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SUPLÍCIOS CONTEMPORÂNEOS: UMA ANÁLISE SOBRE RITUAIS PUNITIVOS


NO CIBERESPAÇO

Micheline Ramos de Oliveira*


Suellem Christinna dos Santos**
Yasmim Steffani Veiga***

RESUMO
Introdução: As inovações tecnológicas modificam a realidade social. As interações
humanas se desenvolvem, tendem a atualizar-se e são ressignificadas à medida em
que os meios de comunicação e as novas tecnologias vão se estabelecendo,
ocupando assim espaços no campo de significados individuais e coletivos.
Objetivos: Esta análise buscou investigar as formas pelas quais os rituais punitivos
se manifestam no ciberespaço, adotando a categoria suplício como norteadora das
discussões. Metodologia: Sendo uma pesquisa de natureza qualitativa e
exploratória, a metodologia escolhida foi a etnografia. O método etnográfico foi
selecionado, pois parte do pressuposto de que é preciso entender o quadro
referencial pelo qual os sujeitos interpretam pensamentos, sentimentos e ações
valorizando o processo, não necessariamente os resultados. Visto que o enfoque
deu-se em um aspecto específico da cibercultura dentre vários que emergem do no
ciberespaço, este estudo adota uma caráter de microanálise etnográfica, posto que
estuda particularmente um aspecto do evento ou parte dele. A seleção do material
ocorreu a partir de uma profunda e longa leitura dos comentários pertencentes as
notícias expostas em uma rede social, e ao todo foram selecionadas nove falas. A
escolha destes comentários ocorreu a partir de alguns critérios pré-estabelecidos a
fim de facilitar o processo de triagem e escolha. Tais critérios foram: 1) Estar
coerente com a notícia, não apresentando a interferência de assuntos desconexos
ou descontextualizados; 2) Apresentar uma opinião emblemática a respeito do tema,
deixando claro um posicionamento diante do exposto e; 3) Apresentar conteúdos de
caráter punitivo e/ou supliciante. Todos os comentários obrigatoriamente passaram
pelo crivo dos três critérios, entretanto, alguns suscitaram outras problemáticas, o
que necessitou maior aprofundamento teórico e enriqueceu a análise. Resultados:
É possível identificar o que nos parece ser uma “nova praça pública”, com novos e,
por vezes mais complexos, sistemas de punição, além de apresentarem um poder
de alcance incomparavelmente maior. Constatou-se também várias manifestações
que reivindicam mecanismos supliciantes. Através da pesquisa ficou evidente que os
comentários expostos no ciberespaço caracterizam o sentido que se produz ao
decorrer dos “rituais punitivos”, já que os sujeitos argumentam usando falas
supliciantes, convictos de que desta forma se legitima a justiça. Salientamos ainda
ser fundamental o papel deste estudo para a ciência psicológica, compreendendo
acima de tudo a complexidade e versatilidade da atuação do profissional de
psicologia.

Palavras-chave: Suplício Contemporâneo; Rituais Punitivos; Ciberespaço.


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1. INTRODUÇÃO

O tema deste artigo versa sobre como se dão os rituais punitivos no


ciberespaço, atual meio de comunicação que abriga, não apenas a infraestrutura
material da comunicação digital como informações abundantes, sendo também onde
os seres humanos conectam-se e alimentam este universo. Por este motivo, o
ciberespaço é visto como espaço de relação, com estabelecimento de vínculo,
pertença e identidade (LÉVY, 1999; SEGATA, 2014). Deste modo, a internet se
estabelece no presente como território que abriga diversos fenômenos passíveis de
estudos vinculados às relações humanas.
Analisando de forma minuciosa alguns fenômenos relativamente recentes na
internet, é possível identificar o que nos parece ser uma “nova praça pública”, com
novos e, por vezes mais complexos, sistemas de punição, além de apresentarem um
poder de alcance incomparavelmente maior. No entanto, tais processos não são
recentes aos estudos e fenômenos humanos, pelo contrário, autores da
antropologia, sociologia, história e, mais recentemente, da psicologia já se
debruçaram acerca dos desdobramentos da punição em seus mais diversos
contextos, rituais e performances (FOUCAULT, 1987; GIRARD, 1990; TURNER,
2008).
Partindo disso, evidenciamos que tal qual à época da Santa Inquisição,
descumprir uma regra moral é ainda condição necessária, mas não suficiente, para
ser publicamente humilhado e exposto, é necessário também que todos tenham
conhecimento da imoralidade (RIFIOTIS, 2002; SEGATA, 2014). E que melhor
plataforma senão a internet e as redes sociais para dar conta disto?
Percebe-se também que nem é mais necessária uma instituição
regulamentadora e opressora para praticar a condenação, mesmo que a moralidade
dogmática religiosa ainda se assente em patamares relevantes. Considerando tal
fenômeno, talvez seja isso o mais espantoso, perceber a unanimidade da
condenação pública em um ambiente descentralizado, no qual não há um agente
explícito que coordene as opiniões ou as ações das pessoas. O “povo” assumiu o
papel da Igreja como agência que supostamente guarda os “bons costumes” e pune
os “desviantes” (BECKER, 2008).
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Nestes espaços, ou melhor dizendo, no ciberespaço, onde o privado e o


público se misturam, o virtual por vezes é compreendido como uma “realidade
paralela” ou uma dimensão aquém da realidade vivenciada no cotidiano, como
pontua Campanella (2015), tornando-se um ambiente de expressão dos desejos,
onde a mente divaga saindo do "serei punido" para o "posso punir sem ser punido",
evidenciando a mescla entre o real e o simbólico.
O ciberespaço ultrapassa fronteiras geográficas ou temporais, ampliando seu
alcance, ao mesmo tempo que impede qualquer tipo de controle formal de sua
circulação e distribuição (LAGO, 2015). Portanto, o ciberespaço pode ser entendido
como um território onde o virtual é também real, e onde rompe-se o limiar entre o
público e o privado (LE BRETON, 2009).
É impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como dos
signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo. Da
mesma forma, não podemos separar o mundo material - e menos ainda sua parte
artificial - das ideias por meio das quais os objetos técnicos são concebidos e
utilizados, nem dos humanos que os inventam, produzem e utilizam (LÉVY, 1999, p.
21).
Na contemporaneidade, um dos principais instrumentos de mediação da
nossa relação com o mundo são os meios de comunicação. Experiência cotidiana, a
mídia é hoje o parâmetro de condutas, veiculando representações e valores e, no
que tange à violência, ensinando o medo (HIKIJI, 1998, p. 64 apud LAGO, 2015, p.
49).
Habitando a intersecção entre o ciberespaço, a comunicação e os rituais
punitivos, está a violência, sendo igualmente uma forma de comunicar-se, estando
presente no discurso e nas práticas dos seres humanos. Posto isso, Rondelli (2000)
ressalta que “se a violência é linguagem - forma de se comunicar algo -, a mídia, ao
reportar os atos de violência, surge como ação amplificadora desta linguagem”
(RONDELLI, 2000, p. 150). Tal linguagem é tomada como prática social e isso
implica trabalhar a interface entre os aspectos performáticos da linguagem (quando,
em que condições, com que intenção, de que modo), bem como, as condições de
produção, entendidas aqui tanto como contexto social e interacional, quanto no
sentido foucaultiano de construções históricas (SPINK, 2010).
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Atos de manifestação da violência revelam também uma expressão simbólica,


tais atos são linguagens e modos de expressão daqueles que os praticam, o poder
da violência não reside apenas nas suas intenções práticas, mas também nas
simbólicas, que tornam-se uma maneira de dramatizar os conflitos (RONDELLI,
2000).
Quando, por exemplo, a mídia expõe imagens de violência contra pobres,
favelados, negros e outras minorias, geram-se debates cotidianos que vão além do
interesse dela, o que convoca outros atores sociais a se pronunciarem
voluntariamente ou por causa de suas funções e responsabilidades, tecendo uma
cadeia de sentidos sociais deflagrados por esta violência, que assim, se faz
linguagem (RONDELLI, 2000; ZALUAR, 1999).
Observamos como as redes sociais, que têm no seu cerne o intuito de
conectar pessoas, ampliar conhecimentos e contatos (CASTELLS, 2003), são
também cenário da partilha do absurdo, do trágico, da expectação, do assistir e do
executar da tortura, por vezes simbólica, de si e do outro. Considerando isso,
pretendemos trazer o conceito de suplício aplicado aos rituais punitivos, em uma
análise contemporânea de suas manifestações, tendo como território de estudos o
ciberespaço, através de uma etnografia em uma rede social.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Haja vista a complexidade, não só dos fenômenos aqui trazidos para análise,
mas também das terminologias e conceitos expostos, faz-se necessário esclarecer
ao leitor, no intuito de explicar, articular e dialogar com os autores, os temas que
iremos utilizar ao longo deste estudo.

2.1 Suplício

“Que é um suplício? Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia


Jaucourt]; e acrescentava: é um fenômeno inexplicável à extensão da imaginação
dos homens para a barbárie e a crueldade” (FOUCAULT, 1987, p.31). Ainda sobre
suplício, o autor postula que “a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento,
subdividindo-a em ‘mil mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência, the most
exquisite agonies" (FOUCAULT, 1987, p.36).
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Para caracterizar-se como suplício, deve-se estabelecer alguns critérios.


Primeiramente, produzir certa quantidade de sofrimento que se possa apreciar,
comparar e hierarquizar, ou seja, o suplício deve fazer parte de um ritual. Por
conseguinte, entendendo-o como um elemento na liturgia punitiva, em relação à
vítima, deve ser marcante, tornando infame aquele que é a vítima pela justiça que o
sentencia. Por último, o suplício deve ser ostentoso, onde deve ser constatado por
todos, seu triunfo (FOUCAULT, 1987).
Apesar da diminuição dos suplícios por volta de 1840, e embora os
mecanismos punitivos tenham adotado novo funcionamento, isso não resultou no fim
das formas supliciantes de punição, dado que até meados do século XIX o poder
sobre o corpo ainda existia. O que ocorreu, como aponta Foucault (1987), foi a
mudança da pena corporal atroz para um ritual organizado ou melhor
regulamentado, que concerne ao campo penal. O suplício penal, por sua vez, é uma
produção diferenciada de sofrimentos, pois se apresenta como um ritual organizado
para marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune (FOUCAULT,
1987). Assim, “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual
político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se
manifesta o poder” (FOUCAULT, 1987, p. 41).
O suplício é um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um
instante, “ele a restaura, manifestando-a em todo o seu brilho” (FOUCAULT, 1987,
p.67). A execução pública, por mais rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a
série dos grandes rituais do poder obscuro e restaurado, acima do crime que
desprezou o soberano, ela exibe uma força invencível. A finalidade da execução é a
de demonstrar o desequilíbrio, deve haver nessa liturgia da pena, a afirmação do
poder e sua superioridade intrínseca (FOUCAULT, 1987).
Coincide ressaltar também que, nesse espectro de suplício, são intrínsecas
as relações de poder que emergem do contexto punitivo. Nota-se uma forma de
poder e domínio vinculado a certa crença de superioridade do sujeito que pune. Esta
noção se apresenta não no sentido de reforçar uma "hierarquia social" severamente
delineada, como nas sociedades de castas, por exemplo, mas em forma de discurso
de alguém que acredita piamente ser detentor do poder, alguém que se considera
ético e moralmente superior a ponto de impor e fazer valer a sua justiça. Evento este
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que frequentemente observamos nos espaços de convívio virtual e que se manifesta


como parte fundante dos rituais punitivos (DUMONT, 1992).
Considerando isto, um dos objetivos desta análise é evidenciar as novas
formas e arranjos do suplício, um suplício moderno, sofisticado, que não se contenta
com a morte do desviante. Suplício este que surge por meio dos rituais punitivos no
ciberespaço, a fim de, não apenas punir, mas infringir sofrimento ao outro a ponto de
condenar o corpo e torturar a alma (FOUCAULT, 1987).

2.2 Rituais Punitivos

Para compreendermos os rituais punitivos, adentraremos inicialmente nos


escritos de Foucault (1987), onde este traz que as mudanças relacionadas ao
afrouxamento da severidade penal no decorrer do tempo foram vistas como
suavidade das penas e respeito à humanidade. No entanto, nota-se que, na
verdade, o que ocorreu foi o deslocamento do objeto da ação punitiva, não mais se
punia o corpo, mas sim a alma, as penas não eram apenas para sancionar a
infração, mas também controlar o indivíduo, neutralizar sua periculosidade e
modificar suas disposições criminosas.
Conforme pontua Foucault:

Trata-se de recolocar as técnicas punitivas — quer elas se apossem do


corpo no ritual dos suplícios, quer se dirijam à alma — na história desse
corpo político. Considerar as práticas penais mais como um capítulo da
anatomia política, do que uma consequência das teorias jurídicas
(FOUCAULT, 1987, p. 32).

Isto denota que, a partir do momento em que se deixa para as pessoas que
não são juízes da infração, a decisão sobre se o condenado merece ser posto em
liberdade condicional, por exemplo, elas se tornam “juízes anexos” e a pena se
amplia para além das instâncias jurídicas. Os elementos extrajurídicos anexados
não têm o intuito de serem qualificados juridicamente, mas sim de retirar a culpa do
juiz de ser aquele que castiga (FOUCAULT, 1987). Do mesmo modo, quando
expostas nas redes sociais, as notícias deixam de pertencer somente ao veículo que
publicou e passam a ser de todos aqueles que opinam, julgam e tecem comentários
relacionados a elas (RONDELLI, 2000).
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Na sociedade contemporânea é cada vez mais comum serem produzidas e


circuladas imagens que retratam cenas de violência. Tais imagens de violência
estão no topo das mais vistas e pesquisadas na internet, caracterizando um
movimento simultâneo de atração, estranhamento e repulsa (LAGO, 2015). A
violência simbólica midiatizada é mais exacerbada e espetacularizada para que se
tenha grande entretenimento domiciliar, já que consequentemente essa
exacerbação é mais valorizada (BOURDIEU, 1989; DA SILVA QUADROS, 2001).
Dentro dos rituais punitivos, é pertinente destacar que o sacrifício aparece
como demonstração de poder nas relações. Girard (1990) apresenta a categoria
sacrifício como uma das multifacetas da violência enquanto fenômeno social e ritual,
presente nos mais diferentes contextos onde se dão as práticas e vivências
humanas, salientando que a violência pode ser sempre representada em termos de
sacrifício.
A sociedade penitenciária que podemos observar e na qual vivemos, revela-
nos que o sistema penal moderno não é uma reminiscência psicologicamente
sublimada do passado de torturas e das confissões judiciais em vias de extinção,
como de certa maneira Foucault terá pressuposto quando começa o célebre Vigiar e
Punir (DORES, 2004 grifo nosso). O que viemos observando nos arranjos sociais no
ciberespaço por exemplo, denota uma realidade claramente oposta às proposições
de Foucault.
Os rituais punitivos supliciantes são fenômenos que ainda encontramos na
atualidade. O suplício como ritual que se pensou ter abandonado na idade média,
permaneceu latente, senão velado, durante o período que antecede a era digital.
Com o avanço do ciberespaço, os mecanismos supliciantes voltam à tona em
holofotes, ocupando espaços inimagináveis na cultura on e off-line, ainda indefinidos
em alcance e magnitude e apresentando-se como vasto território a ser desbravado
pelas e para as ciências.

2.3 Ciberespaço

Sobre o ciberespaço, Lévy (1999) introduz que:

A palavra "ciberespaço" foi inventada em 1984 por Wiliam Gibson em seu


romance de ficção científica Neuromante. No livro, esse termo designa o
universo das redes digitais, descrito como campo de batalha entre as
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multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e


cultural. [...] O ciberespaço de Gibson torna sensível a geografia móvel da
informação, normalmente invisível. O termo foi imediatamente retomado
pelos usuários e criadores de redes digitais. (LÉVY, 1999, p. 92).

Inegavelmente, o século XX inovou de forma surpreendente em relação à


acessibilidade à informação. Todavia, paralelo ao desenvolvimento das novas
tecnologias, tendo seu ápice no ciberespaço, a violência simbólica amplia-se para
níveis assustadores. Uma vez que não se pode controlar o conteúdo veiculado nas
redes sociais e demais mídias, as crianças, por exemplo, que têm acesso facilitado a
este meio, podem ser colocadas em contato com vários graus de perversidade
humana, dentre eles o suplício, num misto de violência explícita, física, e a violência
simbólica, que ultrapassa os limites do corpo e marca o íntimo, tanto de quem
observa quando de quem sofre (BOURDIEU 1989, DA SILVA QUADROS, 2001).
Etnólogos e antropólogos relatam que já nas sociedades primitivas a violência
era componente básico da vida social e ao mesmo tempo “disjuntivo, irruptivo,
caótico e profano, tanto quanto agregador, permanente, ordenador e sagrado” (DE
CARVALHO, 2010, p.315). Considerando isso, o ciberespaço culmina no espaço
mais livre para experimentação de barbárie, “do grotesco e do bizarro midiatizado,
justamente pelo seu caráter desregulamentador, onde os sujeitos experimentam
certa impunidade.” (DA SILVA QUADROS, 2001, p.55). Além disso o sujeito é
tomado pela falsa impressão de “invisibilidade” mesmo frente à total exposição e
visibilidade concernente ao modelo panóptico pós moderno (BAUMAN, 2013).
No que diz respeito à disseminação da violência como entretenimento, há
falta de discussão no Brasil a respeito da influência dos programas de conteúdo
violento sobre os telespectadores, e há pouca pesquisa principalmente relacionada à
desvendar os efeitos psicológicos da veiculação da violência pela mídia (RONDELLI,
2000). As causas políticas da violência também não são discutidas, pois diferente de
alguns países europeus, aqui os criminosos não lutam por um ideal político, étnico
ou religioso e nem possuem um discurso articulado sobre suas ações, táticas e
objetivos. Assim, “o que se assiste é uma dissolução do tecido social tão notória
que, para explicá-la, se é tentado a resvalar pelo tradicional conceito de anomia, tão
caro à sociologia durkheimiana” (DORES, 2004).
Entretanto, a anomia de Durkheim não é suficiente para fornecer subsídio aos
complexos dispositivos da violência e seus rituais, como aponta Arendt (1994) a
violência tem papel fundante na sociedade, que transcende seu viés antagônico à
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ordem, a lei e ao sentido, sendo, mesmo que sem pretensão, uma forma política.
Pactuando com isto, Georg Simmel (1983) pontua a relevância sociológica do
conflito, reconhecendo que tal fenômeno passa a produzir ou modificar grupos de
interesse, uniões e organizações, de tal forma, o conflito surgiria então como uma
tentativa de resolução de dualismos divergentes, a fim de se conseguir uma
unidade.
Pelo princípio do desvirtuamento do sentido de livre expressão da imprensa
e da mídia em geral, constata-se uma banalização recorrente nos conteúdos
programáticos dos meios de comunicação regularmente instituídos, de acentuada
exacerbação no incentivo ao desrespeito à ética e à cidadania dos indivíduos. Não
são raros os programas sensacionalistas na mídia televisiva que exploram a vida
deteriorada dos excluídos, para infundir um senso falso de resgate de sua cidadania
(DA SILVA QUADROS, 2001).
Por eles, chora-se, lastima-se, sensibiliza-se e, ao mesmo tempo,
reverencia-se, odeia-se, lincha-se, ora exaltando-se, ora apedrejando-se. Os
sentimentos se alteram, porque o julgamento é um jogo de encenação bombástica e
assim se imprime largamente o desrespeito, para depois resgatá-lo
homeopaticamente, se houver tempo suficiente no horário programado (DA SILVA
QUADROS, 2001).
Segundo Lago (2015) sobre a questão da violência, pôde-se observar sua
inserção na sociedade contemporânea, partindo de uma relação aparentemente
contraditória entre movimentos de atração e repulsão. Tal disparidade é percebida,
de forma mais clara, por meio do enfrentamento de imagens de violência física.
Um exemplo destes movimentos de atração e repulsão, denotando as
contrariedades nos sentidos produzidos sobre as violências e das confusões entre o
real e o simbólico (ou do campo das ideias) é a experiência que relata Richard
Sennett no capítulo de introdução: “O Corpo Passivo” em seu livro Carne e Pedra
de 1994:
Anos atrás na companhia de um amigo, fui assistir a um filme, num cinema
de shopping suburbano, em Nova York. Na guerra do Vietnã, ele fora
atingido por uma bala e sua mão esquerda sofreu amputação; os cirurgiões
militares cortaram-na logo acima do pulso. Ele passou a usar uma prótese
mecânica, com dedos de metal, o que lhe permitia segurar talheres e bater
máquina. O filme era um sangrento épico de guerra, e durante a sessão
meu amigo permaneceu impassível, fazendo ocasionais comentários
técnicos. [...] O público acabara de enfrentar duas horas vendo corpos
dilacerados, aplaudindo com o maior entusiasmo os lances mais violentos e
a carnificina. Passando por nós, as pessoas se detinham, perturbadas com
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a prótese de metal, e se afastavam rapidamente. Logo, éramos uma ilha no


meio delas (SENNETT, 1994, p. 16).

O autor traz que a reação dos passantes à mão metálica de seu amigo
evidencia a questão de que falsas experiências de violência insensibilizam o público
ante a verdadeira dor. O autor cita também um estudo feito pelos psicólogos Robert
Kubey e Mihaly Csikszentmihalyi (1990), onde concluem que a televisão é passiva e
relaxante, exigindo pouca concentração, destacam ainda que o “grande consumo de
dor ou sexo simulados servem para anestesiar a consciência do corpo” (SENNETT,
1994, p.17). Ele afirma ainda que através dos meios de comunicação
experimentamos nosso corpo de forma mais passiva do que as pessoas que temiam
suas próprias sensações. O autor questiona, “Então, o que devolverá o corpo aos
sentidos? [...] O que poderá tornar as pessoas mais conscientes umas das outras,
mais capacitadas a expressar fisicamente seus afetos?” (SENNETT, 1994, p. 17).
Gostaríamos como provocação, de trazer alguns questionamentos
mobilizadores deste estudo: Pode-se dizer que sofremos com os resquícios do
prazer em assistir a barbárie? De desejar a barbárie? Seria isso vinculado a um
senso de justiça, sadismo ou vingança? Ou que sequer tais desejos saíram de nós,
ou adormeceram, mas sim se tornaram mais “sofisticados” e velados dissolvidos na
tecnologia? Essas foram algumas das indagações que buscamos discutir neste
estudo, por meio de uma microanálise etnográfica de rituais punitivos no
ciberespaço.

3. METODOLOGIA

Tendo em vista a natureza qualitativa e exploratória da proposta que constitui


este estudo, a metodologia escolhida foi a etnografia que, conforme pontua Mattos
(2001), é uma abordagem de investigação científica cujo cerne se sustenta em três
premissas fundamentais: a) a de pautar-se em uma análise holística ou dialética da
cultura; b) compreender os sujeitos como atores sociais cuja participação é ativa,
dinâmica e modificadora das estruturas sociais; c) bem como preocupar-se em
evidenciar as relações e interações significativas entre as pessoas, possibilitando
espaços para a reflexividade sobre a ação de pesquisar.
Ainda conforme Mattos (2001), visto que nosso enfoque circunda apenas um
aspecto da cibercultura dentre vários que surgem no ciberespaço, este estudo
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adota uma caráter de microanálise etnográfica. A microanálise etnográfica, é um


instrumento da etnografia, frequentemente utilizado nos estudos da linguagem, por
exemplo, e pode ser caracterizada como: sociolinguística da comunicação,
microanálise sociolinguística, sociolinguística interacional, análise de contexto,
análise de discurso, análise da conversação. Considerada micro porque estuda-se
particularmente um evento ou parte dele, ao mesmo tempo em que se dá ênfase ao
estudo das relações sociais no grupo como um todo, holisticamente, formulando
reflexões e hipóteses.
Entendendo que o enfoque desta análise se dá na identificação das formas
de manifestações punitivas, que se configuram em um ritual através dos discursos
dos sujeitos, o método etnográfico é facilitador deste processo, pois parte do
pressuposto de que é preciso entender o quadro referencial pelo qual os sujeitos
interpretam pensamentos, sentimentos e ações, analisando as perspectivas desses
sujeitos e valorizando o processo, não necessariamente os resultados (MATTOS,
2001).
Para Geertz, praticar etnografia não é somente estabelecer relações,
selecionar informantes transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,
manter um diário "o que define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um
risco elaborado para uma ‘descrição densa’" (GEERTZ, 1978, p. 15, grifo do autor).
Geertz ainda afirma que “acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e que cultura são “essas
teias e a sua análise”, não podendo, portanto, ser entendida como “uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado” (GEERTZ, 1978, p. 14).
A primeira parte do processo etnográfico consiste na imersão do pesquisador
no campo, neste caso, o ciberespaço, realizando um árduo movimento de
observação. Em seguida, após este intensivo trabalho de observação, o desafio do
pesquisador ou da pesquisadora é tentar organizar todos os dados como num
quebra-cabeça. Partindo do contexto maior, olhando a comunidade como um todo
até poder destacar uma particularidade generalizável deste contexto que possa ser
estudada micro analiticamente (MATTOS, 2001).
No âmbito desta pesquisa, nos inserimos no ciberespaço a fim de observar as
facetas do ritual punitivo e das manifestações supliciantes e nos deparamos com
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notícias e seus respectivos comentários. Nos baseamos em duas notícias que


inicialmente se contrapõem: uma sobre uma mãe cuja filha foi assassinada
brutalmente e que, mesmo frente esta realidade, ela lutou por quatro anos para
poupar o assassino da filha da pena de morte e outra, que diz respeito às pessoas
que se voluntariam para assistir a execução dos sujeitos condenados à morte.
A partir disto, fez-se uma profunda e longa leitura dos milhares de
comentários pertencentes às notícias, e ao todo foram selecionadas nove falas
compartilhadas no domínio público. A seleção destes comentários ocorreu a partir
de alguns critérios pré-estabelecidos a fim de facilitar o processo de triagem e
escolha. Tais critérios foram: 1) Estar coerente com a notícia, não apresentando a
interferência de assuntos desconexos ou descontextualizados; 2) Apresentar uma
opinião emblemática a respeito do tema, deixando claro um posicionamento diante
do exposto e; 3) Apresentar conteúdos de caráter punitivo e/ou supliciante. Todos os
comentários obrigatoriamente passaram pelo crivo dos três critérios, entretanto,
alguns suscitaram outras problemáticas, o que necessitou maior aprofundamento
teórico e enriqueceu a análise.
Frente isso, como assinala Polivanov (2014) a ideia de se analisar e entender
as práticas e atores sociais não apenas segundo sua dimensão simbólica, mas
também sua dimensão material merece espaço e especial atenção, uma vez que
são ainda poucas as pesquisas que abarcam uma discussão sobre as
materialidades da comunicação.
Importante assinalar que nossa inserção em campo deu-se através do que
Fragoso, Recuero e Amaral (2011 apud POLIVANOV, 2014) denominam
pesquisador silencioso (lurker). De tal modo, o pesquisador silencioso seria aquele
que apenas observa determinado grupo social em seu contexto, objetivando
interferir o mínimo possível em suas práticas cotidianas. Para Braga (2006 apud
POLIVANOV, 2014) trata-se de uma prática denominada lurking, que em inglês
significa “ficar à espreita”, prática esta que seria inerente ao ciberespaço e por meio
dela o ator não se manifesta, apenas dedicando-se à observação do comportamento
do outro. E assim o fizemos.
Em última instância, reuniu-se o material coletado a fim de articular o discurso
exposto com teóricos e teorias capazes de dar sentido às manifestações, clamores e
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anseios supliciantes, bem como, formular hipóteses e reflexões acerca dos objetos
desta análise.

4. ANÁLISE DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO

Reforça-se que neste artigo se empreendeu principiar discussões acerca das


múltiplas interações no ciberespaço através de uma microanálise etnográfica,
focando os rituais punitivos. Assim, objetivou-se a análise do discurso apresentado,
delimitada quanto à profundidade do acesso a seus atores e significados, mas não
limitada por isso, desvelando significantes acerca da violência e dos rituais punitivos.
As publicações e seus respectivos comentários abaixo expostos, são materiais
retirados de uma página de notícias de uma rede social 1
, que cobre eventos nacionais e internacionais e comumente convida o leitor a
problematizar aspectos da realidade por meio das informações compartilhadas. A
seguir, duas dessas notícias, selecionadas a partir do caráter supliciante de seus
comentários, estão dispostas ao leitor acompanhadas de suas respectivas análises.

4.1 “A mãe que lutou por 4 anos para salvar o assassino da filha do corredor
da morte”

“Ela foi esperta...(e ainda que ela não tenha pensado nisso pq ela tem a
alma nobre) a morte seria um consolo para esse miserável. Agora vai ter
que ficar a vida toda trancado, vendo o sol nascer quadrado até a hora de
morrer. Vai ver a vida passar, sua juventude, e aos poucos será engolido
pelo sistema até ser esquecido. Vai sofrer mais do que se fosse executado.”
(sic)

O comentário evidencia o clamor pelo suplício. O sujeito entende a pena de


morte não como uma punição, mas como um alívio para quem cometeu o crime e
por isso considera a prisão uma punição melhor, pois punirá o corpo do sujeito. Na
realidade, a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas
medidas de sofrimento físico, onde permanece um fundo supliciante nos modernos
mecanismos de justiça, que não está totalmente sob controle, mas envolvido cada
vez mais, numa penalidade incorporal (FOUCAULT, 1987).

1 Para fins éticos e de sigilo, omitiu-se os dados referentes à identificação da página de notícias, da
rede social utilizada e a identidade dos autores dos comentários analisados, garantindo seu
anonimato.
14

Além disso, o sujeito deste comentário apresenta um discurso não somente


carregado de resquícios supliciantes, mas que suscita outro elemento que adentra
nossa análise, o de “superioridade ético/moral”. O poder vinculado à noção de
superioridade, no sujeito que pune, se apresenta não no sentido direto de uma
"hierarquia social" como nas sociedades de castas por exemplo, mas de alguém que
se considera ético e moralmente superior, que se coloca no direito de impor e fazer
valer sua justiça, a qualquer custo (DUMONT, 1992; FOUCAULT, 1987, grifo nosso).
Parece existir um anseio do ser humano direcionado a resgatar um caráter
puro, moral e justo, uma necessidade de, mesmo que por meio do profano,
“reconectar-se” com o sagrado. Há uma angústia por fazer justiça e mostrar um
caráter moral desejável, de provar-se e provar ao outro, ou ao “Absoluto” (FRANKL,
2013; GIRARD, 1990).

“Já pensaram se todo mundo que sofresse, tivesse uma vida difícil na
infância saísse matando por que é vítima do sistema? Mas é melhor ele
vivo, pois preso será muito mais punido do que morto.” (sic)

O comentário acima parte da ideia de que a punição ao corpo não só é


desejada como é necessária, visto que a morte é compreendida como pena
insuficiente - menos dolorosa - em relação às mazelas da prisão. Partindo deste
princípio, a prisão se torna o mecanismo supliciante de punição “perfeito”: pois pune
a alma e ceifa a liberdade do corpo (FOUCAULT, 1987). Os corpos no ciberespaço
estão expostos, “aquilo que antes era invisível, a cota da intimidade, a vida interior
de cada um, agora deve ser obrigatoriamente exposto no palco público (...) a nudez
física, social e psicológica está na ordem do dia.” (BAUMAN, 2013, p. 35)
A narrativa do sujeito traz a importância da representação visual da qual o
ciberespaço é mecanismo, as representações estão vinculadas aos discursos, aos
sistemas de linguagem e comunicação que utilizamos para dar significado às nossas
práticas e ao que nos rodeia (CAMPOS, 2010).
O sujeito no ciberespaço experiencia uma multiplicidade de eus, uma
sucessão de eus provisórios que torna-se uma autorização para a experimentação
de possíveis, essas vivências geram confusões entre o real e o virtual, pois mesmo
sendo uma simulação, o ciberespaço propicia um sentimento de realidade, já que as
percepções são sentidas e se apresentam como uma outra dimensão do real, sendo
mobilizador de afetos poderosos (LE BRETON, 2003 apud OLIVEIRA, 2014).
15

“A justiça tem q ser feita não só pra filha dela, mas pra proteger toda a
sociedade, é uma ação incondicionada do Estado pra proteger os cidadãos
dos bandidos. Problema dela se ela perdoou, a justiça tem q cumprir seu
papel pro bem de todos e pra servir de exemplo.” (sic)

O sujeito justifica sua opinião afirmando que a punição é necessária para o


bem da sociedade e para ser exemplo, pois quando a justiça se concretiza é
demonstrando aos outros as consequências (punições) que ocorrem com quem
descumpre as leis. A condenação e execução daquele que cometeu o desvio seria
então um mecanismo supliciante, uma maneira de demonstrar o poder da lei.
(FOUCAULT, 1987)
A aclamação pela utilização de mecanismos supliciantes para aqueles que
decumprem as leis, são apontadas como forma de proteger a sociedade, os ditos
“sujeitos de bem”. O sujeito, ao se manifestar a favor de tais mecanismos, considera
sua superioridade ético/moral como fator que legitima esta opinião. Como fica
evidenciado no comentário também extraído das publicações: “Por isso a pena tem
q ser em dobro, perpétua por proteção à sociedade, pena de morte por justiça,
tortura como punição e venda de órgãos para ressarcimento dos custos de
operação” (sic). No desenvolvimento histórico das penas, observou que as punições
mais grotescas e, também, as mais brandas foram evocadas sempre em nome da
necessidade de punir para se realizar um bem aparentemente maior, visando o fim e
desatentos aos meios (DUARTE, 2009).
“Matéria porca repugnante a vítima passa a ser o criminoso.” (sic)

O comentário relacionado à notícia também denota o papel da mídia e da


proximidade com o público, principalmente quando vinculada às redes sociais onde
a resposta do público ao que foi noticiado é instantânea. A mídia em relação à
violência passa a ser ator social, pois expõe para além dos limites de onde
efetivamente aconteceu, seleciona, edita, classifica e opina sobre, não somente
atribuindo sentido aos atos de violência, mas testemunhando e levando a outros
atores sociais. Os sentidos produzidos pela mídia orientam as práticas sociais,
políticas e culturais, as violências e suas imagens têm o poder de convocar sujeitos
em direção a alguma ação social (RONDELLI, 2000).
Neste sentido, Lago (2015, p. 52) traz que “os espaços são conceitos
identitários do contexto social no qual estão inseridos”, assim sendo, o espaço
cibernético possui uma linguagem própria e um caráter não integrado que se
16

constrói por meio do cruzamento de milhões de computadores, diálogos e também


de identidades. Dessa forma, quando expostas nas redes sociais, as notícias deixam
de pertencer somente ao veículo que publicou e passam a ser de todos aqueles que
opinam, julgam e tecem comentários relacionados a elas.
Importante trazer à cena que imagens expostas na mídia vão além do
voyeurismo popular, elas são de interesse por exporem publicamente para opinião,
reflexão e julgamento um certo caráter sociocultural das nossas práticas violentas,
política e ideologicamente fundadas, é através destas imagens expostas pela mídia
que tornam-se visíveis os conflitos sociais e apontam a desigualdade brutal,
estrutural que de tão comum no país é naturalizada (RONDELLI, 2000).

4.2 “Os americanos que se voluntariam para assistir a execuções de


condenados à morte”

“Se for para pessoas que praticaram crimes bárbaros, que a morte é pouco.
Eu levaria a pipoca e se fosse possível em 3D levaria os óculos, por que
quem é condenado a uma coisa dessa essa é a solução para sentir na pele,
o Brasil precisava desse método a anos.” (sic)

O que nos parece é que há uma espécie de “voyeurismo sádico” 2 que se


replica na atualidade, por vezes aparenta estar mais refinado, e horas também
primitivo, como se participar ou assistir a barbárie ou o mal alheio, suscitasse no ser
humano sentimentos de empatia, desprazer e prazer advindos dos cantos mais
recônditos do seu âmago. Como se tal movimento de ser “expectador da violência” e
da punição, executor da “justiça”, fosse necessário e desejado com veemência pelos
olhos ávidos por esta “justiça”. Nota-se que existe um desejo pela pena que infringe
o corpo, onde a privação da liberdade não é suficiente para suprir a sede de “justiça”
do público. Assim, a pena corporal é evocada como um mecanismo que confere
seriedade ao ritual, legitimidade à justiça, e replica um anseio medieval já apontado
por Foucault quando diz que “qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma
coisa do suplício." (FOUCAULT, 1987, p. 31, grifo nosso).

2 “Vouyerismo Sádico” é uma expressão cunhada por nós, com base na união dos dois termos.
Voyeurismo é uma prática que consiste num indivíduo conseguir obter prazer sexual através da
observação de outras pessoas. Observar no sentido de espiar indivíduos, geralmente estranhos, sem
suspeitar que estão sendo observados, que estão nus, a se despirem ou em atividade sexual. Neste
estudo tal termo é trazido junto ao “sadismo” a fim de explicitar o ato de observar a violência com tons de
prazer, de voltar-se ao estranho, que na internet, está desnudo e a mercê dos olhares do outro.
17

O comentário também envolve o desejo de soluções para situações de


violência, onde o sujeito acredita que “devolver na mesma moeda” seja a melhor
maneira de resolver estas questões, retomando a lógica da Lei de Talião, conhecida
pela máxima “olho por olho, dente por dente”. No entanto, mesmo que a princípio
isso cause estranheza ao leitor, interessa salientar o que pontua Duarte:

“Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente como uma fórmula
cruel e bárbara que descreve melhor a vingança do que a necessidade de
se punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que
essa máxima é também baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e
a punição. Nesse sentido, o que a expressão “olho por olho, dente por
dente” nos revela, antes, a ideia da necessidade de se obter uma exata
medida entre a negação e a restituição da justiça” (DUARTE, 2009).

Reforça-se, dessa forma, o caráter contraditório da punição, ao mesmo tempo


que se nega sua forma supliciante, se anseia por ela travestida de justiça, justiça
essa que não é apenas desejada como necessária para manter certo nível de ordem
social (FOUCAULT, 1987).

“Se rolar aqui no Brasil, sou voluntário… Até empurro o êmbolo da seringa
da injeção letal, esmagaria o gatilho da execução no paredão, puxaria a
alavanca da cadeira elétrica ou chutaria o banquinho da forca.” (sic)

É ainda relevante salientar o que Foucault (1987) aponta ao debater sobre a


natureza humana, afirmando que a guerra não se dá por justiça, mas por poder. Não
se luta para ser justo, mas para ganhar. Sendo assim, um grupo social (ou mesmo
um indivíduo) utiliza a justiça como elemento discursivo para universalizar os
motivos de sua luta quando, na verdade, sua luta tem como único fim objetivo, a
vitória e porque não, a vingança (grifo nosso).
Não é raro este tipo de comentário aparecer nas redes sociais, o discurso do
sujeito assegura-se nessa noção de superioridade moral, de poder sobre o outro,
pois o sujeito está “do lado da justiça”, neste caso os mecanismos supliciantes são a
maneira de se fazer justiça, através destes mecanismos se faz valer a lei, recupera-
se a honra e se restabelece a ordem (FOUCAULT, 1987).
Além disso, o comentário elucida a categoria sacrifício como uma das formas
de demonstração de poder. O sacrifício surge como um dos desdobramentos da
violência enquanto fenômeno social e ritual presente nos mais diferentes contextos
onde se dão as práticas e vivências humanas. A violência neste sentido, pode ser
sempre representada em termos de sacrifício (GIRARD,1990).
18

Os rituais punitivos e o uso de sacrifícios estão intimamente relacionados à


necessidade da sociedade de se restabelecer e dar continuidade à vida entre pares,
assim, como aponta Girard "a morte do indivíduo isolado mostra-se vagamente
como um tributo a ser pago para que a vida coletiva possa continuar. Um único ser
morre e a solidariedade de todos os vivos é reforçada". Ainda segundo o autor, “é
como se a vítima expiatória morresse para que a comunidade ameaçada de morrer
toda com ela, renasça para a fecundidade de uma ordem cultural nova ou renovada”
(GIRARD, 1990, p. 319).
Os sacrifícios sempre existiram para a sociedade, e não puramente como
advento religioso, mas como importante parte da cultura de significados humanos,
tendo papel fundamental para a estruturação e compreensão de mecanismos sociais
(GIRARD, 1990; HUBERT; MAUSS, 1964).

“Eu assistiria com prazer, adoraria ver a justiça acontecer frente aos meus
olhos, não existe justiça divina meus caros, aqui se faz, aqui se paga. Vai
pro colo do diabo hahaha” (sic)

As notas de “voyeurismo sádico” reaparecem nesta fala, demonstrando o


desejo por ser expectador da justiça dos homens. Girard (1990) pondera que parece
cada vez mais claro que a pressão da violência ou ainda a insistência pela verdade,
das quais os homens se fazem portadores, têm forçado os sujeitos modernos a
conviver face a face com essa mesma violência e verdade. Diz que “pela primeira
vez de forma explícita e mesmo perfeitamente científica, o homem confronta-se com
a escolha entre a destruição e a renúncia total à violência” (GIRARD, 1990, p. 301).
O meio cibernético, espaço composto de sujeitos e de emergências de novas
sociabilidades, se apresenta como um facilitador de ações performáticas. Nessas
“performances virtuais”, o corpo ganha local de destaque, muitas vezes associado a
condutas ligadas à violência ou ao sexo (LAGO, 2015; TURNER, 2008). As opiniões
expostas nas rede sociais, tornam-se uma maneira de linguagem, de comunicação,
como forma de produzir sentido. Além disso, a violência não é vista apenas como
fenômeno de agressão física em si, mas também como ato de comunicação, como
uma das facetas pelas quais os conflitos se manifestam e se legitimam na realidade
dos sujeitos (RONDELLI, 2000). Corroborando com esta visão, Simmel (1983)
preconiza que seria extremamente superficial a concepção de que uma sociedade
apreciável seria resultado de forças positivas, sem ser obstruída por fatores
19

negativos, entendendo que a sociedade, tal qual conhecemos, é o resultado da


agência de forças negativas e positivas.

“Deve ser uma delicia ver um assassino morrendo desta maneira”. (sic)

Explicita-se o voyeurismo sádico, o sujeito delicia-se na ideia de assistir a


morte do outro, há vestígios do prazer na barbárie, reafirmando novamente nossa
proposição. Este comentário deixa evidente uma combinação bastante complexa:
prazer diante do sofrimento alheio e o morrer como único caminho possível para que
a justiça seja consolidada, caracterizando significativamente um anseio supliciante.
Para além disso, a autora Diógenes (1998) traz à tona a percepção de que
para alguns sujeitos, os mecanismos punitivos em rituais, servem como meio de
justiça e são justificados pela moral, apresentando-se como um dispositivo do "bem"
ou a favor “dos bons costumes”, isso ainda dentro de uma dicotomia já familiar e
saturada: “a luta entre o bem e o mal”. Ao analisar a visão de Girard (1990) sobre a
violência e o sagrado, Diógenes (1998) trata da inter-relação entre violência e o
sagrado, o que possibilita perceber que a violência exerce papel de destaque no
estabelecimento do equilíbrio da ordem social, o que contradiz a concepção acerca
de seu teor essencialmente destrutivo. Desse modo, a violência, em sua existência
virtual, apresenta-se amparada nas mitologias travestidas de uma luta entre o bem e
o mal.
Frente às divergências do papel e sentido da violência, fica explícito seu
caráter paradoxal. Deseja-se exterminá-la ao passo que a utilizam enquanto
ferramenta para estabelecer a ordem. Nesse sentido, ela não tem por finalidade ser
boa ou ruim, porém nada mais é do que ferramenta e produto das interações
humanas, tomando sabor desejável ou desprezível de acordo com seu objetivo. A
violência em si não guarda intrinsecamente a bondade ou a maldade, seus sentidos
são estabelecidos e produzidos por quem a utiliza e no contexto em que este ator se
insere (ARENDT, 1994; DIÓGENES, 1998).
A violência não é um estigma da sociedade contemporânea, ela atravessa o
homem desde tempos imemoriais, e em cada época ela se manifesta de formas e
em cenários diferentes. Há sempre uma ação ou situação violenta identificável,
todavia conceituar violência não é tarefa fácil tendo em vista que a ação motivadora
20

ou sentimento relativo à violência podem ter diferentes significados, dependendo da


cultura, momento e condições nas quais ela ocorre (ALMEIDA, 2010).
A filósofa alemã Hannah Arendt acerca da violência atenta que:

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode


permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou
nos negócios humanos, e, a primeira vista é surpreendente que a violência
tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial.
(ARENDT, 1994, p. 16).

Corroborando para a discussão, é relevante suscitar os escritos de Hannah


Arendt acerca do julgamento de Eichmann em Jerusalém (1999), título este de seu
livro cuja temática elucida a banalidade do mal frente aos acontecimentos no regime
nazista.
A filósofa, dentre as mais ricas reflexões, salienta a “perturbação dos homens
de nosso tempo pelas questões de juízo” e da sua capacidade de executar o mal em
nome da lei e de criar subterfúgios para eximir-se da responsabilidade de seus atos.
A autora cunhou o termo “banalidade do mal” após ponderar sobre os ocorridos no
julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém em 1963. Tenente-coronel da SS
(Schutzstaffel,organização paramilitar) durante o período da Alemanha nazista e um
dos principais organizadores do Holocausto, Eichmann foi designado para
administrar a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e
campos de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães na Europa de Leste
durante a Segunda Guerra Mundial.
Após o fim da guerra, fugiu para a Argentina, sendo procurado pela justiça
internacional acusado de quinze crimes, dentre eles crime contra o povo judeu,
crime contra a humanidade e crimes de guerra. Descoberto seu paradeiro, foi
sequestrado pela Mossad (Serviço secreto do Estado de Israel) e levado à
Jerusalém para julgamento por suas transgressões. Arendt (1999) atravessa o
caminho de Eichmann a medida em que foi incumbida da função de documentar seu
julgamento e tecer assim seus comentários a respeito do que viu.
O mais intrigante na obra de Arendt (1999), ponderado pela própria autora,
diz respeito à figura de Eichmann e seu comportamento: no lugar de um monstro
obstinado, por quem todos esperavam, vê-se um funcionário mediano, de ambição
medíocre, incapaz de refletir sobre suas ações sem refugiar-se nos clichês
21

burocráticos, dos quais utilizou para explicar seus atos e eximir-se da culpa,
depositando ao “Estado” e às “leis” a responsabilidade pelos ocorridos.
Não é possível precisar a quantidade de judeus enviados à morte (para os
campos) por Eichmann, mas estima-se, só na Hungria, mais de 500.000 pessoas.
Ainda sim, percebeu-se a todo momento em seu julgamento, inclusive pela defesa
do réu, um imenso esforço direcionado a relativizar suas condutas apoiando-se no
argumento de que o tenente-coronel havia jurado lealdade à Hitler e seu regime, que
vigorava como constituição na Alemanha Vermelha. Por via disso, não poderia ser
então julgado sobre as leis Judaicas, visto que de acordo com as leis que regiam
seu país no período de vigência do nazismo, não houvera crimes: a morte aos
judeus era a máxima da Lei (ARENDT, 1999).
A partir da observação da forma corriqueira, banalizada, tratada como mera
formalização de ordens superiores e obediência à lei com a qual o holocausto de
milhares de judeus foi tratada por Eichmann, Arendt cunhou o termo “banalidade do
mal”. Com banalidade do mal, a autora suscita a insensibilidade diante do mal,
questionando a todos nós: Até quando replicar-se-a um discurso de obediência,
dócil, que reforça a relação dominador e dominado e que se isenta das
responsabilidades pelos atos individuais e sociais? até que ponto nós estamos
sustentando padrões estéticos e comportamentos deploráveis simplesmente porque
não analisamos as repercussões dos nossos atos?
Frankl (2013), ao relatar sua própria experiência nos campos de
concentração, menciona diversas vezes a figura do kapo e seu papel de algoz
perante os prisioneiros. Mais do que isso, ele reforça que os kapos eram em sua
maioria “mais cruéis que a própria SS”, guarda de Hitler responsável, entre outras
tarefas, pelo monitoramento/castigo dos internos nos campos. Mas qual a distinção
do kapo para a SS? Os kapos eram homens selecionados entre os próprios
prisioneiros judeus, quando não incomum, eles mesmos se voluntariavam para tal
função, onde eram responsáveis por colaborar (e até intensificar) o martírio dos até
então, companheiros. Estudiosos como Zimbardo (2013) e Milgram (1974) cunharam
experimentos de grande representatividade neste aspecto, inquietos quanto aos
comportamentos humanos frente às relações de poder, buscando não só as raizes
bem como hipóteses acerca da lida humana frente às relações de dominação.
22

Isto nos provoca a refletir acerca das motivações desses sujeitos e além
disso, aplicado ao tema deste estudo, nos remete às noções de poder tão caras à
Foucault: empoderado pela crença de uma moralidade mais nobre, em posse de
poder ou “estando a serviço/ao lado da lei” o que seria o homem capaz de fazer?

“Eu também sou contra pena de morte, mas por outro motivo. O processo
de prisão até o corredor de morte é extremamente custoso para o Estado e
presos no corredor da morte ficam lá por 10, às vezes 20 anos inativos
esperando a sentença pra qualquer familiar de vítimas de crimes hediondos
matar o assassino é poupá-lo da real punição: a ausência de liberdade.
saber que um cara tá mofando pro resto da vida num quadrado de cimento
me dá mais paz. um ex-goleiro bruno sendo esquecido pela opinião pública
amargurado pela perda de tudo que poderia ter sido ainda é um castigo
maior do que um cara poupado de ser esmagado pelo próprio ego por uma
injeção letal. além disso, presos poderiam fazer trabalhos insalubres e
tornarem-se produtivos” (sic)

O comentário revela a percepção de justiça do sujeito, bem como sua visão


sobre o que significa punição, que ele expõe como ausência da liberdade. Os rituais
punitivos modernos retratam a privação da liberdade como punição, o corpo então,
passa a ser intermediário, tornando-se um instrumento de coerção e privação, de
obrigações e de interdições, visando um objetivo mais elevado (FOUCAULT, 1987).
Diversos técnicos vieram para substituir o carrasco: os guardas, os médicos,
os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores, todos estes têm a
finalidade de não permitir que haja a dor, deste modo, o sofrimento do condenado é
descrito como penalidade “incorpórea”, a redução dos suplícios para estes novos
modelos de penalidade e execução define uma nova moral do ato de punir
(FOUCAULT, 1987).
Quando o sujeito cita todos estes dispositivos justificando que a pena será
coerente ao que o condenado merece, pois conforme a descrição é mais justo aos
que sofreram com o crime, que o sentenciado perca a liberdade do que a pena de
morte, uma vez que não continuará lhe proporcionando sofrimento. Além disso,
outra perspectiva de justiça para ele o sujeito é de que não somente para as vítimas
(familiares das vítimas) aquele criminoso é custoso, mas também para a sociedade.
A violência é instrumental por natureza, como todos os meios, ela sempre
depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja (ARENDT, 1994, p. 40-
23

41). E não poderíamos deixar de citar Girard (1990) a respeito da violência na face
da vingança, ele afirma:

“A ideia de uma violência sem limites, por muito tempo ridicularizada e


desconhecida por sofisticados ocidentalistas, reapareceu sob uma forma
inesperada, no horizonte da modernidade. A vingança absoluta, outrora
prerrogativa divina, retorna agora, trazida pelas asas da ciência, exatamente
cifrada e medida” (GIRARD, 1990, p. 300).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De antemão, é necessário advertir ao leitor, que ansiava que ao findar desta


análise obteria uma resposta ou ao menos um parecer que resumisse de forma
sucinta o que aqui foi exposto, que não se chegou a uma única conclusão. Pelo
contrário, os fins são tão pretensiosos quanto os meios, e na verdade, beiram o
início. Com início, se pretende dizer que esta microanálise intui ser uma abertura,
mais que isso, a ponta do iceberg, inofensiva, mas que esconde a profundidade
capaz de causar rompantes em fortes estruturas. Sobre estruturas, cabe citar a
ruptura de dicotomias, de crenças, valores, práticas, paradigmas e o reconhecimento
dos paradoxos, dentro e fora da realidade virtual.
Como introduzimos neste estudo, as práticas punitivas e os rituais de
violência não são estranhos aos teóricos nem ao público, a grande novidade recai
então sobre os ombros da modernidade e seus arranjos tecnológicos em meio a
fugazes realidades on e offline, universos ainda pouco explorados diante de tantas
manifestações que dali emergem.
Notou-se também que o ciberespaço traz à tona e reforça à sociedade a
quebra da dualidade “bem e mal”, já que os sujeitos passam a ter acesso maior a
casos em que o criminoso ou aquele que merece punição pelos seus atos (segundo
a sociedade) nem sempre é a pessoa que já transgrediu a lei, ou que está na
margem, mas pessoas ditas de “bem”.
Outra dualidade que é rompida dentro do ciberespaço estaria relacionada ao
anseio por dispositivos supliciantes, já que para alguns a moral está vinculada à
“não desejar o mal” enquanto para outros está vinculado a “não defender o mal” (ou
quem praticou o “mal”), suscitando, assim como a violência, um caráter paradoxal e
relativo da moralidade.
24

Além do mais, os conteúdos expostos no ciberespaço caracterizam o sentido


que se produz ao decorrer dos “rituais punitivos”, já que quando estes sujeitos
argumentam usando falas supliciantes, todos eles estão convictos que é desta forma
que se legitima a justiça. Os processos de produção de sentidos requerem a
existência de vários interlocutores, cujas vozes se fazem presentes, desta forma, as
práticas discursivas são sempre atravessadas por várias vozes e sua rede de
significados (RONDELLI, 2000; SPINK, 2010)
As especulações sobre as práticas de violência são fundadas na incerteza e
no acaso, elas são essencialmente fragmentárias, tendo por característica visões
duais, compartimentalizadas e estigmatizantes e que não correspondem à complexa
realidade social (GOFFMAN, 1988; MORIN, 2003). Essa natureza dividida, que
pontua o imaginário da violência, não deixa de ser uma resistência à percepção da
mesma como uma ocorrência inata à vida social, articulada à sua obscura rede de
acontecimentos. Wuerges (2005), por exemplo, ressalta os mais diferentes tipos de
conflito como fatores de melhoria ou manutenção das relações sociais, afirmando
que os mesmos seriam produtores de laços capazes de consolidar as sociedades
democráticas modernas, conferindo-lhes a força e coesão necessárias à vida com o
outro.
Velho (2002) estabelece relações entre a subjetividade e sociabilidade e a
partir das reflexões de Simmel (1971) pondera que o desenvolvimento de culturas
subjetivas está associada a sociabilidade. Para Lago (2015) o meio cibernético
configura-se como espaço simbólico que se desenvolvem essas práticas, é
composto de sujeitos, e também é um espaço de emergências de novas
sociabilidades, assim sendo possível empreender análises relacionadas à questão
da construção e percepção da identidade dos indivíduos que nele circulam. Partindo
disso, evidencia-se também que o ciberespaço forja subjetividades e sociabilidades,
e por isso tem tanta relevância enquanto campo de estudo para as ciências
humanas, e em especial, à Psicologia.
Acreditamos ser fundamental salientar o papel deste estudo para a ciência
psicológica, compreendendo acima de tudo a complexidade e versatilidade da
atuação do profissional de psicologia, habitando os mais diversos contextos e por
dentro dos diferentes fenômenos humanos, cabe ressaltar que nosso objeto de
estudo nada mais é do que o fenômeno humano em um novo contexto. E é preciso
25

desbravar este contexto e os comportamentos e sentidos humanos que ali se


produzem.
Destaca-se ainda a importância de existirem estudos voltados para temática
de violência e ciberespaço, ante a constatação de que estudos e obras literárias
ainda “engatinham” frente aos modernos dispositivos cibernéticos, pois há poucos
estudo na esfera específica dos rituais punitivos no ciberespaço. O tema é relevante
para a atualidade e merece uma análise mais acurada, já que o espaço cibernético
apresenta-se como campo de convívio e ao mesmo tempo ferramenta cultural,
estabelecendo um papel de transformação, não só das visões sobre rituais punitivos
e da violência, mas enriquecedor para estudiosos das dinâmicas e processos
individuais e coletivos. É certo que, como aponta Lévy (1999), estamos na “infância
da cibercultura” e que as principais transformações sociais provocadas pela
tecnologia ainda estão por vir.

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26

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