificar uma
"intervenção militar" — amplamente rechaçada
no mundo jurídico.
Na ativa, Haddad (o tenente-coronel)
atualmente é comandante do Centro de
Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de
Janeiro, principal celeiro do golpismo militar
no Brasil.
CLUBE DE REVISTAS

Foto Reprodução rede social


Paulo Generoso e
Eduardo Bolsonaro

Eu já sabia
Sócio de Eduardo Bolsonaro (PL-SP) na
Braz Global Holding, empresa criada em maio
do ano passado em Arlington, no Texas, Paulo
Generoso antecipou pela rede X (antigo Twitter)
o encontro entre Bolsonaro e a cúpula das
Forças Armadas, revelado em delação premiada
pelo tenente-coronel Mauro Cid.
Em sequência de tuítes publicados no dia
20 de dezembro de 2022, Generoso confirma
que, "em reunião esta semana com o alto
comando das Forças Armadas, Bolsonaro pediu
apoio para barrar o avanço do judiciário sobre
os outros poderes e pediu para que a posse
de Lula fosse adiada por seis meses, até que
equipe de juristas fizesse uma investigação
sobre favorecimento à (sic) Lula".
Em seguida, o sócio de Eduardo Bolsonaro
faz menção a uma resistência do então
CLUBE DE REVISTAS
comandante do Exército, o general Marco
Antônio Freire Gomes, que vinha sendo
pressionado pela horda bolsonarista a apoiar a
tentativa de golpe.
"Freire Gomes foi contra [o apoio ao golpe
de Bolsonaro] e disse que não valia a pena ter
20 anos de problemas por 20 dias de glória e
falou que não apoiaria ou atenderia o chamado
do presidente para moderar a situação mesmo
após Bolsonaro apresentar vários indícios de
parcialidade em favor de Lula pelo TSE e STF",
escreveu Generoso.

Foto José Cruz/Agência Brasil

Atitudes isoladas
Atuando como porta-voz das Forças
Armadas, o ministro da Defesa, José Múcio
Monteiro, comemorou as informações reveladas
por Cid e trazidas à tona.
Buscando blindar a alta cúpula a todo custo,
CLUBE DE REVISTAS
Múcio encontrou na delação de Cid amparo à
sua tese de que o golpe não foi levado adiante
justamente por oposição das Forças Armadas.

"Devemos ao Exército, à Marinha e à


Aeronáutica a manutenção da nossa
democracia. A aura de suspeição
coletiva nos incomoda, mas as
informações que saíram hoje são relativas a
comandantes passados. Não mexe com
ninguém que está na ativa.

Ficamos sempre torcendo que essas coisas


tenham fim, é ruim trabalhar num manto de
suspeição. Quem não tem nada a ver com isso
se sente incomodado. De uma coisa tenho
certeza cristalina: o golpe não interessou em
momento nenhum às Forças Armadas. São
atitudes isoladas”, declarou.
A "certeza cristalina" do ministro de Lula,
no entanto, não transparece quais tampouco
quantas "atitudes isoladas" marcharam no plano
golpista de Bolsonaro.
Considerada pela Marinha um "navio-
escolta" para situações de conflitos, a fragata
do almirante Garnier naufragou com a delação
de Mauro Cid. Mas ainda resta saber quantos
militares embarcaram na armada pelo golpe ao
lado de Jair Bolsonaro.
CLUBE DE REVISTAS

Foto Alan Santos/PR


As mamatas
do almirante
Em sua delação, Mauro Cid afirma que
Garnier aderiu ao golpe por dever favores a
Bolsonaro. O fuzileiro fluminense, que entrou
aos 10 anos na escola naval, foi alçado ao
comando da Marinha pelo ex-presidente sem
ter comandado nenhuma das esquadras da
Força — uma pré-condição para se chegar ao
topo da carreira.
A veia golpista do almirante, no entanto, tem
pouco a ver com o teor patriótico propagado
por bolsonaristas para louvarem a atitude
grotesca dele. A prontidão em colocar as tropas
ao lado de Bolsonaro se relaciona mais com
a mamata conquistada por Garnier durante o
CLUBE DE REVISTAS
governo fascista — a exemplo do que ocorreu
em boa parte da cúpula das Forças Armadas.
Esposa do almirante, Selma
Foligne Crespio de Pinho foi
contratada pelo governo de
Jair Bolsonaro na Secretaria-
Geral da Presidência poucos
meses depois de se aposentar
da Marinha, em abril de 2019.
Para comandar a recém-criada unidade de
Estratégia, Padronização e Monitoramento de
Projetos, Selma, que atuava como tecnologista
no Comando da Marinha sem concurso público
desde 1993, recebeu um salário de R$ 29,5 mil.
Filho do casal, o advogado Almir Garnier
Santos Junior foi contratado pela Emgepron em
29 de julho de 2019, no segundo semestre do
governo de Jair Bolsonaro, seis meses depois
de o pai ser alçado ao segundo posto de
comando do Ministério da Defesa.
Junior foi contratado para a função de
"assessor-adjunto de Compliance e Integridade
Corporativa (Compliance Officer)", com salário
de R$ 10,9 mil mensais.
Empresa Gerencial de Projetos Navais, a
Emgepron foi criada em 1982 e é vinculada
ao Ministério da Defesa por intermédio do
Comando da Marinha e tem por objetivos, entre
outros, promover a indústria naval e gerenciar
CLUBE DE REVISTAS
projetos que integram programas aprovados
pelo Comando da Marinha.

Foto Alan Santos/PR


FAB tour
Em maio de 2022, já gozando do status de
comandante da Marinha, Garnier resolveu levar
a esposa e um grupo de convidados para visitar
a região da Toscana, um dos principais polos
turísticos da Itália. Detalhe: a “comitiva” viajou
em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB).
Eles foram ao exterior para participar de uma
cerimônia militar. Exército e Aeronáutica também
mandaram oficiais à Itália. Porém, somente
Garnier recusou viajar em avião comercial para
voar no jato exclusivo.
O avião da FAB tem pouca autonomia de
voo. Por isso, Garnier e seus convidados foram
obrigados a fazer 11 escalas durante a viagem.
CLUBE DE REVISTAS
Após passar três dias na Toscana, a “turma”
esticou e foi à Turquia, em “missão oficial” de
quatro dias. Antes do retorno ao Brasil, todos
ficaram um dia em Lisboa, Portugal.

Regina Duarte e Rodrigo Constantino


Da sala de comando da Marinha, Garnier
também se ocupava das redes sociais e
da condecoração de figuras caricatas que
ganharam fama na mídia aliada ao bolsonarismo.
Em agosto de 2021, o almirante usou o perfil
oficial no Instagram do comandante da Marinha
(@comandante.mb) — que ainda é utilizado por
ele — para curtir uma publicação da atriz e ex-
secretária de Cultura Regina Duarte atacando o
sistema de votação.
Na publicação, Regina Duarte divulgou uma
arte sobre a tentativa da bancada bolsonarista
de pautar a PEC do voto impresso no Plenário,
após derrota na Comissão Especial da Câmara.
"O que o meu coração pede é transparência
eleitoral! Não há o que temer … ou há?!",
escreveu a atriz.
Garnier também usou o cargo para
condecorar com a medalha Mérito Tamandaré
diversos nomes que defenderam o golpismo
propagada pelo ex-presidente mesmo após a
derrota para Lula nas eleições.
Em 13 de dezembro, o almirante condecorou
CLUBE DE REVISTAS
o dono da Jovem Pan, Antônio Augusto Amaral
de Carvalho, o Tutinha, e funcionários da
emissora à época como Rodrigo Constantino,
José Maria Trindade e Augusto Nunes.
A medalha, concedida a personalidades que
tenham prestado "relevantes serviços à Marinha
do Brasil, no sentido de divulgar ou fortalecer as
tradições da força armada, honrando seus feitos
ou realçando seus vultos Históricos", também foi
entregue a José Roberto Guzzo, ex-Editora Abril,
que colabora com diversos meios conservadores
e publicações de clubes militares.

Barba por fazer


Um mês após a reunião que naufragou o
golpe, um amigo encontrou Garnier numa
sala da Marinha "à paisana, com a barba por
fazer, indisposto a participar da cerimônia de
transmissão do cargo".
De fato, o então comandante
da Marinha foi o único a não
passar o bastão para seu
sucessor, o almirante Marcos
Olsen, no governo Lula.
Caso seja confirmada a
delação de Cid, Garnier — que
estaria com problemas de saúde — pode
responder por ao menos dois crimes: abolição
violenta do Estado Democrático de Direito e
CLUBE DE REVISTAS
tentativa de golpe de Estado.
Na Justiça Militar, o almirante pode perder
a patente. E, mesmo que venha a ser deposto
do quadro de oficiais, seu salário será pago na
conta da esposa.

Foto arquivo pessoal

O jurista Pedro Serrano

Bolsonaro e a
fake news da defesa
Após o vazamento do trecho da delação que
envolve a cúpula militar na tentativa de golpe
proposta por Bolsonaro, integrantes do núcleo
duro de apoio ao ex-presidente viajaram às
pressas a Brasília.
Objetivo é avaliar com o ex-presidente a
CLUBE DE REVISTAS
estratégia em resposta ao vazamento da última
delação do tenente-coronel.
Há uma grande possibilidade de Bolsonaro,
que até então tratava seu ex-ajudante de ordens
como aliado, ir para o confronto.
Nas redes, a ordem é propagar que no Brasil
não há "intenção de crime". E, segundo a tese
bolsonarista, como o golpe não foi consumado,
não há o que se punir.
A teoria, no entanto, não passa de mais
uma fake news para enganar os apoiadores,
segundo o jurista Pedro Serrano, professor de
direito consitucional da PUC-SP.

"A tese de que o golpe não deu


certo, tão logo não houve crime, é uma
bobagem. No direito, o crime de golpe de
Estado é exatamente a tentativa de tomar
o poder, de retirar um governante eleito,
de atentar contra os Poderes do Estado. O
crime é a tentativa", explica Serrano.

"E, nesse caso, tendo-se em conta que o


crime é a tentativa, as reuniões, minutas de
decretos etc. são indícios fortes de que houve
o crime. A mera reunião para se planejar um
crime de golpe de Estado é crime. É você
iniciar as atividades com vista para o golpe",
emenda o jurista.w
CLUBE DE REVISTAS

FILMES

EP.2
Festa da Selma

Direção Luiz Carlos Azenha


Realização

Assista no YouTube da Fórum


www.youtube.com/forumrevista
Apoie pelo link
benfeitoria.com/projeto/apoieAto18
Doações via pix pela chave
pix@revistaforum.com.br
CLUBE DE REVISTAS

Integrantes da

Foto Reprodução rede social


Justiça Federal do
Paraná, com Flávia
Maceno em destaque

Política

“Só ela tem


conhecimento de
todos os absurdos
da Lava Jato”
Servidor da Justiça Federal do Paraná falou
à Fórum sobre Flávia Maceno, a ex-chefe
da secretaria de Sergio Moro na 13ª Vara
de Curitiba; levada para Brasília, o ex-juiz a
mantém “isolada”
por Henrique Rodrigues

E
" u não entendo por que não vão em cima
dela. A gente até vê sair uma coisinha
aqui ou ali, até alguns procedimentos
foram instaurados. Mas ninguém questiona e vai
diretamente nela, e só ela tem conhecimento de
CLUBE DE REVISTAS
todos os absurdos da Lava Jato”. A afirmação
é de um servidor da Justiça Federal do Paraná
e se refere à também servidora Flávia Cecília
Maceno Blanco, que ocupou a função de
diretora de secretaria da 13ª Vara Federal de
Curitiba durante o período em que o então juiz
Sergio Moro esteve por lá, ganhando fama em
todo o Brasil com a Lava Jato.
Por questões funcionais e de segurança,
o servidor do Judiciário Federal na capital
paranaense, que falou com exclusividade à
Fórum, não se identificará. Informações que
possam levar à sua identidade também serão
omitidas, permitindo-nos dizer apenas que ele
tem bem mais de dez anos como funcionário
de carreira na Justiça Federal do Paraná, tendo
passado por vários órgãos e varas, inclusive a
“célebre” 13ª Vara Federal, por onde estiveram
como juízes, desde o início da Lava Jato, Sergio
Moro (2014-2018), Gabriela Hardt (2018-2019
e 2023), Luiz Antonio Bonat (2019-2022),
Eduardo Fernando Appio (2023) e Fábio Nunes
de Martino (atual).
Em 11 de novembro de 2018, poucos dias
após a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, Moro
anunciou ao Brasil que deixava a carreira de
juiz federal. Ele abandonava os mais de 20
anos de magistratura para entrar numa barca
furada: assumir o cargo de ministro da Justiça
CLUBE DE REVISTAS

Foto Agência Brasil


Sergio Moro e Jair Bolsonaro

e Segurança Pública do novo presidente


extremista, do qual pediria demissão menos de
um ano e meio depois, alegando interferência
política na pasta por parte do “chefe”. No
entanto, ao deixar Curitiba para trás e embarcar
para Brasília, Moro anunciou que levaria junto
Flávia Maceno, que seria cedida da 13ª Vara
Federal da capital do Paraná para ocupar a
chefia de gabinete do recém-nomeado ministro.

“Eu e nem ninguém na


Justiça Federal de
Curitiba tem dúvidas de
que ele queria tê-la por
perto o tempo todo e
isolá-la. Moro sabe que ela
CLUBE DE REVISTAS
detinha os direitos mais exclusivos de tudo
que acontecia na vara nos últimos dez
anos, é claro que ela precisava estar
por perto e sempre na alçada dele, sob
a autoridade dele.

Você consegue imaginar o risco que é essa


mulher cair na mão de um outro juiz, ou de ficar
insatisfeita por qualquer razão e sair falando por
aí, dar com a língua nos dentes?”, diz o servidor.
Questionado sobre quais seriam esses
“direitos mais exclusivos” no período em que
ficou à frente da secretaria da 13ª Vara Federal
de Curitiba, no auge da popularidade da Lava
Jato, o funcionário explica que nessa função
Flávia praticamente estava autorizada a tudo
por Sergio Moro.

“Ela tinha de forma exclusiva


carta branca na gestão
de todos esses valores
que eram depositados [nos
acordos de leniência]. Por
outorga do Sergio Moro,
durante esse período que eles
estiveram lá, ela tinha
carta branca.

Como diretora de secretaria, ele delegou


CLUBE DE REVISTAS
plenos poderes a ela e, pelo cargo, naturalmente,
ela era a pessoa que executava todos os atos...
Há inúmeros processos, em relação aos quais
existem valores bilionários vindos de pagamentos
de multas, que ninguém de forma alguma
consegue acessá-los no sistema para ver essas
informações. São contas bancárias da 13ª Vara
[Federal], com sigilo absoluto, são valores que já
me garantiram que passam de R$ 1,5 bilhão... É
entrada, é saída de dinheiro, e não fica claro nem
para os juízes que assumiram depois que valores
são esses e como eles se movimentavam. Aquilo
é uma loucura total... Quem impôs esses sigilos
nesse nível, e todo mundo sabe lá, foi a Flávia, na
época em que o Moro era juiz titular”, acrescenta.
Os valores angariados com acordos de
leniência, de colaboração e repatriações
envolvendo os casos de corrupção na
Petrobras, no âmbito da Lava Jato, atualizados
e divulgados pelo setor de compliance da
companhia, representam mais de R$ 6
bilhões. Desse montante, R$ 2,9 bilhões estão
“desaparecidos” conforme apuração de um
processo de correição instalado pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), anunciado em maio
deste ano.
Na sexta (15), um relatório parcial dessa
correição realizada pelo CNJ apontou que
“um conluio para favorecer a força-tarefa”
CLUBE DE REVISTAS
foi instalado no seio da 13ª Vara Federal de
Curitiba, com a participação dos procuradores
do Ministério Público Federal (MPF) liderados
por Deltan Dallagnol. O trato com as questões
financeiras relacionadas aos acordos de
leniência, colaboração e repatriação foi
classificado como “uma gestão caótica”, que
tinha como intuito “destinar recursos no Brasil
para a Petrobras pagar acordos no exterior, que
retornariam para a força-tarefa”. Moro e Deltan
queriam instituir, com essas montanhas de
dinheiro “recuperadas”, uma tal “Fundação Lava
Jato”, uma excrescência que acabou sendo
proibida pelo Supremo Tribunal Federal.

Foto Agência Brasil

Sergio Moro e a mulher,


Rosangela Moro

Com o retorno de Moro à esfera política no ano


passado, quando foi eleito senador pelo Paraná,
Flávia e o marido, Maurício Tucunduva Blanco,
CLUBE DE REVISTAS
voltariam a ocupar posições centrais na vida do
ex-juiz. Ela foi nomeada chefe de gabinete da
esposa de Moro, a deputada federal Rosangela
Moro (União Brasil-SP), e segundo o portal da
Câmara dos Deputados seguiu no posto até o
final de julho deste ano. Já Blanco ganhou um
cargo de “assessor parlamentar sênior” no próprio
gabinete do senador Sergio Moro (União Brasil-
PR) e lá segue até o momento.
A insistência em levar Flávia e seu esposo
para todos os lados, para o servidor da Justiça
Federal que falou à Fórum, não é mero excesso
de confiança, tampouco afinidade profissional.
Ele crê que, dessa forma, com o casal fora de
Curitiba e do convívio diário nas instalações do
Judiciário Federal paranaense, o silêncio de
ambos estaria garantido.

“Eu tenho a impressão


muito clara que esse foi
um jogo para comprar
o silêncio de alguém,
colocando ela e o marido
no gabinete da Rosangela
[na verdade, Maurício está no
gabinete de Moro]. É impossível quem
trabalha lá dentro [da Justiça Federal
do Paraná] não ficar com a impressão
que isso foi para tirá-la de cena. Ela
CLUBE DE REVISTAS
é a única pessoa que conhece cada
página e cada detalhe de cada um
daqueles processos, com milhares de
eventos e circunstâncias, e de repente ela
sai de lá e vai para Brasília.

Esteve primeiro na chefia de gabinete do


Moro no Ministério da Justiça, na época do
Bolsonaro, e agora lotada no gabinete da
Rosangela Moro na Câmara”, concatena o
funcionário da Justiça, ainda que os registros do
site da Câmara mostrem um desligamento de
Flávia do gabinete de Rosangela Moro há pouco
mais de um mês.
Segundo a fonte entrevistada, é notório
para todos os servidores no prédio da Justiça
Federal do Paraná que, além de Flávia, vários
outros nomes de extrema confiança de Moro
durante o período em que ele foi juiz da Lava
Jato foram levados para Brasília por “saberem
demais” e por terem “agido além da conta”.
“O Moro, quando vai para o Ministério da
Justiça, ele carrega não só a Flávia e o marido
dela para Brasília, mas leva também um auditor
da Receita Federal, de nome Roberto Leonel,
que era a pessoa do Coaf [Conselho de
Controle de Atividades Financeiras] dele, que
seria o homem que fez aquelas incursões nos
sigilos tributários dos ministros do Supremo, e
CLUBE DE REVISTAS
uns quatro ou cinco delegados dele da Polícia
Federal daqui do Paraná, porque era gente dele.
Foi todo esse pessoal que sabia demais e que
agiu além da conta”, acrescenta.
Por fim, o servidor público responde a
uma pergunta que seria óbvia diante de tais
afirmações feitas por ele: qual o medo de Sergio
Moro para não dar espaço a Flávia Maceno,
carregando-a a tiracolo para todo canto após
sua saída da operação Lava Jato.

“O grande medo dele


é uma tomada de contas
vinda de qualquer lugar,
vinda do CNJ, do Supremo,
que obrigue essa pessoa
a falar... As mensagens da
Vaza Jato mostraram que ela tratava
tudo com o Dallagnol e com outros
procuradores. Ela fazia uma interlocução
direta na vara...

O Dallagnol andou questionando a Flávia que


o ministro Alexandre de Moraes [do STF] estava
cobrando a 13ª Vara Federal daqueles valores
lá das multas bilionárias que foram pagas
nos Estados Unidos, cobrando os acordos
aqui de Curitiba, porque a Raquel Dodge [ex-
PGR] estava cobrando... E aí a Flávia passa a
CLUBE DE REVISTAS

Foto Lula Marques/Agência Brasil


O ex-procurador e deputado cassado Deltan Dallagnol

repassar o tempo todo informações para ele


e chega a dizer que precisa estar municiada
de informações para poder responder à
Corregedoria [do TRF-4] e ao Moraes”,
responde, embora acredite que, "se bobear,
vão jogar toda a culpa no colo dela, afinal, o
culpado sempre é o mordomo e os servidores
são a parte mais fraca, a menos que ela faça
uma delação".
A Fórum entrou em contato com o gabinete
da deputada Rosangela Moro para questionar
a contratação de Flávia Macena, que outrora
fora chefe da secretaria da 13ª Vara Federal
de Curitiba, então liderada pelo marido da
parlamentar, e para ouvi-la em relação às
afirmações do servidor federal entrevistado. O
gabinete do senador Sergio Moro também foi
acionado para que o ex-juiz se manifestasse
sobre a reportagem. Até o momento, nenhuma
das partes do casal de parlamentares retornou
o contato.w
CLUBE DE REVISTAS

Foto Bruno Spada / Câmara dos Deputados


Política

A resposta do MST ao
relatório final de Salles na
CPI: "Final melancólico"
Réu por corrupção e contrabando de madeira,
relator da CPI que busca criminalizar o
movimento social pede indiciamento de
11 pessoas; expectativa é de derrota dos
ruralistas e bolsonaristas
por Ivan Longo

O
deputado federal Ricardo Salles (PL-
SP), que recentemente se tornou
réu na Justiça Federal por corrupção
passiva, associação criminosa, facilitação
ao contrabando, advocacia administrativa e
obstrução à fiscalização ambiental, apresentou
CLUBE DE REVISTAS
na quinta-feira (21) seu relatório final produzido a
partir da Comissão Parlamentar de Inquérito que
visa criminalizar o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, a CPI do MST.
Relator do colegiado instalado em maio
deste ano, Salles propõe, no documento, o
indiciamento de 11 pessoas — a maior parte
dirigentes do MST. Estão na lista nomes como
o do ex-ministro do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI) general Gonçalves Dias e
José Rainha, ex-líder do MST e atualmente
coordenador da Frente Nacional de Lutas
Campo e Cidade (FNL).

Além dos indiciamentos,


Salles indicou no relatório
a aprovação de uma série
de projetos de lei, entre
eles um assinado por Jair
Bolsonaro em sua época
de deputado, que prevê a
ampliação do porte de armas e cria uma
gama de categorias que poderiam acessar
armamento em áreas rurais.

Os trabalhos da CPI foram marcados por


diligências ilegais do próprio relator, ruralistas
e bolsonaristas em territórios indígenas e em
assentamentos, ataques misóginos contra
CLUBE DE REVISTAS
parlamentares mulheres que compõem o
colegiado e acusações infundadas contra
o MST, em uma tentativa de criminalizar os
movimentos de luta pela reforma agrária, a
esquerda brasileira e o próprio governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O MST divulgou, após a apresentação do
relatório, uma nota oficial em que repudia as
acusações de Salles e aponta "inconsistências,
falta de provas e conclusões genéricas". O
movimento cita, ainda, a falta de legitimidade
do relator para desempenhar tal papel, visto
que ele se tornou réu em um caso ligado a
contrabando de madeira ilegal.

"A CPI, sem objeto


determinado, realizou
diversas sessões em seis
meses de atuação, sem
apresentar o contraditório,
com um relator sem
legitimidade, acusado de
liderar um esquema de contrabando para
os Estados Unidos e Europa de madeira
extraída ilegalmente na Amazônia", diz
um trecho do comunicado.

"O MST destaca que o conjunto de


denúncias sinalizadas no documento são
CLUBE DE REVISTAS

Foto Rogério Tomaz Jr.


Deputados com o boné do MST em sessão da CPI

frágeis, mal escritas, obtidas a partir de provas


suspeitas, repletas de devaneios bolsonaristas.
Reafirma uma perspectiva de criminalização
contra a luta pela terra no Brasil. Repudiamos
os pedidos de indiciamento contra os
trabalhadores e as trabalhadoras Rurais Sem
Terra citados no documento. Essa manobra é
uma forma de intimidação e perseguição contra
as lideranças do MST que lutam pela Reforma
Agrária Popular. Salles ataca lutadoras e
lutadores reconhecidos historicamente em seus
estados por combaterem as desigualdades
sociais no campo brasileiro. Não aceitaremos
esse tipo de perseguição", prossegue o
movimento social
CLUBE DE REVISTAS
O relatório de Salles será votado pelos
membros da CPI na próxima terça-feira (26).
A expectativa, entretanto, é que o texto seja
rejeitado, visto que ao longo dos trabalhos
da comissão, que teve início com maioria
bolsonarista e ruralista, a bancada governista e
pró-MST aumentou e as sessões da comissão,
dia a dia, foram caindo em descrédito.

Foto Reprodução vídeo

Deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) lista os crimes atribuídos


a Salles, que é réu na Justiça Federal

"Salles, o 'réulator', ao apresentar o relatório


é visível o seu isolamento político e a tentativa
de posicionar acusações no grito, ignorando
totalmente os fatos e a realidade. As cenas
finais desta CPI são melancólicas e nem deveria
ter começado", arremata o MST.w

As pessoas que Ricardo


Salles quer indiciar
CLUBE DE REVISTAS

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil


Foto Lula Marques/ Agência Brasil

Golçalves Dias, José Rainha,


líder da Frente de Luta Campo
ex-ministro do GSI
e Cidade

As outras:
• Paulo Cesar Souza, integrante do MST
• Diego Dutra Borges, integrante do MST
• Juliana Lopes, integrante do MST
• Cirlene Barros, integrante do MST
• Welton Souza Pires, integrante do MST
• Lucinéia Durans, integrante do MST e
assessora na Câmara dos Deputados
• Oronildo Lores Costa, integrante do MST e
assessor na Câmara dos Deputados
• Jaime Messias Silva, presidente do
Instituto de Terras e Reforma Agrária de
Alagoas (Iteral)
• Débora Nunes, integrante da coordenação
nacional do MST
CLUBE DE REVISTAS

Descubra o
sabor intenso
e inconfundível
deste café e a
autenticidade
que flui em
cada xícara.

Compre na
Loja da Fórum

CLIQUE
AQUI
CLUBE DE REVISTAS

Foto Antônio Cruz/Agência Brasil


Indígenas comemoram derrota
do marco temporal no STF

Brasil

Vitória dos povos


indígenas: marco temporal
é derrotado no STF
Kerexu Yxapyry, liderança da Terra Indígena
Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, e
Givanildo Manoel, histórico militante indígena
e por direitos humanos, comentam a decisão:
“vitória da humanidade”
por Raphael Sanz

C
om o voto do ministro Luiz Fux, o
Supremo Tribunal Federal (STF) formou
maioria na quinta-feira (21) para rejeitar
a tese do marco temporal. O magistrado se
juntou ao relator Edson Fachin e aos ministros
Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso,
CLUBE DE REVISTAS
Cristiano Zanin e Dias Toffoli, somando 6 votos
pela rejeição da tese.
Logo após o voto de Fux, a ministra Cármen
Lúcia também votou contra o marco temporal
e ampliou o placar da maioria para 7 a 2. Os
ministros Gilmar Mendes, o decano, e Rosa
Weber, a presidente da Corte, deram números
finais à goleada jurídica: 9 a 2. Favoráveis
à tese votaram os dois ministros indicados
ao Supremo por Jair Bolsonaro (PL): André
Mendonça e Kássio Nunes Marques.

Fotos Carlos Moura e Fellipe Sampaio/SCO/STF

Indígenas acompanham votação do marco temporal no STF

A tese é considerada por críticos da


esquerda e pelos próprios indígenas como um
dos principais instrumentos do agronegócio
para invadir e explorar terras indígenas, e um
ataque frontal aos direitos dos povos originários.
De acordo com a cartilha Marco Temporal,
CLUBE DE REVISTAS
da Articulação dos Povos Indígenas (Apib),
1393 territórios estão sob ameaça. Segundo
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 226
processos que envolvem disputas de terras
estavam parados em instâncias inferiores
aguardando a decisão do STF, que terá um
impacto direto em todos eles.
Para Givanildo Manoel, mais conhecido
como Giva, educador e
histórico militante indígena
e de direitos humanos, a
derrubada da tese do marco
temporal recoloca a própria
Constituição Federal como
elemento central nas discussões
sobre demarcações de terras indígenas.
Ele também aponta para a importância dos
movimentos sociais para a vitória.

"Dois aspectos se colocam como


fundamentais nesse processo, a
mobilização da opinião pública
nacional e internacional e a própria
exposição do Brasil frente aos organismos
multilaterais, os quais o Brasil é
signatário de diversos pactos e
tratados que protegem os direitos dos
povos indígenas, como a Convenção
169," analisou.
CLUBE DE REVISTAS

Kerexu Yxapyry,
educadora, professora e
liderança da Terra Indígena
do Morro dos Cavalos, na
grande Florianópolis, também
comemora a decisão. Ela relembra
toda a trajetória de resistência dos últimos
523 anos dos povos indígenas e aponta a
importância da mobilização popular e indígena.
“Estamos mais uma vez desenhando para o
setor da sociedade brasileira que contrário aos
direitos indígenas que ‘direito é direito’, ainda
mais quando está registrado na Carta Magna
do nosso país. Nós, povos indígenas, que
desde 1500 viemos fazendo o enfrentamento
desse massacre e extermínio, mostramos
mais uma vez para todos que o movimento
indígena e suas organizações trazem e reforçam
o direito inato e congênito, anterior à criação
do próprio estado brasileiro. Estamos muito
felizes, comemorando e agradecendo nossa
ancestralidade, nossos povos e todos os
apoiadores", contou à Fórum.
Além da vida e da cultura dos povos
indígenas estarem ameaçadas, também está
em risco a própria preservação da natureza e
da vida dos não indígenas. De acordo com o
último relatório do MapBiomas sobre perda de
CLUBE DE REVISTAS
vegetação no Brasil, as terras indígenas são
responsáveis por preservar 19% de toda a
vegetação nativa do país. Apenas 1% da perda
de área nativa ocorreu nessas terras nos últimos
37 anos.
"Não é uma vitória apenas dos povos
indígenas aldeados e dos indígenas em
contexto urbano, mas sim de toda a
humanidade. Nesse momento de emergência
climática, é preciso garantir floresta em pé.
Isso é fundamental para amenizar o aumento
climático, principal desafio dessa geração.
Logo, quem se beneficia é o conjunto da
humanidade", avaliou Giva.
Nesse sentido, Xerexu Yxapyry, que tem
como uma de suas principais pautas a
recuperação da Mata Atlântica, também vê a
rejeição da tese do marco temporal como uma
vitória da humanidade e disse que está com a
alma lavada após o julgamento.

"É uma vitória planetária, pois são


tantas vidas em jogo. Enterrar de vez a
tese do marco temporal vai ser um 'marco
do basta' de questionarem, negarem
e tentarem apagar a existência dos
povos indígenas. Minha alma sai lavada e
leve desse julgamento", disse.
CLUBE DE REVISTAS

Foto Antônio Cruz/Agência Brasil


Durante todo o processo houve grande mobilização
contra o marco temporal

Indenização de fazendeiros
Outra questão em discussão que preocupa
as organizações indígenas para além da
validade da tese é o voto favorável de Alexandre
de Moraes à indenização de fazendeiros que se
consideram proprietários de terras indígenas.
De acordo com o texto, o valor pago pela
desapropriação da terra e sua subsequente
homologação como terra indígena seria integral,
o que poderia dificultar as demarcações devido
aos problemas orçamentários do Estado
brasileiro, deixando as populações indígenas
dependentes desse pagamento para terem
acesso a suas terras. Atualmente, a indenização
é proporcional às construções feitas, as
CLUBE DE REVISTAS

Foto Laycer Tomaz/Agência Brasil


O cacique Raoni Metuktire

chamadas “benfeitorias”, no território. Com a


mudança, o valor da própria terra seria incluído
no pagamento.
De acordo com levantamento da Agência
Pública, caso seja aceita a tese de indenizar a
totalidade das fazendas que se sobrepõem aos
territórios – e não apenas as benfeitorias como
ocorre atualmente – seria aberto um rombo de
R$ 942 milhões ao Estado brasileiro, o que,
segundo o site, supera em 46% o orçamento
total da Funai (Fundação Nacional do Índio).
O levantamento foi feito a partir de dados do
Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), e levou em consideração dez terras que
CLUBE DE REVISTAS
figuram no rol das mais disputadas. Localizadas
nos estados de Pará, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Paraná, Maranhão, Pernambuco
e Minas Gerais, as áreas somam 544 mil
hectares, dos quais 55% são reivindicados
por diferentes povos indígenas. Os valores
calculados de indenização foram tirados com
base em dados do próprio Incra e levaram
em conta que todas essas terras estariam
regularizadas. Mas, como a própria reportagem
lembra, especialistas apontam que boa parte
dessas terras pode ter sido griladas.
A terra indígena Kapôt Nhinore, ocupada
pelos povos Yudja (Juruna) e Mebengokrê
(Kayapó), entre Santa Cruz do Xingu (MT)
e São Félix do Xingu (PA), onde o famoso
cacique Raoni Metuktire passou sua
juventude, é a que tem a maior área em
disputa. Dos seus 362 mil hectares, 258 mil
são reivindicados por fazendeiros.w
CLUBE DE REVISTAS
Simone Silva
e a filha, Sofia

Foto Arquivo Pessoal


Brasil

Mariana (MG)
“Nós, atingidos pelo crime
da Samarco/Vale/BHP,
não acreditamos mais na
Justiça brasileira”
Liderança da comunidade quilombola de
Gesteira, Simone Silva, 46, fala à Fórum sobre
os últimos oito anos de luta, denunciando o
racismo ambiental sofrido pelo seu povo
por Raphael Sanz

G
" arra", essa é a palavra que define
Simone Silva, de 46 anos, liderança
da comunidade quilombola, ribeirinha
e indígena da Gesteira, em Barra Longa, a
60 km da Barragem do Fundão — a mesma
CLUBE DE REVISTAS
que, gerida pelas mineradoras Vale, Samarco
e BHP Billiton, em Mariana (MG), rompeu em
5 de novembro de 2015, gerando um colossal
tsunami de lama tóxica que varreu centenas
de quilômetros ao longo da bacia do Rio Doce.
Simone viu sua comunidade ser completamente
destruída após o episódio.

“A gente não fala desastre,


não fala tragédia. Nós, que fomos
atingidos, chamamos o que aconteceu
de crime”, declarou em entrevista
exclusiva à Fórum.

Simone perdeu parentes e viu a filha Sofia,


que tinha apenas 9 meses quando o crime
ocorreu, desenvolver sérias doenças respiratórias
por conta da lama tóxica despejada pelas
mineradoras na região. Ela contou em detalhes
todas as tragédias pelas quais está passando
nesses últimos oito anos e declara, com todas as
letras, que não confia na Justiça brasileira e em
seu suposto processo de reparação às vítimas.
Como argumento, cita o caso da própria
comunidade da Gesteira. O local foi totalmente
destruído pela lama, no ato do crime ambiental
— "não sobrou nada para contar história", diz
Simone. Ao mesmo tempo, a Fundação Renova,
responsável por remediar os danos causados
CLUBE DE REVISTAS

Foto Leandro Taques/MAB


Igreja da comunidade da Gesteira acima do mar de lama tóxica

pelo crime, levava a lama tóxica que cobriu o


centro — a área mais nobre — da pequena
cidade mineira para o alto dos morros, onde
vive o povo preto e periférico. Foi assim que sua
comunidade e o entorno adoeceram e até hoje
não viu nem os culpados serem punidos. Ela
define esse processo como "racismo ambiental".
“Costumo dizer que a Simone de antes de 5
de novembro de 2015 só existe nas lembranças
e na fotografia. Porque nós precisamos, por
conta do crime, nos transformar, mudar. A gente
estava no processo de lagarta e, do nada,
tivemos que evoluir para borboleta. Não deu nem
tempo de fazer aquela metamorfose do casulo
porque o processo foi muito violento. Tivemos
que nos fortalecer enquanto comunidade para
lutar pelos nossos direitos”, explica.
E foi nessa luta que Simone, sua família e
comunidade encontraram força para reinventar
CLUBE DE REVISTAS
a vida destruída pelas corporações. Os
quilombolas, mesmo estando fora do foco
midiático da crise – concentrado nos distritos
mais próximos ao epicentro do crime ambiental
–, mostraram-se uma comunidade “matuta”,
como a própria Simone diz, e conseguiram fazer
valer o seu direito ao reassentamento. Agora,
um consórcio criado entre o poder público, as
mineradoras e outros setores irá bancar em R$
126 milhões a terraplanagem e os equipamentos
públicos da "nova" Gesteira. Já as residências
serão construídas pelos próprios moradores à
sua maneira, conforme o desejo coletivo.
“Hoje sou militante do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB). Quando eu me
vi no processo de injustiça, quando a minha filha
ficou doente, não sabia o que fazer. Porque a
gente é ensinado assim, a depender de políticos,
principalmente a gente que vem de comunidades
em cidades pequenas. Então, quando a minha
filha ficou doente, quando eles começaram a
retirar a lama da praça, da cidade, e trazer aqui
para o alto do morro onde eu moro, comecei a
brigar. Fui atrás de vereador e de prefeito para
pedir que não colocassem a lama aqui porque a
minha filha já estava doente. Eles simplesmente
viraram as costas. Quando eu vi que nada
aconteceria, graças a Deus o MAB chegou aqui
na região trazendo luz e esperança”, contou.w
CLUBE DE REVISTAS

Foto Ricardo Stuckert / PR


Global

Lula na ONU: o
aclamado discurso do
presidente decifrado por
especialistas
Mandatário recoloca o Brasil em lugar de
protagonismo no cenário internacional ao
levantar pautas importantes sem deixar de
fazer críticas contundentes ao próprio sistema
de governança global das Nações Unidas
por Ivan Longo

A
pós 20 anos de sua primeira participação
em uma Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU),
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a
CLUBE DE REVISTAS
discursar na abertura da 78ª edição do mais
importante fórum internacional do mundo, em
Nova York (EUA), na terça-feira (19). Dessa
vez, Lula retorna à ONU não só como chefe de
Estado do Brasil, mas também como presidente
do G20 e do Mercosul.

"Como não me canso de repetir, o


Brasil está de volta. Nosso país está de
volta para dar sua devida contribuição ao
enfrentamento dos principais desafios
globais", reforçou o mandatário logo no
início de seu pronunciamento de pouco
mais de 21 minutos.

A "volta" à qual Lula se refere é o retorno


do Brasil a um lugar de protagonismo na
comunidade internacional após quatro anos do
"apagão" e isolamento diplomático imposto ao
país pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em 2021, por exemplo, ao discursar na
Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro usou
boa parte de sua fala para
defender teses negacionistas
e o chamado “tratamento
precoce” contra a covid-19 e
chegou a falar em “ameaça
socialista” no Brasil. À época,
Tatiana Berringer, professora
CLUBE DE REVISTAS

Foto Ricardo Stuckert / PR


Plenário da ONU durante o discurso de Lula na Assembleia Geral

de relações internacionais da Universidade


Federal do ABC (UFABC) e integrante do
Observatório da Política Externa e Inserção
Internacional do Brasil (Opeb), avaliou que
a comunidade internacional recebeu o
discurso do ex-presidente com "chacota"
e que o então governo brasileiro estava
"totalmente fora dos protocolos do mundo
da diplomacia". "A posição do Brasil na cena
política internacional está em pleno declínio",
disse a professora na ocasião.
Com Lula de volta à cena internacional,
levantando pautas consideradas relevantes
na atual conjuntura, como combate à fome,
desenvolvimento sustentável, justiça social e
reforma dos mecanismos de governança global,
o Brasil se impõe novamente como ator de
relevância nas discussões sobre os desafios
CLUBE DE REVISTAS
postos à sociedade.
"O discurso de Lula, de certa maneira,
sintetiza a busca do Brasil por justiça, por
igualdade, por soberania e na defesa do
multilateralismo, que são pautas históricas, são
pautas necessárias, são pautas alinhadas a
um governo progressista e necessárias neste
momento histórico do mundo", analisou Tatiana
Berringer em nova entrevista à Fórum.

Combate à fome, justiça social


e questões climáticas
Ao abrir seu discurso na ONU, Lula
rememorou suas intervenções em outras
edições da Assembleia Geral, insistindo nas
críticas à desigualdade social no mundo.

"Os dez maiores bilionários possuem


mais riqueza que os 40% mais pobres
da humanidade. O destino de cada
criança que nasce neste planeta parece
traçado ainda no ventre de sua mãe.

A parte do mundo em que vivem seus pais


e a classe social à qual pertence sua família
irão determinar se essa criança terá ou não
oportunidades ao longo da vida. Se irá fazer
todas as refeições ou se terá negado o direito
de tomar café da manhã, almoçar e jantar
CLUBE DE REVISTAS
diariamente", sentenciou o presidente brasileiro.
Para Reginaldo Nasser,
professor de relações
internacionais da Pontifícia
Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), o
pronunciamento de Lula "não
chega a ser nenhuma surpresa",
pois o mandatário "falou de forma sintética
sobre todas as questões internacionais que ele
vem trabalhando desde o início do seu governo
e desde o início de seu primeiro mandato".
"Nessa lembrança, novamente, o ponto
central que teve muita ênfase do presidente
Lula foi a fome. Fome, desigualdade, pobreza.
E é interessante notar que esses temas não
são chamados de temas clássicos, vamos
dizer assim, da diplomacia ou das relações
internacionais", avalia o professor em entrevista
à Fórum.
Nasser destaca, ainda, como o presidente
brasileiro consegue associar diretamente
a pauta do desenvolvimento sustentável e
combate às mudanças climáticas à sua principal
bandeira, que é a da justiça social.
"Isso é algo a se destacar na presença do
Lula no cenário internacional. E mesmo quando
ele entra nas questões mais atuais, questões
climáticas, mudanças ambientais e todas as
CLUBE DE REVISTAS
suas consequências, que vêm acontecendo,
ele também as conecta com a questão da
desigualdade, da fome e da opressão. Porque,
ao fazer isso, ele se diferencia claramente de
outras perspectivas que abordam a questão
climática sob o ponto de vista neoliberal, que
procura usar esse tema desconectado das
questões econômicas e sociais", prossegue.
A professora Tatiana Berringer, por sua vez,
vai na mesma direção ao interpretar que o
discurso de Lula "sintetizou grande parte do que
tem sido a plataforma de governo e da própria
política externa brasileira", analisando que "o
eixo central da fala dele foi a desigualdade". A
especialista chama atenção para o fato de que
o mandatário, além de procurar não dissociar
erradicação da fome do combate à pobreza,
ainda propôs a inclusão de uma 18ª meta para
além das 17 estabelecidas pela ONU para o
desenvolvimento sustentável do planeta: a
questão racial.

"Reduzir as desigualdades dentro


dos países requer incluir os pobres nos
orçamentos nacionais e fazer os ricos
pagarem impostos proporcionais ao
seu patrimônio.

No Brasil, estamos comprometidos


CLUBE DE REVISTAS
a implementar todos os 17 objetivos de
desenvolvimento sustentável, de maneira
integrada e indivisível. Queremos alcançar a
igualdade racial na sociedade brasileira por
meio de um 18º objetivo que adotaremos
voluntariamente", anunciou Lula, sendo
interrompido por aplausos da plateia.
Para Tatiana Berringer, esse foi um dos
pontos altos do discurso do presidente na
abertura da Assembleia Geral da ONU em
Nova York.
"Ele começa ressaltando a necessidade da
luta contra a desigualdade e adentra elementos
muito importantes: quando fala da igualdade,
de que as metas de desenvolvimento do
milênio devem ser tratadas de maneira
integrada e global para que não haja uma
segmentação, de erradicar a fome como
um elemento que não esteja dissociado de
combater a pobreza, ele mostra muito como
essas pautas estão articuladas. E ele diz
claramente que o Brasil vai trabalhar por uma
18ª pauta. Acho que aí foi o ponto auge da
novidade desse discurso, que é a questão
racial. Isso é muito importante para a própria
identidade internacional do Brasil, para
ressaltar a herança histórica, a presença do
movimento negro, a presença dos negros na
formação social brasileira e todas as relações
CLUBE DE REVISTAS
que o Brasil pode ter com a África", ressalta a
especialista.
Também ouvido pela Fórum, o
professor Rodrigo Fernando
Gallo, coordenador da pós-
graduação em política e
relações internacionais da
Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo (FESPSP),
avalia que o discurso do presidente brasileiro na
ONU veio "para reforçar a agenda do governo
e a própria história de Lula nos mandatos
anteriores, ao discutir o combate à fome e às
desigualdades".
"Importante frisar que depois de quatro anos
de governo Bolsonaro, com discursos mal
recebidos pela comunidade internacional, vimos
o Brasil adotar um pronunciamento dentro da
normalidade, inclusive naquilo que se espera
de um país propositivo, ainda que as propostas
não tenham sido elaboradas (até porque não
cabe a esse fórum criar instrumentos práticos).
A impressão é que houve um esforço na
elaboração do discurso para mostrar ao mundo
que o Brasil está de volta", frisa Gallo.
"Reforço a menção ao meio ambiente, que
parece ser endereçada à União Europeia e ao
acordo com o Mercosul. Meio ambiente se
tornou um entrave durante a gestão Bolsonaro
CLUBE DE REVISTAS
para que as regras fossem definidas. Agora,
Lula quer fechar o acordo em definitivo até
o fim do ano, como forma de fechar seu
mandato frente ao Mercosul com essa vitória.
Nesse aspecto, a Assembleia Geral pode ter
servido para mandar um recado às lideranças
europeias", prossegue o professor.

Bandeiras dos países


que formam os Brics

Nova governança global


Reforçando falas já feitas na cúpula entre a
Comunidade dos Estados Latino-Americanos
e Caribenhos (Celac) e a União Europeia, em
Bruxelas (Bélgica), e ao assumir a presidência
do G20 em Nova Délhi (Índia), Lula usou boa
parte de seu discurso na Assembleia Geral das
Nações Unidas para criticar o neoliberalismo, a
ascensão da extrema direita no mundo e ainda
destacar sua agenda por uma reforma dos
CLUBE DE REVISTAS
mecanismos de governança global, entre eles
o Conselho de Segurança da própria ONU e o
Fundo Monetário Internacional (FMI).

"O neoliberalismo agravou a


desigualdade econômica e política
que hoje assola as democracias. Seu
legado é uma massa de deserdados
e excluídos.

Em meio aos seus escombros surgem


aventureiros de extrema direita que negam a
política e vendem soluções tão fáceis quanto
equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação
de substituir um neoliberalismo falido por
um nacionalismo primitivo, conservador e
autoritário", disparou o presidente.
A crítica à ONU veio logo após Lula
defender a "promoção de uma cultura de
paz" por meio do diálogo, citando guerras
e conflitos, como o entre Rússia e Ucrânia,
e ressaltando que "se investe muito em
armamentos e pouco em desenvolvimento".
"A ONU nasceu para ser a casa do
entendimento e do diálogo. A comunidade
internacional precisa escolher: de um
lado, está a ampliação dos conflitos, o
aprofundamento das desigualdades e a erosão
do Estado de Direito. De outro, a renovação
CLUBE DE REVISTAS
das instituições multilaterais dedicadas à
promoção da paz (...). Continuaremos críticos
a toda tentativa de dividir o mundo em zonas
de influência e de reeditar a Guerra Fria.
O Conselho de Segurança da ONU vem
perdendo progressivamente sua credibilidade.
Essa fragilidade decorre em particular da
ação de seus membros permanentes, que
travam guerras não autorizadas em busca
de expansão territorial ou de mudança de
regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente
da necessidade e urgência de reformá-lo,
conferindo-lhe maior representatividade e
eficácia", denunciou o mandatário.
Para o professor Reginaldo Nasser, da PUC-
SP, "é interessante que, ao mesmo tempo que
Lula valoriza a ONU, a sua natureza de espaço
de governança global, de discussão dos
grandes temas, ele a critica na forma como
tem caminhado".
"Lula não poupou críticas à ONU no
sentido de dizer que os países que a
compõem não levam a sério propostas como
a agenda de desenvolvimento. Então, ao
lado da ONU, também a crítica que o Lula
fez foi às instituições internacionais. Essas
instituições internacionais estão paralisadas
ou instrumentalizadas, não representam
mais ou nunca representaram a sociedade
CLUBE DE REVISTAS
internacional", declara o especialista.
Nasser destaca ainda o fato de Lula ter
citado episódios recentes como o terremoto no
Marrocos e as enchentes na Líbia, mas deixando
subentendida uma crítica à própria ONU com
relação à guerra civil no país norte-africano.
"Lula lembrou a questão da guerra civil,
lembrou que quem derrubou, quem atacou,
quem invadiu a Líbia foi a Otan [Organização
do Tratado do Atlântico Norte], autorizada
pela ONU. Ele não mencionou isso, mas
subentende-se essa crítica. Mencionou a
criação do Estado palestino, que é uma pauta
também constante e é um depreciativo da ONU,
todo mundo sabe disso, o próprio Lula diz que
a ONU foi capaz de criar Israel logo quando
ela foi criada também, e não é capaz de criar o
Estado palestino. Foi em face com a questão de
Cuba, bateu um pouco na mesa na fala com as
sanções, bloqueios. Entrou no tema da Ucrânia,
não desenvolveu bastante, mas deu o recado",
resume o professor.
"O Lula, com certeza, que já vinha se
reafirmando como líder internacional,
expressou isso de uma forma muito clara
na abertura da Assembleia Geral da ONU",
arremata Reginaldo Nasser.w
CLUBE DE REVISTAS

Foto Ricardo Stuckert/PR


Moda e política

A gravata da
sorte de Lula
Presidente brasileiro já usou a peça com
as cores nacionais em várias ocasiões
importantes, inclusive no encontro cara a cara
com Sergio Moro; em contraponto, Volodymyr
Zelensky segue com seu visual "verde-bélico"
por Iara Vidal

N
o discurso histórico proferido pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva na
abertura da 78ª Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) na
terça-feira (19), para além do conteúdo, merece
CLUBE DE REVISTAS
destaque o visual escolhido pelo brasileiro, que
optou por usar a sua "gravata da sorte".
Lula abordou os principais temas globais,
como desigualdade, guerras, mudança
climática e uma reforma na governança global.
Enquanto a "gravata da sorte", listrada com as
cores nacionais do Brasil — verde, amarelo,
azul e branco —, é repleta de simbologia.
Pelas redes sociais, a primeira-
dama, Janja Lula da Silva, deu
spoiler do look de Lula e o
fotografou enquanto se arrumava
para cumprir a agenda em Nova
York (EUA).
A peça estampada com as
cores da bandeira nacional já
faz parte do acervo imagético
da população brasileira. Lula
costuma usar essa gravata
em eventos internacionais e
nacionais importantes.
A primeira vez que o presidente brasileiro
vestiu a gravata foi na cerimônia de abertura
dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008,
durante seu segundo mandato presidencial.
Neste ano, no terceiro mandato à frente da
Presidência da República, Lula usou a peça
durante encontro com o presidente chinês, Xi
Jinping, em abril.
CLUBE DE REVISTAS

Lula usa a gravata na cerimônia de abertura dos Jogos Fotos Ricardo Stuckert/PR

Olímpicos de Pequim, em 2008, e no encontro com o


presidente chinês, Xi Jinping, em abril de 2023

Ele também a usou para apresentar a


candidatura do Rio de Janeiro como sede
dos Jogos Olímpicos de 2016, em cerimônia
realizada em outubro de 2009, em Copenhague,
na Dinamarca. A capital fluminense acabou
sendo a escolhida para sediar a competição.
A "gravata da sorte" também foi usada por
Lula quando enfrentou, cara a cara, o ex-juiz da
Operação Lava Jato, atualmente senador Sergio
Moro (União Brasil-PR). O depoimento, em maio
de 2017, durou mais de cinco horas. Durante
todo esse tempo, o petista se mostrou seguro
CLUBE DE REVISTAS

Lula usou a gravata em Copenhague, em 2009, para Foto Ricardo Stuckert/PR


Foto Reprodução vídeo

apresentar a candidatura do Rio de Janeiro como sede dos


Jogos Olímpicos de 2016. E também quando foi interrogado
pelo então juiz Sergio Moro na Operação Lava Jato

e respondeu a todas as perguntas relacionadas


ao processo no qual era réu que ficou conhecido
como o "caso do triplex".
Nesse evento específico, a peça com as cores
nacionais não deu muita sorte a Lula. Ele acabou
sendo preso em decorrência de um processo
marcado por lawfare por 580 dias na carceragem
da Polícia Federal (PF) em Curitiba (PR). Lula foi
detido no dia 7 de abril de 2018 e só foi libertado
no dia 8 de novembro de 2019.
Os estragos da Operação Lava Jato à
CLUBE DE REVISTAS
democracia brasileira já estavam feitos.
Quando Lula foi finalmente posto em liberdade,
depois de ter sido impedido de participar das
eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro
estava eleito presidente. Já Moro, o algoz que
colocou o ex-presidente na cadeia sem provas,
virou ministro da Justiça do mandatário de
extrema direita.
Mas a justiça acabou sendo feita com uma
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em
março de 2021, que anulou todas as provas
fajutas contra Lula. Reabilitado, ele concorreu
à Presidência em 2022 e foi eleito para o seu
terceiro mandato como mandatário brasileiro.

Foto Ricardo Stuckert/PR

Durante o primeiro debate presidencial do


segundo turno do ano passado, dia 17 de
outubro, Lula usou novamente o seu amuleto da
sorte. Deu certo.
CLUBE DE REVISTAS

Foto The Presidential Office of Ukraine


O "verde-bélico"
de Zelensky
Em contraponto à elegância de Lula durante
seu discurso na ONU e aos trajes usualmente
usados por chefes de Estado durante o evento, o
presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, optou
pelo traje de cunho militar que usa em todas as
suas aparições públicas desde o início do conflito
contra a Rússia, em fevereiro de 2022.
O ex-ator ucraniano, curiosamente
considerado a "estrela do evento" pela mídia
comercial brasileira, usa variações do mesmo
look em que predomina o verde-oliva, cor
adotada por militares mundo afora por facilitar a
camuflagem das tropas.
CLUBE DE REVISTAS

Foto Loey Felipe/ONU


O presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky
na Assembleia Geral da ONU

Nas vestes de terça-feira (19), na sede da ONU,


o "verde-bélico' de Zelensky predominou: camisa
de malha com manga comprida, calça cargo e
botas de trabalho. O mesmo visual foi o escolhido
pelos outros integrantes da comitiva ucraniana.
Em janeiro deste ano, durante a primeira
visita oficial fora da Ucrânia desde o início da
guerra, ao Congresso dos Estados Unidos,
na capital Washington, Zelensky fez uma
declaração com sua aparência. Em vez do
tradicional terno e gravata, ele usou o que
CLUBE DE REVISTAS
passou a ser seu estilo característico.
O registro da escolha das roupas do líder
ucraniano foi feito pelo jornal The Washington
Post, que enfatizou que ele "parecia mais um
soldado fazendo uma pausa rápida do campo
de batalha do que um chefe de Estado em uma
missão diplomática".

Moda, uma ferramenta política


Tanto a escolha de Lula quanto a de Zelensky
são intencionais. As cores nacionais brasileiras
na gravata simbolizam, nesse discurso, o
retorno do Brasil a um posto de relevância
no cenário internacional e a reconstrução
da democracia brasileira devastada pelo
mandatário anterior.
Já as roupas que remetem ao campo de
batalha do ucraniano têm desempenhado um
papel crucial na maneira como Zelensky constrói
sua imagem. Essas peças em "verde-bélico"
passam a mensagem de autoridade, sinalizam
patriotismo, demonstram determinação e
expressam poder tipicamente masculino.
A moda muitas vezes é performática, o que a
torna uma valiosa ferramenta política.w
CLUBE DE REVISTAS

A N O S
22JORNALISMO
DE
INDEPENDENTE

apoie.revistaforum.com.br
CLUBE DE REVISTAS

Foto Divulgação
Cinema

Som da Liberdade
é medíocre e transforma
drama infantil em
delírio cristão
Longa-metragem transforma agente da CIA
em "enviado de Deus" para libertar as crianças
dos "latinos selvagens"
por Marcelo Hailer

N
os últimos dias, um fato inusitado
tem ocorrido em relação à claque
bolsonarista nas redes sociais: inúmeros
perfis de influenciadores e parlamentares
da extrema direita estão empenhados na
divulgação de um filme e afirmam que o objetivo
CLUBE DE REVISTAS
da "elite" é esconder tal produção do grande
público. Puro delírio.
O filme em questão chama-se Som da
Liberdade (Sound of Freedom/2023), dirigido
por Alejandro Monteverde. Narra a história real
do agente da CIA Tim Ballard (Jim Caviezel),
que trabalha em um departamento da agência
de inteligência estadunidense focado em
desbaratar quadrilhas que traficam crianças
para crimes sexuais.

Foto Divulgação

Missão divina
Após uma bem-sucedida primeira missão,
Tim Ballard trava um diálogo com uma criança
chamada Miguel, que lhe conta que a sua
irmã também foi sequestrada e ainda está sob
controle da quadrilha. Com isso, Ballard pede
autorização para ir à Colômbia tentar resgatar a
CLUBE DE REVISTAS

Foto Divulgação
Alejandro Monteverde dirige cena do filme Som da Liberdade

irmã do garoto.
A partir desse momento, o filme mergulha em
mediocridade, estereótipos racistas e delírios
cristãos. Vamos por partes: na Colômbia, ele
faz uma parceria com Vampiro, homem que
atuava no narcotráfico, mas, após um chamado
de Deus, muda de lado e passa a ajudar a
desbaratar quadrilhas que traficam pessoas.
O próprio Tim Ballard também entende que
atende a um chamado divino, prova disso é
que, após a sua primeira busca pela garota
fracassar, ele recebe um chamado da CIA
para que volte imediatamente. Diante disso,
ele resolve enfrentar a burocracia, demite-se e
monta um grupo para enfrentar as quadrilhas.
Ao justificar a sua demissão para o seu chefe
na CIA, Tim Ballard diz a seguinte frase para ele:
CLUBE DE REVISTAS
"Os filhos de Deus não estão à venda". É com
esse espírito que ele vai para a Colômbia.

Foto Divulgação
"Latinos selvagens"
Além de ser uma produção completamente
apelativa, o filme Som da Liberdade é
profundamente racista, o que fica evidente na
maneira como ele contrapõe Tim Ballard aos
personagens colombianos: Ballard é retratado
como angelical, ingênuo e saudável, enquanto
os latinos são apresentados como rudes,
fumantes, quase sempre bêbados e violentos.
Isso remete à clássica definição colonial sobre
os habitantes da América Latina.
Os filtros utilizados para demarcar essas
diferentes civilizações também gritam na tela,
visto que as cenas nos Estados Unidos são
sempre limpas e harmoniosas, enquanto do
lado colombiano prosperam o caos, a sujeira
e a corrupção.
Há outro paralelo que podemos fazer com o
personagem Tim Ballard e a maneira como ele
CLUBE DE REVISTAS
é retratado no filme: trata-se de um missionário
que veio libertar as crianças das mãos dos
selvagens. Ballard é o tipo homem branco
desbravador, mas a sua missão colonial, que
também é catequizadora, tem por objetivo
salvar as crianças, pois estas ainda podem ser
modeladas conforme os valores coloniais.
Não é à toa que o filme em momento algum
toca no ponto do tráfico de pessoas jovens e
adultas, mas sim nas crianças. A base do roteiro
é a mesma que alimenta o pânico moral da
extrema direita, que cresce em cima do “tirem
as mãos das crianças” e transforma tudo em
“ideologia de gênero” e fim da família.

O ex-presidente dos EUA Donald Trump com


Tim Ballard e o ator Jim Caviezel. Entusiasta do longa,
Trump promoveu uma sessão do filme em seu hotel
Foto Divulgação

Extrema direita abraça o filme


Todo esse clima delirante e cristão faz com
que Som da Liberdade transforme algo grave,
CLUBE DE REVISTAS
que é o tráfico de corpos, em uma missão para
apenas pessoas iluminadas por Deus. No outro
campo estão as pessoas que viraram as costas,
na leitura do filme, “o sistema”.
Não à toa, o filme foi abraçado pela extrema
direita dos EUA e por grupos fundamentalistas
que lançaram uma intensa campanha e
colocaram o filme no top 10 das maiores
bilheterias. No Brasil, bolsonaristas tentam fazer
o mesmo e, caso a bilheteria fracasse, vão culpar
a "elite cultural", esse argumento já corre por aí.
Ainda que retiremos da análise todo o
delírio cristão e a ideia do "homem branco
salvador" de crianças das mãos dos "latinos
selvagens", o que resta é um cinema de
quinta categoria, com fotografia cafona e
atuações que beiram o sofrível.
Destaque para a trilha sonora, uma das coisas
mais irritantes do filme: com o objetivo de forçar
lágrimas e comoção, somos torturados por 2
horas e 15 minutos com músicas cafonas e
melodramáticas que não cumprem a sua função,
no caso nos deixar um pouco tristes e esquecer
a barbárie que esse longa-metragem é.w

u Clique aqui e assista à entrevista do crítico de


cinema Pablo Villaça no Fórum Onze e Meia. Ele fala
sobre a relação do filme com a extrema direita nos
EUA e no Brasil.
CLUBE DE REVISTAS
REVISTA

expediente | edição #77

Diretor de Redação
_ Renato Rovai

Editora executiva
_ Dri Delorenzo

Textos desta edição:


_ Plínio Teodoro
_ Henrique Rodrigues
_ Ivan Longo
_ Raphael Sanz
_ Iara Vidal
_ Marcelo Hailer

Designer Revisão
_ Marcos Guinoza _ Laura Pequeno

Acesse: revistaforum.com.br

youtube.com/forumrevista

@revistaforum

facebook.com/forumrevista

@revistaforum

Você também pode gostar