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O Doente Imaginario

Enfermeira - Camila Lacerda


Argan - Guilherme
Nieta - Carol Marques
Angelica - Yasmin
Belinha - Marta
Cleanto - Rodrygo
Sra BoaMorte - Allesandra
Thomas BoaMorte - Yan
Beralda - Maycon
Dr Purgan - Giovanni
Reitor - Raphael Bittencourt

PRIMEIRO ATO
CENA I
Argan e Enfermeira (quarto de Argan)
ENFERMEIRA – Veja, seu Argan: Este mês, o Sr. Flores, seu tão estimado
farmacêutico, lhe cobrou quase 20 dólares por uma aspirina e uma pesagem. É um
roubo!
ARGAN – Ora, mas não posso culpar o Sr. Flores pelos remédios, pesagens, lavagens
e verificações de pressão caríssimos que me recomenda Dr. Purgan, meu médico de
confiança. É pro meu bem, já que estou muito doente. Veja: estou, hoje em dia, com
problemas nos meus intestinos, tenho um caso mal-resolvido com a minha bílis ruim,
além de estar com suspeitas de que eu posso pegar a gripe suína! Imagina, eu mais
doente que já estou!
ENFERMEIRA – Que está muito doente, não posso negar. Mas até que o Sr. Flores
poderia dar um desconto prum estimado cliente como o senhor, pois mês passado ele
lhe cobrou 31 por uma lavagem e uma dose de um simples calmante. Este mês, lhe
cobrou 40.
ARGAN – Mas veja, estamos passando por uma época de doenças e mais doenças. E
não quero ter a tal da gripe suína, que essa só de comentar me dá arrepios!
ENFERMEIRA – Sim, mas mês passado não passávamos por essa crise, e mesmo
assim, Sr. Flores cobrou 50 por um pequeno clister para umedecer, amolecer e
refrescar seus intestinos. E cobrou, no mesmo mês, 70 por um simples xarope
hepático. Isso que o senhor nem hepatite tem!
ARGAN – Como assim? Está querendo contrariar o Dr. Purgan? ENFERMEIRA – Não,
senhor... Só quis dizer que... O senhor... Apesar de doente... Anda gastando muito em
remédios...
ARGAN – Ora, mas como não gastar?! Faço tudo pela saúde perfeita. Vamos, continue
com os cálculos.
ENFERMEIRA – Muito bem, o senhor gastou 40, 50, 60... US$1.204,77 apenas no mês
passado. E até o dia 25 deste mês o senhor gastou US$1.300,68. Não é de se esperar
que esteja tão bem este mês.
ARGAN – Nisso, você tem razão. Este mês tomei 23 lavagens. Mês passado tomei
apenas 20. E já sinto que minha bílis ruim já saiu quase toda por completo. Agora, onde
está meu remédio?
ENFERMEIRA – Deve estar lá na cozinha. Vou buscar. (sai)
ARGAN – Você vai me deixar sozinho, é? Me deixou... Hunfs... Nieta!!! Venha cá,
cachorra, não me deixe sozinho! Nieta! Venha cá, cretina que estou sozinho!!! VENHA
CÁ NIETA, NÃO QUERO TER GRIPE SUÍNA, VENHA, SUA SUÍNA!

CENA II
(NIETA e ARGAN)
NIETA (Entrando no quarto) – Já vai.
ARGAN – Sua cachorra. Sua malandra!
NIETA (Fingindo ter batido a cabeça) – Puxa vida, que impaciência. O senhor apressa
tanto a gente que eu acabei batendo com a cabeça, com toda a força, na porta.
ARGAN – Traidora.
NIETA (Fica se lamentando para interrompê-lo e impedi-lo de gritar) – Ai...
ARGAN – Faz...
NIETA – Ai...
ARGAN – Faz uma hora...
NIETA – Ai.
ARGAN -... que você me deixou ...
NIETA – Ai!
ARGAN – Cale a boca, fingida, que eu estou te repreendendo.
NIETA – Ainda mais essa, depois de tudo o que me aconteceu.
ARGAN – Você me obrigou a gritar, cretina.
NIETA – E eu, por sua causa, quase quebro a cabeça. Estamos quites, então.
ARGAN – Sua bandida.
NIETA – Se continuar me xingando, eu vou chorar!
ARGAN – Cachorra. Você quer...
NIETA – Ai.
ARGAN – Será que eu não posso nem ter o prazer de brigar?
NIETA – Se o senhor tem prazer em brigar, eu tenho prazer em chorar. Cada um faz o
que gosta. Não há nada de mais. Ai.
ARGAN – Está bem. Desisto. Tire isto daqui, tire. (Ele se levanta da cadeira) Veja se
minha lavagem, de hoje, fez efeito.
NIETA – Sua lavagem?
ARGAN – É. Saiu a minha bílis?
NIETA – Ah, não, não tenho nada a ver com essa coisa. O Sr. Flores que meta o nariz
aí. Ele ganha pra isso.
ARGAN – Que mantenham a água fervendo para a próxima.
NIETA – Esse Sr. Flores e esse Sr. Purgan se divertem bem com o seu corpo. Para
eles, o senhor é uma vaca leiteira e eu adoraria perguntar a eles o motivo de tantos
remédios.
ARGAN – Fique quieta, ignorante. Não é você que vai controlar minhas receitas
médicas. Chame Angélica, quero falar com ela.
NIETA – Tudo bem.

CENA III
(Angélica e Nieta) - Quarto de Angélica
NIETA - Angélica. Seu pai quer falar com você...
ANGÉLICA (Olhando com ar lânguido, confidencia) – Nieta. Olhe para mim.
NIETA – Estou olhando.
ANGÉLICA – Nietinha.
NIETA – Nietinha, por quê?
ANGÉLICA – Não adivinha o que eu quero falar?
NIETA – Não tenho a menor dúvida: do namorado novo, pois há seis dias não falamos
de outro assunto. Você só fica feliz falando nele.
ANGÉLICA – É verdade. Preciso estar sempre abrindo o meu coração com você. Mas
me diga, você é contra o que eu sinto por ele?
NIETA – Imagine!
ANGÉLICA – Você não acha, como eu, que nós nos conhecermos foi uma coisa do
destino?
NIETA – Acho que sim.
ANGÉLICA – Você não acha que me defender, sem me conhecer, é coisa de homem
sério?
NIETA – Acho que sim.
ANGÉLICA – Que ninguém podia ser mais generoso?
NIETA – Acho que sim.
ANGÉLICA - E que ele fez tudo isto com a maior bondade do mundo?
NIETA – Acho que acho.
ANGÉLICA – Você não acha que ele é muito bonito?
NIETA – Acho que você acha.
ANGÉLICA – Que tem um jeitinho todo especial?
NIETA – Acho que você acha que eu acho.
ANGÉLICA – Que seus pensamentos e ações têm muito de nobres?
NIETA – Ele acha que você acha.
ANGÉLICA – Que não se pode ouvir nada de mais apaixonante do que o que ele me
diz?
NIETA – Eu acho que ele acha que nós achamos.
ANGÉLICA - Que não existe nada mais horrível do que as dificuldades que a gente
tem para se encontrar?
NIETA – Tem toda razão.
ANGÉLICA – Mas, Nietinha, você acha mesmo que ele me ama tanto quanto diz?
NIETA – Sei lá. Essas coisas são meio suspeitas. Os fingimentos do amor passam
sempre por incrivelmente verdadeiros e eu já vi grandes atores mostrarem isso.
ANGÉLICA – Não fale assim. Será possível que ele esteja mentindo?
NIETA – Em todo caso, logo você vai ficar sabendo se a resolução de casar com você,
conforme ele escreveu na carta ontem, é pra valer ou não.
ANGÉLICA – Se ele me enganou, nunca mais vou acreditar em nenhum homem.
NIETA – Também não é assim... Mas agora vai lá falar com seu pai.

CENA IV
Argan, Angélica e Nieta (quarto de Argan)
ARGAN (Sentando na cadeira) – Ouça a novidade que eu tenho para contar, minha
filha, Me pediram você em casamento. Mas o que é, por que você está rindo? A palavra
casamento é engraçada mesmo. Nem preciso, pelo que posso ver, perguntar se quer
ou não casar.
ANGÉLICA – Eu faço aquilo que meu pai mandar.
ARGAN – Estou satisfeito de ter uma filha tão obediente. A coisa está, então, acertada:
considere-se comprometida.
ANGÉLICA – Como o senhor quiser. Aceito sem discussão.
ARGAN – Sua madrasta sonhava que você e Luisinha fossem religiosas! Sempre
sonhou.
NIETA (Baixo) – A malandra tem suas razões.
ARGAN – Ela não queria nem mesmo consentir nesse casamento.Mas dei minha
palavra, está dada.
ANGÉLICA – Ah...papai, o senhor é tão bom.
NIETA – Meus cumprimentos, senhor, foi a coisa mais sensata que fez na vida.
ARGAN – Não conheço ainda o noivo, mas me disseram que eu ficaria contente e você
também.
ANGÉLICA- Garanto que sim, papai.
ARGAN – Como você o conhece?
ANGÉLICA – O seu consentimento me autoriza a ser franca e não hesito em contar
que, por acaso, eu o conheci, faz seis dias, e que o pedido de casamento é resultado
da atração que sentimos um pelo outro, à primeira vista.
ARGAN – Ninguém me disse nada, mas estou contente de que tudo tenha se
arranjado. Dizem que é um jovem bem apessoado.
ANGÉLICA – É, papai.
ARGAN – Elegante.
ANGÉLICA – Sem dúvida.
ARGAN - Simpático.
ANGÉLICA- Se é.
ARGAN- Uma boa figura.
ANGÉLICA – Muito boa.
ARGAN- Inteligente e bem nascido.
ANGÉLICA – De fato.
ARGAN – Honesto.
ANGÉLICA – O mais honesto do mundo.
ARGAN – Fala latim e grego.
ANGÉLICA – Comigo só falou francês.
ARGAN – Vai receber o diploma de médico em três dias.
ANGÉLICA – Ele, papai?
ARGAN - Não contou, não?
ANGÉLICA - Não. Quem disse isso para o senhor?
ARGAN – Dr. Purgan.
ANGÉLICA – E ele o conhece?
ARGAN- Que pergunta. Pois é seu sobrinho.
ANGÉLICA – Cleanto? O sobrinho do Dr. Purgan?
ARGAN- Que Cleanto? Estamos falando do jovem que pediu você em casamento.
ANGÉLICA – Mas claro.
ARGAN- Então... é o sobrinho do Dr. Purgan, filho de sua cunhada, a médica, a Sra.
BoaMorte. Ele se chama Tomás BoaMorte, e não Cleanto. Combinamos o casamento
hoje de manhã, o Dr. Purgan, O Sr. Flores e eu, e amanhã, meu futuro genro vem com
a mãe, aqui. O que há, ficou muda?
ANGÉLICA – Desculpe, meu pai, mas falávamos de pessoas diferentes.
NIETA- Pelo amor de Deus, Sr. Argan, com todo o dinheiro que tem, querer casar sua
filha com um médico?
ARGAN – Não se meta, sua atrevida. Sua besta ambulante.
NIETA- Calma. Não precisa xingar. A gente pode pensar juntos, sem gritar, de cabeça
fria. Qual é seu interesse nesse casamento, pode me dizer?
ARGAN – O meu interesse! Sendo eu tão doente quanto sou, quero ter um genro e
parentes médicos, para ser socorrido nas minhas crises, e ter sempre à mão consultas
e receitas.
NIETA – É tão fácil falar tranquilamente, está vendo? Mas, patrão, ponha a mão na
consciência: o senhor é mesmo doente?
ARGAN- Como? Sua cretina. Então não sabe que eu sou doente?
NIETA- Está bem, patrão, o senhor é doente e nós não vamos discutir por causa disso.
Mas sua filha quer um marido e como ela não está doente, não precisa de um médico.
ARGAN - O médico é para mim, o marido para ela e uma filha de bom coração deve
ficar contente de dar um bom marido a seu pai (corrige-se), de dar um bom pai ao seu
marido (corrige-se), de dar uma boa mulher a seu médico! De dar um marido útil à
saúde de seu pai!
NIETA – Sinceramente, patrão, quer um conselho de amiga?
ARGAN - Qual?
NIETA – Não acredite nesse casamento.
ARGAN- Por quê?
NIETA – Sua filha não vai aceitar.
ARGAN - Não vai aceitar?
NIETA – Não. Ela vai dizer que não tem nada a ver com a Sra. BoaMorte, nem com o
filho Tomás, nem com nenhum BoaMorte do mundo.
ARGAN – Acontece que eu estou interessado, ele é melhor partido do que pensa. A
Sra. BoaMorte só tem esse filho como herdeiro e o Dr. Purgan não tem mulher nem
filhos, e está disposto a dar todos os seus bens de presente de casamento. E o Dr.
Purgan é homem de excelente renda mensal. Fora a renda da própria Sra. BoaMorte.
NIETA – Tudo isso, patrão, é bom e bonito, mas repito, aqui para nós, escolha outro
marido para sua filha. Ela não foi feita para ser senhora BoaMorte.
ARGAN – Eu quero que ela seja.
NIETA – Não diga isso. Vão dizer que o senhor não sabe o que diz.
ARGAN – Digam o que quiserem, ela vai cumprir a palavra que eu dei.
NIETA – Juro que ela não vai.
ARGAN – Eu obrigo...
NIETA – Não adianta.
ARGAN – Eu a ponho num convento...
NIETA – Não vai nunca pôr sua filha num convento.
ARGAN – Tem graça. Não ponho minha filha num convento, se eu quiser?
NIETA – Não, repito.
ARGAN – Quem vai impedir?
NIETA – O senhor mesmo.
ARGAN – Eu?
NIETA – É. Não é tão ruim assim.
ARGAN – Vou ser.
NIETA – Não brinque.
ARGAN – Não estou brincando.
NIETA – O amor de pai vai impedir.
ARGAN – De maneira nenhuma.
NIETA – Uma ou duas lagriminhas, um abraço apertado, um “meu paizinho querido”
bem carinhoso é o suficiente para comovê-lo.
ARGAN – Nada me comove.
NIETA – Sei, sei.
ARGAN – Não vou mudar de idéia, já disse.
NIETA – Meu Deus, eu o conheço, senhor, sei que é bom.
ARGAN (gritando) – Eu não sou bom e posso ser péssimo quando quero.
NIETA – Calma, patrão, não se esqueça de que está doente.
ARGAN – Ela tem que se preparar para o marido que eu escolhi.
NIETA – E eu a proíbo de fazer isso.
ARGAN – Onde é que nós estamos! Uma sem-vergonha de uma empregada ter o
atrevimento de falar assim diante do patrão.
NIETA – Quando o patrão não sabe o que faz, uma empregada sensata tem o direito
de adverti-lo.
ARGAN (Aproximando-se de Nieta) – Sua insolente. Eu acabo com sua raça.
NIETA (se safando dele) – É meu dever ser contra coisas que possam desonrar o
patrão.
ARGAN (Colérico, corre atrás dela em volta da cadeira, bengala na mão) – Venha cá,
venha, que eu te ensino a falar.
NIETA (correndo e se esquivando) – Eu só quero que o patrão não faça loucuras.
ARGAN – Cachorra.
NIETA – Não vou permitir esse casamento.
ARGAN – Cretina.
NIETA – Eu não quero que ela case com esse Tomás BoaMorte. E ela vai obedecer
mais a mim do que ao senhor.
ARGAN – Angélica, pare essa safada para mim.
ANGÉLICA – Ah, papai, você pode até ficar pior.
ARGAN – Se você não a parar, eu a amaldiçôo.
NIETA – E eu a deserdo, se ela desobedecer.
ARGAN (se jogando na cadeira exausto) – Ai, não aguento mais. Vou acabar
morrendo.

CENA V
Belinha, Angélica, Nieta e Argan.
BELINHA – O que está acontecendo aqui?
ARGAN – Ah! Querida, aproxime-se.
BELINHA – Que você tem, maridinho?
ARGAN – Belinha. Elas me deixaram furioso.
BELINHA – Ah, meu Arganzinho, o que aconteceu?
ARGAN – A sem-vergonha da Nieta está mais insolente do que nunca. BELINHA –
Não dê importância.
ARGAN – Ela me enlouquece, querida. Ela se opôs, durante uma hora, a tudo o que eu
quero fazer.
BELINHA – Quietinho.
ARGAN – E teve o descaramento de dizer que não estou doente.
BELINHA – Que insolência.
ARGAN – Você sabe, meu amor, o quanto eu estou...
BELINHA – Claro, amorzinho.
ARGAN – Querida, essa sem-vergonha acaba me matando.
BELINHA – Ah, bem, isso...
ARGAN – Ela é a causa da minha bílis ruim.
BELINHA – Não fique tão nervoso.
ARGAN – Há muito tempo eu peço para você se livrar dela.
BELINHA – Querido, não há empregados que não tenham seus defeitos. (Nieta e
Angélica se retiram para um canto. Nota-se que a madrasta e a enteada não se
falaram.). A gente é obrigada, às vezes, a relevar certos problemas. Nieta é honesta,
limpa, esforçada e, sobretudo, fiel. Você sabe que, hoje em dia, todo cuidado é pouco.
Venha cá, Nieta.
NIETA – Senhora.
BELINHA – Por que você está irritando meu marido?
NIETA (em tom meloso) – Eu, patroa? Infelizmente, não sei o que dizer, não penso
senão em fazer todas as vontades do patrão.
ARGAN – Fingida.
NIETA – Ele disse que queria dar sua filha em casamento ao filho da Sra. Disafôrus;
respondi que o considerava um partidão, mas que achava preferível que ela fosse para
um convento.
BELINHA – Que mal há nisso? Ela tem toda razão.
ARGAN – Meu amor, não acredite nela. É uma louca, me fez mais de mil desaforos.
BELINHA – Está bem. Anda, vamos. Sossegue. Escute, Nieta, se você continuar a
aborrecer meu marido, eu te mando embora. Vai pegar os travesseiros para que eu o
acomode na cadeira. Querido, afunde o gorro até as orelhas, não há nada melhor para
se resfriar do que frio nas orelhas.
ARGAN – Ah... querida, obrigado por tomar conta de mim.
BELINHA (Acomodando os travesseiros em torno do marido) – Afaste-se um pouco
para que eu ponha, assim, este de um lado, o outro deste... e nas costas... e este sob a
cabeça, assim... Agora vou buscar seu cobertor.
NIETA (Pondo um travesseiro sobre a cabeça de Argan e fugindo) – E este é contra o
sereno.
ARGAN (Levantando-se com raiva e jogando os travesseiros em Nieta, que sai) –
Imbecil, quer me sufocar, não quer?
BELINHA – Que é agora? Pelo amor de Deus!
ARGAN (Sem fôlego, joga-se na cadeira) – Ai, ai. Eu não aguento mais.
BELINHA – Por que você se incomoda tanto? Ela só queria ajudar.
ARGAN – Você não conhece, querida, a maldade daquela bandida. Ela me deixou fora
de mim, vou precisar de oito remédios e doze lavagens para consertar tudo.
BELINHA – Ora, querido, relaxa.
ARGAN – Meu consolo é você, amorzinho e para mostrar meu reconhecimento pelo
amor que tem por mim, eu quero fazer meu testamento.
BELINHA – Não vamos falar disso, querido, por favor. A idéia me faz sofrer e
estremeço com a palavra testamento.
ARGAN – Eu pedi para você falar com o Tabelião.
BELINHA – Está aí fora. Eu o trouxe comigo.
ARGAN – Então vamos conversar com ele.

CENA VI
Angélica e Nieta
ANGÉLICA - Onde foi meu pai?
NIETA – Ele e Belinha estão lá na sala com um Tabelião, e eu ouvi falar em
testamento. Sua madrasta não dorme no ponto e, sem dúvida, faz alguma conspiração
contra você.
ANGÉLICA – Contanto que não disponha dos meus sentimentos, ele pode dispor dos
meus bens como quiser. Nietinha, eu te peço: não me abandone.
NIETA – Eu? Abandonar você? Prefiro morrer. Deixe tudo comigo, que eu faço tudo
que estiver ao meu alcance. Mas para que dê certo, tenho que mudar de tática,
esconder que estou do seu lado e fingir que concordo com seu pai e sua madrasta.
ANGÉLICA – Certo. Você me faz o favor de avisar Cleanto desse casamento que
resolveram?
NIETA – Claro...Vou encarregar o Polichinelo de enviar essa mensagem, em troca de
alguns carinhos. Mas hoje já passou da hora, então amanhã ele vai procurar Cleanto.
Agora vai descansar que já está tarde. Boa noite!
ANGÉLICA – Boa Noite.

CENA VII
Belinha e Argan
BELINHA - Ai querido, você viu que o Tabelião disse que fazer um testamento vai
contra o costume e que todo o bem que um homem e uma mulher, unidos pelo
casamento, se podem dar deve ser através de uma doação mútua, entre vivos, desde
que não haja filhos, seja dos dois conjugues ou de apenas um deles.
ARGAN – Eis um costume impertinente esse de um marido não poder deixar nada
para uma mulher que tanto ama. Mas ele disse que eu posso escolher um amigo íntimo
seu e dar a ele o que desejar e depois ele te passa tudo. E que também, enquanto
estiver vivo, posso dar-lhe dinheiro ou promissórias pagáveis ao portador.
BELINHA – Não se atormente com isso, meu Deus. Se você morrer, não quero mais
ficar neste mundo.
ARGAN – Querida. Só lamento, se eu morrer, é de não ter tido um filho seu. Dr. Purgan
me prometeu que ele daria um jeito nisso.
BELINHA – Morro junto para que saiba o carinho que tenho por você.
ARGAN – Quero fazer o testamento, meu amor, do jeito que o Tabelião diz; mas, por
precaução, vou lhe dar vinte barras de ouro que eu escondi no forro do meu quarto, e
duas promissórias ao portador, uma do Sr. Damon e outra do Sr. Geronte.
BELINHA – Não, não! Não quero, não quero e não quero! Quanto você disse que tinha
no quarto?
ARGAN – Vinte barras, amor.
BELINHA – Ouro? Oh, não fale, não fale... Ah!... E de quanto são as promissórias?
ARGAN – Uma de quatro mil e outra de seis, querida.
BELINHA – Todo o dinheiro do mundo, querido, é nada perto de ter você. Tem mais
barras escondidas?
ARGAN - Sim querida, mas agora vamos descansar um pouco.
BELINHA – Vamos, queridinho.

SEGUNDO ATO
CENA I
Nieta e Cleanto.
NIETA – O que deseja, patrão?
CLEANTO – O que desejo?
NIETA – Ah! É você. Que surpresa. Que está fazendo aqui dentro?
CLEANTO – Vim falar com Angélica, consultar seu coração, saber o que decidiu sobre
esse casamento maluco, de que me avisaram.
NIETA – Entendo, mas não se pode falar assim, sem mais nem menos, com ela. É
preciso que seja em segredo, Angélica é muito vigiada, não a deixam sair nem falar
com ninguém.
CLEANTO – Por isso não vim aqui como Cleanto, ou namorado, mas como amigo e
substituto de professor de música.
NIETA – Olha o pai dela. Esconda-se um pouco e me deixe avisá-lo que está aqui.

CENA II
Argan, Nieta e Cleanto.
ARGAN – O Dr. Purgan mandou que eu andasse no quarto de manhã, pra lá e pra cá,
12 vezes, mas esqueci de perguntar se é na largura ou no comprimento.
NIETA – Patrão, está aí um...
ARGAN – Fale baixo, sua bruxa. Quase me estoura os miolos! Não sabe que não se
fala tão alto com doentes?
NIETA – Eu queria dizer que...
ARGAN – Fale baixo, já disse!
NIETA – Patrão... (ela finge que fala)
ARGAN – Hem?
NIETA – Eu disse que... (Finge de novo)
ARGAN – Que é que está dizendo?
NIETA – Eu disse que está aqui um homem que quer falar com o senhor. ARGAN –
Mande entrar. (Nieta faz sinal para Cleanto entrar)
CLEANTO – Senhor.
NIETA (Ralhando) – Não fale alto para não estourar os miolos do patrão.
CLEANTO – Meu caro senhor, estou encantado de vê-lo de pé e de ver que o senhor
se sente melhor.
NIETA (Fingindo estar zangada) – Como sente-se melhor? Não é verdade! Meu amo se
sente sempre mal!
CLEANTO – Ouvi dizer que o senhor estava melhor, e o encontro com muito bom
aspecto.
NIETA – O que quer dizer com muito bom aspecto? O patrão está mal, e esses que
disseram que ele estava melhor são uns impertinentes. Ele nunca esteve tão
indisposto.
ARGAN – Ela tem razão.
NIETA – Ele anda, come e bebe como os outros, mas isso não impede que ele esteja
doente, acabado.
ARGAN – Pura verdade.
CLEANTO – Venho da parte de professor de canto de sua filha, senhor. Ele teve de ir
para o interior por alguns dias, e me enviou no lugar dele para continuar as lições.
ARGAN – Muito bem, chame Angélica.
NIETA – Eu acho, patrão, que seria bom levar o professor ao quarto dela.
ARGAN – Não, ela que venha.
NIETA - Ele não vai conseguir dar em público uma aula que é particular. ARGAN –
Consegue, sim.
NIETA – Patrão, essas aulas são de enlouquecer, e não convém ao senhor, no seu
estado, se agitar e estourar os miolos.
ARGAN – Não discuta. Gosto de música e vou ficar muito à vontade...
NIETA - Tudo bem. (grita) Angélica!!
ARGAN - Ai inferno! Nieta, vai ver se minha mulher já está pronta.

CENA III
Argan, Angélica e Cleanto
ARGAN – Venha, minha filha, seu professor de música foi para o interior e enviou
alguém para te dar aula.
ANGÉLICA - Ai, meu Deus.
ARGAN - Que foi?Que surpresa é essa?
ANGÉLICA- É que uma coincidência surpreendente acontece aqui.
ARGAN - Qual?
ANGÉLICA- Sonhei, a noite passada, que eu estava com o pior problema do mundo, e
que pedi socorro a uma pessoa parecida com esse senhor, e ele me salvou. Minha
surpresa foi exatamente essa, a de ver, sem esperar, a pessoa com quem eu sonhei a
noite toda.
CLEANTO - Estou contente de ocupar seus pensamentos, seja dormindo ou acordada,
e não há nada que eu não faria para livrá-la de algum problema.

CENA IV
Nieta, Cleanto, Angélica e Argan
NIETA (Caçoando) – Com licença, patrão, agora acredito no senhor e desdigo tudo o
que eu disse. A Sra. BoaMorte e seu filho chegaram para fazer uma visita. O senhor vai
ter um genro daqueles, o mais bonito, o mais espirituoso.Ele me disse apenas duas
palavras, e sei que sua filha vai cair de amores por ele.
ARGAN (A Cleanto, que faz menção de sair) – Fique, meu caro. Quero casar minha
filha e acaba de chegar o noivo, que ela ainda não conhece.
CLEANTO – É uma honra ser testemunha de um encontro tão importante.
ARGAN – Ele é filho de uma médica competente e o casamento se realiza dentro de
quatro dias. Avise seu professor de música, para que ele venha ao casamento. E você
também está convidado.
CLEANTO – Fico muito honrado.
NIETA – Preparem-se. Aí estão eles.

CENA V
Sra. BoaMorte, Tomás BoaMorte, Argan, Angélica, Cleanto e Nieta.
ARGAN (Pondo a mão no gorro, sem o tirar ) – O Dr. Purgan me proibiu de descobrir a
cabeça. Como a senhora é do ofício, conhece as conseqüências.
Sra. BoaMorte– Trazemos socorro aos doentes, com as nossas visitas, não
incômodos.
ARGAN – Doutora, eu a recebo... (Os dois passam a falar ao mesmo tempo,
interrompendo-se e confundindo-se)
Sra. BoaMorte– Estamos aqui, senhor...
ARGAN – Com muita alegria...
Sra. BoaMorte– Meu filho Tomás e eu...
ARGAN- A honra que me fazem...
Sra. BoaMorte– Para demonstrar, senhor...
ARGAN – Eu gostaria muito...
Sra. BoaMorte– A satisfação que sentimos...
ARGAN – De conhecê-los, senhora...
Sra. BoaMorte– Estamos sempre prontos...
ARGAN – Eu fico ao seu inteiro dispor.
Sra. BoaMorte– A mostrar nossos cuidados. (Ela se volta para seu filho e diz) Venha,
Tomás. Aproxime-se. Apresente seus cumprimentos.
Tomás (Um panaca que acabou de se formar, desajeitado) – Não é pelo pai que
convém começar?
Sra. BoaMorte- É.
Tomás – Senhor, venho cumprimentar, amar e reverenciar aquele que será para mim
um segundo pai, mas um segundo pai a quem ouso dizer que sou mais devedor que ao
primeiro, pois ele me fez e o senhor me escolheu. Ele me recebeu porque era
inevitável, o senhor me aceitou por prazer, por isso venho hoje, antecipadamente,
render minhas mais humildes e respeitosas homenagens.
NIETA - Viva a faculdade que o pariu!
Tomás – Fui bem, mamãe?
Sra. BoaMorte – Foi.
ARGAN (Para Angélica) – Vamos, cumprimente o noivo.
Tomás – Devo beijá-la?
Sra. BoaMorte – Sim… sim…
Tomás (Beijando a face de Angélica) - Madame, é com justiça que o céu lhe concedeu
o nome de sogra, pois...
ARGAN – Essa não é minha mulher. É minha filha.
Tomás - E onde está a sua excelentíssima?
ARGAN - Já vem.
Tomás - Devo esperar até que ela venha, papai?
Sra. BoaMorte – Cumprimente a jovem, antes.
Tomás – Assim como a estátua de Memnon, no Egito, emitia um som harmonioso ao
ser iluminada pelo sol, também eu me sinto envolvido docemente com a aparição do
sol da sua beleza. Aceite, portanto, que, a partir de hoje, eu ofereça a essa maravilhosa
jovem o meu coração, que não aspira, nem ambiciona outra glória além de ser, para
toda vida, o mais humilde, obediente e fiel servidor e marido.
NIETA (Ralhando) – Eis o que dá estudar. Aprende-se a falar coisas tão bonitas.
ARGAN (a Cleanto) – E você, o que acha disso?
CLEANTO – Estou fascinado. Se ele for tão bom médico como é bom orador, vai dar
muita satisfação ser um dos seus doentes.
NIETA – Com certeza. Fantástico...se ele fizer curas como faz discursos...
ARGAN – Vamos, depressa Nieta, arrume minha cadeira e pegue poltronas para todo
mundo. Sente-se aqui, minha filha. Veja, doutora, todos admiram seu filho, a senhora
deve ser bem feliz de ter um filho como ele!
Sra. BoaMorte - Posso dizer que tenho razões para estar contente e que todos os que
o conhecem sabem que é um jovem sem maldade. Nunca teve imaginação muito fértil,
nem o brilho de alguns, e é por isso mesmo que eu confio no seu bom senso,
qualidade indispensável ao exercício de nossa profissão. Ele nunca foi um menino
esperto ou levado. Foi sempre calmo, calado, e nunca se interessou pelos chamados
brinquedos infantis. Ele é seguro nas discussões, teimoso como uma mula, não muda
nunca de opinião e defende um ponto de vista até os últimos limites da lógica. Mas,
acima de tudo, o que me agrada nele, porque segue o meu exemplo, é que se agarra
cegamente às posições dos mais velhos.
Tomás - Defendi uma tese contra os partidários da circulação sanguínea e com a
permissão de seu pai, eu gostaria de convidá-la para divertir-se, um desses dias, com a
dissecação de uma mulher, sobre o que eu devo fazer um ensaio.
NIETA - Que gracinha. Alguns levam as noivas ao teatro, outros... uma dissecação é
uma coisa muito emocionante!
ARGAN - A senhora pretende, doutora, levá-lo à corte e conseguir para ele um cargo
de médico?
Sra. BoaMorte - Falando francamente, nunca me pareceu plausível exercer a medicina
para as altas esferas e sempre pensei que seria melhor atender o povo, que é cômodo.
O que é lastimável na elite é que quando as pessoas ficam doentes exigem cura.
NIETA - Era só o que me faltava, nobres exigindo que os doutores curem suas
doenças. Ninguém está aqui para isso, não é? Aos médicos compete receber
honorários e receitar remédios. Aos doentes, a cura.
Sra. BoaMorte - Exatamente. Nossa obrigação é cuidar das pessoas dentro das
normas profissionais.
ARGAN (a Cleanto) - Professor, faça minha filha cantar para as visitas.
CLEANTO - Claro. Para divertir as visitas, pensei em cantar com ela uma pequena
cena de uma ópera que acabou de sair. (A Angélica, entregando um papel) Aqui está
sua parte.
ANGÉLICA - Minha?
CLEANTO (Baixo, para ela) - não recuse. Vou explicar tudo. (Alto) Eu não canto muito
bem, mas confio na vontade geral, pois vou cantar apenas para me fazer ouvir.
ARGAN - Muito bem. Estamos prontos.
CLEANTO - O tema é o seguinte: um pastor chamado Tircis estava atento a um
espetáculo que acabava de começar, quando ouviu um barulho e vê um sujeito bruto
que maltratava, com palavras agressivas, uma pastora, de nome Filis. Imediatamente
foi defendê-la, e depois de ter dado ao sujeito o castigo merecido pela insolência,
aproxima-se da pastora e nota que, dos olhos mais bonitos que jamais vira antes,
caíam as mais lindas lágrimas do mundo. Ele decide parar aquelas lágrimas tão lindas
e a doce pastora trata de agradecer, e cada palavra, cada olhar penetravam como
chama no seu coração. E desse primeiro encontro ele se apaixonou violentamente, o
que faz com que ele resolva pedir em casamento a maravilhosa criatura, sem a qual
ele não pode viver, e ela consente, escrevendo um bilhete. Mas fica sabendo que o pai
da moça tinha resolvido casá-la com outro, e que tudo estava pronto para a cerimônia.
Não suportando a horrenda idéia de ver aquela que ama nos braços de outro, encontra
um jeito de entrar na casa da pastora para saber o que fazer. Vê o ridículo rival chegar
triunfante ao lado da pastora querida, e aquela visão enche-o de tanta raiva que ele
mal consegue se conter. O respeito e a presença do pai o impedem de agir a ele se
limita a se comunicar com a amada através de dolorosos olhares. Finalmente,
vencendo todos os medos, ele acaba falando assim...

Cena VII
Nieta, Beralda
NIETA (no telefone) - Senhor Beralda, sua sobrinha encontra-se numa situação
horrível.
BERALDA - O que houve com ela?
NIETA - É o pai dela, seu irmão, que quer casá-la com o filho de uma médica para
benefício próprio.
BERALDA - Muito bem. Irei até aí e tentarei convencê-lo a mudar de ideia.
NIETA - Muito obrigada.

Cena VIII
Sra. BoaMorte, Tomás BoaMorte, Argan, Angélica, Cleanto.
ARGAN- Não, não já chega. Essa peça é um péssimo exemplo. O pastor Tircis é um
insolente e a pastora Filis é uma atrevida ao falar assim diante de seu pai. Podíamos
muito bem ter passado sem essa ópera impertinente.
CLEANTO – Pensei que ia se divertir.
ARGAN – Besteiras não divertem ninguém. Ah! ai vem minha esposa.
Cena IX
Belinha, Argan, Angélíca, Sra BoaMorte, Tomás, Nieta
ARGAN - Benzinho, aqui está o filho da Doutora BoaMorte.
TOMÁS - Madame, é com justiça que o céu lhe concedeu o nome de sogra, pois...
BELINHA - Estou encantada de ter a honra de conhecê-lo.
TOMÁS - ...pois lê-se no seu semblante. . . pois lê-se no seu semblante. . . A senhora
me interrompeu no meio da minha frase e esqueci minha fala.
Sra BoaMorte - Tomás, guarda o discurso para outra ocasião.
ARGAN - Gostaria que você tivesse chegado mais cedo, meu bem. . .
TONINHA - Ah, a senhora perdeu a frase sobre o segundo pai, a estátua de Memnon e
a flor chamada heliotrópio.
ARGAN - Vamos, minha filha, aperte a mão do noivo, para firmar o compromisso.
ANGÉLICA - Papai! Eu lhe peço, não precipite as coisas. Dê ao menos tempo para nos
conhecermos melhor.
ARGAN - Ora! Haverá muito tempo para vocês se conhecerem quando estiverem
casados!
ANGÉLICA - Ah, meu pai, eu lhe peço, dê-me tempo.
TOMÁS - Mademoiselle, antigamente o costume dos homens era raptar as mulheres à
força para ficar com elas e não esperavam elas se apaixonarem por eles.
ANGÉLICA - Antigamente, mas nós somos gente de hoje. No nosso século, o
sentimento e vontade de estar juntos deve ser mútua. Tenha paciência: se o senhor me
ama, deve submeter-se às vontades de quem se ama.
TOMÁS - No que não diz respeito ao que é meu, concedo; no que me diz respeito,
nego.
Nieta (a Angélica) - É inútil argumentar. Ele acaba de sair do colégio, e dirá tudo que
está decorado. Por que resistir tanto e recusar a glória de se ligar ao próprio corpo da
Faculdade?
BELINHA - Talvez ela tenha em mente alguém mais...
ANGÉLICA - Tem toda razão.
BELINHA - Ora essa! Você que deveria ser uma moça comportada, zomba de seu pai.
Não o obedece.
ANGÉLICA - Obediência tem limites e a razão e as leis não alcançam tudo!
BELINHA - Em outras palavras: você pensa em casamento, mas quer escolher o
esposo de acordo com sua fantasia.
ANGÉLICA - Só estou pedindo à meu pai não me forçar a casar com um homem que
eu não amo.
BELINHA - Você é muito insolente! E tem um orgulho ridículo, uma presunção
impertinente, que leva todos a darem de ombros!
ANGÉLICA - Olha, não adianta reclamar. Já dei minha opinião e não vou mudar. Boa
noite!

CENA X
Argan, Belinha, Sra BoaMorte, Tomás, Nieta
ARGAN (a Angélica, que sai) - Escute: Você tem 4 dias para escolher: este marido ou o
convento. (a Belinha) Fique tranquila! Darei um jeito nela.
BELINHA - Tudo bem...Agora lamento ter de deixá-los mas tenho de ir à cidade, volto
logo. Adeus, amorzinho.
ARGAN - Adeuzinho, amorzinho.

CENA XI
Argan, Sra BoaMorte, Tomás, Nieta
Sra BoaMorte- Caro senhor, vamos nos despedir também.
ARGAN - Antes disso, por favor, me diga como estou.
Sra BoaMorte- Vamos, Tomás, vá checar seu pulso.
TOMÁS - O pulso deste senhor é o pulso de um homem que não se sente bem.
ARGAN - O Doutor Purgan diz que eu estou mau do fígado.
Sra BoaMorte- Ah sim! Ele lhe recomenda, evidentemente, comer grande quantidade
de assados?
ARGAN - Não, só caldinhos.
Sra BoaMorte- Ora, é claro: assados e caldinhos são a mesma coisa. Um caldinho é
um assado derretido.
ARGAN - Doutor, quantos grãos de sal deve-se pôr num ovo?
Sra BoaMorte- Seis, oito, dez, sempre números pares, um para cada ovo. Nos
medicamentos, sempre números ímpares.
ARGAN - Muito obrigado. E até a próxima consulta.

TERCEIRO ATO
CENA I
Beralda e Nieta
NIETA- Não abandone o assunto da sua sobrinha, por favor.
BERALDA – Vou fazer tudo o que puder.
NIETA – Precisamos impedir esse casamento absurdo que ele inventou, e eu pensei
que seria, talvez, uma boa idéia mandar vir um médico, disposto a entrar no nosso
jogo, para desmoralizar o Dr. Purgan. E como não conhecemos ninguém, resolvi dar
um jeito eu mesma.
BERALDA – Como?
NIETA – Um faz de conta divertido. Confie em mim. Aí vem ele.

CENA II
Argan e Beralda
BERALDA - Como vai, meu irmão? Como se sente?
ARGAN - Ah, meu irmão! Muito mal!
BERALDA - Como, mal?
ARGAN - Numa fraqueza enorme! Mas deixando isso de lado, você queria conversar
comigo?
BERALDA – Sim, mas, antes de mais nada, deve me prometer que não vai ficar
nervoso.
ARGAN – Prometo.
BERALDA- Nem ficar nervoso com as coisas que eu disser.
ARGAN – Certo.
BERALDA – E raciocinar junto comigo sobre os negócios que devemos discutir,
calmamente.
ARGAN – Está bem. Para que tanto preâmbulo, meu deus!
BERALDA – Não consigo entender por que um homem rico como você, quer colocar
sua filha num convento. De onde tirou isso?
ARGAN – Não acha que sou o dono da casa e posso fazer o que eu quiser?
BERALDA – Sua mulher não se cansa de aconselhar que você se livre de suas filhas;
e eu não duvido de que ela se encante de ver as duas como freiras.
ARGAN – Esse assunto de novo! Sempre a pobre da minha mulher sendo acusada de
todos os males.
BERALDA – Não, não. Ela está fora disso. É uma das mais bem intencionadas
mulheres do mundo. Em relação a ela, nenhuma dúvida a respeito. Falemos de
Angélica. Qual é a sua intenção em querer casá-la com o filho de um médico?
ARGAN – A intenção de me dar o genro de que eu preciso.
BERALDA – Mas o marido é para ela ou para você?
ARGAN – Para nós dois. Quero alguém na família que seja útil para mim.
BERALDA – Será que você estará sempre enrabichado pelos seus doutores e
farmacêuticos, e deseja ser doente a ponto de contrariar a natureza?
ARGAN – O que está insinuando, Beralda?
BERALDA – Que não existe homem menos doente do que você e que eu gostaria de
ter a sua saúde. O sinal de que você está bem e que goza de excelente saúde é que,
apesar de tudo o que faz e dos remédios que toma, não conseguiu estragar o perfeito
equilíbrio do seu corpo.
ARGAN – Você sabe que o Dr. Purgan disse que eu morreria se ele parasse três dias
de tomar conta de mim?
BERALDA - Se você não prestar atenção, vai acabar morrendo de tanta tomação de
conta.
ARGAN – Mas pense um pouco, Beralda, você acredita ou não acredita na medicina?
BERALDA – Não, meu irmão, e não vejo por que devemos acreditar nela para ter
saúde.
ARGAN – Você desconfia de uma coisa em que todo mundo acredita e que é
respeitada há séculos?
BERALDA – Não só desconfio como, aqui entre nós, acho uma das maiores loucuras
dos homens. Não há nada mais engraçado, nem mais ridículo, do que um homem
pretendendo curar outro.
ARGAN – E por que um homem não pode curar outro?
BERALDA – Simplesmente, meu irmão, porque até hoje são desconhecidos os
mecanismos da máquina humana, e a natureza nos colocou diante dos olhos vendas
muito espessas para conhecê-los.
ARGAN – Então você acha que os médicos não sabem nada?
BERALDA – Exatamente. A maioria conhece bastante literatura, sabe falar um belo de
um latim, sabe o nome grego das doenças, as definições, as divisões, mas curá-las,
isso eles não conseguem.
ARGAN – Em matéria de medicina, eles sabem mais que todos.
BERALDA – Saber, eles sabem, curar é que é o problema.
ARGAN – Mas, enfim, meu irmão, existem pessoas tão inteligentes e tão espertas
quanto você que na hora da doença procuram os médicos.
BERALDA – O que revela a fraqueza humana e não a verdade da medicina.
ARGAN – No entanto, é preciso que os médicos, eles próprios, acreditem na arte da
medicina, pois devem se servir dela para eles mesmos.
BERALDA – Dr. Purgan, por exemplo, não há duvida, é um homem que acredita nas
regras da medicina, receita purgantes e sangrias, sem medir as conseqüências. Mas
não deseje mal a ele por tudo o que possa fazer: é com a maior boa-fé do mundo que
ele vai acabar te matando, assim como a mulher e os filhos dele, e a ele mesmo, se for
o caso.
ARGAN – Desde criança você não simpatiza com ele, meu irmão. Mas, enfim, vamos
aos fatos: que fazer quando se está doente?
BERALDA – nada.
ARGAN – Nada?
BERALDA – Nada. Basta ficar de repouso.
ARGAN – Quer dizer que você é dono de toda a ciência do mundo e que sabe mais do
que os grandes médicos do nosso século?
BERALDA – Esses grandes médicos são uma pessoa na teoria e outra na prática;
falando são hábeis, agindo, são os mais ignorantes dos homens.
ARGAN – Ah... Sei. Pelo que estou vendo, você é um grande doutor, e eu adoraria que
estivesse aqui algum médico para rebater seus argumentos e calar sua boca.
BERALDA – Vamos mudar de assunto, meu irmão. Eu queria pedir para você não
tomar resoluções tão drásticas, como enfiar a sua filha num convento. Você escolheu
cegamente um genro e é preciso, sobre isso, sentir um pouco as inclinações de
Angélica, pois delas dependem um casamento que deve durar a vida inteira.

CENA III
Enfermeira (uma seringa na mão), Argan, Beralda e Nieta.
ARGAN – Ah, com licença, Beralda.
BERALDA – Como, o que vai fazer?
ARGAN – Tomar uma lavagenzinha. É rápido.
BERALDA – Você está brincando. Será que não pode passar um momento sem
lavagens ou remédios? Deixe isso pra depois e fique em repouso.
ARGAN – Tudo bem, está dispensada. Hoje não tomarei a minha lavagem.
ENFERMEIRA - Mas é uma ordem do Dr. Purgan. É só um clister.
BERALDA - Pois fale para o Dr. Purgan enfiar esse clisterzinho onde bem lhe agradar.
ENFERMEIRA – Mas que falta de educação! Venho aqui por prescrição médica e vou
dizer ao Dr. Purgan que me impediram de executar suas ordens e cumprir minhas
funções. Vai ver só. (Sai)
ARGAN – Ah, meu irmão, você ainda vai me causar uma desgraça.
BERALDA – A desgraça de não tomar a lavagem que o Dr. Purgan receitou. Será
possível que você não possa se curar dessa doença de medicina, e deixar de passar a
vida a engolir remédios?
ARGAN – Você fala como um homem saudável, Beralda. Se estivesse no meu lugar,
mudaria de refrão. É cômodo falar contra a medicina, quando se tem boa saúde.
BERALDA – Mas o que você tem?
ARGAN – Você quer me deixar louco, é? Eu queria que você sofresse o que sofro para
ver se ia criticar tanto.
NIETA - Com licença, o Dr. Purgan quer falar com o senhor.
ARGAN - Mande-o entrar.
CENA IV
Dr. Purgan, Argan e Nieta.
DR. PURGAN – Acabaram de me contar que recusam o remédio que prescrevi.
ARGAN – Não foi bem assim, Dr. Purgan.
DR. PURGAN – É uma audácia enorme, uma estranha rebelião de um doente contra
seu médico.
NIETA – Isso é surpreendente.
DR. PURGAN – Um clister que tive o prazer de inventar...
ARGAN – Não fui eu...
DR. PURGAN – Inventado e composto dentro das normas da arte.
NIETA – Ele está certo.
DR. PURGAN – E que devia fazer um efeito maravilhoso nos intestinos. ARGAN – Meu
irmão...
DR. PURGAN – Enviá-lo de volta com desprezo.
ARGAN – Foi ele...
DR. PURGAN – Um atentado contra a medicina.
ARGAN – Foi por causa...
DR. PURGAN – Um crime de lesa-faculdade, para o qual não há castigo que baste!
NIETA – Tem toda a razão.
DR. PURGAN – Declaro que rompo relações com essa espécie de paciente. ARGAN –
Foi meu irmão...
DR. PURGAN – E que, para terminar toda e qualquer ligação, eis o dote que eu daria
ao meu sobrinho pelo casamento. (Rasga-o, violento)
ARGAN – Foi meu irmão o culpado.
DR. PURGAN – Faltava tão pouco para eu curá-lo.
NIETA – Ele não merece isso.
DR. PURGAN – Eu ia limpar seu corpo e fazê-lo evacuar completamente sua bílis
amarga.
ARGAN – Ah, meu irmão.
DR. PURGAN – Já que resolveu desobedecer às ordens de seu médico...
NIETA – Isto clama por vingança!
DR. PURGAN – Já que se revoltou contra meus remédios...
ARGAN – Não, de jeito nenhum.
DR. PURGAN – Devo dizer que eu abandono à sua má constituição, aos problemas de
seus intestinos, à corrupção de seu sangue e às agruras de sua bílis.
NIETA – Bem feito.
ARGAN – Ah, meu Deus!
DR. PURGAN – Antes de quatro dias seu estado será incurável!
ARGAN – Ah, misericórdia!
DR. PURGAN – A sua digestão será lentíssima!
ARGAN - Dr. Purgan.
DR. PURGAN – O senhor cairá na hidropisia à enfermaria, da enfermaria à catacumba!
(Nieta sai com Dr. Purgan)

CENA V
Argan e Beralda
ARGAN - Ah! Meu Deus, estou morto. Você me levou à desgraça, mano. BERALDA -
O que é que há?
ARGAN - Não aguento mais. Sinto que a medicina se vinga.
BERALDA - Não seja ingênuo.
ARGAN - Vou ser um doente incurável antes de quatro dias.
BERALDA - Quem é ele para falar dessas coisas, um oráculo? Até parece que o Dr.
Purgan tem o dom de dar e tirar a vida de alguém.
ARGAN - Ah, meu irmão, ele conhece minha constituição, e a maneira de dominá-la.
BERALDA - Devo admitir que você é um homem cheio de problemas e muito esquisito.

CENA VI
Nieta, Argan e Beralda
NIETA - Patrão, está aí um médico.
ARGAN - Que médico?
NIETA - Um médico da medicina.
ARGAN - Estou perguntando quem é ele.
NIETA - Não o conheço, nunca o vi mais gordo. Mas ele se parece tanto comigo que,
se eu não tivesse certeza de que minha mãe era uma mulher honesta, eu diria que ela
me deu um irmão, depois da morte de meu pai.
ARGAN - Que entre.
BERALDA - Você é sortudo. Sai um médico, entra outro.
ARGAN - Só espero que você não atrapalhe.
BERALDA - Outra vez?
ARGAN - Tenho tantas doenças que eu não conheço.

CENA VII
Nieta, Argan e Beralda
NIETA (Vestida de médico) - Senhor, aceite minha visita e os pequenos serviços que eu
possa fazer para sangrias e purgantes de que precisar.
ARGAN - Agradeço muito, doutor.
NIETA - Não me leve a mal, por favor. A curiosidade que tive de ver um doente tão
ilustre e de tão famosa reputação explica a liberdade que tomei...
ARGAN - Ora, doutor. (Pra Beralda) Beralda, você não diria que é a Nieta? A própria?
BERALDA - Realmente, a semelhança é enorme, mas não é a primeira vez que se
sabe desse gênero de coisas, as histórias estão cheias de acasos da natureza.
ARGAN - Para mim... Estou tão chocado.
NIETA - Vejo, senhor, que me olha fixamente. Que idade me dá?
ARGAN - Uns vinte e seis ou vinte e sete anos.
NIETA - Ha, ha, ha. Tenho noventa.
ARGAN - Noventa anos?
NIETA - Sim, senhor, o que está vendo é o segredo de minha arte, que me conserva
assim jovem e vigoroso.
ARGAN - Inacreditável. Um jovem velho de noventa anos.
NIETA - Sou um médico ambulante, que vai de cidade em cidade, procurar doenças à
altura de minha capacidade, para encontrar doentes dignos dos meus cuidados,
capazes de testar alguns dos grandes segredos que eu descobri na medicina. As
pequenas doenças comuns, essas porcarias de reumatismo, inchaço, febre,
probleminhas no baço, fígado, e de dor de cabeça, eu desprezo. Quero moléstias
importantes, grandes febres constantes, com delírios, pestes, hidropsias bem
formadas, pleurisias com inflamações no peito. É isso que me agrada, é nisso que eu
tenho sucesso. E eu gostaria, senhor, que tivesse todas as doenças que acabei de
dizer, que fosse abandonado por todos os médicos, que estivesse desesperado,
agonizando, quase morrendo, para mostrar a excelência dos meus remédios, e o meu
desejo de prestar serviços.
ARGAN – Agradeço muito sua atenção.
NIETA – Me dê seu pulso. Vamos ver se ele bate como deve. Vou cuidar de tudo.
Ui,este pulso é atrevido.Vejo que não me conhece ainda. Quem é o seu médico?
ARGAN– Dr.Purgan
NIETA– Nunca vi o nome dele nas minhas listas dos grandes médicos. Que doença ele
diagnosticou?
ARGAN– Ele diz que sofro do fígado; outros disseram que é do baço.
NIETA– São todos uns ignorantes. É do pulmão que está doente.
ARGAN– Pulmão?
NIETA– Exatamente.O que o senhor sente?
ARGAN– Tenho dor de cabeça de vez em quando.
NIETA– Certo. É o Pulmão.
ARGAN– Parece, às vezes, que tenho um véu diante dos olhos.
NIETA– Pulmão.
ARGAN–E palpitação.
NIETA– Pulmão.
ARGAN– Moleza nos braços e nas pernas.
NIETA– Pulmão.
ARGAN– Dores na barriga,como se tivesse cólicas.
NIETA– Pulmão.E seu apetite, é bom?
ARGAN–É.
NIETA–O pulmão. Gosta de beber um pouco de vinho?
ARGAN– Gosto.
NIETA–O pulmão. Tem sono depois das refeições e tira uma soneca?
ARGAN– Sim,senhor.
NIETA–O pulmão. O pulmão, repito. Que alimentação seu médico recomendou?
ARGAN– Sopas.
NIETA– Ignorante.
ARGAN– Aves.
NIETA– Ignorante.
ARGAN– Ovos frescos.
NIETA– Ignorante.
ARGAN– À noite, ameixa preta para soltar os intestinos.
NIETA– Ignorante.
ARGAN– E acima de tudo, beber meu vinho com bastante água.
NIETA– É preciso beber vinho puro e, para fortalecer o sangue, que é muito fino, comer
grossos bifes de carne, queijos, arroz, castanhas e muita massa para colar e grudar
tudo, e tudo com muito sal. Seu médico é uma besta. Vou mandar um aqui da minha
confiança, e enquanto eu estiver na cidade, venho vê-lo algumas vezes…
ARGAN– Muitíssimo obrigado.
NIETA– Mas o que fez com esse braço?
ARGAN– Quê?
NIETA– Se eu fosso o senhor, mandaria cortá-lo.
ARGAN– E por quê?
NIETA– Não imagina que ele tira para si toda a alimentação e que impede o outro de
aproveitá-la também?
ARGAN– Eu preciso do meu braço.
NIETA–O olho direito,eu o arrancaria se estivesse no seu lugar.
ARGAN– Arrancar um olho?
NIETA– Incomoda o outro. Siga meu conselho, mande arrancá-lo o quanto antes, vai
enxergar melhor do olho esquerdo.
ARGAN– Não é urgente, não é?
NIETA– Adeus, meu caro. Sinto muito deixá-lo tão cedo,mas devo ir para uma
importante consulta de um homem que morreu ontem.
ARGAN– Um homem que morreu ontem?
NIETA– É. Saber o que deveria ter sido feito para que ele não morresse. Até logo.
( Sai ).
ARGAN– O senhor sabe que os doentes não acompanham ninguém. BERALDA– Eis
um médico que me pareceu capaz.
ARGAN– É. Mas um pouco apressado para o meu gosto.
BERALDA– Todos os médicos são assim.
ARGAN– Cortar um braço,arrancar um olho, para que o outro funcione melhor. Prefiro
que funcione mal. Que bela coisa me deixar caolho e maneta.

CENA VIII
Nieta, Argan e Beralda
NIETA (Falando da porta,como se se dirigisse a alguém) - vamos, vamos. Me solte.
ARGAN– O que há?
NIETA– Seu médico queria pegar no meu pulso.
ARGAN– Vejam só. Noventa anos.
BERALDA– É verdade. Mas meu irmão, já que o Dr.Purgan rompeu com você, não
quer que eu fale um pouco de um partido para minha sobrinha?
ARGAN– Não, Beralda. Quero que ela entre para um convento, já que se opôs às
minha vontades. A irmã dela me contou que ela namorava escondido.
BERALDA – Então, mano, quando há pelo menos uma pequena inclinação, não há
nada de criminoso, nem ofensivo, pois a intenção é um honesto casamento.
ARGAN– Seja o que for, a decisão está tomada: ela vai ser religiosa.
BERALDA– Você está querendo agradar alguém.
ARGAN– Isso de novo. Você sempre volta à minha mulher.
BERALDA– Vamos falar claramente, meu irmão. Não suporto mas a obsessão que
você tem por ela e pela medicina, nem a maneira como cai nas armadilhas que sua
mulher trama.
NIETA– Ah,senhor,não fale mal da patroa. É uma mulher que sofre, uma mulher sem
artifícios, que ama o patrão e que daria a vida por ele. Ah…como ela o ama…não se
pode dizer nada contra ela.
ARGAN– Pergunte como ela é carinhosa comigo.
NIETA–É verdade.
ARGAN– Fica tão aflita com as minhas doenças.
NIETA– Ah,isso é.
ARGAN- Os cuidados,os sacrifícios que faz por mim…
NIETA–Nem diga. (Para Beralda) Gostaria que eu convencesse e fizesse ver,daqui a
pouco,como a patroa ama o patrão?
(Para ARGAN) Patrãozinho, permita que eu mostre que ele está errado. ARGAN–
Como?
NIETA – A patroa vai voltar logo. Deite nessa cadeira e finja que está morto. Vai ver
como ela vai sofrer ao ouvir isso.
ARGAN - Conte comigo.
NIETA (Para Beralda) – Esconda-se naquele canto ali.
ARGAN – Será que não há nenhum perigo de a gente se fingir de morto?
NIETA – Não,não. Que perigo haveria? Vamos nos divertir com a cara de bobo que seu
irmão vai ficar. Aí vem a patroa. Não se mexa.

CENA IX
Belinha, Nieta, Argan e Beralda
NIETA- Meu Deus, que desgraça, que acidente horrível!
BELINHA- Que foi, Nieta? O que aconteceu?
NIETA- Seu marido está morto.
BELINHA- Meu marido, morto?
NIETA - Infelizmente. O pobre defunto está mortinho.
BELINHA- Tem certeza?
NIETA - Absoluta. Ninguém sabe ainda, eu estava aqui sozinha. Ele acaba de morrer
nos meus braços. Veja como ele está duro na cadeira.
BELINHA- Aleluia! Me livrou de um fardo bem pesado. Você é uma boba de se afligir
com essa morte.
NIETA- Eu pensei que era para chorar, patroa.
BELINHA- Ora, não vale a pena. Ele não prestava pra nada. Um homem que foi
incômodo para todo mundo, sujo, nojento, sempre com lavagens e remédios, se
assoando, tossindo, escarrando, sem graça, chato, mal-humorado, cansando as
pessoas, brigando dia e noite com os empregados.
NIETA- Eis uma bela oração fúnebre.
BELINHA- Nieta, você precisa me ajudar e pode ter certeza de que, me ajudando, vai
ser recompensada. E já que, felizmente, ninguém sabe da coisa, vamos levá-lo para a
cama e esconder essa morte até que eu termine o que eu tenho para fazer. Há papéis
e dinheiro que eu devo pegar, pois não é justo que tenha passado ao lado dele os
melhores anos de minha vida, sem ganhar nada. Venha, Nieta, vamos pegar logo as
chaves dele.
ARGAN (Levantando-se bruscamente)- Calma. Calminha.
BELINHA (Surpresa)- Ui.
ARGAN - Então, minha mulherzinha, é assim que me ama?
NIETA- Ih, o defunto não está morto.
ARGAN (A Belinha, que sai)- Estou satisfeito com a amizade e o belo discurso que fez
sobre mim. Eis uma lição que não vou esquecer no futuro, e que vai me impedir de
fazer muitas coisas.

Cena X
Beralda, Argan, Nieta, Angélica e Cleanto
BERALDA (Saindo do esconderijo)- Viu, meu irmão? Eu avisei. Palavra de honra que
eu nunca ia acreditar nisso. Mas ouço sua filha vindo. Repita a coisa e vamos ver de
que maneira ela recebe sua morte. Não custa experimentar. E, já que está no palco,
conhecerá os sentimentos da família.
NIETA (Gritando) – Minha mãe do céu, que desgraça. Que dia maldito. ANGÉLICA-
Que você tem, Nieta, por que está chorando?
NIETA - Infelizmente, tenho más notícias.
ANGÉLICA- Quais?
NIETA - Seu pai está morto.
ANGÉLICA- Meu pai? Morto?
NIETA - É ele está ali. Acabou De morrer. (Aponta para Argan e mostra que não é
verdade, fazendo sinal com o dedo)
ANGÉLICA- (vendo o gesto e fingindo) Que falta de sorte. Que golpe cruel. Perdi meu
pai, a única pessoa que tinha nesse mundo, e o pior é que morreu zangado comigo. O
que vai ser de mim, meu Deus? Como posso me consolar de uma perda tão grande?

Cena XI
Beralda, Nieta, Argan, Angélica e Cleonte
CLEANTO - Que foi, bela Angélica? O que a faz chorar?
ANGÉLICA (sinais para que Cleanto compreenda) - Ai, choro a morte de meu pai!
(sinais de que é tudo mentira)
CLEANTO (compreendendo) - Oh, céus! Que notícia horrível! Ah! Depois do pedido
que fiz a seu tio, para falar com ele e interceder por mim, venho eu mesmo apresentar-
lhe os meus respeitos e convencê-lo com as minhas súplicas e, oh!
ANGÉLICA - Ah, Cleanto. Não falemos mais de casamento! Depois de perder meu pai,
renuncio a tudo! (de joelhos) Juro, meu pai, vou cumprir a sua palavra, vou para um
convento! Receba o meu beijo como testemunho do meu remorso!
ARGAN (Levantando-se) – Minha filhinha.
ANGÉLICA (Surpresa) - Que é isso! (levantando-se)
ARGAN- Você é meu sangue verdadeiro, minha filhinha, fico contente que seja tão
boa.
ANGÉLICA- Que surpresa, papai. E já que, graças a Deus, você está aqui, me ajoelho
para suplicar uma coisa. (ajoelha-se) Se não concorda com os sentimentos do meu
coração, e quiser recusar Cleanto como meu marido, pelo menos peço que não me
force a casar com outro. É só isso que eu peço.
CLEANTO (Pondo-se de joelhos) - Por favor, senhor, sensibilize-se com os nossos
pedidos. Não se ponha contra os anseios de dois corações apaixonados.
BERALDO - Meu irmão, será que você resiste a tanta gente ajoelhada? (ajoelha-se)
NIETA - Ah, senhor, será o senhor insensível a tanto amor? (ajoelha-se) ARGAN- Se
ele se formar em medicina eu concordo com o casamento.
CLEANTO- Com prazer. Se basta isso para ser seu genro, vou ser médico ou
farmacêutico, o que quiser. Nenhum problema. Eu faria qualquer coisa para ter
Angélica.
BERALDA- Meu irmão, tive uma idéia. Estude medicina você mesmo. Vai ser muito
mais cômodo você mesmo fazer tudo o que precisa.
NIETA- É verdade. O melhor caminho para sarar logo, pois não há doença que brinque
com médico.
ARGAN- Você está caçoando de mim, mano. Eu lá estou na idade de estudar?
BERALDA- Estudar! Você sabe bastante. Há muito médico que não sabe tanto quanto
você.
ARGAN- Mas é necessário falar latim e conhecer as doenças e os remédios.
BERALDA- Recebendo a toga e o diploma de médico, você aprende tudo e será mais
capaz do que pensa.
ARGAN- O quê! A gente conhece as doenças só porque tem diploma? BERALDA-
Exatamente. Com ele, qualquer bobagem vai saber.
NIETA- Deixe crescer a barba, patrão. Metade da medicina está na barba!
CLEANTO- Em todo caso, estou pronto.
BERALDA- Você quer que se faça a formatura daqui a pouco?
ARGAN- Como, agora?
BERALDA- Claro. Aqui na sua casa. Umas amigas minhas conhecem uma Faculdade
que pode vir fazer a cerimônia nesta sala. Não vai custar nada.
ARGAN- Mas e eu, o que devo dizer? O que me respondo se fizerem perguntas?
BERALDA- Você vai receber instruções, em duas palavras e, por escrito, o que deve
dizer. Vá vestir uma roupa decente, vá. (Argan sai)
NIETA- Que idéia é esta?
BERALDA- Quero divertir a gente um pouco, esta noite. Uns atores fizeram uma
brincadeira sobre a formatura de um médico. Muita dança e música. Vamos nos divertir
juntos. O mano fará o papel principal.
ANGÉLICA- Mas, titio, parece que você está zombando demais de papai!
BERALDA- Ora, Angélica estou apenas ajudando as fantasias dele. Que tudo fique
entre nós, que podemos, inclusive, representar alguns personagens e participar como
atores. Vamos preparar as coisas, rápido.
CLEANTO- ( Para Angélica)- E você, concorda?
ANGÉLICA- Claro. Se o titio nos dirigir.
QUARTO ATO
(Uma CENA burlesca, de colação de grau de um médico. Assembléia composta de
porta-seringas, farmacêuticos, doutores. Argan, vestido com a toga)
REITOR - Medicinae professores, aqui estamos reunidos para receber um novo
confrade, que, pela prática e longevidade, não precisou cursar faculdade. Senhor
Argan, precisamos saber se você pode participar do nosso magnífico corpo docente.
Vamos fazer umas perguntas para testar a fundo suas capacitalibus.
In grande febrem, com dolorem cabecis, et pumonicis, ataque asmatiquis, et dificultatis
respirares; que cosa facere?
ARGAN - Deve-se passar frigida aqua na cabeça e calida aqua no pectus.
REITOR - E se a doença teimosa não melhorar. Quid illi facere?
ARGAN- Tomar uma injectione in ventre.
REITOR- Ok. Jura guardare statuta per Facultatem prescrita com sensu e julgamento?
ARGAN- Juro.
REITOR- Jura consultationibus i mais velhi?
ARGAN- Juro.
REITOR- Jura de non jamais se servir de nenhum remédio não indicado pela
Faculdade?
ARGAN- Juro.
REITOR- Jura deixar que os doentes morram de suas doenças?
ARGAN- Juro.
REITOR- Eu, com este diploma venerabili e docto, dou e concedo virtutem et poder
medicandi purgandi sangrandi cortandi et matandi tuo proximo impune per totam
terram.
BERALDA - Parabéns ao mais novo médico!
NIETA - Parabéns Sr. Argan! Agora você pode se auto medicar.
ANGÉLICA - Agora tenho um pai médico.
ARGAN - Muito agradecido estou com essa oportunidade.
REITOR - Venha pegar seu certificado.

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