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Luiz Fábio S.

Paiva

“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO”:


as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil

Luiz Fábio S. Paiva*

O artigo analisa o processo de transformação social do crime nas periferias da cidade de Fortaleza, estado do
Ceará, Brasil, mediante a constituição de coletivos criminais conhecidos como “facções”. Evidencia como as
gangues e quadrilhas de traficantes ofereceram as condições objetivas para o processo de adesão a esses co-
letivos que, entre outras coisas, afetaram as maneiras de fazer o crime na cidade. A pesquisa se desenvolveu
em uma dinâmica de investigação qualitativa e multissituada, articulando matérias da imprensa, entrevistas
e conversações, à luz de uma perspectiva compreensiva dos sentidos e relações pertinentes ao fenômeno
estudado. A análise considera múltiplos efeitos sociais da violência em circunstâncias criadas por coletivos
criminais que se enfrentam e buscam exercer poder de governo sobre populações com as quais compartilham
determinados sofrimentos sociais, e demonstra mudanças na escala de violência e interferência das pessoas
que fazem o crime, com práticas de tortura, expulsão de residências e chacinas envolvendo homens e mulhe-
res. Conclui que as “facções” criaram dinâmicas de governo locais que resultam em formas de dominação e
sujeição dos pobres em Fortaleza.
Palavras-chave: Violência. Crime. Coletivos criminais. Facções. Periferia.

INTRODUÇÃO composição dessa análise das maneiras como


as pessoas se relacionam e fazem o crime na
Este artigo examina aspectos da história maior urbe do Estado do Ceará. Em seguida,
da violência em Fortaleza discutindo proces- expresso um pouco da história das maneiras
sos que evidenciam transformações sociais nas de ali fazer o crime, recobrando o panorama
maneiras de fazer o crime na Cidade.1 Para isso, geral de quando iniciei meus primeiros traba-
compartilho um ponto de vista compreensivo lhos de pesquisa nas periferias dessa Capital.
acerca de como as práticas de crimes experi- Por fim, exponho o modo como, de 2016 ao
mentaram mudanças mediante novas sociabi- início de 2018, diversos episódios e situações
lidades, relações, práticas e envolvimentos em evidenciam uma transformação social nas ma-

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coletivos criminais. Em linhas gerais, demons- neiras de se relacionar e de fazer o crime na
tro situações que afetam, de maneira significa- cidade, com uma série de novos problemas
tiva, a vida de moradores da Capital cearense, sociais que precisam ser considerados na vida
sobretudo das periferias urbanas, com efeitos cotidiana de moradores das periferias, em vir-
políticos e morais em seu cotidiano. Desse tude da existência de “facções criminosas”.
modo, descrevo, no primeiro momento, o per-
curso teórico-metodológico utilizado para a
CAMINHOS DA PESQUISA
1

* Universidade Federal do Ceará (UFC). Centro de Huma- Ao buscar compreender as maneiras de


nidades. Departamento de Ciências Sociais. Laboratório fazer o crime, considero-as como ações sociais
de Estudos da Violência.
Av. da Universidade, 2995, Benfica. Fotaleza – Ceará – Bra- dotadas de sentido em seu curso (Cf. Geertz,
sil. luizfabiopaiva@gmail.com
1
Os resultados apresentados são decorrentes de pesqui- 2014; Schutz, 2012; Weber, 2014) e, portanto,
sas desenvolvidas no âmbito do Laboratório de Estudos da inteligíveis em suas maneiras de fazer ver e
Violência da Universidade Federal do Ceará. Agradeço, es-
pecialmente, a Ana Letícia Lins e Lucilda Cavalcante pela fazer crer e constituídas por condições objeti-
colaboração e interlocução durante as investigações que
sustentam este trabalho. vas que estruturam o agir no mundo social (Cf.

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.26375 165
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Bourdieu, 2001). Para fins deste trabalho, não dizer, questionando-as em determinados mo-
me interessa insistir nos aspectos normativos mentos, ouvindo com atenção e procurando
de definição do crime (Cf. Durkheim, 2013), aprender sobre como era viver em bairros4 com
pois considero uma perspectiva teórica que pri- problemas sociais muito específicos.
vilegia as invenções e agenciamentos que po- Outra experiência importante foi olhar
dem existir nas maneiras de agir, respeitando para o presente com esteio em materiais de
condições sociais e históricas possíveis.2 Dia- pesquisa do passado. Minhas primeiras pes-
logo, então, com Certeau (1994), para pensar o quisas se concentraram, basicamente, na re-
crime como a tática de praticantes que desen- gião do Grande Bom Jardim, entre os anos de
volvem maneiras de fazer fragmentadas, expe- 2005 a 2008, em um fluxo de idas e vindas que
rimentações complexas e agenciamentos pos- constituiu uma investigação qualitativa sobre
síveis em situações que envolvem invenções, como moradores daquela região eram afetados
imprevisibilidades e transformações sociais. por situações de violência (Paiva, L., 2014). Re-
A pesquisa que subsidiou este artigo se tornei ao bairro em fluxo menos contínuo, em
desenvolveu como uma experiência de inves- 2015, agregando atividades de ensino, extensão
tigação multissituada,3 com diversos empreen- universitária e militância na área de direitos
dimentos que se articularam para compor essa humanos.5 Novas demandas e iniciativas leva-
reflexão a respeito das transformações sociais ram, também, a me fazer atinente e conversar
do crime em Fortaleza. Realizei o resgaste his- sobre violência e crime com moradores dos
toriográfico de notícias sobre o crime na cida- bairros Conjunto Ceará, Pirambu, Jangurus-
de, buscando evidências sobre o fenômeno em su e Conjunto Palmeiras. Com essa conduta,
matérias jornalísticas desde o final dos anos realizei mais conversações do que entrevistas
de 1990 até o início de 2018. Ao longo desse estruturadas ou semiestruturadas, com pesso-
período, participei de ações vinculadas a mo- as envoltas em diversas dinâmicas criminais,
vimentos sociais e busquei ouvir moradores vítimas de violência, militantes da área de di-
da periferia, tencionando saber como viviam reitos humanos e residentes dispostos a falar
pessoas residentes em territórios afetados pe- de situações de crime nos seus bairros. Em 56
las ações de coletivos reconhecidos como “fac- oportunidades, utilizei o gravador, em entre-
ções” e olhar atentamente o que tinham a dizer vistas agendadas com moradores dos bairros
sobre o mundo em que vivem. É possível ga- referidos. Por fim, estive em momentos de reu-
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rantir que, em determinadas situações, procu- niões, cursos e seminários demandados pelas
rei seguir as ideias seminais de Whyte (1993), comunidades, os quais se tornaram ocasiões
em seus estudos urbanos, insistindo em ouvir de escuta em que aprendi sobre os problemas
e ficar atento às relações ao redor, em vez de vividos pelos habitantes dessas comunidades.6
exprimir questionamentos. Ao me reportar a 4
Considero fundamental a ideia discutida por Irlys Bar-
um tema delicado, não procurei escamotear as reira (2007) de que os discursos sobre a cidade não apenas
demonstram as percepções que compõem o imaginário a
vidas de pessoas para achar algo que ninguém respeito da cidade, mas também “fazem a cidade” e são
inseparáveis de processos políticos.
soubesse. Pelo contrário, tentei conformar mi-
nha curiosidade ao que essas pessoas queriam
5
Destacam-se o desenvolvimento do Projeto de Extensão
Universitária Traficando Saberes, em parceria com o Cen-
tro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), o Centro
2
Outras problematizações sociológicas são possíveis de se de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA),
observar nesse campo, de modo que, para uma revisão da e a participação no Fórum Popular de Segurança Pública
literatura internacional e nacional, recomendo as leituras do Estado do Ceará. Essas experiências possibilitaram visu-
da obra de Downes, Rock e McLaughin (2011) e a coletâ- alizar muitas das mudanças que aconteciam em Fortaleza,
nea organizada por Lima, Ratton e Azevedo (2014). pois a iniciativa congregou inúmeros grupos e movimentos
sociais afetados por novas dinâmicas do crime.
3
Não me reporto, especificamente, a uma etnografia multis-
situada, conforme as reflexões seminais de Marcus (1995), 6
Em boa medida, embora não seja a intenção que funda-
mas a um esforço em levar em consideração a ideia de um menta esta abordagem, me aproximo das reflexões meto-
estudo de fenômenos dinâmicos e observáveis em variadas dológicas de Garfinkel (2006). Para ele, a prática envolve
escalas que constituem a experiência social investigada. múltiplas atividades processuais e contingentes que po-

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BREVES CONSIDERAÇÕES SO- caem sobre o agente do crime, pois, consoante


BRE AS MANEIRAS DE FAZER O destacou Becker (2008, p. 43), “ [...] a deten-
CRIME EM “FACÇÕES” ção por um ato desviante expõe uma pessoa à
probabilidade de vir a ser encarada como des-
Para os fins desta reflexão, saliento que, viante ou indesejável em outros aspectos”. É
embora os coletivos sejam denominados de muito importante compreender esse elemento,
variadas maneiras, o termo “facção” é o mais notadamente, porque o material empírico en-
recorrente, assim como “crime”. São usuais, volve falas de pessoas que praticaram crimes
também, as expressões “o crime organizado”, e de outras que se referem a quem os cometeu.
“o comando”, “o bonde”, “o trem”, “a tropa”, “a A esse respeito, o estudo seminal de
família”, “os irmãos”, entre outras maneiras de Whyte (1993) demonstrou como os “rapazes da
falar do grupo (Cf. Biondi, 2018; Feltran, 2018; esquina”, em um bairro italiano da cidade de
Mallart; Godoi, 2017; Manso; Dias, 2018). Nos Boston, nos Estados Unidos, compunham gru-
materiais de pesquisa, os distintos termos apa- pos reconhecidos como gangues e costumavam
recem de diferentes maneiras, em relatos de agir juntos, compartilhando certas ideias e es-
pessoas que, dependendo de seu lugar de fala, tabelecendo rixas que demarcavam seu lugar
irão articular inúmeros signos na construção dentro da comunidade. No bairro de Corner-
do discurso. Torna-se oportuno destacar o fato ville, Whyte percebeu como os ilegalismos e os
de pressupor, de saída, que a prática de crimes crimes assumiam feição mafiosa, e os negócios
pode ser feita, refeita, inventada e reinventada permitiam o advento do gangster, o sujeito res-
por pessoas e coletivos, o que constitui uma peitável que, em sua atividade, se assemelha ao
“maneira de fazer” no sentido conferido por homem de negócio, buscando dominar merca-
Certeau (1994, p. 41), ou seja, a de múltiplos dos pela formação de cartéis que visam a contro-
modos insurgentes de proceder e de astúcias lar preços, perdas e ganhos. Noutra situação, a
que constituem “[...] mil práticas pelas quais máfia italiana, que emprestou sua feição ao gân-
os usuários se reapropriam do espaço organi- gster estadunidense, representou uma dinâmica
zado pelas técnicas de produção sociocultu- muito específica, tratada por Gambetta (2007)
ral”. O crime, portanto, é também uma ma- com amparo na ideia de que sua existência de-
neira de fazer o cotidiano e a cidade por meio pendia, fundamentalmente, de oportunidades
da ação coletiva de pessoas envolvidas de ma- de se administrar um sistema de proteção em

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neiras diferentes em coletivos reconhecidos, que as atividades econômicas eram mais inten-
socialmente, como “facções”.7 sas. Participar da máfia é ser parte de uma “fa-
Como destacou Barreira (1998), ao en- mília”, e o que explica essa pertença representa
trevistar pistoleiros, as falas dos autores de algo substantivo nas relações entre essas pesso-
crimes são marcadas por valores de si que o as, vinculações que são de tal modo complexas
interlocutor pretende preservar na conversa e sofisticadas que, em vários julgamentos de en-
com o pesquisador. É ainda preciso conside- volvidos, os advogados de defesa tensionaram
rar, do ponto de vista teórico-metodológico, a a opinião pública questionando a existência da
dimensão política dos enquadramentos que re- máfia (Gambetta, 2007). Apesar da multiplicida-
de de conflitos e das inúmeras possibilidades de
dem ser compreendidas como métodos agenciados pelas
pessoas que integram uma sociedade para, entre outras uso da força, a máfia é uma maneira de admi-
coisas, falar de seus problemas.
nistração de negócios, e seu sucesso depende da
7
É sempre preciso reconhecer os limites e dificuldades
dos enquadramentos sociais que, como foi discutido por compreensão de que todos podem ganhar res-
Becker (2008), na sua reflexão sobre o desvio, envolve a peitando as regras estabelecidas.
rotulação de pessoas em reação a tipos particulares de
comportamento como desviante. Como explica Becker, es- Na América Latina, os cartéis colom-
sas rotulações não são universais e são, constantemente,
objetos de divergências e conflitos. bianos retratam um capítulo da história do

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Continente. Enquanto as máfias tradicionais dos. Lessing (2008) observou que os mercados
movimentavam negócios diversificados, os de drogas situados na cidade do Rio de Janeiro
cartéis colombianos constituíram sua notorie- ofereceram condições de estabilidade para a
dade internacional por meio de seu papel nas ação de organizações como o CV e outras que
dinâmicas do mercado ilegal de cocaína, com surgiram no curso do tempo, como o Terceiro
suas dimensões transnacionais que, entre ou- Comando da Capital (TCC) e os Amigos dos
tras coisas, provocaram o empenho do governo Amigos (ADA). Isso demonstra como, apesar
federal dos Estados Unidos para seu enfrenta- dos conflitos internos, das ações do Estado e
mento. Os primeiros cartéis a despertar a aten- das milícias, elas continuam atuando com for-
ção mundial por sua participação nos merca- ça nos territórios, pelo menos, desde meados
dos ilegais de cocaína estadunidenses foram o dos anos de 1970. Como demonstrou Barbosa
Cartel de Medellín e o Cartel de Cali (Cf. Ba- (2006), isso não seria possível se as cadeias
gley, 2011). A liderança do primeiro é atribuí- não fossem espaços privilegiados, nos quais
da a Pablo Escobar, que se tornou figura emble- os envolvidos circulam e interagem, criando
mática, reconhecida pela audácia nos investi- reciprocidades, compromissos e composições
mentos feitos para ampliar o mercado ilegal de que suportam e dão corpo aos “comandos”. Di-
cocaína e a maneira como enfrentou o Estado ferentemente da realidade de São Paulo, como
para alcance de seus objetivos (Cf. Ramírez; evidenciaram Hirata e Grillo (2017), o CV en-
Costa, 2012). A estruturação dos mercados e frenta, há mais de três décadas, o conflito com
o enfrentamento dos cartéis proporcionaram outras facções, tornando necessária a defesa
múltiplas transformações em uma realidade armada das circunscrições de atuação do tráfi-
política complexa, com a geração de encontros co, o que proporcionou o surgimento das dinâ-
entre processos sociais que envolviam as in- micas internas de vigilância e punição.
surgências políticas de grupos paramilitares e Em São Paulo, as dinâmicas mais conhe-
os rendimentos econômicos de um produto de cidas a respeito das maneiras de fazer o crime
alto valor comercial (Cf. Zuluaga Nieto, 2014). em coletivo passam pela história do Primeiro
Em linhas gerais, as interpretações ex- Comando da Capital (PCC). Consoante repor-
pressas sobre coletivos que fazem o crime em tam Alvarez, Salla e Dias (2013), o PCC surgiu
outros países ajudam a compreender a parti- no interior do Anexo da Casa de Custódia de
cularidade da experiência brasileira por meio Taubaté, sem a intenção de ser um coletivo da
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das facções criminosas que representam uma estatura que tem hoje, mas buscando unir os
prática social plural em diversos contextos so- presos em luta contra as opressões do Estado
cioculturais. Um dos grupos mais conhecidos dentro do sistema prisional. Dias (2011a) ob-
da história brasileira é o Comando Vermelho servou ainda que o PCC adquiriu hegemonia
Rogério Lemgruber (CVRL ou apenas CV). Se- no interior do sistema prisional paulista, não
gundo Misse (2007), ele envolve um projeto sendo possível compreender suas dinâmicas
político constituído a partir dos presídios, nos sem entender as negociações, cooperações e
anos de 1970, até tentativas de criar acordos correlações de força entre os que fazem o cri-
(tácitos e precários) entre vários “donos” de me e os responsáveis pelas políticas de contro-
bocas de fumo em áreas de varejo do merca- le social dos ilícitos no âmbito do Estado. Si-
do ilegal de drogas. Ao emergir com os ideais nhoretto, Silvestre e Melo (2013) explicam que
de justiça, paz e liberdade dentro das prisões, o PCC tem um efeito social importante na ad-
o Comando criou, ainda segundo Misse, uma ministração dos presídios em uma convergên-
articulação entre os sistemas prisional e as cia complexa entre as dinâmicas disciplinares
comunidades, buscando o controle territorial implantadas pelo Estado e a facção paulista.
como meio de regular a ação de vários envolvi- Ademais, o PCC conseguiu um feito im-

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portante ao levar a luta contra as opressões do atividades das duas facções classificadas como
sistema prisional para as ruas. Godoi (2010) as maiores do País. Zilli (2015), em suas pes-
ressalta a importância de a organização ter quisas em Belo Horizonte, observou que os
essa disposição de levar as lutas internas do grupos de jovens delinquentes não atuavam
sistema para o campo aberto, demonstrando sob a bandeira de coletivos caraterizados pela
a força das conexões entre presos e egressos ideia de facção, e era possível encontrar, nas
do sistema atuando fora da prisão. Essas co- periferias da cidade, territórios divididos en-
nexões não seriam possíveis sem um trabalho tre vários pequenos grupos, evidenciado uma
gerador de conexões importantes e pactuações dinâmica fragmentada e menos estruturada do
que dobram as fronteiras entre o legal e o ilegal que era observado, na mesma época, nos Es-
por meio de outras lógicas acionadas pelo co- tados do Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio
letivo criminal (Cf. Telles; Hirata, 2010). Como Grande do Sul, Azevedo e Cipriani (2016) per-
demonstrou Marques (2010, p. 313), as ações ceberam que as facções locais, como a Falange
do coletivo paulista evidenciam um “proce- Gaúcha, atuam com menor visibilidade, em es-
der”, ou seja, “[...] o singular regime de relação quemas menos centralizados e abrangentes do
política entre os presos e ex-presidiários que que os desenvolvidos pelo PCC, em São Paulo.
vivenciaram, ou vivenciam, suas experiências Na Bahia, Lourenço e Almeida (2013) notaram
prisionais em unidades carcerárias sob o domí- como o Comando da Paz e o Grupo do Perna
nio do PCC”. O proceder entre os integrantes iniciaram lutas semelhantes às do PCC no in-
orienta sua ação nas diversas áreas de atuação terior do sistema baiano, criando sinergias, po-
dentro e fora do presídio, uma lógica que não sições hierárquicas e estabelecendo conexões
deixou de estabelecer modalidades de justiça entre a prisão e a rua, com alianças importan-
“entendidas por todos” que, como explica Fel- tes com grupos de outros Estados para a práti-
tran (2010), criaram meios de legitimação das ca de crimes. Além de acordos, as resistências
maneiras de atuar do PCC nas periferias urba- ao CV e ao PCC demarcam a existência de ou-
nas de São Paulo. Esse panorama revela com- tros coletivos de fora do eixo Rio–São Paulo.
posições complexas que desafiam maneiras de Melo e Rodrigues (2017) discutem como, no
compreender o fenômeno das facções dentro surgimento do Sindicato do Crime (SDC), no
e fora das prisões. Ao considerar tal circuns- Rio Grande do Norte, além das lutas contra as
tância, Biondi (2014) explora a ideia de “movi- violações aos direitos dos presos, entre outros

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mento” para pensar no modo como o PCC não objetivos, a resistência ao PCC foi um elemen-
se constitui por leis, replicações de categorias to importante na formação da unidade desse
estatais ou modelos de ordem definida. A ex- coletivo. A resistência à entrada do PCC nesse
periência etnográfica da pesquisadora a con- estado também é importante para a facção Fa-
duziu à consideração de que os múltiplos mo- mília do Norte (FDN), que se constituiu no in-
vimentos que compõem o PCC mais parecem terior do sistema prisional amazonense e se fez
um jeito de fazer do que um formato em si. com intensa atuação em esquemas nacionais e
As experiências criadas e vividas no internacionais de mercados ilegais de drogas,
âmbito do CV e do PCC são duas referências reivindicando o domínio do crime e afirman-
importantes, por uma série de invenções que do que “no Norte tem Comando” (Cf. Siquei-
passaram a compor relações dentro e fora das ra; Paiva, 2017). Candotti, Melo da Cunha e
prisões em todo o País. Isso pode ser eviden- Siqueira (2017) evidenciam essa resistência
ciado, tanto em função de replicações das ex- ao discutir as rebeliões no Complexo Peniten-
periências do eixo Rio–São Paulo, quanto pela ciário Anísio Jobim (Compaj), demonstrando
invenção de outras maneiras de fazer o crime, a multiplicidade de movimentos constituintes
sejam elas inspiradas ou em contraposição às de ações da FDN em sua maneira de fazer o cri-

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me no Amazonas e em seus múltiplos enfren- rou não apenas consolidar o domínio dentro do
tamentos e esquemas. Existem muitas outras sistema prisional, mas também nas ruas, com
configurações em praticamente todos os esta- medidas de proibição de assaltos, punindo com
dos brasileiros, mas, para fins desta pesquisa, tiros nas mãos e nas pernas os que ousavam de-
vou avançar para a discussão das especificida- sobedecer a suas diretrizes. Em suas manifes-
des do Ceará, especialmente de Fortaleza. tações públicas, integrantes da GDE destacam,
Esse estado do Nordeste é território de como explicou um interlocutor, que o “[...] tem-
atuação das três facções classificadas como po das gangues em Fortaleza acabou, agora é
das mais importantes do País: o PCC, o CV e facção e todos têm que respeitar”. A consolida-
a FDN. Apesar de exógenos, são coletivos que ção da GDE é fundamental para compreensão
congregam presidiários e pessoas que fazem o de como as maneiras de fazer o crime em Forta-
crime no Ceará, com alianças e integrações di- leza foram objeto de transformações, pois, em
ferenciadas nos esquemas de cada um desses torno dela, foram instituídas alianças e resis-
grupos. Além desses, e também em razão do tências em um intrincado jogo de rivalidades.
trabalho deles, um componente novo surgiu Feitas essas observações conceituais,
tensionando a relação com as “facções de fora” reconheço os limites da categoria nativa “fac-
e reivindicando a condição de Guardiões do ção”, mas parto de seu reconhecimento social
Estado (GDE). A GDE, conhecida também pe- para lidar com ela, no curso do texto, traba-
los números 7.4.5, consiste numa reunião de lhando a ideia de que a facção é um coletivo
pessoas que fazem o crime, presos e egressos constituído por associações, relacionamentos,
do sistema, dispostos a resistir ao comando de aproximações, conflitos e distâncias necessá-
grupos de fora do Estado, estabelecendo resis- rias entre pessoas comprometidas em fazer o
tências e alianças para lutar pela hegemonia crime, desenvolvendo relações afetivas pro-
do crime no Ceará. Gestada durante alguns fundas, laços sociais elaborados como os de
anos, a fundação da GDE é atribuída ao iní- família, e um sentimento de pertença desen-
cio de 2016. O coletivo conseguiu rápida ex- volvido pela crença em determinadas orien-
pansão no sistema prisional e nas periferias tações políticas e éticas que a sustentam. São
de todo o Ceará, despertando atenção desde o coletivos móveis de pessoas que fazem o crime
primeiro momento pela juventude de seus in- como um meio de integrar a sociedade, pois
tegrantes. Composta por um conselho central, não visam à sua destruição, e sim à participa-
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a GDE agenciou grupos locais que faziam o cri- ção em um sistema de bens materiais e sim-
me em determinados bairros de Fortaleza, in- bólicos agenciados de múltiplas maneiras. Em
tegrando-os como “tropas” e garantindo certa alguma medida, as facções são coletivos com-
autonomia para ações que não poderiam dei- postos por convergências de intencionalidades
xar de respeitar o conselho estabelecido entre de alcances variados, com pessoas ocupando
seus integrantes. posições privilegiadas nos esquemas do coleti-
No primeiro momento, a GDE se cons- vo e outras atuando em suas margens.
tituiu como grupo autônomo e independente,
garantindo algumas alianças estratégicas para
o acesso a drogas e armas. Apesar de replicar SOBRE AS CONDIÇÕES SOCIAIS
práticas das outras facções, a GDE buscou ade- DE REPRODUÇÃO DO CRIME EM
são à ideia de não ser um grupo hierarquizado FORTALEZA
como PCC, garantindo a seus integrantes outro
tipo de participação nas decisões coletivas e Para compreender como o fenômeno das
não executando cobranças de mensalidade. Em facções tornou-se possível, na relação entre
suas primeiras ações, a facção cearense procu- prisões e as periferias de Fortaleza, é preciso

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reconstituir as condições sociais historicamen- As mortes proliferaram e, aos poucos, as pes-


te relevantes das maneiras de fazer o crime na soas proeminentes nas gangues, em posições
cidade. Conforme demonstrou o trabalho de de liderança, se tornaram traficantes. Em mui-
Glória Diógenes (2008), as periferias de For- tos bairros, eles também foram assassinados
taleza, nos anos de 1990, eram povoadas por por pessoas envolvidas em outras atividades
“gangues” – grupos de jovens que criavam seus criminosas, mas que, ao chegarem aos territó-
repertórios para demonstrar, publicamente, rios, não deixaram de sofrer as consequências
que “se garantem”, compartilhando códigos de antigas demarcações e conflitos territoriais.
constitutivos de uma linguagem própria e ma- Assim, as primeiras quadrilhas de traficantes,
neiras peculiares de estabelecer suas relações oriundas ou não de antigas gangues, não dei-
dentro e fora do seu território. As gangues se xaram de se estabelecer em comunidades, fa-
encontravam nas ruas ou em bailes funks para velas ou quebradas com demarcações claras,
trocar socos, pedradas e, no máximo, “[...] al- pois um grupo não frequenta a área do outro, e
guém se armava com um pedaço de pau e fer- as inimizades geradoras de mortes atendem a
ro”, explicou um morador do Conjunto Ceará. essa lógica de pertencimento territorial.
Esses grupos eram compostos por “cabras-ma- Em Fortaleza, os “traficantes”,10 em ge-
chos”,8 que “se garantiam” e afirmavam sua ral, eram tanto os líderes de gangues que vi-
masculinidade diante de outros homens, hete- ram, na maconha e na cocaína, meios de con-
rossexuais e viris. tinuar as brigas de gangues, quanto pequenos
Em entrevistas feitas na periferia, in- empreendedores, homens e mulheres que fi-
terlocutores falam que a chegada das armas e zeram de sua casa boca de fumo. Durante mi-
das drogas, em suas “quebradas”, não foi para nhas pesquisas, escutei histórias de pessoas
constituir um mercado ilegal, mas para ali- que conseguiram ganhar dinheiro e sair da co-
mentar as disputas territoriais entre gangues. munidade, abandonando a prática de crime ou
Quando alguém deu o primeiro tiro, ficou evi- entregando a administração da boca a “pessoas
dente que os encontros não poderiam mais de confiança”, mantendo o controle de fora da
acontecer em batalhas campais desprovidas de comunidade sobre o negócio. Esses relatos são
um abrigo para proteção. Afinal, “[...] o cabra mais raros do que os de pessoas assassinadas.
é macho, mas não tem os peitos de aço”.9 Por Em alguma medida, mesmo os traficantes que
isso, os encontros se tornaram menos comuns não eram envolvidos em gangues herdaram

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e as tocaias passaram a ser utilizadas como delas antigas rivalidades territoriais. Então, o
meios de acerto de contas. Assim, em vez de local da “boca” era também um lugar visado
organizações voltadas para o comércio como por inimigos à espreita e dispostos a realizar
um fim em si, os grupos adquiriram drogas e vinganças em nome de rixas muito antigas.
armas para manter e aumentar a letalidade do “Ninguém sabe muito bem como isso come-
conflito, garantindo sua proteção e sua capa- çou, mas o pessoal daqui não se dá com o pes-
cidade de atuar com violência contra o outro. soal de lá”, relatou uma liderança comunitária
O tempo demonstrou que as drogas, efe- do Bom Jardim, que poderia estar falando de
tivamente, rendem dinheiro, e os conflitos co- qualquer bairro da periferia de Fortaleza.
meçaram a ocorrer dentro da própria gangue. Desse modo, muitos traficantes forma-
8
Segundo explica Albuquerque Junior (1999, p. 175), “[...]
10
Como sugere Grillo (2013), os traficantes são reconhe-
ser cabra macho requer ser destemido, forte, valente, cora- cidos por uma série de estereótipos apropriados e reapro-
joso. Nesta sociedade, o frouxo não se mete, não há lugar priados em diversas ocasiões por distintos sujeitos em
para homens fracos e covardes”. suas relações de aproximação, distanciamento e enfrenta-
mento. O uso dessa categoria de maneira indiscriminada
9
Gíria popular para explicar a fragilidade do corpo, mes- contra os mais pobres permitiu, entre outras coisas, a sus-
mo de um cabra-macho, diante da ameaça objetiva im- pensão de direitos e intervenções na vida das populações
posta pela posse de uma arma de fogo pelo inimigo num de favelas cariocas em nome da pretensiosa ideia de “guer-
enfrentamento. ra às drogas” e ao “crime”.

171
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

ram quadrilhas e morreram não pela mão de podem ser “certas” ou “erradas”, dependendo
um grupo que queria tomar “a boca”, mas de dos valores mobilizados para explicar “o que
pessoas que os queriam matar porque eram os tem”, “o que deve” e “o que efetivamente foi
traficantes da comunidade X. As mortes são feito”. Uma “parada errada” remete a algo que
feitas por meio de crimes de pistolagem, em não deveria ser feito e quebra acordos que es-
uma motocicleta com duas pessoas: um mo- tabelecem vínculos entre os que fazem os “cor-
torista e o outro armado na garupa. Chegam res” e movimentam o crime. Em determinados
rapidamente e realizam disparos contra a víti- momentos, as figuras de mando são fundamen-
ma. Há situações em que duas ou três pessoas tais para a avaliação moral desses processos.
chegam a pé, armadas, e atiram contra a víti- Os líderes de gangues e, logo em seguida, os
ma. Em poucas situações, existem narrativas traficantes de drogas, eram as figuras que car-
sobre a morte de duas ou três pessoas em ação regavam as formas de “consideração”, ou seja,
única. Em seguida, os envolvidos do território as modalidades de respeito a uma figura reco-
do morto preparam e planejam a vingança, que nhecida como autoridade. Como na explicação
ocorre seguindo o mesmo ritual, buscando evi- de Leonardo Sá, a falta de “consideração” é
tar o confronto e pegando a vítima de surpresa. “[...] o modo desrespeitoso com que se reali-
Em geral, em minhas pesquisas no bair- za a relação social com a alteridade inimiga,
ro de Bom Jardim, em meados dos anos de provocando ondas de homicídios rituais e de
2000, as gangues e os traficantes locais exer- vinganças ‘por nada’” (Sá, 2011, p. 349). Inter-
ciam pouca influência na vida comunitária, romper a criação de um “bichão”, controlar as
exigindo apenas o silêncio das pessoas para dinâmicas dos “corres” e estabelecer relações
que suas atividades não fossem prejudicadas. “consideração” constituem elementos impor-
Em alguns casos, observei que determinados tantes na hora de olhar as maneiras de fazer o
crimes de linchamento e execução de assaltan- crime em Fortaleza.
tes que cometiam crimes dentro do território Outro dado importante remete ao fato
eram atribuídos aos traficantes locais, mas de que, ao longo dos 13 anos em que pesqui-
eram situações circunstanciais, para impedir so os efeitos sociais da violência em Fortaleza,
que um “bichão” se criasse. Ao estudar a ca- pessoas envolvidas com o crime se mataram
tegoria “bichão da favela”, Leonardo Sá (2011) na periferia sem enfrentar intervenções signifi-
explica que as dinâmicas dos envolvimentos cativas do Estado. Apesar do comparecimento
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019

com o crime, no bairro Serviluz, de Fortaleza, constante de forças de policiamento ostensivo,


perpassam as maneiras de o sujeito se consti- as pessoas não têm acesso à justiça, e é comum
tuir como pessoa, obtendo o respeito por sua que as mortes permaneçam sem investigação
atitude. A exemplo do que acontece no Ser- adequada. Cavalcante (2011, p. 139) eviden-
viluz, as investigações que realizei em outras ciou que essas pessoas vivem em locais que
periferias de Fortaleza demonstram que as dis- podem ser compreendidos como “territórios
putas internas sempre afetaram jovens que se de exceção”, nos quais os jovens são assassi-
fazem “bichão” e praticam o crime na perife- nados e os crimes permanecem sem resolução.
ria. Esses jovens se referem às suas ações como Assim, as periferias são territórios permeados
“os corres”, ou seja, ilegalismos ou delitos que por inseguranças e perigos que, como sugere
correspondem às dinâmicas da “correria” para Matos Júnior (2008), produzem medos e hábi-
ganhar a vida e se virar como pode, agencian- tos de proteção verificáveis pelas dinâmicas
do malandragem e a disposição para “fazer o dos corpos de seus moradores.
que é preciso fazer”. Torna-se recorrente, na fala dos morado-
Também falam das “paradas”, ou seja, as res, a afirmação de que forças policiais atuam
práticas que constituem as coisas a fazer, que nessas comunidades, promovendo práticas de

172
Luiz Fábio S. Paiva

abuso de poder e realizando prisões de “peixes Nas pesquisas que realizei em Fortaleza,
pequenos”, pessoas sem importância nas dinâ- as informações obtidas revelam que, até 2013,
micas criminais.11 “Os grandes, aqueles que colo- pelo menos, prevalecia a pulverização dos es-
cam as armas nas mãos dos adolescentes, é tudo quemas de gangues, traficantes, cabras-machos
andando por aqui, tudo solto”, afirmou uma e bichões, que resolviam seus conflitos, fazen-
moradora da Granja Lisboa, sintetizando o sen- do seus corres e realizando acertos de contas
timento das pessoas que vivem em áreas pobres sem a pretensão de um domínio abrangente
afetadas por situações de violência. Em casos de das periferias. A realidade começou a mudar
homicídio, é comum que policiais, nas cenas dos em 2014, quando traficantes locais começaram
crimes, se apressem a afirmar para a imprensa a “trocar ideia”, conversar sobre uma possível
que o caso em questão é “[...] um acerto de con- união, com reuniões dentro e fora dos presídios
tas entre bandidos”. Essa ideia é tão recorrente para discutir arranjos que envolviam as facções
que, nos eventos de chacina, mesmo quando eles PCC, CV e FDN. Isso possibilitou que presidiá-
geram comoção e repercussão social, a primei- rios se organizassem e agenciassem grupos lo-
ra manifestação do poder público é afirmar que cais para os coletivos criminais mais robustos,
está sendo feito um levantamento dos antece- reterritorializando e redimensionando a escala
dentes criminais da vítima (Cf. Paiva, T., 2016). de participação nas dinâmicas do crime feitas
Além da omissão sistêmica, existem ru- na cidade. O surgimento da GDE possibilitou
mores da colaboração de policiais que recebem também um discurso identitário com pessoas
“um trocado” de traficantes para permanece- vinculadas ao crime no Ceará e se impôs diante
rem em silêncio, ou até participarem da eli- de grupos considerados estrangeiros.
minação de inimigos. Em determinados casos,
os boatos reproduzidos por moradores são de
que meninos são presos por policiais em uma MUDANÇAS NAS MANEIRAS DE
comunidade e são soltos na comunidade rival, FAZER E VIVER DO CRIME
facilitando a morte deles por seus inimigos.
Igualmente, pairam acusações de participação No início de 2016, quando os discursos
de policiais em esquemas de tráfico de armas da comunidade encontraram eco na imprensa
e drogas. Dessa maneira, a colaboração ou a cearense, ao evidenciarem a existência de fac-
omissão de determinados policiais atuam na ções, a primeira narrativa em torno delas foi a

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019


reprodução dos acertos de contas e na sua não de que elas estavam “em paz”, operando em
resolução, prevalecendo práticas de justiça comum acordo um sistema de correções em
criadas pelos próprios envolvidos e a ideia de relação à maneira de fazer o crime nas “que-
que essas pessoas criam as próprias leis. Como bradas”. A “pacificação” foi um fenômeno
observei nas pesquisas realizadas, as pessoas ambíguo, pois promoveu, por um lado, a dimi-
vivenciam uma série de consequências no in- nuição sistêmica e significativa do número de
terior desse vínculo entre a omissão do Estado, crimes de homicídio e, de outra parte, a con-
a participação de agentes públicos nas dinâmi- tinuidade não apenas de assassinatos como o
cas criminais e a disposição de sujeitos para aparecimento da tortura como meio de con-
fazer o crime em condições de enfrentamento, trole social dos que fazem o crime na periferia
dentro de determinados territórios. Assim, foi (Cf. Barros et al., 2018).
nessas condições que fazer o crime em facções Centenas de vídeos passaram a circular
se tornou possível. na Internet repetindo exatamente o mesmo
ritual: jovens, pardos, pretos e pobres espan-
11
Moreira (2013) analisou as dinâmicas e as contradições cados, recebendo “lições de moral” e sendo
da ação de forças especiais de policiamento na periferia
de Fortaleza. questionados se estão se sentido um “bichão”

173
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

e se não haviam aprendido que estava proibido pela redução do número de homicídios, reve-
roubar na “quebrada”. Em silêncio, eles escu- lada com perplexidade por uma agente de se-
tam, balançam a cabeça, pedem desculpa, bal- gurança pública com quem conversei: “[...] tem
buciam alguma coisa e clamam por sua vida, final de semana agora em Fortaleza que não
prometendo que não cometerão o mesmo erro. morre ninguém. Tu acredita?”
A certa altura, a pessoa que promove as “lições A princípio, assim como aconteceu em
de moral” pede que eles mostrem as mãos ou outros Estados, o movimento do Governo Esta-
os pés e dispara um tiro à queima roupa. Em dual foi de negar a existência das facções. Co-
seguida, manda a vítima sair dali. Em outros mandantes da Polícia Militar (PM) declararam
casos, a pessoa é questionada se ainda não que a redução dos homicídios, em 2016,13 foi
aprendeu a lição, ouvindo que já não é a pri- resultado do trabalho das forças de segurança,
meira vez. Em determinados vídeos, a pessoa negando, inclusive, a existência do fenômeno
ou o grupo que executa a admoestação puxa da “pacificação” entre as pessoas que faziam o
um facão e inicia o esquartejamento das mãos crime no Estado do Ceará.14 Enquanto os nú-
ou dos braços. Há casos em que são cortadas meros caíam, o Governo do Estado do Ceará
as cabeças, com o uso de facões não amolados, atuou sem demonstrar qualquer ação específi-
com as vítimas esboçando profundo desespero ca para uma situação que era visível nos muros
por estarem sofrendo uma mutilação que cul- da Cidade, com pichações indicando locais e
minará em sua morte, não antes de experimen- orientações dos coletivos criminais em ação. A
tar dores lancinantes. Em outros casos, ainda situação se tornou mais difícil para o Governo
é possível ver execuções à bala. As cenas, em a partir de março de 2016, quando uma série
geral, são terríveis, desesperadoras e compar- de atentados ordenada de dentro das unida-
tilhadas pela rede mundial de computadores e des prisionais foi executada. Ao todo, foram
sistemas de mensagens via aparelhos celulares. 13 atentados que atingiram bens e prédios
A proibição de assaltos foi a primeira públicos. Segundo matéria de Thiago Paiva
marca significativa do trabalho das facções nas (2016), “[...] cinco delegacias e um prédio da
periferias. Produziram como efeito a ideia de Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus) foram
que as comunidades estavam seguras e livres de alvejados com disparos de armas de fogo e seis
assaltos. Proliferaram pichações com a sentença ônibus e uma Van foram incendiados”. O de-
“se roubar na favela morre” e se criou a ideia de legado geral da Polícia Civil se manifestou, na
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019

que as facções protegiam a comunidade, evitan- matéria, admitindo que a ordem para os ata-
do os roubos aos moradores. Ao mesmo tempo, ques foi dada por “bandido dos presídios”, mas
os limites territoriais herdados dos tempos das até aquele momento insistia na ideia de que
gangues foram desfeitos. As facções tornaram era “precipitado” atribuir autoria dos ataques a
possível que moradores de uma comunidade, um grupo específico.
que era inimiga de outra, pudessem circular e No dia 04 de abril, uma nova ação des-
conviver uns com os outros. As “guerras” aca- pertou a atenção. Um carro-bomba foi encon-
baram, e a vida se tornou mais tranquila. Então, trado próximo à Assembleia Legislativa do
a “pacificação” foi celebrada em bailes de fave- 13
Com base em dados da SSPDS (2016), a redução de ho-
la, uma passeata na cidade de Sobral12 e mui- micídios, em 2016, comparada com os números do ano
anterior, foi de aproximadamente 15,2%. Não se observava
tos fogos de artifício em diversas comunidades. redução tão significativa nos números de homicídios des-
de o início dos anos 2000.
Os efeitos da “pacificação” foram evidenciados
14
Na edição do dia 25 de setembro de 2016, o Programa
12
No dia 28 de junho de 2016, na cidade de Sobral, ocor- Fantástico deu visibilidade à “pacificação” feita por fac-
reu uma passeata com cerca de 200 pessoas em “come- ções, mostrando as torturas e a passeata realizada em So-
moração à pacificação”. A manifestação teve repercussão bral. Na matéria, o Tenente Coronel Assis Azevedo afirmou
em periódicos e programas de televisão locais e nacionais. que a passeata foi uma maneira de afrontar o Estado e que
Segundo informações da imprensa local, 87 pessoas foram a redução dos índices de criminalidade resultou das ações
presas na ocasião. da PM e não da ação de criminosos (Passeata…, 2016).

174
Luiz Fábio S. Paiva

Estado do Ceará, com um bilhete escrito em cente fortalecimento de facções criminosas no


retaliação à possível lei que previa o uso de interior de presídios, as quais pretendem apo-
bloqueadores de aparelho celular nos presí- derar-se das unidades, tal qual em outros es-
dios. No bilhete, lê-se o seguinte: tados da Federação”. No relatório, consta que
as facções criminosas deram um “salve”15 e as
Comunicado aos deputados e governantes do Esta-
do do Ceará. Não queremos saber o que o Sr. Gover-
mortes foram ordenadas pelas lideranças des-
nador irá fazer para vetar essa lei que o Sr. e seus ses grupos.
amigos parlamentares fizeram. Mas o Sr. dê um jeito Apesar dos ataques e da rebelião nos pre-
de vetar o mais rápido possível, pois, caso contrário sídios, a situação se manteve equilibrada nas
iremos tomar medidas drásticas. O crime está muito ruas em virtude da referida “pacificação”, favo-
bem preparado para uma guerra contra o seu gover-
recendo a narrativa de que o governo tinha con-
no. Se o Sr. for adiante com essa lei, fique sabendo
que todas as cadeias do Estado vão quebrar ao mes-
trole da situação e as facções não tinham po-
mo tempo. Vamos colocar um carro com explosivos der além dos muros da prisão. Em junho, após
em cada órgão público desse estado. Esse carro com a morte do traficante Jorge Rafaat, no Paraguai,
explosivo (na Assembleia) é apenas um aviso, pois iniciou-se uma onda de boatos de que o pacto
acreditamos que o senhor é um homem inteligente e nacional de trégua entre PCC e CV havia che-
não vai arriscar a vida de milhares de inocentes por
gado ao fim. Não obstante, no período de junho
conta de uma lei criada pelo senhor, que pode ser ve-
tada. Que nós acreditamos, é a coisa certa a fazer. Se
a setembro, aconteceram várias manifestações
o senhor tiver achando que o crime está brincando, que reafirmavam que a paz estava mantida,
o senhor vá adiante e vai sentir o poder do crime no com declarações de traficantes locais de que a
estado, que não é só nos presídios, você sabe muito “pacificação” continuaria nos bairros de Forta-
bem... Assinado: o crime no Ceará (Freitas, L., 2016). leza. Em outubro, no entanto, teve início uma
série de rumores de que a paz tinha terminado
A mensagem não foi atribuída a um co-
e circulava pela cidade um “salve” do PCC, afir-
letivo específico, mas evidenciou-se como um
mando que o CV havia quebrado o acordo.
perigo real pela presença de 13,3 kg de nitrato
Embora não seja preciso definir a exten-
de amônia prontos para detonação. Após esse
são e a potencialidade de cada fato que levou
episódio, no período de 20 a 23 de maio de
ao fim da “pacificação”, creio que o ponto cru-
2016, em meio a uma greve de agentes peni-
cial de demarcação de seu final foi o assas-
tenciários, estourou uma rebelião nas seguin-
sinato de Welder Breno Silva Ferreira, de 28
tes unidades prisionais: Instituto Penal Femi-

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019


anos, no dia 19 de outubro de 2016. Sua morte
nino Desembargadora Auri Moura Costa, Uni-
aconteceu no bairro da Sapiranga, no cruza-
dade Prisional Agente Luciano Lima Andrade
mento das ruas Olegário Memória e José Felix,
UPDAOBL (Carrapicho), Casa de Privação de
e representou um marco do início dos confron-
Liberdade Provisória Professor Clodoaldo Pin-
tos armados entre as facções que atuavam no
to, Casa de Privação de Liberdade Provisória
Ceará. Militantes de movimentos de Direitos
Professor Jucá Neto, Casa de Privação de Liber-
Humanos que atuavam na Sapiranga declara-
dade Provisória Agente Elias Alves da Silva.
ram, em conversações sobre o evento, que a
Na ocasião, 14 pessoas morreram, e imagens
morte, naquele lugar, era um “sinal”, porque
de presos sendo torturados foram filmadas e
era ali que o bairro era dividido pelos grupos
colocadas na Internet. A situação produziu
que faziam o crime antes das facções. Apesar
uma investigação do Ministério Público do
de ter sido um bairro historicamente marca-
Estado do Ceará (MPCE), que se manifestou
sobre o assunto em relatório publicado no dia 15
Como explica a pesquisadora Camila Dias (2011b), em
19 de agosto de 2016. Em sua manifestação, o sua análise do PCC, o “salve” é o modo como circulam
avisos, informações, ordens e todo tipo de mensagens que
MPCE (2016, p. 2581) reconheceu “[...] o cres- expressam orientações dos segmentos que ocupam posi-
ção de mando no coletivo.

175
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

do pela violência de gangues que realizavam e envolve pessoas “consideradas”, respeita-


acertos de contas em um sistema de vingança das na dinâmica do crime no Estado do Ceará.
territorializado, a morte de Welder aconteceu Ser “considerado” é ter o respeito e o direito
depois de um ano sem eventos de homicídio à voz, podendo falar e emitir determinadas or-
na Sapiranga.16 dens com relativo sucesso e adesão de outros
O fim da paz entre as facções iniciou o membros do coletivo. A GDE é constituída por
maior conflito armado vivido no Estado do Ce- “tropas” que funcionam como unidades autô-
ará, repercutindo em 5.134 crimes violentos, nomas e colaborativas, em uma tênue conexão
letais e intencionais ocorridos no ano de 2017, entre esses subgrupos e a unidade maior da fac-
segundo dados da Secretaria de Segurança Pú- ção. Observa-se que as “tropas” têm certa auto-
blica e Defesa Social (SSPDS-CE). Nesse novo nomia e criam algumas rivalidades em termos
momento, o CV e a FDN mantiveram-se alia- de quem “se garante mais” pela realização das
dos, replicando o que já acontecia em outros missões mais espetaculares ou prática das tare-
Estados e no próprio Ceará, antes mesmo da fas mais cruéis na eliminação dos adversários.
“pacificação”. A novidade desse processo foi a Outro elemento importante diz respeito
aliança entre o PCC e a facção Guardiões do Es- a como a GDE conseguiu força para disputar os
tado (GDE), conhecida também pelos números espaços com o CV e a FDN. Do ponto de vis-
7.4.5. No início, pesquisadores e operadores de ta material, a união com o PCC foi fundamen-
segurança e justiça questionaram a efetivida- tal, pois estabeleceu as condições ideais pelas
de dessa aliança, pois o PCC era reconhecido, quais foi possível à facção cearense obter dro-
nacionalmente, por não batizar menores,17 en- gas e armas. Para o PCC, sem um número su-
quanto a GDE é uma facção com marcante atu- ficiente de homens para enfrentar CV e FDN,
ação de menores de idade, inclusive em posi- no Estado do Ceará, a GDE foi providencial,
ções de prestígio e reconhecimento. Em várias na medida em que arregimentou um pequeno
músicas atribuídas à facção e que circulam na exército, mesmo que, em grande parte, forma-
Internet, aparece a frase “o menor tá pesado”, do por menores. Outro elemento importante
além de várias menções ao fato de o “menor na formação da GDE, muito semelhante ao que
meter bala”, ou “o moleque é o bicho”, “aqui só foi feito pela FDN no Amazonas, foi o apelo ao
tem moleque doido”, “o menor só de AK”. discurso regional.
A respeito do que aprendi sobre esse Não é por acaso que seus integrantes de-
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019

coletivo criminal cearense, não existe uma es- cidiram usar duas palavras emblemáticas na no-
trutura hierárquica delimitada, com posições meação do grupo “guardiões” e “Estado”. Onde a
sedimentadas e funções de mando objetivadas facção buscou adesão, conforme me explicaram
em um esquema de cima para baixo. “Aqui é jovens da periferia, seus integrantes trabalharam
tudo patrão”, disse um jovem envolvido com com essa ideia de que o “crime do Ceará tinha
o qual conversei. Apesar dessa ideia, aparen- que se unir”, alegando que a “a bandidagem do
temente exagerada, de uma organização total- Ceará não podia pagar esse negócio de mensa-
mente horizontal, o grupo tem um conselho lidade coisa nenhuma”. A ideia era boa e teve
que funciona dentro das unidades prisionais efeitos importantes em um processo de rápida
expansão local. A aliança, para o PCC, se tornou
16
Matéria de Lyvia Rocha (2016) retrata esse dado, afir-
mando que o local não registrava homicídio havia um estratégica, e sua acomodação a ela remete a ou-
ano. A matéria ressalta ainda que o assassinato teria sido
ordenado de um dos presídios do Estado dominado por tras experiências vividas pela organização fora do
facções. Estado de São Paulo, nas quais o discurso regio-
17
Biondi (2007) ressalta que, apesar de receberem orien- nal foi usado por organizações locais para firmar
tação do “Comando”, os menores não são batizados, ou
seja, não participam do momento em que os “primos” se pactos e resistências a uma facção “de fora”.
tornam “irmãos” e, portanto, gozam de outra modalidade
de reconhecimento na “família”. As mesmas ideias que circulam e com-

176
Luiz Fábio S. Paiva

põem os estatutos da FDN, CV e PCC aparecem a facção acusada de comandar as execuções.


em supostos documentos apresentados como No período de intensificação dos assas-
estatuto da GDE. Ali também aparecem os ide- sinatos, começaram a florescer, nos bairros de
ais de paz, justiça, liberdade e igualdade, com Fortaleza, as seguintes inscrições: “ao entrar na
discriminações a respeito de um “proceder” favela, baixe os vidros, tire o capacete”. O avi-
que define como “andar pelo certo”. A não ob- so remete a uma preocupação dos envolvidos,
servância enseja a punição em “tribunais do nos diversos coletivos criminais, a respeito da
crime”. Os julgamentos, no entanto, seguem possibilidade de a facção rival invadir o ter-
uma orientação mais pessoal, fragmentada e ritório para fazer chacinas, ou tentar tomá-lo
nem sempre articulada à unidade maior. Ob- para si. A desobediência a essa ordem custou
servam-se situações muito específicas de reso- a vida de um motorista de UBER, Matheus
lução de conflitos correspondentes a “tropas” Vieira Paulino, no bairro Ancuri, justamente
específicas, e não ao conselho ou segmento por não cumprir a exigência de baixar o vidro
que ocupa posição privilegiada no coletivo. É do veículo. Essa, entre outras mortes, revelou
possível, no entanto, afirmar que esses julga- que as pessoas que fazem o crime, na cidade,
mentos cumprem função semelhante ao que não estavam mais limitadas pelas antigas proi-
Feltran (2010) observa nos tribunais do PCC, bições de gangues e quadrilhas de traficantes
qual seja, a de produzir uma ordem e um sis- cujo território não poderia ser tomado ou ser
tema de normalização das condutas pelo con- terreno de ações do porte de uma chacina com
trole da vida e da morte nas periferias. A es- vários mortos. A morte do motorista do UBER
ses julgamentos soma-se uma série de novas evidenciou uma mudança importante relacio-
conflitualidades nas dinâmicas dos acertos de nada à violência praticada por quem faz o cri-
conta feitos em ações de maior envergadura do me em Fortaleza, sobretudo na sua relação com
que as ocorridas no período anterior às facções. pessoas não envolvidas no coletivo. Em 03 de
A violência se tornou, assim, um meio de julho de 2017, Francisco Nascimento Canuto,
comunicação entre os coletivos e a maneira de o “Xico Canuto”, dono de um dos mais antigos
equilibrar forças nas disputas que convergem bares da Praia de Iracema, o “Bicho Papão”, foi
no Estado do Ceará, especialmente em Forta- assassinado, e os relatos de moradores do bair-
leza. Em um dos casos de maior repercussão, ro retratam que isso aconteceu porque Xico se
um dos operadores da FDN, Vainer de Matos recusava a vender drogas em seu bar. Em vídeo

Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019


Magalhães, foi assassinado no dia 20 de abril que circulou na Internet, é possível ver o as-
de 2017, em um veículo alvejado por cerca de sassino chegando ao bar a pé, executando o co-
40 tiros de fuzil de um calibre capaz de furar merciante e fugindo. Casos como esse também
blindagens (Cf. Líder..., 2017). Após uma sé- aconteceram no bairro Barra do Ceará, com a
rie de outros assassinatos, no dia 03 de junho morte de um casal de comerciantes, e, segundo
de 2017, consoante relatos e testemunhos que interlocutores, é uma rotina na região do Gran-
circularam pela imprensa, um grupo de oito de Bom Jardim.
ou dez homens, em dois carros, invadiu uma Outro efeito perverso das rotinas instau-
casa de veraneio e assassinou seis pessoas (Cf. radas pelas facções está na administração de
Seis..., 2017). As vítimas foram acusadas de es- punições a moradores acusados de colaboração
tar realizando uma festa, na casa de veraneio, com a Polícia ou com os coletivos rivais. No
em razão da soltura de Davi Saraiva Benigno, Conjunto Palmeiras, alguns interlocutores rela-
de 23 anos, que estava preso desde novembro taram que um senhor foi morto por ser suspeito
de 2015, sob a acusação de liderar uma quadri- de ter denunciado as pessoas que fizeram um
lha de tráfico de drogas sintéticas no Estado. A mural de grafite da GDE, próximo a um campo
festa seria uma celebração da GDE, e o CV foi de futebol do bairro. É importante destacar que,

177
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

nas falas de moradores da periferia de Fortaleza, çadas de expulsão com pichações em suas ca-
o Conjunto Palmeiras é retratado como o local sas, com as seguintes ameaças: “sair fora todo
de surgimento da GDE. Os traficantes locais mundo das travessa [sic], se não vai morrer”.
seriam “considerados”, na cidade e no sistema A situação se repetiu em vários bairros, com
prisional, o que possibilitou a criação do coleti- ameaças coletivas e individuais. Em diversas
vo e sua adesão em outros territórios. O Conjun- ocasiões, a PM foi atuante para garantir a segu-
to Palmeiras, em diversas áreas, é considerado rança durante a mudança dos moradores.
por seus moradores como “extremamente segu- O controle social dos territórios urbanos
ro” pela pouca resistência existente ao domínio também se tornou efetivo por meio de assassi-
da GDE. Lideranças comunitárias, educadores natos, duplos e triplos homicídios, e chacinas.
sociais e militantes políticos, no entanto, rela- A intensificação da violência se tornou visível
tam as complexas negociações para qualquer e, em levantamento feito pelo jornal O Povo,
atividade no território, sendo necessário muito foram realizadas, pelo menos, oito chacinas no
cuidado para que os frágeis laços de confiança período de aproximadamente um ano:
não sejam rompidos. Esse controle da popula-
20/2/2017 - Granja Lisboa (Fortaleza): cin-
ção exigiu uma série de compromissos e o silên- co pessoas mortas e três feridas em confli-
cio em relação a práticas do coletivo na região. to entre facções; 3/6/2017 – Aquiraz: seis
Em conversas com lideranças comunitárias, as pessoas mortas em festa que comemorava
falas remetem a um sentimento de inseguran- soltura de traficante; 12/6/2017 – Horizon-
ça não vivenciado da mesma maneira antes da te: cinco mortos, entre eles uma criança
de três anos, e outras três pessoas feridas;
existência das facções.
20/7/2017 – Paraipaba: quatro mortos em
As ameaças às lideranças comunitárias conflito de facções; 8/10/2017 - Bom Jar-
se mostraram reais no dia 10 de novembro de dim (Fortaleza): quatro pessoas mortas em
2017, quando a líder comunitária Cristina Po- suposta reunião para selar acordo de paz.
eta foi baleada em uma parada de ônibus por Dois suspeitos presos; 13/11/2017 - Centro
dois homens. Apesar de não existirem provas, de Semi-liberdade Mártir Francisca, Sa-
piranga (Fortaleza): vinte homens arma-
os rumores entre moradores e militantes da
dos invadiram o centro e mataram qua-
área de direitos humanos retratam uma possí- tro internos, de 13, 15 e dois de 16 anos;
vel retaliação em virtude do envolvimento da 8/1/2018 – Maranguape: quatro pessoas
líder comunitária com projetos de segurança mortas em uma casa na subida da serra;
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do Governo, inclusive fazem menção a um teria sido conflito de facções; 27/1/2018 -


agradecimento público que ela teria feito ao Cajazeiras (Fortaleza): catorze mortes con-
firmadas durante a festa ‘Forró do Gago’;
comando da Unidade de Segurança (UNISEG)
causa teria sido conflito entre facções (Em
que funcionava na região. Em conversas com li- um ano..., 2018, grifo do original).
deranças comunitárias do Grande Bom Jardim,
o medo na ação comunitária me pareceu uma Os rumores são de que existem outros
novidade importante, que evidencia um pano- casos em que pessoas foram mortas em ruas
rama de maior dificuldade na relação entre os diferentes, mas em uma mesma ação. Exemplo
movimentos sociais e quem faz o crime, nas disso foi a Chacina do Benfica, em que quatro
periferias. O problema se intensificou quando pessoas foram mortas em mesas de um bar lo-
as facções, ao ocuparem territórios rivais, não calizado em uma praça do bairro, e outras duas
se limitaram a matar e a expulsar envolvidos, foram assassinadas pelo mesmo grupo em ruas
mas também parentes, amigos, suspeitos ou próximas. Nas chacinas retratadas pelo jornal
simpatizantes do coletivo inimigo. Em um dos O Povo, a das Cajazeiras foi a que apresentou
casos emblemáticos da cidade, na comunidade maior número de vítimas, incluindo várias
da Babilônia, cerca de 20 famílias foram amea- mulheres. No dia 27 de janeiro de 2018, pes-

178
Luiz Fábio S. Paiva

soas se divertiam, no bairro Cajazeiras, numa cutores, eles participam do conflito para reali-
área dominada pelo CV e FDN, quando ho- zar acertos de contas contra “covardias” come-
mens fortemente armados desceram de três tidas por qualquer um dos coletivos criminais.
carros e disparam primeiro em um motorista Entre as “covardias”, estão atos que denigrem
de Uber, parado na esquina, em um vendedor o “andar pelo certo” e a ética dos que fazem o
ambulante na porta do forró, em seu filho de crime na cidade.
12 anos e em uma mulher que passava na rua. Outro fenômeno importante após a con-
Em seguida, entraram na boate e dispararam solidação das facções nas periferias de For-
contra as pessoas. Na ação, que durou apro- taleza é o papel das mulheres nos esquemas
ximadamente dez minutos, 14 pessoas foram e acertos de conta. As mulheres se tornaram
executadas e outras dez ficaram feridas. Entre personagens importantes após o advento das
os mortos, havia oito mulheres. Os relatos de facções, com participação ativa na dinâmica
sobreviventes ressaltam que três amigas corre- dos coletivos. Ao integrarem e se fazerem ver
ram para trás do bar e ficaram ali abraçadas. nas dinâmicas dos coletivos criminais, elas
Ao serem encontradas, mesmo implorando por também se tornaram passíveis de ser vítimas
suas vidas, foram executadas. de acertos de contas entre as facções, sendo
Após a chacina das Cajazeiras, aconte- “decretadas”, torturadas e mortas sob acusa-
ceu a de Itapagé. Como no Centro de Semi-Li- ção de “cooperar” com os inimigos. Os dizeres
berdade Mártir Francisca, a ação ocorreu con- “onde pegar, pau no gato” e “sem massagem”
tra pessoas sob a tutela do Estado. Dez deten- demarcam e indicam quem deve morrer. Essas
tos acusados de integrar o PCC foram mortos indicações aparecem publicamente, em redes
por pessoas ligadas ao CV. A ação teria sido sociais, nas quais centenas de perfis de mu-
uma retaliação aos eventos das Cajazeiras. Ela lheres são expostos a fim de retratar para todo
aconteceu em um período no qual havia rumo- o grupo quem são elas, onde moram e como
res de que o PCC poderia se juntar ao CV e devem morrer. Cheguei a contar, em páginas
FDN contra a GDE em virtude da “covardia” do Facebook de supostos integrantes de cole-
empregada na chacina das Cajazeiras. Circu- tivos, 208 meninas decretadas, sendo possível
laram pela Internet mensagens de um grupo observar, em uma só postagem, 21 mulheres.
de prisioneiros que “não veste a camisa de ne- São publicações que aparecem e são apagadas,
nhuma facção”, falando que iria fazer justiça. mas não sem antes circular por dias nas redes

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O vídeo mostra homens com camisetas bran- sociais.
cas e microfone, levantando muitas suspeitas Conforme me informou um morador do
sobre sua origem e intencionalidade.18 Eles se Grande Bom Jardim, as meninas participam
intitulavam integrantes da “massa carcerária”, ativamente de esquemas de tráfico e também
ou seja, um grupo de pessoas que não compu- na comunicação entre o presídio e as comuni-
nha um coletivo e se identificava como não dades. Existem situações em que elas coman-
integrante de nenhuma facção. Em entrevistas dam bocas e têm influência importante no gru-
realizadas sobre esse grupo, um interlocutor po local, articulando ações e decretando pes-
afirmou que eles são “considerados”, pessoas soas para futuras eliminações. Suas mortes, no
presas que “não vestem a camisa de nenhuma entanto, não acontecem apenas por acertos de
facção”, ou seja, são independentes. Em algu- contas, mas também por perseguições relacio-
mas circunstâncias especiais, segundo interlo- nadas a envolvimentos sexuais e afetivos com
18
O vídeo encontra-se disponível em https://www.youtu- jovens de áreas comandadas por outras fac-
be.com/watch?v=1f0G8u1nyzM. Acessado em 28 de mar- ções. Em determinados casos, quando desco-
ço de 2018. A existência da massa carcerária inclusive foi
objeto de questionamentos em debates sobre o tema, mas brem que uma menina da comunidade se rela-
ela não é, de fato, um grupo, e sim um termo para identifi-
car os presos não faccionados. ciona com um jovem de uma facção, ou de área

179
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

dominada pela facção rival, tratam-na como se ruim”. Nas redes sociais, eles se agridem. “Bro-
fosse “marmita” dos inimigos. As mortes não ta, se tu é homi [sic]”, desafia um ao outro, uti-
são decretadas apenas depois do conhecimen- lizando perfis falsos, mas também, em deter-
to objetivo de certos envolvimentos, porquanto minados casos, de cara limpa, com seus perfis
elas podem acontecer em função de suspeita, pessoais e identificando os locais onde o outro
antipatia ou desejo de vingança por questões deve aparecer. É uma luta social complexa, em
pessoais. Algumas mortes ocorrem em mata- que pessoas veem, na reprodução do crime, um
gais, após sequestro, e podem envolver torturas meio de acessar bens materiais e simbólicos e,
e estupros. Várias cenas dessas mortes circu- consequentemente, exercer poder de governo
lam nas redes sociais e mostram uma realidade na vida de pessoas agenciadas, como objetos
por demais perversa, com as mulheres muito de interesse e manifestação da crueldade dos
machucadas, afirmando que elas estão “rasgan- integrantes das facções. Com efeito, fazer uso
do a camisa da facção”19 a qual são associadas. da violência na prática de crimes não é ape-
Há várias cenas nas quais são cortadas vivas nas acertar contas, mas também constituir a si
enquanto choram e imploram por suas vidas. A mesmo como um agente capaz de fazer frente
cada novo caso, uma série de acusações sociais ao outro, igualmente disposto e motivado pe-
é trocada por esses coletivos, afirmando que o los mesmos referenciais morais e políticos.
outro é capaz das mais terríveis covardias con- Por fim, é importante perceber que as pes-
tra a população inocente. soas que integram as facções ocupam lugares
Nas redes sociais e nos bairros, é pos- e posições diferentes nos diversos tipos de en-
sível observar um movimento de difamação e volvimento possível com esses coletivos. Nesta
ofensa moral entre os coletivos, com o objetivo análise, cuidei somente de uma dimensão des-
de demonstrar que o outro é capaz de “covar- se processo, situada na periferia, e que envolve
dia”. O uso de mulheres em acertos de contas as disputas letais entre pessoas que encarnam o
é mobilizado nesse sentido, com cada uma das coletivo como parte de suas disposições de vida
facções acusando a outra de “matar mãezinha” e morte. Existem diferenças sociais importantes
e “torturar inocente”. É importante destacar o entre pessoas e seus distintos tipos de partici-
fato de que, nessas ações e trocas de insultos, pação nas facções. “Aqui o cara põe a arma na
são as figuras do CV e da GDE que aparecem mão do menino, o cabra sabe nem de quem é, de
com maior destaque, como se o PCC e a FDN onde vem, ele sai logo feito doido, se amostrando
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preservassem certa distância das frentes em que é da facção”, ressaltou um interlocutor. Essa
que os acertos de conta são feitos. Observei fala ressalta algo perceptível e que diferencia as
que todos os coletivos fazem uso das mortes de pessoas que compõem esses coletivos. Alguns jo-
mulheres em seus acertos de contas, promo- vens que recebem as armas ocupam posição di-
vendo cenas de tortura e as fazendo circular ferente dos que a entregam para que eles façam
de maneira abrangente. São ações feitas para seus “corres” e suas “paradas”.
demonstrar a força pela crueldade e pela capa- Por mais que um grupo como a GDE se
cidade de fazer todas as pessoas consideradas qualifique como “horizontal”, existem dinâ-
inimigas sentirem a dimensão das maldades micas de posições e envolvimentos que preci-
que o outro é capaz de mobilizar nessa disputa sam ser consideradas nas maneiras de se fazer
por mercados ilegais, domínio de territórios, o crime nas facções. A pessoa que entrega e a
hegemonia, reconhecimento e honra. pessoa que recebe podem estar na mesma fac-
Em alguma medida, os interlocutores fa- ção, mas é provável que apenas uma das duas
lam de uma disputa “para saber quem é mais saiba como a arma chega até a mão da outra,
a qual, possivelmente, não sabe muitas outras
19
“Rasgar a camisa” é a expressão utilizada para se referir
ao fato de estar rompendo relações com aquela facção. coisas que acontecem além do seu domínio.

180
Luiz Fábio S. Paiva

Essa complexidade de domínio de informações que representam algo maior e fazem parte das
e possibilidades de acesso a bens, no interior comunidades. Mesmo sendo coletivos origi-
da facção, é algo importante a ser considerado nalmente exógenos, eles conseguiram agregar,
pelos múltiplos movimentos que a compõem. possibilitando a autonomia e a independência
Em linhas gerais, as facções são compostas por de seus segmentos locais.
essa multiplicidade de relações que não se es- Durante quase um ano, esses grupos
gotam em um esquema e parecem transbordar, se dividiram e repartiram os ganhos, criando
ensejando múltiplas adesões e afetos constitu- a ideia de que poderiam conviver de maneira
tivos do que é ser da facção. harmoniosa, gerando riqueza para todos os en-
volvidos. Mas a ideia não perdurou e, quando
o conflito foi ativado, as consequências para
CONSIDERAÇÕES FINAIS: as as comunidades foram sentidas pela geração
afinidades eletivas entre antes e de mais violência. Enquanto as gangues e qua-
depois drilhas de traficantes se moviam em territórios
estáticos, e enquanto cada grupo dominava
Em linhas gerais, é possível pensar, seu pedaço, matando sem mexer no pedaço do
como sugere Weber (2004), que existem afi- outro, as facções invadem, matam, ocupam e
nidades eletivas entre fenômenos sociais expulsam moradores de suas casas. Os líderes
que se encontram sem que um determine o de gangues e os traficantes locais sempre tive-
outro, mas pelos quais é possível encontrar ram um peso dentro da comunidade, mas sua
correspondências de sentido historicamente capacidade de agência era limitada, e as nego-
relevantes. As maneiras de fazer o crime das ciações com eles eram consideradas como algo
gangues e quadrilhas de traficantes, entre ou- “tranquilo”. Em muitas comunidades, prevale-
tros fenômenos,20 contribuíram para saberes e ciam apenas os acordos tácitos de não delação
práticas agenciadas nas dinâmicas criadas pela dos esquemas ilegais. Desde as facções, esse
constituição de facções criminais em prisões equilíbrio foi quebrado, e os moradores rela-
e periferias do Ceará. Na minha avaliação, na tam que as pessoas que fazem o crime querem
cidade de Fortaleza, as facções criminosas en- “botar moral” e determinar o que pode e não
contraram as condições objetivas para produ- pode ser feito na comunidade.
zir adesão às suas práticas, passando por um É importante destacar o fato de que a co-

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processo de aprendizagem e adaptação às difi- laboração e a omissão dos Governos Federal e
culdades impostas pelos grupos locais. Cons- Estadual permitiram que jovens fossem inte-
ciente da maneira de fazer o crime no Estado, grados em uma sociedade de classes, injusta
o PCC buscou não ser uma força hegemônica, e desigual, por meio da violência e da morte
mas se articular estrategicamente ao coletivo sistemática de seus parentes e amigos. Práti-
local que, mesmo em seu discurso regional, cas de racismo e discriminação de operadores
permitiu a acomodação do grupo de São Paulo de segurança pública e justiça mantiveram a
à realidade cearense. O CV conseguiu adap- reprodução de esquemas de dominação e su-
tar seu vasto capital simbólico aos arranjos jeição dos mais pobres, sendo o extermínio sis-
locais, criando, junto com a FDN,21 a ideia de têmico uma prática recorrente contra os clas-
sificados como indesejáveis. Nos bairros onde
20
Não discuto aqui o papel relevante de quadrilhas de assal-
tantes, entre elas, as de assaltantes de instituições financeiras. pesquisei, é possível perceber que crianças e
Aquino (2010) discutiu as relações e conexões feitas por esses adolescentes cresceram vendo corpos violados
coletivos circunstanciais que não deixam de compor redes im-
portantes na disseminação de informações e práticas. e assassinados em sua vizinhança, como um
21
É importante destacar que, desde 2018, a presença da acontecimento absolutamente comum. Ne-
FDN se mostrou mais frágil no Ceará, prevalecendo o CV
como uma das principais forças que disputam com a GDE o controle do crime no Estado.

181
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

nhum educador, assistente social, psicólogo BARBOSA, A. R. O baile e a prisão: onde se juntam as
pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica
ou representante de instituições públicas che- do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Especiaria: Cadernos
de ciências humanas, Ilhéus, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006.
gou até essas pessoas para lhes explicar que
BARREIRA, C. Crimes por encomenda: violência e
assassinatos são graves violações aos direitos pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume
humanos em uma sociedade democrática de Dumará, 1998. 178 p.
BARREIRA, I. A. F. Usos da cidade: conflitos simbólicos
direito. É possível afirmar que essa é uma fic- em torno da memória e imagem de um bairro. Análise
ção da qual elas nunca ouviram falar. social, Lisboa, p. 163-180, 2007.

Dessa maneira, acredito que seja possível BARROS, J. P. P. et al. “Pacificação” nas periferias: discursos sobre
as violências e o cotidiano de juventudes em Fortaleza. Revista
falar de uma socialização pela violência que, de Psicologia da UFC, Fortaleza, v. 9, n. 1, 2018.
desde os tempos das gangues, perdura como BECKER, H. Outsiders: estudos de Sociologia do desvio.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 232p.
meio de fazer o crime e, consequentemente, fa-
BIONDI, K. Relações políticas e termos criminosos: o
zer a própria vida nas periferias de Fortaleza. PCC e uma teoria do irmão-rede. Teoria & sociedade, Belo
Horizonte, v. 15, n. 2, p. 206-235, 2007.
Obviamente, existem muitas outras coisas que
______. Etnografia no movimento: território, hierarquia
compõem as periferias da cidade. Isso não im- e lei no PCC. 2014. 336 f. Tese (Doutorado em Ciências
pede de observar, entretanto, que o homicídio Humanas) – Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos, 2014.
não é um elemento estranho a pessoas que so- ______. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia
frem e praticam crimes cruéis contra a própria e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018. 408 p.
população com a qual compartilham as dores BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001. 324 p.
e os sofrimentos sociais. Esses sofrimentos
CANDOTTI, F. M.; MELO DA CUNHA, F.; SIQUEIRA, I. L.
sociais são experiências coletivas e geradoras “A grande narrativa do Norte: considerações na fronteira
entre crime e Estado”. In: MALLART, F.; GODOI, R. BR
de reação. Por isso, acredito que existe algo de 111: a rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta: Le
Monde Diplomatique, 2017.
insurgente no fenômeno das facções, mas tam-
CAVALCANTE, R. M. B. Vidas breves: investigação acerca
bém profundas conexões com as modalidades dos assassinatos de adolescentes em Fortaleza. 2011. 161
de dominação que impõem o governo dos mais f. Dissertação (Mestrado acadêmico em Políticas Públicas)
- Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2011.
pobres para geração de variadas maneiras de CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer.
cooperação, atualizando discriminações, desi- Petrópolis: Vozes, 1994. v. 1, 352p.
gualdades e injustiças em larga escala. CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo:
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Recebido para publicação em 28 de abril de 2018 p. 213-233, 2011a.
Aceito em 08 de abril de 2019
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“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...

“THERE ISN’T GANG HERE, THERE’S ‘FACÇÃO’”: “ICI, IL N’Y A PAS DE GANG, IL Y A UNE
the social transformations of crime in Fortaleza, FACTIONS”: les transformations sociales du
Brasil crime à Fortaleza, Brasil

Luiz Fábio S. Paiva Luiz Fábio S. Paiva

This paper discusses the social transformation L’article analyse le processus de transformation sociale
process of crime in Fortaleza’s peripheries through du crime dans les quartiers populaires de la ville de
the constitution of criminal collectives known Fortaleza au travers de la constitution de groupes
as “facções”. It evidences how gangs and drug criminels connus sous la dénomination de “factions”.
trafficking groups offered objective conditions Je mets en évidence comment les gangs et les bandes
to the process of joining these collectives which, organisés de trafiquants ont fourni les conditions
among other circumstances, affected the forms objectives au processus d’adhésion à ces collectifs qui,
of crime in the City. The research was developed parmi d’autres choses, ont influé sur les manières de faire
in a dynamic of qualitative and multisituated du crime dans la ville. La recherche a été menée dans
investigation, articulating press material, interviews une dynamique d’enquête qualitative et multisituée,
and conversations in the light of a comprehensive en mettant en relation des articles journalistiques, des
perspective of the senses and the relations within entretiens et des conversations, en suivant la voie d’une
the studied phenomenon. It considers the multiple perspective compréhensive des sens et des relations
social effects of violence in circumstances created pertinentes vis-à-vis du phénomène étudié. Je prends
by criminal collectives that are facing each other en considération de multiples effets sociaux de la
and seek to exert power of government over violence dans des circonstances créées par des groupes
populations with which they share certain social criminels qui s’affrontent et cherchent à exercer
sufferings. The paper also demonstrates a change un pouvoir de gouvernement des populations avec
in the scale of violence and interference of people lesquelles ils partagent certaines souffrances sociales.
who commit crimes with torture, expulsion and Je démontre le changement dans l’échelle de la violence
slaughter involving men and women. It concludes et de perturbations des personnes qui participent au
that the “facções” created dynamics of government crime, avec des pratiques de torture, d’expulsion de
that result in forms of domination and subjection of domicile et de massacres impliquant des hommes et
the poorpopulation in Fortaleza, Brazil. des femmes. J’en conclus que les «factions» ont créé des
dynamiques de gouvernement engendrant des formes
de domination et d’assujettissement des pauvres à
Fortaleza, Brasil.

Keywords: Violence. Crime. Criminal collectives. Mots-clés: Violence. Crime. Groupes criminels.
Facções. Periphery. Factions. Quartiers populaires.
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019

Luiz Fábio S. Paiva - Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará (PPGS-UFC). Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do PPGS-UF.
Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV). Publicação recente: As dinâmicas do mercado
ilegal de cocaína na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 34, n. 99, São Paulo, out. 25, 2018.

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