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Nem Churchill escapou

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O País do Carnaval parece estimular seus figurões a enxergarem no espelho a fantasia que
lhes der na telha. Lula, por exemplo, já se comparou a Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas,
Tiradentes, Nelson Mandela e Jesus Cristo, fora o resto, sem que fosse encaminhado ao
hospício mais próximo. Há 30 anos caprichando no papel de Madre Teresa de Calcutá da
floresta, Marina Silva está neste momento em Davos, empenhada em salvar o planeta dos
nanomísseis ambientais. Mas ninguém imaginava que, neste começo de 2024, o grande
viveiro de megalomaníacos acabaria incorporando até um Winston Churchill à brasileira.
Seu nome de batismo é Alexandre de Moraes.

Disfarçado de ministro do Supremo Tribunal Federal, a reencarnação do maior estadista da


história ainda não sabe pronunciar corretamente o sobrenome da entidade. O que se ouve é
um penoso “Chôrchiu”. É na conta do homem que deteve o avanço da Alemanha Nazista na
Segunda Guerra Mundial que Moraes debita a tese que destroça a esperança de
pacificação do país. Segundo o ministro, foi “Chôrchiu” quem impediu que o primeiro-
ministro Neville Chamberlain seguisse enfrentando o crocodilo (Adolf Hitler, presume-se)
com medrosas tentativas de conciliação. “Apaziguamento não significa paz”, recitou o chefe
da maior e mais desnecessária vara criminal do planeta.

Como Moraes discorria sobre a Operação Lesa Pátria, concebida para punir gente envolvida
na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, ficou claro que, na cabeça do ministro, o
crocodilo é o bando de golpistas a serviço de Jair Bolsonaro. Os defensores da multidão
encarcerada ilegalmente seriam discípulos de Chamberlain, o que transforma o superjuiz no
“Chôrchiu” do novo século. Haja ignorância histórica. O notável líder britânico resistiu ao
mais feroz inimigo sem provocar quaisquer danos ao regime democrático. Enquanto
resgatava o exército inglês acuado em Dunquerque, por exemplo, enfrentou sem queixumes
moções de desconfiança apresentadas pela oposição. Moraes, obcecado com perigos
imaginários, sepultou a Constituição e submete o sistema judicial a medonhas sessões de
tortura.

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Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Bem-humorado, negociador habilidoso, o original britânico liderou com extraordinária


habilidade um governo de união nacional. Carrancuda, irascível, a caricatura brazuca odeia
o convívio dos contrários, persegue quem discorda e não sabe o que é compaixão. Logo
depois da vitória contra o nazifascismo, Churchill não conseguiu permanecer no Parlamento
e deixou o governo. “Os eleitores acham que sou mais útil em tempos de guerra”, resignou-
se. Campeão de impopularidade, Moraes não dispensa a proteção de oito agentes de
segurança nem mesmo quando caminha no clube do qual é sócio. Não se elegeria síndico
do prédio onde mora. Mas desde o começo do ano não perde nenhuma chance de reiterar
que o Supremo Tribunal Federal governa o Brasil, que quem manda no STF é ele — e que
com Alexandre de Moraes ninguém pode.

Sem ter divulgado as gravações do incidente no Aeroporto de Roma que tentou transformar
em atentado à segurança nacional, apostou na criação de sucursal carnavalesca da Ku Klux
Klan: os golpistas de 8 de janeiro, jurou, também planejavam matá-lo por enforcamento. A
denúncia sem pé nem cabeça é agravada por delírios geográficos. Alguns queriam pendurá-
lo numa árvore à beira da rodovia que liga Brasília a Goiânia, outros preferiam a Praça dos
Três Poderes. O impasse pode ter recomendado o cancelamento da execução. Sem ter
esclarecido mais uma história muito mal contada, resolveu nesta quarta-feira atirar ao lixo a
Constituição, a sensatez e a harmonia entre os Poderes com uma bofetada no rosto do

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Legislativo. Sem pedir licença ao Congresso, sem apresentar qualquer prova que
merecesse atenção, anexou o deputado federal Carlos Jordy e mais um punhado de
brasileiros à multidão dos perseguidos por um carcereiro vocacional.

Se em 8 de janeiro começou uma tentativa de golpe, por exemplo, o que fariam os


inimigos da democracia no dia 9? O carrinho do vendedor de algodão-doce era parte
do esquema de suprimento da tropa?

Tecnicamente, o palavrório em português de jardim da infância autoriza policiais a serviço


do STF a seguir adiante com a Operação Lesa Pátria, agora para identificar e punir
financiadores da “tentativa de golpe” ocorrida há um ano. Os alvos da vez são “Carlos Jordy
e outros”, desconversa o documento antes de admitir claramente a aceleração de outra
ofensiva abjeta contra o deputado federal que lidera a oposição na Câmara e cidadãos
ligados ao parlamentar por laços de amizade. No mesmo dia, todos foram afrontados pela
consumação de mandados de busca e apreensão ordenados pelo texto bisonho na forma e
no conteúdo.

Deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ) | Foto: Elaine Menke/PL

Moraes costuma gabar-se de ler com muito cuidado tudo o que assina. Como subscreve o
documento, cabe-lhe explicar tanto o desfile de crimes inexistentes, deformações
processuais, arbitrariedades flagrantes e outros pecados jurídicos quanto o tratamento
brutal dispensado à língua portuguesa. Se em 8 de janeiro começou uma tentativa de golpe,

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por exemplo, o que fariam os inimigos da democracia no dia 9? Com Jair Bolsonaro nos
Estados Unidos, quem assumiria a Presidência? Seria o primeiro golpe da história
consumado por civis desarmados? O carrinho do vendedor de algodão-doce era parte do
esquema de suprimento da tropa? O que fazia o general Gonçalves Dias, amigão de Lula,
no meio de inimigos mortais do chefe?

O papel de governantes ingleses na Segunda Guerra Mundial mereceu quatro linhas em


negrito: “A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de
apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do
então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler”. (Moraes talvez
ignore que o ditador da União Soviética, Josef Stalin, mostrou que a extrema esquerda é
chegada a um apaziguamento. Foi a ditadura comunista que costurou em 1939 o tratado de
paz com a Alemanha que Hitler rompeu em 1942). Confira dois dos incontáveis pontapés no
idioma:

1) “O que reputa-se mais grave e que leva-se a crer que…”

(Quem escreveu isso ignora que o que atrai o pronome).

2) “Nesse passo foi identificada a participação de Raquel Nunes Barboza, vulga


QUELZINHA.”

(O certo é vulgo, expressão que precede o apelido pelo qual alguém é conhecido. Vale para
homens e mulheres. Até Dilma Rousseff deve saber disso.)

Ainda bem que Churchill escapou de citações nominais na extensa discurseira. Democrata
irredutível, o admirável homem público jamais endossaria um documento que celebra a
perseguição sofrida pelo deputado Carlos Jordy, desrespeita as fronteiras que delimitam as
atribuições dos Três Poderes e reafirma a crescente insolência de um Supremo
transformado em partido político. Moraes também precisa saber que Churchill, escritor e
orador brilhante, conquistou em 1953 o Prêmio Nobel de Literatura. Ele detestaria ter seu
nome incluído num palavrório que obriga seu redator a matricular-se ainda neste janeiro
num curso intensivo de alfabetização de adultos.

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Sir Winston Churchill, em 1941 | Foto: National Portrait Gallery (London)/Wikimedia Commons

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