Você está na página 1de 4

A FORÇA VITAL E O TEMPO NA COMPOSIÇÃO DA CIVILIZAÇÃO

AFRICANA DE PELE NEGRA NA BACIA DO NILO1

Márcio Monteiro Rocha2

Na Unidade 1 - ‘Religiões e religiosidades de Matriz Africana: A experiência


africana’, da disciplina ‘Religiões Afro-brasileiras’, do Curso de Especialização em
Ciências da Religião e Ensino Religioso da Universidade Estadual do Norte do Paraná -
UENP, o Prof. Dr. Antonio Donizeti Fernandes destaca a função que a região da Bacia
do Nilo exerceu como um dos principais berços da civilização.
A questão em torno do que hoje classificamos ‘sagrado’ constituiu um dos
elementos embrionários de maior destaque na organização social destes berços
civilizatórios. Povos originários diversos que naturalmente se encontraram em torno das
principais bacias hidrográficas do planeta, aplicaram variados conceitos de ‘sagrado’
como norteadores da organização hierárquica de suas famílias, clãs, tribos, povos e
nações.
As sociedades africanas de pele negra se destacaram como uma das civilizações
mais pujantes, senão a principal, em termos de organização e desenvolvimento cultural,
social, político, artístico, científico e medicinal no continente africano, na Bacia do
Nilo, especialmente a partir de sua região Delta, no Alto Egito, na interface das relações
com o mundo Mediterrâneo. É do extenso Vale do Nilo que procedem os ancestrais de
povos proeminentes como os Iorubá3.
Diferentemente do que possam alegar determinadas nações mediterrâneas, a
direção do desenvolvimento humano e tecnológico ao longo da história, se deu a partir
da África para o Norte, Leste e Oeste, e não ao contrário, de forma que todas as demais
civilizações usaram como fonte de seu próprio desenvolvimento, o arcabouço técnico e
intelectual das sociedades africanas de pele negra.

1
Trabalho acadêmico exigido na Unidade 1: ‘Religiões e religiosidades de Matriz Africana: A experiência
africana’, da disciplina ‘Religiões Afro-brasileiras’, ministrada pelo Prof. Dr. Antonio Donizeti Fernandes,
no Curso de pós-graduação em Ciências da Religião e Ensino Religioso da Universidade Estadual do
Norte do Paraná – UENP. 20 fev. 2023.
2
Pós-graduando em Ciências da Religião e Ensino Religioso. E-mail: marcio.mrocha@hotmail.com
3
A denominação “Iorubá” é hoje aplicada a um conjunto de povos oeste-africanos localizado em partes
dos territórios das atuais repúblicas de Nigéria, Benin e Togo. O principal traço de união entre esses
povos é a língua que falam, o iorubá, com algumas variantes locais. Algumas tendências historiográficas
procuram estabelecer a origem dos ancestrais dos Iorubá no Vale do Nilo, onde floresceu a civilização do
Egito faraônico. (LOPES; SIMAS)
Nem mesmo a ideia de religião, instituído por povos europeus e amplamente
difundida através da dinâmica das rotas comerciais do mundo de então, fazia parte do
arcabouço mitológico ou hierofânico das sociedades africanas de pele negra, antes que o
empreendimento colonizador europeu violasse as barreiras do bom senso, ultrajando o
que chamaríamos hoje de Direitos Humanos.
Uma característica da civilização africana que contribuiu para seu avanço e
desenvolvimento foi sua peculiar noção de tempo, construída a partir de sua herança
mitológica, em que passado, presente e futuro se reúnem numa mesma perspectiva,
possibilitando a comunhão com a sabedoria ancestral na definição de metas e objetivos
da sociedade do amanhã, tornando-a capaz de produzir não somente elementos das
culturas e religiões tradicionais africanas, mas de contribuir decisivamente para o
avanço da humanidade.
Antes da colonização europeia a concepção de tempo era compreendida a partir do
mundo físico real, de acordo com os tempos determinados para a germinação da
sementes, para o crescimento das plantas, para a fecundidade dos animais e das
mulheres, o que obviamente contribuiria para o desenvolvimento da noção de respeito e
reverência em relação aos elementos naturais e aos ciclos de renovação da terra como
um Todo.
De acordo com Lopes e Simas, fazemos parte do Todo sem conhecê-lo. A
humildade, que não temos, nos furta a sabedoria e nos entorpece com mero
conhecimento. As certezas eurocêntricas amam o cientificismo e o academicismo,
excluindo tudo o mais, inclusive a sabedoria da experiência existencial da tradição
africana das pequenas comunidades que dependem da Força Vital que garante a
germinação, o crescimento e a fecundação.
Nas sociedades africanas, o Universo visível é composto pelo invisível, o conecto,
o vivo, o solidário e o perpétuo. Há equilíbrio porque há um Ser Supremo e regras que o
ser humano deve guardar. Desrespeitá-las implica desequilíbrio das forças que regem o
Universo, de forma que a terra treme, o sol destrói, o mar engole e o vento derruba.
No pensamento ancestral africano, há harmonia cósmica porque não há pequeno ou
grande, bonito ou feio, menos ou mais. A ideia ancestral do tempo é a simultaneidade
existencial das coisas do passado que se conectam com as do presente, ambas
configurando as do futuro. Os calendários que marcam o tempo linear são uma ilusão.
A realidade concreta, os valores sociais e a autoconsciência, caminham juntos num
Todo coeso. Na ancestralidade africana, conceber a simultaneidade do tempo passado,
presente e futuro é tão natural quanto consultar o conselho ancestral para tomar uma
decisão correta no presente que garantirá a perpetuidade de uma situação desejável no
futuro.
A origem de toda essa Força Vital é o Ser Supremo. Os ancestrais fundadores dos
diferentes clãs africanos, são os intermediários entre o Ser Supremo e os ilustres de cada
clã. São eles que transmitem a Força Vital dos primeiros ancestrais para aqueles que
tem maior proximidade por ordem de parentesco.
A Força Vital de um ser humano pode influenciar direta ou indiretamente a de
outro e daquilo que se segue hierarquicamente, como os animais, os vegetais e os
minerais, tidos como seus meios de vida. A proteção contra a diminuição da Força Vital
é encontrada nas divindades e nos espíritos dos antepassados por meio do culto ou ritual
de revigoramento.
Portanto, o relacionamento com o real tem seu fundamento na crença da Força
Vital de cada parte componente do Universo, e pode ser expresso por meio da dança,
dos rituais, dos objetos, dos alimentos sagrados, dos elementos da natureza, da
integração dos corpos com a batida dos tambores, a fim de que a Força Vital seja
revigorada.
Por exemplo, o mooyo é a Força Vital dos Banto4, é o seu jeito de ser, sua forma de
vida e de expressão. Para os Banto, o mooyo é a matéria universal presente em todas as
coisas, e é através dele que tudo cresce e vive, as plantas, os animais e até mesmo as
pedras, que servirão como fonte de medicamentos para o ser humano.
A harmonia e o equilíbrio são condições indispensáveis para a renovação da Força
Vital para que ela oriente as ações na sociedade, e a magia é um instrumento poderoso
para ajustar estas condições, mas se a liderança espiritual não usá-la para trazer
benefícios, contribuirá com a desestruturação da sociedade, interrompendo a comunhão
entre ela e o Ser Supremo.
Todo esse repertório cultural africano contribuiu na composição do berço da
civilização na Bacia do Nilo, origem das sociedades africanas de pele negra. É a partir
da região do Egito que são aperfeiçoadas as técnicas de cultivo da terra, a educação dos

4
Os Banto vivem predominantemente no sudoeste da Tanzânia e no nordeste de Moçambique, no
planalto de Mueda. Acredita-se que sua origem tenha se estabelecido a partir do encontro, em tempos
remotos, de diferentes grupos que se refugiaram nas terras altas do nordeste moçambicano. São
conhecidos, sobretudo, pela excelência de sua arte, que guarda sentidos profundos de reflexão sobre os
fenômenos do homem e da natureza (LOPES; SIMAS)
filhos, a preservação dos valores sociais, a literatura, a medicina, a geometria, o
calendário, o sentido da arte na pintura corporal e mural, o culto ancestral e os rituais.
Ainda que o legado universal do Egito no tocante à arte, ciência e literatura tenha
sido reconhecido ao longo dos séculos, o preconceito etnorracial contra as sociedades
africanas de pele negra é um legado característico da hegemonia europeia que,
apressadamente, desconsidera a riqueza da herança mitológica da Bacia do Nilo,
chegando ao ponto de motivar a busca pelo embranquecimento do Egito.
As diversas dinastias faraônicas de pele negra do Egito, aliadas à interpretação
moderna dos seus principais monumentos imperiais, testemunham, irrefutavelmente, a
favor do protagonismo egípcio na composição das mais importantes doutrinas
filosóficas, no desenvolvimento das artes, da política, da medicina, da ciência e da
tecnologia.
Como considerações finais, destaca-se o fato de que foi a tradição científica egípcia
de pele negra que constituiu a escola de Alexandria a partir de um sólido fundamento
nas ciências e na filosofia, da qual se serviram mestres como Tales, Pitágoras e Platão,
gerando enorme influência civilizatória ao atravessar mundos como o grego, o árabe e o
europeu até culminar com a Renascença e encher de riquezas o mundo moderno.

Referências
LOPES, N.; SIMAS, L. A. Filosofias Africanas: uma introdução. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2020.

Você também pode gostar