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AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO - As Transformações Sociais Do Crime em Fortaleza, Brasil
AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO - As Transformações Sociais Do Crime em Fortaleza, Brasil
Paiva
O artigo analisa o processo de transformação social do crime nas periferias da cidade de Fortaleza, estado do
Ceará, Brasil, mediante a constituição de coletivos criminais conhecidos como “facções”. Evidencia como as
gangues e quadrilhas de traficantes ofereceram as condições objetivas para o processo de adesão a esses co-
letivos que, entre outras coisas, afetaram as maneiras de fazer o crime na cidade. A pesquisa se desenvolveu
em uma dinâmica de investigação qualitativa e multissituada, articulando matérias da imprensa, entrevistas
e conversações, à luz de uma perspectiva compreensiva dos sentidos e relações pertinentes ao fenômeno
estudado. A análise considera múltiplos efeitos sociais da violência em circunstâncias criadas por coletivos
criminais que se enfrentam e buscam exercer poder de governo sobre populações com as quais compartilham
determinados sofrimentos sociais, e demonstra mudanças na escala de violência e interferência das pessoas
que fazem o crime, com práticas de tortura, expulsão de residências e chacinas envolvendo homens e mulhe-
res. Conclui que as “facções” criaram dinâmicas de governo locais que resultam em formas de dominação e
sujeição dos pobres em Fortaleza.
Palavras-chave: Violência. Crime. Coletivos criminais. Facções. Periferia.
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.26375 165
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...
Bourdieu, 2001). Para fins deste trabalho, não dizer, questionando-as em determinados mo-
me interessa insistir nos aspectos normativos mentos, ouvindo com atenção e procurando
de definição do crime (Cf. Durkheim, 2013), aprender sobre como era viver em bairros4 com
pois considero uma perspectiva teórica que pri- problemas sociais muito específicos.
vilegia as invenções e agenciamentos que po- Outra experiência importante foi olhar
dem existir nas maneiras de agir, respeitando para o presente com esteio em materiais de
condições sociais e históricas possíveis.2 Dia- pesquisa do passado. Minhas primeiras pes-
logo, então, com Certeau (1994), para pensar o quisas se concentraram, basicamente, na re-
crime como a tática de praticantes que desen- gião do Grande Bom Jardim, entre os anos de
volvem maneiras de fazer fragmentadas, expe- 2005 a 2008, em um fluxo de idas e vindas que
rimentações complexas e agenciamentos pos- constituiu uma investigação qualitativa sobre
síveis em situações que envolvem invenções, como moradores daquela região eram afetados
imprevisibilidades e transformações sociais. por situações de violência (Paiva, L., 2014). Re-
A pesquisa que subsidiou este artigo se tornei ao bairro em fluxo menos contínuo, em
desenvolveu como uma experiência de inves- 2015, agregando atividades de ensino, extensão
tigação multissituada,3 com diversos empreen- universitária e militância na área de direitos
dimentos que se articularam para compor essa humanos.5 Novas demandas e iniciativas leva-
reflexão a respeito das transformações sociais ram, também, a me fazer atinente e conversar
do crime em Fortaleza. Realizei o resgaste his- sobre violência e crime com moradores dos
toriográfico de notícias sobre o crime na cida- bairros Conjunto Ceará, Pirambu, Jangurus-
de, buscando evidências sobre o fenômeno em su e Conjunto Palmeiras. Com essa conduta,
matérias jornalísticas desde o final dos anos realizei mais conversações do que entrevistas
de 1990 até o início de 2018. Ao longo desse estruturadas ou semiestruturadas, com pesso-
período, participei de ações vinculadas a mo- as envoltas em diversas dinâmicas criminais,
vimentos sociais e busquei ouvir moradores vítimas de violência, militantes da área de di-
da periferia, tencionando saber como viviam reitos humanos e residentes dispostos a falar
pessoas residentes em territórios afetados pe- de situações de crime nos seus bairros. Em 56
las ações de coletivos reconhecidos como “fac- oportunidades, utilizei o gravador, em entre-
ções” e olhar atentamente o que tinham a dizer vistas agendadas com moradores dos bairros
sobre o mundo em que vivem. É possível ga- referidos. Por fim, estive em momentos de reu-
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rantir que, em determinadas situações, procu- niões, cursos e seminários demandados pelas
rei seguir as ideias seminais de Whyte (1993), comunidades, os quais se tornaram ocasiões
em seus estudos urbanos, insistindo em ouvir de escuta em que aprendi sobre os problemas
e ficar atento às relações ao redor, em vez de vividos pelos habitantes dessas comunidades.6
exprimir questionamentos. Ao me reportar a 4
Considero fundamental a ideia discutida por Irlys Bar-
um tema delicado, não procurei escamotear as reira (2007) de que os discursos sobre a cidade não apenas
demonstram as percepções que compõem o imaginário a
vidas de pessoas para achar algo que ninguém respeito da cidade, mas também “fazem a cidade” e são
inseparáveis de processos políticos.
soubesse. Pelo contrário, tentei conformar mi-
nha curiosidade ao que essas pessoas queriam
5
Destacam-se o desenvolvimento do Projeto de Extensão
Universitária Traficando Saberes, em parceria com o Cen-
tro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), o Centro
2
Outras problematizações sociológicas são possíveis de se de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA),
observar nesse campo, de modo que, para uma revisão da e a participação no Fórum Popular de Segurança Pública
literatura internacional e nacional, recomendo as leituras do Estado do Ceará. Essas experiências possibilitaram visu-
da obra de Downes, Rock e McLaughin (2011) e a coletâ- alizar muitas das mudanças que aconteciam em Fortaleza,
nea organizada por Lima, Ratton e Azevedo (2014). pois a iniciativa congregou inúmeros grupos e movimentos
sociais afetados por novas dinâmicas do crime.
3
Não me reporto, especificamente, a uma etnografia multis-
situada, conforme as reflexões seminais de Marcus (1995), 6
Em boa medida, embora não seja a intenção que funda-
mas a um esforço em levar em consideração a ideia de um menta esta abordagem, me aproximo das reflexões meto-
estudo de fenômenos dinâmicos e observáveis em variadas dológicas de Garfinkel (2006). Para ele, a prática envolve
escalas que constituem a experiência social investigada. múltiplas atividades processuais e contingentes que po-
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Continente. Enquanto as máfias tradicionais dos. Lessing (2008) observou que os mercados
movimentavam negócios diversificados, os de drogas situados na cidade do Rio de Janeiro
cartéis colombianos constituíram sua notorie- ofereceram condições de estabilidade para a
dade internacional por meio de seu papel nas ação de organizações como o CV e outras que
dinâmicas do mercado ilegal de cocaína, com surgiram no curso do tempo, como o Terceiro
suas dimensões transnacionais que, entre ou- Comando da Capital (TCC) e os Amigos dos
tras coisas, provocaram o empenho do governo Amigos (ADA). Isso demonstra como, apesar
federal dos Estados Unidos para seu enfrenta- dos conflitos internos, das ações do Estado e
mento. Os primeiros cartéis a despertar a aten- das milícias, elas continuam atuando com for-
ção mundial por sua participação nos merca- ça nos territórios, pelo menos, desde meados
dos ilegais de cocaína estadunidenses foram o dos anos de 1970. Como demonstrou Barbosa
Cartel de Medellín e o Cartel de Cali (Cf. Ba- (2006), isso não seria possível se as cadeias
gley, 2011). A liderança do primeiro é atribuí- não fossem espaços privilegiados, nos quais
da a Pablo Escobar, que se tornou figura emble- os envolvidos circulam e interagem, criando
mática, reconhecida pela audácia nos investi- reciprocidades, compromissos e composições
mentos feitos para ampliar o mercado ilegal de que suportam e dão corpo aos “comandos”. Di-
cocaína e a maneira como enfrentou o Estado ferentemente da realidade de São Paulo, como
para alcance de seus objetivos (Cf. Ramírez; evidenciaram Hirata e Grillo (2017), o CV en-
Costa, 2012). A estruturação dos mercados e frenta, há mais de três décadas, o conflito com
o enfrentamento dos cartéis proporcionaram outras facções, tornando necessária a defesa
múltiplas transformações em uma realidade armada das circunscrições de atuação do tráfi-
política complexa, com a geração de encontros co, o que proporcionou o surgimento das dinâ-
entre processos sociais que envolviam as in- micas internas de vigilância e punição.
surgências políticas de grupos paramilitares e Em São Paulo, as dinâmicas mais conhe-
os rendimentos econômicos de um produto de cidas a respeito das maneiras de fazer o crime
alto valor comercial (Cf. Zuluaga Nieto, 2014). em coletivo passam pela história do Primeiro
Em linhas gerais, as interpretações ex- Comando da Capital (PCC). Consoante repor-
pressas sobre coletivos que fazem o crime em tam Alvarez, Salla e Dias (2013), o PCC surgiu
outros países ajudam a compreender a parti- no interior do Anexo da Casa de Custódia de
cularidade da experiência brasileira por meio Taubaté, sem a intenção de ser um coletivo da
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das facções criminosas que representam uma estatura que tem hoje, mas buscando unir os
prática social plural em diversos contextos so- presos em luta contra as opressões do Estado
cioculturais. Um dos grupos mais conhecidos dentro do sistema prisional. Dias (2011a) ob-
da história brasileira é o Comando Vermelho servou ainda que o PCC adquiriu hegemonia
Rogério Lemgruber (CVRL ou apenas CV). Se- no interior do sistema prisional paulista, não
gundo Misse (2007), ele envolve um projeto sendo possível compreender suas dinâmicas
político constituído a partir dos presídios, nos sem entender as negociações, cooperações e
anos de 1970, até tentativas de criar acordos correlações de força entre os que fazem o cri-
(tácitos e precários) entre vários “donos” de me e os responsáveis pelas políticas de contro-
bocas de fumo em áreas de varejo do merca- le social dos ilícitos no âmbito do Estado. Si-
do ilegal de drogas. Ao emergir com os ideais nhoretto, Silvestre e Melo (2013) explicam que
de justiça, paz e liberdade dentro das prisões, o PCC tem um efeito social importante na ad-
o Comando criou, ainda segundo Misse, uma ministração dos presídios em uma convergên-
articulação entre os sistemas prisional e as cia complexa entre as dinâmicas disciplinares
comunidades, buscando o controle territorial implantadas pelo Estado e a facção paulista.
como meio de regular a ação de vários envolvi- Ademais, o PCC conseguiu um feito im-
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portante ao levar a luta contra as opressões do atividades das duas facções classificadas como
sistema prisional para as ruas. Godoi (2010) as maiores do País. Zilli (2015), em suas pes-
ressalta a importância de a organização ter quisas em Belo Horizonte, observou que os
essa disposição de levar as lutas internas do grupos de jovens delinquentes não atuavam
sistema para o campo aberto, demonstrando sob a bandeira de coletivos caraterizados pela
a força das conexões entre presos e egressos ideia de facção, e era possível encontrar, nas
do sistema atuando fora da prisão. Essas co- periferias da cidade, territórios divididos en-
nexões não seriam possíveis sem um trabalho tre vários pequenos grupos, evidenciado uma
gerador de conexões importantes e pactuações dinâmica fragmentada e menos estruturada do
que dobram as fronteiras entre o legal e o ilegal que era observado, na mesma época, nos Es-
por meio de outras lógicas acionadas pelo co- tados do Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio
letivo criminal (Cf. Telles; Hirata, 2010). Como Grande do Sul, Azevedo e Cipriani (2016) per-
demonstrou Marques (2010, p. 313), as ações ceberam que as facções locais, como a Falange
do coletivo paulista evidenciam um “proce- Gaúcha, atuam com menor visibilidade, em es-
der”, ou seja, “[...] o singular regime de relação quemas menos centralizados e abrangentes do
política entre os presos e ex-presidiários que que os desenvolvidos pelo PCC, em São Paulo.
vivenciaram, ou vivenciam, suas experiências Na Bahia, Lourenço e Almeida (2013) notaram
prisionais em unidades carcerárias sob o domí- como o Comando da Paz e o Grupo do Perna
nio do PCC”. O proceder entre os integrantes iniciaram lutas semelhantes às do PCC no in-
orienta sua ação nas diversas áreas de atuação terior do sistema baiano, criando sinergias, po-
dentro e fora do presídio, uma lógica que não sições hierárquicas e estabelecendo conexões
deixou de estabelecer modalidades de justiça entre a prisão e a rua, com alianças importan-
“entendidas por todos” que, como explica Fel- tes com grupos de outros Estados para a práti-
tran (2010), criaram meios de legitimação das ca de crimes. Além de acordos, as resistências
maneiras de atuar do PCC nas periferias urba- ao CV e ao PCC demarcam a existência de ou-
nas de São Paulo. Esse panorama revela com- tros coletivos de fora do eixo Rio–São Paulo.
posições complexas que desafiam maneiras de Melo e Rodrigues (2017) discutem como, no
compreender o fenômeno das facções dentro surgimento do Sindicato do Crime (SDC), no
e fora das prisões. Ao considerar tal circuns- Rio Grande do Norte, além das lutas contra as
tância, Biondi (2014) explora a ideia de “movi- violações aos direitos dos presos, entre outros
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me no Amazonas e em seus múltiplos enfren- rou não apenas consolidar o domínio dentro do
tamentos e esquemas. Existem muitas outras sistema prisional, mas também nas ruas, com
configurações em praticamente todos os esta- medidas de proibição de assaltos, punindo com
dos brasileiros, mas, para fins desta pesquisa, tiros nas mãos e nas pernas os que ousavam de-
vou avançar para a discussão das especificida- sobedecer a suas diretrizes. Em suas manifes-
des do Ceará, especialmente de Fortaleza. tações públicas, integrantes da GDE destacam,
Esse estado do Nordeste é território de como explicou um interlocutor, que o “[...] tem-
atuação das três facções classificadas como po das gangues em Fortaleza acabou, agora é
das mais importantes do País: o PCC, o CV e facção e todos têm que respeitar”. A consolida-
a FDN. Apesar de exógenos, são coletivos que ção da GDE é fundamental para compreensão
congregam presidiários e pessoas que fazem o de como as maneiras de fazer o crime em Forta-
crime no Ceará, com alianças e integrações di- leza foram objeto de transformações, pois, em
ferenciadas nos esquemas de cada um desses torno dela, foram instituídas alianças e resis-
grupos. Além desses, e também em razão do tências em um intrincado jogo de rivalidades.
trabalho deles, um componente novo surgiu Feitas essas observações conceituais,
tensionando a relação com as “facções de fora” reconheço os limites da categoria nativa “fac-
e reivindicando a condição de Guardiões do ção”, mas parto de seu reconhecimento social
Estado (GDE). A GDE, conhecida também pe- para lidar com ela, no curso do texto, traba-
los números 7.4.5, consiste numa reunião de lhando a ideia de que a facção é um coletivo
pessoas que fazem o crime, presos e egressos constituído por associações, relacionamentos,
do sistema, dispostos a resistir ao comando de aproximações, conflitos e distâncias necessá-
grupos de fora do Estado, estabelecendo resis- rias entre pessoas comprometidas em fazer o
tências e alianças para lutar pela hegemonia crime, desenvolvendo relações afetivas pro-
do crime no Ceará. Gestada durante alguns fundas, laços sociais elaborados como os de
anos, a fundação da GDE é atribuída ao iní- família, e um sentimento de pertença desen-
cio de 2016. O coletivo conseguiu rápida ex- volvido pela crença em determinadas orien-
pansão no sistema prisional e nas periferias tações políticas e éticas que a sustentam. São
de todo o Ceará, despertando atenção desde o coletivos móveis de pessoas que fazem o crime
primeiro momento pela juventude de seus in- como um meio de integrar a sociedade, pois
tegrantes. Composta por um conselho central, não visam à sua destruição, e sim à participa-
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a GDE agenciou grupos locais que faziam o cri- ção em um sistema de bens materiais e sim-
me em determinados bairros de Fortaleza, in- bólicos agenciados de múltiplas maneiras. Em
tegrando-os como “tropas” e garantindo certa alguma medida, as facções são coletivos com-
autonomia para ações que não poderiam dei- postos por convergências de intencionalidades
xar de respeitar o conselho estabelecido entre de alcances variados, com pessoas ocupando
seus integrantes. posições privilegiadas nos esquemas do coleti-
No primeiro momento, a GDE se cons- vo e outras atuando em suas margens.
tituiu como grupo autônomo e independente,
garantindo algumas alianças estratégicas para
o acesso a drogas e armas. Apesar de replicar SOBRE AS CONDIÇÕES SOCIAIS
práticas das outras facções, a GDE buscou ade- DE REPRODUÇÃO DO CRIME EM
são à ideia de não ser um grupo hierarquizado FORTALEZA
como PCC, garantindo a seus integrantes outro
tipo de participação nas decisões coletivas e Para compreender como o fenômeno das
não executando cobranças de mensalidade. Em facções tornou-se possível, na relação entre
suas primeiras ações, a facção cearense procu- prisões e as periferias de Fortaleza, é preciso
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ram quadrilhas e morreram não pela mão de podem ser “certas” ou “erradas”, dependendo
um grupo que queria tomar “a boca”, mas de dos valores mobilizados para explicar “o que
pessoas que os queriam matar porque eram os tem”, “o que deve” e “o que efetivamente foi
traficantes da comunidade X. As mortes são feito”. Uma “parada errada” remete a algo que
feitas por meio de crimes de pistolagem, em não deveria ser feito e quebra acordos que es-
uma motocicleta com duas pessoas: um mo- tabelecem vínculos entre os que fazem os “cor-
torista e o outro armado na garupa. Chegam res” e movimentam o crime. Em determinados
rapidamente e realizam disparos contra a víti- momentos, as figuras de mando são fundamen-
ma. Há situações em que duas ou três pessoas tais para a avaliação moral desses processos.
chegam a pé, armadas, e atiram contra a víti- Os líderes de gangues e, logo em seguida, os
ma. Em poucas situações, existem narrativas traficantes de drogas, eram as figuras que car-
sobre a morte de duas ou três pessoas em ação regavam as formas de “consideração”, ou seja,
única. Em seguida, os envolvidos do território as modalidades de respeito a uma figura reco-
do morto preparam e planejam a vingança, que nhecida como autoridade. Como na explicação
ocorre seguindo o mesmo ritual, buscando evi- de Leonardo Sá, a falta de “consideração” é
tar o confronto e pegando a vítima de surpresa. “[...] o modo desrespeitoso com que se reali-
Em geral, em minhas pesquisas no bair- za a relação social com a alteridade inimiga,
ro de Bom Jardim, em meados dos anos de provocando ondas de homicídios rituais e de
2000, as gangues e os traficantes locais exer- vinganças ‘por nada’” (Sá, 2011, p. 349). Inter-
ciam pouca influência na vida comunitária, romper a criação de um “bichão”, controlar as
exigindo apenas o silêncio das pessoas para dinâmicas dos “corres” e estabelecer relações
que suas atividades não fossem prejudicadas. “consideração” constituem elementos impor-
Em alguns casos, observei que determinados tantes na hora de olhar as maneiras de fazer o
crimes de linchamento e execução de assaltan- crime em Fortaleza.
tes que cometiam crimes dentro do território Outro dado importante remete ao fato
eram atribuídos aos traficantes locais, mas de que, ao longo dos 13 anos em que pesqui-
eram situações circunstanciais, para impedir so os efeitos sociais da violência em Fortaleza,
que um “bichão” se criasse. Ao estudar a ca- pessoas envolvidas com o crime se mataram
tegoria “bichão da favela”, Leonardo Sá (2011) na periferia sem enfrentar intervenções signifi-
explica que as dinâmicas dos envolvimentos cativas do Estado. Apesar do comparecimento
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abuso de poder e realizando prisões de “peixes Nas pesquisas que realizei em Fortaleza,
pequenos”, pessoas sem importância nas dinâ- as informações obtidas revelam que, até 2013,
micas criminais.11 “Os grandes, aqueles que colo- pelo menos, prevalecia a pulverização dos es-
cam as armas nas mãos dos adolescentes, é tudo quemas de gangues, traficantes, cabras-machos
andando por aqui, tudo solto”, afirmou uma e bichões, que resolviam seus conflitos, fazen-
moradora da Granja Lisboa, sintetizando o sen- do seus corres e realizando acertos de contas
timento das pessoas que vivem em áreas pobres sem a pretensão de um domínio abrangente
afetadas por situações de violência. Em casos de das periferias. A realidade começou a mudar
homicídio, é comum que policiais, nas cenas dos em 2014, quando traficantes locais começaram
crimes, se apressem a afirmar para a imprensa a “trocar ideia”, conversar sobre uma possível
que o caso em questão é “[...] um acerto de con- união, com reuniões dentro e fora dos presídios
tas entre bandidos”. Essa ideia é tão recorrente para discutir arranjos que envolviam as facções
que, nos eventos de chacina, mesmo quando eles PCC, CV e FDN. Isso possibilitou que presidiá-
geram comoção e repercussão social, a primei- rios se organizassem e agenciassem grupos lo-
ra manifestação do poder público é afirmar que cais para os coletivos criminais mais robustos,
está sendo feito um levantamento dos antece- reterritorializando e redimensionando a escala
dentes criminais da vítima (Cf. Paiva, T., 2016). de participação nas dinâmicas do crime feitas
Além da omissão sistêmica, existem ru- na cidade. O surgimento da GDE possibilitou
mores da colaboração de policiais que recebem também um discurso identitário com pessoas
“um trocado” de traficantes para permanece- vinculadas ao crime no Ceará e se impôs diante
rem em silêncio, ou até participarem da eli- de grupos considerados estrangeiros.
minação de inimigos. Em determinados casos,
os boatos reproduzidos por moradores são de
que meninos são presos por policiais em uma MUDANÇAS NAS MANEIRAS DE
comunidade e são soltos na comunidade rival, FAZER E VIVER DO CRIME
facilitando a morte deles por seus inimigos.
Igualmente, pairam acusações de participação No início de 2016, quando os discursos
de policiais em esquemas de tráfico de armas da comunidade encontraram eco na imprensa
e drogas. Dessa maneira, a colaboração ou a cearense, ao evidenciarem a existência de fac-
omissão de determinados policiais atuam na ções, a primeira narrativa em torno delas foi a
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e se não haviam aprendido que estava proibido pela redução do número de homicídios, reve-
roubar na “quebrada”. Em silêncio, eles escu- lada com perplexidade por uma agente de se-
tam, balançam a cabeça, pedem desculpa, bal- gurança pública com quem conversei: “[...] tem
buciam alguma coisa e clamam por sua vida, final de semana agora em Fortaleza que não
prometendo que não cometerão o mesmo erro. morre ninguém. Tu acredita?”
A certa altura, a pessoa que promove as “lições A princípio, assim como aconteceu em
de moral” pede que eles mostrem as mãos ou outros Estados, o movimento do Governo Esta-
os pés e dispara um tiro à queima roupa. Em dual foi de negar a existência das facções. Co-
seguida, manda a vítima sair dali. Em outros mandantes da Polícia Militar (PM) declararam
casos, a pessoa é questionada se ainda não que a redução dos homicídios, em 2016,13 foi
aprendeu a lição, ouvindo que já não é a pri- resultado do trabalho das forças de segurança,
meira vez. Em determinados vídeos, a pessoa negando, inclusive, a existência do fenômeno
ou o grupo que executa a admoestação puxa da “pacificação” entre as pessoas que faziam o
um facão e inicia o esquartejamento das mãos crime no Estado do Ceará.14 Enquanto os nú-
ou dos braços. Há casos em que são cortadas meros caíam, o Governo do Estado do Ceará
as cabeças, com o uso de facões não amolados, atuou sem demonstrar qualquer ação específi-
com as vítimas esboçando profundo desespero ca para uma situação que era visível nos muros
por estarem sofrendo uma mutilação que cul- da Cidade, com pichações indicando locais e
minará em sua morte, não antes de experimen- orientações dos coletivos criminais em ação. A
tar dores lancinantes. Em outros casos, ainda situação se tornou mais difícil para o Governo
é possível ver execuções à bala. As cenas, em a partir de março de 2016, quando uma série
geral, são terríveis, desesperadoras e compar- de atentados ordenada de dentro das unida-
tilhadas pela rede mundial de computadores e des prisionais foi executada. Ao todo, foram
sistemas de mensagens via aparelhos celulares. 13 atentados que atingiram bens e prédios
A proibição de assaltos foi a primeira públicos. Segundo matéria de Thiago Paiva
marca significativa do trabalho das facções nas (2016), “[...] cinco delegacias e um prédio da
periferias. Produziram como efeito a ideia de Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus) foram
que as comunidades estavam seguras e livres de alvejados com disparos de armas de fogo e seis
assaltos. Proliferaram pichações com a sentença ônibus e uma Van foram incendiados”. O de-
“se roubar na favela morre” e se criou a ideia de legado geral da Polícia Civil se manifestou, na
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que as facções protegiam a comunidade, evitan- matéria, admitindo que a ordem para os ata-
do os roubos aos moradores. Ao mesmo tempo, ques foi dada por “bandido dos presídios”, mas
os limites territoriais herdados dos tempos das até aquele momento insistia na ideia de que
gangues foram desfeitos. As facções tornaram era “precipitado” atribuir autoria dos ataques a
possível que moradores de uma comunidade, um grupo específico.
que era inimiga de outra, pudessem circular e No dia 04 de abril, uma nova ação des-
conviver uns com os outros. As “guerras” aca- pertou a atenção. Um carro-bomba foi encon-
baram, e a vida se tornou mais tranquila. Então, trado próximo à Assembleia Legislativa do
a “pacificação” foi celebrada em bailes de fave- 13
Com base em dados da SSPDS (2016), a redução de ho-
la, uma passeata na cidade de Sobral12 e mui- micídios, em 2016, comparada com os números do ano
anterior, foi de aproximadamente 15,2%. Não se observava
tos fogos de artifício em diversas comunidades. redução tão significativa nos números de homicídios des-
de o início dos anos 2000.
Os efeitos da “pacificação” foram evidenciados
14
Na edição do dia 25 de setembro de 2016, o Programa
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No dia 28 de junho de 2016, na cidade de Sobral, ocor- Fantástico deu visibilidade à “pacificação” feita por fac-
reu uma passeata com cerca de 200 pessoas em “come- ções, mostrando as torturas e a passeata realizada em So-
moração à pacificação”. A manifestação teve repercussão bral. Na matéria, o Tenente Coronel Assis Azevedo afirmou
em periódicos e programas de televisão locais e nacionais. que a passeata foi uma maneira de afrontar o Estado e que
Segundo informações da imprensa local, 87 pessoas foram a redução dos índices de criminalidade resultou das ações
presas na ocasião. da PM e não da ação de criminosos (Passeata…, 2016).
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coletivo criminal cearense, não existe uma es- cidiram usar duas palavras emblemáticas na no-
trutura hierárquica delimitada, com posições meação do grupo “guardiões” e “Estado”. Onde a
sedimentadas e funções de mando objetivadas facção buscou adesão, conforme me explicaram
em um esquema de cima para baixo. “Aqui é jovens da periferia, seus integrantes trabalharam
tudo patrão”, disse um jovem envolvido com com essa ideia de que o “crime do Ceará tinha
o qual conversei. Apesar dessa ideia, aparen- que se unir”, alegando que a “a bandidagem do
temente exagerada, de uma organização total- Ceará não podia pagar esse negócio de mensa-
mente horizontal, o grupo tem um conselho lidade coisa nenhuma”. A ideia era boa e teve
que funciona dentro das unidades prisionais efeitos importantes em um processo de rápida
expansão local. A aliança, para o PCC, se tornou
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Matéria de Lyvia Rocha (2016) retrata esse dado, afir-
mando que o local não registrava homicídio havia um estratégica, e sua acomodação a ela remete a ou-
ano. A matéria ressalta ainda que o assassinato teria sido
ordenado de um dos presídios do Estado dominado por tras experiências vividas pela organização fora do
facções. Estado de São Paulo, nas quais o discurso regio-
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Biondi (2007) ressalta que, apesar de receberem orien- nal foi usado por organizações locais para firmar
tação do “Comando”, os menores não são batizados, ou
seja, não participam do momento em que os “primos” se pactos e resistências a uma facção “de fora”.
tornam “irmãos” e, portanto, gozam de outra modalidade
de reconhecimento na “família”. As mesmas ideias que circulam e com-
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nas falas de moradores da periferia de Fortaleza, çadas de expulsão com pichações em suas ca-
o Conjunto Palmeiras é retratado como o local sas, com as seguintes ameaças: “sair fora todo
de surgimento da GDE. Os traficantes locais mundo das travessa [sic], se não vai morrer”.
seriam “considerados”, na cidade e no sistema A situação se repetiu em vários bairros, com
prisional, o que possibilitou a criação do coleti- ameaças coletivas e individuais. Em diversas
vo e sua adesão em outros territórios. O Conjun- ocasiões, a PM foi atuante para garantir a segu-
to Palmeiras, em diversas áreas, é considerado rança durante a mudança dos moradores.
por seus moradores como “extremamente segu- O controle social dos territórios urbanos
ro” pela pouca resistência existente ao domínio também se tornou efetivo por meio de assassi-
da GDE. Lideranças comunitárias, educadores natos, duplos e triplos homicídios, e chacinas.
sociais e militantes políticos, no entanto, rela- A intensificação da violência se tornou visível
tam as complexas negociações para qualquer e, em levantamento feito pelo jornal O Povo,
atividade no território, sendo necessário muito foram realizadas, pelo menos, oito chacinas no
cuidado para que os frágeis laços de confiança período de aproximadamente um ano:
não sejam rompidos. Esse controle da popula-
20/2/2017 - Granja Lisboa (Fortaleza): cin-
ção exigiu uma série de compromissos e o silên- co pessoas mortas e três feridas em confli-
cio em relação a práticas do coletivo na região. to entre facções; 3/6/2017 – Aquiraz: seis
Em conversas com lideranças comunitárias, as pessoas mortas em festa que comemorava
falas remetem a um sentimento de inseguran- soltura de traficante; 12/6/2017 – Horizon-
ça não vivenciado da mesma maneira antes da te: cinco mortos, entre eles uma criança
de três anos, e outras três pessoas feridas;
existência das facções.
20/7/2017 – Paraipaba: quatro mortos em
As ameaças às lideranças comunitárias conflito de facções; 8/10/2017 - Bom Jar-
se mostraram reais no dia 10 de novembro de dim (Fortaleza): quatro pessoas mortas em
2017, quando a líder comunitária Cristina Po- suposta reunião para selar acordo de paz.
eta foi baleada em uma parada de ônibus por Dois suspeitos presos; 13/11/2017 - Centro
dois homens. Apesar de não existirem provas, de Semi-liberdade Mártir Francisca, Sa-
piranga (Fortaleza): vinte homens arma-
os rumores entre moradores e militantes da
dos invadiram o centro e mataram qua-
área de direitos humanos retratam uma possí- tro internos, de 13, 15 e dois de 16 anos;
vel retaliação em virtude do envolvimento da 8/1/2018 – Maranguape: quatro pessoas
líder comunitária com projetos de segurança mortas em uma casa na subida da serra;
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019
178
Luiz Fábio S. Paiva
soas se divertiam, no bairro Cajazeiras, numa cutores, eles participam do conflito para reali-
área dominada pelo CV e FDN, quando ho- zar acertos de contas contra “covardias” come-
mens fortemente armados desceram de três tidas por qualquer um dos coletivos criminais.
carros e disparam primeiro em um motorista Entre as “covardias”, estão atos que denigrem
de Uber, parado na esquina, em um vendedor o “andar pelo certo” e a ética dos que fazem o
ambulante na porta do forró, em seu filho de crime na cidade.
12 anos e em uma mulher que passava na rua. Outro fenômeno importante após a con-
Em seguida, entraram na boate e dispararam solidação das facções nas periferias de For-
contra as pessoas. Na ação, que durou apro- taleza é o papel das mulheres nos esquemas
ximadamente dez minutos, 14 pessoas foram e acertos de conta. As mulheres se tornaram
executadas e outras dez ficaram feridas. Entre personagens importantes após o advento das
os mortos, havia oito mulheres. Os relatos de facções, com participação ativa na dinâmica
sobreviventes ressaltam que três amigas corre- dos coletivos. Ao integrarem e se fazerem ver
ram para trás do bar e ficaram ali abraçadas. nas dinâmicas dos coletivos criminais, elas
Ao serem encontradas, mesmo implorando por também se tornaram passíveis de ser vítimas
suas vidas, foram executadas. de acertos de contas entre as facções, sendo
Após a chacina das Cajazeiras, aconte- “decretadas”, torturadas e mortas sob acusa-
ceu a de Itapagé. Como no Centro de Semi-Li- ção de “cooperar” com os inimigos. Os dizeres
berdade Mártir Francisca, a ação ocorreu con- “onde pegar, pau no gato” e “sem massagem”
tra pessoas sob a tutela do Estado. Dez deten- demarcam e indicam quem deve morrer. Essas
tos acusados de integrar o PCC foram mortos indicações aparecem publicamente, em redes
por pessoas ligadas ao CV. A ação teria sido sociais, nas quais centenas de perfis de mu-
uma retaliação aos eventos das Cajazeiras. Ela lheres são expostos a fim de retratar para todo
aconteceu em um período no qual havia rumo- o grupo quem são elas, onde moram e como
res de que o PCC poderia se juntar ao CV e devem morrer. Cheguei a contar, em páginas
FDN contra a GDE em virtude da “covardia” do Facebook de supostos integrantes de cole-
empregada na chacina das Cajazeiras. Circu- tivos, 208 meninas decretadas, sendo possível
laram pela Internet mensagens de um grupo observar, em uma só postagem, 21 mulheres.
de prisioneiros que “não veste a camisa de ne- São publicações que aparecem e são apagadas,
nhuma facção”, falando que iria fazer justiça. mas não sem antes circular por dias nas redes
179
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...
dominada pela facção rival, tratam-na como se ruim”. Nas redes sociais, eles se agridem. “Bro-
fosse “marmita” dos inimigos. As mortes não ta, se tu é homi [sic]”, desafia um ao outro, uti-
são decretadas apenas depois do conhecimen- lizando perfis falsos, mas também, em deter-
to objetivo de certos envolvimentos, porquanto minados casos, de cara limpa, com seus perfis
elas podem acontecer em função de suspeita, pessoais e identificando os locais onde o outro
antipatia ou desejo de vingança por questões deve aparecer. É uma luta social complexa, em
pessoais. Algumas mortes ocorrem em mata- que pessoas veem, na reprodução do crime, um
gais, após sequestro, e podem envolver torturas meio de acessar bens materiais e simbólicos e,
e estupros. Várias cenas dessas mortes circu- consequentemente, exercer poder de governo
lam nas redes sociais e mostram uma realidade na vida de pessoas agenciadas, como objetos
por demais perversa, com as mulheres muito de interesse e manifestação da crueldade dos
machucadas, afirmando que elas estão “rasgan- integrantes das facções. Com efeito, fazer uso
do a camisa da facção”19 a qual são associadas. da violência na prática de crimes não é ape-
Há várias cenas nas quais são cortadas vivas nas acertar contas, mas também constituir a si
enquanto choram e imploram por suas vidas. A mesmo como um agente capaz de fazer frente
cada novo caso, uma série de acusações sociais ao outro, igualmente disposto e motivado pe-
é trocada por esses coletivos, afirmando que o los mesmos referenciais morais e políticos.
outro é capaz das mais terríveis covardias con- Por fim, é importante perceber que as pes-
tra a população inocente. soas que integram as facções ocupam lugares
Nas redes sociais e nos bairros, é pos- e posições diferentes nos diversos tipos de en-
sível observar um movimento de difamação e volvimento possível com esses coletivos. Nesta
ofensa moral entre os coletivos, com o objetivo análise, cuidei somente de uma dimensão des-
de demonstrar que o outro é capaz de “covar- se processo, situada na periferia, e que envolve
dia”. O uso de mulheres em acertos de contas as disputas letais entre pessoas que encarnam o
é mobilizado nesse sentido, com cada uma das coletivo como parte de suas disposições de vida
facções acusando a outra de “matar mãezinha” e morte. Existem diferenças sociais importantes
e “torturar inocente”. É importante destacar o entre pessoas e seus distintos tipos de partici-
fato de que, nessas ações e trocas de insultos, pação nas facções. “Aqui o cara põe a arma na
são as figuras do CV e da GDE que aparecem mão do menino, o cabra sabe nem de quem é, de
com maior destaque, como se o PCC e a FDN onde vem, ele sai logo feito doido, se amostrando
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019
preservassem certa distância das frentes em que é da facção”, ressaltou um interlocutor. Essa
que os acertos de conta são feitos. Observei fala ressalta algo perceptível e que diferencia as
que todos os coletivos fazem uso das mortes de pessoas que compõem esses coletivos. Alguns jo-
mulheres em seus acertos de contas, promo- vens que recebem as armas ocupam posição di-
vendo cenas de tortura e as fazendo circular ferente dos que a entregam para que eles façam
de maneira abrangente. São ações feitas para seus “corres” e suas “paradas”.
demonstrar a força pela crueldade e pela capa- Por mais que um grupo como a GDE se
cidade de fazer todas as pessoas consideradas qualifique como “horizontal”, existem dinâ-
inimigas sentirem a dimensão das maldades micas de posições e envolvimentos que preci-
que o outro é capaz de mobilizar nessa disputa sam ser consideradas nas maneiras de se fazer
por mercados ilegais, domínio de territórios, o crime nas facções. A pessoa que entrega e a
hegemonia, reconhecimento e honra. pessoa que recebe podem estar na mesma fac-
Em alguma medida, os interlocutores fa- ção, mas é provável que apenas uma das duas
lam de uma disputa “para saber quem é mais saiba como a arma chega até a mão da outra,
a qual, possivelmente, não sabe muitas outras
19
“Rasgar a camisa” é a expressão utilizada para se referir
ao fato de estar rompendo relações com aquela facção. coisas que acontecem além do seu domínio.
180
Luiz Fábio S. Paiva
Essa complexidade de domínio de informações que representam algo maior e fazem parte das
e possibilidades de acesso a bens, no interior comunidades. Mesmo sendo coletivos origi-
da facção, é algo importante a ser considerado nalmente exógenos, eles conseguiram agregar,
pelos múltiplos movimentos que a compõem. possibilitando a autonomia e a independência
Em linhas gerais, as facções são compostas por de seus segmentos locais.
essa multiplicidade de relações que não se es- Durante quase um ano, esses grupos
gotam em um esquema e parecem transbordar, se dividiram e repartiram os ganhos, criando
ensejando múltiplas adesões e afetos constitu- a ideia de que poderiam conviver de maneira
tivos do que é ser da facção. harmoniosa, gerando riqueza para todos os en-
volvidos. Mas a ideia não perdurou e, quando
o conflito foi ativado, as consequências para
CONSIDERAÇÕES FINAIS: as as comunidades foram sentidas pela geração
afinidades eletivas entre antes e de mais violência. Enquanto as gangues e qua-
depois drilhas de traficantes se moviam em territórios
estáticos, e enquanto cada grupo dominava
Em linhas gerais, é possível pensar, seu pedaço, matando sem mexer no pedaço do
como sugere Weber (2004), que existem afi- outro, as facções invadem, matam, ocupam e
nidades eletivas entre fenômenos sociais expulsam moradores de suas casas. Os líderes
que se encontram sem que um determine o de gangues e os traficantes locais sempre tive-
outro, mas pelos quais é possível encontrar ram um peso dentro da comunidade, mas sua
correspondências de sentido historicamente capacidade de agência era limitada, e as nego-
relevantes. As maneiras de fazer o crime das ciações com eles eram consideradas como algo
gangues e quadrilhas de traficantes, entre ou- “tranquilo”. Em muitas comunidades, prevale-
tros fenômenos,20 contribuíram para saberes e ciam apenas os acordos tácitos de não delação
práticas agenciadas nas dinâmicas criadas pela dos esquemas ilegais. Desde as facções, esse
constituição de facções criminais em prisões equilíbrio foi quebrado, e os moradores rela-
e periferias do Ceará. Na minha avaliação, na tam que as pessoas que fazem o crime querem
cidade de Fortaleza, as facções criminosas en- “botar moral” e determinar o que pode e não
contraram as condições objetivas para produ- pode ser feito na comunidade.
zir adesão às suas práticas, passando por um É importante destacar o fato de que a co-
181
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...
nhum educador, assistente social, psicólogo BARBOSA, A. R. O baile e a prisão: onde se juntam as
pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica
ou representante de instituições públicas che- do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Especiaria: Cadernos
de ciências humanas, Ilhéus, v. 9, n. 15, p. 119-135, 2006.
gou até essas pessoas para lhes explicar que
BARREIRA, C. Crimes por encomenda: violência e
assassinatos são graves violações aos direitos pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume
humanos em uma sociedade democrática de Dumará, 1998. 178 p.
BARREIRA, I. A. F. Usos da cidade: conflitos simbólicos
direito. É possível afirmar que essa é uma fic- em torno da memória e imagem de um bairro. Análise
ção da qual elas nunca ouviram falar. social, Lisboa, p. 163-180, 2007.
Dessa maneira, acredito que seja possível BARROS, J. P. P. et al. “Pacificação” nas periferias: discursos sobre
as violências e o cotidiano de juventudes em Fortaleza. Revista
falar de uma socialização pela violência que, de Psicologia da UFC, Fortaleza, v. 9, n. 1, 2018.
desde os tempos das gangues, perdura como BECKER, H. Outsiders: estudos de Sociologia do desvio.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 232p.
meio de fazer o crime e, consequentemente, fa-
BIONDI, K. Relações políticas e termos criminosos: o
zer a própria vida nas periferias de Fortaleza. PCC e uma teoria do irmão-rede. Teoria & sociedade, Belo
Horizonte, v. 15, n. 2, p. 206-235, 2007.
Obviamente, existem muitas outras coisas que
______. Etnografia no movimento: território, hierarquia
compõem as periferias da cidade. Isso não im- e lei no PCC. 2014. 336 f. Tese (Doutorado em Ciências
pede de observar, entretanto, que o homicídio Humanas) – Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos, 2014.
não é um elemento estranho a pessoas que so- ______. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia
frem e praticam crimes cruéis contra a própria e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018. 408 p.
população com a qual compartilham as dores BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001. 324 p.
e os sofrimentos sociais. Esses sofrimentos
CANDOTTI, F. M.; MELO DA CUNHA, F.; SIQUEIRA, I. L.
sociais são experiências coletivas e geradoras “A grande narrativa do Norte: considerações na fronteira
entre crime e Estado”. In: MALLART, F.; GODOI, R. BR
de reação. Por isso, acredito que existe algo de 111: a rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta: Le
Monde Diplomatique, 2017.
insurgente no fenômeno das facções, mas tam-
CAVALCANTE, R. M. B. Vidas breves: investigação acerca
bém profundas conexões com as modalidades dos assassinatos de adolescentes em Fortaleza. 2011. 161
de dominação que impõem o governo dos mais f. Dissertação (Mestrado acadêmico em Políticas Públicas)
- Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2011.
pobres para geração de variadas maneiras de CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer.
cooperação, atualizando discriminações, desi- Petrópolis: Vozes, 1994. v. 1, 352p.
gualdades e injustiças em larga escala. CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo:
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Recebido para publicação em 28 de abril de 2018 p. 213-233, 2011a.
Aceito em 08 de abril de 2019
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183
“AQUI NÃO TEM GANGUE, TEM FACÇÃO” ...
“THERE ISN’T GANG HERE, THERE’S ‘FACÇÃO’”: “ICI, IL N’Y A PAS DE GANG, IL Y A UNE
the social transformations of crime in Fortaleza, FACTIONS”: les transformations sociales du
Brasil crime à Fortaleza, Brasil
This paper discusses the social transformation L’article analyse le processus de transformation sociale
process of crime in Fortaleza’s peripheries through du crime dans les quartiers populaires de la ville de
the constitution of criminal collectives known Fortaleza au travers de la constitution de groupes
as “facções”. It evidences how gangs and drug criminels connus sous la dénomination de “factions”.
trafficking groups offered objective conditions Je mets en évidence comment les gangs et les bandes
to the process of joining these collectives which, organisés de trafiquants ont fourni les conditions
among other circumstances, affected the forms objectives au processus d’adhésion à ces collectifs qui,
of crime in the City. The research was developed parmi d’autres choses, ont influé sur les manières de faire
in a dynamic of qualitative and multisituated du crime dans la ville. La recherche a été menée dans
investigation, articulating press material, interviews une dynamique d’enquête qualitative et multisituée,
and conversations in the light of a comprehensive en mettant en relation des articles journalistiques, des
perspective of the senses and the relations within entretiens et des conversations, en suivant la voie d’une
the studied phenomenon. It considers the multiple perspective compréhensive des sens et des relations
social effects of violence in circumstances created pertinentes vis-à-vis du phénomène étudié. Je prends
by criminal collectives that are facing each other en considération de multiples effets sociaux de la
and seek to exert power of government over violence dans des circonstances créées par des groupes
populations with which they share certain social criminels qui s’affrontent et cherchent à exercer
sufferings. The paper also demonstrates a change un pouvoir de gouvernement des populations avec
in the scale of violence and interference of people lesquelles ils partagent certaines souffrances sociales.
who commit crimes with torture, expulsion and Je démontre le changement dans l’échelle de la violence
slaughter involving men and women. It concludes et de perturbations des personnes qui participent au
that the “facções” created dynamics of government crime, avec des pratiques de torture, d’expulsion de
that result in forms of domination and subjection of domicile et de massacres impliquant des hommes et
the poorpopulation in Fortaleza, Brazil. des femmes. J’en conclus que les «factions» ont créé des
dynamiques de gouvernement engendrant des formes
de domination et d’assujettissement des pauvres à
Fortaleza, Brasil.
Keywords: Violence. Crime. Criminal collectives. Mots-clés: Violence. Crime. Groupes criminels.
Facções. Periphery. Factions. Quartiers populaires.
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 165-184, Jan./Abr. 2019
Luiz Fábio S. Paiva - Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará (PPGS-UFC). Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do PPGS-UF.
Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV). Publicação recente: As dinâmicas do mercado
ilegal de cocaína na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 34, n. 99, São Paulo, out. 25, 2018.
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