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RESUMO
Introdução: As inovações tecnológicas modificam a realidade social. As interações
humanas se desenvolvem, tendem a atualizar-se e são ressignificadas à medida em
que os meios de comunicação e as novas tecnologias vão se estabelecendo,
ocupando assim espaços no campo de significados individuais e coletivos.
Objetivos: Esta análise buscou investigar as formas pelas quais os rituais punitivos
se manifestam no ciberespaço, adotando a categoria suplício como norteadora das
discussões. Metodologia: Sendo uma pesquisa de natureza qualitativa e
exploratória, a metodologia escolhida foi a etnografia. O método etnográfico foi
selecionado, pois parte do pressuposto de que é preciso entender o quadro
referencial pelo qual os sujeitos interpretam pensamentos, sentimentos e ações
valorizando o processo, não necessariamente os resultados. Visto que o enfoque
deu-se em um aspecto específico da cibercultura dentre vários que emergem do no
ciberespaço, este estudo adota uma caráter de microanálise etnográfica, posto que
estuda particularmente um aspecto do evento ou parte dele. A seleção do material
ocorreu a partir de uma profunda e longa leitura dos comentários pertencentes as
notícias expostas em uma rede social, e ao todo foram selecionadas nove falas. A
escolha destes comentários ocorreu a partir de alguns critérios pré-estabelecidos a
fim de facilitar o processo de triagem e escolha. Tais critérios foram: 1) Estar
coerente com a notícia, não apresentando a interferência de assuntos desconexos
ou descontextualizados; 2) Apresentar uma opinião emblemática a respeito do tema,
deixando claro um posicionamento diante do exposto e; 3) Apresentar conteúdos de
caráter punitivo e/ou supliciante. Todos os comentários obrigatoriamente passaram
pelo crivo dos três critérios, entretanto, alguns suscitaram outras problemáticas, o
que necessitou maior aprofundamento teórico e enriqueceu a análise. Resultados:
É possível identificar o que nos parece ser uma “nova praça pública”, com novos e,
por vezes mais complexos, sistemas de punição, além de apresentarem um poder
de alcance incomparavelmente maior. Constatou-se também várias manifestações
que reivindicam mecanismos supliciantes. Através da pesquisa ficou evidente que os
comentários expostos no ciberespaço caracterizam o sentido que se produz ao
decorrer dos “rituais punitivos”, já que os sujeitos argumentam usando falas
supliciantes, convictos de que desta forma se legitima a justiça. Salientamos ainda
ser fundamental o papel deste estudo para a ciência psicológica, compreendendo
acima de tudo a complexidade e versatilidade da atuação do profissional de
psicologia.
1. INTRODUÇÃO
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Haja vista a complexidade, não só dos fenômenos aqui trazidos para análise,
mas também das terminologias e conceitos expostos, faz-se necessário esclarecer
ao leitor, no intuito de explicar, articular e dialogar com os autores, os temas que
iremos utilizar ao longo deste estudo.
2.1 Suplício
Isto denota que, a partir do momento em que se deixa para as pessoas que
não são juízes da infração, a decisão sobre se o condenado merece ser posto em
liberdade condicional, por exemplo, elas se tornam “juízes anexos” e a pena se
amplia para além das instâncias jurídicas. Os elementos extrajurídicos anexados
não têm o intuito de serem qualificados juridicamente, mas sim de retirar a culpa do
juiz de ser aquele que castiga (FOUCAULT, 1987). Do mesmo modo, quando
expostas nas redes sociais, as notícias deixam de pertencer somente ao veículo que
publicou e passam a ser de todos aqueles que opinam, julgam e tecem comentários
relacionados a elas (RONDELLI, 2000).
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2.3 Ciberespaço
ordem, a lei e ao sentido, sendo, mesmo que sem pretensão, uma forma política.
Pactuando com isto, Georg Simmel (1983) pontua a relevância sociológica do
conflito, reconhecendo que tal fenômeno passa a produzir ou modificar grupos de
interesse, uniões e organizações, de tal forma, o conflito surgiria então como uma
tentativa de resolução de dualismos divergentes, a fim de se conseguir uma
unidade.
Pelo princípio do desvirtuamento do sentido de livre expressão da imprensa
e da mídia em geral, constata-se uma banalização recorrente nos conteúdos
programáticos dos meios de comunicação regularmente instituídos, de acentuada
exacerbação no incentivo ao desrespeito à ética e à cidadania dos indivíduos. Não
são raros os programas sensacionalistas na mídia televisiva que exploram a vida
deteriorada dos excluídos, para infundir um senso falso de resgate de sua cidadania
(DA SILVA QUADROS, 2001).
Por eles, chora-se, lastima-se, sensibiliza-se e, ao mesmo tempo,
reverencia-se, odeia-se, lincha-se, ora exaltando-se, ora apedrejando-se. Os
sentimentos se alteram, porque o julgamento é um jogo de encenação bombástica e
assim se imprime largamente o desrespeito, para depois resgatá-lo
homeopaticamente, se houver tempo suficiente no horário programado (DA SILVA
QUADROS, 2001).
Segundo Lago (2015) sobre a questão da violência, pôde-se observar sua
inserção na sociedade contemporânea, partindo de uma relação aparentemente
contraditória entre movimentos de atração e repulsão. Tal disparidade é percebida,
de forma mais clara, por meio do enfrentamento de imagens de violência física.
Um exemplo destes movimentos de atração e repulsão, denotando as
contrariedades nos sentidos produzidos sobre as violências e das confusões entre o
real e o simbólico (ou do campo das ideias) é a experiência que relata Richard
Sennett no capítulo de introdução: “O Corpo Passivo” em seu livro Carne e Pedra
de 1994:
Anos atrás na companhia de um amigo, fui assistir a um filme, num cinema
de shopping suburbano, em Nova York. Na guerra do Vietnã, ele fora
atingido por uma bala e sua mão esquerda sofreu amputação; os cirurgiões
militares cortaram-na logo acima do pulso. Ele passou a usar uma prótese
mecânica, com dedos de metal, o que lhe permitia segurar talheres e bater
máquina. O filme era um sangrento épico de guerra, e durante a sessão
meu amigo permaneceu impassível, fazendo ocasionais comentários
técnicos. [...] O público acabara de enfrentar duas horas vendo corpos
dilacerados, aplaudindo com o maior entusiasmo os lances mais violentos e
a carnificina. Passando por nós, as pessoas se detinham, perturbadas com
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O autor traz que a reação dos passantes à mão metálica de seu amigo
evidencia a questão de que falsas experiências de violência insensibilizam o público
ante a verdadeira dor. O autor cita também um estudo feito pelos psicólogos Robert
Kubey e Mihaly Csikszentmihalyi (1990), onde concluem que a televisão é passiva e
relaxante, exigindo pouca concentração, destacam ainda que o “grande consumo de
dor ou sexo simulados servem para anestesiar a consciência do corpo” (SENNETT,
1994, p.17). Ele afirma ainda que através dos meios de comunicação
experimentamos nosso corpo de forma mais passiva do que as pessoas que temiam
suas próprias sensações. O autor questiona, “Então, o que devolverá o corpo aos
sentidos? [...] O que poderá tornar as pessoas mais conscientes umas das outras,
mais capacitadas a expressar fisicamente seus afetos?” (SENNETT, 1994, p. 17).
Gostaríamos como provocação, de trazer alguns questionamentos
mobilizadores deste estudo: Pode-se dizer que sofremos com os resquícios do
prazer em assistir a barbárie? De desejar a barbárie? Seria isso vinculado a um
senso de justiça, sadismo ou vingança? Ou que sequer tais desejos saíram de nós,
ou adormeceram, mas sim se tornaram mais “sofisticados” e velados dissolvidos na
tecnologia? Essas foram algumas das indagações que buscamos discutir neste
estudo, por meio de uma microanálise etnográfica de rituais punitivos no
ciberespaço.
3. METODOLOGIA
anseios supliciantes, bem como, formular hipóteses e reflexões acerca dos objetos
desta análise.
4.1 “A mãe que lutou por 4 anos para salvar o assassino da filha do corredor
da morte”
“Ela foi esperta...(e ainda que ela não tenha pensado nisso pq ela tem a
alma nobre) a morte seria um consolo para esse miserável. Agora vai ter
que ficar a vida toda trancado, vendo o sol nascer quadrado até a hora de
morrer. Vai ver a vida passar, sua juventude, e aos poucos será engolido
pelo sistema até ser esquecido. Vai sofrer mais do que se fosse executado.”
(sic)
1 Para fins éticos e de sigilo, omitiu-se os dados referentes à identificação da página de notícias, da
rede social utilizada e a identidade dos autores dos comentários analisados, garantindo seu
anonimato.
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“Já pensaram se todo mundo que sofresse, tivesse uma vida difícil na
infância saísse matando por que é vítima do sistema? Mas é melhor ele
vivo, pois preso será muito mais punido do que morto.” (sic)
“A justiça tem q ser feita não só pra filha dela, mas pra proteger toda a
sociedade, é uma ação incondicionada do Estado pra proteger os cidadãos
dos bandidos. Problema dela se ela perdoou, a justiça tem q cumprir seu
papel pro bem de todos e pra servir de exemplo.” (sic)
“Se for para pessoas que praticaram crimes bárbaros, que a morte é pouco.
Eu levaria a pipoca e se fosse possível em 3D levaria os óculos, por que
quem é condenado a uma coisa dessa essa é a solução para sentir na pele,
o Brasil precisava desse método a anos.” (sic)
2 “Vouyerismo Sádico” é uma expressão cunhada por nós, com base na união dos dois termos.
Voyeurismo é uma prática que consiste num indivíduo conseguir obter prazer sexual através da
observação de outras pessoas. Observar no sentido de espiar indivíduos, geralmente estranhos, sem
suspeitar que estão sendo observados, que estão nus, a se despirem ou em atividade sexual. Neste
estudo tal termo é trazido junto ao “sadismo” a fim de explicitar o ato de observar a violência com tons de
prazer, de voltar-se ao estranho, que na internet, está desnudo e a mercê dos olhares do outro.
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“Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente como uma fórmula
cruel e bárbara que descreve melhor a vingança do que a necessidade de
se punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que
essa máxima é também baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e
a punição. Nesse sentido, o que a expressão “olho por olho, dente por
dente” nos revela, antes, a ideia da necessidade de se obter uma exata
medida entre a negação e a restituição da justiça” (DUARTE, 2009).
“Se rolar aqui no Brasil, sou voluntário… Até empurro o êmbolo da seringa
da injeção letal, esmagaria o gatilho da execução no paredão, puxaria a
alavanca da cadeira elétrica ou chutaria o banquinho da forca.” (sic)
“Eu assistiria com prazer, adoraria ver a justiça acontecer frente aos meus
olhos, não existe justiça divina meus caros, aqui se faz, aqui se paga. Vai
pro colo do diabo hahaha” (sic)
“Deve ser uma delicia ver um assassino morrendo desta maneira”. (sic)
burocráticos, dos quais utilizou para explicar seus atos e eximir-se da culpa,
depositando ao “Estado” e às “leis” a responsabilidade pelos ocorridos.
Não é possível precisar a quantidade de judeus enviados à morte (para os
campos) por Eichmann, mas estima-se, só na Hungria, mais de 500.000 pessoas.
Ainda sim, percebeu-se a todo momento em seu julgamento, inclusive pela defesa
do réu, um imenso esforço direcionado a relativizar suas condutas apoiando-se no
argumento de que o tenente-coronel havia jurado lealdade à Hitler e seu regime, que
vigorava como constituição na Alemanha Vermelha. Por via disso, não poderia ser
então julgado sobre as leis Judaicas, visto que de acordo com as leis que regiam
seu país no período de vigência do nazismo, não houvera crimes: a morte aos
judeus era a máxima da Lei (ARENDT, 1999).
A partir da observação da forma corriqueira, banalizada, tratada como mera
formalização de ordens superiores e obediência à lei com a qual o holocausto de
milhares de judeus foi tratada por Eichmann, Arendt cunhou o termo “banalidade do
mal”. Com banalidade do mal, a autora suscita a insensibilidade diante do mal,
questionando a todos nós: Até quando replicar-se-a um discurso de obediência,
dócil, que reforça a relação dominador e dominado e que se isenta das
responsabilidades pelos atos individuais e sociais? até que ponto nós estamos
sustentando padrões estéticos e comportamentos deploráveis simplesmente porque
não analisamos as repercussões dos nossos atos?
Frankl (2013), ao relatar sua própria experiência nos campos de
concentração, menciona diversas vezes a figura do kapo e seu papel de algoz
perante os prisioneiros. Mais do que isso, ele reforça que os kapos eram em sua
maioria “mais cruéis que a própria SS”, guarda de Hitler responsável, entre outras
tarefas, pelo monitoramento/castigo dos internos nos campos. Mas qual a distinção
do kapo para a SS? Os kapos eram homens selecionados entre os próprios
prisioneiros judeus, quando não incomum, eles mesmos se voluntariavam para tal
função, onde eram responsáveis por colaborar (e até intensificar) o martírio dos até
então, companheiros. Estudiosos como Zimbardo (2013) e Milgram (1974) cunharam
experimentos de grande representatividade neste aspecto, inquietos quanto aos
comportamentos humanos frente às relações de poder, buscando não só as raizes
bem como hipóteses acerca da lida humana frente às relações de dominação.
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Isto nos provoca a refletir acerca das motivações desses sujeitos e além
disso, aplicado ao tema deste estudo, nos remete às noções de poder tão caras à
Foucault: empoderado pela crença de uma moralidade mais nobre, em posse de
poder ou “estando a serviço/ao lado da lei” o que seria o homem capaz de fazer?
“Eu também sou contra pena de morte, mas por outro motivo. O processo
de prisão até o corredor de morte é extremamente custoso para o Estado e
presos no corredor da morte ficam lá por 10, às vezes 20 anos inativos
esperando a sentença pra qualquer familiar de vítimas de crimes hediondos
matar o assassino é poupá-lo da real punição: a ausência de liberdade.
saber que um cara tá mofando pro resto da vida num quadrado de cimento
me dá mais paz. um ex-goleiro bruno sendo esquecido pela opinião pública
amargurado pela perda de tudo que poderia ter sido ainda é um castigo
maior do que um cara poupado de ser esmagado pelo próprio ego por uma
injeção letal. além disso, presos poderiam fazer trabalhos insalubres e
tornarem-se produtivos” (sic)
41). E não poderíamos deixar de citar Girard (1990) a respeito da violência na face
da vingança, ele afirma:
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6. REFERÊNCIAS
HUBERT, H.; MAUSS, M. Sacrifice: Its nature and functions. Chicago: University of
Chicago Press, 1964.
LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34,
1999. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4091443/mod_resource/content/1/
Cibercultura%20%28LEVY%29.pdf >. Acesso em: 15 Mai. 2017.