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ANAIS DO I CONGRESSO INTERNACIONAL PESSOA E

COMUNIDADE: FENOMENOLOGIA, PSICOLOGIA E TEOLOGIA

E III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HUMANIDADES E

HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

Gilberto Safra

Maristela Vendramel Ferreira

(Organizadores)

Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon


Departamento de Psicologia Clínica

INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP

São Paulo - 2014


Catalogação na publicação

Biblioteca Dante Moreira Leite

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Congresso Internacional Pessoa e Comunidade: fenomenologia,


psicologia e teologia (1.: 2014 São Paulo, SP)

Anais do I Congresso Internacional Pessoa e Comunidade:


fenomenologia, psicologia e teologia e III Colóquio Internacional de
humanidades e humanização da saúde, realizado em São Paulo, SP,
2014 / organizado por Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, Gilberto Safra
e Maristela Vendramel Ferreira. - São Paulo: IPUSP, 2014.

Publicação digital.

ISBN: 978-85-86736-60-5

1. Psicologia 2. Fenomenologia 3. Teologia 4. Pessoa 5.


Comunidade I. Título.

RC467

2
I CONGRESSO INTERNACIONAL PESSOA E COMUNIDADE:

FENOMENOLOGIA, PSICOLOGIA E TEOLOGIA E III COLÓQUIO

INTERNACIONAL DE HUMANIDADES E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE

22, 23 e 24 de setembro de 2014

UNIFESP – São Paulo

ORGANIZAÇÃO GERAL

Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon - IPUSP

Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde - UNIFESP

COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez - IPUSP

Prof. Dr. Gilberto Safra - IPUSP

Pós-Doutoranda Maristela Vendramel Ferreira –CAPES/PNPD/IPUSP

COMISSÃO CIENTÍFICA

Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian – UNIFESP

Prof. Dr. Márcio Luís Fernandes–PUC/Pr

Pós-Doutorando José Alberto Moreira Cotta – FAPESP/IPUSP

Doutoranda Suzana Fillizola Brasiliense Carneiro – FAPESP/IPUSP

3
Profa. Dra. Florinda Martins – UCP, Porto

Profa. Karin Hellen Kepler Wondracek – Faculdades EST, São Leopoldo

Mestrando Danilo Salles Faizibaioff –IPUSP

COMISSÃO DE APOIO

Dra. Jacqueline Santoantonio - UNIFESP

Yuri Bittar - UNIFESP

Mestrando Paulo Henrique Curi Dias – FAPESP/IPUSP

Doutorando Demétrius Alves de França -IPUSP

Mestrando João Pedro Jávera –IPUSP

Klyus Vieira de Freitas – Laboratório Prosopon/IPUSP

Maria Helena Molinari – Laboratório Prosopon/IPUSP

Cláudia Lima Rodrigues da Rocha - IPUSP

Gérson da Silva Mercês - IPUSP

Sonia Regina Pereira Piola Luque –IPUSP

Gilberto Carvalho - IPUSP

Nadia Vitorino Vieira - UNIFESP

Maria Auxiliadora Craice de Benedetto –UNIFESP

Luziete M. S. Dal Poggetto – UNIFESP

4
Isabelle Gayon - Tradutora de francês

APOIO

FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CNPq -Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

PARCERIAS

Editora Escuta e Livraria Pulsional

Instituto Sobornost e Livraria Resposta

GT Psicologia e Fenomenologia – Associação Nacional de Professores de Pós-

Graduação - ANPEPP

Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica - ABRAPFO

Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche Roma, afiliado ao The World

Phenomenology Institute, U.S.A.

Société Internationale de Psychopathologie Phénoméno-structurale, France.

Ressalva: Os textos apresentados são de criação original dos autores, que responderão

individualmente por seus conteúdos ou por eventuais impugnações de direito por parte

de terceiros.

5
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon...................................................................16

O incondicional da condição humana: filosofia, espiritualidade e sociedade

Florinda Martins e Andrés Eduardo Aguirre Antúnez....................................................21

TRABALHOS COMPLETOS

CONFERÊNCIAS

Comprendere le psicopatologie. Un approccio fenomenológico

Angela Ales Bello.............................................................................................................33

Edith Stein – Comunidade e mundo da vida

Aparecida Turolo Garcia (Irmã Jacinta) .......................................................................61

Saberes sobre pessoa e comunidade transmitidos e elaborados pelos “médicos da alma”

no Brasil colonial

Marina Massimi...............................................................................................................72

Em que solo se nutre a ciência? Michel Henry: para uma cultura interdisciplinar

Florinda Martins.............................................................................................................93

La psychopathologie comme indicateur décisif de la nature des liens et articulations


entre singularité personelle et appartenance communautaire

Jean-Marie Barthélémy.................................................................................................121

Confiança e convivência: pessoa e comunidade na perspectiva de uma teologia pública

Rudolf von Sinner.........................................................................................................142

Corpopropriação em Michel Henry: o trabalho clínico

6
Maristela Vendramel Ferreira.....................................................................................165

Psicanálise e literatura: visitando Imre Kertész

José Alberto Cotta.........................................................................................................181

A contribuição de Pavel Florensky para a situação clínica

Gilberto Safra................................................................................................................197

Pavel Florenskij: o pensamento complexo e a psicologia

Márcio Luiz Fernandes..................................................................................................204

MESAS REDONDAS

Pessoa-comunidade e inter-relações na obra de Edith Stein

Clélia Peretti..................................................................................................................222

Edith Stein e o conceito de pessoa

Juvenal Savian Filho......................................................................................................236

A empatia no corpo a corpo de comunidades de combate: o circuito sensível do

encontro – da arte marcial à abertura clínica

Cristiano Roque Antunes Barreira................................................................................253

O que pode o corpo de uma criança autista?

Maria Izabel Tafuri.......................................................................................................270

Psicologia, teologia e fenomenologia: em busca de mútuo (re)conhecimento

Karin Hellen Kepler Wondracek…………………...................…………....................284

Algumas considerações sobre o perdão e o não-perdão na clínica do envelhecimento

Fernando Genaro Junior...............................................................................................314

Contribuições de Eugène Minkowski no campo do Acompanhamento Terapêutico (AT)

de pacientes graves

7
Danilo Salles Faizibaioff...............................................................................................330

O Homem do Subsolo encontra a clínica

Renan Silva Carletti……………………………………………............……...............350

A literatura na clínica fenomenológica: pessoa, vivências e leitura

Jean Marlos Pinheiro Borba.........................................................................................368

Linguagem e fenomenologia: estudos sobre a palavra no acontecer da psicoterapia

Andrea Cristina Morganti e Andrés Eduardo Aguirre Antúnez....................................384

Vivências psíquicas face à violência na perspectiva da fenomenologia de Edith Stein

Suzana F. Brasiliense Carneiro e Andrés Eduardo Aguirre Antúnez...........................405

COMUNICAÇÕES ORAIS

Plantão psicológico de gestantes hipertensas atendidas no ambulatório de hipertensão

arterial e nefropatias na gestação na Escola Paulista de Medicina da Universidade

Federal de São Paulo – EPM – UNIFESP

Vera Lucia Lotufo Belardi Neto, Jussara Sato e Nelson Sass.......................................430

Edith Stein lê Hans Ulrich Gumbrecht: uma análise do século XX

Danilo Souza Ferreira...................................................................................................446

A pessoa espiritual e sua consciência moral

Marcos Vinicius da Costa Meireles..............................................................................461

Emoção em contexto da psicoterapia fenomenológica existencial

José Tomás Ossa Acharán e Daniel Sousa...................................................................476

O rebaixamento como fator de prestígio social no discurso do Morgado de Mateus

8
Renata Ferreira Munhoz................................................................................................502

As exigências e pressões da vida contemporânea

Fernando José Matias e Stéfani Niewöhner..................................................................528

Cicloturismo, corpo, saúde e qualidade de vida

Leandro Dri Manfiolete e Carmen Maria Aguiar.........................................................555

Thomas Bernhard: lucidez e testemunho em tempos sombrios: um diálogo entre a

literatura e a clínica psicanalítica contemporânea

Daniel Franção Stanchi.................................................................................................584

A relação subjetiva como lugar de memória: encontro em clínica analítico-existencial

Jaqueline Cristina Salles e Jorge Miranda de Almeida................................................614

Barbárie na psicanálise, ciência e cultura. Uma intersecção conceitual

Maria Aparecida da Silveira Brígido............................................................................629

Saúde e vida de qualidade na educação física escolar: percepções discentes

Suzana Madalena de Melo Silva e Luiz Gonçalves Junior...........................................641

Interculturalidade e educação física escolar: perspectivas para educação das relações

étnico-raciais

Luana Zanotto e Luiz Gonçalves Junior.........................................................................670

O mundo da vida na perspectiva do usuário de drogas

Valéria Christine Albuquerque de Sá Matos e Jean Marlos Pinheiro Borba..................688

Institucionalização, à luz da teoria bowlbyana do apego

Mauro Luiz Ferreira Silva.............................................................................................708

9
Notas sobre a ontologia freudiana – articulações entre ontologia, ética e estética

Ligia Maria Durski e Gilberto Safra..............................................................................735

PÔSTERES

O amor sob a ótica fenomenológica-existencial

Thiago de Almeida.........................................................................................................762

Os âmbitos irreflexivo e reflexivo da consciência em Sartre

Flávia Augusta Vetter Ferri e Carla Maria Voitena.....................................................779

RESUMOS

Fenomenologia, sofrimento e crise psíquica grave: em busca de sentidos

Ileno Costa.....................................................................................................................791

A maior dor do mundo: o luto materno em uma perspectiva fenomenológica

Luís Henrique Fuck Michel e Freitas, J.L. ...................................................................792

Fenomenologia e teologia no texto freudiano: intercessões acerca da pessoa humana

Karla Daniele de Sá Maciel Luz ...................................................................................793

O (des)aprendizado do método cartesiano e a ética fenomenológica-existencial

Paulo Alexandre Françoso e Anisha Gonçalves Santana .............................................794

Grupo aberto de escuta: quando a comunidade acolhe a si própria

Mônica Mendes Gonçalves ...........................................................................................795

A contribuição da terapia em grupo do CAPS- AD ao esquizofrênico dependente químico

Douglas Marcel da Silva Buzoni, Sampaio, G.O e Barbosa, A.P...................................796

O sofrimento dos alunos do Instituto de Psicologia da USP

Maria Gertrudes Vasconcellos Eisenlohr .....................................................................797

Contribuições de Stein para compreensão da experiência ontológica

10
Roberta Vasconcelos Leite ............................................................................................798

A formação da pessoa em Edith Stein

Adair Aparecida Serga ..................................................................................................799

A hermenêutica filosófica: contribuições para a psicologia hospitalar

Matos, V.C.A.S e Silva Jr, A.F. ......................................................................................800

Cicloturismo, educação ambiental e lazer: processos educativos vivenciados na Serra da

Canastra

Clayton da Silva Carmo, Luiz Gonçalves Junior e Denise Aparecida Corrêa................801

χ sala de aula e o “momento de brincar”

Tagiane Maria da Rocha Luz ........................................................................................802

A empatia na constituição do corpo próprio em Edith Stein

Rudimar Barea………………………………………………………………..........….803

Edmund Husserl e Aron Gurwitshc em torno da psicologia da Gestalt

Hernani Pereira dos Santos...........................................................................................804

Deus e o diabo na clínica do sofrimento psíquico grave: fenômeno religioso e

espiritualidade nas crises do tipo psicótica

Raquel de Paiva Mano e Ileno Izidio Costa ...................................................................805

Grupo de intervenção precoce em primeiras crises do tipo psicótica – GIPSI

Ileno Costa e Raquel de Paiva Mano .............................................................................807

O cuidado como uma ética: um diálogo entre Edith Stein e Donald Winnicott

André Luiz de Oliveira e Andrés Eduardo Aguirre Antúnez.........................................809

A formação do psicólogo através da experiência literária

Felipe Stiebler Leite Villela ..........................................................................................810

A experiência do despertar do esquecimento do ser em Heidegger

Elton Augusto Pinotti e Souza .......................................................................................811

11
Liberdade e noção de pessoa no Islã: categorias de entendimento interdisciplinar

Isabel Munhoz Forero e Francirosy Campos Barbosa Ferreira ...................................812

Contribuições da teologia kierkegaardiana para a concepção de indivíduo em Theodor

Adorno

Yonara Dantas de Oliveira ............................................................................................813

Alteridade e comunidade: a arte de dar a outra face

Roberto Rosas Fernandes .............................................................................................814

Em devoção: encontros em busca do humano

Klyus Vieira de Freitas e Andrés Eduardo Aguirre Antúnez ........................................815

A mística na interface entre o psíquico e o ontológico

Paulo Henrique Curi Dias .............................................................................................816

Camus e "A pedra que cresce": cultura popular, religiosidade e comunhão

Gabriela Balaguer.........................................................................................................817

Fontes de aprendizagem em comunidades baseadas em empreendedorismo social

Valentina Medrano ........................................................................................................818

Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e a psicanálise: um diálogo possível

Maria Teresa Moreira Rodrigues ..................................................................................819

O sem-fundo humano e as fraturas da racionalidade

Sandro Santos Da Rosa e Andrea Nicaretta ..................................................................820

Acompanhando indivíduos tornarem-se pessoas: experiência elementar e a

relacionalidade trinitária no atendimento psicológico

Davi Chang Ribeiro Lin ................................................................................................821

Idealização neurótica da imagem e identidade pastorais na dinâmica social

contemporânea

Thomas Heimann ..........................................................................................................822

12
Sofrimento psíquico na adolescência: AT, universidade e comunidade

Margarida Mamede ......................................................................................................823

Reflexões sobre o instrumento chamado educação

Maria da Conceição Aparecida Silva ............................................................................824

O aconselhamento pastoral como forma de cuidado junto a pessoas com depressão

Fernando José Matias ...................................................................................................825

Repercussões clínicas de uma experiência de musicoterapia com pessoas em sofrimento

psíquico

Mariana Puchivailo e Adriano Holanda .......................................................................826

Contribuições da fenomenologia para atuação de profissionais na atenção básica de saúde

Joelma Ana Gutiérrez Espíndula; Silva, C.S.M e Angolo, J.L.G. ..................................827

A relação entre fenomenologia e filosofia cristã na fenomenologia de Edith Stein

Mak Alisson Borges de Moraes & Tommy Akira Goto...................................................828

Subjetividade transdisciplinar: a construção de um campo epistemológico integrado

Luiz Eduardo Valiengo Berni ........................................................................................829

Experiência religiosa da prece na prática clínica

Stella Maris Souza Marques e Thaíke Augusto Narciso Ribeiro....................................830

O tratamento e o cuidado com a pessoa hospitalizada

Yolanda Forghieri..........................................................................................................831

Comunicações entre fenomenologia, psicologia e história

Leandro Penna Ranieri..................................................................................................832

O voluntariado na perspectiva do trabalhador voluntário em uma comunidade ludovicense

Neiliane Lima da Silva e Borba, J.M.P...........................................................................833

Posicionamento voluntário autêntico na obra de Edith Stein

Achilles Gonçalvez Coelho Junior e Miguel Mahfoud ...................................................834

13
Edith Stein e a formação humana: fundamentos para uma educação integral

Magna Celi Mendes Da Rocha e Antunes, M.A.M .........................................................835

Teologia do ori-bará: contribuições das religiões afro-brasileiras sobre a noção da pessoa

João Luiz Carneiro ........................................................................................................836

A relação entre criador, criatura e o grupo em J. L. Moreno

Anete Roese ...................................................................................................................837

Alcoólicos anônimos e a recaída: análise à luz da experiência elementar

Dionete Maria Mendes Nogueira e Coelho, Jr, A.G. .....................................................838

Contribuições da psicoterapia ao enfrentamento do luto – com a palavra mães enlutadas

Freitas, J. e Zomkowski, T. L. ........................................................................................839

Neuroses eclesiásticas e seu tratamento no evangelho

Karl Heinz Kepler .........................................................................................................840

Interpessoalidade na pós-modernidade: uma mudança de paradigma

Adriano Aparecido Apolonio e Cleiton José Senem ......................................................841

A presença da fenomenologia de Edmund Husserl na filosofia japonesa de Kitaro Nishida

Tommy Akira Goto.........................................................................................................842

O aumento do consumo de álcool em mulheres: uma reflexão heideggeriana

Marciana G. Farinha....................................................................................................844

Acompanhamento terapêutico: prática eficaz para reabilitação psicossocial na atenção

primária?

Marciana G. Farinha....................................................................................................845
ANEXO I – Programação do Congresso......................................................................846

14
APRESENTAÇÃO

15
NÚCLEO DE PESQUISA E LABORATÓRIO PROSOPON

Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

Departamento de Psicologia Clínica

O Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon agrega e desenvolve investigações

interdisciplinares, visando repensar a clínica psicológica, reposicionando-a a partir da

compreensão da Pessoa Humana, por meio de seu ethos, abordada no vértice ontológico.

Foi oficialmente constituído no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em

2014. Contudo, sua existência e proposta científica é fruto da evolução de 25 anos de

trabalho do Prof. Dr. Gilberto Safra1 - acompanhado posteriormente pelo Prof. Dr. Andrés

Eduardo Aguirre Antúnez, que também o acompanhava no LET e com o qual compartilha

a coordenação do Núcleo - e dos alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-

doutorado, além de parceiros e interlocutores de universidades nacionais e internacionais

que, ao longo dos anos, contribuíram com pesquisas, discussões, amizade e o

compartilhamento de ideais e sonhos.

Dentre eles destacamos: Profa. Angela Ales Bello e Prof. Lubomir Zak da

Pontificia Università Lateranense de Roma, a Profa. Aparecida Turolo Garcia da

Universidade Sagrado Coração; Prof. Sergei Khoruzhi, do Instituto de Filosofia da

Academia Russa de Ciência, Moscou; Profa. Florinda Martins da Universidade Católica

Portuguesa, Porto; Prof. Jean-Marie Barthélémy e Profa Annie Barthélémy, Université de

Savoie, Chambéry.

1
Iniciado na Pontifícia Universidade Católica com o Laboratório de Estudos da Transicionalidade (LET).

16
Prosopon ou Pessoa

A noção de pessoa foi definida com precisão nos primeiros séculos do

cristianismo na teologia dos capadócios. Nela a pessoa é entendida como ser de liberdade

e relacional, apresentando-se de modo singular, sem que seja possível sua objetificação

– alteridade resistente ao domínio cognitivo. O termo pessoa contempla o ser humano em

sua dignidade, pois como ser de ação constitui sentidos, funda mundos, encontrando sua

atualização na relação com o outro, em meio à vida comunitária.

A Pessoa Humana, nessa perspectiva, demanda ser abordada em sua

complexidade, sem ser reduzida a coisa ou a um conceito, de modo que seu gesto possa

emergir em meio à vida privada e pública como ação pessoal e política. Esta noção torna-

se fundamental na abordagem da situação clínica na atualidade, quando a condição

humana é posta em questão por meio da hipertrofia do horizonte tecnológico que ameaça

a dignidade e a existência humana.

O estudo da obra do psicanalista inglês Donald Winnicott tem possibilitado o

manejo de inúmeras situações clínicas, de maneira a formular intervenções com os

pacientes que preservem a comunicação do sofrimento vivido por eles, sem reduzi-lo ou

transformá-lo em uma abstração teórica. A partir desse autor e em diálogo com a filosofia

russa encontramos a concepção russa de Sobórnost (comunitário) - perspectiva fecunda

para compreendermos e manejarmos os problemas que encontramos na clínica

contemporânea - na qual a compreensão de pessoa como ser relacional e comunitário,

permite abordar os quadros psicopatológicos contemporâneos, nos quais, frequentemente

o ethos humano se encontra estilhaçado.

Por meio de intervenções clínicas, realizadas em diferentes modalidades de

trabalho (arte terapia, acompanhamento terapêutico, placement), que dialogam com as

17
consultas terapêuticas do psicanalista inglês Donald Winnicott, se oferece a oportunidade

de expressão dos conflitos, o que permite à dupla terapêutica surpreender-se e superar

paralisações no desenvolvimento. O vértice fenomenológico nessas práticas é

fundamental, pois nos auxilia a sustentar o lugar da expressão, da afetividade, da

linguagem pessoal, o espaço e o tempo vividos, a ética e o estético como dimensões

importantes na clínica e da pessoalidade do ser humano.

Em nossas investigações clínicas, nos deparamos com novas formas de sofrimento

humano na atualidade, capazes de colocarem os princípios da clínica tradicional em

questão. No diálogo com a fenomenologia, a literatura, a filosofia e a teologia russa,

encontramos concepções fecundas que nos auxiliam a realizar nosso trabalho de

pesquisadores e de clínicos alinhados à compreensão do que o outro necessita para que

possa ganhar equilíbrio, maturidade e recuperar-se.

O Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon considera que o mundo

contemporâneo e os seus desafios, como as transformações sociais, do trabalho,

econômicas, tecnológicas e suas consequências para a saúde das pessoas, demandam a

cooperação e articulação de diferentes áreas do conhecimento, de modo que a ciência

possa responder às questões prementes e complexas que atualmente afetam a comunidade

humana. A abordagem interdisciplinar, desse modo, se faz indispensável2.

A ideia da formação do Laboratório nasceu em uma conversa entre Gilberto Safra

e Andrés Antúnez, mais especificamente nas andanças amistosas em estação ecológica

do litoral de São Paulo em 2012 e foi se desenvolvendo. Em 2013 essa ideia foi

compartilhada com a Profa. Angela Ales Bello, Irmã Jacinta Turolo Garcia, Prof. Márcio

2
O primeiro evento do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon foi o seminário internacional Interface
entre Psicanálise e Literatura: visitando lmre Kertész, organizado pelos Profs. Gilberto Safra e José Alberto
Moreira Cotta, realizado no IPUSP em abril de 2014. Disponível em: http://www.youtube.com

18
Fernandes e Profa. Clelia Peretti em reunião realizada na casa do Prof. Safra em setembro

de 2013. Incluir o Núcleo em primeiro lugar visa mostrar as pesquisas a serem realizadas

e colocadas em prática no Laboratório, por sugestão da Profa. Ales Bello, bem acolhida

pelos coordenadores. Neste momento surgiu também a concepção de realizar um

congresso internacional e consolidar nossos intercâmbios.

Originalmente o congresso aconteceria na USP, mas dada a grande procura e

interesse das pessoas e a delicada situação que ocorria na universidade devido à greve, os

organizadores fizeram contato com a Universidade Federal de São Paulo em busca de um

gesto de solidariedade científica e humana.

Neste sentido, graças à generosidade e competência do Prof. Dr. Dante Marcello

Claramonte Gallian, realizamos o evento em parceria com o Centro de História e

Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP, por ele coordenado, na Vila Clementino

(Vila Universitária) nos dias 22, 23 e 24 de setembro de 2014, em São Paulo.

O Congresso

O Congresso teve como objetivo abordar a pessoa e a comunidade em diálogo

interdisciplinar. Participaram pesquisadores nacionais e internacionais das áreas das

Ciências Humanas e Ciências da Saúde. Buscaram discutir o conceito de Pessoa Humana

e comunidade entre as diferentes áreas do saber, possibilitando interlocuções entre o

campo de investigação clínica e o campo filosófico e teológico que articulassem as

experiências e vivências clínicas da Pessoa Humana, considerada em seu ethos em

diferentes contextos culturais.

19
O evento, apoiado pela FAPESP3, CAPES4 e CNPq5, foi um sucesso. Contou com

público de cerca de 300 pesquisadores e estudantes vindos de diferentes áreas do saber –

psicologia, filosofia, teologia, medicina, enfermagem, fonoaudiologia, pedagogia,

história, letras - e de diversas regiões do país. Aproximadamente 90 trabalhos científicos

foram apresentados entre conferências, mesas redondas, comunicações orais e pôsteres.

Neste Anais do I Congresso Internacional Pessoa e Comunidade:

Fenomenologia, Psicologia e Teologia e III Colóquio Internacional de Humanidades e

Humanização em Saúde, compartilhamos a maior parte da produção escrita resultante

desse evento. Agradecemos aos colaboradores que enviaram seus textos e esperamos que

o público possa se beneficiar da consistente produção apresentada nesta perspectiva

interdisciplinar.

Comissão Organizadora

3
Processo FAPESP n.2014/10.498-9
4
Processo CAPES/PAEP n.4949/2014-61
5
Processo CNPq /APV n.453.550/2014-2

20
O INCONDICIONAL DA CONDIÇÃO HUMANA

FILOSOFIA, ESPIRITUALIDADE E SOCIEDADE

Florinda Martins

Universidade Católica Portuguesa – Porto, E:mail: flmartins@porto.ucp.pt

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

Universidade de São Paulo, E-mail: antunez@usp.br

Em 1963 Michel Henry publica uma extensa obra sob o título A Essência da

Manifestação6. Uma obra cuja tese consiste em mostrar que o invisível revela o que o

visível elimina e oculta. Tese essa que se desenvolve como que em antítese7 ao conceito

de manifestação que, atravessando embora toda a história da filosofia, ocupa lugar

cimeiro nas questões da fenomenologia tradicional, leia-se Husserl e Heidegger, e cujo

suposto é ser o visível a revelar o invisível, embora tendo este como fundamento daquele.

Ora, sendo o invisível, em M. Henry, um outro nome da Vida8 a questão de fundo

da fenomenologia tradicional, isto é, a pergunta pelo como acedemos às coisas, passará,

necessariamente pela questão do acesso à Vida. Uma Vida que faz prova de si, revelando-

se no processo constitutivo do nosso próprio ser, no qual nos sentimos viver. Um processo

no qual participamos pelo que com a verdade da Vida se dá a verdade de nós próprios:

somos revelados a nós próprios no advir da Vida mesma. Assim a intriga vivo/vida mais

se assemelha a uma teogonia do que a uma teologia, complexificando a tese da conversão

6
Michel Henry, L’Esse e de la Ma ifestatio , Paris, PUF, 1963. [EM].
7
Michel Henry, «Narrer le pathos» in Phénoménologie de la vie, T. III. Paris, PUF, 2004, pp. 310-311.
8
EM, p. 557 «A determinação ontológica positiva da Noite constitui, no seu ser idêntico à vida, a
efetividade originária da fenomenalidade pura e da sua essência».

21
da fenomenologia à teologia9. E isso porque, se em verdade podemos ver na

fenomenologia da vida, em M. Henry, uma cristologia fenomenológica, não deixa de ser

menos verdade que essa cristologia fenomenológica é tão só o arquétipo de o aparecer do

invisível em cada vivo, aparecer sempre novo como sempre nova é a nossa história

pessoal e comunitária.

A primeira destas possíveis leituras da obra de M. Henry – fenomenologia da vida

enquanto uma cristologia fenomenológica – foi feita em 1998. Nesse ano, M. Henry

esteve na Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, para a apresentação da sua obra Eu

sou a Verdade, a primeira das obras de M. Henry a ser traduzida para Português10.

Enquanto tradutora, F. Martins fez parte da mesa de apresentação da obra e, a convite de

M. Henry, pronunciou algumas palavras sobre as implicações da fenomenologia da Vida

na cultura. Como o texto do convite para o lançamento da obra, a tinha apresentado como

uma fenomenologia de suporte ao diálogo ecuménico, M. Henry pediu-lhe que

desenvolvesse um pouco mais a ideia expressa no convite. Cabe aqui dizer que por

diálogo ecuménico entendemos não apenas o diálogo inter-religioso, mas o diálogo entre

aqueles que, partilhando a mesma condição, a condição de nascidos na e da vida, veem,

nesse vínculo com ela, a sua mais originária verdade. Uma verdade que, porquanto

originariamente vinculada à vida, impregnava toda a atividade humana, por conseguinte,

a cultura, seus conflitos e dinâmicas. Um discurso em conformidade com as teses

publicadas num artigo sob o título C’est moi la Vérité: Para uma cristologia

fenomenológica11. O desenvolvimento da tese Cristologia fenomenológica tem em

9
D. Janicaud, Le tournant théologique de la phénoménologie française, Paris, Combas, 1991.
10
Michel Henry, C’est oi la Vé ité: pou u e philosophie du h istia is e, Paris, ed. Du Seuil, 1996.
Tradução Portuguesa de Florinda Martins Eu sou a Verdade: para uma filosofia do cristinaismo, Lisboa,
Vega, 1998.
11
Flo i daàMa ti s,à«C està oiàlaàV it :àpa aàu aà istologiaàfe o e ol gi a,àin Itinerarium, Ano XLII, nº
155, Maio-Agosto, 1996, pp. 475-480.

22
consideração, de M. Henry, não apenas a obra Eu sou a Verdade, mas ainda o texto Difícil

democracia12. Além disso, à altura, estava ainda bem presente, em todos os participantes,

o primeiro Colóquio Internacional sobre M. Henry, realizado em Cérisy - 1996, em que

estes textos, apresentados pelo próprio M. Henry foram alvo de um intenso debate em

torno do exercício da liberdade. Para o fenomenólogo, toda a liberdade repousa em um

poder. E se a liberdade de que falamos é a nossa liberdade, ela é, então, a capacidade de

exercício dos poderes que, fenomenologicamente, dispomos, enquanto gerados no

autoengendramento da vida. Estes dois textos – Eu sou a Verdade e Difícil democracia -

foram de imediato vistos em confronto com as teses de E. Levinas ou, mais

especificamente, com o texto Difícil liberdade. Todavia, mais do que o confronto entre

estes dois pensadores, é importante focarmo-nos na tensão inerente à manifestação da

vida invisível, no limite de toda a redução13. Hoje, ainda que diferenciemos ecumenismo

de diálogo inter-religioso14 e filosofia política de teologia pública15, o essencial do debate

centra-se, a nosso ver, na constituição da fenomenologia da vida poder ser uma cristologia

fenomenológica. A questão fenomenológica é então a compreensão da nossa condição de

vivos na Vida. Sendo à luz dessa condição que tanto Democracia como liberdade; tanto

sociedade como ipseidade devem ser compreendidas. Assim, e sem branquear a

complexidade do debate religião, filosofia e sociedade, orientaremos este texto por uma

questão ainda mais abrangente do que a de 1998, atrás referida. Começaremos por

interrogar os pressupostos implicados na então denominada cristologia fenomenológica,

para de seguida avaliarmos a atualidade das questões, no que à vida social e comunitária

12
Michel Henry, «Difficile Démocratie», in Michel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Seuil, 2001, pp 39-54.
Tive acesso a este texto de MH e a outras obras suas antes da sua publicação.
13
Para a fenomenalidade da prova do limite ver de François-David Sebbah, L’ép eu e de la li ite:
Derrida, Henry, Levina set la phénoménologie, Paris, PUF, 2001.
14
José Borges de Pinho, Ecumenismo: situações e perspectivas, Lisboa, UCP Editora, 2011, p. 18.
15
Rudolf von Sinner, Confiança e convivência: reflexões éticas e ecuménicas, São Leopoldo, Sinodal/EST,
2007, pp. 43-67.

23
dizem respeito. Tal significa que, em vez de optarmos por prosseguir o caminho trilhado,

desde então por M. Henry – caminho que vai de uma cristologia fenomenológica para

uma fenomenologia da encarnação16 e desta para a fenomenologia da Palavra17; obras que

completam as teses então enunciadas -, recuaremos ao início do seu debate com a própria

fenomenologia e que foi um debate em torno do fenómeno «manifestação». O que se

entende, então, por manifestação?

Com este recuo pretendemos celebrar ainda os 50 anos da obra de M. Henry A

Essência da Manifestação, mas sobretudo mostrar como é que, nela, o fenómeno da

manifestação é já essencialmente religioso. Para tal, comecemos por comparar a definição

de religião, feita por M. Henry em 1996, com a definição de manifestação em 1963: «a

manifestação é o efetivo processo da vida»; ela é «a Palavra em que tudo está contido, o

nome e a apelação, o que designa e o que mostra» (1963)18; «religio é este vínculo interior

do vivo à vida» (1996)19. Uma mesma ideia une estas definições: a manifestação

processa-se no autoengendramento da vida, no e pelo qual advimos e somos revelados. É

na revelação deste vínculo originário do humano com a vida que, em M. Henry, se

compreende quer uma cristologia fenomenológica quer uma qualquer outra forma de

expressão religiosa como o mostram também esta outra afirmação: «a religião não

pertence ao homem como uma experiência singular, mas como sua essência. Ela designa

o vínculo interior do vivente à vida, da qual aufere a sua condição de vivente, na qual ela

prova tudo o que ele prova»20. Do animismo e do politeísmo à última sociedade religiosa

do ocidente21 (1996) passando pelos conteúdos filosóficos ou formas mais ou menos

16
Michel Henry, Encarnação: uma filosofia da carne, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001.
17
Michel Henry, Palavras de Cristo, Lisboa, Ed. Colibri, 2003.
18
EM, pp. 571 e 351, respetivamente.
19
Michel Henry, «Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 53.
20
«Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 40.
21
Michel Henry, «Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 40.

24
ingénuas de ateísmo22 (1963), as expressões religiosas são inteligíveis apenas à luz do

fenómeno manifestação enquanto experiência originária da verdade do humano e, neste

sentido, essencialmente fenómeno religioso: advir à condição de vivo é advir à vida,

sendo nela manifesto e manifestação.

E se, para a compreensão dessa experiência originária «a filosofia não está

condenada a referir-se a textos que pertencem a um corpus canónico dito filosófico e, de

uma vez por todas, delimitado»; se ela pode encontrar «intuições fundamentais na poesia

e na literatura, em textos ditos espirituais, religiosos ou sagrados»23, só o faz porquanto a

verdade neles contida pode tornar-se contemporânea da verdade neles originariamente

provada24, sem possibilidade de recuo ou de desconfiança, dada que ela é constitutiva do

nosso viver. Pelo que «Toda a crença, por muito estranho ou absurdo que pareça ser, é

uma crença da vida em si mesma e, no limite, é-lhe idêntica»25. É da crença da vida que

as outras crenças vividas em contextos singulares ou outros procedem ainda que não raro

esqueçam esse pressuposto: conhecer só é possível enquanto conato no conhecido. O

termo francês connaître – co-naître – dá-nos a precisa noção do que fenomenologicamente

provamos. Seria assim interessante, neste contexto, ver por que é que a filosofia de M.

Henry se afasta de qualquer tipo de gnose26. Todavia deixamos apenas a referência, para

nos situarmos de novo na obra A essência da Manifestação.

Retomemos de M. Henry a afirmação de que «é quase a totalidade do campo

filosófico, na prática de uma imensa antítese» que ele trabalha. E vejamos agora por que

22
EM, p. 509 e 510.
23
Michel Henry, «Eux en moi: une phénoménologie», in Phénoménologie de la vie, T I, Paris, PUF, 2004,
pp. 208 e 209.
24
CMV, pp. 7-19.
25
Michel Henry, «La question de la vie et de la culture» in Phénoménologie de la vie, T. IV, Paris, PUF,
2004, p. 24.
26
Michel Henry, »La vérité de la gnose» in Phénoménologie de la vie, T.IV, Paris, PUF, 2004, pp. 131-143.

25
é que esta afirmação se adequa na perfeição à fenomenologia, nomeadamente ao conceito

de manifestação.

Num pequeno texto intitulado «O que é uma revelação»27, M. Henry deixa claro

que a fenomenalidade da revelação se efetiva apenas na imanência da vida, porquanto só

a ela é dado revelar-se. Pelo que o que os fenomenólogos entendem por manifestação

pode não passar de uma trivialidade e, no limite, uma abstração28.

A Essência da Manifestação faz prova do que denuncia. A tarefa não se fica pelas

862 páginas que compõem a obra. Esta é antecedida por uma introdução, publicada depois

e independentemente numa obra sobre o corpo, Filosofia e fenomenologia do corpo29,

sendo ainda seguida de um Apêndice cujo título e extensão poderia bem figurar também

ele como uma obra. O título do Apêndice é Pôr a claro o conceito originário da revelação

em oposição ao conceito hegeliano de manifestação30. Um título que não deixa dúvidas

quanto à inserção do debate da fenomenologia de M. Henry nas questões centrais da

filosofia francesa, à época31.

Na obra EM o debate Pôr a claro o conceito originário da revelação em oposição

ao conceito hegeliano de manifestação não é um debate isolado com Hegel. O mesmo se

passa em relação a Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, entre outros. E embora

possamos encontrar no conjunto da obra debates específicos com cada um destes

fenomenólogos, em A Essência da Manifestação o debate estrutura-se deste modo: 1-

27
Mi helàHe ,à«Qu est- eà u u eà e elatio ?»àin Archivio di Filosofia, nº 1-3, vol.LXII, 1994, reeditado
in Michel Henry: vie et revelation, Pu li atio sàdeàL U i e sit àdeà“ai t-Joseph, Beyrouth, 1996, pp. 87-
93.
28
Michel Henry, Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 25. Neste texto Michel Henry chega
mesmo a afirmar a não fenomenalidade do conceito de manifestação e, por conseguinte, uma não
fenomenologia.
29
Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965.
30
EM, pp. 863-906.
31
Para esta questão ver de Marc Herceg «Michel Henry lecteur de Hegel» in Dossier Michel Henry, Paria,
L ágeàd Ho e,à ,àpp. 269-280.

26
caracteriza-os o monismo ontológico – secção I -, isto é caracteriza-os uma forma de

pensar que, no limite, o manifesto não só ganha primazia como se substitui à

manifestação. A secção II – Transcendência e imanência – desconstrói o pressuposto do

monismo: tudo o que ainda não é visível pode vir a sê-lo. A secção III – A estrutura

interna da imanência – sobretudo nos parágrafos 50 e 51 trata o coração da questão. Estes

parágrafos intitulam-se, respetivamente, essência sem rosto / visível e invisível. A tese

central é a de que o invisível revela o que o visível ofusca e elimina32. Tese que se faz eco

e expressão de Os Hinos à noite, de Novalis, e se desdobra em teses negativas e positivas:

«o invisível não é um conceito antitético da fenomenalidade» (EM 550); «por não ser um

conceito antitético da fenomenalidade também o não é do visível» (EM 557); «a

impossibilidade de o invisível se tornar visível»; «não se deve a uma insuficiência» (EM

561); «o invisível fenomenaliza-se, é totalmente fenómeno, revelação e, mais ainda, ele é

a essência da manifestação» (EM 550); «o invisível torna possível a imanência,

determina-a constituindo-a» (EM 553); «toda a vida é por essência invisível; invisível é

a essência da vida» (EM 568).

Vida invisível, porém absolutamente manifesta, conhecida por nós que nela

vivemos com total confiança. Quem de entre nós duvidou, hoje, ao levantar-se, da

possibilidade de se poder levantar? Se nenhum de nós duvidou dessa possibilidade o

modo como cada um de nós a usufruiu foi certamente diferente: para uns foi um prazer

levantar-se, para outros foi com algum desconforto que o fizeram…Ora o que aqui esteve

em causa, e o que está em causa na secção III da obra EM, é a inteira confiança na

manifestação dos poderes da vida em nós. Poderes que a secção IV desenvolve no sentido

de compreender como os efetivamos, no dia-a-dia.

32
EM, 552.

27
Estes são os dois sentidos da imanência da vida: enquanto na secção III a vida

determina o vivente: o outro atinge-me, alcança-me, marca-me pelo afeto33; na secção IV

o afeto revela-se como força e poder. Nesta última, o poder do sentimento é vivido como

sentimento de poder: poder exercer os poderes nos quais somos inteiramente constituídos

e assim participar do enredo da vida: o enredo do real. Diz M. Henry: «a relação entre

afetividade e ação …é uma relação constitutiva da própria realidade»34.

Ora é nesta articulação entre poder de sentimento e sentimento de poder que

consideramos estar a verdadeira inversão fenomenológica: todos os nossos atos são atos

sagrados pois todos eles nos vinculam à vida sendo o nosso viver nela julgado e

manifesto. Não explico a minha vida a minha vida explica-me. Vejamos como. Ao ligar

diretamente a fenomenalidade do poder - «eu posso» husserliano35 - ao cogito cartesiano,

M. Henry liga-o diretamente ao paradoxo da causa sui e ao mesmo tempo ao paradoxo

do poder da finitude ser razão ou fundamento de si. «O poder apenas mostra que é um

poder, dado que nos encontramos de imediato em sua posse, na imanência radical do

sentir»36. A manifestação torna-nos partícipes da vida e assim somos responsabilizados

pelo nosso enredo nela.

E por isso é que na IV secção, os poderes do eu não se circunscrevem aos

tradicionais poderes do cogito «sei que sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que

afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que desconhece muitas, que quer e que não

quer, que também imagina e que sente»37, nem depois dos acrescentos do duque de Lynes

- que ama, que odeia – nem mesmo dos acrescentos que hoje, sabiamente, a ciência e a

33
EM, 552.
34
EM, p. 811.
35
Husserl, Meditações Cartesianas, Trad. de Maria Gorete Lopes e Sousa, Lisboa, Rés-Editora, § 44. p
124..
36
Mi helàHe ,à“ig ifi atio àduà o eptàd i o s ie tàpou àlaà o aissa eàdeàl ho e,ài àMi helà
Henry: auto-donation, Paris, Beauschesne, 2004, p.100-101.
37
Descartes (AT VII, 25)

28
arte lhe apõem38. Fenomenologicamente o desespero é um poder tal como o querer39. O

que será mais tarde confirmado por M. Henry ao falar do poder do temor: «o poder está

em relação consigo mesmo, prova-se imediatamente, da mesma forma que o temor está

em relação consigo mesmo e se prova imediatamente»40. Porém se se prova a si mesmo

ele é também prova da nossa originária relação com outrem. O Outro está sempre

presente. Presente até na relação connosco mesmos: o outro dá-se como afeto.

Assim se unem fenomenologicamente as noções de poder, força e afeto e com elas

a primordial verdade de nós mesmos. Uma verdade que apenas na relação com outrem

conhecemos.

A fenomenologia da comunidade é um dos temas mais centrais e mais

desconhecidos da fenomenologia da vida, em M. Henry. Porém ele esteve sempre

presente nos encontros tidos com ele em Portugal. Lembramos apenas e para terminar a

sua passagem pela Porto 2001, Capital europeia da cultura. O título da sua conferência

«eles em mim: uma fenomenologia»41 é expressão da leitura que MH fez do tema para o

qual foi convidado a falar, a 14 de Setembro desse ano: «os outros em eu».

A vida é o lugar de encontro e de otimização de todas as formas de vida e

manifestações culturais: se «a filosofia não está condenada a referir-se a textos que

pertencem a um corpo canónico dito filosófico nem a ele delimitado uma vez por todas;

38 Não é em uma, nem duas, nem três passagens que esta dimensão do afeto é referida em Descartes. Michel
Henry consagra um capítulo ao afeto da visão, na obra a Genealogia da Psicanálise, a partir da expressão
de Descartes, at certe videre videor (AT, VII, 29) – à e toà ueà eà ejoà e … ueà eàsi toà e …át àpo ueà
essa é a definição de nós mesmos, seres humanos: A questão é que esta definição foi parcialmente
aplicada ao conhecimento dos objetos. O curioso é que isso esteve presente no curso da história da
filosofia de Descartes aos nossos dias. Ora como um pretenso jogo de palavras - Escolho /logo existo
acrescenta Amit Goswami à definição de Descartes38, Diogo Infante, preocupo-me, logo existo, ou então
«jogo, logo existo» in A Filosofia do futebol (2012).
39
EM, p. 852.
40
Michel Henry, Auto-donation, Paris Beauchesne, 2004, p. 217.
41
Michel Henry, «eux en moi: une phénoménologie» in Phénoménologie de la vie, T.I, pp. 208 e 209.
Reedição.

29
pois também se encontram intuições fundamentais algures, na poesia, literatura, textos

espirituais, ou religiosos ou sagrados», também a teologia expressará algo que não o

processo de autoengendramento da vida que assim nela gera o protótipo de cada um de

nós?

Como restituir à vida o seu poder e a sua felicidade de viver a não ser uns com os

outros42? Os conflitos e as cisões manifestam tão-só o fechamento da finitude em si

mesma, porém na vida a verdade da finitude é fecunda: na vida se fecundam religião,

filosofia e sociedade.

42
Michel Henry, «Eux en moi: une phénoménologie» in Phénoménologie de la vie, T.I, pp. 208 e 209.
Reedição.

30
TRABALHOS COMPLETOS

31
CONFERÊNCIAS

32
COMPRENDERE LE PSICOPATOLOGIE

UN APPROCCIO FILOSOFICO – FENOMENOLOGICO

Angela Ales Bello

Pontificia Università Lateranense, PUL, Roma

E-mail: alesbello@tiscali.it

Riassunto: Per comprendere un caso clinico e per orientarsi sulla diagnosi e sulla terapia

non basta riferirsi al DSM, cioè al Manuale Diagnostico e Statistico dei Disturbi Mentali,

di cui è stata pubblicata nel 2014 la quinta edizione, perché si tratta della proposta di

schemi che intendono includere tutti i casi e pretendono di dare indicazioni generali. Al

contrario, qui si si vuole mostrare che solo un’indagine sulla singolarità può consentire di

avvicinarsi alla malattia mentale. Ciò non esclude l’utilizzazione di criteri, ma questi

debbono basarsi su un’analisi filosofico-antropologica. Quella che qui si propone

proviene dalla scuola fenomenologica, in particolare da Edmund Husserl e da Edith Stein.

Tale analisi è alla base della psicopatologia fenomenologica fondata da Ludwig

Binswanger e proseguita in Italia da Bruno Callieri. Attraverso il loro contributo è

possibile procedere alla comprensione delle patologie riguardanti l’atteggiamento

globale, esistenziale dell’essere umano.

Parole-chiave: singolarità; fenomenologia; psicopatologia; psiche; struttura umana

UNDERSTANDING THE PSYCHOPATHOLOGY: A PHILOSOPHICAL-

PHENOMENOLOGICAL APPROACH

Abstract: On occasion of the issue of DSM 2014 the author of the paper intends to show

that the schemes contained in it are not sufficient to understand the meaning of the mental

33
diseases. On the contrary only a research about our singularity can make possible a

diagnosis and a therapy. In any case to proceed in understanding we need some criteria

that must be grounded on a serious philosophical-phenomenological analysis of the

human being. From the philosophical point of view the analyses performed by Husserl

and Edith Stein are very useful and Ludwig ψinswanger’s and ψruno Callieri’s proposals

are very important from a psycho-pathological point of view. Their idea of a global

approach to the human existence and their digging in the human interiority can be threads

for a therapy which must be based on the deep encounter of therapist and suffering person.

Keywords: singularity; phenomenology; psychopathology; psyche; human structure.

Per solito il termine psicopatologia si attribuisce ad una disciplina che ha come

oggetto i disturbi mentali e lo psico - patologo è considerato come lo specialista che

conosce tali disturbi e che indica le modalità della loro cura, svolgendo, quindi, una

funzione diagnostica e terapeutica.

In questa sede vorrei usare il termine psico-patologia al plurale per indicare, in

modo molto ampio, proprio quelle patologie definite “psichiche”, che non appaino

immediatamente legate alla corporeità. Si può subito notare che l’uso del vocabolo “psico

- patologia” da parte della comunità “scientifica” mostra che si accetta la distinzione di

due aspetti dell’essere umano, quello corporeo e quello psichico, che saranno oggetto di

questo mio intervento. E’opportuno, pertanto, iniziare ad esaminare quel vasto ed

enigmatico territorio, che si definisce “psiche” e che si ritiene che possa essere affetto da

patologie.

A proposito del termine psiche, è interessante risalire alla lingua greca, dalla quale

esso è tratto. Scrive Eraclito (sec. VI a.C.): “I confini (peirata) dell’anima (psyché) per

quanto tu ne vada in cerca non li trovi, anche se percorri tutte le strade, così profondo

34
(bathon) è il senso (logon) che essa ha”43 dove l’aggettivo bathus (profondo) è stato anche

inteso, ad esempio da Edmund Husserl nella Crisi delle scienze europee, alla quale in

seguito farò riferimento, come l’abisso di cui non si conosce il fondo. Ma qual è il

significato di psiche, che cosa indica questa parola?

“Psiche” era un termine attribuito nella lingua greca a ciò che nella lingua latina è

indicato con “anima”; entrambe le parole hanno origine nell’antica lingua indoeuropea,

significando “soffio”, “alito”, ma soffio e alito “cosmico”. Infatti, pur derivando da due

radici diverse, anima da “n”, donde “anemos”, vento in greco, e psiche da “apsu”, radice

testimoniata nel sanscrito per indicare ciò che si origina dall’acqua primordiale, mostrano

entrambe che l’essere umano proviene proprio dall’energia vitale primordiale. Come è

noto, nelle culture arcaiche tutto era legato ad una visione metafisico - religiosa della

realtà e l’essere umano era la concretizzazione più esplicita di ciò che dà la vita a tutte le

cose, anzi che è la vita stessa.

Nelle due lingue si era ben compreso il senso di questa dimensione insondabile,

eppure presente, intuitivamente colta come presente, accanto ed oltre al corpo. Ma perché

accanto ed oltre? A quale esperienza ci si rifà per costatare questa presenza? Credo che

tale esperienza abbia due fonti: una sulla linea di ciò che Eraclito mostrava con la sua

descrizione, cioè la via soggettiva di un sentire interiore che conduce

all’autoconsapevolezza e all’esperienza di dominio sul corpo, l’altra legata alla

traumatica visione del cadavere, al quale manca qualcosa, un principio vitale, che non si

identifica, però, solo con la respirazione e il movimento – certamente questi sono

indispensabili -, ma che riguarda l’impossibilità di continuare ad esprimere sentimenti,

opinioni, giudizi, sinteticamente, di comunicare.

43
Eraclito, Frammento 45 nella numerazione di Diels e Kranz, tradotto da me liberamente.

35
Per rimanere nella cultura greca, psiche era intesa come ciò che rende umano

l’umano e che sopravvive ad esso, quindi, come qualcosa di più valido rispetto alla vita

animale. Quando si consolidò la riflessione filosofica, χristotele la definì “razionale”,

Platone “divina”.

Non è possibile in questa sede ripercorrere le vicende dei due termini: psiche /

anima, ma è interessante notare che, quando nell’età moderna si è voluto colpire la

nozione di anima, perché troppo legata ad una visione spirituale e metafisica dell’essere

umano, si è tornati all’antico vocabolo “psiche” nella speranza che si fosse dimenticato il

suo significato originario e che si trattasse di un termine neutro, asettico, che potesse

indicare un ambito da esplorare ex novo. Ecco emergere l’illusione positivistica e

neopositivista di una sua riduzione ad epifenomeno delle funzioni cerebrali. Questa

sembrerebbe una novità, ma bisogna ammettere che non c’è alcunché di radicalmente

nuovo sotto il sole: come dimenticare il materialismo di Democrito e quello di Epicuro?

Certamente le angolazioni da cui si pone il pensiero contemporaneo sono diverse e

qualcosa di antico è espresso con parole nuove; alcuni aspetti prima solo accennati sono

messi in evidenza, ma le questioni di fondo permangono in tutta la loro pesantezza: le

scienze le hanno per un verso semplificate, per un altro complicate, ma non eliminate, e

bisogna riconoscere tale situazione se non si vuole rimanere abbagliati da ciò che riluce

solo sulla superficie.

Prima di tentare di rispondere in modo approfondito alla domanda: “che cosa è la

psiche?”, è opportuno riflettere sul significato dell’altro termine: patologia. La sua

etimologia rimanda alla radice indoeuropea “pat”, la quale nel verbo greco pasco, che da

essa deriva, indica essere soggiogati e, quindi, sopportare; il sostantivo pathos si riferisce

alla sofferenza come effetto di ciò che si subisce e questo può essere la malattia. Bisogna

chiarire, perciò, il rapporto fra malattia e sanità, anzi, al fondo, - so di dire qualcosa di

36
impopolare - fra “normalità” e “anormalità”. E tutto ciò è molto più complicato nel caso

delle malattie mentali, nelle quali non sembra implicata direttamente la corporeità.

Sorge subito la domanda: ci sono criteri per stabilire la normalità? Si avanza

spesso il criterio della felicità, oppure quello dell’efficienza, o anche quello

dell’accettazione sociale. E’possibile rintracciare la normalità attraverso un criterio

statistico? Tuttavia, la questione di fondo rimane: perché “terapia” rispetto a disturbi

mentali? Per sanare che cosa? Per ridare equilibrio? Un ritmo di vita “normale”? Normale

rispetto ad una norma universale o rispetto a se stessi in quanto norma di sé?

Si tratta di questioni difficilmente risolvibili, perché se si sceglie un corno del

dilemma, appare subito che l’obiezione posta dall’altro non sia facilmente superabile.

D’altra parte, non si può rimanere nel dilemma. Come risolvere la cosa? Si inseguono qui

due momenti connessi e reciprocamente vincolati, “comprendere” e “intervenire”, perché

spesso qualcuno chiede aiuto in quanto si rende conto di vivere un disagio. Qual è il

motivo che lo spinge? Che cosa vuole ottenere?

Certamente c’è una differenza fra malattie fisiche e disturbi – e già la parola

“disturbo” è indicativa – psichici. La malattia fisica richiede un intervento, affinché le

funzioni corporee si possano riequilibrare, mentre, sembra ad alcuni che il disturbo

psichico possa costituire una modalità dell’esistenza e, in quanto tale, si presenta come

un’impronta fortemente esistenziale, quindi, si può discutere se sia o meno una malattia.

Quali sono, però, i limiti soggettivi ed oggettivi del disagio, che non si possono superare,

pena la disperazione personale o la condanna sociale?

Seguendo il filo conduttore di un’indagine antropologico – filosofica, costato che

si presenta subito una diversità e, forse, una contrapposizione di punti di vista rispetto a

quell’indagine attenta ai disturbi psichici, cioè, usando il termine nel senso tradizionale

37
per indicare la disciplina, alla psico-patologia, proprio perché pathos è sofferenza

prodotta da “qualcosa”. Dove risiede la differenza fra i due approcci? Il punto di vista

filosofico coglie l’universalità delle strutture umane, quello psicopatologico le

caratteristiche universali dei disturbi. Ma è propriamente così, oppure, lavorando con

l’individuo nella sua particolarità, le indicazioni che si muovono sul piano

dell’universalità sono inevitabilmente messe in crisi nel caso della psicopatologia? E non

è forse questa un’ottima lezione per l’antropologia filosofica?

In fondo, alla base della questione normalità-anormalità c’è anche quella

riguardante l’universalità-singolarità. χllora, forse è da quest’ultima che è necessario

iniziare.

Se è vero che il punto di vista filosofico tende a mettere in evidenza l’universalità

delle strutture, ciò non significa che non ci si renda conto della loro insufficienza a

cogliere la singolarità.

Il conflitto a livello filosofico fra i due momenti, universale versus particolare e

viceversa, tra i quali si genera una tensione non facilmente eliminabile, mi sembra

presente fin dalle origini della speculazione greca. Riprendo la lettura di alcuni frammenti

di Eraclito, il pensatore presocratico che, a mio avviso, affronta nel modo più stimolante

le tematiche antropologiche. Come è noto, egli distingue gli esseri umani in desti e

dormienti, attribuendo a queste due modalità connotazioni positive, i desti, e negative, i

dormienti, perché i primi “pensano” e, quindi, mettono in evidenza che “il mondo è uno

e comune”44 grazie al riconoscimento dell’Unico, il Logos, giustificazione ultima della

realtà. Tuttavia, lo stesso frammento prosegue con un’osservazione interessante,

indubbiamente, svalutativa della condizione del dormire, perché indicativa del “non

44
Frammento 89 (Diels –Kranz).

38
pensare”, ma sulla quale ritengo che si debba riflettere: si tratta del ruolo dei dormienti:

“…, ma quando prendono sonno, ciascuno si rivolge al proprio mondo”45 e quando ciò

accade, sorprendentemente, “I dormienti sono operatori e cooperatori degli eventi nel

mondo”46, quindi la loro posizione nel mondo, tutt’altro che evasiva, è, al contrario,

produttiva. Forse non sono “speculativi”, ma sono “attivi” ed operosi, si direbbe, “gente

normale” che si interessa soprattutto di se stessa.

Mi sembra che qui si metta in evidenza, al di là della distinzione fra vita

intellettuale e vita pratica, il ruolo imprescindibile della singolarità. Certo vedere solo il

proprio mondo (idios kosmos, dice Eraclito) può indicare una chiusura egoistica seguita

della difficoltà di una vita in comune (koinos kosmos), in questo senso l’atteggiamento è

negativo – e questo è il senso in cui Binswanger legge il frammento di Eraclito, come si

vedrà in seguito -, ma ci sono anche le istanze del singolo, che è necessario prendere in

considerazione. Il singolo è la singola anima, direbbe Platone, con un’individualità così

forte da poter assumere corpi diversi, ma rimanere sempre se stessa, essendo immortale.

Altra questione, anche importante, è quella relativa alla modalità di coniugare la

singolarità e la comunità.

Credo, allora, che la chiave per affrontare le questioni sopra proposte stia nel

chiasmo fra universalità delle strutture/singolarità della persona. I disturbi mentali, nella

loro estremizzazione, sono il banco di prova di questo necessario e difficile rapporto.

L’identità del soggetto

45
Ibid. (è sempre il frammento 89)
46
Frammento 75 (Diehls-Kranz).

39
Sono sempre più grata al destino? Alla provvidenza? In ogni caso, a ciò che ha

consentito l’incontro con i miei amici psichiatri, psicopatologi, psicoanalisti. La lista

sarebbe molto lunga, ne nomino uno che non essendo più fra noi, li racchiude tutti – anche

perché, se non tutti si identificano con le sue posizioni, tutti colgono che aveva indicato

una strada che non si può ignorare – mi riferisco a ψruno Callieri. E’ stata proprio la

frequentazione con lui che ha allargato l’orizzonte delle mie riflessioni, non soltanto

perché coltivava una disciplina diversa dalla mia, che mi incuriosiva, ma perché l’oggetto

di quella disciplina proponeva un diverso punto di vista e sollecitava un ulteriore

approfondimento, proprio nella prospettiva che si definisce filosofica. Si trattava del

richiamo al tema della singolarità.

Sono sempre di più consapevole del fatto che la cultura occidentale, in cui siamo

immersi, permeata della mentalità filosofica greca, tenda all’universalità. Ciò non

costituisce un’assurdità, al contrario, sostengo che sia necessario per orientarci: abbiamo

bisogno di universalizzare. Tuttavia, dobbiamo ammettere che ci sono molti rischi

nell’assolutizzazione del punto di vista universale, a sua volta frutto di

un’universalizzazione. E, come si è già indicato, soprattutto se si vuole conoscere l’essere

umano.

Tuttavia, non è giusto e non è possibile prescindere all’universale. Anche il nostro

linguaggio è universale, perfino il nome proprio, che non si riesce a personalizzare fino

in fondo: il mio amico Piero è uno di uno ma molti si chiamano Piero.

Mi propongo, allora, di percorrere un cammino in senso verticale, che va dall’alto

in basso, per tornare poi verso l’alto; utilizzo in questo caso il suggerimento di Husserl,

il quale, però, al contrario di ciò che sto facendo, raccomandava di muovere von unten,

dal basso, per andare in alto (oben), tuttavia si rendeva conto come, qualche volta, fosse

necessario iniziare da ciò che si è costituito universalmente per mettere in evidenza il

40
processo genetico che ha condotto fin lì. Seguo, allora, una via filosofica, quella che

normalmente si muove sul piano dell’universale per la comprensione dell’essere umano,

cercando, poi di individuare la modalità per giungere a delineare la singolarità. Per

procedere seguo le indicazioni che provengono da alcuni fenomenologi, i quali offrono il

vantaggio di cogliere l’essere umano movendo da uno scavo interiore; in tal modo, sarà

possibile anche rispondere alle questioni sopra poste: che cosa è la psiche? E che cosa è

la malattia – se c’è - della psiche?

Inizio questa indagine antropologica dai suggerimenti di Husserl. Egli aveva

messo in evidenza che paradossale è la situazione dell’essere umano, il quale si presenta

contemporaneamente come soggetto ed oggetto dell’indagine, l’unico essere vivente

che sia capace di riflettere su se stesso; per lo meno questo è il risultato di un’analisi

comparativa condotta dal fenomenologo soprattutto con il mondo animale. Dal secondo

volume delle Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica47 è

possibile ricavare il doppio movimento “all’interno” e “all’esterno” dell’essere umano.

La novità di tale impostazione consiste nel punto di partenza dell’indagine. Il

primo passo da compiere per avviare una riflessione che colga radicalmente, cioè

essenzialmente, il fenomeno che stiamo osservando è la messa fra parentesi di ogni

interpretazione già data ed anche di ogni posizione d’essere che potrebbe essere messa

in dubbio per far emergere l’esperienza vissuta della cosa con il suo correlato, cioè il

fenomeno della cosa stessa. Ciò consente di entrare nella dimensione dei vissuti

(Erlebnisse), il cui correlato intenzionale si sdoppia nell’oggetto in quanto, ad esempio,

percepito e l’oggetto in se stesso esistente e, quindi, trascendente rispetto al soggetto

stesso. L’oggetto può non essere immediatamente sottoposto ad’analisi e, quindi, messo

47
E. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica, vol.II, tr. it. di V. Costa,
Einaudi, Torino 2002.

41
tra parentesi. L’attenzione si sposta sulla complessità del mondo interiore, un mondo

non caotico, ma ordinato, in quanto sottoposto a regole, in cui sono presenti momenti e

aspetti che debbono essere indagati.

Husserl sottolineerà negli anni Trenta, quasi alla fine del suo percorso

intellettuale, che la messa fra parentesi, o epoché, che lascia come residuo la

soggettività, lungi dall’essere un’operazione semplificatrice, è sollecitata dall’interesse

teoretico e a sua volta lo sollecita, ponendo un’imprevedibile serie di problemi di

eccezionali difficoltà e riprende, come si è già accennato, il frammento di Eraclito:

“Perché si tratta effettivamente di un intero mondo - se potessimo identificare la υ ή

di Eraclito con questa soggettività, varrebbero per essa le sue parole “Qualsiasi strada

tu percorra non arriverai mai a trovare i confini dell’anima, tanto profondo è il suo

fondo”. Qualsiasi ‘fondo’ si raggiunga, esso rimanda effettivamente ad altri fondi,

qualsiasi orizzonte si dischiuda esso ridesta altri orizzonti; tuttavia il tutto infinito,

nell’infinità del suo movimento fluente, è orientato verso l’unità di un senso, ma non è

mai possibile giungere ad afferrarlo e a capirlo completamente”48.

Questa è la ragione per cui l’analisi non può essere fatta una volta per tutte; siamo

sospinti a ricominciare da capo (immer wieder) nel tentativo, d’altronde sempre

destinato a fallire, di dare una lettura definitiva. Si tratta, piuttosto, di approcci, che ora

da un lato ora dall’altro, si avvicinano al fenomeno dell’interiorità umana, mettendo in

evidenza aspetti validi, rintracciando strutture, ma non esaurendone mai la conoscenza.

Da ciò sorge anche la difficoltà di comprendere gli stessi risultati a cui giunge Husserl,

perché non è possibile delineare una mappa completa di questo territorio accidentato.

48
E. Husserl, La crisi delle scienze europee e la fenomenologia trascendentale, tr. it. di E. Filippini, Il
Saggiatore, Milano 1961, p. 196. Qui Husserl sta citando il Frammento 45 di Eraclito da me sopra
commentato (cfr.nota 1).

42
Si parla dell’io, dell’io puro, della coscienza, dell’anima, della psiche, dello spirito, ma

come organizzare queste nozioni, a che cosa esse corrispondono?

χbbiamo iniziato dall’epoché e dalla messa in evidenza degli atti del soggetto, atti

che nella lingua tedesca sono indicati come Erlebnisse, espressione intraducibile nella

lingua italiana se non con una frase: “ciò che è da me vissuto”, ridotta brevemente a

“vissuto”; ma che cosa è da me, da noi vissuto? Ciò che viviamo si scinde nell’atto,

l’atto del percepire, del ricordare, dell’immaginare e del pensare e così via, e nei

contenuti di tali atti, il percepito, il ricordato, e così via che a sua volta rimanda alla

cosa percepita e ricordata come esistente. Ma, se ci interessa l’analisi dell’interiorità –

e ciò è sostenuto sia da Husserl sia dalla Stein -, dobbiamo prescindere per il momento

dalla cosa esistente, come si è già indicato, e concentrare l’attenzione sul rapporto

percepire-percepito come presente all’interno del soggetto, quindi, sull’atto vissuto dal

soggetto, ad esempio quello del percepire, come possibilità del percepire stesso.

Si nota qui la necessità di seguire una concatenazione di atti o di vissuti che

rimandano l’uno all’altro e che costituiscono la struttura essenziale del soggetto, inteso

come ego, io in quanto soggetto, ma anche degli altri soggetti, scoprendo, in tal modo,

gli elementi di universalità che rendono possibile la comunicazione. In primo luogo, ci

si deve domandare: chi è il "soggetto"? e che cosa significa soggetto? Paradossalmente,

come si è detto sopra, è colui che fa l’analisi, manifestando la propria attività – in altre

parole è colui, ad esempio, che procede nella ricerca filosofica –, ma è anche colui che

subisce l’analisi filosofica.

Nel tentativo di delineare una mappa relativa all’essere umano preso nella

complessità dei momenti costitutivi, si può iniziare, come fanno i fenomenologi, proprio

dalla coscienza, da intendersi non come un “luogo”, ma come una nuova regione

dell’essere, un nuovo territorio, secondo la definizione di Husserl, formato dai “puri”

43
Erlebnisse che sono correlati alla coscienza “pura” “…finora non delimitata nella sua

peculiarità “, allora “l’essere da mostrare – egli continua- “non è altro se non ciò che

per motivi essenziali può essere indicato come ‘puri Erlebnisse’, ‘pura coscienza’ con i

suoi ‘puri correlati’ e d’altra parte il suo ‘puro io’ “ e conclude: ” l’espressione

‘coscienza’ abbraccia (ma vi è poco adatta) tutti gli Erlebnisse“.49

Sulla scia del maestro, Edith Stein scrive nel suo libro Introduzione alla filosofia:

“la coscienza non è una scatola che raccoglie in sé i vissuti, ma questi stessi vissuti

costituiscono, confluendo continuamente l’uno nell’altro, il flusso della coscienza” 50.

L’essere cosciente non deve essere inteso solo e immediatamente come un atto della

riflessione, in quanto quest’ultimo è di per sé un vissuto, ma piuttosto come “una luce

interiore che illumina il flusso del vivere e nel defluire stesso lo rischiara per l’io vivente

senza che questo vi sia diretto”51.

Si può notare che sia per Husserl sia per la Stein fondamentale è la correlazione

fra la coscienza e l’io e a questo proposito è importante indicare che si delineano diversi

aspetti dell’io. In primo luogo, l’io puro, io definito da Husserl come quella capacità di

riportare tutto ciò di cui si ha esperienza ad un punto unitario. Esso è colto nella

correlazione con i suoi atti vissuti, quali il percepire, il ricordare, il giudicare, il sentire,

il volere, è in riferimento agli oggetti in modi diversi secondo gli atti che compie ed è

possibile il suo auto - afferramento, la sua auto-percezione. Il fluire della coscienza

costituisce il fondamento ultimo della temporalità immanente e questa è la via da

seguire se si vuole cogliere il significato dell’identità. “L’io puro è in quanto identità di

questo tempo immanente”52 scrive Husserl, intendendo che l’io permane in questo o in

49
E. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica I, cit., p. 75.
50
E. Stein, Introduzione alla filosofia tr. it. di A. M. Pezzella, a cura di A. Ales Bello, Città Nuova Roma
1998, p. 131.
51
Ivi, p. 152.
52
E. Husserl, Idee II, cit., p. 107.

44
quell’atto di coscienza pur non essendo un momento reale o una parte costitutiva di

esso.

La differenza fra realtà empirica e psicologica e io puro è sottolineata fortemente

da Husserl ed è quella che consente di cogliere l’identità dell’io, la sua non dispersione,

perché, l’io o il soggetto puro non si genera e non trapassa, al contrario allora, l’io puro

entra ed esce di scena, è possibile anche che l’io puro non si ritrovi affatto, quando non

riflette su se stesso, mentre rimane sempre l’io psicologico, in quanto io reale.

Come si può notare il tema della costituzione reale dell’essere umano non è

trascurato: si può dire che l’io puro e la coscienza sono lo specchio sul quale si riflettono

i vissuti che provengono dalle “realtà” della psiche e dello spirito, perché se l’avvio

della ricerca si ha dalla parte della regione d’essere della coscienza e dell’io puro, in

quanto dimensioni di consapevolezza che forniscono la possibilità per un’indagine

trascendentale, l’essere umano nella sua struttura reale ha dimensione reali che debbono

esser riconosciute in quanto tali.

Esploriamo ancora più da vicino tali dimensioni.

Nel suo lavoro di scavo all'interno della soggettività Husserl analizza proprio quel

terreno che già Kant aveva individuato e definito con il termine trascendentale, ma lo

scavo conduce Husserl a risultati diversi da quelli kantiani, individuando, come si è già

detto gli atti che noi viviamo e che caratterizzano la nostra “interiorità”; questa

espressione non è husserliana, ma la utilizzo solo per far comprendere quale sia la sfera

che è presa in esame. I vissuti, o atti, sono elementi strutturali, che noi tutti possediamo,

mentre i loro contenuti possono essere estremamente soggettivi, relativi, mutevoli.

45
Se analizziamo ciò che accade in noi stessi ci rendiamo conto che non solo è

presente l'atto del percepire, ma anche quelli del ricordare, dell'immaginare, del

fantasticare, del pensare e si può proseguire nell'individuazione di una molteplicità di

atti o vissuti, compito che ha accompagnato Husserl lungo l'arco di tutta la sua ricerca.

La nostra coscienza, inoltre, registra atti relativi agli impulsi, agli istinti, alle tensioni,

quelli cioè propri della sfera psichica, e ancora quelli della decisione, della volontà delle

prese di posizioni consapevoli, i quali, a loro volta, costituiscono qualitativamente un

altro raggruppamento e rimandano alla funzione spirituale. In ciò consiste la

caratteristica della psiche e dello spirito e la loro distinzione. In tal modo, si può

rispondere a quella domanda che è stata posta all’inizio di queste riflessioni: che cosa è

psiche? E ciò è stato possibile non isolando o assolutizzando questo territorio, ma

inserendolo nella complessità dell’essere umano: corporeo, psichico e spirituale,

scoperto così costituito, movendo dalle esperienze interiori.

Il tema dell’entropatia

L’individuo preso isolatamente è solo frutto di un’astrazione da un contesto più

ampio, come comprendere l’esistenza degli “altri”? Paradossalmente sempre rimanendo

nella sfera del soggetto, imprescindibile punto di partenza per la comprensione della

realtà. Fra gli atti individuabili all’interno del soggetto ce n'è uno in particolare che è

merito di Husserl aver evidenziato che è, appunto, l'atto dell'entropatia53.

53
Uso il termine entropatia, presente nella traduzione italiana del termine tedesco Einfühlung nelle opere
diàHusse l,àpe h àesp i eà eglioà i à heàiàfe o e ologiài te do oàdi e.àIlàte i eà e patia à àstato,ài à
verità usato da me nella traduzione delle opere della Stein, perché foneticamente più accettabile, negli
a iàNo a ta,ài àu epo aài à uiàa o aà o àsiàpa la aàdiàe patiaà ell a itoàdellaàpsi ologiaàeà elàse soà
in cui è diventato di moda. Il senso corrente in cuià sià adope aà e patia à is hiaà dià o à fa à api eà heà
l espe ie zaà issutaà dell alt oà pe à ià fe o e ologià o à haà ie teà aà heà ede eà o à laà si patia,à o à laà
i i a za,à o à l i te essa e to,à heà so oà espe ie zeà delà tuttoà di e se,à o eà sià uoleà ost a eà elà
p ese teàtesto.à “iàhaà e patiaà oàe t opatiaàse p eà ua doàsià i o os eà heàl alt oà àu àesse eàu a oà
come siamo noi e che sta vivendo esperienze simili alle nostre.

46
Esaminando, allora, questo peculiare atto nel quale consiste la conoscenza

dell'altro come conoscenza entropatica, Edith Stein si chiede che cosa si colga dell'altro

e attraverso quale strumento ciò sia colto; il risultato dell'analisi rispetto a queste due

questioni costituisce un'ulteriore conferma della complessità dell'essere umano, alla

quale abbiamo accennato sopra. Se Husserl aveva condotto la sua indagine movendo

prevalentemente dalla struttura umana in quanto tale, la sua discepola ricava le

connotazioni fondamentali dell'antropologia, in primo luogo, proprio attraverso l'analisi

dell'entropatia.

Ella scopre l'essere umano come individuo psicofisico; infatti, da un lato, è

coinvolta la corporeità come tramite necessario della conoscenza stessa, d'altro lato, la

corporeità è animata, vivente (Leib), sede di affetti, di pulsioni (psiche), ma anche di

pensieri, di ragionamenti, di decisioni e di volizioni (spirito). Il raggruppamento nelle

tre sfere del corpo, della psiche e dello spirito è reso necessario dal fatto che i rispettivi

atti si manifestano qualitativamente uguali, possono essere posti senza distinzione sullo

stesso piano o rimandano a gradualità diverse, implicanti anche valori diversi come

accade per la psiche e lo spirito, in quanto diversi dal corpo e unificabili sotto il titolo

di “anima”. In tal modo, si comprende quale sia la genesi dell’interpretazione

tradizionale secondo la quale sono rintracciabili “anima” e “corpo” e, quindi, in quale

senso l'essere umano non è riducibile tutto alla corporeità, pur essendo questa la

dimensione indispensabile della vita così come si dà, cioè come la costatiamo.

E' sul terreno dei vissuti, cioè degli atti della coscienza, che si individuano, come

si è già notato, fondamentalmente le affinità, che si costituiscono i raggruppamenti i

quali rimandano alle configurazioni, consolidate da una lunga tradizione e presenti

anche se in forme diverse in tutte le culture, indicate, appunto, con i termini “corpo” e

“anima”. Il dolore o la gioia che l'altro vive deve essere colto, in primo luogo, attraverso

47
una percezione legata agli organi della sensibilità, ma ciò che si scorge sul suo volto

rimanda ad una profondità di vita tale che è impossibile assimilarlo a qualsiasi oggetto

fisico, visto e toccato. La dimensione che viene così scoperta è il luogo degli affetti,

delle pulsioni, delle emozioni, è quella che indichiamo con il termine psiche (psiché).

Ci si potrebbe chiedere - e Edith Stein pone tale questione nel secondo decennio

del Novecento - se non si sia trovata finalmente una disciplina, la psicologia, che

indaghi la psiche, che ce la mostri veramente come essa è, scientificamente, riducendola

alla sua struttura che è di tipo meccanicistico: azione e reazione, associazione e così via,

come sembrava sostenere la nascente psicologia, facendo proprio il metodo delle

scienze della natura. Da questa domanda nasce il lungo e articolato saggio - pubblicato

nel 1922 sullo Jahrbuch diretto da Husserl - relativo a Psicologia e scienze dello spirito.

Contributi per una fondazione filosofica.

L'intento non è quello di eliminare la psicologia in favore di una ricerca puramente

filosofica, ma, piuttosto, di mostrare l'insufficienza del punto di vista della psicologia e

di quello delle nuove scienze umane, costituitesi nella seconda metà dell'Ottocento, sia

riguardo alla comprensione approfondita dell'essere umano sia, anche, riguardo alla

giustificazione della loro stessa costituzione; esse, infatti, hanno bisogno di un'indagine

preliminare che chiarisca i momenti di fondo sui quali poggiano. Ad esempio, la

psicologia non può fare a meno di chiedersi che cosa sia la psiche e deve anche

domandarsi se corporeità e psichicità siano sufficienti per comprendere l'essere umano

nella sua interezza, se non sia necessario ammettere anche la dimensione dello spirito e

tali questioni, per essere indagate, rimandano ad una riflessione filosofica.

Attraverso l'analisi dei vissuti si mette in risalto l'esistenza di una sfera psichica

caratterizzata da una “forza vitale”, da un'energia psichica che svolge un ruolo

fondamentale per la stessa sopravvivenza e capacità di agire dell'essere umano. Essa è

48
sì strutturata secondo una sorta di causalità, in quanto sede di legami che, in una certa

misura, possono essere ritenuti di tipo deterministico, ma è veramente tale da mostrarsi

come l'unica fonte di direzione dell'essere umano stesso? Freschezza o stanchezza della

psiche, ad esempio, sono sempre ed esclusivamente alla base delle nostre azioni e,

quindi, delle nostre decisioni oppure le scelte ci rimandano a “motivazioni” che rivelano

un fonte diversa di decisione? Ecco affacciarsi la sfera dello spirito (Geist).

L'entropatia era già stata individuata come lo strumento di comprensione di ciò

che si muove nella vita dell'altro, e non solo relativamente ai suoi sentimenti o alle sue

emozioni, ma anche relativamente al suo mondo interiore di decisioni, di volizioni, al

mondo della sua creatività. Se ci sono le scienze dello “spirito”, esse riguardano,

appunto, ciò che è connesso con questa sfera che è quella della produzione culturale,

artistica, politica e così via. Da un punto di vista filosofico, la presenza nell'essere

umano della dimensione dello spirito consente di affermare che è superata la realtà

psico-fisica, la quale ci avvicina al mondo animale, grazie a qualcosa che consente di

definire l'essere umano “persona”.

Questo termine racchiude una molteplicità di aspetti concentrati in un’unica realtà:

se esaminiamo l’essere umano dobbiamo costatare che il suo corpo è un corpo

materiale; però è, nello stesso tempo, anche un organismo che prende forma e agisce

dall'intimo; ed è un essere vivente animato, che è aperto a sé e al mondo che lo circonda,

e, in fine, un essere spirituale, rivolto conoscitivamente a se stesso e al resto e può

liberamente plasmare sé e il resto.

Il “sentire” la singolarità

49
Tutto ciò che è stato detto riguarda l’essere umano preso nella sua universalità,

come un essere neutro. Nell’ambito delle indagini fenomenologiche è proprio Edith

Stein a riflettere in modo più diretto e convincente sul tema della duplicità femminile-

maschile e su quello della singolarità. Non è questa la sede per sviluppare il tema

dell’antropologia duale, ma è opportuno osservare che la Stein, nell’ambito delle teorie

“femministe” ha messo in evidenza l’esigenza di prendere in considerazione anche la

questione dei generi54. Tuttavia, sia l’uomo che la donna presi nella loro universalità

sono astrazioni, astrazioni necessarie, ma non esaustive della comprensione dell’essere

umano, il quale richiede di essere esaminato nella sua singolarità.

Nessun essere umano è uguale all’altro, neppure i gemelli, perché non si tratta di

differenze esteriori, ma “…ciascuno nella sua essenza più profonda si sente essere

“singolare” e viene considerato tale anche da coloro che lo hanno realmente

“compreso””55. Ella parla di un “sentimento”, ma aggiunge per chiarire il suo pensiero:

“χ questo proposito dobbiamo dire che per sentimento non intendiamo soltanto un

semplice stato d’animo, che non ha un ulteriore significato. Il sentire di cui stiamo

parlando, ha valore di conoscenza, ci schiude qualcosa: qualcosa per il quale è via

d’accesso. E’ un atto spirituale, una percezione spirituale”56.

La Stein usa il termine percezione proprio perché non si tratta di un’intuizione

intellettuale chiara ed evidente; essa ha, piuttosto, in comune con la percezione sensibile

il fatto che si coglie un elemento unico e reale. Tuttavia, i sensi non giocano alcun ruolo,

si tratta di una conoscenza spirituale, anche se è soggetta all’errore e all’inganno come

ogni conoscenza umana. Consiste in un “sentire” la nostra essenza e quella degli altri

54
Pe à loà s iluppoà delà te aà elati oà all a t opologiaà dualeà i a doà alà ioà Sul femminile. Scritti di
antropologia e religione, aà u aàdiàM.D á a,àCitt àápe ta,àT oi aà àEN ,à .
55
E. Stein, Essere finito e Essere eterno – Pe u ’ele azio e al se so dell’esse e, tr. it. di L. Vigone, revisione
e presentazione di A. Ales Bello, Città Nuova, Roma 1999³, p.512.
56
Ivi, p. 513

50
come determinata, unica, e autogiustificantesi. Siamo, allora, ritornati ad una definizione

universale? No, perché rientra nell’essenza di questo percepire che il suo “modo” sia

unico: l’io cosciente comprende la sua specificazione essenziale come “sua particolare”

e riconosce che ogni altro io ha la stessa unicità e particolarità. Pertanto, si riconosce

universalmente che c’è un “modo” di conoscenza particolare, ma il contenuto di questo

modo non è concepibile universalmente. In altri termini, si riconosce che c’è un elemento

unico e reale, e tale riconoscimento si muove sul piano dell’universalità, ma tale elemento

non può essere universalizzato. In altri termini se dico “singolarità” o già universalizzato,

ma il singolo è sempre eccedente rispetto alla singolarità.

Con questa audace proposta di coglimento della singolarità non si intende

affermare che tale singolarità, la propria e l’altrui, sia conosciuta nella sua pienezza.

Pertanto, così come non c’è una piena conoscenza di sé – si può ricordare in proposito il

commento di Husserl al frammento di Eraclito sopra riportato – attraverso l’entropatia

non c’è neppure una piena conoscenza dell’altro, ma questo non ci esime dal sentire che

si tratta di una singolarità irripetibile.

Dalla filosofia alla psicopatologia

Ci può domandare quali ricadute abbiano le riflessioni sopra riportate nell’ambito

della comprensione delle psico - patologie e come possa giocare in tale ambito il rapporto

fra universalità e singolarità. Come si è già sottolineato, in esso più che in altri casi ci si

trova di fronte ad una “singolarità”. Se nei casi non patologici può sembrare più facile

inserire il singolo nella generalità, perché prevalgono alcuni tratti comuni ricorrenti - in

fondo è questo un primo senso che giustifica la nozione di “normalità” – è chiaro che di

fronte ad atteggiamenti, comportamenti o anche a stati d’animo vissuti in modo doloroso,

51
la singolarità emerge prepotentemente, con manifestazioni di varia intensità che possono

provocare reazioni di stupore da parte degli altri, fino a sfociare nell’incomprensione,

nella paura e, infine, determinare l’isolamento di chi vive quella situazione spesso

drammatica. In questo senso si comprende da dove derivi la nozione di “anormalità”.

Desidero rimanere nell’ambito dell’impostazione fenomenologica per vagliare

l’influenza che l’antropologia filosofico – fenomenologica ha avuto nella descrizione di

tali fenomeni e nella delineazione degli interventi terapeutici, ma questo non esclude che

altre impostazioni, in particolare quelle legate alla psicologia del profondo di origine

junghiana, possano condividere molte delle proposte avanzate nell’ambito

fenomenologico.

E’ d’obbligo a questo punto risalire al filosofo – psicopatologo Ludwig

Binswanger che per primo ha saputo cogliere le potenzialità implicite nella descrizione

fenomenologica dell’essere umano per la comprensione dei disturbi psichici. Egli è si

chiesto se tali disturbi siano propriamente “disturbi” della psiche e che cosa sia la

“psiche”.

Per i fenomenologi, come si è visto, si tratta di una delle componenti della

complessa struttura umana, che deve essere considerata nella sua completezza e non

assolutizzata. Binswanger non li segue nella minuta stratificazione/partizione, è attento

maggiormente al momento esistenziale messo in evidenza da Martin Heidegger, ma si

rende conto che solo alcune modalità della soggettività analizzate da Husserl sono

indispensabili per comprendere i comportamenti definiti patologici, in particolare

l’interpretazione della temporalità e quella dell’entropatia. Si tratta di regredire, pertanto,

alle esperienze vissute e alle loro combinazioni e organizzazione. Tuttavia, si tratta anche

di altro, cioè di indagare in quale senso si possa parlare di “psico – terapia”.

52
E’ chiaro che ψinswanger dà per scontato che sia necessaria una terapia, quindi,

si inserisce, in quanto medico e in quanto psichiatra, nel processo diagnostico-terapeutico,

senza metterlo in discussione in quanto tale, ma cercando di declinarlo in un modo diverso

rispetto a quello “tradizionalmente accettato”; la sua critica ha di mira non solo

l’’impostazione positivistica della malattia mentale, intesa come malattia del cervello, ma

anche della stessa psicoanalisi, alla scuola della quale egli proveniva. Ciò che contesta in

questo caso è l’astrattezza che, secondo alcuni, sarebbe garanzia di “scientificità”, il fatto,

cioè, che si parli della psiche come di un campo avulso dall’esistenza presa nella sua

globalità e del terapeuta come colui che sparisce in quanto essere umano dietro la sua

funzione, dietro ad una “prestazione” rivolta a “qualche cosa”, non a qualcuno57.

Qui si denuncia, in primo luogo, il venir meno di un rapporto umano, che non può

essere unidirezionale, medico-paziente, ma deve essere reciproco. E tutto ciò non riguarda

solo la psicoterapia, ma la medicina in generale; la funzione di entrambe non consiste nel

produrre “qualcosa di nuovo”, ma, nel caso della medicina si tratta di “isolare,

concentrare, dirigere le forze che governano l’universo organico e inorganico” 58 e in

quello della psicoterapia di dirigere tali forze verso un’azione che coinvolga l’essere-per-

gli altri e l’essere-con-gli altri. Certamente questo è il linguaggio usato da Heidegger, ma

si è visto attraverso l’analisi dell’entropatia che il rapporto intersoggettivo è uno dei centri

di interesse forte per la fenomenologia husserliana e steiniana ed è in questo senso che

Binswanger intende tale rapporto. Queste indagini che sembrano confinate nell’ambito

filosofico, in realtà, non possono essere estranee a chi vuole analizzare il rapporto medico-

paziente.

57
L. Binswanger, Sulla psicoterapia, in Pe u ’a t opologia fe o e ologi a – Saggi e conferenze
psichiatriche, tr. it di E. Filippini, 2007³, p. 126.
58
Ibid.

53
Ci può domandare, in primo luogo, quale antropologia sia alla base della posizione

di ψinswanger. E’ chiaro che in ogni presa di posizione diagnostico-terapeutica c’è un

presupposto antropologico, qualsiasi sia l’impostazione teorica nell’ambito degli

interventi terapeutici, tale approccio può essere più o meno implicito – certamente nel

vasto territorio della psicoanalisi è esplicito – e l’obiettivo di ψinswanger è quello non

solo di renderlo esplicito, ma di indagare in modo filosofico le caratteristiche dell’essere

umano. Egli riscontra che i risultati delle analisi fenomenologiche sono convincenti per

la chiarificazione proprio di quei “disturbi” di fronte ai quali egli si trova come terapeuta.

Tali risultati gli consentono, da un lato, di allargare la nozione di psiche, di poter parlare

di funzioni vitali di ordine psichico, di non dimenticare il corpo, come si vedrà in seguito,

coinvolto in queste funzioni vitali, dall’altro di approfondire il senso della dimensione

interpersonale.

Il merito di Binswanger è quello di aver riconosciuto la validità delle istanze

antropologiche, di averle approfondite in senso filosofico - fenomenologico – d’altra

parte, l’obiettivo di Husserl e della Stein nei confronti della psicologia era proprio di

offrire un solido terreno per indagini specifiche, in particolare per quelle psicologiche,

come si è già detto – e di averle utilizzate a fini diagnostici e terapeutici in modo originale,

anticonvenzionale, secondo la sua stessa ammissione. Non si tratta di riprodurre

meccanicamente schemi teorici, come è mostrato dal suo allontanamento dalla prassi

psicoanalitica che si ispirava a Freud, ma di esaminare “la storia di vita” dei pazienti e

rischiare anche di andare fuori dagli schemi. Per questo definirei questo approccio

“artistico”59.

59
Ho riflettuto sul contributo di L. Binswanger in alcune occasioni, cito in particolare il mio articolo:
Binswanger erede di Husserl, in Ludwig Binswanger – Esperienza della soggettività e trascendenza
dell’alt o – I a gi i di u ’esplo azio e fe o e ologi o – psichiatrica, a cura di Stefano Besoli, Quolibet
Studio Rom 2006.

54
Particolarmente significativa in questa direzione è la descrizione del caso clinico

di una giovane afflitta da singhiozzo e da afonia, curata con una manovra “di quasi

soffocamento”, che contraddice tutti gli schemi della psicoanalisi, contenuto nel suo noto

saggio Sulla psicoterapia, già citato. Il successo di questa manovra è dovuto, secondo

l’autore, a due fattori che riguardano la qualità del rapporto che si è stabilito con la

paziente: la fiducia che ella aveva nel medico e il desiderio di guarigione che era in lei. Il

terapeuta è stato capace di destare in lei la volontà di vivere e di amare ed ella aveva

trovato le forze per uscire la situazione di grave disagio psicofisico nella quale si trovava.

Questo è un caso straordinario di guarigione che dimostra che il corpo non è estraneo

all’attività psichica, che non si tratta di due parti giustapposte, ma delle due facce del

Leib, del corpo vivente.

A proposito del rapporto fra psichico e fisico, che non sono negati nella loro

caratteristica peculiare, scrive ψinswanger: “ L’obiettivazione porta immediatamente alla

teoria e induce al tentativo di “gettare un ponte” sulla contrapposizione fra psichico e

fisico, mentre noi vogliamo piuttosto scavare un tunnel” al di sotto di questa

contrapposizione; ciò è possibile soltanto se restiamo rigorosamente sul terreno del

fenomeno e quindi entro la sfera dell’Erlebnis e del significato, in altre parole

dell’esistenza “60. Ed è possibile scavare questo tunnel, se si muove dal riconoscimento

della costituzione del Leib. Nelle poche righe sopra riportate è condensato tutto il

programma teorico-pratico di Binswanger, che si nutre certamente di risultati posti in

evidenza sul piano dell’universalità, ma che si calano nella storia di vita, quindi,

nell’esistenza peculiare.

60
Ivi, p.138.

55
D’altra parte, che cosa è il “caso clinico” per chi si occupa della diagnosi e della

terapia? χ livello teorico tutti sono d’accordo che, in ultima istanza, il banco di prova sia

la singolarità, ma poi l’esigenza di seguire schemi astratti, nei quali “incasellare” il

singolo, prende il sopravvento, anche per motivi cosiddetti pratici. Ed ha anche il

sopravvento l’esigenza di “incasellare” gli eventi in rapporti rigidi di causa-effetto, perché

si crede che sia più semplice comprenderli e forse anche più rassicurante rispetto alla

possibilità di errore. In realtà, non esistono tali rapporti, sostengono Binswanger e, sulle

sue orme, Callieri, ma anche tutti coloro che lavorano con un atteggiamento libero e

attento nel campo delle psicopatologie; bisogna, piuttosto, esaminare la storia di vita nella

sua complessità organica.

Scrive Callieri: “Poiché il singolo è inseparabile dal suo mondo di vita (la

husserliana Lebenswelt), il fenomeno si dà come la veridica espressione dei mondi-di-

vita di quella presenza e del suo perenne farsi “mondano”: essere in situazione. La

situazione in cui io mi progetto (Entwurf) o sono gettato (Geworfenheit di Heidegger) è

la mia concretezza, la mia configurazione, la mia incarnazione (G. Marcel). Qui l’analisi

esistenziale di L. Binswanger introduce proprio al livello ontico (esistensivo) peculiare di

quella esistenza umana concreta, focalizzando in modo particolare gli ambiti della

corporeità e della spazio-temporalità dell’esperienza vissuta”61.

In questo testo tutto è declinato al singolare: il mondo – della - vita come nozione

generale diventa il suo mondo della vita, un mondo della vita personale, in cui si manifesta

quella presenza. Husserl e Heidegger, i quali da un punto di vista teoretico e umano, dopo

un primo incontro, si erano allontanati - benché la fenomenologia esistenziale di

Heidegger derivi dalla fenomenologia di Husserl – sono qui genialmente riavvicinati per

61
B. Callieri, Esistenza: tra mente e cervello, in Corpo Esistenze Mondi – Per una psicopatologia
antropologica, Presentazione di M. Maj, Saggio critico-introduttivo di G. Di Petta, p.137.

56
quegli aspetti che li rendono compatibili. Inoltre, la concretizzazione corporeo - storica

del singolo è letta attraverso la nozione di “incarnazione”, presente in Marcel, che rivela

lontane origini teologiche. Non si tratta certamente di “confusioni”; la tesi è chiara,

determinata da molti apporti che manifestano una sotterranea possibilità di coincidenza:

l’attenzione deve essere rivolta al singolo, ciò non vuol dire che si sia in balia di una

contingenza, si tratta, piuttosto, di saper modulare le conquiste teoriche, che mantengono

sempre la loro validità, con le esigenze di peculiari di un’esistenza irripetibile.

Ma qual è la qualità di tali teorie? Come sono state elaborate? Con quali metodi e

percorsi?

“Secondo noi (e dobbiamo dirlo qui a gran voce) nessuno ha il permesso epistemologico

di violare concettualmente la libertà del tu in cui si imbatte o che ci si fa incontro, di

dedurre da leggi prestabilite il comportamento in una data situazione, di leggerne il

“sintomo” sul riconoscimento di modelli combinatori più o meno rigidamente fissati (vien

qui in mente, oltre ai DSM, o agli ICD, la χrs Magna di Raimondo Lullo)”62.

Come sempre, i testi di Callieri ci lasciano stupefatti per gli accostamenti a prima

vista strani o audaci, ma che, ben analizzati, rivelano un profondo legame. Quale può

essere il nesso fra l’χrs Magna di Lullo e il DSM? Quali sono i principi teorici che legano

esperienze così lontane? Riguardano proprio i modelli combinatori rigidamente fissati

che, a causa della loro fissità, non riescono ad adattarsi alla duttilità della vita. Si tratta di

ottime elaborazioni teoriche che indicano la grande capacità della mente umana di creare

costrutti, governati da procedimenti logici che si configurano sul piano dell’ universalità.

I punti di contatto fra l’χrs combinatoria di Lullo e le classificazioni del DSM

risiedono nel tentativo di far rientrare tutto in uno schema già pronto che non ammette

62
Ivi, p.637.

57
eccezioni, se queste ci sono, tanto peggio per loro, esse perdono di validità. La

schematizzazione proposta da Lullo è molto complessa: mediante l’uso di dispositivi

grafici basati sulla rotazione di figure circolari si mettono in relazione le strutture

fondamentali della realtà, per cui è possibile procede al calcolo di tutti i discorsi che gli

esseri umani fanno sulla realtà. Se dietro questa teorizzazione si scorge la presenza della

geometria, la scienza greca per eccellenza che continua ad essere valida per tutto il Medio

Evo (Lullo vive fra il XIII e XIV secolo), il DSM è in gran parte il frutto di una mentalità

positivista che si sviluppa a distanza di due secoli sulla scia della cosiddetta Rivoluzione

scientifica, quando, cioè, è elaborata la scienza fisica sulla base di una lettura

“matematica” della realtà fisica, secondo la proposta di Galilei. Se dietro l’χrs

combinatoria di Lullo c’è una sua “visione” ricevuta sul Monte Randa, se questa χrs gli

serve per dimostrare anche le verità della fede, la mentalità positivista non è solo

secolarizzata, ma non sa più cogliere alcun suggerimento che superi la riduzione ormai

consumata sul piano di un’assoluta naturalizzazione. Con questo non si vuole sostenere

che bisogna arrivare immediatamente alle questioni ultime di fondo, ma che si è persa la

sensibilità per riconoscere spessori della realtà che non siano classificabili in un modo

rigido: quantità versus qualità.

E c’è anche una profonda differenza fra l’universalità di tipo quantitativo e quella

di tipo qualitativo. Nel DSM, ad esempio, ciò che prevale è la classificazione dei casi in

caselle che li determinano in astratto, senza tener conto che la situazione esistenziale non

può essere ridotta in schemi, perché è sempre presente l’haecceitas, la singolarità, come

diceva Duns Scoto63.

63
Ho trattato questo tema in Edith “tei . Il si golo e il suo olto, in D. Vinci (ed.), Il volto nel pensiero
contemporaneo, Il Pozzo di Giacobbe, Trapani 2010.

58
E’ chiaro che sono necessari criteri orientativi per realizzare tale comprensione,

lo stesso Binswanger usa termini universali, quali, ad esempio, quello di melanconia o di

mania e, poi, li esemplifica attraverso “casi”, ma questi approcci teorici sono di tipo

qualitativo, lo psicopatologo è disponibile anche a rivederli e di volta in volta ad

“adattarli”. Si deve prevedere che la singola storia di vita non rientri perfettamente nello

schema e che abbia bisogno di essere compresa nella sua peculiarità ed eccezionalità,

senza forzature, e rappresenti una sfida per chi voglia scoprire quale sia la particolare

psico-patologia vissuta nella quale si imbatte, in vista un aiuto o anche di un semplice

“accompagnamento”. In senso eracliteo, questa storia di vita deve passare da un idios

kosmos ad un koinos kosmos, da un modo privato, in quanto alieno, ad quanto mondo

vissuto con gli altri in modo che possano stabilire rapporti equilibrati.

Il contrasto fra due mentalità, che si sta discutendo in questa occasione -

esemplificando in modo certamente riduttivo: quella che sta dietro al DSM e quella di

Binswanger -, non è circoscritto ad un settore specifico, quello delle psicopatologie, ma

riguarda alcune tendenze prevalenti nella cultura occidentale, che investono tutti gli

ambiti del sapere. La “resistenza” nei confronti delle proposte cosiddette “scientifiche”,

le quali, spesso, non sono altro che comodi “schemi”, non significa ancoramento a

posizioni considerate ormai superate – e poi secondo quali criteri? -, ma è il risultato di

un ripensamento continuo, condotto con libertà e consapevolezza, che tiene conto delle

situazioni di fatto, ma che cerca soprattutto di metterne in evidenza il senso.

59
60
EDITH STEIN – COMUNIDADE E MUNDO DA VIDA

Profa. Dra. Aparecida Turolo Garcia (Ir. Jacinta)

Universidade Sagrado Coração– USC

χrea Internazionale di Ricerca “Edith Stein nella Filosofia Contemporanea” da

Pontifícia Universidade Lateranense, Roma

E-mail: irjacinta@gmail.com

Resumo: A relação entre pessoa e comunidade em Edith Stein tem sido objeto de estudo

em diversos campos do conhecimento. O termo mundo da vida foi introduzido por

Husserl e, apesar de não aparecer dessa forma nos escritos de Stein, está em perfeita

harmonia com o pensamento da filósofa: o ser humano não é só objeto no mundo da vida,

mas é também um sujeito desse mundo. Nós o podemos considerar na sua singularidade,

mas ele sempre se encontra numa dimensão intersubjetiva. Husserl e Stein afirmam que

a organização que respeita a pessoa é a comunidade.

Palavras-chave: comunidade; mundo da vida; empatia; massa; amor ético.

EDITH STEIN - COMMUNITY AND WORLD OF LIFE

Abstract: The relationship between individual and community in Edith Stein has been

studied in various fields of knowledge. The term life-world was introduced by Husserl

and although this does not appear in the writings of Stein, is in perfect harmony with the

thought of the philosopher: the human being is not only object in the world of life, but is

also a subject of this world. We can consider its singularity, but he always finds an

intersubjective dimension. Husserl and Stein argue that the organization that respects the

person is the community.

Keywords: community; world of life; empathy; Mass; ethic love.

61
Nas últimas décadas, a relação entre pessoa e comunidade em Edith Stein, tem

sido objeto de estudo em diversos campos: Antropologia Filosófica, Psicologia,

Sociologia, Pedagogia, entre outros. Nas pesquisas interdisciplinares, que tratam desse

assunto, constatamos que a filósofa antecipa os tempos por sua competência, visão ampla,

admirável formação cultural e profunda espiritualidade.

Na introdução à edição italiana do primeiro volume das obras completas de Edith

Stein Dalla Vita di una famiglia ebrea, os organizadores Angela Ales Bello e Mario

Paolinelli64, evidenciam o fato que o livro, de cunho autobiográfico, nos permite

aproximar-nos da personalidade da filósofa numa pluralidade de perspectivas que depois

serão desdobradas e documentadas numa espécie de ramificação nas obras seguintes.

Entre esses múltiplos enfoques, podemos vê-la como filósofa capaz de unir

harmoniosamente as diferenças, pela coerência entre pensamento e vida. Com a

genialidade que a caracteriza, ela ensina não só em sua pesquisa teorética profunda, mas

em sua prática concretamente autêntica, especialmente na formação comunitária da

pessoa.

A sua experiência no ambiente da Fenomenologia a leva a abrir-se

progressivamente à Verdade e à fé, como fenômeno cristão que se encontra com a

dimensão espiritual da própria pesquisa. Ao mesmo tempo, este encontro com a verdade

da fé alarga o seu pensamento filosófico em direção a novos horizontes, que lhe abrem

caminhos cada vez mais profundos.

O tema da comunidade, fundamental para o ser humano, aparece, de forma direta

ou indireta, em todas as obras de Edith Stein e se atualiza em sua intensa vida, desde o

nascimento no seio de uma família que traz na própria origem um forte sentimento de

64
Stein, E. (2007). Dalla Vita di una famiglia ebrea e altri scritti autobiografici. Tr. It. di B. Ventura, rev. di
M. D´Ambra , a cura di Ales Bello e Paolinelli, Roma, Citta Nuova – Edizione OCD, p. 14.

62
povo, até a última frase que as Irmãs do Carmelo de Echt ouvem-na dizer para sua irmã

Rosa, no momento em que partiam para o campo de concentração - Vamos, pelo nosso

povo!65

Nela, os escritos e a existência se iluminam reciprocamente. Em carta de

15/10/1921, para Roman Ingarden, escreve: Os meus trabalhos filosóficos são sempre e

somente o resultado daquilo que me faz pensar na vida porque eu sou feita assim, devo

refletir..66

Em 1971, Roman Ingarden, traçando o perfil filosófico da amiga, afirma:

O problema que mais a atormentava era esclarecer a possibilidade de uma

compreensão entre os homens, a possibilidade de criar uma comunidade humana,

que não só teoricamente, mas também vitalmente, existencialmente lhe era muito

necessária (Ingarden, 1987).

De fato, as visões do mundo que aparecem nas obras da Filósofa e as

problemáticas, que dela derivam, permitem evidenciar que a sua posição filosófica não

pode ser separada radicalmente dos temas que motivavam os professores e colegas do

Movimento Fenomenológico inicial e, especialmente, do seu Mestre E. Husserl ao qual

se deve, não só o ter aprofundado a questão da comunidade no modo em que a enfocará

a sua discípula, mas também o ter introduzido uma expressão muito importante, do ponto

de vista interpretativo, utilizada nas mais diferentes línguas, isto é, o Mundo da Vida. Nos

escritos de E. Stein não se encontra a expressão como tal, mas ela está em perfeita sintonia

com a imensa variedade dos interesses da pensadora.

Tratando desse assunto no prefácio de um livro que reúne contribuições de

estudiosos da Área internacional de Pesquisas sobre Edith Stein da Pontifícia

65
Congregatio pro Causis Sanctorum Colonien (1986). Canonizationis Servae Dei Teresiae Benedictae a
Cruce. Roma: Proc. Ord. 25a/7.
66
Stein, E. (2001). Lettere a Roman Ingarden, 1917-1939. (Elio Constantini e Erika Schulze Trad. It., rev.
di A. M. Pezzella). Libreria Editrice Vaticana, p. 188.

63
Universidade Lateranense67, a Profa. Ales Bello apresenta Mundo da Vida como o

conjunto de todos os modos em que a vida humana se desenvolve, de todas as formações

culturais direcionadas às operações prático cognitivas dos seres humanos. Nós existimos

no mundo cotidiano que nos circunda e que inclui a nós mesmos como objetos: somos

aqui ou lá, na certeza direta da experiência, antes de qualquer outra constatação

científica, fisiológica, psicológica, sociológica, etc., assim escreve Husserl na “Crise das

ciências europeias e a fenomenologia transcendental”68.

Evidentemente, o ser humano se apresenta como um paradoxo: não é só objeto no

mundo da vida, mas é também um sujeito desse mundo. Nós o podemos considerar na

sua singularidade, mas ele sempre se encontra numa dimensão intersubjetiva:

(...) somos sujeitos para este mundo, sujeitos egológicos que o experienciam, que o

consideram, que o avaliam, que a ele se referem através de uma atividade, conforme

os escopos, sujeitos para os quais o mundo que está ao redor tem o sentido do que

lhe foi atribuído pelas nossas experiências, pelos nossos pensamentos, pelas nossas

avaliações, etc.69

O mundo constitui um fundo unitário do viver juntos enquanto seres humanos. De

fato, estamos continuamente ativos na nossa consciência desperta, no interior do mundo

que nos acompanha passivamente. Nós nos damos conta disso através de uma atitude

reflexiva que podemos assumir porque estamos conscientes. É este olhar reflexivo que

nos faz ser sujeitos e não objetos, que nos faz compreender, julgar e avaliar, que nos

permite aquela atitude que ultrapassa todas as formações culturais, isto é, a filosofia.

67
Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita. Società Diritto
Religione. Città del Vaticano: Lateran University Press.
68
Husserl, E. La crisi delle Scienze europee e la fenomenologia trascendentale. Tr. It.Enrico Filippini, Il
Saggiatore, Milano, p. 134. Apud Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – comunità e
mondo della Vita. Società Diritto Religione. Città del Vaticano: Lateran University Press, p. 6.
69
Idem.

64
O mundo dentro do qual estamos se mostra a nós, unitário e múltiplo, numa

multiplicidade de aspectos, de situações, de comportamentos, que procuramos

compreender nas suas características essenciais. Em primeiro lugar, nós perguntamos, a

nós mesmos, quem somos e qual é a relação entre “o eu” e “o nós”.

A chave para interpretar o Mundo da Vida 70

A atenção de Edith Stein está sempre voltada para os temas que estamos

brevemente enfocando. Na estrada aberta por Husserl, ela consegue captar que a chave

para interpretar o mundo da vida em sua complexidade estava na análise do sentido das

experiências vividas, isto é, das vivências (Erlebnisse), através das quais se constitui o

mundo para mim, mas também o mundo para nós, naquilo que nos põe em comum e na

recíproca confirmação. Estas vivências podem ser analisadas, classificadas e se referem

à percepção, à recordação, à imaginação, ao pensamento, os afetos, os sentimentos, as

tomadas de posições éticas. Entre essas vivencias se destaca uma que é particular, a da

Einfühlung, termo que traduzimos como Empatia, ou melhor, Intropatia.

A empatia é a vivência que nos faz sair de nós mesmos e que nos permite captar

o “alter-ego”, um eu como o meu eu, na semelhança-diferença que nos caracterizam. É

esta a fonte da intersubjetividade, que pode assumir diversas configurações,

correspondentes às estratificações presentes na subjetividade humana.

Se através das vivências, nós descobrimos que somos corpos viventes, animados

pela psique, mas também possuímos uma atividade espiritual, as associações humanas

que podemos formar correspondem às modalidades com as quais reciprocamente nos

relacionamos. Se a relação se estabelece somente em nível psíquico, então, se constitui

70
Nesta parte foi utilizado um resumo de parte do prefácio de Ales Bello da obra Ales Bello, A; Pezzella,
A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita. Società Diritto Religione. Città del
Vaticano: Lateran University Press.-

65
uma Massa. Se as relações se efetuam no nível espiritual, isto é, intelectual e voluntário,

abrem-se duas possibilidades: organizar-se em modo coletivo, mas impessoal,

constituindo a sociedade ou estabelecer relações humanas e pessoais, envolvendo a esfera

afetiva e a intelectual e voluntária, portanto, uma dimensão ética, podemos formar

comunidade.

Husserl e Stein afirmam que a organização que respeita a pessoa é a

comunidade71. Esta se caracteriza pelo fato que seus membros assumem

responsabilidades recíprocas. Cada membro mantém a sua própria liberdade, mas aceita

também a liberdade do outro e, partindo dessa reciprocidade, se avalia o projeto comum

de tal forma que ele seja útil para cada membro para que se tenha verdadeiramente

Comunidade.

A primeira forma associativa na qual me encontro – mesmo que eu possa aceitá-

la ou não - é a comunidade72 (Stein, 1999).

O Mundo da Vida, como mundo das associações humanas deveria ser configurado

nos diferentes graus das Comunidades. Nenhum aspecto da vida humana pode prescindir

da perspectiva Comunitária, nem a pesquisa cultural e científica nem as estruturas

jurídicas e políticas.

Quando falamos de pessoa humana, que se abre ao mundo humano e natural que

a circunda, nos referimos àquele ou àquela que partindo do núcleo profundo que a

caracteriza e que está incrustado na sua singularidade psicofísica, numa atitude que E.

Husserl chama de atitude personalista:

71
Cf. Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città
Nuova, 1999, seconda parte.
Cf. Husserl, E. (1997). Meditzione Cartesiane. (Costa, F., Trad. It.). Milano: Bompiani.
72
Cf. Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città
Nuova, seconda parte. Em linhas gerais, seguimos aqui as análises de Stein.

66
(...) atitude que nós assumimos sempre, quando vivemos juntos, quando falamos,

quando nos damos as mãos ao nos saudarmos, no amor e na discórdia, na

meditação e na ação, quando nos referimos uns aos outros, nos discursos e nas

controvérsias recíprocas: mesmo quando consideramos as coisas que nos

circundam73.

É sobre este terreno, no qual se justifica a dimensão ética relacionada à presença

de ligações intersubjetivas, ou melhor, interpessoais, que se pode esclarecer o conceito de

responsabilidade.

Solidariedade e responsabilidade pela vida

O paralelo entre o indivíduo e a comunidade pode ser, neste momento, repensado

em conexão com aquilo que favorece a vida. Como indivíduo é em grau, pelo menos de

uma certa forma, o próprio patrão da sua vida, no sentido de aceitá-la, negá-la, promovê-

la ou destruí-la. Deste modo, a comunidade vive ou se anula se os membros que a

compõem abrem-se uns aos outros ou se fecham rompendo os laços que os uniam. Se não

existe um desenvolvimento da vida espiritual, ou seja, a assunção consciente da

responsabilidade, ocorre uma desagregação. A solidariedade sem a qual é impossível

formar uma comunidade está presente então, segundo a convincente definição de Stein,

quando os indivíduos estão abertos uns para com os outros, quando as colocações de um

não são rejeitadas pelo outro, mas fazem parte dele favorecendo completamente a sua

eficácia74; a unidade vital que constitui a essência da comunidade, - não o ideal de

73
Husserl, E. (1965). Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologichen Philosophie, Bd. IV,
§ 51. Trad. It. Enrico Filipini. Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica). Torino:
Einaudi, 1965.
74
Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città Nuova,
seconda parte, p.192.

67
comunidade, mas a sua íntima estrutura, se esta é realmente uma comunidade, - será

tolhida pelo comportamento de um indivíduo que considere o outro como objeto.

Trata-se, então, de reconhecer não somente a presença de uma tendência

espontânea na manutenção da própria vida e de uma abertura genérica na minha relação

para com os outros, mas de admitir, como nos sugere Husserl, a necessidade de um “amor

ético”. Com esta expressão queremos indicar que se assume em si a vida do outro e isto

pode ocorrer no plano humano implicando uma assunção de responsabilidade recíproca

através da qual não se vive somente ao lado do outro ou com o outro, mas um no outro

potencialmente e, atualmente, sendo solidários em tudo, no bem e no mal.

Analisando longamente a característica desta solidariedade chega-se à profunda

ligação entre momento ético e momento religioso75.

Delineiam-se, portanto, diversos graus de “comunidade”, por exemplo, a

comunidade familiar vista como uma assunção recíproca de responsabilidade, de

cuidados e de afeto, mas a autêntica comunidade de amor é aquela que descobre em cada

alma humana a vocação para o bem, um eu ideal, o verdadeiro eu da pessoa que se realiza

somente no bom comportamento. Neste sentido, o amor cristão leva à realização da

comunidade de amor no modo mais amplo possível.

Certamente, podemos deduzir isto, também, através de uma reflexão do tipo

filosófico sobre a natureza humana, a qual nos leva a concluir que é necessário fugir

daquilo que não realiza o próprio ser humano e se não chegamos a tal conclusão, é porque

existe uma gama de “distorção”, de camuflagem que impede de ver o que é o bem.

Mas o que é o bem? Em primeiro lugar é o que conserva a vida e a promove; os

dois termos devem ser cuidadosamente examinados, porque “conservar” a vida pode

significar absolutizá-la, ao ponto de pisar na dos outros. Vimos que a abertura

75
Husserl, E. Zur Phänomenologie der Intersubjectivitat. Husserliana. Bd. III, Nr. 9.

68
fundamental impede ou deveria impedir o isolamento e o fechamento, então “promover”

deve significar o estabelecimento de uma relação fundamental e recíproca entre mim e o

outro. Não posso salvar a minha vida isolando-me, devo perguntar-me se esta

conservação favoreça ou não a vida do outro. Isto vale para a comunidade humana,

familiar, comunidade de amigos, comunidade de povos nas quais as ligações profundas

são de assunção recíproca de responsabilidade de um para com o outro. Mas como isto

pode se estender para toda a humanidade? Dilatar-se ao ponto de compreender a

comunidade humana? A indicação nos vem do amor ético do qual nos falava Husserl,

daquela comunidade mais ampla possível, que nasce da dimensão religiosa. Nesta não

existem confins nem limites ao amor, amor no qual se potencializa a própria vocação para

o bem e considera-se possível usar a vocação para o bem do outro.

Conservação e promoção da vida significam, então, de quando em quando, a

escolha e realização daquilo que serve à sua manutenção numa direção positiva,

acompanhado do grande esforço de isolar e reduzir o negativo. Seja o seu raio de ação

limitado num âmbito restrito ou que se estenda a uma dimensão mais ampla, cada um

deveria sentir a responsabilidade do seu viver, do viver dos outros e da vida da própria

natureza.

Isto não acontece sempre de modo espontâneo e isento de obstáculos, obstáculos

subjetivos e objetivos, ligados às próprias inclinações e às circunstâncias. Portanto, é

necessária uma séria reflexão, a mais ampla possível, que enquadre filosoficamente o

problema num horizonte de mudanças que constituem a base de compreensão da vida.

Mas, tudo isto deve ser comunicado através de uma obra de educação recíproca.

Husserl escrevia que existem formas particulares de éticas de comunhão onde

aqueles que estão ligados não estejam eticamente atentos, ou que um seja eticamente

atento e ou outro não, ou que ambos sejam atentos. Ser atento significa colocar

69
intencionalmente a si mesmo o eu ideal como “dever infinito” e levar a responsabilidade

recíproca na realização deste dever. Mas, sobretudo, “viver” tal responsabilidade através

de um envolvimento pleno que envolva a minha existência e me faça assumir

comportamentos nos quais se manifeste o amor ético. É esta a fonte primária de uma

comunicação interpessoal fecunda.

Referências

Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita.

Società Diritto Religione. Città del Vaticano: Lateran University Press.

Congregatio pro Causis Sanctorum Colonien (1986). Canonizationis Servae Dei Teresiae

Benedictae a Cruce. Roma: Proc. Ord. 25a/7.

Husserl, E. La crisi delle Scienze europee e la fenomenologia trascendentale. Tr. It.

Enrico Filippini, Il Saggiatore, Milano, p. 134. Apud Ales Bello, A; Pezzella, A. M.

(edd.) (2008). Edith Stein – comunità e mondo della Vita. Società Diritto Religione.

Città del Vaticano: Lateran University Press, p. 6.

______ (1997). Meditzione Cartesiane. (Costa, F., Trad. It.). Milano: Bompiani.

______ (1965). Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologichen

Philosophie, Bd. IV, § 51. Trad. It. Enrico Filipini. Idee per una fenomenologia pura

e una filosofia fenomenologica). Torino: Einaudi.

______. Zur Phänomenologie der Intersubjectivitat. Husserliana. Bd. III, Nr. 9.

R. Ingarden (1987). Il problema della persona umana – profilo filosofico di E. Stein. Il

Nuovo Areopago. Bologna, n. 21, p. 33.

Stein, E. (2007). Dalla Vita di una famiglia ebrea e altri scritti autobiografici. Tr. It. di

B. Ventura, rev. di M. D´Ambra , a cura di Ales Belllo e Paolinelli, Roma, Citta Nuova

– Edizione OCD, p. 14.

70
_____ (2001). Lettere a Roman Ingarden, 1917-1939. (Elio Constantini e Erika Schulze

Trad. It., rev. di A. M. Pezzella). Libreria Editrice Vaticana, p. 188.

_____ (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.).

Roma: Città Nuova, seconda parte, p.192.

71
SABERES SOBRE PESSOA E COMUNIDADE TRANSMITIDOS E

ELABORADOS PELOS “MÉDICOS DA ALMA” NO BRASIL COLONIAL

Marina Massimi

Universidade São Paulo

E-mail: mmassimi3@yahoo.com

Resumo: O artigo discute o processo de transmissão e elaboração dos conceitos de pessoa

e comunidade no contexto da cultura brasileira do período colonial. Os atores desse

processo eram primeiramente pregadores que definiam a si mesmos como médicos da

alma. São especificamente analisados os sermões de Antonio Vieira e outros pregadores.

O trabalho busca primeiro lugar compreender o perfil do que chamamos médicos da alma

e, em segundo lugar, foca sobre os caminhos pelos quais as noções de pessoa e

comunidade foram transmitidas pelas pessoas da época do Brasil colonial.

Palavras-chave: conhecimento sobre pessoa e comunidade; história da cultura brasileira;

pregação e psicologia; medicina da alma; processo histórico da transmissão de

conhecimento.

KNOWLEDGE ABOUT THE PERSON AND THE COMMUNITY

TRANSMITTED AND ELABORATED BY THE "PHYSICIAN OF THE SOUL"

IN COLONIAL BRAZIL

Abstract: The paper discusses the process of transmission and elaboration of the concepts

of person and community in the context of Brazilian culture from the colonial period.

Actors in this process were primarily preachers who defined themselves as physicians of

72
the soul. Are specifically analyzed the sermons of Antonio Vieira and other preachers.

The work will seek first to understand the profile of what we call the physician of the

soul; and secondly, focus on the ways that notions of person and community were

transmitted by those in colonial Brazil.

Keywords: Knowledge about the person and the community; history of Brazilian culture;

preaching and psychology; medicine of the soul; historical processes of knowledge

transmission.

Introdução

Em Estrutura da pessoa (1932/2000) e em Contribuição à fundação filosófica da

Psicologia e das ciências do espírito (1922/1999), Edith Stein estabelece um diálogo

fecundo sobre os temas da pessoa e da comunidade, entre a abordagem fenomenológica,

recém-criada pelo seu mestre E. Husserl e as teorias de natureza filosófica e teológica

que, na tradição Ocidental, constituíram-se nos alicerces destes dois conceitos. Dentre

eles, destacam-se autores como Platão, Aristóteles, Agostinho, Duns Scoto, Tomas de

Aquino76. A partir da afirmação de que somente uma análise fenomenológica pode

evidenciar de modo sistemático a unidade da pessoa e a dimensão comunitária da mesma,

Stein demonstra que, do ponto de vista da experiência fenomenologicamente apreendida,

“a comunidade é considerada em analogia à pessoa humana” e que “a relação pessoa-

comunidade é essencialmente uma relação de interdependência constitutiva, onde os

aspectos ativo e passivo da pessoa e da comunidade são necessários no processo de

tornarem-se si mesmas, o que só pode acontecer a partir de uma abertura recíproca”

76
Vejam-se a respeito os trabalhos de Alfieri, F. La presenza di Duns Scoto nel pensiero di E. Stein (2014);
Massimi, M. Compreender a estrutura da pessoa: diálogo entre fenomenologia e filosofia aristotélico-
tomista por Edith Stein.(2013)

73
(Coelho Junior& Mahfoud, 2006, p. 8). Nestes resultados, Stein encontra coincidências e

divergências com relação aos autores acima indicados.

Nesta comunicação pretendemos apontar como os saberes sobre pessoa e

comunidade produzidos no âmbito teológico e filosófico pelos autores acima indicados,

foram apropriados no contexto da cultura brasileira, a partir do período colonial; e

evidenciar as modalidades em que os referidos saberes foram reelaborados e transmitidos

no meio de uma população caracterizada em grande parte pela cultura oral, sobretudo pela

atuação dos pregadores. Estes se autodefiniram como médicos da alma, retomando uma

categoria usada por Agostinho de Hipona (397/1988) para indicar o ministério da oratória

sagrada. Por intermédio deles, foram introduzidos no Brasil seja o conceito de pessoa

alicerçado nas teorias de Agostinho, Boetius, e de Tomás de Aquino (Massimi, 2010b),

seja o conceito complementar de comunidade, alicerçado nas teorias de Aristóteles,

Agostinho e Tomás (Massimi, 2005a), dentre outros. O elo entre os dois conceitos

encontra-se na elaboração teológica do conceito de pessoa, especialmente no dogma

trinitário que diz respeito à relação de comunhão entre as pessoas divinas, da qual decorre

a natureza trinitária da pessoa e, portanto, o caráter relacional intrínseco à essência da

pessoa humana. Em nosso percurso de hoje iremos: em primeiro lugar entender o perfil

dos que chamamos de médicos da alma; e em segundo lugar, focar de que modos e em

que termos as noções de pessoa e comunidade foram por esses transmitidos no Brasil

colonial.

Os médicos da alma

Em vários sermões, os pregadores definem-se a si mesmos como médicos da alma.

Com efeito, a pregação, ao transmitir conceitos, práticas e crenças da tradição clássica,

74
medieval e renascentista ocidental, visava promover a mudança dos hábitos e da

mentalidade dos indivíduos e dos grupos sociais pela força da palavra e o apelo à razão e

liberdade dos destinatários. Esta capacidade de suscitar mudanças, por analogia com a

arte medica, assumira um cunho terapêutico. A confiança no poder da palavra enquanto

instrumento de persuasão e modificação dos comportamentos, baseava-se no

conhecimento e na prática da arte retórica e de suas influências no dinamismo psíquico,

proporcionados pela psicologia filosófica aristotélico-tomista e pela oratória sagrada da

primeira Idade Moderna. Esta confiança foi reforçada também pela importância assumida

pela palavra e pelo discurso na tradição cultural dos índios brasileiros, documentada por

diversas fontes.

De certo modo, as competências dos médicos da alma se entrelaçam com as dos

médicos do corpo: este entrelaçamento tem suas raízes na longa tradição chamada de

“Medicina da χlma”, ou do “do Ânimo” (na terminologia da filosofia estoica), iniciada

por Platão, Demócrito, Aristóteles, Hipócrates, Cícero, Sêneca e Galeno e consolidada ao

longo da Idade Média por Agostinho de Hipona (Massimi, 2005b), sendo retomada e

ampliada no Humanismo e na Renascença. Baseada na analogia entre o cuidado da alma

e o do corpo, a Medicina da χlma pressupõe a existência das “enfermidades da alma”

(Massimi, 2010a). O conceito de "doença da alma" derivara, portanto, de uma perspectiva

médica – por tratar-se de doença - e ao mesmo tempo filosófica - sendo a alma o objeto

acometido pela moléstia. Por sua vez, a possibilidade de se estabelecer a analogia entre

medicina do corpo e medicina da alma baseava-se na visão grega da corporeidade humana

entendida como unidade psicossomática individual, social e cósmica (Platão,

especialmente nas obras Timeu e República e Aristóteles, na Política). (Reale, 2002)

O princípio unitário da saúde é o equilíbrio, de modo que qualquer desequilíbrio,

seja no corpo seja no espírito, é causa de doença. É assim que, por exemplo, um

75
desequilíbrio no sentido de um excesso ou defeito nos movimentos do apetite sensorial

(= paixão), pode provocar doenças corporais e psíquicas. Da mesma forma, a diversidade

na composição dos humores do corpo (complexão) origina quatro diferentes

temperamentos psicológicos (sanguíneo, fleumático, melancólico e colérico), mas um

excesso ou defeito de um ou outro humor pode degenerar em patologias psíquicas e

físicas. Os temperamentos, por sua vez, determinam as características psicossomáticas do

individuo: sua condição orgânica bem como seus estados psíquicos (Massimi, 2010 a).

Além disto, esta teoria proporciona conhecimentos acerca das relações existentes entre

climas, temperamentos e diferentes tipos humanos com os respectivos talentos e aptidões

– o que permitia a consideração do ser humano na perspectiva do corpo, do ambiente e

de sua inserção social.

Nos primeiros séculos da era cristã, assiste-se a um processo de apropriação

filosófica de tópicos comuns ao discurso médico, visando a sistematização de certo

“exercício” das atividades psíquicas ou espirituais, sobretudo por filósofos estoicos,

dentre eles, Sêneca e Cícero (por exemplo em Tusculanas77). Agostinho que se utiliza da

denominação de médico da alma para referir-se a Cristo, como também aos seus

ministros, especialmente aqueles que pela arte da palavra, transmite as verdades da fé.

Foi justamente Agostinho quem iniciara a tradição da oratória sagrada na medida em que

realizou a apropriação da arte retórica clássica em chave cristã, por ele sistematizada no

tratado Doutrina Cristã (século V/1991).

Desse modo, teologia, filosofia e medicina encarregam-se de construir o domínio

da Medicina da Alma - cada uma com suas competências e perspectivas próprias - e é

77
Em outra obra (Tusculanas ,àCí e oàafi aà ueà talà o oàaà o upç oàdaàsa gue,àoàe essoàdeàhu o à
ou de bilis fazem nascer no corpo as doenças e mal-estares: a perturbação que acompanha as opiniões
incorretas e a contradição de opiniões, despojam a alma de sua saúde e a perturbam por meio de
e fe idades .à ,àed.àitalia a,àLi oàIII,ààp. ,àt ad.à ossa .

76
assim que este domínio vem abarcar um conjunto de conhecimentos de vária natureza,

desde as teorias médicas acerca dos cuidados com o corpo até aos conselhos sugeridos

pela sabedoria dos Padres do deserto e da antiga tradição da Patrística cristã. Os

humanistas assumem a tarefa de traduzir os conteúdos destes conhecimentos em normas

da arte do viver78. O médico espanhol Huarte de San Juan, formado pela Universidade de

Alcalá e autor do Examen de Ingenios para las Sciencias (1574/1989) estabelece estreita

correspondência entre a Medicina do Corpo, a Medicina do Ânimo e a construção política

e social da sociedade, baseando-se no modelo da “República” platônica. Desse modo, a

prática social apoia-se na filosofia natural, sendo o corpo social estruturado em analogia

com o microcosmo que é o homem. Assim, a Medicina da Alma passa a cuidar não apenas

do corpo e alma do individua como também do corpo social, da comunidade.

Os jesuítas dão continuidade a esta tradição e difundem-na, inclusive em seus

âmbitos de presença missionária, como o Brasil. Já nos escritos de Inácio de Loyola,

fundador da Ordem religiosa, vemos a referência freqüente a esta tradição de

conhecimentos, em função do entendimento mais profundo do ser humano e de seu

destino, visando à orientação (direção) de sua vida espiritual79

Cláudio Acquaviva (1543-1615), um dos sucessores de Inácio no Generalato da

Companhia, no texto (Industriae ad curandos animi morbos) Normas para a cura das

enfermidades do ânimo (1600/1893), retoma a analogia tradicional entre doenças (e cura)

do corpo e enfermidades (e terapia) da alma, definindo os vários tipos de doenças

espirituais e os remédios necessários para cada uma, inspirando-se na tradição monástica

78
Entre outros, o humanista dálmata Marculus Marulus escreve o tratado De Bene beateque vivendi e seu
mestre italiano Tideu Acciarini compõe, em 1489, o De Animorum Medicamentis (Massimi, 1983).
79
Por exemplo, em carta escrita ao Padre Antônio Brandão em junho de 1551, Loyola frisa a importância
de que o mestre espiritual conheça o temperamento daquele que se entrega aos seus cuidados,
afi a doàaà e essidadeàdeà a o oda -se à complexão daquele com quem se conversa, a saber, se é
fleumático ou colérico, etc., e isto com moderaçãoLoyola, 1993, vol. 2, p. 89.

77
e patrística. Acquaviva insiste também na prática do exame de consciência, tendo função

de autoconhecimento, de prevenção e cuidado de si mesmo. Através desta prática, o

religioso deve desvelar integralmente a sua alma para o diretor espiritual. Além disso,

Acquaviva afirma que, neste exercício, descobrem-se as diferenças individuais. A partir

de Acquaviva, a expressão Medicina da Alma comparece sistematicamente na literatura

jesuítica. A utilização desse saber em função prática é documentável não apenas no plano

da orientação espiritual e das atividades missionária e pedagógica, como também no plano

da organização social da Companhia. Os pregadores da Companhia, dentre eles Antonio

Vieira, definem-se a si mesmos como os médicos da alma e propõem sua pregação como

o verdadeiro remédio não apenas para a salvação das pessoas como também para o bem

estar do corpo social da república cristã.

Conceitos de Pessoa e de comunidade transmitidos no Brasil colonial

Implicados na difícil empreitada da evangelização da Terra de Santa Cruz, os

jesuítas aqui chegados em 1549, utilizavam-se dos recursos conceituais adquiridos no

período de formação em Coimbra e disponíveis em sua bagagem cultural80. No texto

Diálogo do Padre Nóbrega sobre a conversão do gentio81, o jesuíta Manuel de Nóbrega

aplica o conceito aristotélico-tomista de pessoa, de alma humana e de suas potências

psíquicas, para justificar a humanidade e a convertibilidade do índio. Trata-se de uma

discussão, na forma do diálogo – modelo retórico este muito utilizado no século XVI –,

80
Dentre estes, destacam-se os tratados assim chamados de Conimbricences redigidos pelos professores
do Colégio das Artes da Companhia em Coimbra: o comentário ao tratado De Anima (Sobre a Alma, Gois,
1602), o comentário ao tratado Parva Naturalia (Pequenas coisas naturais, Gois, 1593a), o comentário ao
tratado Ética a Nicômaco (Gois, 1593b), o comentário ao De Generatione et Corruptione (Sobre a geração
e a corrupção, Gois, 1607). No âmbito dos referidos textos - todos redigidos em idioma latino -
evidenciaram-se os principais conceitos referentes ao conhecimento antropológico psicológico.
81
O texto encontra-se em Nóbrega, M., (1989). Cartas do Brasil, Belo Horizonte, Editoras Itatiaia-Editora
Universidade de São Paulo (Coleção "Reconquista do Brasil": n. 147) (Original, 1551).

78
entre duas posições difundidas entre os jesuítas em missão no Brasil: uma, afirmando a

convertibilidade dos índios, com base em sua comprovada posse de todos os elementos

próprios da natureza humana, especialmente no que diz respeito à sua vida anímica; outra,

questionando esta certeza a partir das grandes dificuldades e impedimentos opostos pelos

próprios índios à evangelização. Duas personagens - Mateus Nogueira e Gonçalo Alves

– representam estas duas visões. Num dos pontos altos da conversação, Nogueira

apresenta como fundamento de sua esperança nas possibilidades missionárias da

Companhia junto aos índios, a afirmação de que estes são a pleno direito, pessoas

humanas, e afirma: “Estou eu imaginando todas as almas dos homens uma, nos serem

umas e todas de um metal feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes de

gloria e criadas para ella, e tanto valem diante de Deus por natureza a alma do Papa,

como a alma do vosso escravo Papana”. (Nóbrega, 1989, p. 237). O fato de que os índios

têm alma igual a dos homens europeus é comprovado pela evidência das potências

psíquicas atuantes no índio: “está claro, pois a alma tem três potências, entendimento,

memória e vontade, que todos têm” (idem). Esta definição operativa de alma (a partir de

suas potências) remete ao conceito agostiniano de pessoa formulado no tratado

Trindade82. Ali Agostinho define a pessoa a partir da atuação destas três potências

82
O conceito de pessoa como o núcleo unitário e único do ser humano e a evidência de que a pessoa é
uma substância, são descobertos por Agostinho através da experiência refletida do conhecimento de si
mesmo e são depois tematizados numa linguagem filosófica (que emprega termos técnicos da filosofia
o oà su st ia à estesàte os:à Estasàt sà oisas,à e ia,ài telig ia,à o tade,à o oà oàs oàt sà
vidas, mas apenas uma só, nem três mentes, mas uma só mente, não são, por conseguinte, três
substâncias, mas uma só substância (...) Pois me lembro de que tenho memória e inteligência e vontade,
e entendo, quero e lembro; e quero querer e lembrar e entender; e lembro, ao mesmo tempo, toda minha
e iaàeà i haài telig iaàeà i haà o tade,àtodaài tei a .à ide ,àpp. -332). E finaliza o capítulo
eite a do:à ásàt sàfo a àu aàs àu idade:àu aàs à ida,àu aàs àal aàeàu aàs àsu st ia à p.à .à
Uma vez estabelecida esta unidade trinitária que é a alma humana, Agostinho observa que quando estas
potências se encontram reunidas num único sujeito ueàpodeàdize àdeàsià es o:à essasàt sàfa uldades:à
memória, inteligência e amor são minhas, não pertencem, porém a elas mesmas; pois não operam em
seu próprio favor, mas sim em meu proveito. Sou eu que atuo servindo-me delas. Sou eu que recordo
pela minha memória, compreendo pela minha inteligência e amo pelo meu amor. E quando volto o olhar
do pensamento para a minha memória, e assim digo no meu coração o que sei e é gerado um verbo por
meio do meu conhecimento, ambas as coisas são minhas. Ou seja: o conhecimento e o verbo. Pois sou eu

79
anímicas: “Eu recordo, eu entendo, eu amo, servindo-me destas três faculdades. Eu que

não sou memória, nem inteligência, nem amor, mas que os possuo. Portanto, pode-se

dizer que são de uma só pessoa, que ela possui as três faculdades, mas ela mesma não é

essas três faculdades” (1995, p. 540). O posicionamento de Nóbrega reflete também a

doutrina do contemporâneo intelectual e religioso espanhol Francisco de Vitória,

professor de Direito na Universidade de Salamanca, que em suas preleções universitárias

(Relectio de Indis, 1539/1989), ao retomar a definição aristotélico-tomista de pessoa,

afirmara que “todo índio é homem e, por consequência, é capaz de salvar-se e condenar-

se”. E sendo que “todo homem é pessoa e dono de seu corpo e de suas coisas” deriva que

“por ser pessoa, o índio tem direito ao livre arbítrio e é dono de seus atos”. (1989, p.

117)

Sendo, portanto, o índio reconhecido como pessoa, põe-se o problema de cuidar

para desenvolver neste uma consciência adequada de seu ser e uma conduta condigna.

Neste ponto, na perspectiva de Nóbrega, coloca-se a importância da educação: “Terem os

romanos e outros gentios mais policia, que estes, não lhes veio de terem naturalmente

melhor entendimento, mas de terem melhor criação, e criarem-se mais politicamente”.

(Nóbrega, 1989, p. 238)

Seguindo estas orientações, o jesuíta Alexandre de Gusmão, que atuara como

educador e reitor do Colégio de Belém em Cachoeira do Campo, numa obra de

significativo título - Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685) -, dedicada

a pais e mestres, declara que “nam há condição de minino tam ruim, que nam possa ser

domada pela boa educaçam” (1685, p. 4). Em outra obra (Gusmão, 1720), esse mesmo

que sei, e eu digo em que coração que sei (p. 539-540). Com base nisto, Agostinho formula a definição
filos fi aàdeàpessoa:à Euà e o do,àeuàe te do,àeuàa o,àse i do-me destas três faculdades. Eu que não
sou memória, nem inteligência, nem amor, mas que os possuo. Portanto, pode-se dizer que são de uma
s àpessoa,à ueàelaàpossuiàasàt sàfa uldades,à asàelaà es aà oà àessasàt sàfa uldades .à ,àp.à .

80
autor recomenda a importância do cuidado para com a alma: trata-se de um cuidado que

não é óbvio, pois sendo a alma uma realidade invisível e que nos pede para ir além da

aparência, mesmo quando cremos que as almas existam “como as não vemos, com os

olhos, por isso as não amamos”. (1720, p. 341). Este saber é importante, pois “do

conhecimento que tivermos das nossas almas depende o amor, que lhe devemos, e desse

amor, a nossa salvação”83. A pregação vem a ser instrumento privilegiado para

possibilitar tal conhecimento e remediar o descuido de nós mesmos em que muitas vezes

caímos.

O uso da pregação como exortação ao conhecimento da pessoa humana encontra

seu modelo num conjunto de Sermões de Antônio Vieira (1993), que irá se constituir num

marco de referência para os demais pregadores brasileiros, ao abordar o tema. Trata-se

do conjunto de sermões “As Cinco pedras da funda de Davi em cinco discursos morais”,

elaborados em 1676. No primeiro dos discursos, Vieira mostra a importância do

conhecimento de si mesmo, pois afirma que “neste mundo racional do homem, o primeiro

móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”. E reitera: “eu digo

que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se concebe, e conhece a si

mesmo. O conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, é uma força

poderosa sobre as próprias ações” (1993, vol. V, p. 607).

A correspondência estabelecida entre a ação e o conhecimento de si mesmo evoca

a visão tomista de pessoa. Tomás de Aquino (2001-2003), na Summa Theologica,

retomando Severino ψoetius, afirma que “o particular e o indivíduo realizam-se de

maneira ainda mais especial e perfeita nas substâncias racionais que têm o domínio de

seus atos e não são apenas movidas na ação, como as outras, mas agem por si mesmas.

Ora, as ações estão nos singulares. Por isso, entre as outras substâncias, os indivíduos

83
Alexandre de Gusmão, 1720, p. 341.

81
de natureza racional têm o nome de pessoa. Pessoa significa substância individual de

natureza racional” (2001, p. 523)84.

Qual será então o verdadeiro conhecimento de si mesmo? Segundo Vieira, é o

reconhecimento da essência do homem, que o diferencia dos demais seres vivos e

animados. Conforme a filosofia aristotélico-tomista, a essência de cada ser corresponde

ao que ele tem de peculiar com relação aos outros seres. No caso do ser humano, a alma

é “o que o distingue e enobrece sobre todas as criaturas da Terra” (Vieira, 1993, vol. V,

p. 607), ao passo de que o corpo humano não especifica o ser do homem, sendo

substancialmente semelhante ao dos demais animais.

Por isto, segundo Vieira, conhecer-se a si mesmo “é conhecer-se e persuadir-se

cada um, que ele é a sua alma85 (idem). A alma corresponde à substância imutável do ser

humano: "rsou alma, porque o fui, porque o hei-de-ser, porque sou”. (Vieira, 1993,

vol.V, p. 607). Por isto, ela é o melhor espelho de si mesmo, o centro de sua vida pessoal:

afirma Vieira: “eu sou a minha alma”. È pela alma que o ser humano pode realizar sua

união amorosa com Deus, como ele afirma na esteira da tradição mística, num sermão

dedicado a Teresa de Ávila: “a união entre Jesus e Teresa foi tão intima que passando de

união a unidade, já Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão um e o mesmo”

(Vieira, 1993, vol. 3, p. 356). O mesmo processo Vieira descreve em sermões dedicados

a outros santos: afirma acerca de São Francisco que era “pela identidade, identificado

com Deus e pela deificação ficando endeusado todo, ou ficando todo um Deus” (vol. 3,

p. 761). Esta divinização da pessoa humana demanda a presença de dois atores: a vontade

divina que escolhe o ser humano e a vontade deste de corresponder a esta escolha. Vieira

retoma uma concepção da tradição mística e monástica e afirma que para esta união das

84
Idem, 2001, I, Q.29, Art.1, p. 523.
85
Ibidem.

82
duas vontades, o homem precisa sair de si mesmo, ou melhor abstrair da corporeidade,

sendo que este movimento paradoxalmente provoca um “entrar em si mesmo”, conforme

a experiência mística ensina: “Enquanto um homem não sai do corpo, ignora-se, e só

quando sai dele se conhece. Os santos dizem, que para que o homem se conheça, há-de

entrar em si mesmo; e este sair de si é entrar em si; porque é sair do exterior do homem,

que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma”. (idem p. 614).

Segundo Pecora, Vieira em seus sermões “realiza uma extraordinária apologia do

homem em que ele se destina sempre, potencialmente ao menos, a uma particularíssima

união com o divino” (1992, p. 81). χ via principal desta união não é tanto a via mística

quanto a via sacramental e a mediação da Igreja, como corpo místico. O fato que Cristo

escolheu doar sua presença ao homem por meio do sacramento da Eucaristia e da Igreja

funda para sempre a possibilidade desta união. É deste lugar que inclusive a palavra do

pregador adquire sua potencia. Pedro é a quarta pessoa da santíssima Trindade enquanto

pela sua livre vontade corresponde ao chamamento do Amor divino, ao ponto de se

identificar com ele. Assim sua vida é enxertada na relação trinitária. Em Pedro,

conformado a Deus, “há um só e o mesmo entendimento, uma só e a mesma vontade, uma

só e a mesma potência” de ação (Vieira, 1993. vol. 3, p. 380). Pedro enquanto feito

participe da relação trinitária, é ele mesmo plenamente pessoa.

A visão de união mística entre o homem e Deus pela mediação sacramental e

institucional da Igreja, tem efeitos também no plano das relações sociais e no plano

político. Nela, funda-se a ligação incindível entre a comunidade como lugar sacramental,

e a constituição da pessoa.

Análogo horizonte conceitual encontramos nos sermões de outros pregadores do

Brasil colonial. Dentre outros, o sermão pregado no Convento de Carmo da cidade de

Salvador, na ocasião da festa de canonização de Madalena de Pazzi (Mattos, 1694), pelo

83
jesuíta Eusébio de Mattos: aqui o conhecimento verdadeiro de si mesmo corresponde ao

emprego de todo o entendimento no objeto amoroso e, ao mesmo tempo, na revelação de

si mesmo proporcionada por este objeto, de modo que a alma, pela contemplação, se torna

imagem do objeto contemplado, numa “singular troca das potências da alma” (1694, p.

351). Deste modo, através da narrativa de experiências exemplares evocadas pelos

pregadores, o caráter de contingência que caracteriza a vida da pessoa é exaltado em sua

possibilidade de duradoura consistência.

Os médicos da alma e o cuidado das pessoas em relação: comunidade e corpo místico

A palavra do pregador médico da alma é ação, na medida em que intervêm para

articular o movimento que leva a união de vontade entre Deus e a pessoa bem como a

união das vontades individuais no corpo eclesial e social. Ao atuar para promover a

experiência da comunidade entre as pessoas, o pregador inspira-se novamente na arte dos

médicos do corpo por seguir assim o modelo oferecido pelo próprio Criador divino: com

efeito, a admirável fisiologia do corpo humano é um modelo exemplar de composição e

sintonia entre os membros numa unidade funcional à vida86.

86
O estabelecimento de uma relação precisa entre a arte de pregar e o conhecimento do corpo humano
proporcionado pela medicina e pela ciência moderna, encontra-se nas obras teológicas do pregador
espanhol Luís de Granada. Na obra Del simbolo de la fé, chamado de Prólogo sobre la fábrica y partes
principales del mundo menor, que es el hombre, há uma exposição muito interessante da concepção
a t opol gi aàdoàg a deà est eàdaào at iaàsag ada.ààOàho e à àdefi idoà o oà mundo menor àpo ueà
tudo o que tem no mundo maior, encontra-se ele, es o ue de fo a ais si téti a . Com efeito, no
corpo humano, encontra-se o ser em forma de elementos, a vida vegetal - como nas plantas; a vida dos
sentidos - como nos animais, e o entendimento e o livre arbítrio - o oà osà a jos,à resumindo-se no
homem a natureza e as propriedades de todas as criaturas .à Po à esteà oti o,à at a sà doà ho e à
conhecemos melhor a perfeição de Seu Criador. De alguma forma, então, o corpo constitui-se em modelo
vivente daquela unidade que através da palavra ele pretende recompor nas almas individuais e na
comunidade social e política. Este modelo perfeito, dado ao homem, o pregador pode constantemente
observá-lo em seu próprio corpo, derivando desta observação as regras e os remédios para sua cura e
para o restabelecimento e conservação de sua saúde.

84
No pensamento da Companhia de Jesus, a noção do corpo místico, ou seja, do

corpo social permeado pelo espírito divino, expressa uma profunda analogia entre a ação

da Providência que governa o mundo e a ação voluntária do homem (missão) que escolhe

colaborar com ela. Ao mesmo tempo, constitui-se no fundamento ontológico da

comunidade humana, da comunidade eclesial e da organização institucional das formas

políticas de unidade entre os homens (inclusive da soberania do Rei) (Pécora, 1992).

O uso das metáforas inerentes ao domínio do corpo para significar realidades

espirituais, herdadas por esta tradição, evidencia-se nos sermões gratulatórios pela

recuperação da saúde de soberanos e príncipes: nestes, estabelecem-se analogias entre o

corpo físico do rei e o corpo social e político, ou o corpo místico de Cristo e da Igreja.

Exemplares são alguns sermões do jesuíta Antônio de Sá (1750). Num sermão pregado

em 1643, em ação de graças pelo restabelecimento do Rei Dom João IV, adoentado,

Antônio de Sá estabelece um paralelismo entre a enfermidade do corpo natural do rei e a

enfermidade de seu corpo político, o Reino. A doutrina dos dois corpos do rei, o corpo

natural, visível e mortal e o corpo místico, invisível e imortal, humano por natureza e

divino por graça, era difundida no Ocidente, desde a Alta Idade Média (Kantorowicz,

1998), sendo que o soberano, imitador de Cristo, era considerado como mediador entre

céu e terra. Sá expõe no sermão esta doutrina aplicando-a à enfermidade de Dom João.

Segundo o pregador, o rei e seu povo formam um “corpo mystico, do qual são os vassallos

as partes inferiores, e a cabeça El Rey”, de modo que com a lesão desta parte, principal

entre as corpóreas, ofendem-se todas as outras. Por isto, prossegue o sermão, a

Providência divina permitiu que através daquela paralisia, “padecesse a cabeça, e o corpo

do Soberano, para que se visse, que no corpo, que são os vassallos, havia o mesmo

sentimento que na cabeça, que he o Príncipe” (Sá, 1750, p. 20). Este padecimento

conjunto do “corpo” e da “cabeça” seria então exemplo para o mundo, de modo que

85
Portugal cumpriria mais uma vez sua função de nação eleita pela divina vontade para uma

missão exemplar, na história. A identificação entre o corpo natural do rei e o corpo

político da nação é tal que esta experimenta em si mesma, através do movimento do afeto,

as dores do príncipe.

No sermão pregado na ocasião do aniversário do soberano, no dia 21 de agosto de

1663 (Sá, 1750, p. 145), Sá compara a relação entre o rei e o reino à relação da presença

de Cristo entre as partes e o todo, no pão sagrado da Eucaristia: assim como “Cristo

sacramentado não ha parte alguma da Hostia em que não esteja”, o soberano também

“ha de ser pera todos, e ha de assistir a todos”, de modo que “não ha de haver parte

nenhuma no Reino” que não seja acudida pelo seu governo. Neste ponto, o brasileiro

Antônio de Sá – ao pregar em Lisboa diante da corte - toca o problema do governo das

colônias distantes e especialmente o ψrasil: “como pode ser que hum Principe assista a

partes tão distantes como são as que compoem o todo de huma Monarquia?” (p. 145). E

a resposta é a de que existe um “modo político definitivo” – que é o modo em que Cristo

se faz presente no sacramento eucarístico: assim como “Christo está em qualquer parte

da Hostia, porque se põe deffinitivamente em toda: ponha-se o Principe deffinitivamente

no todo de seus estados, e logo assistirá nas mais remotas partes do Reyno”. Em suma,

através do topos do corpo, a relação entre Portugal e Brasil configura-se em termos de

uma pertença comum a um todo (o reino), que nas suas “remotas partes” contêm a

essência do corpo político de modo igual ao centro. Em suma, através da metáfora do

corpo, a relação entre Portugal e Brasil configura-se segundo o pregador, em termos de

uma pertença comum a um todo (o reino), que nas suas “remotas partes” contém a

essência da comunidade política de modo igual ao centro. E disto deriva a obrigação do

Rei de cuidar com justiça de cada parte dessa comunidade, conforme suas necessidades.

Mais uma vez: a comunidade origina-se na vontade divina, mas se mantém viva na

86
medida em que há posicionamento ativo e passivo do entendimento e da vontade de cada

pessoa.

Conclusão

Em síntese, a pregação enquanto medicina da alma visa proporcionar efeitos

quanto ao cuidado da pessoa e da comunidade. Tais efeitos dependem da capacidade da

palavra mobilizar afeto, entendimento e vontade dos destinatários. A atuação do pregador

como médico da alma é fundada no pressuposto da coincidência entre a saúde da pessoa

tomada como o corpo animado e espiritual e a saúde da comunidade tomada como corpo

místico, político e social. Vimos como os pregadores utilizam-se dos conceitos de pessoa

e de comunidade como critérios para orientar as vivências das pessoas como também para

avaliar e reprovar situações sociais e políticas observadas no contexto do Brasil colonial.

A palavra do pregador vem a ter, nesta perspectiva, uma função terapêutica, no que diz

respeito ao indivíduo e à sociedade: médico das almas, ele ministra remédios para os

espíritos sem descuidar dos corpos, tanto o corpo individual, quanto o corpo social.

Promove assim uma forma de identificação do sujeito, que é propriamente o do ser pessoa

em comunidade.

Neste sentido, levar em conta este substrato cultural que caracteriza a história

cultural brasileira e especialmente a história dos saberes sobre pessoa e comunidade, pode

auxiliar no entendimento do panorama contemporâneo: ao relevarmos, hoje, o grande

interesse e as fecundas pesquisas que estão sendo realizadas pela comunidade científica

brasileira quanto às posições de Edith Stein a respeito destes temas, compreendemos que

se inserem num percurso histórico que tornou estes mesmos temas particularmente

significativos para a cultura brasileira. Posto que abordar os temas da pessoa e da

comunidade implica considerar as diferentes perspectivas da psicologia, da

87
fenomenologia e da teologia, e em alguns casos suas intersecções, podemos reconhecer

pela leitura histórica, que também no passado, a intersecção entre áreas de conhecimento

(a medicina da alma, a filosofia e a teologia), se fez fundamental para alicerçar e transmitir

saberes sobre pessoa e comunidade no âmbito da cultura, em nosso caso na cultura

brasileira.

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92
EM QUE SOLO SE NUTRE A CIÊNCIA? MICHEL HENRY: PARA UMA

CULTURA INTERDISCIPLINAR

Florinda Martins

Universidade Católica Portuguesa – Porto

E-mail: flmartins@porto.ucp.pt

Resumo: Neste artigo reponho a questão da interdisciplinaridade herdada das tradições

bíblica e filosófica, para, de seguida, mostrar a posição da fenomenologia, em Michel

Henry, em relação a essa tradição. Mostro que, neste filósofo, a interdisciplinaridade mais

do que uma questão teórica, responde a uma exigência da nossa cultura – exigência de

uma cultura interdisciplinar – pelo que, em Michel Henry esta questão se abre para lá do

diálogo interpares, à arte - literatura, pintura, música - à clínica, à economia e à política.

Diálogo praticado através de textos – filosóficos, bíblicos, poéticos ou outros -, mas

também através das questões empíricas aportadas, sobretudo, pelas ciências da saúde.

Questões que requerem a explicitação da fenomenalidade da fonte da qual se nutrem: a

vida autoafetiva. Será por dentro da fenomenalidade dessa vida absoluta que se recortam

ou se emolduram os saberes próprios de uma cultura. De entre esses saberes, irei dar

atenção aos saberes implicados na práxis clínica: vida afetiva e inconsciente; anonimato

e ipseidade do advir da vida doente, afetividade transcendental e suas expressões

empíricas, ou seja, atenderei aos fenômenos que incondicionalmente nos atingem e

movem. O encantamento da incondicional doação da vida em nós, enraíza-se no nosso

viver, mesmo quando este é dado a sentir como puro sofrer. Um insuportável puro sofrer

que originariamente se revela relacional e livre. É desse puro sofrer que, a partir de Michel

Henry, a barbárie irá cedendo lugar à cultura interdisciplinar. Nesta cabem todos os

93
saberes, pois todos eles brotam do mesmo solo: da incondicional afetividade do ser e da

vida emergem todas as formas de cultura.

Palavras-chave: tradição, fenomenologia, ciências da saúde, cultura interdisciplinar.

IN WICH SOIL DOES SCIENCE GROW?

MICHEL HENRY: FOR AN INTERDISCIPLINARY CULTURE

Abstract: In this article I restore the issue of interdisciplinarity inherited from the biblical

and philosophical traditions, to show the position of phenomenology, in Michel Henry,

in relation to that tradition. I show that with this philosopher, interdisciplinarity, more

than a theoretical question, is a requirement of our culture - requiring an interdisciplinary

culture - so in Michel Henry this issue is beyond the peer dialogue, art - literature,

painting, music - to the clinic, the economy and politics. Dialogue practiced through texts

- philosophical, biblical, poetic or other - but also through the empirical issues reported

mainly by the health sciences. Issues that require clarification of the phenomenality about

the source from which they feed and that is, to Michel Henry, the self-affective life, and

it will be inside the phenomenality of this life that is cut or framed the specific knowledge

of a culture. Within this knowledge, I will pay attention to the knowledge in clinical

practice: affective and unconscious life; anonymity and selfhood of the future of the

patient's life, transcendental affection and its empirical expressions, which means, I will

focus on the phenomena that affect us unconditionally and make us move. The

enchantment of the unconditional giving of life in us, is rooted in our lives, even when it

is felt as pure suffer. A pure unbearable suffering that is originally revealed as relational

and free. It is starting from this pure suffering that, to Michel Henry, barbarism will open

his way to the interdisciplinary culture. This fits all the knowledge, for they all grow from

the same soil: the unconditional affection of being and life, emerge all forms of culture.

94
Keywords: tradition, phenomenology, health sciences, interdisciplinary culture.

Michel Henry: interdisciplinaridade e tradição

A fenomenologia da vida, em Michel Henry, mostra que a vida faz prova de si na

prova que cada um de nós faz dela. Pelo que, neste filósofo, a prova de si - l’épreuve de

soi – é a prova do enredo pelo qual, na vida, nos provamos estruturalmente como advir

em relação. A vida é vivida como afeto que, originariamente, nos (co)move em uma

multiplicidade de direções e destinações. E é da prova desta (co)moção que as evidências

científicas emergem, como forma de compreensão do que originariamente nos constitui,

pelo que a sua fenomenalidade não poderá passar ao lado da fenomenalidade desse solo

que as nutre. Nesse sentido é não apenas possível, mas até desejável retomar, em termos

fenomenológicos, as tradicionais referências do saber à da vida que, a seu modo, todas as

culturas referenciam. A religião, em Génesis, remete esta questão ao tema da árvore da

vida; a filosofia remete, com Descartes, a mesma questão à árvore do saber; com Husserl

ela pode ser identificada com a fenomenologia transcendental e com Heidegger, no

seguimento de Husserl, com a arquiciência. E é sob o lema da interdisciplinaridade que

Michel Henry, instigado em Portugal pela fenomenalidade da práxis clínica, trata estas

questões. Questões legitimadas por este I Congresso Internacional Pessoa e

Comunidade: fenomenologia, psicologia e teologia, porquanto põe a uma mesma mesa

fenomenologia, religião e clínica. Questões que ao interrogarem o incondicional da

condição humana inscrevem os saberes constituídos em ciência no contexto que os nutre

e, em comunidade, os destina.

95
Deste modo, esta investigação prossegue no sentido de ir além da irredutibilidade

do pensamento aos fenômenos da evidência87, mostrando a sua integração nas

modalidades do ser do ego ou da atividade humana da qual a práxis clínica faz parte. E

fá-lo-ei relacionando a fenomenalidade da imanência da vida, tomada por Michel Henry

de Espinosa, com a possibilidade do enredo do humano nessa mesma imanência, tal como

ele vem indiciado em Descartes. Um enredo que me permite repensar a tradição da árvore

do saber: a árvore do saber nutre-se da vida que vivemos. Um enredo que enuncio assim:

a arquipassibilidade da vida é vivida pelo humano como sentir-se sentir, por isso, é

enquanto sentir-se sentir que a vida se potencia, ao mesmo tempo que nos torna partícipes

do seu devir que se confunde com o devir das nossas vidas ou com as nossas histórias. Os

nossos agir e existência, qualquer que seja a sua expressão cultural, procedem do

dinamismo da autoafeção da vida, por nós comungado sob a modalidade fenomenológica

de se sentir sentir. É nessa moldura relacional da vida que, enquanto moldura comunitária

da vida, compreendo a interdisciplinaridade. Foi em diálogo com a literatura e a práxis

clínica que Michel Henry mostrou as implicações da fenomenologia da vida na cultura.

A literatura e práxis clínica na fenomenologia da vida

Se em Michel Henry, a fenomenologia atende ao enredo da vida em todos e cada

um de nós, então não é de estranhar o impacto que essa fenomenologia tem tido em vários

domínios da cultura que, de uma forma ou de outra, a todos e a cada um de nós diz

respeito: religião, ética, política, estética, ciência, psicoterapias. E também não será de

87
A questão da irredutibilidade do pensamento aos fenômenos da evidência aparece tratada na primeira
parte da obra Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia,
organizada por Antúnez, A.E.A, Martins, F. & Ferreira M.V., São Paulo: Escuta, 2014.

96
estranhar que o próprio Michel Henry tenha recorrido a essas áreas do saber para

expressar o seu pensamento.

É de todos nós conhecida a referência, na obra de Michel Henry, a textos

bíblicos88, textos de literatura89; textos económico-políticos90; textos de sociologia91,

textos de psicologia92; textos de estética93. Mas além do recurso a textos de várias áreas

do saber e da cultura, Michel Henry não dispensou o contato com poetas, médicos,

sacerdotes, bem como com todos os que, ditos ou não intelectuais se interessam pela

promoção da vida que nos é dado viver94.

Retomo esse diálogo, mostrando como é que a literatura e a clínica estão no centro

do desenvolvimento das questões da interdisciplinaridade, em Michel Henry. Questões

que, também, neste Congresso, nos reúne.

Sorte a minha que o solo em que me ergo não seja maior que os meus dois pés

que o cobrem95. Este pensamento de Kafka é recorrentemente citado por Michel Henry,

e no decurso de toda a sua obra, para dar contas da estrutura interna da vida que,

provando-se em processo, nele, se sente inexoravelmente ajustada a si.

Ajustada a si! Acculée à soi96: chance! Mas que sorte será essa de que falam Kafka

e Michel Henry, quando a prova deste ajustamento a si da vida tanto pode ser uma prova

88
Embora as suas três últimas obras sejam tomadas, pelos seus críticos e estudiosos, como o exemplo
mais incontestável e controverso do que acabo de dizer, a verdade é que, toda a obra de Michel Henry
testemunha a sua liberdade na busca de fontes que elucidem a sua intuição mais profunda: a revelação
da vida pela afetividade.
89
Refiro, a título de exemplo, Mandelstam, E. Brontë, Kafka, Rimbaud, Proust.
90
Marx é o mais conhecido, até pela obra que lhe dedica.
91
O exemplo de G. Tarde é o mais visível, na sua obra.
92
Incontestavelmente Freud, mas também P. Janet.
93
A obra de Kandinsky é a referência mais imediata.
94
O colóquio internacional de Cerisy, em 1996, acolheu participantes de várias áreas do saber. A
passagem de Michel Henry, por Portugal também confirma o que acabo de dizer.
95
Michel Henry, Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 162. [Referência a título de exemplo]
96
Ibid.

97
jubilosa como um fardo, ou até mesmo a prova de um vazio que nos submerge e aniquila?

Ajustada a si, em excesso de si, que identidade é essa que, no ajuste consigo, nos provoca

e inquieta, porquanto tecida em afeto gerado no enredo com os outros - sejam eles este o

solo no qual assentam os meus pés ou o olhar do outro no qual pousa o meu olhar e o dele

em mim – se nos dá a provar em volúpia e incómodo97?

Sorte: a possibilidade de uma identidade gerada no afeto que se prova como um

sentir-se sentir em júbilo, em dor, em vazio! Uma identidade que se prova como relação

de si com o que em si está implicado: o outro que, pelo afeto, em júbilo, dor, vazio, tédio,

volúpia e incómodo, vivenciamos. E é assim que, quaisquer que sejam os afetos pelos

quais provamos a nossa identidade, sorte a minha que o solo em que me ergo não seja

maior que os meus dois pés que o cobrem, pois ainda quando esse solo me parece fugir

dos pés é, nele, é em relação, que aufiro, em afeto de outrem, a certificação de mim

mesma: em afeto de outrem sou, existo. Afeto de outrem que me permite ser eu própria.

Sentindo-me sentir o outro como afeto, sinto-me resgatada do ensimesmamento de um

sentir não identificado nem identificável e por conseguinte resgatada do irrespirável de

um fluxo incontido de vida que tudo anula em sua passagem! Em afeto se recorta, em

sentimento de outrem, a minha identidade. O afeto performa-me e revela o outro comigo

em relação. Em afeto eu e tu, em recíproca interioridade, indissociavelmente unidos 98 e

todavia irrecusavelmente distintos, pela moldura dos contornos. A vida autogerando-nos,

na interioridade recíproca de si com a sua moldura, delimita-se do interior e é desse

interior, assim delimitado, que acresce de si ou se aniquila, consoante comunica ou se

isola do que nesse processo se performa.

97
Martins F. (2014) A volúpia e o incômodo na configuração da certeza. In Antúnez, A.E.A, Martins, F. &
Ferreira, M. (Orgs.) Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia,
(pp. 47-80), São Paulo: Escuta.
98
Michel Henry, «D atàautou àdeàl oeu eàdeàMi helàHe ,ài àPhénoménologie de la vie, T.IV, Paris,
PUF, 2004, p.224 «não há si numericamente dissociável da vida».

98
Mas a par da literatura, o diálogo de Michel Henry com a clínica é elucidativo do

modo como, nele, se vai explicitando a questão da interdisciplinaridade.

Restringir-me-ei, aqui, à necessidade da compreensão do humano para uma boa

prática clínica e para o sentido da investigação laboratorial, uma vez que o histórico do

diálogo de Michel Henry com a clínica foi já objeto de um estudo feito por Andrés

Antúnez99 e outros investigadores trazem a debate, a este Congresso, a importância de

Michel Henry para outras áreas da práxis clínica.

Das questões inerentes à necessidade da compreensão do humano para a

inteligibilidade da prática clínica destaco, o texto do médico de família Manuel Barbosa,

intitulado O corpo: questões de um estudante que ainda impressionam o médico100, por

trazer para o debate a insuficiência de um paradigma de cientificidade centrado na

objetividade e evidência dos fenômenos que se prendem com o ato médico. Insuficiência

para que chama também a atenção o psiquiatra argentino Carlos Hernandez, com o seu

texto Biologia da ressurreição, apresentado no Congresso da EST, 2014. Texto que tive

a honra de comentar a pedido da organização desse Congresso e do qual sublinho: a

chamada de atenção para a presença, no ato médico, de uma realidade que a clínica não

contempla diretamente, mas que nem por isso deixa de a influenciar profundamente.

Carlos Hernandez denomina essa realidade de anticlínica, pois, em verdade, a sua

fenomenalidade aparece dissociada das evidências da clínica. Uma realidade que,

habitualmente, é coberta pela denominação de cuidado terapêutico, não raro atribuído

apenas aos cuidados de enfermagem. Mas quer o médico de família quer o psiquiatra,

99
Antúnez, A. “Histórico das relações entre filosofia e medicina no curso de Michel Henry em Portugal e
as relaçõesà o àaàpsi ologiaà lí i a .àDossi à áàFe o e ologiaàdaàVidaàdeàMi helàHe àeàaàPsi ologiaà
Clí i a .àPsicologia USP (no prelo)
100
Texto elaborado a partir dos seminários de estudos avançados do grupo de investigação Corpo e
Afetividade: Michel Henry e o pensamento lusófono, coordenação científica de Florinda Martins - CEPP,
Porto, em parceria com Andrés Antúnez, USP. Texto publicado in Atas dos encontros, CEPP-Porto, 2014,
edição de grupo.

99
mais do que denunciarem a insuficiência de um método, apelam à compreensão da

realidade em questão no ato terapêutico. Uma questão que se estende muito para lá do

estrito laço intersubjetivo clínico-paciente; uma questão que percorre toda a cadeia do ato

médico, inclusive, os estudos laboratoriais subjacentes às prescrições clínicas. E é por

isso que não posso deixar de agradecer, aqui, à investigadora Cátia Teixeira101 o diálogo

paciente e generoso que tem tido não apenas comigo, mas com os outros grupos,

sobretudo com os grupos de investigação em fenomenologia da vida.

A realidade humana subjacente ao ato médico não é a um apenas um complemento

deste, pelo contrário, integra-o em si mesma. Por isso, deter-me-ei, agora nas questões

fenomenológicas da interdisciplinaridade emergentes deste diálogo da fenomenologia

com a literatura e a práxis clínica.

A fenomenologia da vida na tessitura das várias molduras culturais da vida

Até agora vimos a relação da fenomenologia da vida com a literatura e a práxis

clínica. Foi na fenomenalidade de uma vida gerada em reciprocidade com a prova que o

humano faz de si que propus a compreensão interdisciplinar das várias molduras culturais,

nomeadamente, Kafka e a literatura. Uma interdisciplinaridade que não isola a evidência

do advir da vida das formas de cultura que, em recíproca interioridade, construímos. E

das questões emergentes da práxis clínica destaquei a necessidade de repensar o

paradigma da evidência no que diz respeito à sua insuficiência na compreensão do ato

médico. A abordagem a esta questão foi feita a partir da fenomenalidade de sentir-se

sentir, desenvolvida por Michel Henry.

101
http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=57019&op=all; www.pubmed.com.

100
Destaco agora, o lugar da fenomenologia da vida nas fenomenologias

denominadas, por Michel Henry, de tradicionais. O que acabo de expor permite-me

afirmar que é a vida que, na incondicional prova de si em nós e enquanto nós, torna

possíveis as várias abordagens trazidas a este congresso. Abordagens feitas por aqueles

que da vida se ocupam: clínica (médica, psicanalítica, psiquiátrica, psicológica); filosofia

(fenomenologia – Husserl, Heidegger, E. Stein, Michel Henry); religião (teologia,

ciências religiosas; expressões e credos vários). Pois clínica alguma, nenhuma filosofia,

nenhuma religião esgota aquilo que aqui hoje nos reúne: nós mesmos, o nosso tempo, a

vida de todos e de cada um que, com suas sortes e fardos, com seus emolduramentos

específicos, nos convoca ao cuidado do que em excesso vivemos. Da vida, cada um é tão-

só excesso de um fundo que suporta o processo da própria identificação. Se a moldura é

finita, os seus contornos apenas realçam o excesso que a habita, em interior comoção de

seus afetos. Afirmamos a moldura, mas compreendemos que o que ela encerra a excede,

humanizando-o de dentro para fora: humanizando a própria moldura que, de contrário, se

reduziria a uma abstração e, no limite, a algo inerte e estéril: na sua nulidade, horrendo

demais para ser verdadeiro.

A novidade de Michel Henry está em situar a fenomenalidade da vida na tessitura

das várias molduras do saber. Para este filósofo, a fenomenologia procura aceder ao modo

constitutivo do ser humano, ou seja, à originaridade do seu ser, pois apenas nesta pode o

humano encontrar saída para as questões que o assolam, e que no nosso caso,

identificamos com a busca da fenomenalidade do que, fragilizando o universo dos

conceitos e das evidências, lhes resiste, aspirando a uma nova emoldura da práxis.

a) Descartes e Espinosa na viragem fenomenológica, em Michel Henry.

É a partir da filosofia da imanência de Espinosa que Michel Henry procura mostrar e

desenvolver uma fenomenalidade da vida que resista a toda e qualquer desmoronar

101
conceptual, pois será no próprio processo do seu advir imanente que ela se alicerça, se

desenvolve e faz prova de si102.

A questão é, agora, então esta: como articular a prova de si da vida, insuperável

na sua imanência, com a prova nela do pensamento da vida nas formas da filosofia,

ciência, política, arte, clínica? Ou, de outro modo: como se dá a passagem da vida que

acede ao pensamento ao pensamento sobre a vida, seja ele, pensamento filosófico,

científico, terapêutico, político ou outro?

A partir de Espinosa, nomeadamente da fenomenalidade da imanência da vida em

cada vivo, Michel Henry faz recuar a Descartes a possibilidade de renovação da filosofia.

Na imanência do cogito, Michel Henry, acena à possibilidade de transposição do

vivencial em evidência ou em outra forma de cultura que possa ser uma cultura da vida.

E é o que interessa a uma cultura interdisciplinar: será na possibilidade de haver, na

fenomenalidade da imanência do cogito, uma passagem da certeza do afeto à evidência

do mesmo enquanto uma eventual modalidade de pensar sobre afeto, que iremos

encontrar um novo posicionamento da interdisciplinaridade, em Michel Henry.

b) Da imanência da vida em Espinosa à imanência do ser do ego em

Descartes, para, neles, repensar um percurso cultural que se estende até

Husserl e Heidegger.

Em Meditações Metafísicas, Descartes diz o seguinte: «por ser evidente que sou

eu quem duvido, escuto, desejo, nada mais é necessário para o explicar». E continua:

102
Permito-me remeter o leitor para os meus trabalhos «La phénoménologie de Michel Henry et les
questions du neurologue Damasio» in Michel Henry,àPa is,àL ágeàd Ho e,àpp.à -431 e «Matter and
material phenomenology», In La vie et les vivantes, Louvain, Press Universitaires, p. 571. Permito-me
ainda dizer que, no primeiro artigo, a introdução de datas nos trabalhos de MH e Damásio, se deveu a
uma iniciativa do revisor do texto em francês. Assim e para que não restassem dúvidas quanto ao que
queria ressaltar de Damasio e de MH, voltei à mesma questão no artigo «Matter and material
phenomenology» acima referido, p. 572.

102
«Mas também estou certo da capacidade de imaginar; e ainda que aconteça que não sejam

verdadeiras as coisas que imagino, todavia essa capacidade de imaginar não deixa de estar

em mim nem de fazer parte do meu pensamento». Para concluir: «Enfim, eu sou o mesmo

quem sente, isto, é que recebo e conheço as coisas como que pelos órgãos dos sentidos,

visto que com efeito vejo a luz, oiço o barulho, sinto o calor. Mas dir-me-ão que estas

aparências são falsas e que durmo. Todavia, ainda que assim seja, pelo menos, é muito

certo que me parece que vejo, que oiço e me aqueço; e é propriamente o que em mim se

chama sentir, e isso, tomado precisamente assim é tão-só pensar. Pelo que começo a

conhecer quem sou com um pouco mais de clareza e distinção»103.

Ainda que esta seja uma citação um pouco longa, não hesitei em transcrevê-la,

pois apenas o seu todo revela que, Descartes, a par de uma ilegítima redutibilidade do

pensamento à evidência afirma a imanência do sentir a todas as modalidades da existência

humana, a saber: querer, imaginar, odiar, amar, imaginar, jogar, andar, ver, ouvir, agarrar,

conhecer algumas coisas desconhecer muitas104. E mais ainda todas estas modalidades de

existência são modalidades do eu ou modalidades do pensar, enquanto este é tomado

como sentir.

Ora sabemos que a fenomenologia, no século XX, nomeadamente em Husserl e

Heidegger, remete, em seus desenvolvimentos, à fenomenalidade do cogito, em

Descartes, todavia, fora de um horizonte outro que não o da fenomenalidade primordial

de sentir-se sentir. Pelo que, a fenomenologia em Husserl e Heidegger, abre a um universo

de aporias que convidam a pensar o que nelas é impensado. É o que faz Michel Henry.

Para este fenomenólogo a fenomenalidade do sentir remete à vida autoafetiva. Uma vida

103
AT, VII, 28-29.
104
AT, VII, 34. Descartes não descartaria as possibilidades de outros acrescentos às modalidades do ser
do cogito, desde, na sua fenomenalidade, fossem provadas.

103
que, para se provar, está apenas condicionada à sua própria autoafeção. É no sentimento

dessa afeção que provamos a revelação da vida em nós e não em um qualquer movimento

de transcendência. Esta inversão da fenomenalidade do fenômeno – da intencionalidade

e da transcendência para a incondicional manifestação do afeto – faz com que Michel

Henry seja considerado determinante no processo de resolução dessas aporias 105. O

fenomenólogo da vida chama a atenção para a passibilidade do sentir enquanto poder de

revelação de si: um poder que se dá a conhecer pela fenomenalidade do afeto que tanto

potencia o nosso desenvolvimento quanto o pode fragilizar106. Daí a sua importância, nas

ciências da saúde, a quem importa de sobremaneira as afeções da vida que fragilizam o

desenvolvimento humano.

A obra que o grupo de pesquisa O que pode um corpo? acaba de editar e que está

sendo apresentada, neste colóquio107, trata da importância da fenomenalidade da

passibilidade do sentir na mudança de paradigma da racionalidade com implicações na

abordagem às questões emergentes em ciências da saúde, nomeadamente, nas terapias.

Foi sob o tema o que pode um sentimento108 que essa investigação se iniciou. Sob o tema

o poder do sentimento, mostrei como é que o eu se reconhece no poder que o afeta ou,

dito de outro modo, como é que o eu se reconhece na arqui-impressão da vida. A tese

desenvolvida foi a seguinte: o eu reconhece-se doado na vida, porquanto, nela, é

105
Jean-Luc Marion in Descartes, Paris, Bayard, 2007, p. 21. «[…]àoà o poàpa ti ula àeàú i oàdeàu àego, o
seuà o poà ueà àele,àaàsuaà a eào deàseàp o aàaàsià es oà[…]àMi helàHe à àa uiàdete i a te»
106
Ainda que M. Henry sublinhe o desejo de acréscimo de si da vida não posso dissociar dele aquilo que
o impede, aniquila: o fracasso. Tema que tratei no artigo «O corpo e o espírito por entre A Essência da
Manifestação, de Michel Henry» in Humanística, Porto, 2014, pp. 163-190.
107
Antúnez, A.E.A., Martins, F. & Ferreira, M. (2014) Fenomenologia da Vida de Michel Henry:
interlocuções entre filosofia e psicologia. São Paulo: Escuta. p. 312.
108
Martins, F. (2014) Fenomenologia da Vida: o que pode um sentimento? In Antúnez, A.E.A., Martins, F.
& Ferreira, M. (2014) Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia
(pp. 15-31) São Paulo: Escuta.

104
constituído como arquipassibilidade e nessa arquipassibilidade se sente sentir dor,

angústia, temor, alegria; se sente em expansão ou aniquilamento de si.

Mas a fenomenalidade do sentir, enquanto arquipassibilidade, legitima um outro

campo de investigação: provar-se a si mesmo não revela apenas o poder afetivo da vida,

mas revela também o inevitável envolvimento do eu nesse sentir. Michel Henry, em várias

passagens e momentos da sua obra, recorre ainda à fenomenalidade do sentir, em

Descartes, para falar do necessário envolvimento do eu em todas as suas modalidades de

existência, que são tão-só todas elas pensar. Duas das expressões que, a este respeito, ele

mais cita de Descartes são, das Meditações Metafísicas, a expressão at certe videre videor

– certo ver-se ver – e da da Carta de 3 de Outubro de 1637 a Plempius a expressão

sentimus nos videre. Isto é aquele se sente ou se prova instalado na vida afetiva, sente-se

a si mesmo na vida instalado e, é enquanto tal, é enquanto sentir-se que ele prova a

liberdade de se poder mover na vida que o constitui. E é na experiência dessa liberdade

que o eu pode promover a vida ou a barbárie.

c) Imanência e liberdade: a barbárie como desprezo pela vida relacional ou

interdisciplinar.

Perguntamos então:

- que correspondências se poderão estabelecer entre a fenomenalidade de o poder do

sentimento com a fenomenalidade de o sentimento de poder?

- qual a importância destas relações em ciências da saúde, neste caso específico, na

interdisciplinaridade?

Antes de passar à fenomenalidade destas questões, relembro que em Descartes a

fenomenalidade do pensar como sentir é referida a todas as modalidades da existência

humana: perguntar, querer, amar, imaginar, certificar-se. Mas relembro ainda que a

105
fenomenalidade do pensar como sentir-se pensar nos implica na atividade em questão. E

tendo em consideração que a raiz da palavra pensar – cogitāre – significa ainda cuidar,

então pensar não me implica apenas em todas as minhas atividades, mas implica-me,

nelas, como uma forma de cuidado. Será então pelo pensar, ou pelo cuidar, que o humano

se efetiva ou realiza. E em Michel Henry não há como recusar esta possibilidade de ser.

Recusar tomar a seu cuidado a vida tal como ela se manifesta será querer fugir da vida

que, na demanda do cuidado de si, se vive como um fardo: um fardo impossível de

suportar. Tão impossível que, no auge da sua inércia, a angústia acresce de si mesmo e

não tendo como se desfazer de si, faz o que é preciso fazer: agir! Mas age de qualquer

forma; efetiva um qualquer ato que, por isso mesmo, por ser um qualquer ato, e não um

pensar-cuidar, resulta em barbárie. A barbárie é então, em Michel Henry, a solução da

vida para o insuportável de si mesma, para o insuportável do seu modo de ser que a

implica e a envolve no seu próprio devir. Só neste sentimento, no sentimento de poder

livremente fazer algo, é que para Michel Henry, «há um prazer na angústia […].pois a

angústia sofre ao mesmo tempo a lei do pathos e a vertigem da liberdade»109. Na lei do

pathos, o poder do sentimento é, assim, vivido por nós como sentimento de poder ou

sentimento de liberdade de agir.

Liberdade de agir, sentimento de poder ainda que através de um ato que pretende

desfazer-se de si mesmo. Na ausência do pensar ou do cuidar a vida ressente-se. Um

ressentimento que é um perigo para vida: a vida ressentida pode originar a barbárie. A

vida volta-se contra si própria. Na obra A barbárie, assim como outros artigos110, Michel

Henry desenvolve estas teses, inequivocamente tomadas de Nietzsche, ainda que com o

cunho pessoal. Um cunho cuja multiplicidade de formas Michel Henry vai expressando

109
Michel Henry, Incarnation: une philosophie de la chair, Paris, Seuil, 2000. p. 176.
110
Michel Henry «“u àlaàpa oleàdeàNietzs he:à ousàlesà o s,àlesàheu eu »,àin Phénoménologie de la vie,
T. II, p. 151. E ainda in Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 157.

106
ao longo de toda a sua obra, mas todas elas unidas pela falta de investimento e de cuidado

e todas elas com o mesmo desfecho: barbárie.

Por entre a obra de Michel Henry, colho alguns desses exemplos. Nos parágrafos

38 e 39 da obra Encarnação, podemos ler a exasperação a que conduz o sentimento de

angústia de duas pessoas uma em presença da outra: no caso dois amantes. Uma angústia

que redobra pois cada uma das pessoas incorpora em si a angústia da outra. Sem atender

a angústia que os assola, mas querendo libertar-se dela, os amantes devoram-se, tendo o

fracasso como resultado de uma tal relação. No romance O Filho do Rei, a tese só na

aparência é oposta a esta. O que em O Filho do Rei «torna os dias penosos e intoleráveis»

já não é a exasperação da angústia de dois seres que, em presença um do outro, sentem a

união de suas angústias. Em O Filho do Rei é antes a indiferença dos terapeutas perante

a necessidade de investimento de vida dos pacientes que exaspera não a angústia, mas o

tédio. Sem o investimento do terapeuta «o tédio, o verdadeiro tédio fazia nos levantar a

cada instante errando sem fim pelos corredores, como fantasmas»111. E se passarmos das

relações interpessoais para o domínio político, teremos o mesmo cenário fantasmagórico

ou cadavérico. Tal é o caso do ensaio O cadáver indiscreto: um ensaio em torno de um

assassinato político que recorre à media como meio de aparecer aos olhos do público

como um suicídio112. E no romance O amor de olhos fechados, o desmoronar de uma

cultura valida a tese da definição da barbárie como revolta da vida contra si mesma, agora,

através da destruição dos valores estéticos que ergueram civilizações.

Ora apesar da revolta da vida contra si mesma, a negação da vida, a doença, o

desespero são, em Michel Henry, um mal cujo «pior dos males seria não a ter tido»113.

111
Michel Henry, Le fils du roi, Paris, Gallimard, 1981, p. 35.
112
Michel Henry, Le cadavre indiscret, Paris, Albin Michel, 1996. Chamo a atenção para a trágica
atualidade deste romance. Só ela encheria os dias deste Congresso!
113
Michel Henry, L’Esse e de la a ifestatio , Paris, PUF, 1963, p. 857.

107
Mas então só temos possibilidade de viver entre um mal e o pior dos males? Entre uma

má ou uma pior barbárie?

d) Busca de saídas para a barbárie fora da imanência

A intensificação das formas da barbárie por uma qualquer passagem ao ato, com

o mero intuito de se libertar do peso da vida, merece a nossa atenção. A temática ecoa em

toda a obra de Michel Henry. Senão vejamos.

No seu primeiro romance O jovem oficial, Michel Henry mostra a impossibilidade

da tarefa atribuída ao jovem oficial: encontrar uma forma de erradicação do que, no

humano, o humilha. O que aqui está em causa é a busca de uma estratégia ou de um

modelo – parataxe – que acabe com o inimigo. O que inquieta o jovem filósofo é a

dependência da razão daquilo que a supera e perturba bem como a ineficácia dos

construtos técnicos perante forças instintivas que tomam conta da razão e da vontade de

cada um. Um mal simbolizado nos ratos que empestavam um navio e cuja tarefa de

erradicação fora atribuída a um jovem oficial, uma vez que, todos os outros

experienciaram já o insucesso dessa tarefa. O jovem oficial depois de experimentar uma

nova técnica – deixar os ratos com fome, mas com força suficiente para abandonarem o

navio, logo que possível, em procura de alimento – expulsou provisoriamente os ratos.

Só que estes voltaram de súbito «num saco de farinha branca e imaculada»114. O romance

não poderia conduzir a outra conclusão já que todo ele põe em causa o paradigma de

racionalidade que toma o dado como um objeto que a razão pode «controlar».

114
Michel Henry, Le jeune officier, Paris, Gallimard, 1954, p. 195.

108
Um tipo de racionalidade cuja ineficácia é claramente denunciada em O cadáver

indiscreto: «Não leste isso na Crítica da Razão pura? Estás a ver, as grandes obras

apresentam lacunas»115.

O abandono do modelo de racionalidade vigente e a sua substituição por um

modelo que inscreva o item da objetividade naquilo que a suporta vai emergindo da obra

de Michel Henry.

Em busca de uma cultura da interdisciplinaridade

a) A estética: solução e questões

Michel Henry busca ainda na arte outra saída para o insuportável do sofrimento e

da angústia. A obra literária de Michel Henry faz prova disso. Através do romance, o

filósofo expressa o modo como se sente afetado na vida e, nela, por tudo o que o circunda

e em excesso o habita. Uma tese que Michel Henry estende a outras formas de arte:

pintura, música, restauro, trabalho.

De algum modo, até a ciência se redime, em Michel Henry, pelo critério da arte116.

Mas é em relação às ciências que as ambiguidades inerentes à tese da arte como expressão

de vida se tornam manifestas. Em A barbárie a estética aparece como um processo de

maestria das energias da vida, transformando-a em «superiores»117 formas de vida. Ora,

em Michel Henry, será a ciência em si mesma considerada uma «superior» formas de

vida? 118 Não me parece, pois o jovem oficial tinha já considerado ineficaz as propostas

115
Michel Henry, Le cadavre indiscret, Paris, Albin Michel, 1966, p. 77.
116
Michel Henry, La barbárie, o.c. pp. 43-70.
117
MH. B, p. 40.
118
Paul Audi in “upé io ité de l’éthi ue: de “ hope haue a Wittge stei , Paris, PUF, 1999, faz uma
surpreendente aproximação deste conceito henriano ao conceito wittgensteiniano de «superioridade da
ética» in Tratactus; corroboro essa aproximação no trabalho «O outro e o limite na propriedade de si/
Michel Henry: a fecundação da imanência» in Painomenon, nº 13, Outono, 2006, p. 103.

109
fornecidas pelos modelos de racionalidade em vigor, da qual a ciência faz parte. A

maestria científica que ele investira na erradicação das forças perturbadoras das

«superiores» formas de vida do navio revelara-se ineficaz. E ainda que em A Barbárie,

Michel Henry proponha uma outra forma de maestria - já não a expulsão das forças

perturbadoras, mas a sua incorporação e corpopropriação – em que consiste essa outra

maestria?

A análise da obra mostra que a ciência enquanto tal não chega a ser considerada

como uma «superior» forma de vida, pois nunca é integrada no processo de

corpopropriação do que estranhamente ao eu se dá como afeto.

Mas isso limita o próprio alcance da fenomenologia da vida, em Michel Henry.

Ao retirarmos a ciência do processo de corpopropriação, apenas nos podemos resignar

com a violência da vida em relação a si mesma, nos processos do adoecer físico, pois

ficamos sem saber como se processa a surdez da vida a si mesma, aí onde ela se torna

violenta, doente? 119 Mas mais ainda: aí onde a vida se não faz ouvir como pode ela voltar-

se contra si? Revoltar-se contra as «superiores» formas de vida que uma cultura ou

civilização ostenta, tal como a apresenta O amor de olhos fechados, não implicará, no

mínimo, um implícito saber daquilo contra o qual se revolta120?

As ambiguidades da fenomenalidade da vida, em Michel Henry, transformam-se

em paradoxos, pois deixa ao abandono o que, nos interstícios de toda a sua obra, ele

pretende compreender: encontrar uma forma de cuidado da vida que não deixe nada fora

do seu cuidado. Todas as críticas à fenomenologia tradicional vão nesse sentido: mostrar

a impossibilidade da fenomenalidade de um corpo sem carne ou sem ipseidade nem eu,

119
Florinda Martins, «O impossível do sofrimento: indecisões fenomenológicas no romance O Filho do Rei,
in Revista da Faculdade de Letras, Universidade do Porto, XIX, serie II, 2002, pp. 141-155.
120
Relembro que a crítica de MH ao inconsciente, em Freud, passa pela fenomenalidade desta tese,
sobretudo nas obras Genealogia da psicanálise e Fenomenologia material.

110
mas mais ainda, mostrar como é que o corpo é um corpo vivo, pois todo ele é atravessado

pela incondicional afeção de si da vida.

Como compreender este paradoxo?

b) Pontos de tensão da fenomenologia da vida

A ambiguidade inerente à fenomenalidade das «superiores formas de vida» passa

pela necessidade de explicitar não apenas a transição da fenomenalidade do poder do

sentimento ao sentimento de poder, mas ainda pela necessidade de explicitar a

fenomenalidade das afeções da vida do corpo sem quais é impossível vivenciarmos o

poder do sentimento.

A consciência da primeira ambiguidade, em Michel Henry, temos vindo a mostrá-

la e a elucidá-la pela fenomenalidade do sentir-se sentir. A fenomenalidade do sentir-se

sentir permite atender à fenomenalidade da passagem do mero sentir à ipseidade do sentir

que nos envolve pessoalmente em si. É nesta passagem da vida absoluta, como sentir,

para o envolvimento pessoal de todos e de cada um de nós na vida absoluta, como sentir-

se, que ética e epistemologia conhecem um horizonte outro de investigações

fenomenológicas.

Mas a fenomenalidade do sentir-se sentir aponta ainda em uma direção oposta às

«superiores formas de vida». Ela direciona-se para a afeção das «inferiores formas de

vida» - a vida empírica e / ou biológica – sem as quais as «superiores formas» de vida

não acontecem.

Michel Henry tem consciência desta segunda ambiguidade. E as habituais

expressões de Michel Henry para a passagem das «formas inferiores» às «formas

superiores» – passagem de súbito, passagem eventual, passagem misteriosa – que

percorrem toda a sua obra, são disso prova.

111
Michel Henry, na obra Eu sou verdade, parece propor uma solução a esta questão

ao diferenciar, na vida, autoafeção em sentido forte e autoafeção em sentido fraco121. A

primeira afeção diz respeito à doação absoluta da vida em nós, vida que Michel Henry

diz estar presente na mais simples sensação – na brisa da tarde, no cansaço da subida, na

fome, na sede, na dor. Mas a abordagem fenomenológica da simples sensação – na brisa

da tarde, no cansaço, na fome, na dor – segue no sentido de uma abordagem cristológica

ou religiosa. Abordagem essa a que Encarnação e Palavras de Cristo apenas lhe dão um

acabamento sistemático122.

A minha questão é esta: em Michel Henry, a fenomenalidade da simples sensação,

vai apenas no sentido de uma cristologia fenomenológica da vida? Como orientação de

resposta a esta questão vejamos o seguinte texto de Michel Henry Difficile Démocratie123.

Diz ele: «Os ritos, os sacrifícios, o conjunto das práticas religiosas eram vividos por cada

vivente como outras tantas formas de experienciar a sua relação com o absoluto, de a

atualizar e, desse modo, a ela se conformar. A religião era uma ética. E na medida em que

era uma ética, ela impregnava toda a prática social»124

Sendo este texto contemporâneo de Eu sou a Verdade, vejo-o como um meio de

evitar equívocos a partir de identificações fáceis com esta ou com aquela expressão

cultural de religiosidade, ainda que do cristianismo se trate. Religião alguma pode

apresentar-se como detentora desta doação absoluta da afeção da vida em nós, como nós:

é na incondicional afeção da vida que assenta o sentimento de espanto ou sagrado.

Sentimento que ao transitar para a vida comunitária, em Michel Henry, não deixa de

impregnar todas as formas culturais de que a ciência não está, por essência, excluída. Por

121
Michel Henry, C’est oi la é ité: pou u e phé o é ologie du h istia is e, Paris, Seuil, 2996, p. 135.
122
Uma abordagem que, embora de forma menos sistemática, percorre toda a obra de Michel Henry.
123
Michel Henry «Difficile Démocratie» in Mi hel He , l’ép eu e de la ie, o g.àd álai àDa idàetàdeàJea à
Greisch, Paris, Cerf, 2001, pp. 39-54.
124
Ibid, p. 42.

112
isso vejo ainda a possibilidade de referir as «inferiores formas de vida»; as simples

sensações, toda a vida do corpo – biológica ou outra – à vida que as atravessa. Isto é, a

vida absoluta, na sua incondicional afetividade, só perde o seu encantamento ou mistério

quando, de forma acrítica, é, nos vários saberes, votada ao esquecimento. É neste contexto

que Michel Henry inscreve a sua crítica ao que denomina de fenomenologia tradicional.

Uma crítica que não deve ser abusivamente estendida à práxis científica. Embora não

raro, Michel Henry possa a isso induzir. Todavia, nos interstícios de toda a sua obra,

Michel Henry pretende apenas mostrar que a vida não tem como romper o vínculo que a

une a si mesma, pois a vida não tem como fugir de si; não tem como romper com a sua

ipseidade! E esta é uma questão que é querida à filosofia da medicina que encontra em

Michel Henry uma posição inovadora em relação à fenomenologia tradicional.

Tomo este texto de Merleau- Ponty, como elucidativo desta questão. Ouçamos

Merleau-Ponty: «Eu, verdadeiramente, é ninguém, é anônimo; é preciso que seja assim,

anterior a toda a objetivação, denominação, para ser o Operador ou aquele a quem tudo

isso advém. O Eu denominado, o denominado Eu, é um objeto. O eu primeiro de que

aquele é a objetivação é o incógnito a quem tudo é dado a ver ou a pensar, a quem tudo

faz apelo, diante de quem…há qualquer coisa. É então a negatividade – inacessível, bem

entendido em pessoa, dado que não é nada (rien). Mas está aí aquele que pensa, raciocina,

fala, argumenta, sofre, frui, etc.? Evidentemente não, visto que não é nada – Aquele que

pensa, percebe etc. é esta negatividade como abertura, pelo corpo ao mundo – é preciso

compreender a reflexividade pelo corpo, pela relação do corpo consigo, da palavra» 125.

Vejamos, por exemplo agora, este texto de Michel Henry: «o conhecimento do corpo é o

ver em si mesmo enquanto tal»; «enquanto possibilidade última do pensamento, a

125
Merleau-Po t ,àLeà isi leàetàl i isi le,àPa is,àGalli a d,à ,àp.à .

113
afetividade reina sobre todos os seus modos, determinando-os secretamente». E isso de

tal forma que só acede ao conhecimento de uma dor se esta for «sentida como minha

dor»126; e é enquanto tal que a dor é em mim um poder como em mim é um poder o

temor127, a visão ou qualquer outra modalidade de ser do ego.

Que a clareza da oposição entre o texto de Merleau-Ponty - que afirma que o eu

não está aí onde sofro - e os textos de Michel Henry - em que a fenomenalidade do eu,

sobretudo o eu que sofre, é expressa em termos acuado a si; arrimado a si, como sentido

que não pode ser sentido128 - não ofusque a fenomenalidade do afeto da vida na doação

de si mesma a que ambos se referem. Raphaël Gély mostrou já a veleidade de um tal

despropósito129. E ainda que eu esteja em total acordo com a aproximação que Raphaël

Gély faz entre Merleau-Ponty e Michel Henry, irei mostrar, antes, as hesitações no

caminho que Michel Henry percorre, em direção à uma completa oposição em relação ao

citado texto de Merleau-Ponty, pois elas permitem ver os amplos campos de investigação

em aberto, na fenomenologia, hoje.

A interdisciplinaridade a partir dos pontos de tensão entre os saberes culturais

a) Pontos de tensão entre orientações fenomenológicas

As tensões da fenomenalidade da vida prévias à oposição de caminhos seguidos

pelas várias correntes da fenomenologia decorrem do enlaçamento no eu daquilo que

Michel Henry distinguiu, como já foi visto atrás, de autoafeção em sentido forte e

autoafeção em sentido fraco. Foi na afetividade desse enlaçamento ou enredo da vida que

126
Michel Henry, Généalogie de la psychanalyse», Paris, PUF, 1985, pp. 34; 39 e 38 (respetivamente).
127
Michel Henry, Auto-donation, Paris, Beauchesne, 2004, p.217.
128
Michel Henry, EM, pp. 421, 830, 857; Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 162.
129
Raphaël Gély, Imaginaire, perception, Incarnatio: exercice phénoménologique à partir de Merleau-
Ponty, Henry e Sartre, Bruxelles, Peter Lang, 2012.

114
Michel Henry resolveu a aporia latente à célebre controversa Husserl/Heidegger, no que

diz respeito à presença ou não do eu nas afeções por ele vividas, de que o texto de

Merleau-Ponty se faz eco. E foi pela análise fenomenológica das expressões tomadas de

Descartes, Sentimus nos videre e suas equivalentes - videre videor é a mais conhecida -

que Michel Henry aponta a saída da aporia. Todavia se a partir destas expressões a ética

e a epistemologia podem seguir novos rumos, porquanto a sua fenomenalidade se

processa no enredo da fenomenalidade sentir sentir-se, também não é menos verdade que

a «determinação secreta» da afeção da vida pela qual conhecemos o corpo, a dor, o

sofrimento não deixa de nos instigar. Se por um lado, Michel Henry mostra, sem margem

para dúvidas, a impossibilidade de manipulação dessa determinação secreta da vida – o

sentimento não pode nunca ser sentido130 - por outro o incômodo que provocam algumas

determinações secretas da vida instigam-nos a conhecer, pelo menos, as circunstâncias

do seu aparecer. De outro modo não faria qualquer sentido o qualificativo de «secreto»

para essa determinação, pois ele nada acrescenta ao conhecimento imediato da prova em

si da afeção da vida. Então, a fenomenalidade do vínculo do vivo à vida passa por uma

determinação «secreta» que provoca a nossa investigação.

b) Pontos de tensão na fenomenologia da vida, em Michel Henry

Senão vejamos. Se os processos da vida afetiva nos vinculam de forma

incontornável à vida que em nós se dá como afeto, como é possível que, do interior do

vínculo se admita a possibilidade de fugir dele? Como nos mobilizamos para a fuga? Ou

então, como nos mobilizamos a incorporar ou, em termos henryanos, a corpopropriar o

que nos incomoda ou o que nos envolve, sem a certeza de que algo não está incorporado

ou corpopropriado? Não se prende este conceito de corpopropriação com a

130
Reitera Michel Henry desde a obra L’esse e de la a ifestatio , Paris, PUF, 1963, p. 579.

115
fenomenalidade da adesão do humano aos processos arqui-impressivos da vida, que em

nós se efetivam sem o nosso consentimento? E a fenomenalidade da necessidade da nossa

adesão à vida não significa que, nela, vivenciamos momentos em que a vida se manifesta

como desejo e apelo de ser acolhida por nós?

Para isso chamo a atenção para dois termos usados por Michel Henry que se

relacionam com os fenômenos de corpopropriação. São eles densidade do pensamento e

amenização da espessura do corpo. Vejamos como se articulam eles, nos fenômenos de

corpopropriação.

Os fenômenos de corpopropriação efetivam-se entre: a fixação do pensamento ao

sentir conferindo densidade ou corpo ao pensamento, ao retirá-lo da alienação e do

distanciamento da vida, e, por outro lado, a atenuação ou amenidade da espessura do

corpo, incorporando até ao limite a sua resistência e a sua opacidade.

Se o momento da fixação pode ser encontrado na obra A Barbarie131, o momento

da amenidade pode ser encontrado em Filosofia e fenomenologia do corpo132.

Atravessando assim a obra de Michel Henry, podemos dizer que este conceito é, pelo

menos intuitivamente, estruturante do seu pensamento, ainda que, nele, ocorra como que

ocasionalmente, e não raro expressando fenômenos opostos: a possibilidade e a

impossibilidade da fuga da vida. A fenomenalidade da adesão do humano ao advir da

vida em si mesmo surge ao longo da obra de Michel Henry de modo aparentemente

antagônico, pelo que a sua elucidação nos vários contextos em que ela aparece, será

fecunda até mesmo para uma compreensão do que, em Michel Henry, nos foi transmitido

apenas de modo implícito. Quando o filósofo diz em A Essência da manifestação que «a

impotência do sofrer, o sofrimento, é o ser-dado-a-si-mesmo do sentimento, o seu ser-

131
Michel Henry, La Barbarie, Paris, Grasset, 1987, p. 82.
132
Michel Henry, Philosophie et Phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965, p. 259.

116
acuado a si na aderência perfeita da identidade consigo e, nesta perfeita aderência a si, a

obtenção do si, o devir e o surgir do sentimento em si mesmo, na fruição do que é, é

fruição, alegria»133, é legítimo perguntar que sentido tem então uma fruição do desespero

que, por ser desespero, se quer libertar de si mesmo ou dessa sua fruição?134 A

fenomenalidade da fruição do próprio sofrer não será, em vez disso, a fenomenalidade de

uma vida acuada a si até nos processos da vida em comunidade, processos páticos que

Michel Henry não hesita em denominar de processos hipnóticos?135 Processos que

impossibilitam qualquer tipo de transferência e por conseguinte qualquer tipo de terapia?

Mas então, e de acordo com Michel Henry, se o sentimento não pode ser sentido,

de onde surge esta possibilidade de «adelgaçamento» da espessura de uma vida acuada a

si, tal como ele admite ser possível?136 Como conciliar a revelação da afetividade

enquanto doação sem distância, sem brecha e a insuportável obrigação de tomarmos a

cargo a sua doação, porquanto ela é a nossa vida?

Voltemos ao texto com que iniciamos este trabalho pois é a partir da

fenomenalidade do cogito, tal como Descartes aí a expõe, que julgamos poder aceder,

com a fenomenalidade da corpopropriação indiciada na obra A Barbárie, à

fenomenalidade de uma cultura interdisciplinar.

Nesse texto, o que define o próprio Descartes e não apenas a sua filosofia - sou eu

mesmo quem sente, diz ele – é o que ele recebe como que pelos órgãos dos sentidos – luz,

barulho, calor. Um receber que é um conhecimento que classifica como muito certo. E é

133
EM, p. 831.
134
EM, pp. 851-854.
135
Michel Henry, Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, pp.171-177.
136
Michel Henry, Philosophie et Phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965, p. 259 «Deste conteúdo
originário transcendental, podemos dizer que ele é o que faz precisamente a densidade da vida, uma
densidade ontológica primeira e irredutível, que subsiste mesmo quando esta vida se adelgaça no
desespero»

117
esse é muito certo que, essa certeza de uma relação imediata com o que o circunda, que

se lhe revela como sentindo-se ver, sentindo-se ouvir, sentindo-se aquecer: em uma

palavra, sentindo-se pensar. Sendo esse o pensar pelo qual começa a conhecer quem é,

com mais clareza.

Mas, quem é Descartes? É aquele que de nada mais precisa que duvidar, escutar,

desejar, para se tornar, a si mesmo, evidente - «por ser evidente que sou eu quem duvido,
137
escuto, desejo, nada mais é necessário acrescentar para o explicar» - todavia, para se

certificar de si, precisa sempre da referência ao sentir, inerente a cada uma das suas

atividades, nomeadamente, a atividade de as transformar em evidências.

E ainda que não restem dúvidas quanto à interioridade de Descartes em relação ao

sentir e ao sentido do que sente, como se vê pela resposta do próprio Descartes à objeção

que ele mesmo se põe, há um texto de As paixões da alma, também ele muito citado por

Michel Henry, que esclarece algumas dúvidas que podem emanar do primeiro texto

porquanto é o eu que se põe em presença de si mesmo e não já do calor, da luz ou do

barulho. Diz Descartes: «assim não raro quando se dorme, e mesmo algumas vezes

quando se está acordado, imagina-se tão fortemente certas coisas que se pensa ver diante

de si ou sentir em seu corpo, embora elas não estejam presentes de modo algum; mas

ainda que se esteja dormindo ou sonhando, não se saberia sentir-se triste ou emocionado

com uma qualquer outra paixão sem que fosse muito verdade que a alma tem em si esta

paixão»138. E a mesma definição pode ler-se em Princípios139 «Por exemplo, quando

alguém sente uma dor intensa, o conhecimento que tem da dor, é claro para si». Mas

então se sentir é sentir as afeções da vida processadas no corpo não será esse sentir-se

137
AT, VII, 29.
138
AT, XI, 349.
139
AT, IX-2, §46.

118
uma forma de corpopropriação, de que a terapia bem como as investigações laboratoriais

são modalidades?

c) Diálogo entre fenomenologia e ciências da saúde: caminho percorrido

Quanto à terapia a questão situa-se na possibilidade de, pela fenomenalidade de

se estar por dentro do sentir, e que o autor expressa como possibilidade de se sentir sentir:

sentir-se sentir não apela a uma diferença ontológica no sentir, mas antes à mobilidade do

sujeito por dentro do próprio sentir. E isso faz toda a diferença das terapias de inspiração

husserliana, heideggeriano, sartriana pontyana e até mesmo patočkiana, uma vez que a

relação do sujeito consigo mesmo é uma relação não com um objeto (algo exterior ou

dado num horizonte de transcendência), mas com o afeto que, ainda que advindo a si sem

o seu consentimento apela nesse advir à permanência ou à mudança. Sem o que não

haveria como sermos assolados pela angústia, pelo temor, pelo desespero.

d) Questões em aberto

Quanto às investigações laboratoriais, elas remetem-nos à fenomenalidade do

corpo. Este, mais do que um objeto, é uma expressão de vida. É pela sua irredutibilidade

a um objeto que o corpo, quando assim é reduzido, se torna, em Michel Henry,

«monstruoso», «perigoso»140. Assim a prova das afeções da vida, a arquipassibilidade da

vida, abre-nos, pela possibilidade de as sentirmos, à possibilidade da sua transformação.

A transposição para a tela, a música, o palco, a escrita, dessa vivência é disso prova.

Partilhamos vivências e não meros simulacros. E quanto à ciência?

140
Termos que atravessam a obra de MH, desde do romance Le jeune officier ao ensaio Paroles du Christ.
A título de exemplo ver da EM, p. 853 e da Incarnation §§ 37-40.

119
Quanto à ciência, já em Afeição e filosofia primeira: relações entre fenomenologia

e ciências da vida141 quis mostrar que a ciência é também ela uma forma de transposição

das vivências para os conceitos e as teorias. A investigação científica, nomeadamente as

neurociências, são uma outra forma de abordarmos a questão da corpopropriação do

corpo142.

A legitimidade destas questões no âmbito da fenomenologia, vimo-lo, está no

irrepressível desejo de nos apropriarmos ou corpopropriarmos do que nos assola quer

provenha do meio que nos circunda quer da vida que habita cada sensação ou transição

afetiva do nosso corpo. E é da fenomenalidade desse irrepressível desejo da vida em nós

que, da vida, brotam todas as formas do nosso enredo com ela143. Assim, da árvore da

vida, em Génises, à árvore do saber em Descartes, à fenomenalidade transcendental do

eu e à arquiciência, em Husserl e Heidegger, uma mesma questão se põe: a referência dos

saberes a um solo comum. Em Michel Henry, a vida autoafetiva é esse solo comum que

permite repensar, em termos fenomenológicos, essa relação entre os saberes. A

fenomenologia da vida abre a uma cultura interdisciplinar.

141
Martins, F. «Afeição e filosofia primeira: relações entre fenomenologia e ciências da vida» in Dossiê A
Fe o e ologiaàdaàVidaàdeàMi helàHe àeàaàPsi ologiaàClí i a .àPsicologia USP (no prelo)
142
Florinda Martins e Maristela Vendramel Ferreira, em diálogo com o trabalho de Cátia Teixeira,
Dopamine and serotonina signaling two sensitive developmental periods differentially impact adult
agressive and affective behaviors in mice, in Molecular Psychiatry (2014) 19, 688-698, iniciaram já o
estudo dessa possibilidade.
143
Posso concluir então, agora, que a barbárie é a recusa do enredo com a vida.

120
LA PSYCHOPATHOLOGIE COMME INDICATEUR DÉCISIF DE LA

NATURE DES LIENS ET ARTICULATIONS ENTRE SINGULARITÉ

PERSONNELLE ET APPARTENANCE COMMUNAUTAIRE

Jean-Marie Barthélémy

Université de Savoie, Chambéry

E-mail: jean-marie.barthelemy@univ-savoie.fr

Résumé - L’abord singulier de la personne vise — à travers des caractéristiques qui lui

sont propres, c’est-à-dire par définition non banales, dont le trouble psychique ne

représente qu’un cas de figure — à son rapprochement avec d’autres composantes

intérieures ou extérieures de son appartenance humaine, y compris chez celui qui a pour

mission ou vocation d’en définir et suivre les particularités. Il s’avère ainsi indispensable

d’alerter sur les dangers à considérer les troubles psychiques selon des catégories à part

au lieu de les incorporer à des formes plus larges et donc communautaires d’une large

constellation psychologique, à la fois individuelle et collective. Une réduction

sémiologique ne représente pas seulement un péril dans l’objectivation de la personne et

la mise à l’écart qui en découle, mais aussi provoque l’éclatement de toute la famille

d’appartenance et des liens qui rattachent les Hommes les uns aux autres.Ce n’est qu’en

respectant la personne dans ses déclinaisons inédites et non en les stigmatisant par instinct

de sécession ou de sauvegarde égoïste que l’on peut espérer participer non seulement au

maintien de ce lien communautaire mais à l’élévation de ses capacités d’évolution et

d’enrichissement. L’analyse compréhensive des troubles psychiques peut servir à la fois

de modèle, d’indicateur, de témoin, et de symbole pour l’étude en profo deu àd u eàtelleà

relation prometteuse et de sa salutaire survie.

121
Mots-clés : Karl Jaspers, Eugène Minkowski, processus, psychopathologie phénoméno-

structurale, situations-limite.

PSYCHOPATHOLOGY AS A DECISIVE INDICATOR OF THE NATURE OF

LINKS AND ARTICULATIONS BETWEEN PERSONAL SINGULARITY AND

COMMUNITY BELONGING

Abstract -The specificities of a person aim – though their own characteristics, which by

definition are not ordinary, and for which psychiatric disorder only represents a limited

part – to also approach other components, interior or exterior of its human being,

including for those who have the mission or vocation to define and follow its

particularities. Therefore, it becomes essential to alert on the dangers of considering

psychiatric disorders as being apart instead of incorporating them into wider and

consequently more communautary forms of a great psychological constellation, both

individual and collective. A semiological reduction not only represents a danger in the

objectification of a person and the sidelining that may result from it, but also splinters the

relationships and links connecting people to others. It is merely by respecting the person

in its unrivaled declensions and never stigmatizing them under the influence of some

instinct of secession or selfish protection that we may hope to contribute not only to the

preservation of this communautary link but also to the rise of its capacities of evolution

and enrichment. The comprehensive analysis of psychological troubles can be used at the

same time as a model, an indicator, a witness and a symbol for the in-depth study of such

a promising relation and its salutary survival.

Keywords : Eugène Minkowski, Karl Jaspers, limit situations, phenomeno-structural

psychopathology, process.

122
« L’homme ne prend conscience de son être que dans les situations limites. C’est

pourquoi, dès ma jeunesse, j’ai cherché à ne pas me dissimuler le pire. Ce fut l’une des

raisons qui me firent choisir la médecine et la psychiatrie : la volonté de connaître la limite

des possibilités humaines, de saisir la signification de ce que d’ordinaire on s’efforce de

voiler ou d’ignorer. » χinsi s’exprime Karl Jaspers dans une Autobiographie

philosophique 144 écrite à la fin de sa carrière et de sa vie. Ailleurs, il assure aussi qu’il

ne serait jamais devenu professeur de philosophie s’il n’avait pas connu la maladie. Plutôt

que de se résigner sous la pression déterministe et l’épée de Damoclès de la condamnation

médicale qui lui « prévoyait » au mieux vingt années d’existence avec sa mucoviscidose

invalidante, ou pour conjurer ce pronostic ténébreux, Jaspers s’en extrait en devenant lui-

même médecin. Par la suite, mieux à l’abri des alarmes antérieures, il éprouvera moins

qu’auparavant le besoin de se placer sous la protection à la fois noétique et confraternelle

de cette communauté.

Mettre en correspondance cette évolution avec le besoin d’une extension

théorique des fondements de sa réflexion appelée à un nécessaire élargissement par une

volonté d’approche « englobante » de la connaissance et de la réalité, pour reprendre un

de ses concepts-clé, apparaît plausible.

Même si l’approche psychologique, et plus spécialement psychopathologique

— pourtant décisive à plus d’un titre dans l’impulsion d’origine, la vocation et le

cheminement de l’exploration de l’esprit humain chez Jaspers — ne sera plus guère

d’actualité dans les développements ultérieurs de son œuvre, cela ne l’empêchera

nullement de remanier, de façon parallèle et indépendante jusqu’en 1946, son ouvrage de

144
Karl Jaspers, Philosophische Autobiographie, in : Schilpp, P. A. : Karl Jaspers, II, 1957 / Werk und
Wirkung, pp. 19-129, Piper München 1963, traduction française, Autobiographie philosophique, Aubier,
Paris, 1963.

123
Psychopathologie Générale comme s’il restait nécessaire à sa propre évolution

intellectuelle et personnelle.

Minkowski résume ainsi ces différents modes d’appartenance croisée dont il se

revendique lui-même : « Jaspers appartient à cette lignée de psychiatres-philosophes ou

de philosophes-psychiatres, comme on veut, qui ont cherché à unir, dans le même

effort, problèmes psychopathologiques et problèmes philosophiques. Du

reste, Jaspers, venu de la philosophie à la médecine, ayant été appelé par la suite à la

chaire de philosophie à Heidelberg, devait orienter sa pensée de plus en plus vers les

problèmes philosophiques, contrairement à Binswanger qui, resté médecin, continuant à

vivre au contact journalier des malades, poursuivait ses recherches de front dans les deux

sens. 145 »

Husserl est convoqué dans cette perspective, même si ce sera à son corps

défendant, pour ce que la démarche phénoménologique peut apporter à la

psychiatrie. C’est un fait historique indéniable et reconnu par tous que Jaspers a fait œuvre

de pionnier en important et adaptant l’abord phénoménologique des phénomènes issu de

la philosophie au champ psychopathologique. En psychiatrie, le phénomène, pour

Jaspers, part de la prise en considération des propos et des éprouvés directs des

patients, tels qu’ils s’énoncent « ici et maintenant », sur un mode synchronique et non pas

déformés dès le départ par les rubriques de la classification symptomatique ou

nosographique, c’est-à-dire d’une connaissance préalable apprise ou scientifique.

Lors de la troisième édition de son premier livre, sans qu’on l’on puisse encore

suspecter que cette attitude précautionneuse serait celle d’un homme qui cherche encore

ses marques pour présenter sa matière, non seulement il ne renie en rien ses positions

145
E. Minkowski : « Phénoménologie et analyse existentielle en psychopathologie », deux leçons au
Collège philosophique, janvier 1948, publiées dans L’É olutio ps hiat i ue, fasc. 4, pp. 137-185.

124
antérieures mais il enfonce plutôt le clou sans complaisance, en affirmant après avoir

présenté les quelques ajustements de la nouvelle mouture : « Pour le reste, c’est le

caractère méthodologique du livre qui est resté dominant. Dans tout le verbiage

psychopathologique, il faut apprendre à distinguer ce qu’on sait et ce qu’on ne sait pas ; il

faut savoir comment, dans quel sens et dans quelles limites on sait quelque chose ; il faut

connaître les moyens qui ont permis d’acquérir et de fonder ce savoir. Car la science

n’est pas un ensemble uniforme de données de même mesure et de même valeur, mais

une classification ordonnée de valeurs tout à fait différentes, quant à leur importance et à

leur substance. » (Avant-propos, 1ère édition, 1922)

Là où d’autres psychiatres présentent d’abord une taxonomie, une

nosographie, c’est-à-dire une classification des maladies mentales, Jaspers propose aussi

un classement mais fondé sur un autre ordre prioritaire, celui de la méthode ou plus

exactement de l’ensemble des méthodes, c’est-à-dire ce que l’on devrait appeler à

proprement parler la méthodologie. Et il poursuit donc ainsi :

« Mais il est dangereux de n’apprendre que le sujet dont s’occupe la

psychopathologie. Il ne s’agit pas d’apprendre que le sujet dont s’occupe la

psychopathologie, il importe de s’entraîner à observer en psychopathologue, à poser des

questions en psychopathologue, à analyser et à réfléchir en psychopathologue. »

Dès l’introduction à son ouvrage, Jaspers conduit ainsi une réflexion

épistémologique sur la psychiatrie et la psychopathologie ; il tient en particulier à

mentionner un ensemble de préjugés qui menacent de faire dériver la cette dernière vers

des contresens ou des impasses. Parmi eux, il en distingue une catégorie qui « résulte de

la simple exagération de considérations justes, du caractère absolu donné à des remarques

spéciales qui, comme telles, méritent une place » (Introduction de la troisième édition

allemande de Psychopathologie générale, 1922, p. 20). En clair, la généralisation de

125
pratiques ayant fourni la preuve de leur efficacité dans un contexte limité et particulier

crée des risques. Ainsi, précise-t-il, « les préjugés de la psychologie intellectualiste

s’unissent volontiers aux préjugés provenant des sciences naturelles pour affirmer que

des constatations quantitatives seules ont valeur scientifique et que l’examen qualitatif

pur reste toujours subjectivité et arbitraire. Les méthodes statistiques expérimentales, qui

en certains cas donnent des mesures, des chiffres, des courbes deviennent de ce point de

vue le seul moyen de faire une étude scientifique. Là où cette étude directe est

impossible, on travaille avec des concepts quantitatifs lors même qu’ils ne représentent

plus rien du tout » (id. P. 21). Ses avertissements, on le voit, portent sur plusieurs points

simultanés et entrelacés de confusion ou d’assimilation : la soumission de l’évaluation

scientifique d’une recherche à l’existence de données chiffrées ou pour le moins

quantifiées, le caractère suspect dont est entachée, en manière de conséquence et de

réversibilité gratuites, toute démarche d’analyse qualitative, la réduction de toute forme

d’implication subjective à l’arbitraire, l’affirmation abusive et donc erronée que le chiffre

ou la courbe ne sont pas qu’une voie parmi d’autres pour effectuer des travaux

scientifiquement recevables et productifs mais l’unique moyen d’y parvenir et de les

légitimer dans ce cadre, le danger enfin, par un entêtement systématique, à utiliser

indifféremment les mêmes pratiques quelles que soient les circonstances ou les contextes

d’études, quitte à ne plus avoir affaire qu’à des abstractions vides d’implications et

d’applications concrètes, donc privées de sens.

Retournant vers son domaine, Jaspers en arrive à une distinction et même une

opposition, qui nous semblent aujourd’hui plus difficiles à maintenir, entre une sorte d’art

de la psychiatrie et de science de la psychopathologie, où il apparaît que l’action du

psychiatre le situerait dans le registre de l’individualité tandis que le psychopathologue

seul travaillerait dans l’univers des concepts et des généralisations. « Le psychiatre, dans

126
son travail, a affaire à des questions tout à fait individuelles ; il cherche comme

psychopathologue des règles et des concepts généraux pour satisfaire aux exigences qui

s’imposent à lui dans les cas particuliers. Pour le psychiatre, homme vivant, compréhensif

et actif, la science n’est qu’un des moyens auxiliaires, pour le psychopathologue elle est

le but. Ce dernier ne connaît, ne décrit et n’analyse pas l’individuel, mais le

général » (id. p. 1). Par-delà cette différenciation contestable entre des exercices alternés

ou variés d’emplois ou de fonctions, c’est bien la question fondamentale de la centration

sur l’individualité ou sur la généralité qui est posée ; elle continue, comme on ne le sait

que trop, d’alimenter bien des conflits et des déchirements au sein de notre discipline plus

largement psychologique. Remarquons qu’elle coïncide aussi avec une forme de

divorce, implicite ou explicite, évoqué par Jaspers entre l’action et la réflexion, le vivant

et l’abstrait, la compréhension et l’explication. Aucun doute pour lui dans ses priorités et

nécessités : la phénoménologie l’engage délibérément du côté de la première série plutôt

que de la seconde dans un effort actif et intense pour s’approcher, à travers une attitude

compréhensive, au plus près du vif exprimé de la personne, de son expérience

concrètement vécue et partagée. Toute autre entreprise s’exposerait à des périls ainsi

qu’il le souligne avec insistance : « Comme toute voie scientifique, la voie

méthodologique présente ses dangers. La méthodologie peut tendre vers un calcul

formel, et finalement dégénérer en un verbiage de concepts. Cet art arithmétique qui reste

attaché toujours au plus extérieur, au moins essentiel, ce pur déplacement de concepts

n’exerce qu’un effet destructif et appauvrissant. La source et la valeur décisive de notre

connaissance résident toujours dans l’expérience concrète » (id. P. 16). On peut retenir

cette dernière phrase comme une véritable clef, un précepte déterminant pour l’attitude

phénoménologique qui la maintiendront toujours éloignée des simples constats froids ou

données brutes, inertes et vides érigées en connaissance, pire en seule connaissance

127
scientifiquement acceptable et validée, puisqu’ils ne trouvent pas leur origine, leur

fondement, leur résonance, leur prolongement, leur accomplissement au sein même de la

réalisation humaine. Ce terme de « valeur » appliqué au territoire de la science n’aura de

quoi surprendre que ceux qui la confondraient avec une simple énonciation ou

juxtaposition de faits sans choix ni option, ce à quoi se refuse bien entendu Jaspers. Il

conviendra donc pour le psychologue de ne pas se contenter de compter, pour parvenir à

comprendre ce qui compte, c’est-à-dire, pourquoi pas à partir des chiffres mais jamais

seulement en se fiant uniquement et aveuglément à eux, de déterminer ce qui pourrait

bien avoir quelque importance dans la qualification et l’extension susceptible d’être

attribuée à un phénomène.

En fait, lorsque la référence numérique deviendra de nature explicitement

statistique, Jaspers se montrera encore plus incisif : « La compréhension approfondie d’un

seul cas nous permet souvent phénoménologiquement une application générale à des cas

innombrables. Souvent ce qu’on a saisi une fois se retrouve bientôt. Ce qui importe en

phénoménologie c’est moins l’étude de cas innombrables que la compréhension intuitive

et profonde de quelques cas particuliers » (id. p. 49).

Ce que Minkowski reprendra pleinement à son compte plus tard dans son Traité

de psychopathologie de 1966 : « L’effort phénoménologique, centré sur les caractères

essentiels, ne dépend nullement du nombre des cas examinés. Par là il se sépare de toute

statistique de même que de la méthode inductive qui, elle, pour faire ressortir le général

et éliminer le contingent, doit passer en revue le plus de cas possibles. Pour la méthode

phénoménologique, un seul suffit » (Traité de psychopathologie, 1966, P. 460).

Cette initiative d’une écoute attentive des propos des malades, qui vient à la

place de l’énumération simple, froide et schématique des symptômes dont ils sont

porteurs, est considérée par Minkowski comme capitale car elle met sur la voie d’une

128
compréhension du trouble et du malade. Elle amènera d’ailleurs de la part de Jaspers à

insister en psychiatrie sur l’importance du regroupement en « syndrome », c’est-à-dire un

ensemble ordonné de symptômes, afin d’élargir une description élémentaire qui rend

difficile sinon impossible leur insertion à l’intérieur d’un ensemble plus large où ils

deviennent mieux susceptibles de trouver à la fois une participation à une organisation et

un sens.

Nous sommes ici parvenu à un point de bascule dans l’attitude du praticien, qui

va glisser insensiblement et parfois même brusquement, sous l’effet d’une intuition

unitaire révélatrice, depuis une position lente, patiente et laborieuse, purement réceptrice

et descriptive de ce que lui apporte son patient, jusqu’à une convergence compréhensive

et l’exigence ressentie et pressante d’une mise en relation interprétative entre les

phénomènes psychiques. C’est ce passage, cette transition qui fera évoluer Minkowski

vers une méthode qu’il propose d’appeler phénoméno-structurale, pour souligner à la

fois la continuité et le changement de registre entre la phase analytique préalable et une

prise en charge simultanément organisatrice, synthétique, hiérarchique et signifiante des

données d’observation qui permet d’appréhender à la fois les caractéristiques des

symptômes et de la personne dans leur cohérence interne spécifique.

Ce temps fort de la démarche compréhensive du psychopathologue praticien et

chercheur, tendue à ce moment moins vers la saisie personnelle de l’expression d’un

patient que dans l’effort pour rassembler et circonscrire les lignes de forces qui

déterminent prioritairement sa symptomatologie et sa représentation du monde, présente

une belle homologie avec ce que Jaspers appelle un « processus » durant le cours d’une

existence : « Quand, au milieu de l’évolution naturelle de la vie, se produit un changement

psychique tout à fait nouveau, il se peut que l’on ait affaire à une phase. Mais si le

changement est durable, le phénomène est appelé processus. […Ces processus] forment

129
un groupe qui, pour l’observateur impartial, s’oppose par un caractère général aux

processus cérébraux. Ce caractère est un changement de la vie psychique qui n’est

accompagné d’aucune désagrégation de la vie mentale et dans lequel entrent comme

élément une foule de relations compréhensibles. Nous ne connaissons pas les causes d’un

semblable processus. Alors que, dans les processus organiques, les phénomènes mentaux

sont au point de vue psychologique dans une confusion complète, ici, au contraire, plus

on approfondit le cas étudié, et plus on trouve de relations conscientes. [...] Dans les

formes les moins graves, l’évolution du sujet se poursuit comme si à un moment donné

se trouvait une discontinuité brusque du développement. Chez le sujet normal au

contraire, la lignée est régulière, et dans le cas d’un processus organique, on a, non pas

une simple discontinuité, mais une confusion complète. Nous avons appelé ces

phénomènes processus psychiques, par opposition aux processus organiques. Il ne faut

prendre ces notions que pour des limites, et non comme définissant des espèces

distinctes. Nous ne sous-entendons rien de théorique, mais nous voulons rappeler en un

mot que ces processus nous sont accessibles du point de vue psychologique

seulement 146 ».

Un exemple en forme de « vœux » échangés avec une patiente à l’occasion du

« passage » de la nouvelle année me paraît illustrer tout cela via les deux bouts de la

relation transférentielle : alors que, dans un entretien, elle se référait à un moment où elle

avait « trompé » son compagnon, elle me certifiait qu’elle m’en avait déjà parlé dans un

écrit qu’elle m’avait envoyé. Je lui dis que j’ai dû mal lire ou qu’elle a cru m’en parler

dans ce texte, mais qu’en tout cas c’est la première fois que je prends conscience de cet

événement. Je lui promets de retourner au document qu’elle m’avait envoyé et j’y trouve

146
ibid. pp 437-439

130
effectivement un passage où elle dit laconiquement : « je suis allée voir ailleurs ». Je lui

fais état de mon incompréhension initiale de la nature de ce passage en écrivant moi-

même : « c’est parce que votre expression ‘je suis allée voir ailleurs’ me l’avait rendu

plus banal et moins clair que ce que vous m’avez dit par la suite…Une sorte de pudeur

partagée entre nous en quelque sorte, qui vous a rendue plus allusive qu’explicite et a fait

de moi un ‘mal comprenant’. » Ce à quoi la patiente me répond dans un SMS daté du 2

janvier, que je cite in extenso :

« Ce mal entendu confirme qu’un échange interactif a son importance. Je ressens

bien ce passage de cap, (Nψ : elle parle en même temps du changement d’année

et d’ambiance personnelle et familiale dans laquelle elle est maintenant inscrite

après un moment critique dévastateur) ça fait du bien. Voilà d’autres horizons.

Vos compétences en (sic) sont pour beaucoup, je suis persuadée que vous m’avez

aidé (sic) à ne pas me perdre très récemment. Je mets en place d’autres choses

grâce peut-être aussi à une bonne étoile que je veux bien laisser briller, à des

djinns que je veux bien reconnaître quand je les croise, vous êtes toujours le

meilleur de tous ( Nψ : c’est une personne issue en deuxième génération de

l’immigration maghrébine, très éloignée elle-même des pratiques religieuses et

culturelles d’origine, mais, par « plaisanterie » j’ai souvent mis sur le compte de

l’influence des « bons djinns » tout ce qui commençait à lui arriver de mieux

afin de ne pas attribuer l’exclusivité de ces améliorations à nos propres

rencontres ). Il est évident que vous êtes un pro dans votre métier sous ces airs

très décontractés mais au-delà de ça votre aide est bonifiée par votre grande

générosité et le partage de votre temps à mes yeux. C’est important pour moi de

vous dire merci. Alors MERCI ! »

131
Ce à quoi je lui ai répondu par un bref SMS (puisqu’elle arrivait à décliner son

« merci » en minuscules et capitales) :

« Saha en dialectal ou CHOUKRANE si vous voulez faire plus académique ».

(NB « Saha » est le mot en dialecte algérien pour dire à la fois merci, santé, salut

et d’accord, « Choukrane » est l’équivalent en arabe classique (ou soutenu)

pour dire seulement « merci »…! Elle est bien sûr capable de saisir toutes ces

nuances, c’est une professeure…d’anglais).

Écoutons encore cet autre échange de courrier tout aussi édifiant, et encore plus

ordinaire en apparence, avec une autre patiente qui reprend contact plusieurs années après

l’issue de son suivi :

« Bonsoir !!

Je me permets de vous écrire car à chaque fois que je réussi (sic) quelque chose

je ne peux m’empêcher de penser que quelque part c’est grâce à vous!!! alors

merci, de m’avoir aider (sic) à remonter la pente , merci de m’avoir aider (sic) à

reprendre un peu confiance en moi, et surtout merci de m’avoir aider (sic) à gérer

mes angoisses, et grâce à tout cela j’ai ENFIN eu mon permis de conduire :) !!!

Je sais pour la plupart des gens ce n’est qu’une formalité mais pour moi ça a été

un long et dur parcours pour réussir a gérer mon stress! je l’ai passé 2 fois et je

perdais tellement mes moyens en me sentant juger (sic) que je ne savais plus rien

faire ! et la 3ème fois fut la bonne !!!! Voilà ...!! Enfin ne vous inquiétez pas je

me pose toujours énormément de questions bizarres, je prend (sic) encore de

l’χtarax de temps en temps, je dors pas très bien et je me dis aussi que lorsque

tout se passe bien c’est que ca cache forcément quelque chose de louche !!!

Est ce que vous venez toujours les jeudis au CHU ?

132
En tous cas j’espère que vous allez bien et que tout se passe comme vous le

souhaitez.

Très bonne soirée , C... »

- « Chère C... ,

N’hésitez pas à vous permettre. Je suis toujours heureux d’avoir de vos nouvelles

ainsi que la description de ces passages symboliques par lesquels vous passez et

auxquels vous m’associez en pensée. Je suis moins à l’initiative de la réussite à

votre permis de conduire qu’à celle de votre permis de VOUS conduire…À

partir du moment où vous avez accepté de VOUS conduire sans la préoccupation

prioritaire ou exclusive d’être jugée par autrui, tout le reste n’est plus que

formalité…! Heureusement, comme vous le dites, il vous reste quelques

inquiétudes existentielles pour agrémenter votre vie et lui donner un peu de

piment, sinon tout cela restera terne et monotone. Pas facile de s’habituer au

bonheur sans arrière-pensée, cela doit se cultiver au quotidien et s’entretenir. »

Jean-Marie BARTHELEMY

Dans un effort elliptique autant que synthétique, essayons de nous affranchir de

ces deux contextes particuliers afin d’en mieux dégager la proximité d’orientation. De

part et d’autre, la médiation du praticien, pleinement au cœur de son rôle, souligne

l’alliance souterraine entre une singularité d’événement qui, bien que somme toute

prosaïque et banale — une conduite d’infidélité, l’obtention du permis de conduire —

marque pourtant et influence durablement, en profondeur, exactement selon ce que

Jaspers nomme un « processus », un trajet personnel par son incidence imprévue et ses

effets inattendus. Qu’ils soient douloureusement ou radieusement éprouvés, elle les relie

aux fils ténus et mystérieux d’une destinée partagée car inscrite dans une communauté

133
d’appartenance ou de référence dont le psychologue s’avère à la fois partie prenante,

partenaire, intermédiaire, complice, témoin et confident. La « reconnaissance » qui en

émane n’est aucunement à enregistrer ni accueillir en tant que simple gratitude à notre

égard mais plutôt comme l’attestation d’une authentique renaissance insolite au sein d’un

espace et d’une considération communautaires où elle trouve son accomplissement, son

sens et par-dessus tout une intentionnalité balbutiante qui se risque enfin à un projet

d’existence inédit et renouvelé. En dehors du gonflement à dimension compensatoire au

cours des délires mégalomaniaques, je n’ai jamais entendu aucun de mes patients aspirer

à devenir supérieur aux autres ; par contre ce qu’ils réclament avec plus ou moins de

forces vitales persistantes c’est « d’être comme les autres » ou « comme tout le monde »

comme ils le disent souvent avec des mots simples, c’est-à-dire l’égal d’un autrui reconnu

comme tel qu’ils croient entrevoir autour d’eux et parfois se surprennent à idéaliser ou

honteusement à envier.

Ces exemples, à l’intersection du désordre psychique et d’une psychologie de la

vie quotidienne aux frontières ou limites d’une psychopathologie, me fournira une

transition avec deux autres livres de Jaspers se référant encore à la psychologie, soit dans

le titre, soit dans la matière. Il s’agit de Psychologie der Weltanschauungen (1919) et de

l’ouvrage sur l’approche pathographique de créateurs ayant souffert notoirement de

troubles ou difficultés psychologiques147.

La notion de « vision du monde », transférée de Dilthey, sert plus à Jaspers de

transition pour sa bascule définitive vers le champ de la philosophie que de concept

intermédiaire susceptible de créer un pont entre psychopathologie et philosophie, d’autant

147
Karl Jaspers, Strindberg und van Gogh. Versuch einer pathographischen Analyse unter vergleichender
Heranziehung von Swedenborg und Hölderlin. E. Bircher, Leipzig 1922, traduction française Strindberg et
Van Gogh, Swedenborg – Hölderlin, Éditions de Minuit1953, Collection « Arguments », 1970.

134
plus qu’il se présente avec l’ambition extensive et généralisatrice d’envergure d’un

questionnement sur l’Homme, portant sur l’essentiel de l’être à partir de cette notion de

« situation-limite » qui aurait pu s’ouvrir et s’appliquer aux deux contextes dans une

entreprise de nature anthropologique. Dans une étude sur Héraclite, Binswanger écrit à

ce propos : « Cette idée est d’une importance capitale pour toute anthropologie et

psychologie. Non seulement la psychose ne se peut comprendre qu’à partir des mondes

des limites et des normes préalables dans lesquelles vit le malade individuellement et dont

il subit l’atmosphère mais, bien plus encore, tout cela est-il valable pour les rêves, pour

tout ‘sentiment’ et, en somme, pour tout mode d’expérience vécue des malades et des

bien portants148 ». Plus tard, dans ses entretiens radiophoniques publiés ensuite sous le

titre Introduction à la philosophie, Jaspers, rapprochant les interrogations ontologiques

des enfants et des malades mentaux, déclare : « Un signe admirable du fait que l’être

humain trouve en soi la source de sa réflexion philosophique, ce sont les questions des

enfants. On entend souvent de leur bouche des paroles dont le sens plonge directement

dans les profondeurs philosophiques. En voici quelques exemples : l’un dit avec

étonnement ; ‘j’essaie toujours de penser que je suis un autre, et je suis quand même

toujours moi’. Et encore, par un rapprochement avec les malades psychiatriques : « Une

recherche philosophique jaillie de l’origine ne se manifeste pas seulement chez les petits

mais chez les malades mentaux. Il semble parfois —rarement— que chez eux le bâillon

de la dissimulation générale s’est relâché, et nous entendons alors parler la vérité. Au

stade où des troubles mentaux commencent à se manifester, il arrive que se produisent

148
Ludwig Binswanger, « L app he sio àh a lit e eàdeàl ho e » in : Ludwig Binswanger, Introduction
à l’a al se e iste tielle, Paris, Minuit, 2008, pp. 181-182, référence citée par Gábor Tverdota
in : « Existence et normativité. L appo tàdeàlaàDaseinsanalyse pou àl la o atio àd u eà ou elleà iti ueà
sociale », Les Carnets du Centre de Philosophie du Droit, n° 153, 2011, Université Catholique de
Louvain, o sulta leà à l ad esseà e à sui a te : http://sites-
final.uclouvain.be/cpdr/docTravail/153TverdotaG.pdf

135
des révélations métaphysiques saisissantes. Leur forme et leur langage, il est vrai, ne sont

pas tels que, publiées, elles puissent prendre une signification objective, à moins de cas

exceptionnels comme celui du poète Hölderlin ou du peintre Van Gogh. Mais lorsqu’on

assiste à ce processus, on a malgré soi l’impression qu’un voile se déchire, celui sous

lequel nous continuons, nous, notre vie ordinaire. »

L’essai de Jaspers sur Strindberg, Van Gogh, Hölderlin et Swedenborg (1922)

est un des premiers sinon le premier a avoir prospecté la voie pathographique : il s’agissait

essentiellement de reconnaître dans la production de malades psychiatriques la marque

du désordre psychique, en retrouvant le cours inexorable de la maladie dans la progression

concomitante de l’œuvre, en superposant et assimilant l’une à l’autre par analogie

sémiologique. Cette recherche, menée à partir non pas de patients psychiatriques présents

ou actuels mais de créateurs illustres, quand bien même certains auraient dû recourir à

l’hospitalisation ou d’autres formes d’asile bienveillant, pense en pionnier la question du

rapport entre création et altération mentale dans un cadre large intégrant les supports

diversifiés tels que peinture ou production littéraire. À ce titre elle représente un moment-

clé et fondateur de l’Histoire de la psychopathologie et de la psychologie de

l’expression. C’est aussi à partir de la conception de « situations-limites » qu’il a pu être

envisagé et entrepris, car on ne voit pas comment ces créateurs désespérés pourraient être

en désaccord avec cette remarque de Jaspers qui semble issue de leur propre ballottage et

drame d’existence et en parfaite résonance avec leur souffrance mais aussi les

extraordinaires capacités d’expression dans leur œuvre : « Considérons un peu quelle est

notre condition à nous, Hommes. Nous nous trouvons toujours dans des situations

déterminées. Les situations changent, les occasions se présentent. Quand on les

manque, elles ne reviennent plus. Je peux travailler moi-même à changer une situation.

Mais il en est qui subsistent dans leur essence, même si leur apparence momentanée et si

136
leur toute-puissance se dissimule sous un voile : il me faut mourir, il me faut souffrir, il

me faut lutter ; je suis soumis au hasard, je me trouve pris dans les lacets de la

culpabilité. Ces situations fondamentales de notre vie, nous les appelons situations-

limites 149 ».

Dans la même lignée d’appartenance et de courant méthodologique, Eugène

Minkowski a contribué à dégager une voie originale pour inventer une psychopathologie

qui ne puisse s’assimiler à la simple taxonomie psychiatrique. Notamment, par sa

différenciation subtile entre une « pathologie du psychologique » et une « psychologie du

pathologique ». En effet, si la nomenclature sémiologique et nosographique joue un rôle

indéniable dans une part de l’étude et de l’organisation des désordres psychiques, elle ne

peut en constituer l’essentiel ni prétendre à une approche intégrale pas plus qu’intégrative

de dérives psychiques qui se réduiraient à cette seule dimension. La pathologie du

psychologique, explique Minkowski, insiste sur la défaillance, le déficit ou la démesure

du trouble toujours comparé, à son désavantage bien sûr, à l’exercice de l’activité

psychique saine ou préservée. « Ces troubles, écrit-il, se réfèrent nécessairement à une

norme ou à une moyenne, si l’on veut, au regard de laquelle, après une confrontation avec

elle, ils apparaissent comme des écarts pathologiques 150


». C’est le propre de la

sémiologie de se cantonner strictement à l’étude de ces dysfonctionnements ; elle mène à

une nosologie ou une nosographie purement descriptives où « ces troubles se trouvent

rangés de cette manière en bon ordre, en si bon ordre que celui-ci en demeure
151
suspect », observe judicieusement Minkowski, qui préfère revenir toujours à la

149
Karl Jaspers, Introduction à la philosophie, p.18.
150
Eugène Minkowski, « ápe çuàsu àl olutio àdesà otio sàe àps hopathologie », conférence prononcée
à la Société de Neurologie et de Psychiatrie de Toulouse le 16 avril 1961, publiée dans Toulouse
Médical, 63ème année, n° 4, avril 1962, ep iseàda sàl ou age Au-delà du rationalisme morbide (ce titre
estàpasàetà au aitàpasàpuà t eàdeàMi ko ski !), Paris, L Ha atta , 1997, p. 154.
151
ibid.

137
complexité clinique, pour en différencier le fond et aussi respecter sa nature. Ce qui

manquera toujours à cette taxonomie c’est le sens unitaire des symptômes qu’elle

répertorie, la cohérence de leur organisation interne issue du dynamisme vital qui les

détermine fondamentalement et relève d’une « psychologie du

pathologique ». Contrairement à beaucoup d’idées reçues, le psychiatre défend l’idée que

la vie, même ordinaire, normale ou saine, comme ou voudra bien la qualifier, « dans son

dynamisme foncier, n’est ni équilibre ni adaptation, elle n’est point une surface lisse sans

aspérités ni failles ; cela l’immobiliserait entièrement et ce n’est point ce que, dans notre

effort, dans notre élan personnel, nous recherchons. Elle est bien davantage équilibre-

déséquilibre, adaptation-désadaptation, un va-et-vient ininterrompu entre les deux termes

de ces deux antithèses apparentes, et c’est à travers elles précisément qu’en peinant, en

butte à des difficultés et des failles, à des déceptions, à des ratés inévitables, que nous

nous efforçons d’avancer et de nous réaliser de notre mieux, comme le veut notre vocation

humaine152 ». À ce titre l’ « aliéné » qui souffre de troubles psychiques graves jusqu’à le

faire devenir « autre » à lui-même aussi bien qu’à son semblable, se présente à nous avec

la même ambiguïté de présence : étranger à autrui en raison de cette rupture vitale avec

sa propre existence, mais, parce quelle demeure la nôtre tout en résistant à son

accessibilité, propice à un rapprochement malgré ou plutôt à cause de cet hermétisme. Ce

que Minkowki résume ainsi : « L’aliéné n’est pas simplement un individu qui s’écarte de

la norme ou d’une moyenne. Il sort du cadre de la vie, rompt ainsi les amarres, ne s’intègre

plus au flux de cette vie et sans que nous ayons à le confronter avec d’autres individus

dits plus ou moins normaux, à le mesurer à une moyenne établie par ailleurs, se présente

à nous, d’emblée et de manière immédiate, dans sa spécificité foncière, inaccessible à

notre entendement au premier abord […] Et c’est à partir de cette donnée première

152
ibid. p. 155.

138
que, mus par ce besoin irrésistible de comprendre chacun de nos semblables, nous nous

efforcerons de pénétrer de notre mieux dans ces mondes fermés à première vue. C’est le

fondement même de la psychologie du pathologique153 ».

Minkowski suggère ainsi qu’une démarche authentiquement

psychopathologique n’a aucunement pour objectif de circonscrire des faits indépendants

de celui qui les étudie par une discrimination préalable et fondamentale entre une

personne affectée par ces phénomènes inhabituels et une autre qui les envisagerait depuis

une extériorité totalement objectivante alléguant s’en démarquer radicalement.

Avec une grande honnêteté, et au risque de remettre en cause ses propres

conceptions antérieures, Minkowski écrit dans son Traité de Psychopathologie : « Mais

est-il permis de parler encore dans ces conditions de psycho-pathologie ? Contrairement

à ce que nous avons pu dire dans nos écrits antérieurs, nous conservons aujourd’hui le

pathos en le prenant seulement au sens large du terme, la maladie n’en étant qu’une des

variétés. C’est que les différentes formes de ce ‘ être autrement ’ se placent, d’une manière

intrinsèque, comme nous avons vu, sous le signe de ‘ en souffrance ’, dans la mesure

même où elle se présentent comme atteinte profonde portée à la destinée humaine. Par là

nous revenons à ce que nous disions dans le chapitre précédent, à savoir que la

psychopathologie est par endroits davantage une psychologie du pathologique ou, dans

son prolongement, du pathique qu’une pathologie du psychologique. Les maladies, pour

fréquentes, voire journalières qu’elles soient, constituent un événement qui ‘ sort de

l’ordinaire ’ 154 ».

Dans les langues romanes, le terme de « commun » désigne à la fois ce qui

rassemble plusieurs caractéristiques partagées et ce qui relève justement de la banalité, de

153
ibid.
154
Eugène Minkowski, Traité de Psychopathologie, Paris, P.U.F. 1966, pp. 41-42.

139
l’ordinaire : une source de bien des malentendus, voulus ou pas, et de dérives plus ou

moins terrifiantes dans leurs déclinaisons abstraites et idéologiques facilement

reconnaissables à leur périlleux suffixe en « -isme ». À l’échelle

personnelle, l’égoïsme, comme trait du caractère, se muera en affreux individualisme

lorsqu’il viendra affecter non plus un seul mais une tendance générale, révélatrice du

renfermement sur elle-même d’une société, d’une époque ou des deux à la fois. L’Histoire

a montré aussi les monstrueux dégâts d’un collectivisme ou d’un communisme qui, au

prétexte louable et bien intentionné d’une mise en commun solidaire des ressources

créatrices de chacun, a provoqué dans les faits l’étouffement de toute velléité

d’affirmation d’individualité comme d’Humanité, escamotées voire exterminées au nom

d’un soi-disant « bien commun » censé les transcender. Des formes atténuées, mais

potentiellement explosives, menacent actuellement quelques recoins des sociétés

occidentales dans le développement des « particularismes » ou des

« communautarismes », qui, sous des apparences opposées entre culte de l’individualité

et de la communauté, peuvent aboutir à des exclusions ou des ghettos d’identique

impasse.

L’abord singulier de la personne vise — à travers des caractéristiques qui lui

sont propres, c’est-à-dire par définition non banales, dont le trouble psychique ne

représente qu’un cas de figure — à son rapprochement avec d’autres composantes

intérieures ou extérieures de son appartenance humaine, y compris chez celui qui a pour

mission ou vocation d’en définir et suivre les particularités. Il s’avère ainsi indispensable

d’alerter sur les dangers à considérer les troubles psychiques selon des catégories à part

au lieu de les incorporer à des formes plus larges et donc communautaires d’une large

constellation psychologique, à la fois individuelle et collective. Une réduction

sémiologique ne représente pas seulement un péril dans l’objectivation de la personne et

140
la mise à l’écart qui en découle, mais aussi provoque l’éclatement de toute la famille

d’appartenance et des liens qui rattachent les Hommes les uns aux autres. Ce n’est qu’en

respectant la personne dans ses déclinaisons inédites et non en les stigmatisant par instinct

de sécession ou de sauvegarde égoïste, en promouvant la diversité des inscriptions

spécifiques donc, que l’on peut espérer participer non seulement au maintien de ce lien

communautaire mais à l’élévation de ses capacités d’évolution et d’enrichissement sans

lesquels la civilisation viendrait à s’effondrer sous l’effet d’une étanche et aveugle

exclusion d’autrui et du mépris délétère qu’il est toujours partie prenante du plus intime

de soi. L’analyse compréhensive des troubles psychiques peut servir à la fois de

modèle, d’indicateur, de témoin, et de symbole pour l’étude en profondeur d’une telle

relation prometteuse et de sa salutaire survie.

141
CONFIANÇA E CONVIVÊNCIA: PESSOA E COMUNIDADE NA

PERSPECTIVA DE UMA TEOLOGIA PÚBLICA

Rudolf von Sinner*

Faculdades EST, São Leopoldo

E-mail: r.vonsinner@est.edu.br

Resumo: O artigo desenvolve reflexões sobre a convivência baseada na confiança,

pautada pela dignidade e liberdade humanas, na perspectiva de uma teologia pública.

Procura responder à pergunta em que uma teologia trinitária poderia ajudar rumo a tal

convivência e confiança. O argumento é desenvolvido em três passos: primeiro, refletindo

sobre a relação tão fundamental quanto ameaçada entre confiança e convivência (1). Num

segundo passo, enfoca-se a doutrina da Trindade, em relação ao conceito de pessoa e de

comunidade (2). Por fim, apresenta-se quatro aspectos fundamentais – alteridade,

participação, confiança e coerência – para a convivência na esfera pública hodierna,

inspirados pela teologia trinitária anteriormente desenvolvida (3). Para a teologia cristã,

Deus não está alheio a este mundo, afastado e intocável, mas ele interage de forma

apaixonada com este mundo. Apesar de ser um mundo que, em muito, se afastou daquilo

que Deus pretendeu para ele, o amor do Deus trino não o abandona.

Palavras-chave: Trindade; confiança interpessoal; sociedade civil; Brasil; Leonardo

Boff.

*
De origem suíça, doutor e livre-docente em Teologia, é professor de Teologia Sistemática, Ecumenismo
e Diálogo Inter-religioso na Faculdades EST, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. É, ainda, professor
extraordinário na Universidade de Stellenbosch, África do Sul, pesquisador experiente CAPES/Humboldt
e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

142
TRUST AND CONVIVIALITY: PERSON AND COMMUNITY IN THE

PERSPECTIVE OF A PUBLIC THEOLOGY

Abstract: The article develops reflections on conviviality based on trust, characterized

by human dignity and freedom, in the perspective of a public theology. It seeks to answer

the question as to what extent a Trinitarian theology could help fostering such conviviality

and trust. The argument is developed in three steps: first, reflecting on the equally

fundamental and threatened relationship between trust and conviviality (1). In a second

step, it focuses on the doctrine of the Trinity, in relation to the concept of person and

community (2). Finally, four fundamental aspects are presented – alterity, participation,

trust and coherence – for conviviality in today’s public sphere, inspired by the Trinitarian

theology developed earlier (3). For Christian theology, God is not alien to this world,

remote and untouchable, but God interacts with this world in a passionate manner. Despite

being a world that has gone afar from what God had in mind for it, the love of the triune

God does not give up on it.

Keywords: Trinity; interpersonal trust; civil society; Brazil; Leonardo Boff.

Convido o leitor e a leitora a embarcar, inicialmente, numa viagem para o século

XVI.155 Estamos na Espanha, no período mais feroz da Inquisição. Frequentemente,

veem-se (plural) arder as fogueiras com os chamados “hereges”, que seriam os inimigos

da verdadeira fé. Neste inferno de chamas, Jesus volta à terra e anda entre o povo. Todo

mundo o reconhece. Enquanto começa a cuidar do povo, curar enfermos e ressuscitar

mortos, chega o grande inquisidor. Imediatamente, manda prender Jesus. À noite, visita-

o na sua estreita cela. “Porque vieste incomodar-nos?”, pergunta o grande inquisidor e

anuncia que, no próximo dia, Jesus iria morrer na fogueira como um dos piores hereges.

155
Aproveito-me, ao longo do texto, livremente de elementos já apresentados em SINNER, Rudolf von.
Confiança e convivência. Reflexões éticas e ecumênicas. São Leopoldo: Sinodal, 2007, capítulos 1 e 2.

143
Num grande sermão, o inquisidor explica, essencialmente, o fracasso da mensagem

evangélica. Jesus teria proclamado a liberdade, mas o povo não soube lidar com ela. Era

preciso que a Igreja o conduzisse. O povo queria a paz, a segurança, a felicidade, mesmo

que submisso à autoridade da Igreja. Não queria nem suportaria a liberdade, pois esta traz

insegurança e risco. “Por que vieste agora nos estorvar?” – Jesus não diz nada. Fica calado

até o fim. Percebe que já não era Deus que habitava no coração do inquisidor, mesmo que

este representasse a Igreja. No fim, beija-lhe os lábios. O inquisidor, com o coração

queimado, deixa-o ir embora. “Vai-Te e não voltes... não voltes nunca mais!”156

Esta narrativa nos conta o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), em seu

clássico Os Irmãos Karamazov. É uma narrativa muito rica, tocando nos aspectos mais

profundos da vida humana e da fé. Assim é o livro todo, do qual este conto é tirado. Das

suas muitas facetas, destaco apenas uma: a liberdade, a característica mais profunda do

ser humano, implica risco, implica assumir-se e não seguir simplesmente a autoridade.

No conto, Jesus mostra que confia nesta qualidade humana, mais ainda: faz dela um

aspecto central de sua proclamação do Reino de Deus. Enquanto isso, a igreja do grande

inquisidor, supostamente seguidora e representante terrena de Jesus, o Cristo, trata as

pessoas como se fossem infantes que precisam de tutela. Como outrora o imperador

romano, a igreja dá ao povo o que este – ao menos supostamente – quer: panem et

circenses – pão e jogos. Mas não confia na sua capacidade de usar a liberdade. Jesus, ao

contrário, confia nos seres humanos e sua liberdade, conforme bem mostra Dostoievski.

Junto-me a esta postura de confiança, sem, evidentemente, desconsiderar as profundas

ambiguidades da atuação humana – esta que também fez com que Jesus fosse crucificado.

Lembremos também que grandes figuras de exemplo da Bíblia, como os reis David e

Salomão, foram nada perfeitos. Meteram-se nos abusos de poder como quase todo regente

156
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Trad. Boris Solomov. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.
252-270.

144
da história. E, no entanto, o Messias viria da linhagem deles. Na mensagem do Evangelho,

os seres humanos, ainda que falhos, são considerados seres livres, capazes, e dignos.

Voltemos ao século XXI. O que pretendo apresentar no que segue, são reflexões

sobre a convivência baseada na confiança, pautada pela dignidade e liberdade humanas,

na perspectiva de uma teologia pública. Vale, inicialmente, esclarecer o que seria uma

teologia pública. A reflexão e a literatura sobre tal teologia estão crescentes no Brasil e

em outros países.157 Aqui posso dar apenas uma rápida visão desta teologia que procura

analisar a presença das religiões, em especial das igrejas cristãs, na esfera pública

contemporânea, e refletir de forma crítica e construtiva sobre sua pertinência. Tem,

portanto, um aspecto analítico e outro normativo. Assim, a teologia se mostra de imediato

intrinsecamente interdisciplinar, pois tal análise é impossível sem o apoio de outras

abordagens, de outras áreas do saber. Por outro lado, a teologia contribui com aquilo que

lhe é próprio neste diálogo interdisciplinar: uma reflexiva fala de Deus pertinente à

tradição judaico-cristã e aos desafios do contexto atual. Em segundo lugar, o próprio

teólogo, a própria teóloga está atendendo a diversos públicos, a saber, à academia, à

igreja, e à sociedade.158 Não lhe é possível entrincheirar-se numa igreja, numa sala de

estudos ou numa sala de atendimento pastoral. É indagado, sempre, a posicionar-se diante

da realidade. São diferentes linguagens e necessidades, mas não se pode fugir desta

tríplice tarefa que exige constantemente um posicionamento público do teólogo e da

teóloga. A esfera pública, por sua vez, mudou neste país, de uma situação autoritária para

157
Como exemplo veja a seguinte série: CAVALCANTE, Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia
pública em debate. Teologia pública vol. 1. São Leopoldo: Sinodal, 2011; JACOBSEN, Eneida; SINNER,
Rudolf von; ZWETSCH, Roberto E. (Orgs.). Teologia pública: desafios sociais e culturais. Teologia pública
vol. 2. São Leopoldo: Sinodal, 2012; JACOBSEN, Eneida; SINNER, Rudolf von; ZWETSCH, Roberto E. (Orgs.).
Teologia pública: desafios éticos e teológicos. Teologia pública vol. 3. São Leopoldo: Sinodal, 2012;
BUTTELLI, Felipe G. K.; LE BRUYNS, Clint; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia pública no Brasil e na África
do Sul: Cidadania, interculturalidade, HIV/AIDS. Teologia pública vol. 4. São Leopoldo: Sinodal, 2014.
158
Cf. TRACY, David. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo [1981]. Trad.
Nélio Schneider. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

145
uma democracia em consolidação que conta com uma sociedade civil viva e atuante. Nela,

se inserem também as igrejas e demais comunidades religiosas.159 Por fim, o caráter

público não é novidade no cristianismo, mas está presente desde seus primórdios. Afinal,

Jesus Cristo, sua principal referência, foi crucificado publicamente como ameaça à ordem

pública.

Após esta mui breve introdução, levanto a pergunta: neste contexto de uma esfera

pública democrática, em que uma teologia trinitária poderia ajudar rumo a uma

convivência na base da confiança? Explorarei esta questão em três passos: Primeiro,

refletindo sobre a relação tão fundamental quanto ameaçada entre confiança e

convivência (1). Num segundo passo, enfocarei uma das doutrinas mais centrais e

específicas do cristianismo, a doutrina da Trindade, em relação ao conceito de pessoa e

de comunidade (2). Por fim, apresentarei quatro aspectos fundamentais para a

convivência na esfera pública hodierna, inspirados pela teologia trinitária anteriormente

desenvolvida (3).

Confiança e convivência

Em nosso dia a dia, confiamos em muitas pessoas, aparelhos, produtos,

procedimentos, sem nos darmos conta disto. Não seria possível viver nossa vida se não

pudéssemos confiar sem nos preocupar, sempre e especificamente, com cada aspecto

dela. Sem confiança não existe vida. No entanto, pesquisas parecem sugerir que não existe

confiança entre pessoas neste país. Dentre 18 países da América Latina, periodicamente

pesquisados pela organização Latinobarómetro, o Brasil aparece, consistentemente, em

último lugar. Indagadas sobre "falando em geral, você diria que se pode confiar na maioria

159
Cf. a articulação de um coletivo inter-religioso em relação ao novo marco regulatório das organizações
da sociedade civil: http://www.conic.org.br/cms/noticias/858-coletivo-inter-religioso-promove-o-3o-
seminario-relacao-estado-e-sociedade, acesso em 24 set. 2014.

146
das pessoas ou que nunca se é suficientemente cuidadoso no trato dos demais", apenas

10% dos entrevistados no Brasil (2010) afirmaram que pode, sim, confiar. A média no

continente é de 20%, sendo que a República Dominicana apresenta a porcentagem mais

alta de confiança (31%).160 Noto que isto já significa um aumento, dado que na publicação

de 2003, a taxa no Brasil foi de apenas 4%.161 Nos países escandinavos, estes números

estão por volta de 75%. O relatório de Latinobarómetro vislumbra uma possível razão

pelos números constantemente baixos: “confiar em algo [ou alguém] que não se conhece

não está de acordo com essa estrutura social parcializada que têm nossas sociedades”.162

Não é que, simplesmente, não existe confiança alguma, mas não se confia em

pessoas desconhecidas. A mesma pesquisa mostra que se confia em pessoas ao redor ou

de reconhecida habilidade - nos bombeiros (64% em toda a América Latina), nos colegas

de trabalho ou estudo (59%), nos vizinhos (50%), porém não em pessoas

desconhecidas.163

A falta de confiança nas pessoas que não representam o próprio grupo é, a meu

ver, um dos fatores mais importantes que impede a convivência mais ampla, mais

democrática. No Brasil, uma raiz do problema parece-me estar bem identificado nas

reflexões do antropólogo Roberto DaMatta.164 Segundo ele, uma mulher ou um homem é

pessoa enquanto pertence a uma “família” encabeçada por um patrão, seja este o pai, o

dono da empresa, o latifundiário, o político ou outra pessoa detentora de poder. A lei,

instrumento elementar de qualquer sociedade transparente, pressupõe, no entanto, a

160
CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Informe 2010. Santiago de Chile: Latinobarómetro, 2010. p. 72.
Disponível em http://www.latinobarometro.org. Acesso em 27 jan. 2015.
161
LATINOBARÓMETRO. Informe – Resumen. La Democracia y la Economía. Santiago de Chile :
Latinobarómetro 2003, p. 26. Disponível em: http://www.latinobarometro.org. Acesso em 27 jan. 2015.
162
Confiar en algo que no se conoce no está de acuerdo con esta estructura social parcializada que tienen
uest asàso iedades ;àLáTINOBá‘OMET‘Oà ,àp.à .
163
LATINOBAROMETRO 200 ,à p.à .à E iste à o fia zasà alà i te io à deà losà g upos,à seg e tosà deà laà
so iedadà ie t asà ueà oàe isteà o fia zaàe t eàlosàg upos,àseg e tosà/à edes ,ài id.,àp.à .
164
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 187-248; A Casa e a Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 65-95.

147
igualdade de todas e todos. Por sinal, ao pesquisar o que mais importa para ter confiança

nas instituições, surge com clareza nas respostas: “que tratem todos por igual” (50%).165

Para DaMatta, esses sujeitos da lei não seriam culturalmente pessoas, mas indivíduos,

definidos não a partir de suas relações com um patrão e demais membros da “família”,

mas a partir dos seus direitos e deveres diante da lei - portanto, como cidadãs e cidadãos.

As pessoas, por sua vez, vão dizer como Getúlio Vargas: “χos meus amigos, tudo; aos

meus inimigos, a lei!”. Aplicando esta distinção de DaMatta para nosso tema, podemos

concluir que confiança existiria apenas dentro da “família de pessoas” e não fora dela,

onde o ser humano seria abandonado à frieza da letra jurídica. O patrão é chefe numa

hierarquia, ele manda e pode dar e retirar privilégios como quiser. Mas ele também é o

pai que cuida e protege, portanto, é merecedor de confiança. Aqui, a confiança tem um

objeto claro, muito mais nítido do que quando é preciso confiar numa massa de

concidadãos que não se conhece pessoalmente, como ocorre numa democracia. Onde não

há confiança, falta o fio para costurar a sociedade e dar coesão a ela. Mas o que é, afinal,

a confiança?

Confiança é uma atitude que se mostra na própria ação. Apenas ao atuarmos com

confiança, podemos identificá-la. Eu sugiro cinco características da confiança para nos

aproximarmos deste fenômeno. Em primeiro lugar, confiar significa apostar. Eu invisto

confiança quando posso esperar, com certa probabilidade, que o outro irá honrá-la. Ao

tratar-se de pessoas com quem convivo diariamente, como familiares e colegas de

trabalho, posso acompanhar seu comportamento a longo prazo. Assim, acumulo

experiência sobre a confiabilidade da pessoa e sei em quem confiar ou não. No entanto,

como posso confiar em pessoas que não conheço? Confiança sempre implica um risco.

Minha experiência e meu saber podem ajudar-me a julgar se uma pessoa desconhecida é

165
LATINOBARÓMETRO 2003, p. 27.

148
confiável ou não. Mais complicada ainda é a confiança em pessoas que nunca encontrarei.

Qualquer sociedade funciona assim, pressupondo um nível mínimo de confiança entre

pessoas que não sabem mais uma da outra do que serem cidadãs do mesmo Estado. Neste

caso, muito depende da confiança que tenho no sistema político e jurídico do país para

fazer minha aposta. Confiar sempre significa apostar no outro, pois nunca posso ter

certeza absoluta que minha confiança será honrada.

Há aqui um segundo aspecto. Ceder confiança é um investimento prévio – perdoe-

se a linguagem emprestada do campo da economia – que faço sem conhecer ainda a

reação e o resultado. Com isto, torno-me vulnerável. Porém, confiança pode gerar

confiança exatamente por ser investida unilateralmente. Ao adiantar confiança, imponho

uma obrigação moral no outro para honrá-la, pois decepcionar a confiança que alguém

investe em mim é a pior decepção imaginável. Faz parte da confiança nos valores aceitos

na sociedade poder contar, sempre e com rapidez, com o primeiro socorro prestado por

qualquer pessoa a passar primeiro. Ao passear no mato, andar no trânsito ou em muitas

outras situações que implicam certo perigo, adianta-se confiança. A expectativa é que

alguém me socorra caso eu precisar, e não me deixe sofrer ou até morrer sem fazer tudo

para resgatar-me. Sabemos, no entanto, da experiência humana bem expressa na narrativa

do bom samaritano, no Evangelho de Lucas, que isto nem sempre acontece, e que quem

presta socorro pode ser a pessoa de quem menos se espera esta reação (Lc 10.30-35). Por

outro lado, é um velho truque fingir um acidente para aproveitar-se do impulso humano

do passante que corre para ajudar, e roubá-lo. Quando isto acontece com frequência,

diminui drasticamente a disposição das pessoas em ajudar. Desta forma, os ladrões que

se fingiram de vítimas de acidente não apenas cometeram um crime, mas sacudiram um

dos mais importantes elementos da solidariedade humana: ajudar a quem estiver em

perigo. Isto, por sua vez, reduz a vontade das pessoas em investirem confiança nas outras.

149
O exemplo do pronto socorro em caso de perigo mostra que as expectativas que

temos das ações de outras pessoas dependem de princípios éticos e regras morais

amplamente aceitos. Invisto confiança porque pressuponho que o outro partilhe comigo

certos conceitos básicos. Um princípio amplamente conhecido e aceito é a chamada

“regra de ouro”, que diz, na sua formulação bíblica no Evangelho de Mateus: “Tudo

quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque

esta é a Lei e os Profetas.” (Mt 7.12). Este princípio achou respaldo no imperativo

categórico de Kant e encontra-se em muitas éticas filosóficas ou religiosas.166 Além desta

“ética mínima”, temos exigências maiores, como indica o próprio Sermão da Montanha

do qual extraí a citação da regra de ouro. Aqui temos uma ética maior a ser seguida. Este

é um terceiro aspecto da confiança, específico para quem adere a uma crença ou ideologia

que contenha exigências éticas. Ao encontrar uma pessoa que segue uma ética maior, essa

tem direito a maior confiança, mas também é sujeita a maior cobrança. Pessoas exercendo

um ministério religioso, médicos ou psicólogos são, em geral, considerados merecedores

de alta confiança pela sua função e proposta de vida que implica uma ética profissional

muito exigente. Consequentemente, a decepção é inestimável ao descobrir que ela, por

exemplo, quebrou o sigilo profissional ou cometeu assédio sexual.

Um quarto aspecto é que a confiança é um presente, é dádiva, não pode ser

obrigação. Por isso mesmo, pode ser dada apenas por pessoas que o fazem com

convicção. Leva muito tempo para estabelecer um clima de confiança, mas pode ser

destruído num instante. Uma vez destruído, é muito difícil para ser restabelecido.

Permitam-me citar um exemplo de outro contexto que pode elucidar bem este aspecto. A

166
Uma forma do imperativo kantiano lê-seàassi :à ajaàsegu doàu aà áxima [regra ou preceito] tal que
possasà ue e à aoà es oà te poà ueà elaà seà to eà u aà leià u i e sal ,à oà o igi al:à Ha dle u a h
derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, daß sie ein allgemeines Gesetz werde .àKANT,
Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [1785]. Werke. v. IV, p. 51, trad. minha; cf. KÜNG, Hans.
Uma ética global para a política e a economia mundiais. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 178s.

150
Comissão de Verdade e Reconciliação, instalada na África do Sul após o fim do

apartheid, tentou começar este processo de volta à confiança. Ela o fez tornando pública

a verdade sobre as atrocidades cometidas, principalmente, por policiais brancos contra

pessoas negras. Enquanto conseguiu, em muitos casos, revelar a verdade, não teve o

mesmo êxito na reconciliação. Muitos policiais se manifestaram diante da comissão para

conseguir a anistia prevista para quem revelasse a verdade sobre crimes políticos. Mas

nem todos mostraram arrependimento. A Comissão conseguiu incentivá-los a dizer a

verdade, mas não pôde obrigá-los a reconhecer sua culpa e arrepender-se. No entanto,

esta postura é imprescindível para a reconciliação. Do mesmo modo não se pode obrigar

alguém a confiar. A confiança funciona apenas quando dada na gratuidade. É dádiva.

Pode ser restabelecida apenas se, pelo menos, um dos atores, por livre vontade, resolver

investir de novo no outro.

Por fim, não é aconselhável confiar de modo ingênuo. A confiança procura ser

informada, cautelosa. Confiar na pessoa errada ou no momento errado pode ter

consequências desastrosas. Portanto, é preciso ler os sinais que possam indicar um perigo.

Obviamente, nem sempre é possível detectar a má intenção da pessoa que requer nossa

confiança. É com experiência e um olho atento à realidade que nos cerca que aprendemos

a lidar, até certo ponto, com este problema, mas não é possível evitá-lo por completo.

Confiança permanece como risco, investimento unilateral, dádiva livre. Concedamos que

certa confiança é imprescindível, também, entre assaltantes de banco, traficantes de

drogas e outros criminosos. Muito provavelmente, esta confiança é regida mais pela lei

ferrenha que o crime impôs do que pela livre vontade dos participantes, mas ainda assim

é confiança, talvez a única que os implicados chegaram a experimentar em sua vida.

Evidentemente, visto numa perspectiva mais ampla, esta confiança serve para um fim que

destrói em vez de construir sociedade. Portanto, repito, não basta a confiança em si, mas

151
esta confiança precisa ser inserida num sistema maior de valores e princípios éticos que

visam o bem-estar de todas as pessoas. Estes valores e princípios precisam ser

reconhecidos pela sociedade para que se possa garantir a confiabilidade das pessoas. Na

medida em que posso esperar os outros honrarem minha confiança, estou mais disposto a

concedê-la. Se eu fosse o único a confiar, e a se comportar de forma confiável, ficaria

sozinho com todo prejuízo. No entanto, se posso pressupor que, a princípio, todos irão

cumprir o necessário para honrar a confiança, tenho boas razões para confiar nos outros.

Convém encerrar esta parte com uma breve reflexão sobre convivência. Num nível

primário, ela significa simplesmente o fato de que, como seres humanos, não vivemos

sozinhos. Faz parte do nosso ser coexistirmos com outros homens e outras mulheres. É

inevitável o contato diário com vizinhos, colegas de estudo, funcionários da empresa de

ônibus, vendedoras de padaria, professoras e professores e muitas outras pessoas. É,

inclusive, um dos aspectos mais prazerosos da condição humana: viver relações. Portanto,

além do simples fato de coexistir, é preciso buscar moldar e orientar esta coexistência

para se tornar convivência, “vizinhança assumida” (Gottfried ψrakemeier). E onde não

há confiança, não é possível convivência neste sentido. É de se lamentar que as igrejas

que prosperam, especialmente nas periferias das cidades, não fomentam, via de regra, a

confiança, mas exacerbam a competição e semeiam a desconfiança. O desafio específico

é de sair da restrição da confiança para com meus familiares, amigos e irmãos de igreja

para ser estendida a todas e todos com quem coexisto em determinado contexto, visando

à convivência. Na medida em que esta confiança possa estar baseada em regras e valores

aceitos por todos, sejam estes escritos - na constituição e nas leis - ou de costume geral,

torna-se mais seguro confiar. Mas se a lei é vista como a-pessoal, cabendo apenas aos

indivíduos perdidos, como nos apresenta Roberto DaMatta, então não é possível criar esta

confiança sistêmica. É claro que tal desconfiança também está baseada em experiências

152
ruins de gerações para com o poder público ausente ou, ele mesmo, repressor e

explorador. As coisas vêm mudando, mas temos um longo caminho a percorrer.

A teologia luterana oferece aqui um recurso interessante. Ela, inicialmente,

desconfia sempre do ser humano. Apesar de justificado pelo Cristo diante de Deus, ele

continua pecador, na famosa fórmula simul iustus et peccator, ao mesmo tempo justo e

pecador. São perspectivas diferentes: o ser humano é justo in spe, na esperança, olhando

para Deus, e é pecador in re, de fato, na realidade, olhando para a humanidade. Esta

postura fez com que muitos acusassem o luteranismo como sendo pessimista. Contudo,

antes de pessimista, é realista: vivemos numa situação onde não há como afastar o mal, o

sofrimento. Ele continua como realidade. Estamos numa situação de profunda

ambiguidade. “Ninguém aqui é puro, anjo ou demônio” canta Sandra de Sá em “ψye, bye,

tristeza”. Há igrejas que tentam fugir disto dizendo que apenas a volta do Cristo trará

algum benefício para este mundo, e que até lá tudo estaria perdido. Outras igrejas fazem

o inverso: pretendem abolir o sofrimento: “Pare de sofrer”, aqui e agora. χ teologia

luterana vai num outro caminho. Reconhece a existência do sofrimento e quer cuidar das

pessoas que sofrem. Com toda desconfiança diante dos seres humanos pecadores, baseia-

se na confiança em Deus. A palavra grega para confiança, pistis, traduzimos, em geral,

como fé. No Antigo Testamento, o equivalente é o grupo de palavras ligadas a 'amn,

palavra que conhecemos de cada culto cristão: “χmém!” “Firme!”. O verbo significa

“estar firme, confiar, ter fé, crer”.167 Portanto, a confiança e os conceitos afins têm

destaque muito grande na Bíblia, sendo ligadas à própria fé. Sobre ela, Martinho Lutero

diz no seu Catecismo Maior, ao explicar o primeiro mandamento “não terás outros

deuses” (Ex 20.3):

167
WILDBERGER, Hans. 'mn, in: JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theologisches Handwörterbuch zum
Alten Testament. 4. ed. München, Zürich: Chr. Kaiser, Theologischer Verlag, 1984. v. 1, p. 178. Nesta
família de palavras também se encontram a emuna (fidelidade, sinceridade) e a emet (verdade).

153
Deus designa aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos

refugiar-nos em toda apertura. Portanto, ter um Deus outra coisa não é senão

confiar e crer nele de coração. [...] Fé e Deus não se podem divorciar. Aquilo,

pois, a que prendes o coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus.168

A fé como confiança é baseada na promessa de Deus. A promessa é primeira, e a

resposta humana é a fé-confiança. Assim, a criação do mundo, na visão cristã, não é uma

criação apenas abstrata, de longa data, genérica. Faz crer o crente que Deus o criou,

individualmente. Cito do Catecismo Menor de Lutero, quando explica o início do Credo

Apostólico:

Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra. Que significa isto?

Creio que Deus me criou junto com todas as criaturas, e me deu corpo e alma,

olhos, ouvidos e todos os membros, inteligência e todos os sentidos, e ainda os

conserva; além disto, me dá roupa, calçado, comida e bebida, casa e lar, família,

terra, trabalho e todos os bens. Concede cada dia tudo de que preciso para o corpo

e a vida; protege-me de todos os perigos e guarda-me de todo o mal. E faz tudo

isso unicamente por ser meu Deus e Pai bondoso e misericordioso, sem que eu

mereça ou seja digno. Por tudo isso devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e

obedecer-lhe. Isto é certamente verdade.169

A fé insere a pessoa humana na comunhão com Deus, e a partir dela, com outros

seres humanos. Ela ultrapassa fronteiras religiosas, sociais e de gênero: “Não há mais

nem judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o

homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 3.28). Portanto, a

confiança também chega a dar-se além de determinados grupos e procura superar as

168
LUTERO, Martinho. Catecismo Maior. In: Livro de Concórdia. Trad. e notas de Arnaldo Schüler. 5. ed.
São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997, p. 394s.
169
http://www.luteranos.com.br/textos/catecismo-menor-martim-lutero, acesso em 23 set. 2014.

154
desigualdades, criando uma nova convivência entre iguais. É notório que as igrejas, ao

longo da história, muitas vezes reforçaram desigualdades e exclusividades em vez de

superá-las. Isto ficou evidente no conto do grande inquisidor. Mas, pelo menos, elas

convivem com o desafio constante de Deus que chama a uma ética da confiança mútua

que pressupõe a igualdade. Cito da carta aos Efésios:

(...) vivei a vossa vida de acordo com o chamamento que recebestes; em toda

humildade e mansidão, com paciência, suportai-vos uns aos outros no amor;

aplicai-vos a guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e

um só Espírito, do mesmo modo que a vossa vocação vos chamou a uma só

esperança; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos,

que reina sobre todos, age por meio de todos e permanece em todos. (Ef 4.1-4)

Além de esboçar virtudes éticas dignas de nota, o autor desta carta menciona,

sutilmente, o Deus como Trindade: um só Espírito, um só Senhor, o que remete a Jesus

Cristo, e um só Deus e Pai de todos. Aproveito para passar, assim, para meu segundo

ponto.

A Trindade: pessoa e comunhão

A doutrina da Trindade é uma das mais enigmáticas do cristianismo, mas também

uma das mais ricas. Como toda teologia, é uma tentativa de dizer o não dizível, o divino,

com palavras humanas. É impossível e, ao mesmo tempo, imprescindível fazê-lo. Para

tanto, precisamos de metáforas, de imagens, de analogias. Há imagens mais interessantes

e outras menos. Há, inclusive, imagens que se autodeclaram como tal, apontando para o

caráter em muito metafórico da teologia.170

170
Refiro-me ao quadro de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606- :à áàsag adaàfa íliaàat sàdaà
o ti a à ueàseàe o t aà asàStaatliche Kunstsammlungen em Kassel/Alemanha; cf. BAHR, Petra. Von der
Befreiung der Bilder. In; CAMPI, Emidio; OPITZ, Peter; SCHMID, Konrad (Hg.). Johannes Calvin und die
kulturelle Prägekraft des Protestantismus, Zürich 2012, 45-55, às p. 52-54.

155
É conhecida a chamada analogia psicológica de Aurélio Agostinho: como o ser

humano é criado à imagem e semelhança do trino Deus, ele refletiria em si esta trindade

como memória, inteligência e amor (memoria, intelligentia, amor).171 Este tipo de

analogia reforça a ideia da unidade dinâmica de uma pessoa enquanto indivíduo,

compatível com a posterior definição de Boécio (ca. 480-524): persona est individua

substantia rationalis naturae (a pessoa é a substância individual da natureza racional).

Como tentativa de superação desta individualização da pessoa, temos a teologia do

franciscano Ricardo de São Vítor que utiliza como analogia da Trindade a relação entre

quem ama, quem é amado e o próprio amor entre eles. Surge aqui uma analogia social,

um conceito de pessoa como ser-em-relação, que é retomada no século XX por autores

como Leonardo Boff.

“χ Trindade é nosso verdadeiro programa social” constitui a linha principal da

argumentação na teologia da Trindade elaborada por Leonardo Boff. Ele é herdeiro, entre

outros, do pensador russo Nikolai Feodorov (1828-1903).172 Com esta linha de

pensamento, Boff se opõe claramente a uma imagem de Deus que denota um monarca

celestial que se refletiria diretamente em um monarca mundano: Um só Deus, Um só

Império, Um só Rei. Esta oposição provém das experiências negativas que ele teve com

estruturas hierárquicas na sociedade e na igreja, estruturas que suprimem, em seu ríspido

autoritarismo, a liberdade e a criatividade. Nisto, se torna parceiro de Dostoievski.

Retoma Erik Peterson, que concluiu que a implementação plena da teologia trinitária

pelos padres capadócios, no século IV, teria rompido radicalmente com qualquer

“teologia política” que abusasse da proclamação cristã para legitimar um regime ou

sistema político. Não há, segundo Peterson, quaisquer vestigia trinitatis (traços ou

171
Cf. HILBERATH, 60.
172
FEODOROV, Nikolai F. The Restoration of Kinship Among Mankind. In: SCHMEMANN, Alexander (ed.).
Ultimate Questions: An Anthology of Modern Russian Religious Thought. London and Oxford, 1977, p.
175-223; cf. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000.

156
reflexos da Trindade) na sociedade humana. Embora tenha sido formulada como uma tese

histórica, numa publicação chamada de “O monoteísmo como problema político”, de

1935, Peterson de fato quis atingir a “teologia política” de suporte ao Terceiro Reich,

promovida entre outros por Carl Schmitt. Importa acrescentar que aquilo para o qual tanto

Peterson quanto seus seguidores apontam é, de fato, menos uma crítica ao “monoteísmo”

do que de uma imagem “monárquica” de Deus, na medida em que uma crítica teológica

semelhante pode ser facilmente identificada no monoteísmo israelita – lembremos apenas

das constantes críticas dos profetas contra seus reis. O que eles querem enfatizar é que

Deus é um ser-em-relação comunitário, e não um soberano hierárquico-monárquico.

Mais especificamente, Boff identifica três formas de interpretações monárquicas

equivocadas da Trindade na América Latina. Na sociedade colonial e rural (feudal), ele

identifica uma “religião só do Pai” centralizada no patrão que detém poder absoluto. Em

um contexto mais democrático, o líder carismático e militante passa para o primeiro

plano, onde Jesus seria visto como “nosso irmão” ou “nosso chefe e mestre”, constituindo

a “religião só do Filho”. Por fim, onde prevalecem a subjetividade e a criatividade, como

em grupos carismáticos, enfatiza-se a interioridade, e ela pode, em seu extremo, levar ao

fanatismo e anarquismo. Esta última forma seria a “religião só do Espírito”.173 Boff

sublinha que todos os três aspectos são importantes, sendo vistos como referências para

“cima” (origem), para os “lados” (nossos semelhantes) e para a “interioridade” (nossa

própria pessoa), sendo a Trindade a forma adequada de pensar os três aspectos em

conjunto.

De forma semelhante, Boff critica o modelo hierárquico da Igreja Católica Romana

como sendo contrário à trindade de Deus. A lógica de: Um só Deus, Um só Cristo, Um

só Bispo, Uma só Igreja Local está, pois, errada. A igreja, como sacramento da Santíssima

173
BOFF, 1986, 26-29.

157
Trindade, deve ser vista como communio (comunhão) e não como potestas sacra (poder

santo). Boff pensa no nascimento de um novo ser da igreja através de uma

“eclesiogênese” a partir das comunidades eclesiais de base (CEψs).174 Diferentemente de

Peterson, Boff afirma que há, sim, vestigia trinitatis que se encontram neste mundo. A

comunhão triúna que é comunhão-em-diversidade criou o ser humano como um ser

comunitário, e também toda a natureza como comunitária, colocando-os em liberdade e

acolhendo-os na comunhão da Trindade no fim dos tempos, no eschaton. Isto torna

possível que os seres humanos possam (e, de fato, deveriam) refletir a comunhão triúna

entre si, numa comunhão que respeite diferenças e promova relações comunitárias: “χ

comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo significa o protótipo da comunidade

humana sonhada pelos que querem melhorar a sociedade e assim construí-la para que seja

à imagem e semelhança da Trindade”, afirma ψoff.175

Retomando a antiga noção de perichoresis (pericórese, interpenetração), Boff

descreve como as três pessoas da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, ao mesmo tempo

estão unidos em seu amor recíproco e são diferentes em sua “individualidade”. É claro

que isso imediatamente abre o acalorado debate sobre o significado concreto de “pessoa”

e a relação entre o “individual” e o “coletivo”. De qualquer forma, diferente de

“indivíduo”, “pessoa” carrega consigo fortemente o elemento da relação.

Os próprios termos e suas conotações divergentes indicam que não podemos deduzir

facilmente a forma da sociedade humana descrevendo Deus como sociedade, nem induzir

o ser de Deus a partir da sociedade humana. Pessoas humanas estão em relação, mas são

pessoas claramente separadas entre si, são indivíduos em sua singularidade. Já as pessoas

divinas não estão separadas, apenas diferenciadas entre si, assumindo diferentes

174
Cf. BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: as Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja. Petrópolis:
Vozes, 1977; E a Igreja se fez povo: eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo. Petrópolis: Vozes,
1986; Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas: Verus, 2004.
175
BOFF, 1986, p. 17.

158
qualidades e, por assim dizer, tarefas, mas sempre como um só Deus, sem

individualização. Esta problemática nos exige cautela ao estabelecer analogias entre a

comunhão de pessoas divina e a humana. A perichoresis divina e a perichoresis humana

– se é que o termo é adequado para denotar a comunidade humana – não são unívocas,

mas analógicas. É necessário enfatizar isso para os dois lados, para preservar Deus como

Deus e os seres humanos como seres humanos. Portanto, se, como Peterson e seus

seguidores afirmam, Deus não deve ser usado para legitimar um governo monárquico, ele

tampouco pode conceder caráter divino aos três poderes da democracia representativa,

como foi sugerido por alguns autores na década de 1950, na base dos arquétipos da

psicologia jungiana.176 Assim, a Trindade sustentaria a triplicidade do poder público

enquanto executivo, legislativo e judiciário. Outro exemplo, bem mais velho, mostra a

arbitrariedade que se instala em tais analogias diretas: “Cremos na Trindade, e coroamos

três imperadores”, disseram em 669/70 soldados bizantinos ao proclamarem os irmãos de

Constantino IV co-imperadores.177

Boff insiste na participação de Deus no mundo e na participação do mundo em

Deus. “O mundo possui uma destinação eterna: ele é que será o corpo da Trindade, em

sua dimensão cosmológica, pessoal e histórico-social.”178 A relação entre Deus e o mundo

é, portanto, não somente uma relação analógica, no sentido de que o Deus trinitário seja

um modelo para a sociedade humana e para a igreja, mas também uma relação ontológica.

Na medida em que a criação procede, no início, do Pai através do Filho no poder do

Espírito Santo, “a partir da força transformante do Espírito através da ação libertadora do

176
A ponte teórica para essa interpretação foi a teoria dos arquétipos de Carl Gustav Jung, que Boff
também usa com frequência; veja MARTI, Hans. Urbild und Verfassung: Eine Studie zum hintergründigen
Gehalt einer Verfassung. Bern/Stuttgart, 1958; IMBODEN, Max. Die Staatsformen: Versuch einer
psychologischen Deutung staatsrechtlicher Dogmen. Basel, 1959.
177
Tradução própria: A die D eiei igkeit glau e i , d ei Kaise k ö e i , citado em GRESHAKE,
Gisbert. Der dreieine Gott: Eine trinitarische Theologie. Freiburg: Herder, 1997, p. 470, nota 95.
178
BOFF, Leonardo. Nova evangelização: perspectiva dos oprimidos [1990]. 4. ed. Fortaleza: Vozes, 1991.
p. 63.

159
Filho o universo chega, finalmente, ao Pai”.179 Já na criação, podemos acrescentar, a

Trindade assume um caráter público: tudo que existe é visto como feito por ela. 180 No

Filho, o Deus trino se autorrevela publicamente como é, precisamente como trí-uno. E o

Espírito Santo está presente nos momentos públicos da igreja: “19 E, quando vos

entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora, vos será

concedido o que haveis de dizer, 20 visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de

vosso Pai é quem fala em vós” (Mt 10.19-20). Em perspectiva escatológica, tudo virá a

público: “Portanto, nada julgueis antes do tempo (kairos), até que venha o Senhor, o qual

não somente trará à plena luz (photizo) as coisas ocultas das trevas, mas também

manifestará (phaneroo) os desígnios dos corações” (1 Co 4.5). Jesus chamou a assumirem

sua pertença a ele em público (homologeo, confessar, assumir), e que “nada há encoberto

que não venha a ser revelado (apokalypto); e oculto que não venha a ser conhecido

(ginosko)” (Lc 12.2). χfirma a biblista Luise Schottroff: “Da publicidade do juízo de

Deus resulta a necessidade de adentrar e tornar pública a fé agora”.181 É esta a perspectiva.

Vamos agora ver o que isto pode significar para uma esfera pública contemporânea.

Trindade e esfera pública

Em vez de analogias mais diretas, sejam psicológicas ou sociais, enfatizarei quatro

aspectos a partir de um Deus Trindade ser-em-comunhão que creio serem fundamentais

para a contribuição das igrejas para a democracia, motivados pela fé: alteridade,

participação, confiança e coerência.

179
BOFF, 1986, p. 278.
180
Cf. WELKER, Michael. O Espírito de Deus: Teologia do Espírito Santo [1992]. Trad. Uwe Wegner. São
Leopoldo: Sinodal, 2010. p. 232- à áàpessoaàpú li aàdoàEspí ito:àDeusàe à eioà à iaç o .
181
„Aus de Öffe tli hkeit des Gottesge i htes e gi t si h au h die Not e digkeit, jetzt it de Glau e
i die Öffe tli hkeit zu gehe ; SCHOTTROFF, Luise. Unsichtbarer Alltag und Gottes Offenbarung. In:
Jahrbuch für Biblische Theologie, vol. 11, p. 123-133, 1996, à p. 131.

160
Um primeiro aspecto central é a alteridade. A pluralidade implica diversidade, e a

comunidade em uma democracia é impensável sem reconhecer a singularidade de cada

membro da sociedade. Por isso, o respeito da alteridade, o reconhecimento da diferença

e o direito de ser diferente são essenciais. É necessário para preservar a singularidade de

cada pessoa e seu direito à diferença, incluindo a diferença religiosa. Ela preserva o

mistério e procura a compreensão, como acontece na teologia que tenta descobrir e, ao

mesmo tempo, respeitar o mistério de Deus como triúno, unidade na diferença. Desde os

primórdios da tradição judaico-cristã, Deus se afirma como presente e ao mesmo tempo

ausente. Não revela seu nome, para que ninguém possa ter poder sobre ele. Revela-se, na

sarça ardente diante de Moisés, como verbo: “Eu sou aquele que será”, ou “Eu sou aquele

enquanto qual me revelarei” (Ex 3.14). É um Deus que se mostra presente na história, o

Deus que libertou seu povo do Egito, mas que não se esgota em sua revelação. Como diria

Lutero, há o Deus absconditus, o Deus escondido, o Deus mistério atrás do Deus

revelatus, do Deus revelado. Para nossa confiança, importa o Deus revelado, Deus que se

mostrou a si mesmo tornando-se humano em Jesus. A fé-confiança se baseia nesta

revelação. Mas Deus é muito mais, não se deixa aprisionar em nossos conceitos, em

nossas palavras. Do mesmo jeito, a pessoa humana não deve ser objeto de posse de

outrem, nem que seja por parte dos pais, do parceiro, da parceira, da ou do terapeuta. E

por mais que busquemos compreender a pessoa humana, ela sempre permanece como

mistério, sempre permanece abscôndita além de revelada.

Um segundo aspecto é a participação. Em termos de teologia trinitária, o aspecto

da participação descreve bem a ideia da interpenetração, perichoresis. Em termos

humanos e sociais, a participação é central para o discurso sobre a convivência na

sociedade civil. No Brasil, ele está implícito na luta por cidadania. Cidadania é, em

161
primeiro lugar, o “direito de ter direitos” em uma situação de “apartheid social”.182 Em

um sentido mais amplo, como a maioria dos autores o usam, este conceito inclui a real

possibilidade de acesso a direitos e a consciência dos deveres da pessoa. Inclui, ainda, a

atitude diante do Estado constitucional como tal, bem como a constante configuração e

extensão da participação dos cidadãos na vida social e política de seu país. Aspectos da

participação efetiva do cidadão estão, pois, se tornando centrais, assim como a cultura

política pela qual esta participação é estimulada ou impedida. As igrejas e outras

organizações religiosas, como parte da sociedade civil, têm um papel importante a

desempenhar neste estímulo da participação dos cidadãos e elas efetivamente o fazem,

inclusive com um número de membros e uma efetiva participação muito maiores do que

qualquer outro tipo de organização voluntária. Em termos ideais, elas funcionam como

escolas para a democracia, pois formam pessoas dentro de suas próprias estruturas. É aqui

que a pessoa humana pode, além de encontrar ouvidos atentos, afeto e cuidado, também

ser incluída na comunidade com seus dons e desenvolvê-los, aprimorando sua autoestima

e aprendendo habilidades práticas. Especialmente as igrejas pentecostais, ativas entre a

população mais vulnerável e marginalizada, conseguem ter efeitos significativos de

transformação aqui.

Um terceiro aspecto é a necessidade de confiança, já destacada na primeira parte

desta conferência. As disfunções da democracia brasileira não são somente uma questão

de corrupção e clientelismo entre políticos e funcionários do Estado, como muitos

pensam. Trata-se, também, de uma séria falta de confiança na democracia como sistema,

bem como nas pessoas que são portadoras dela, a saber, o conjunto da sociedade. É claro

que a experiência histórica não contribuiu muito para dar a impressão de que as coisas

poderiam funcionar melhor e de que o Estado e o sistema seriam efetivamente dignos de

182
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: (ed.).
Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, 1994, p. 108, 105.

162
confiança. A confiança, porém, é algo que tem que ser investido antes de se saber qual

será o resultado. Em uma sociedade democrática, torna-se necessário confiar nas pessoas

de uma forma bastante abstrata, pois jamais conhecerei a maioria de meus concidadãos.

Para que a democracia funcione, tenho que pressupor que as outras pessoas tenham um

interesse semelhante no seu funcionamento. Se este interesse comum não puder ser

pressuposto e se um número considerável de concidadãos, especialmente aqueles que

detêm mais poder do que eu, não se mostram dignos de confiança, faz-se necessária uma

razão mais profunda para ainda estar disposto a investir confiança. Esta razão pode ser

dada pela fé, que essencialmente significa confiança – não em si mesmo, mas em Deus.

Deus visto como triúno pode dar boas razões para investir confiança na democracia,

mesmo onde ela for ameaçada: Deus mesmo preserva a continuidade em meio a situações

históricas diferentes, altamente ambíguas onde ele se manifesta da forma mais central na

cruz de Gólgota, e empodera pessoas para viver suas vidas procurando ser justas, embora

saibam que são inescapavelmente pecadoras.

Por fim, um quarto elemento necessário é a coerência: ter um projeto para o todo

da sociedade e não apenas para si ou o grupo de seus pares ou inclusive a sua igreja. O

mercado religioso altamente competitivo, com uma diversidade sempre crescente de

igrejas e movimentos religiosos, está dando um testemunho muito triste de tal

(in)coerência. Teologicamente falando, insistir numa visão trinitária de Deus poderia

ajudar a impedir compreensões restritivas equivocadas, como se Deus fosse somente

Espírito Santo e não também Filho, encarnado em Jesus Cristo, e Pai, como criador. Este

equilíbrio de uma unidade e diversidade em Deus tende a fomentar koinonia, que é a

palavra ecumenicamente central para designar a comunhão entre os diferentes membros

do corpo de Cristo.183 Em termos da sociedade como um todo, esta integração de unidade

183
Cf. TILLARD, Jean-Marie R. Koinonia. In: LOSSKY, Nicholas et al. (eds.). Dicionário do movimento
ecumênico. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 691-695.

163
e diversidade poderia, se bem-sucedida, representar uma importante contribuição das

igrejas para uma sociedade pluralista. Isto pressupõe que os cristãos e as igrejas não

procurem, como infelizmente acontece com muitos políticos evangélicos no Brasil,

primordialmente obter vantagens para suas respectivas igrejas, mas vejam sua missão

como um testemunho de serviço (diakonia) para o todo da sociedade.

Desta maneira, não fazendo deduções e induções diretas, mas identificando

características de Deus como Trindade, a doutrina da Trindade, particularmente a

metáfora da perichoresis, que aponta para um Deus amoroso, dinâmico e coerente, pode

servir como um vigoroso subsídio teológico para que as igrejas contribuam

significativamente, como parte da sociedade civil, para a construção de uma sociedade

respeitadora, participativa, confiante e coerente.

É essa a dimensão pública da fé trinitária: para a teologia cristã, Deus não está alheio

a este mundo, afastado e intocável, mas ele interage de forma apaixonada com este

mundo. Apesar de ser um mundo que, em muito, se afastou daquilo que Deus pretendeu

para ele, o amor do Deus trino não o abandona. Para tanto, enviou seu filho, Jesus o Cristo,

para revelar este seu amor, torná-lo público. O próprio Cristo “esvaziou-se” do seu ser

Deus, encarnando-se em Jesus de Nazaré. Como canta o hino de Filipenses, ele é

obediente até a morte na cruz. χssim, ele revela o amor de Deus: “χ kenosis de Deus na

cruz do Cristo revela Deus [...] como evento trinitário, cuja essência consiste no amor que

sofre”, dizia o teólogo alemão Moltmann.184 É o pathos não patológico de Deus.

184
Apud DABNEY, Lyle. Die Kenosis des Geistes: Kontinutät zwischen Schöpfung und Erlösung im Werk
des Heiligen Geistes. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1997. p. 61: „Die Ke osis Gottes a K euz Ch isti
offe a t Gott […] als t i ita is hes Ges hehe , desse Wese i de leide de Lie e esteht.

164
CORPOPROPRIAÇÃO EM MICHEL HENRY: O TRABALHO CLÍNICO

Maristela Vendramel Ferreira185

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Núcleo de Pesquisas e

Laboratório Prosopon

E-mail: maristelavf@hotmail.com

Resumo: Michel Henry, filósofo francês, propôs o conceito de corpopropriação para

referir-se ao corpo próprio que, em uma relação encarnada e sensível com a natureza e o

com mundo os transforma e, nesse processo, no agir, apropria e transforma a si mesmo.

O objetivo desse trabalho é discutir o conceito de corpopropiração em Michel Henry e,

mais especificamente, a corpopropriação que ocorre com o terapeuta ao desenvolver seu

trabalho clínico na relação terapêutica com o paciente.

Palavras-chave: corpopropriação; trabalho clínico; fenomenologia; psicologia; corpo.

BODYPROPRIATION IN MICHEL HENRY: THE CLINCAL WORK

Abstract: The french philosopher Michel Henry has created the concept of

bodypropriation186 referring to the own body which, in an incarnated and sensible

relationship with the nature and with the world transform them and, in this process, in

action, appropriates and transforms himself. The objective of this work is to discuss the

concept of bodypropriation of Michel Henry and, more specifically, the bodypropriation

185
Pós- doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da USP (CAPES/PNPD).
186
The original term, created by Michel Henry in french, is o psp op iatio or corps-propriation
(Henry, 1987).

165
that happens to the therapist who develops his clinical work in the therapeutical

relationship with his patient.

Keywords: bodypropriation; clinical work; phenomenology; psychology; body.

Introdução

Corpopropriação é um conceito criado por Michel Henry em sua fenomenologia

da vida. A corpopropriação é a apropriação que o Eu faz de si mesmo no agir, considerado

como gesto pessoal deliberado, poder de se exercer e de criar, na relação encarnada com

o a vida em si, com o outro e com o mundo (Henry, 1987).

O estudo da corpopropriação e seu papel na constituição do si mesmo, na

psicopatologia e compreensão da prática clínica que se desenrola na relação entre duas

pessoas, o terapeuta e o paciente, surgiu na interlocução com a filósofa Florinda Martins,

tradutora, herdeira e pesquisadora da fenomenologia da vida de Michel Henry. De acordo

com o próprio Henry (2002, p. 9), em prefácio ao livro de Florinda Martins Recuperar o

Humanismo – para uma fenomenologia da alteridade em Michel Henry, o trabalho da

filósofa é fundamental, desenlaçando “uma outra fenomenologia, pois avança em uma

nova concepção de alteridade”, sendo muito mais que “um simples desenvolvimento da

fenomenologia clássica”. Nesse desenlace a questão do corpo tem um papel determinante.

Essa rica interlocução resultou na elaboração de novas questões para investigação

interdisciplinar entre psicologia e filosofia. Ela é fruto da participação nos projetos em

rede internacional O que pode um corpo?, entre 2011 e 2013, e Corpo e afetividade:

Michel Henry no pensamento lusófono/ibero-americano, iniciado em 2013 - ambos sob

a coordenação da filósofa Florinda Martins da Universidade Católica Portuguesa -, como

pesquisadora de pós-doutorado, sob supervisão dos Prof. Andrés Antúnez e co-supervisão

da Profa. Florinda Martins, no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de

166
Psicologia USP187. Desse modo, este trabalho, do ponto de vista filosófico, alinha-se

teoricamente à fenomenologia da vida da Michel Henry, em leitura e desenvolvimento

criado por Florinda Martins, nas investigações acima mencionadas e em suas inúmeras

publicações.

O ponto de vista da psicologia, configurou- a partir de Gilberto Safra, que edificou

sua obra em diálogo com Winnicott e autores russos, como Dostoiévsky, Berdayev e

Florensky. Permeado pela necessidade de assentar o trabalho clínico sobre os

fundamentos da constituição do si mesmo, Safra, nos livros A po-ética na clínica

contemporânea (2004), A face estética do self (2005) e Hermenêutica na situação clínica

(2006), posiciona que o atendimento ao paciente, para ser efetivo - preservar ou resgatar

o ethos humano - e evitar iatrogenia, deveria poder contemplar o fenômeno humano em

sua condição ontológica, estendendo-se além do psiquismo e incluindo a corporeidade.

Tomar essa posição e abordar a pessoa em sua condição originária e não apenas como

um sujeito psicológico portador de aparelho psíquico acometido por transtornos, demanda

de nós, clínicos, abertura e disposição para buscar interlocuções interdisciplinares, não

nos restringindo somente a conhecimentos específicos da psicologia e da psicanálise.

Requer, também, que revisitemos a noção de corpo e seu papel na constituição da

subjetividade, pois é inegável sua relevância para clínica, tanto no que se refere à

constituição da pessoa e à psicopatologia, quanto à própria relação terapêutica,

fundamental ao desenvolvimento de qualquer tipo de atendimento clínico.

187
Agradeço a supervisão de pós-doutorado do Prof. Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, que possibilitou
a pesquisa em trabalho conjunto com a Profa. Dra. Florinda Martins.

167
Portanto, o objetivo desse trabalho é discutir o conceito de corpopropiração em

Michel Henry e, mais especificamente, a corpopropriação do terapeuta que desenvolve

seu trabalho na relação terapêutica com o paciente.

Corpo

A leitura de Descartes, predominante em nossa compreensão de corpo até os dias de

hoje, é a da separação entre corporeidade e psiquismo. A cultura ocidental e as ciências

de modo geral, nelas incluídas a psicologia, a psicanálise e a medicina, desenvolveram-

se nessa perspectiva. Na psiquiatria, geralmente imperam as concepções

mecânicas/materialistas. Esta visão reducionista considera as manifestações psíquicas

oriundas exclusivamente dos processos biológicos e o corpo decorrente apenas de eventos

bioquímicos, excluindo a subjetividade (Ferreira & Antúnez, 2014).

Em Freud, e como consequência na maioria das vertentes psicanalíticas, prevalece o

paralelismo psicofísico, no qual os processos somáticos e psíquicos se afetam

reciprocamente, sendo, contudo, considerados como instâncias dicotomizadas (Smith,

1985)188.

Entretanto, Florinda Martins (2014) ressalta que podemos identificar no cogito

cartesiano – em releituras realizadas por Michel Henry e Jean Luc Marion - o anúncio de

uma fenomenalidade do sentir atribuída ao ego e ao corpo. A autora cita a hesitação de

Descartes, investigada por Jean Luc Marion: “estarei eu de tal forma unido a um corpo

dotado de sentidos que não possa existir sem ele?” (p. 25).

188
Afetaram e limitaram a obra de Freud a influência dos pressupostos do paradigma hegemônico na
modernidade – a cisão entre corpo e psique, a redução do psiquismo à racionalidade e o corpo concebido
metaforicamente como máquina. Embora nos textos da virada ele traga o Id como enraizado no corpo e
reconheça o afeto como central à constituição psíquica, estes conceitos foram pouco articulados com o
restante do corpo teórico, que permaneceu enraizado na perspectiva hegemônica moderna. (Plastino,
2007, citado em Ferreira & Antúnez, 2014).

168
Christophe Dejours, em entrevista realizada por Benoît Kanabus (no prelo), como

parte das atividades do nosso grupo de investigação coordenado por Florinda Martins a

ser publicado no Dossiê A fenomenologia da vida de Michel Henry e a psicologia clínica

na Revista de Psicologia da USP, comenta que para os teóricos da psicanálise, neles

inclusos os da psicossomática, o corpo é reduzido ao corpo biológico. Ressalta, contudo,

que quanto mais graves as patologias psíquicas, mais a questão do corpo torna-se

indispensável. Bebendo da fonte do filósofo Michel Henry, afirma que nas neuroses mais

graves e nas psicoses189, o fato de sermos um corpo, de termos um corpo que se prova a

si mesmo e que é condição da revelação da vida, coloca-se de forma aguda e mostra a

indispensabilidade de lidarmos com o mesmo (Dejours, no prelo).

A partir de inúmeros casos clínicos, Cotta (2010), em sua tese de doutorado, discute

a fundamentalidade da corporeidade na clínica contemporânea. Utiliza-se da teoria de

Donald Winnicott, da perspectiva teórica desenvolvida por Gilberto Safra, e de sua grande

experiência clínica, para dar corpo ao seu trabalho psicoterapêutico e de pesquisa.

Na busca de interlocução e conhecimento sobre os fenômenos humanos originários e

o corpo, o filósofo Michel Henry traz contribuições fundamentais. Elas têm possibilitado

reflexões, nova compreensão, aprofundamento e caminhos para pensarmos nossa prática

clínica e de pesquisa190 (Ferreira e Antúnez, 2014a, Ferreira, no prelo).

Gilberto Safra (no prelo), discute essa contribuição de Henry para a prática clínica na

atualidade em artigo a ser publicado na Revista Psicologia da USP no Dossiê A

189
A esse respeito ver Dejours, C. (2014).O corpo entre psicanálise e fenomenologia da vida. In: Antúnez,
Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs) Fenomenologia da Vida
de Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia, pp. 197-224. São Paulo: Escuta.
190
Neste congresso apresentei em mesa redonda parte de minha pesquisa de pós-doutorado no trabalho
intitulado O corpo em Michel Henry: passagem da afecção para corpopropriação, no qual discuto o
processo de passagem da autoafecção para a corpopropriação. Todos os trabalhos apresentados nesta
mesa sobre Michel Henry serão publicados em conjunto posteriormente.

169
fenomenologia da vida de Michel Henry e a psicologia clínica. Afirma a relevância de

considerarmos a questão do corpo nesta perspectiva, tanto para compreensão dos quadros

psicopatológicos contemporâneos, como na condução do trabalho terapêutico, já que este

ocorre no registro da intercorporeidade entre terapeuta e paciente.

A contribuição da fenomenologia da vida de Michel Henry para a compreensão do

corpo em sua perspectiva de ontologia fenomenológica

Michel Henry (2000), em Incarnation, dialóga com Condillac e Maine de Biran,

discutindo a encarnação em uma abordagem humana, distante do cientificismo, no qual

o corpo é apenas o biológico, e das teses naturalistas que permeiam a filosofia

intelectualista e moralista tradicionais. Concebe o corpo como subjetivo, invisível, e

denomina-o carne. A carne que é sempre carne de alguém. Lida com o corpo da

necessidade, do desejo e da abertura ao outro, afirmando que não há “mais a inocência de

um movimento da matéria, pois não é um simples deslocamento transcendente que

poderíamos considerar, de certo modo, neutro do ponto de vista espiritual, ela se oferece

às categorias éticas. Os corpos serão julgados.” (Henry, 2012, p. 268).

Desse modo a corporeidade para Michel Henry não diz respeito à uma imagem

corporal projetada, nem é uma ideia para ser pensada. O corpo não é sua representação,

mas consiste em uma prova encarnada, uma experiência (Dejours, no prelo) do

sentimento e da ação de si. Nas palavras de Maine de Biran, um corpo subjetivo e que é

o ego (Henry, 2012, p.21). Ego que se desenvolve a partir do Eu, ipseidade originária

doada na Vida (Henry, 1963). A partir de Biran, Michel Henry nos mostra que a revelação

da existência de si mesmo ocorre por meio do sentimento de esforço. Nele eu me sinto,

na apercepção interna imediata da força que eu exerço e que se prova na resistência,

170
totalmente interior, do meu corpo próprio. O sentimento de esforço acontece quando

realizamos os movimentos subjetivos em nossa carne, sendo que estes podem ou não

tornarem-se movimentos do corpo no mundo. Em Philosophie et phénoménologie du

corps, 1965, Michel Henry postula que somos seres do movimento subjetivo e em

Incarnation, 2000, denomina este movimento originário do ego, movimento

absolutamente imanente de esforço, como auto movimento (Devarieux, 2014).

Portanto, para Michel Henry (1987), somos seres subjetivos, sensíveis e

corpopropriados.

Florinda Martins (no prelo), reitera um conceito fundamental da fenomenologia

da vida: nossa essência se manifesta como afetividade em nosso corpo. Nas afecções e

inerentemente à elas, podemos nos sentir nelas envolvidos, apropriando-nos delas e

podendo agir, corpopropriados. A corpopropriação, portanto, é um fenômeno específico

na fenomenolidade do vínculo vida-vivo e que pode se extender à fenomenalidade da vida

que atravessa os processos bioquímicos constitutivos do nosso viver. A autora tece uma

crítica a Michel Henry e a fenomenologia, pois estes não desenvolveram a questão

referente aos processos bioquímicos, ficando suas leis sujeitas ao domínio das ciências

biológicas e de uma objetividade mortífera que nos transforma em objetos.

Corpopropriação

Em La barbarie (1987), Michel Henry conceitua a corpopropriação como a

apropriação que o corpo, por meio do trabalho vivo, faz do mundo, transformando-o.

Neste processo de corpopropriação ele não apenas se assenhora e transforma a natureza,

mas a si mesmo.

171
Nesse sentido, o saber-fazer (tekhne), “a possibilidade, em princípio, da ação, e

desse modo, de toda ação concebível, reside na práxis, encontrando sua essência na vida

e na Corpopropriação original da natureza” (Henry, 2012a, p. 86). Desse modo, na

perspectiva henryana, a técnica ou a ação do homem no mundo - no contexto da clínica a

práxis terapêutica que se efetiva na relação entre terapeuta e paciente - funda-se na vida

e realiza-se por intermédio de uma relação corpopropriada com o outro e com a natureza.

Desse modo, a relação intersubjetiva se dá entre corpos subjetivos que se afetam

mutuamente.

Kanabus (2014) relata que o conceito de corpopropriação foi, ao longo da obra de

Michel Henry, assumindo um papel cada vez mais determinante. Ele responde à

motivação mais antiga de Michel Henry: “apreender no corpo subjetivo o fundamento do

aparecer no mundo” (p. 101). χ partir do pensamento de Henry e fiel a ele, Christophe

Dejours desenvolveu o conceito de corpopropriação no contexto da psicodinâmica do

trabalho.

Dejours (2012a), afirma que este corpo subjetivo, constituído a partir do biológico,

que se apropria do mundo, conforme o conceito de corpopropriação de Michel Henry, é

(...) o corpo no qual moramos, o corpo que se experimenta efetivamente, o corpo

no qual está engajada também a relação com o outro: gestos, mímicas, suores,

tremores, sorrisos, etc., [...] à disposição do sentido e da vontade de agir sobre a

sensibilidade do outro [...] E é bem este mesmo corpo da experiência a mais íntima

e da relação com o outro, que é convocado a trabalhar. O que é, convenhamos,

uma descoberta surpreendente da clínica do trabalho. (p.30-31)

Dejours (2012a, p.31) prossegue afirmando que este processo de corpopropriação

do mundo e da ação sobre ele, da técnica, envolve “a subjetividade como um todo” e que

172
“a partir do instante em que ela se dissocia aparece o espectro da doença mental”. χ

dificuldade reside no fato de que, para haver corpopropriação, é necessário que a pessoa

possa “ser habitada pelo sofrimento do trabalhar, da resistência e das evasões do mundo

ao seu poder e ao seu domínio”. Longe de simplesmente ser limitado ao tempo dispensado

nos escritórios e fábricas, o trabalho mobiliza toda a personalidade do indivíduo. A

habilidade desenvolvida ao trabalhar enriquece e transforma a pessoa, além de poder

trazer realização. Ela ocorre por meio do corpo, do sentir, em todos os tipos de trabalho,

desde o funcionário da fábrica, que desenvolve intimidade com a máquina que opera e a

sente como extensão de seu corpo, até o piloto de caça e o terapeuta191.

Nesse sentido, Dejours retoma o conceito de corpropriação de Michel Henry,

utilizando-o para compreender o trabalho em geral e para desenvolver o conceito de

inteligencia do trabalho, que também se aplica à prática do terapeuta. De forma similar

ao marceneiro, ao músico e ao piloto de avião, a inteligência do trabalho, desenvolvida

por intermédio da corpopriação, ocorre no labor desse profissional. Ela diz respeito à uma

sensibilidade que se desenvolve, não apenas quando se acompanha e observa o paciente,

mas quando se acolhe as afecções que ocorrem em seu próprio corpo no encontro com

ele (Dejours, no prelo).

Em atendimento clínico realizado durante três anos à uma criança portadora de

deficiência auditiva profunda, sem o uso de linguagem oral ou de sinais – o paciente não

falava e eu não dominava a língua de sinais – vivenciei a possibilidade da realização do

trabalho terapêutico no registro da relação intercorpórea. Esta relação ocorria no brincar

e no manejo, sem o uso da palavra, mas pelo intermédio do corpo e da afetividade, em

uma linguagem não verbal emocionalmente significativa, que permitiu a construção de

191
No contexto desse artigo terepeuta refere-se ao profissional que faz atendimento clínico, ou seja, o
psicólogo, psicanalista ou psicoterapeuta.

173
um vínculo e o estabelecimento de um ambiente terapêutico suficientemente bom para

que o paciente se desenvolvesse. Após três anos de psicoterapia ele diminuiu

consideravelmente sua agressividade e agitação, conseguia participar e ter um

aproveitamento satisfatório tanto nas sessões de fonoaudiologia quanto na escola e

relacionava-se melhor com as outras crianças e com a família (Ferreira e Antúnez, 2014a).

Durante a psicoterapia com este paciente, o desafio era, em adesão à vida,

movendo-me com ele, dar sustentação e condições para a modalização de seus afetos, de

modo que pudesse constituir-se, acrescer-se de si e desenvolver-se, diminuindo seu

sofrimento e possibilitando comportamentos mais sintônicos e vantajosos para si. Para

que o atendimento e a comunicação fossem possíveis, o registro intercorpóreo foi

fundamental. O trabalho terapêutico foi realizado em corpopropriedade, em

consentimento e abertura para a afecção, em presença encarnada, para que o seu

sofrimento pudesse ser modalizado em fruição de si. Neste processo, difícil, vivido na

carne e fortalecedor, acresci-me de mim e desenvolvi-me junto com o paciente (Ferreira

e Antúnez, 2014a).

A atitude terapêutica de ser presença real para o paciente, como discute em seu

trabalho Vera Marinho Carvalho (2001), só é possível de ser colocada em prática de forma

encarnada. Presença e atitude não só para o paciente, mas do terapeuta em relação a si

mesmo, presença corpopropriada.

Como ressalta Florinda Martins (2014a, p.75): “o resultado do meu trabalho

pertence-me porque me aproprio de mim no trabalho que faço; o que no trabalho lhe é

próprio é a apropriação que de mim faço ao efetivá-lo: o resultado do meu trabalho

implica-me nele!”

174
Portanto, o terapeuta que trabalha de modo sensível o faz por meio de seu corpo

vivo, em posse de seus poderes, em corpopropriação. É o terapeuta presente que pode

acolher os sentimentos e as sensações em seu corpo e pode agir e criar a partir deles na

relação terapêutica. O paciente, por sua vez, apresenta suas paixões, seu sofrimento e sua

alegria também em seu corpo, um corpo com poder de sentir, de se exercer e de criar, ou

seja, de corpopropriar (Ferreira & Antúnez, 2014).

Desse modo, na fenomenologia da vida o corpo assume um papel fundamental na

questão da constituição da subjetividade e da relação com o outro. Ambos se realizam no

corpo, que é subjetivo, carne, que eu sou, e na relação intercorpórea com a alteridade e

com o mundo. E é nesse registro intersubjetivo de pathos-com, intercorpóreo, que a

relação terapêutica entre o terapeuta e o paciente se estabelece (Ferreira & Antúnez,

2013).

A partir das proposições acima colocadas inicialmente por Michel Henry e

seguidas por Dejours (2012), poderíamos dizer que o trabalho realizado pelo terapeuta,

na relação com seu paciente, pode ser considerado como uma práxis corpopropriada, que

acontece no corpo e no sentir, implicando a subjetividade como um todo, sendo “o corpo

como um todo, e não apenas o cérebro, o fundamento da inteligência e da habilidade no

trabalho” (p.27).

Esse processo, além de contribuir para a constituição do si mesmo do terapeuta,

permitir o desenvolvimento da inteligência e habilidade no trabalho, pode propiciar a

produção de conhecimento.

Dejours (2012a, p. 43) ressalta que o processo de subjetivação ocorre no “corpo a

corpo” e diz respeito às condições e maneiras como nos apropriamos do mundo como

“experiência afetiva do corpo e não como representação cognitiva”, como uma forma

175
particular de comunicação que “não passa pelas palavras, nem por discursos constituídos,

mas por uma simbiose com o mundo e com a resistência que este último opõe aos poderes

do corpo”. Nesse sentido, podemos endereçar, também, a produção de conhecimento.

Enfatiza Dejours (2012a):

Na esteira do que já adiantou Michel Henry, acredito que a subjetivação do mundo –

que passa primeiro por uma “corpopropriação” do mundo – é a condição sine qua

non de todo conhecimento, até mesmo o conhecimento científico. É mediante a

corpopropriação do mundo que este pode ser “revelado”, pode “manifestar-se”

enquanto fenômeno. (p. 44)

Para Michel Henry (1987), o modelo de racionalidade científica principiada por

Galileu, que excluiu o sensível e a corpopropriação, foi desenvolvido posteriormente por

Decartes e prevalece até os dias de hoje. Florinda Martins (2014a) reitera que o resultado

desse modelo é a barbárie, estabelecida não somente pela “anulação da corpopropriação

da racionalidade científica, mas ainda da sua instituição em ideologia. Isto é, ela não

apenas exclui o sensível da racionalidade científica, com ainda a institui como única

racionalidade possível (Martins, 2014a p.75).

Podemos, desse modo, ponderar sobre o papel da corpopropriação na produção

científica nas áreas da psicologia e psicanálise. Vamos tomar, como exemplo, o trabalho

de Gilberto Safra, que embasa este artigo. Safra parte de Winnicott - mantendo

interlocução com as obras de Dostoiévsky, Berdayev e Florensky- acolhe e se

corpoapropria de sua teoria. No corpo a corpo do trabalho cotidiano, no embate com a

176
vida, no sofrimento e fruição, nas vivências clínicas coms seus pacientes, na sensibilidade

e racionalidade constituida no afeto, transforma essa teoria em perspectiva própria192.

Gilberto Safra, a partir de seu trabalho clínico e científico, demonstra que a ciência

pode desenvolver-se a partir de uma prática subjetiva corpopropriada a partir de suas

vivências particulares transformadas em criação, em expressão original e pessoal.

Portanto, não é mera reprodução mas criação, um saber fazer e um saber como fazer que

se realizam de forma viva, pela práxis, incluindo a objetividade e a racionalidade

constituídas no afeto193.

A corpopropriação, portanto, refere-se não somente ao assenhoramento de si na

relação com o mundo, a natureza, o trabalho. Não é somente controle e poder. Diz respeito

à possibilidade de criar a partir de si próprio e, nesse movimento constituir-se e constituir

o mundo a partir dessa criação.

Para finalizar, ressalto a relevância das noções de corpo postuladas por Michel Henry

para a clínica psicológica, pois nelas são estabelecida: a relação direta e indissociável

entre afetividade e corporeidade; a fundamentalidade do corpo na constituição do si e na

intersubjetividade; a importância dos jogos de força e resistência vividos no corpo,

sentidos como esforço, e que nos possibilitam a percepção de nossa existência em nosso

corpo próprio e a corpopropriação, não só como assenhoramento de si mas como criação,

como gesto pessoal, na relação com o outro e com o mundo.

Referências

192
Como podemos verificar em seus livros A po-ética na clínica contemporânea, A face estética do self e
A hermenêutica na situação clínica (Safra, 2004; 2005 e 2006).
193
Termo cunhado por Florinda Martins e discutido no Colóquio Internacional Michel Henry na
Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, 2012.

177
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180
PSICANÁLISE E LITERATURA: VISITANDO IMRE KERTÉSZ

José Alberto Cotta194

Instituto de Psicologia da USP

E-mail: josecotta@usp.br

Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós.

Mia Couto

Resumo - Neste trabalho abordarei uma questão que identifico estar presente

massivamente na prática psicoterápica contemporânea, qual seja a do desterro humano

(por desterro humano refiro-me, não ao exílio provocado por situações políticas, nem por

migrações decorrentes de guerras ou situações econômico/sociais calamitosas, mas, sim,

a uma série de sentimentos e comportamentos vividos pelo indivíduo, originados por

sensações de não ter vínculo com o humano e de não pertencimento: a si mesmo, a

seu corpo, à família, à comunidade, ao país e ao mundo em geral), realizando um

diálogo entre a experiência clínica e a literatura de Imre Kertész, escritor Húngaro e

Prêmio Nobel de Literatura de 2002. Mencionarei que a questão do desterro humano está

diretamente relacionada à busca sem fim pela identidade, e irei expor minha hipótese de

194
Pós-Doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Clínica da USP, sob
supervisão do Prof. Titular Gilberto Safra. Doutor em Psicologia Clínica – USP, é Bolsista da FAPESP e
membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon do Departamento de Psicologia Clinica do
Instituto de Psicologia da USP, coordenado pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Tem artigos publicados em
livros e revistas nacionais e estrangeiras, é conferencista em seminários e congressos no Brasil e no
exterior.

181
que o desterro humano não é da ordem da psicopatológica, mas, isto sim, uma questão

inerente à natureza humana, à condição humana e à própria ontologia do Ser.

Palavras-chave: desterro humano; Literatura; Imre Kertész; identidade.

PSYCHOANALYSIS AND LITERATURE: VISITING IMRE KERTÉSZ

Abstract: In this work, I shall bring up a question that I identify to be massively present

at our contemporary clinical experience: the human exile (as human exile I am referring

not to the exile provoked by political situations, nor to migrations derived from wars or

catastrophic socio/economical situations, but to a series of feelings and behaviours of the

individual, originated by sensations of not belonging to the human race as well as not

being bounded to: oneself, his body, his family, his community, his country and to

the word in general), through a dialog between the clinical experience and the literature

of Imre Kertész, a Hungarian author and the 2002 Literature Nobel Prize. I shall mention

that the issue of the human exile is directly related to the endless quest for identity, and I

shall expose my hypothesis that the human exile does not belong to the psychopathology

field, but is inherent to the human nature, to the human condition as well as to the ontology

of the human being.

Keywords: human exile; Literature; Imre Kertész; identity

Introdução

Antes de abordar as questões do desterro humano e da busca incessante pela

identidade e relacioná-las com a obra literária de Imre Kertész, parece-me oportuno

mencionar a relação entre a literatura e a psicanálise, bem como dizer algumas palavras

sobre o significado e a função da literatura.

182
Literatura e Psicanálise

A relação entre a Psicanálise e a Literatura é tão antiga quanto a própria

Psicanálise. Haveria muito o que se dizer sobre esse tema, mas restringindo-me aos

objetivos desse trabalho, ressalto o fato de que Freud se utilizou de diversos textos

literários para desenvolver e, mesmo, legitimar muitos dos conceitos que criou, inclusive

a parte metafísica de sua obra, como nos demonstram Pontalis & Mango (2012/2013, p.

70), em seu livro Freud com os escritores.

Freud reconheceu que muito dos fenômenos que observava na clínica já tinham

sido anteriormente descritos por escritores. Em alguns casos, décadas e mesmo séculos

antes dele. Um dos muitos exemplos é o Complexo de Édipo, um dos constructos

fundantes da Psicanálise, o qual ele o desenvolveu apoiando-se em Hamlet, de

Shakespeare, e Oedipus Rex, de Sófocles.195 Outro fundamental conceito seu, o do

parricídio,196 teve seu desenvolvimento também apoiado em uma obra literária, Os irmãos

Karamazov, de Dostoievski. Nesse texto de 1928, ele, inclusive, aborda as diferenças que

entende existir sobre a noção do parricídio nessas três citadas obras desses autores.

Fica evidente o grande valor que Freud (1976 b) dava aos escritores quando

formula

E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser

levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas

entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.

Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se

nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (p. 20).

195
Cf. Freud, 1976 a; 1987.
196
Cf. Freud, 1961.

183
O que é a Literatura? Qual sua função?

Caberia, agora, perguntar: mas, o que é a literatura, qual sua função? Para

responder a tais perguntas, recorro a dois escritores.

O primeiro é Tatiana Salem-Levy, finalista do Prêmio Jabuti de 2008 e Prêmio

Zaffari & Bourbon de Literatura de 2009; o segundo, José Castello, laureado com o

Prêmio Jabuti de 2011, pelo seu livro Ribamar, uma espécie de Carta ao pai, de Kafka,

do século XXI. Professor de literatura, crítico literário e articulista do caderno Prosa &

Verso do jornal O Globo, dele, citarei excertos retirados de algumas de suas colunas

semanais publicadas no referido periódico.

De Tatiana Salem-Levy (2007/2013), de seu livro A chave de casa, cito:

Nasci no exílio, e por isso sou assim, sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida,

áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra – mas, afinal, quem sou

eu? Que terra é a minha? (p.24).

Queria voltar a andar, encontrar o meu caminho. E me parece lógico que se eu

refizesse, no sentido inverso, o trajeto de meus antepassados ficaria livre para

encontrar o meu. (p. 26).

[...] ando em busca de um sentido, um nome, um corpo. (p. 12).

Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco. Insisto

na dor, pois é ela que me faz escrever. (p.64).

Já em José Castello (2013 b) encontramos:

A literatura nasce assim: de um lugar desconhecido, com propósitos não

controláveis e intenções obscuras. O escritor acha que caminha numa direção,

quando caminha em outra. Tateia [...] em busca de algo que não consegue pegar.

184
A partir dessa ignorância de si, o escritor [...] segue em busca de uma identidade

que teima em lhe escapar e, por fim, se dá conta de que é um dândi – um “lorde”-

perdido em um mundo estrangeiro. O vazio é a possibilidade de acolhimento de

uma prosa que o preencha. Tudo o que lhe resta é seguir em frente. A criação se

torna assim um destino, e não um ponto de partida. Uma meta, e não uma escolha.

(p.5).

Sobre a poesia, assim se indaga e responde:

O que é a poesia? Como defini-la? De onde, afinal, ela vem? “O verso é um doido

cantando sozinho./ Seu assunto é o caminho. E nada mais!/ O caminho que ele

próprio inventa”, responde Mário Quintana.

O poeta trabalha na dobra: um conhecer que é, ao mesmo tempo, desconhecer.

Uma descoberta que é, ao mesmo tempo, susto.

O poeta arremeda [...] a sina de Arthur Bispo do Rosário, o artista que se sentia

obrigado a colecionar uma peça de cada coisa existente para que elas

sobrevivessem ao fim do mundo. Fixar para perdurar. Emoldurar (escrever) para

não morrer. A palavra como um sinônimo de eternidade. No mais, sobra uma

memória em farelos, com mais coisas trancadas do que abertas. (p. 5).

Do livro “Meus desacontecimentos – χ história da minha vida com as palavras”,

de Eliane Brum, Castello (2014) destaca a seguinte frase da autora: “χ palavra escrita me

encaixou em um corpo onde eu podia viver. O corpo-letra”. Sobre essa obra, comenta:

Toda história contada é um corpo que pode existir. É uma apropriação de si pela

letra-marca de sua passagem pelo mundo. A escrita é sempre uma tentativa de

remendar aquilo que não tem conserto. {...] funciona como uma cola que vem

remendar aquilo que se esfarelava. (p. 5).

185
Em outro artigo em que reflete sobre a poesia, Castello (2013 a) nos diz:

É do abismo que o poeta retira seu potencial. É do vazio – só depois de atravessar

um deserto imenso – que ele, enfim, [...] torna-se dono de si, mesmo sabendo que

este “si”, na verdade, não lhe pertence. Ele é só uma pequena rolha com a qual ele

venda o horror da inexistência. (p.5).

Ao tomar posse do que não é seu (ao inventar-se), encontramos, enfim, um

sentido. Encontramos, ou inventamos? Dá no mesmo. É do abismo [...] que

partimos para construir um sentido. Ergue-se sobre nada. Não tem fundamentos.

Um vento pode derrubá-lo a qualquer momento. No entanto, é seu. (p.5).

O poeta se apresenta, “em vão”, ao abismo. É um mundo sem estampas e sem

firmamentos. É, talvez, uma “metáfora do mal”. Pensem em nosso mundo

contemporâneo, cheio de artefatos e de acontecimentos. [...] Estamos todos conectados –

em celulares, em tablets, em e-books, em laptops, em satélites. A grande rede nos

agasalha. Mas é preciso não esquecer: por mais vasta que seja a rede, ela é sempre feita

de furos.

Nos furos, o vazio. Nos furos, o lugar em que o poeta se posta e se apresenta [...]

O vazio, o poeta nos diz, é só uma construção que nos agarramos. É só uma

hipótese, e dela sobrevivemos. (p.5).

Castello finaliza esse artigo fazendo uma previsão:

[...] se há um caminho para o futuro, é a poesia quem o desenha. Resistência do

humano, em um mundo no qual tudo contra ele conspira. Resistência do abismo,

que nós, humanos, carregamos no peito. E que, enfim, é a marca – é o galardão –

de nosso ser. (p.5).

186
O desterro na clínica

Há muito que observo na prática clínica a existência massiva de uma condição de

desterritorialidade emocional e psíquica,197 fenômeno clínico esse que, em trabalho

anterior (Cotta, 2003), digo que nos

[...] é comunicado pelos pacientes das mais variadas formas: em suas vivências

de não terem uma identidade própria, nas sensações de viverem fora do corpo,

de não terem um corpo, de viverem o corpo como algo estranho a si mesmos,

de se perceberem como que falando de fora do corpo - como uma outra pessoa

-, bem como quando diante de situações em que se sentem ameaçados, nos dizem

que seu eu se esvaiu, ou que seu eu não estava lá. (p.1).

Ainda nesse trabalho, digo que é como se me deparasse com casas vazias, onde

o morador evadiu-se. Sumiu e ninguém sabe para onde. De vez em quando, ele volta,

habita a casa e depois se vai, de novo. São como corpos sem alma, sem mente, sem

psique.

O contrário, também, ocorre: muitas vezes, só há a alma, a mente, a psique. Aí, é

o corpo que se esvai, se vai. Só há o morador de uma casa inexistente, que perambula

por ruas vazias, algumas vezes sombrias e fétidas, outras vezes, ele nos surpreende com

sua mente brilhante, com sua pintura magnífica.

Independente da forma como manifeste sua experiência de desterro, o indivíduo

está sempre a se viver como um homeless. Não tem para onde ir, não tem para onde

voltar. “Estou à deriva”, conta-me um paciente. O que está à deriva é a identidade pessoal,

o sentido e o destino da existência, assim como bem o explicitou uma paciente: “Não sei

197
A questão do desterro humano e sua relação com a corporeidade na clínica contemporânea foi por
mim desenvolvida extensamente em minha tese de doutorado. Cf. Cotta, 2010.

187
quem eu sou, não sei o que fazer, não sei para onde vou”.

Quero, agora, ressaltar um aspecto que considero fundamental sobre o que

estamos aqui abordando: independente do fato de não se verificar sua existência em

qualquer quadro nosográfico, é minha convicção que a questão do desterro humano não

é da ordem da doença, da psicopatologia. Inclusive, são recentes e raras as obras da

literatura especializada que abordam esse tema, ainda que assim não o denominem, como

é o caso das pesquisas de Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas, desenvolvidas na Chicago

School, sob o nome de Psicologia da Imigração.198

Outro exemplo vem de Philippe Lacadée,199 psicanalista Francês, cujo livro O

despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a

adolescência, é dedicado a suas pesquisas com adolescentes.

O autor que há muito vem trabalhando sobre o tema do desenraizamento humano

é Gilberto Safra, com quem compartilho o entendimento de que o desterro humano não é

uma questão da ordem da psicopatologia, mas, sim, inerente mesmo à condição humana,

à natureza humana, e à ontologia do Ser.

Kertész e a vulnerabilidade humana

Kertész tornou-se um mestre para mim, na medida em que sua literatura

contempla de forma profunda e mesmo poética as questões do desterro humano, da busca

198
Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas apresentaram, respectivamente, os trabalhos Immigration to the
United States: Experiences of Survivors of State-Sponsored Torture e Immigration Psychology: Anti-
immigrant Attitudes in the United States and the Impact on Latino/a Families, em Abril passado, no
Seminário Psicanálise e Literatura: Visitando Imre Kertész, realizado no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo – USP, organizado por mim e pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Seus trabalhos,
bem como os demais apresentados no referido seminário, estão sendo por nós organizados, visando sua
publicação em e-book.
199
Cf. Lacadée, 2011.

188
incessante pela identidade e da importância fundamental do outro para a constituição do

si-mesmo, questões essas que não encontro ou pouco encontro descritas e pensadas na

literatura psicanalítica.

Citarei, agora, algumas passagens de sua obra, em que a questão do desterro

humano está poeticamente explicitada, com o objetivo de poder demonstrar que a leitura

de seus textos pode nos ajudar a compreender profundamente a questão do desterro

humano e a busca sem fim pela identidade, questões tão presentes na clínica

contemporânea. Passemos a ele:

Heureca é o título que Imre Kertész deu a seu pronunciamento por ocasião do

recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 2002, publicado em seu livro que tem o

sugestivo título de A língua exilada (Kertész, 2004). Ele, assim, inicia seu discurso:

Devo começar com uma confissão, talvez estranha, mas sincera. Desde que

embarquei no avião para vir receber aqui, em Estocolmo, o Prêmio Nobel de

Literatura deste ano, senti o olhar estranho, fixo, de um observador imparcial às

minhas costas; e mesmo neste momento solene, quando me vejo como foco das

atenções, eu me sinto mais próximo desse observador frio que do escritor cujo

trabalho, de súbito, é lido em todo o mundo. Só posso esperar que a fala que terei

a honra de pronunciar nesta ocasião especial ajude a desfazer a dualidade e

unificar os dois eus que vivem em mim. (p.9)

Suas últimas palavras nesse pronunciamento são:

Em suma, eu morri uma vez, para que pudesse viver – e talvez seja essa a minha

verdadeira história. Se assim for, dedico meu trabalho, nascido da morte de uma

criança, aos milhões que morreram e a todos os que ainda se lembram deles.

Porém, como estamos falando de literatura, da espécie de literatura que, no

189
entender da Academia, é também testemunho, ela ainda pode ter utilidade no

futuro, e – e este é meu desejo – poderá mesmo servir ao futuro. Porque sinto que,

ao refletir sobre o impacto traumático de Auschwitz, acabo chegando às questões

fundamentais da vitalidade e da criatividade do homem de hoje; e, ao pensar em

Auschwitz dessa forma, eu penso, talvez paradoxalmente, não no passado, mas

no futuro. (pp. 19-20)

Kertész dedica seu ofício a desvelar a condição humana. Esse escritor Húngaro

faz de sua obra uma reflexão sobre a existência, a morte, a identidade e a escrita. Diz ele

(Kertész, 1979/2007):

A mitologia moderna começa com um negativo gigantesco: Deus criou o mundo,

e o homem criou Auschwitz. (p.138)

Embora tenha me criado no nada e tenha aprendido desde pequeno com a pura

razão, ou antes, com o meu senso comum a adaptar-me ao nada, mover-me e achar

meu caminho dentro dele, pois ele representava para mim a vida, na qual eu

deveria saber me virar, coisa que, sendo um menino, não foi mais difícil do que

aprender a falar. (pp. 142-143)

Ele carrega na pele experiências de Estados, sociedades e de relações objetais não

reconhecentes, onde há o império da coisificação do outro e daquilo a que Hanna Arendt

(1962/1990) chamou de “banalização do mal”: sobreviveu às atrocidades de χuschwitz-

Birkenau, Buchenwald e Zeitz, para onde fora deportado aos quinze anos; no pós-Guerra,

novamente a experiência de ser tratado como coisa, desta feita, sob a ditadura comunista

da Hungria; no âmbito das relações objetais, viveu sob o domínio de um pai autoritário e

de uma família cínica. Em Liquidação (Kertész, 2005), outro título também muito

sugestivo, nos diz

190
Vivemos na era das catástrofes, todo homem é portador da catástrofe, e para a

sobrevivência se faz necessária uma arte peculiar da sobrevivência. O homem do

tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O

meio social terrível – o Estado, a ditadura, chame-o como quiser – o seduz com a

força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e

nele exploda o caos como um gêiser fervente – e a partir de então o caos se torna

sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma

certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais

verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro Mal. De

novo se tornam válidos os dizeres da Bíblia: resista à tentação, evite conhecer-se,

porquê, se o fizer, estará danado”. (Kertész, 2005, pp. 48-49).

É notável a semelhança entre tudo isso e a resposta que Silenos foi obrigado a dar

ao rei Midas: ‘... χ melhor coisa para você seria não ter nascido, não ser nada. χ

segunda melhor coisa, porém, seria morrer o quanto antes. (p. 139).

Em Kaddish, por uma criança não nascida (Kertész, 1990/2002), ele começa o

livro com um retumbante “Não!”. Nessa obra, ele explica suas razões para negar-se a ser

pai, ainda que ao preço da enorme dor de separar-se de A., sua mulher amada. Nesse

texto, ele expõe sua visão de que Auschwitz, a ditadura comunista húngara e sua família

de judeus ortodoxos se igualam no que diz respeito a tratar o outro como nada, como

ninguém. Daí se compreende a contradição do título - Kaddish, por uma criança não

nascida -, pois Kaddish, do aramaico sagrado, é uma reza tradicional judaica em

homenagem aos mortos...

191
Já em Eu, um outro (Kertész, 1979/2007),200 uma espécie de autobiografia em que

relata suas muitas viagens, mas não como um mero turista, e, sim, num certo sentido,

como um pesquisador da condição humana, diz ser um eterno exilado, more onde morar,

esteja onde estiver. Fala-nos que não tem ninho; que tem pátria, mas não a tem:

É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde

justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um novo lar. (p.88)

Vivo como um exilado. Nesse único aspecto vivo corretamente: sou um exilado.

(p. 75)

Kertész sabe que tem língua materna, mas sua língua é estrangeira:

A língua – sim, ela é a única coisa que me mantém ligado a ele. Como é estranho.

Essa língua estrangeira, minha língua materna. Minha língua materna, que me

ajuda a entender meus assassinos. (p.35)

Ele se pergunta “quem sou eu?”, mas sabe que não é possível responder tal

pergunta:

Às vezes, ocorre-me a pergunta (impossível de responder): quem sou eu? O que

sou eu? E qual é a minha história? (p.30)

O ‘Eu’ é uma ficção na qual, no máximo, podemos ser co-autores. ‘Eu é um

outro’. (Rimbaud) (p.14)

Que tipo de judeu sou afinal? Nenhum. Há muito tempo não estou mais à procura

de minha pátria, nem de minha identidade. Sou diferente deles, sou diferente dos

outros, sou diferente de mim. (p. 155)

200
A respeito desse livro, há uma excelente critica elaborada por Tatiana Salem Leví. Cf. Leví, 2008.

192
Às vezes, quase tenho que me arrancar do refúgio sossegado do meu anonimato,

quando ouço falar ou vejo escrito o nome I. K., mas sei que nunca vou me

identificar com ele. (p.15)

Vocês não vão querer de mim que declare claramente minha nacionalidade,

religião e raça? Vocês não vão querer de mim que eu tenha uma identidade?

Então, vou contar para vocês: tenho uma única identidade, a identidade do

escrever. (uma identidade que se escreve a si mesma).

De resto, quem sou eu? Quem é que poderia saber? (73)

Ele termina seu anteriormente citado livro Eu, um outro, assim explicitando o

desterro em que se encontrou após a morte de AnaMária, sua mulher amada:

Minha história desprendeu-se de mim: de repente, perco o equilíbrio como

alguém que perdeu seu caminho e, entre passado e futuro, escapuliu do tempo.

Mais tarde, vou me reerguer penosamente dessa queda e seguir a voz persistente,

a palavra que, por detrás dessa neblina cinzenta que me circunda agora, me chama

para viver de novo. Neste momento, porém, não sei de nada, não entendo nada,

estou, por assim dizer, no limiar da vida e da morte, com o corpo inclinado para a

frente, em direção à morte, com a cabeça ainda voltada para trás, em direção à

vida, com o pé que se levanta, hesitante, para dar um passo. Em que direção irá?

Não importa, porque aquele que dará o passo, não será mais eu, será um outro...”.

(p. 173)

193
Conclusão

Concluindo, do que aqui conversamos espero ter podido demonstrar três

principais hipóteses:

1) o desterro humano é uma experiência em que o individuo se sente

pendendo diante da própria experiência de si, como bem o definiu

Safra (2014);201

2) além de desvelar a condição humana, os escritores têm a capacidade

dar um destino a seu desterro;

3) aprendendo com os escritores, podemos neles nos espelhar para ajudar

a nós mesmos e a nossos pacientes a destinar as experiências de

desenraizamento humano.

Para finalizar, dentro do espírito de interdisciplinaridade deste congresso, gostaria

de ofertar a vocês a audição de uma música, tendo o entendimento de que a capacidade

de dar destino ao desenraizamento humano não é uma exclusividade dos escritores.

Muitos compositores o fazem e o fizeram, como o Húngaro György Ligeti, considerado

um dos maiores compositores do século XX, cuja trajetória de vida tem semelhanças com

a de Kertész: filho de uma família judia, sua mãe escapou de Auschwitz, mas nem seu

pai, nem seu irmão tiveram a mesma sorte. Perseguido e proibido de executar suas

composições pela ditadura comunista Húngara, refugiou-se na Áustria, tornando-se

cidadão Austríaco. Sua obra é baseada na experiência de desterro humano e no defrontar-

se com o medonho. Colocarei para vocês ouvirem um trecho de um concerto seu

intitulado Luz eterna, cantada a 16 vozes, por A Capella Amsterdam, Daniel Reuss e

Susanne Van Els. Espero que a apreciem. Muito obrigado.

201
Informação verbal fornecida por Safra, em São Paulo, em 2014.

194
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196
A CONTRIBUIÇÃO DE PAVEL FLORENSKY PARA A SITUAÇÃO CLÍNICA.

Gilberto Safra

Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo

E:mail: iamsafra@usp.br

Resumo: Esse trabalho se propõe a abordar a situação clínica, sem referencia à

metapsicologia. Ele é decorrente de uma prática clínica fundada em um olhar

fenomenológico, que busca colher as experiencias que aparecem no espaço clínico sem o

excesso de teorização e que auxiliem o devir do sentido de si do paciente. O modelo

antropológico utilizado é o do homem que tem o seu fundamento no gesto criativo, que

ao abrir possibilidades existencias, também forma a sua possibilidade de ser. Homem

enraizado na liberdade que acontece como desamparo diante de sua existencia. O texto

aborda a contribuição que Florensky apresentou em seu livro intitulado A Perspectiva

Inversa, como referente hermeneutico da situação clínica. A persperctiva inversa permite

o desvelamento de outros registros de realidade, dando acesso a profundidades, que nem

sempre a perspectiva linear possibilita. Como referentes da perspectiva inversa na

situação clínica, o artigo apresenta os seguintes pontos: a existencia de centros multiplos,

a coexistencias de diferentes planos, a organização da composição que converge para o

olhar da pessoas que contempla a obra.

Palavras-Chave: clínica; fenomenologia; Florensky; perspectiva inversa.

197
PAVEL FLORENSKY CONTRIBUITION TO THE CLINIC SITUATION

Abstract: This work approaches the clinical situation, without using metapsychology as

a reference. It results from a clinical practice founded on a phenomenological look, which

seeks to collect the experiences that appear in the clinical situation without excessive

theorizing, with the aim of assisting the establishment of the patient´s sense of self. The

anthropological model used is the conception where man has its foundation in the creative

gesture that opens the possibilities of being and existence. Man is rooted in the freedom

that happens as helplessness in the face of his existence. The text discusses the

Florensky´s contribution presented in his book entitled The Reverse Perspective, using it

as a hermeneutic reference to the clinical situation. Reverse perspective allows the

unveiling of different aspects of reality, giving access to depths that are not always the

linear perspective allows observing. As regarding the reverse perspective in the clinical

situation, the paper presents the following aspects: the existence of multiple centers,

coexistences of different plans, and the organization of the composition organized to the

eyes of the person who contemplates the work.

Keywords: clinic; phenomenology; Florensky; reverse perspective.

As minhas investigações na situação clínica têm tido como referência fundamental

a contribuição de Donald Winnicott202 (1896-1971). Esse autor discute as condições para

o trabalho psicanalítico, nas quais a dimensão da experiência é o elemento fundamental.

O setting é compreendido como espaço no qual o cuidado torna-se elemento que orienta

o trabalho a ser realizado, para que experiências constitutivas possam acontecer. Claro

202
Winnicott, W. D. Playing and Reality. London, Tavistock, 1971.

198
está que, nesse vértice, não se está privilegiando o insight, mas sim o acontecimento que

possa recolocar o self do paciente em devir.

A fim de que esse trabalho possa ser realizado, temos um modo de abordar a

situação clínica, avesso às referências metapsicológicas. Em nossa prática clínica há o

predomínio do olhar fenomenológico, que busca colher as experiencias que aparecem no

espaço clínico sem excesso de teorização e que possibilitem o devir do sentido de si do

paciente.

O modelo antropológico é o do homem que tem o seu fundamento no gesto

criativo, que ao abrir possibilidades existencias para a pessoa, também forma a sua

possibilidade de ser. Homem enraizado na liberdade que se oferta a ele como desamparo

diante de seu existir e de seu destino. A pessoa é aqui habitante da fronteira entre mundos,

entre o finito e o infinito, entre o imanente e o transcendente, o singular e o coletivo, o

céu e a terra, etc.

Na fronteira de mundos, o ser humano encontra a originalidade na tradição por

meio de seu gesto criativo, que o coloca em direção ao futuro. A pessoa tem suas raizes

no passado e busca alcançar o futuro, onde situa o sonho último que acalenta a sua morte.

O nosso modo de ser se caracteriza por um contínuo devir. Somos seres que

aspiram o absoluto e que ao longo do caminho sonham com a realização do que dormita

no fundo de nós mesmos. Vivemos atravessados pelo pressentimento de si, pela memória

do ainda-não. O nosso modo de ser acontece por meio de contínuas metamorfoses. Em

cada pessoa existem as facetas de si mesma que se constituíram por meio do encontro

com o Outro, enquanto outras estão em estado de potencialidade e, portanto, não

chegaram a se realizar, evoluir e a se simbolizarem. Este fenômeno leva a pessoa a

experimentar a necessidade de encontrar o outro que possa lhe possibilitar a constituição

199
e a evolução das facetas de seu modo de ser, que não chegaram a acontecer por meio de

um encontro com outro ser humano, condição necessária para que se coloque em marcha

o processo de simbolização necessário ao devir do si mesmo.

A cada vez que um determinado aspecto emerge e que, potencialmente poderia vir

a ser constituído na relação com o outro, a pessoa como que experimenta, novamente,

uma vivência de alegria, de júbilo, de encantamento.

Uma tarefa fundamental do clínico é auxiliar o paciente a poder se apropriar não

só de seu estilo de ser, mas fundamentalmente da vocação que o constitui. A sua vocação

nasce dos atravessamentos que foram vividos pela pessoa, que aconteceram como aflição

e angústia, mas que também contribuíram para o processo de sua singularização.

Duas tarefas mostram-se fundamentais para o clínico: reconhecer em que aspecto

do self se aloja o gesto e reconhecer a sua vocação fundamental. Ao falar de vocação não

estou me referindo à questão da profissionalização, mas sim a disponibilidade originária,

que singulariza o paciente e que lhe dá o saber singular sobre a condição humana. Pavel

Florensky203 (1882-1937) por meio de suas contribuições nos auxilia a reconhecer a

vocação fundamental de uma pessoa, a fim de manejarmos a situação clínica de modo a

favorecer o processo, que poderá possibilitar posicionar a vocação originária do paciente

sob o domínio de seu gesto.

Pavel Florensky foi físico, matemático, poeta, pintor, teólogo. Para ele, haveria

uma estrutura fundamental subjacente a todos os fenomenos, que consitutiria a verdade

viviente. As diferentes ciencias seriam para ele diferentes linguagens para abordar a

mesma verdade fundamental.

203
Florensky, P. A perspectiva inversa, São Paulo, Editora 34, 2012.

200
Nesse texto, quero abordar a contribuição que Florensky apresentou como a

Perspectiva Inversa e que me parece muito fecunda como referente hermenêutico da

situação clínica. Para apresentar e discutir essa modalidade de perspectiva, ele se utiliza

da iconografia cristã ortodoxa, a qual é composta por meio da perspectiva inversa, que é

bastante distante da perspectiva linear, modalidade de composição que aparece,

habitualmente, na arte ocidental. Florensky assinala que o uso da perspectiva inversa

naquela modalidade de arte sacra não pode ser atribuído ao desconhecimento dos

princípios do desenho. Para esse autor a perspectiva linear e a perspectiva inversa são

representações simbólicas da realidade, que procuram representar um determinado evento

sobre uma superficie plana. Toda arte não pode, para ele, ser considerada naturalista, ela

é sempre simbólica. Isso significa que sendo a arte um símbolo aponta para um mais além.

Para ele, a tarefa da pintura não seria duplicar a realidade, mas desvelar um significado.

Florensky afirma que a perspectiva linear cria, de fato, uma obra ilusionista, que

cria um cenário sem que um significado transcendente pudesse se mostrar através dela.

Segundo esse autor, a obra de arte tem a possibilidade de nos unir com realidades que são

inacessíveis aos nossos sentidos. Florensky acredita que a persperctiva inversa permite o

desvelamento de outros registros de realidade, dando acesso a profundidades, que nem

sempre a pintura que utiliza a perspectiva linear possibilita.

Podemos brevemente, assinalar as aspectos fundamentais que caracterizam a

perspectiva inversa, são elas: a apresentação de centros multiplos, a coexistencias de

diferentes planos, a organização do desenho que converge para o olhar das pessoas que

contemplam a obra.

Diferente da perspectiva linear, a obra composta por meio da perspectiva inversa,

converge para o olhar do observador. Isso ocorre, pelo fato de que a realidade é vista

sempre como dialógica e se temos o objetivo de acolher a verdade em sua estrutura

201
fundamental será necessário abrir o espaço para a perspectiva dialógica. Essa faceta da

realidade, é fundamental para a situação clínica, pois tudo o que acontece no espaço

clínico precisa ser compreendido em sua manifestação dialógica. Tudo o que se

manifesta, seja do ponto de vista do discurso ou da linguagem plástica aperceptiva é

dirigida a um outro. Elementos que eventualmente encontraram a possibilidade de se

constituir em narrativa no espaço potencial fundado na amizade.

A existência de centros múltiplos na composição artística presente na perspectiva

inversa, implica que todos os elementos presentes na obra são revelações completas do

ser implicitos nos entes representados. Na perspectiva inversa cada um desses elementos

são como que vistos em todas as suas dimensões, por todos os lados. Esse modo de

representação supera o ponto de vista único e totalitario presente na perspectiva linear.

Na perspectiva inversa, o olhar se move acolhendo a multiplicidade de possibilidades

presentes no fenômeno. Cada elemento constitui um centro, uma temporalidade, uma

cosmovisão.

Claro que esse modo de olhar a obra ou uma sessão nos oferta possibilidades de

compreensão profunda daquilo que se mostra. Na situação clínica, estaremos não só

atentos ao discurso, ao conjunto da sessão como evento apresentativo, mas cada pequeno

gesto, evento, ou coisa abre dimensões do ser do paciente que, uma vez acolhidos permite

que o clínico possa sustentar a complexidade da singularidade que é o outro. Estamos

nesse vértice compreendendo a sessão clínica como acontecimento polifônico, que

apresenta uma multiplicidade de narrativas e de modos de ser.

A questão da coexistencia de diversos planos é uma das mais interessantes, pois

por meio dela percebemos diferentes facetas, que compõe a realidade. Ao longo de meus

trabalhos tenho assinalado a coexistencia dos registros ôntico e ontológico em um mesmo

evento. No entanto, Florensky nos alerta que cada registro de realidade tem subjacente

202
outros registros de realidade diferentes do primeiro, de modo tal, que cada registro mais

profundo de realidade, acolhe o registro anterior e ao mesmo tempo o supera. Esse aspecto

relaciona-se à contribuição de Cantor (1845-1918) à teoria dos conjuntos em matemática,

perspectiva importante não só para se comprender a formação da mente a partir das

imagens presentes no psiquismo, que possibilitam o aparecimento da capacidade de

realizar abstrações, mas também o posicionar-se diante do self potencial do paciente que

está, continuamente, se atualizando em um modo tal que nunca se realiza plenamente.

Essas discussões são também abordadas por Florensky ao lado de Cantor, com a

compreensão da existência de diferentes infinitos (potencial e atual). Do ponto de vista

da clínica, o infinito potencial manifesta-se como experiência agonica, e o infinito atual

acontece nas experiências de encantamento e sublime e nas realizações da pessoalidade

de alguém. Esse último aspecto tenho abordado em meus textos quando afirmo que cada

pessoa é a singularização da história de toda humanidade. A multiplicidade comparece na

singularidade.

A escrita de um ícone compreende esses diferentes principios, pois por meio deles,

o iconógrafo busca por meio de seu trabalho assinalar o ser daquele que ele procura

representar. Por essa razão, o ícone nunca é um retrato, mas sim desvelamento do mistério

que é a pessoa. O trabalho clínico procura realizar a mesma tarefa, ou seja, acompanhar

o paciente, com a esperança de que o seu ser possa se atualizar, no seu caminho pela

existência.

Certa vez, um professor de iconografia me perguntou se eu era iconógrafo,

respondi que não e que eu era terapeuta. Ele sorriu e disse:

- Você é verdadeiramente iconógrafo! O seu trabalho é revelar ícones vivos: a

pessoa!

203
PAVEL FLORENSKIJ: O PENSAMENTO COMPLEXO E A PSICOLOGIA

Márcio Luiz Fernandes204

Pontifícia Universidade Católica, Paraná

E-mail: marciovisconde@yahoo.com.br

Resumo: P. A. Florenskij (1882-1937), pensador e cientista russo, reconhecido pelo seu

poliédrico interesse no campo do conhecimento, foi um dos defensores da necessidade de

um pensamento capaz de aproximar e descrever o real na sua multiforme complexidade.

O eloquente e convincente testemunho deste pensamento é a sua copiosa e ampla

produção filosófico-teológica e científica. Em 1933 quando regime soviético decide levar

Florenskij para a prisão em um campo de concentração, as cartas escritas aos familiares

tornam-se ocasião para que ele pudesse refletir pela última vez sobre aquelas intuições

originais que estavam na base do seu projeto sobre o “pensamento integral”. O artigo

pretende mostrar como esta particular intenção está presente na correspondência

carcerária. O objetivo principal será apresentar as cartas do gulag como uma obra que

consegue concretizar o ambicioso e sempre atual projeto de Florenskij em um modo

lúcido e exemplar, demonstrando a sua funcionalidade até mesmo nas condições

dramáticas e proibitivas de vida e trabalho.

Palavras-chave: Pensamento complexo; cartas; Pavel Florenskij

PAVEL FLORENSKIJ: THE COMPLEX THOUGHT AND THE

PSYCHOLOGY

204
Professor Adjunto no Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCPR.

204
Abstract: P. A. Florensky (1882-1937), Russian scientist and thinker, recognized for his

multifaceted interest in the field of knowledge, was one of the defenders of the need for

a thinking able to approach and describe reality in its multiform complexity. The eloquent

and convincing testimony of this thinking, is his copious and comprehensive

philosophical-theological and scientific production. In 1933, when the Soviet regime

decides to arrest Florensky and take him to a concentration camp, the letters written to

his relatives become an occasion when he could reflect for the last time about those

original intuitions that were at the basis of its project on "integral thought". The article

aims to show how this particular intention is present in the prison correspondence. The

main objective will be to present the letters of the Gulag as a work that manages to achieve

the ambitious and always current Florensky's project in a lucid and exemplary manner,

demonstrating its functionality even in dramatic and prohibitive conditions of life and

work.

Keywords: complex thinking; letters; Pavel Florensky.

Introdução

O nome de Pavel Florenskij é mencionado na encíclica Fides et Ratio – de João

Paulo II – e colocado entre os filósofos e teólogos do século XX que souberam realizar

uma verdadeira síntese entre a fé e a razão, o pensamento e existência, a experiência

científica e a vivência espiritual e, sobretudo, criaram condições para a compreensão e

o diálogo entre o oriente e o ocidente.

A contribuição teórica de Florenskij está ligada, portanto, de um lado aos tesouros

da tradição ortodoxa russa e, por outro, a uma determinada sensibilidade científica que

deseja transmitir um tipo de gnosiologia que comporta uma compreensão integral e

interdisciplinar do pensamento. Filósofos e teólogos como V.S. Solov´ev; M. M. Tareev;

205
S. N. Bulgakov; N. A. Berdjaev; L. P. Karsavin; P. A. Florenskij, Frank e V. Losskij

procuraram uma fundamentação ontológica para pensar a experiência humana. Para eles

o tema da kenosis (esvaziamento) representa o eixo central da filosofia e da teologia

ortodoxa de tradição eslavófila russa. Para os autores russos a kenosis é um elemento

fundamental para a interpretação não só de todo o sistema teológico, mas é uma categoria

a partir da qual todas as questões antropológicas, psicológicas e científicas devem ser

repensadas. Para aqueles que elaboravam uma teologia e filosofia dentro da tradição

eslavófila os motivos de tal interesse devem ser procurados na tendência destes autores

de ver na figura do Cordeiro imolado o destino e o traço essencial da própria nação e da

‘alma russa’.

O realismo russo do início do século XX e a escola fenomenológica nasceram

conscientes da urgência de fazer frente ao positivismo e reconheceram, então, a

necessidade da renovação da própria gnosiologia. Uma renovação que leva em

consideração os seguintes temas fundamentais: a dimensão existencial do conhecimento;

a intersubjetividade; o apofatismo como experiência do pensar; a relação entre o

pensamento – seja teológico ou filosófico – com a cultura literária, artística, política,

econômica e ecológica. Para Safra o estudo das intuições destes autores – principalmente

os russos – fornece os elementos para a realização de uma clínica na qual o analista possa

acolher a singularidade e a dimensão não-discursiva revelada nos gestos. No consultório

“as queixas mais frequentes referem-se à vivência de futilidade, de falta de sentido na

vida, de vazio existencial, de morte em vida” (SχFRχ, 2005, p. 13). χ reflexão sobre o

sofrimento, o mal, a comunidade e o desejo de construir uma nova sociedade mostram

que estes autores foram capazes de acolher o ontológico da situação humana.

206
1. A originalidade de Pavel Florenskij: o modelo de um pensamento

complexo

Nesta comunicação pretendo acenar para alguns núcleos centrais do percurso e

pensamento de Florenskij como parte de um projeto de pesquisa que vem sendo realizado

em parceria com pesquisadores de três distintas instituições, a saber: a PUCPR no

programa de pós graduação em teologia, a USP com o departamento de psicologia clinica

com os trabalhos do prof. Gilberto Safra e a Universidade Lateranense representado pelo

prof. Lubomir Zak. O foco de investigação que – a partir da proposta de pós-doutorado –

começamos a realizar junto com o laboratório Prosopon era o de discutir as contribuições

da teologia para a psicologia e, em particular, examinar como a apropriação dos

conhecimentos teológicos – a partir de temas e figuras – possibilitam a fundamentação

ontológica e a respectiva reflexão sobre os processos de subjetivação contemporânea.

O alargar-se do horizonte de compreensão da clínica junto com novos quadros

psicopatológicos “demandam a interlocução com as outras áreas das ciências humanas,

tais como a antropologia, a teologia, a filosofia, para que o clínico investigador possa

abarcar a complexidade do fenômeno” (SχFRχ, 2012, p. 289). Desse modo, Safra tem

observado a necessidade de assentar a prática clínica em textos de pensadores que

apresentem lúcidas elaborações sobre os problemas do sofrimento humano porque:

Nos textos desses autores são discutidas essas questões não só da Rússia do início do

século vinte, como também, em tom profético, os problemas de nosso tempo, em que

a natureza humana se estilhaça. Frente a essa situação, recolhem e emolduram a face

humana, explicitando o ethos. Para realizar esta tarefa criam uma obra resistente à

fragmentação da medida humana, evitando a abstração racionalista. São textos que

apresentam uma maneira diferente de pensar, pois ao mesmo tempo integram os

vértices literário, filosófico, político e religioso. (...) Esses autores escreveram obras

207
em que o ethos humano se explicita em seu registro ontológico. (SAFRA, 2004, p.

33).

No elenco de autores aparece a figura de Pavel Florenskij, considerado um dos

maiores pensadores russos do século XX, chamado de Pascal ou Leonardo da Vinci russo

(ZAK, 2002; 1998). O pensamento e a obra deste matemático, filósofo, critico de arte e

teólogo é ainda pouco conhecido no ambiente acadêmico brasileiro. A sua obra reflete

tanto a experiência feita como cientista quanto teólogo ao buscar a verdade e a beleza a

partir das fontes, sobretudo no tesouro de sabedoria da Sagrada Escritura e dos padres da

Igreja. De fato, para Florenskij nenhuma fórmula, definição racional ou sistema fruto da

atividade teológica ou científica pode substituir a vida, ou seja, as vivências da

criatividade e capacidade do ser humano de produzir o novo em cada momento (ZAK,

1998, p. 67). Logo depois de terminar com grande sucesso seus estudos na prestigiosa

faculdade de física e matemática da Universidade de Moscou Florenskij escreve para a

mãe dizendo que ele e seus amigos queriam se empenhar em encontrar as bases para

realizar o diálogo entre a fé e a razão, entre a teologia e a ciência: “Vou chegar à síntese

entre a cultura eclesial e a cultura leiga e estar plenamente unido a Igreja, eis um dos mais

imediatos objetivos de empenho prático” (Carta de 3 de fevereiro de 1904). O que

sobressai, portanto, é um intelectual na contramão do comportamento dominante do

ambiente intelectual da russa da época. Uma figura que, por sua vez, mostra-se aberto à

tradição religiosa e interessado em dedicar a sua vida a harmonizar as conquistas da

cultura universal com as questões da cultura espiritual cristã.

No texto intitulado Empiria e Empirismo, escrito em junho de 1904, alguns meses

antes de entrar na Academia Teológica de Moscou, Florenskij põe em relevo a

necessidade que o cientista tem de se colocar diante da experiência comum:

208
Se uma das finalidades da concepção filosófico-científica do mundo é a contabilidade

da consciência (expressão de Dostoevskij) em relação a cada aspecto da realidade, a

possibilidade de recolher na consciência cada elemento do mundo e de levar em conta

cada uma das suas partes, então o objetivo da experiência científica (entendendo esta

palavra no seu significado mais amplo) é de descompor os elementos e os aspectos da

realidade, de colocá-los em destaque e delimitar os seus confins. Mas para fazer este

trabalho de separação, a consciência deve poder dispor de algo sobre o qual poder

operar e este algo é que já está presente no espírito. Este algo não é dado

imediatamente, mas vem a ser elaborado, se revela por meio de um processo

inconsciente e particular, que seria mais interessante chamar de experiência comum.

(...) A experiência científica pressupõe a experiência comum e deste modo se

compreende a característica desta última. A tarefa da experiência científica é aquela

de colocar em evidência e distinguir, já a segunda é aquela de fornecer experiências

que tenham maior ressonância, um material que possivelmente não tenha estado

colocado em evidência, nem tenha sido feito um trabalho de distinção.

(FLORENSKIJ, 2014, p. 126).

Outro ponto a considerar é a originalidade de Florenskij em propor uma reflexão

teológica radicada no terreno da gnosiologia. Para ele a amizade – no sentido cristão mais

profundo - permite explorar o terreno do conhecimento pois é uma “condição

indispensável da vida”:

A amizade dá ao homem a autoconsciência, revela onde e como é necessário trabalhar

sobre si mesmo. Mas esta autotransparência do Eu se obtêm somente na ação

recíproca, vital das pessoas que se amam. A comunhão da amizade é a fonte de sua

força. Santo Inácio o Teóforo, indicando a força misteriosa e taumatúrgica que os

cristãos recebem da vida comum, escrevia aos Efésios: ‘estejam atentos a se reunir

209
mais frequentemente para agradecer e louvar a Deus porque quando vocês estão

estreitamente colocados em um único lugar são abatidas todas as forças de Satanás’.

Aqui ele nos está dizendo que a comunidade do amor não deve limitar-se a uma ideia

abstrata, mas exige absolutamente manifestações sensíveis e concretas até chegar ao

estreito contato. É necessário não só amar-se reciprocamente, mas estar juntos de

forma estreita. (FLORENSKIJ, 2010, p. 56).

Pode-se, portanto, dizer que a concepção que tem o pensador russo sobre a

gnosiologia pode ser definida, à luz do atual desenvolvimento do pensamento filosófico

e da epistemologia da ciência, como um modelo de pensamento complexo. E é por este

motivo que privilegiamos o estudo sobre P. A. Florenskij a respeito da complexidade do

real e sobre a teoria do “conhecimento global” correspondente a esse conceito. χs ideias

científicas estão permeadas pela sensação do mistério presente na realidade que, por sua

vez, e, portanto, nos fazem pensar na experiência de correspondência vivenciada pelo ser

humano entre ele e a natureza porque “natureza e homem podem ser partes de si mesmos

e partes equipotenciais entre si e o conjunto” (FLORENSKIJ, 2007, p. 210). Esta

percepção do real deve ser compreendida à luz da teoria do símbolo que Florenskij (2007;

2003) elabora e considera fundamental para o seu pensamento. Segundo nos diz o

estudioso Zak (2014, p. 27) tal teoria diz que tudo o que aparece, isto é, o fenômeno, não

é outra coisa senão a porta na direção de algo ainda maior, que está além, o noumeno.

Algo que é realmente presente no fenômeno, fundando o seu ser (enquanto fenômeno) e

dando-se a conhecer por meio dele. Tal teoria vê no real um conjunto de inumeráveis

níveis ou estratos – semelhante a uma cebola feita de tantos “véus” – que são

interdependentes e reciprocamente comunicantes. O nível que está mais na superfície

tem o seu fundamento naquele “escondido” que está além deste e do qual aquele mais “na

superfície” é o símbolo. Nos diversos escritos de Florenskij encontramos exemplos desta

210
concepção que exige a atenção no exame da realidade. Em outros termos, é necessária

uma atitude de empatia gnosiológica para saber escutar os “sons da profundidade” de tudo

o que existe. Assim, para Florenskij ter a capacidade de aproximar-se do “ritmo” da vida

é possível na medida em que o sujeito e o objeto do conhecimento estabelecem uma

relação vital.

2. As cartas da prisão

À luz das recentes pesquisas em arquivos aparece evidente que o elenco dos

escritos das prisões e, de modo particular, do material das correspondências carcerárias

representam uma fonte documental extensa e importante para as pesquisas. Entre os

escritos do período do totalitarismo de Stalin ainda é pouco – ou talvez quase nada –

conhecido na América Latina as cartas do gulag (campo de concentração stalinista) de

Pavel A. Florenskij205, fuzilado pelo regime em 1937 com a acusação injusta de ser um

colaborador contra-revolucionário. O material produzido na prisão por parte de Florenskij

foi já traduzido em lingua espanhola206 e, antes ainda, apareceu na Itália207, onde encontra

um enorme sucesso editorial e está sendo buscado por leitores de todas as idades, credos

religiosos e das diversas camadas sociais.

Estas cartas são consideradas pelos estudiosos como o ápice do pensamento e a

síntese de toda obra de Florenskij. Trata-se de uma espécie de “canto do cisne”, nas quais

são resumidas e explicadas as mais profundas intuições do sábio cientista que, quase de

modo visionário, teria previsto o desenvolvimento dramático da história russa e européia

205
As cartas foram publicadas em P.A. FLORENSKIJ, Soči e ija čet e h to a h (Obra em quatro volumes),
M sľ,àMosk aà .à
206
P.A. FLORENSKIJ, Cartas de la prision y de los campos, EUNSA, Navarra 2005.
207
A tradução italiana de uma parte das cartas encontra-se em P.A. FLORENSKIJ, «Non dimenticatemi». Le
lettere dal gulag del grande matematico, filosofo e sacerdote russo, publicada por Oscar Mondadori,
Milano, e em 2013 chegou a sétima edição.

211
da primeira metade do século XX, empenhando-se na busca por um remédio para a força

destrutiva do espírito bélico. Estes escritos revelam a preocupação de Florenskij em

manter-se fiel aos laços mais originais das relações afetivas com os seus amados

familiares e transmitir-lhes os sentimentos, as reflexões e as experiências interiores por

ele vividas, justamente no momento da história, em que se revelava a força autodestrutiva

do homem moderno que estava como que entregue ao seu próprio sentir e querer, enfim,

imerso na escuridão abissal da violência.

Um exemplo é a carta escrita à sua mulher em 19 de outubro de 1936 quase um

ano antes de sua morte:

Faz tanto tempo que não tenho tuas notícias...Aqui, ainda que possa parecer

estranho, tenho uma série de imagens impressas ligadas ao Caucaso: aquelas dos

rostos, das linguas e da natureza (...). A minha memória visiva, ainda que débil

com relação a infância, é ainda muito forte, de forma que vejo claramente dentro

de mim o teu rosto. (...) somente por meio de vocês passa o fio que me liga à vida,

tudo o resto me interessa somente com relação a vocês. E isto pode parecer

estranho porque eu me deixo absorver pelo trabalho. Mas trabalhando me parece

poder estar com vocês. (....) Talvez eu erre, mas eu faço este trabalho sempre em

referência aos filhos, na esperança que o meu material possa ser instrutivo para

eles. Do resto, no meu coração me dou conta que somente cada um

individualmente pode recolher o material para tirar as próprias conclusões,

enquanto aquilo que é recolhido por outros com uma certa perspectiva,

normalmente é pouco utilizado. Mas é a vida!!! nós nos damos conta da vaidade

dos esforços mas se espera sempre... Talvez o sentido deste trabalho é só aquele

de fazer saber aos filhos que penso sempre neles e que procuro ajudar-lhes como

posso. (FLORENSKIJ, 2006, p. 330-331).

212
Pode-se dizer que as cartas constituem uma herança humana e cultural de grande

valor e de universal destinação. Na medida, pois, em que Florenskij se revela uma

testemunha da dignidade, do ethos e da memória dos relacionamentos, os leitores passam

a reconhecer também as implicações e o significado da perda e do esfacelamento do

humano provocado pelas ideologias totalitárias que se apresentam com “novos rótulos”

também na contemporaneidade. Nesta visão, o estudo e a leitura destas cartas permitem

olhar para o sofrimento contemporâneo sob uma nova luz. Basta pensar, por exemplo,

quanto isto é pertinente para as questões da formação de um novo tipo de conhecimento

para a clínica psicológica. Nas cartas Florenskij insiste em mostrar tal abertura a

totalidade dos fatores, tal como se vê nas linhas da missiva à sua filha Olga:

De fato, todo conhecimento não deve ser uma espécie de coágulo autossuficiente

na alma, mas uma linha auxiliar da nossa relação vital com o mundo, do nosso

contato com o mundo. Isto que eu disso do conhecimento tem um significado geral

e se refere seja à arte, seja à filosofia, seja à vida cotidiana. (FLORENSKIJ, 2006,

p. 325).

Certo é que, nos escritos da prisão, Florenskij reflete sobre a pessoa humana a

partir deste horizonte ontológico no qual o espaço do mistério, do enigmático, da

criatividade e da subjetividade não são negados. Nesse contexto, compreende-se o motivo

principal também desta comunicação, pois se deseja oferecer uma pequena introdução

na qual será possível reconhecer imediatamente o coração, o elemento central e nuclear

daquilo que o autor conseguiu nos transmitir nas difíceis condições do gulag das ilhas

Solovki. Convém, todavia, ter presente que, embora a palavra Gulag já tenha se

transformado em símbolo da rede de repressão da antiga União Soviética, o lager das

ilhas Solovki foi transformado pelos bolchevistas “no lugar dos maiores sofrimentos para

os cristãos russos” (RICCχRDI, 2000, p. 34).

213
No epistolário, escrito desde esta ilha do martírio, não aparecem as elaboradas

intuições filosófico-teológicas e os refinados contornos da arquitetura especulativa que

caracterizavam grande parte das obras de Florenskij antes de sua prisão. Convém ter

presente que ele foi obrigado a viver em um ambiente infernal e, assim, o tempo para a

meditação foi praticamente devorado pela cruel engrenagem carcerária. Ao mesmo

tempo, em razão desta penosa situação, Florenskij conseguiu propor reflexões com tons

mais íntimos, espontâneos e originais sendo capaz de descrever as vicissitudes de seus

dias na prisão, as surpresas, as ambiguidades, os sentimentos mais profundos que

habitavam-no como homem de fé e sacerdote. Um exemplo muito bonito a este respeito

são os diversos relatos que Florenskij faz a respeito dos sonhos com seus familiares e,

além disso, os relatos das recordações de infância a respeito dos seus pais: (em carta a sua

filha Ana de 4-5 de julho de 1936):

Me recordo muito frequentemente da morte de meu pai. Ele tinha alguns sonhos

(ou também eram visões) de viagens, ou de migrações nomades nos espaços sem

fim da Asia. E o pensamento da abundância o aterrorizava. E me dizia:

normalmente se pensa que a humanidade vai morrer pela carência de algo. Para

mim, ao contrário, é claro que irá morrer pela abundância’. Também para mim o

muito causa sempre medo, desde a minha infância, porque com a abundância

parece que irrompe o caos sem forma, que você não está em condições de governar

e que sai do controle. Onde não existe uma composição, não pode existir nem

mesmo a compreensão, mas a composição comporta o limite. O que é a coisa mais

importante em uma obra de arte? A cornice, os confins no tempo, o inicio e o fim.

Se naõ houver os confins, o limite, não é possivel nem mesmo a serenidade. A

capacidade de limitar-se a si mesmo é a caracteristica da maestria.

(FLORENSKIJ, 2006).

214
Mas, enquanto o regime totalitário procurava meios para censurar qualquer

referência à fé em Deus, Florenskij encontrava o caminho para falar da profundidade do

mistério que habita o mundo, por meio de cartas que testemunham o valor da memória e

deixam transparecer o horror pela dissolução da consciência histórica da dignidade

humana. São cartas escritas nos raros fragmentos de tempo livre, depois de vencido o

cansaço de dias massacrantes de trabalhos forçados. Estas missivas são, portanto, uma

apaixonada confissão de quem consegue ser fiel às próprias convicções nas condições

mais dramáticas, de quem sabe colher a verdade profunda de tal vivência e mantêm a

esperança, não obstante encontre-se despojado de toda a dignidade humana.

Mas, afinal, quem são os destinatários destas correspondências de Florenskij? A

maior parte das cartas são endereçadas à sua mãe Olga, à mulher Anna e aos cinco filhos.

A filha menor, por exemplo, Maria-Tinatin tinha apenas nove anos quando o pai foi preso

pelo regime. O nosso autor preocupou-se em numerá-las para, desse modo, poder ter um

mínimo de controle da trajetória e destino uma vez que elas eram submetidas à severa

censura dos carcereiros os quais, de vez em quando, confiscavam aquelas consideradas

inoportunas para expedir ao “mundo externo”. Em tantas ocasiões aparece nas cartas a

recordação das fadigas encontradas pelos prisioneiros para redigí-las porque era

extremamente dificil encontrar o papel e a tinta para escrever. Em geral, cada texto era

redigido sobre a página dupla de um caderno dividido em quadrados, subdividida em

partes distintas e, em seguida, cada parte era destinada a um membro da família: à mãe,

à mulher, aos filhos e filhas. Cada membro da família podia ler separadamente a sua carta

pessoal na qual, todavia, não faltava uma referência e uma saudação a todos os outros

membros. Deve-se recordar o hábito de Florenskij de escrever com o desejo de criar um

ambiente de intercâmbio entre todos aqueles aos quais se dirigia. Desse modo, ao escrever

à filha menor Maria pede no final para que ela deixe uma saudação para a mãe e que cuide

215
do irmão e, do mesmo modo, faz apelo aos outros filhos para compartilharem as

descobertas realizadas. Com efeito, o que está presente aqui, sublinhe-se de novo, é a

dinâmica relacional e pedagógica de Florenskij preocupado com o crescimento humano,

cultural e espiritual dos seus filhos.

Ele desejava introduzí-los nos segredos tanto da compreensão das obras de arte

quanto do conhecimento dos fenômenos naturais e das pesquisas científicas. A ênfase é

colocada sobre o fato de que tudo o que existe contêm em si uma “estrutura interna”. E

esta, mesmo na diversidade dos fenômenos – sejam eles naturais, conectados com a vida

e a existência enquanto tal, sejam eles de tipo cultural -, tem características universais. É

esta estrutura interna que deve ser buscada quando se observa a natureza, como também

quando se lêem as obras literárias ou se escutam as obras musicais. É exatamente sobre

esta estrutura que Florenskij se detêm na carta escrita a Olga em 22 de fevereiro de 1935.

Ele deseja ensiná-la a reconhecer o que é típico da estrutura das melhoras obras literárias

que, por sua vez, porém, trazem as marcas características da “estrutura interna” de cada

fenômeno do mundo real. Ou seja: elas possuem uma constituição marcada pelas

polaridades e, portanto, indicam ao leitor a importância de reconhecer a presença das

contradições em cada fenômeno observado. Ele explica:

Quando você lê uma obra, procure entender como ela foi construída do ponto de

vista da estrutura e, mais especificamente, qual a finalidade deste ou daquele

particular ali presente. Deste ponto de vista, são particularmente interessantes as

fraturas da exposição, as repetições, os deslocamentos no tempo e no espaço e,

principalmente, as contradições. Em geral busca-se explicar as contradições como

a luta entre algumas versões e como tramas embrionárias que irrompem na

narração principal. Do ponto de vista psicológico isto acontece de modo frequente;

o essencial, porém, quanto a estrutura não é compreender de onde provenha um

216
certo tema da trama, mas por qual razão, por qual motivo ele foi mantido pelo

autor, não obstante as contradições com o tema principal. Ao contrário, quando

se examina bem, vê-se que tal contradição serve para intensificar o efeito estético

da obra. De tal forma que a contradição aguça a atenção do leitor. Pode-se dizer

que quanto mais grandiosa é uma obra, tanto maior são as contradições que

podemos encontrar nela (FLORENSKIJ, 2006, p. 153-154).

Como se deduz de outras cartas do gulag, a polaridade é só uma das características

da “estrutura interna” dos fenômenos do real e de tudo aquilo que existe. Ela não é senão

uma prova do fato de que a interioridade dos fenômenos é de uma grande complexidade.

Ora, esta começa a manifestar-se na medida em que alguém consegue munir-se de

paciência, aproximando-se dos fenômenos respeitosamente para poder escutar a “música

secreta” que ressoa do interior deles. De fato, quanto mais se penetra no microcosmo de

qualquer um dos particulares fenômenos, percebe-se ainda com maior clareza neles a

mesma complexidade observada na dimensão macrocósmica. Florenskij reflete sobre

todas estas coisas em uma carta endereçada ao filho Kirill, no período em que este já

estava encaminhado para as pesquisas científicas no campo da astrofísica. Ele adverte o

filho para prestar atenção e dar-se conta de que quando na pesquisa temos a impressão de

aproximarmo-nos de algo simples, de fácil explicação e descrição, então sim, podemos

saber que tal impressão não corresponde quase nunca à realidade. Entretanto, ela acontece

ou “pela insuficiência dos meios técnicos ou por pura superficialidade” (FLORENSKIJ,

2006, p. 358, Carta de 23-24 de dezembro de 1936). Contudo, a impressão é uma coisa e

a verdade outra e esta última começa a emergir quando a pesquisa científica renuncia a

confiar nos esquemas abstratos, construídos a priori e passa a favorecer um pensamento

que nasce e se desenvolve a partir de uma experiência concreta. Por sua vez, as

experiências cotidianas demonstram que “a complexidade não diminui com a redução das

217
dimensões e de certas complicações”, porque no lugar delas aparecem outros

componentes inusitados.

Conclusão

O epistolário era o único instrumento de comunicação que mantinha Florenskij

conectado com o mundo externo. Até o fim da vida a correspondência foi capaz de

infundir no prisioneiro a esperança, novo vigor e razões para viver e pensar. É isto que se

conclui das palavras escritas a poucos meses antes do fuzilamento que nem sequer havia

sido anunciado: “Tenho a sensação que a este ponto não existe nada que por si mesmo

seja interessante, e só o fato de conseguir, de qualquer modo, comunicar-me com vocês,

desperta o meu pensamento” (FLORENSKIJ, 2006, p. 369).

As cartas são a documentação da experiência comunicada por Florenskij de conexão

com a totalidade da realidade e onde o autor russo mostra a necessidade fundamental de

aprender a arte de viver que, segundo relata, consiste em preencher cada instante da vida

com um conteúdo substancial. Em julho de 1936 escreve a Annulja recordando que a luta

de sua vida era com o desejo ilimitado de sua alma, mas reconhecia que a sabedoria

provém da capacidade de saber delimitar: “Onde não existe uma composição, não poderá

existir uma verdadeira compreensão, mas qualquer composição artística, por exemplo,

comporta o limite” (FLORENSKIJ, 2006, p. 310).

As cartas, portanto, segundo nos afirma Zak contêm a doutrina de Florenskij sobre o

pensamento complexo. Na verdade, elas mesmas são a concretização deste modo de

pensar. Trata-se de um verdadeiro e próprio testamento que o pensador russo deixa aos

familiares e, por meio deles, para toda a humanidade. Assim, as cartas da prisão são um

convite para elaborar uma fenomenologia simbólica em vista de um pensamento

218
complexo. A sua atualidade é, sem dúvida a mesma, senão maior, com relação ao tempo

na qual foram elaboradas. São cartas redigidas com as mãos algemadas pelo sofrimento

e terror e o seu conteúdo expressam as vivências de alguém que teve de transcorrer os

últimos anos da vida em um dos mais cruéis e infernais gulag do século XX.

Referências

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Bytsenko, São Paulo: Editora 34, 2012.

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RICCARDI, A. Il secolo del martirio. I cristiani nel Novecento. Milano: Oscar

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220
MESAS REDONDAS

221
PESSOA-COMUNIDADE E INTER-RELAÇÕES NA OBRA DE EDITH STEIN

Clélia Peretti208

Pontifícia Universidade Católica, Paraná

E-mails:cpkperetti@gmail.com

Resumo: O presente artigo toma como texto base o capítulo oitavo da obra a Estrutura

della persona umana. Corso de antropologia filosofica de Edith Stein intitulado O ser

social da pessoa. O motivo da escolha deve-se a grande ênfase na conceituação da pessoa

humana e suas relações sociais o que possui relações diretas com a empatia e com a ética.

A sociabilidade humana é discutida a partir dos quatro aspectos apresentados por Edtih

Stein: atos sociais, relações sociais, formações sociais e tipos sociais. Com o objetivo de

apresentar as contribuições de Edith Stein a análise do texto consiste nos seguintes passos:

introdução do conteúdo, análise do ser social da pessoa, comunidade povo e implicações

para a vivência ética.

Palavras-chave: Pessoa; Comunidade; Relações intra e inter pessoais.

PERSON-COMMUNITY AND INTERRELATIONS IN EDITH STEIN'S WORK

Abstract: This article is based on the eighth chapter of Edith Stein’s text “The structure of

the human person: lectures on philosophical anthropology”, entitled “The social being of

the person”. We choose to focus this particular chapter because it puts emphasis on

theconcept of human person and his social relations, which directly concerns a reflection

208
Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, RS. Membro da Academia
Internacional de Teologia Prática (IAPT). Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação e
Bacharelado em Teologia da PUCPR. E-mail: clelia.peretti@pucpr.br.

222
on empathy and ethics. The human sociability is discussed based on four aspects,

according to Edith Stein: social acts, social relations, social formations and

social types. In order to present the contributions of Edith Stein, our analysis of her

text follows these steps: introduction of the contents; analysis of the person as a social

being; community and people; and implications for an ethical life.

Keywords: Person; Community; Empathy.

Introdução

Edith Stein, ainda jovem estudante, se interessa pelo tema da pessoa humana e,

encontra no método fenomenológico de Edmund Husserl o fio condutor de toda sua

produção intelectual. A compreensão da empatia, qual é a essência desse ato, como ele é

possível e o que nele está implícito, leva a uma profunda análise antropológica, fazendo

da investigação sobre a intersubjetividade um caminho para conhecer a essência da pessoa

humana. Assim, a partir da análise da empatia a filósofa compreende que a dimensão

social e a dimensão intersubjetiva são constitutivas da pessoa humana. Contudo, a pessoa

não é absorvida na vida da comunidade, sua particularidade não só é preservada, mas é

necessária para a configuração da identidade pessoal. Mesmo identificando traços

tipicamente comunitários na pessoa, traços de caráter semelhante aos demais membros

da comunidade, ainda assim a pessoa preserva sua peculiar individualidade. Assim,

pessoa e comunidade nos escritos steinianos são termos ontologicamente

interdependentes.

A comunidade é considerada em analogia à pessoa humana, sendo essencial para

sua definição e para a apreensão de seus aspectos originais, para o reconhecimento e o

posicionamento das pessoas. A relação comunitária é apresentada como elemento

essencial para o processo de formação pessoal. A relação pessoa-comunidade é

223
essencialmente uma relação de interdependência constitutiva, onde os aspectos - ativo e

passivo - da pessoa e da comunidade são necessários no processo de tornarem-se si

mesmas, o que só pode acontecer a partir de uma abertura recíproca (STEIN, 1996).

A comunidade é identificada objetivamente como uma forma de agrupamento

social como são as famílias, os povos, as comunidades científicas, religiosas, etc.. A

comunidade é observada no seu aspecto objetivo como forma social, mas é olhada por

dentro a partir dos seus aspectos constitutivos formados pelas experiências dos seus

membros. Edith Stein sustenta que a fundamento de todas as comunidades, da mais ampla

até a mais restrita, existe uma comunidade universal por ela denominada de humanidade.

Suas contribuições são valiosas ferramentas para discutir os aspectos essenciais do ser

pessoa e do ser comunidade e, ao mesmo tempo, sugerem pistas para o desenvolvimento

e a ampliação de uma filosofia social e política da sociabilidade.

Tomamos como texto base para o estudo da sociabilidade humana o capítulo

oitavo da Estrutura da pessoa humana dedicado a análise das relações sociais

fundamentada em quatro aspectos, a saber: atos sociais, relações sociais, formações

sociais e tipos sociais. Ninguém nega que, do ponto de vista biológico, todos os seres

pertencem a uma espécie. Ainda, ninguém nega que linguisticamente ou conceitualmente

se possa admitir que exista um gênero ou um tipo natural que definimos humano. Mas,

afirmar que existe uma comunidade humana é problemático porque essa implica

necessariamente uma particular relação entre os seres humanos. Contudo, sabemos que

muitos pensadores colocaram em dúvida essa possibilidade, afirmando sua contingência

histórica ou a dependência do poder. Mas quando examinamos os discursos sobre os

direitos humanos que giram ao redor das questões dos direitos inalienáveis, da violência,

das graves violações da dignidade humana, logo invocamos as afirmações steinianas de

uma comunidade humana como também a inviolabilidade das pessoas humanas. Num

224
mundo globalizado marcado pela lógica do individualismo e da indiferença qual é o

sentido do “nós”, da comunidade humana? Quem é o outro? Quais são os critérios para

fundamentar nosso agir, querer, pensar e crer a tolerância, a acolhida, a divisão, a

solidariedade, o conflito ou a relação? O ato empático possibilita colher no outro um

existir como o meu, “é um ato que funda o agir solidário, educa para os valores éticos e

civis, testemunha a comunidade como relação personalista do ser” (MχNGχNχRO,

2014, p. 11).

Sob essa perspectiva a comunidade não é apenas compreendida como

agrupamento humano, mas estruturalmente é um tipo de relação interpessoal, marcada

pelo posicionamento da pessoa a partir do uso de sua razão e liberdade. È na

solidariedade, no agir ético que se encontram os elementos constitutivos da abertura para

os outros, na eficácia positiva de cada ação ou intervenção recíproca, na unidade ou

globalidade dessas relações. A solidariedade é a manifestação da força vital comunitária

e, a empatia não é somente um ato intencional, mas formativo e performativo, porque

coloca em movimento a relação e, por sua vez, a testemunha e a preserva.

O ser social da pessoa humana: germe embrional de comunidade

O capítulo VIII da Estrutura da Pessoa humana (2013), dedicado às relações

pessoais contém valiosas páginas para compreender a intencionalidade e a

performatividade dos atos sociais. Edith Stein inicia o capítulo de forma dramática com

a seguinte afirmação:

Considerar um indivíduo ilhado é fazer uma abstração. A existência de um homem

é existência em um mundo, sua vida é vida em comunidade. E essas não são

relações exteriores que se dão a um ser existente em si mesmo e para si; o estar

225
inserido como membro em uma totalidade mais ampla já faz parte da estrutura do

ser humano (STEIN, 2013, p. 185).

Compreendemos imediatamente que ser uma pessoa humana significa viver em

um mundo social, estar em comunidade. O conceito de pessoa humana de Edith Stein,

entendida como unidade de corpo, psique e espirito, é fundamental e perpassa o conjunto

de suas obras filosóficas. Desde o início de sua investigação a pessoa humana possui uma

essência fenomenológica e constitui a base de todas as ciências, porque é a pessoa humana

que faz progredir as ciências, tanto para aprender a se conhecer quanto para aprender a

conhecer a realidade em que vive. Edith Stein nos fornece neste capítulo uma “imagem”

do ser social do humano como um ser que realiza atos sociais; vive relações sociais; é

um membro das estruturas sociais e é um tipo social.

Sabemos que o conceito de comunidade humana emerge na última parte da

reflexão de Edith Stein. Neste capítulo Edith Stein apresenta a ideia embrionária de

comunidade universal humana universal, definida por ela de humanidade. O conceito de

comunidade não se encontra, nem no seu tratado sobre a empatia, nem nos escritos de

1936 e de 1938 e, menos ainda na Introdução à filosofia (1998). Os germes de um sentido

mais amplo de comunidade encontram-se na obra Una ricerca sullo Stato (1993), onde a

filósofa afirma que o estado é um tipo de comunidade que se coloca entre as formas mais

restritas de comunidade, a família, a igreja e o povo. Nosso objetivo é, portanto, mostrar

a origem da ideia de comunidade esboçada nas aulas sobre antropologia filosófica de

Münster, um conceito que Edith Stein desenvolverá na sua obra magna, Ser finito e Ser

eterno (1988).

Analisaremos a seguir os quatro aspectos que caracterizam o ser social da pessoa

humana apresentados no capitulo oitavo da obra A estrutura da pessoa humana (STEIN,

2013, p. 185-199).

226
Edith Stein, entende por atos sociais, os atos do eu, ou seja, os atos que se

entrelaçam com a competência performativa do humano. Trata-se dos atos pelos quais

uma pessoa se dirige a outra pessoa por meio de perguntas, pedidos e ordens. Todos esses

atos são ditados pela vontade de motivar a outra pessoa a assumir um determinado

comportamento. As pessoas, juntas, dão vida a um contexto supraindividual que inclui

entre ambas as pessoas. Os atos sociais pode se expressar no interior de um contexto

axiológico, que inclui o amor, o respeito e a admiração. Edith Stein considera que no caso

dos atos de valorização pessoal, embora os valores não possam ser compartilhados e

reconhecidos, é possível ainda reconhecer estes atos como sociais, porque envolvem mais

de uma pessoa, embora esta última possa não estar envolvida diretamente na ação. De

acordo com Edith Stein existe uma terceira categoria de atos sociais constituída por

aqueles que possuem a força de produzir ou anular uma determinada realidade objetiva

no mundo social:

(...) assim, uma promessa produz o direito de exigir sua realização: este direito

não se cumpre por si só mediante o cumprimento da promessa, ou só através da

renúncia a sua satisfação pela pessoa a quem a compromisso foi realizado. . Todo

o direito positivo possui este caráter. Todos os atos sociais já pressupõem

existente um consenso acerca dos acordos entre as pessoas (STEIN, 2013, p. 187).

Para as relações sociais, Edith Stein sustenta que essas pressupõem um contexto

de conhecimento compartilhado entre as pessoas, fazendo assim emergir a centralidade

do eu-tu: as relações sociais não são somente ações de, mas ações entre pessoas. Trata-

se de uma gramática fenomenológica da relação não simplesmente teorizada, mas

“vivida” e ilustra esta vivência da seguinte forma:

Até que eu vivo sentimentos de amizade em relação a alguém sem que o outro

tenha consciência e lhes retribua, não existe ainda amizade entre nós. Somente

227
quando dois seres humanos expressam reciprocamente seus sentimentos, apenas

quando um conhece as ações do outro e lhes retribui, ocorrerá uma relação de

amizade. As pessoas nesta relação, são amigas. A partir desse momento, esta

relação faz parte do seu ser pessoal e contribui para determinar sua vida [/136].

(STEIN, 2013, p. 187).

Aqui se coloca a clássica visão steiniana das experiências comunitárias: a

solidariedade que caracteriza as relações sociais pode ser alcançada somente quando as

pessoas compreendem ou são conscientes do sentido construtivo do que significa viver

na experiência do outro.

A pessoa é membro da estrutura social. Edith Stein ressalta neste terceiro aspecto

que a comunidade é a mais alta forma de sociabilidade e revela uma estrutura unitária

onde convergem tanto as relações quanto os atos. Enfatiza a relação entre as partes e o

todo, e mais especificamente a relação eu-outro, eu-nós. Contudo, as comunidades não

são pessoas, mas são semelhantes a estas. Edith Stein diz que “é possível falar de

comunidade num sentido mais amplo não somente onde existem relações recíprocas

entre as pessoas, mas onde as pessoas se apresentam também como unidades, no interior

das quais essas se ligam a um nós” (STEIN, 2013, p. 188). Os temas que emergem aqui

são aqueles de história, espírito e valores relacionados com a ideia de humanitas: “na

base de cada comunidade humana, tanto daquelas efêmeras como daquelas “de natureza

substancial”, há uma comunidade universal que abraça todas: é a humanidade”. χssim,

o homem é desde sempre um ser social inserido numa comunidade, mesmo que não esteja

consciente disso. Porém, o que dá dignidade e consistência a humanidade, em última

instância, é o fato de ela ser partícipe da vida do “homem-Deus”, ou seja, sua unidade

está fundada em Deus (STEIN, 2013, p. 189).

228
Mas qual é a relação entre a constituição essencial do ser humano e os laços

comunitários? Para avançar no aprofundamento desta temática as fontes mencionadas

por Stein são: D. von Hildebrand, Metafísica da comunidade (1930) e F. Tönnies,

Comunidade e Sociedade (1887). Stein também fez referência a esta última no ensaio de

1922, Psicologia e ciências do espírito. Contribuições para uma base filosófica, mais

precisamente na introdução do capítulo Indivíduo e comunidade. Assim como a unidade

do “nós”, a com-unidade é perpassada pelas ideias de alteridade e de espírito, o nós é

para Edith Stein fundado teologicamente; e, em nota, faz referência ao Corpus Christi

Mysticum. Lê-se:

É possível falar de comunidade em sentido amplo, não só onde há relações

recíprocas entre as pessoas, mas lá onde essas pessoas também se apresentam

como unidade, dentro da qual estão ligadas a um nós. Essas estruturas podem ser

transitórias e temporárias; podem, contudo, ter uma consistência que vai além do

atual estar junto de pessoas; falo da comunidade no sentido estrito do termo

quando há uma comunidade de vida permanente entre pessoas, que atinge até as

profundezas, e lhe atribui uma marca duradoura; uma comunidade que não se

funda somente sobre relações passageiras ligadas ao presente, mas também sobre

laços objetivos supraindividuais, que possui sua própria lei de formação segundo

o que se realiza e se desenvolve, da mesma forma que uma pessoa humana

individual (STEIN, 2013, p. 188-189).

Chegamos ao último aspecto o da sociabilidade, isto é, ao tipo social. O síngulo

ser humano compreendido como membro de uma comunidade é também um tipo. Edith

Stein observa que um indivíduo pode possuir no seu ser algo em comum com os outros

no interior de uma comunidade, mas existem também diferenças que o distingue dos

outros. Ela exemplifica com dois distintos tipos de alemães: Suábia e Bavarian. Uma

229
pessoa pode pertencer a diferentes comunidades e podem existir numerosos tipos que

convivem em uma comunidade particular. Edith Stein quer mostrar, dessa forma que

existem diversos tipos de seres humanos e que são pessoas. Todos pertencem a

comunidade humana universal que ela chama de humanidade.

Analisa a etimologia grega da palavra tipo, fazendo notar que nos encontramos

diante de um território ontológico, porque typos significa “aquilo que é formado como

um todo configurado”:

Typos em grego significa, em primeiro lugar, golpe, colisão, e depois aquilo que

é formado, que se configura de certa maneira em virtude de uma manipulação

externa. Neste sentido, é utilizado tanto em referência à técnica de escultura

quanto em referência ao caráter [...]. Não é possível designar o ser humano como

tipo em sua particularidade se esta característica é considerada como irrepetível.

Se se define um tipo como um todo configurado (Gestaltganzes) que pode se

apresentar em uma multiplicidade de exemplares, de tal modo se poderia resumir

o que é indicado pelo significado da palavra de acordo com o uso linguístico atual

(STEIN, 2013, p. 192).

O fundamento interior do tipo social implica a possibilidade de uma

transformação do que já é formado: pode assim surgir um elemento que não se sobrepõe

nem se justapõe, mas gera o novo. Mas, na formação da pessoa é necessário considerar

algo para além do contexto social em que está inserido e do qual assume inúmeras

características. Se, na fé, assume-se Deus enquanto o criador, e deste crê-se na alma,

reconhece-se o ser humano enquanto portador de um todo “corporal-anímico”, sendo a

alma o que lhe há de mais próprio (STEIN, 2013, p. 172-176).

Comunidade povo

230
Quanto ao conceito de Povo, Stein (2013, p. 199-218) aponta que este é formado

por indivíduos, tem uma história e um local geográfico, e suas ações são determinadas

pelos seus membros, dos quais há aqueles que possuem a mentalidade ou consciência do

todo e se dedicam a ele. Também o povo tem relações internas e externas, a segunda se

dá com outros povos e a primeira no âmbito interior de formação, organização e

linguagem, ou seja, em sua cultura. Assim, um povo possui laços de sangue (mas não

somente), se baseia em uma comunidade espiritual, e tem em seu horizonte a

possibilidade de organizar-se em Estado.

Para Stein, nascer em um povo, mais do que receber dimensões deste e assumi-las

na medida em que se desenvolve, é também agir dentro do povo. O modo de ser de um

povo está afinado a sua cultura e ao seu sentido, que mesmo que o povo desapareça pode

permanecer, com isso se encontra uma realidade para além do tempo. E a grande

importância do conceito de povo para a humanidade se funda no “homem-Deus” que tem

importância para toda a humanidade por ser o redentor, o qual fez parte de um

determinado povo e a partir dele agiu para a humanidade (STEIN, 2013, p. 207-210).

Contudo, a relevância da vida está para além da ação para o povo, ela está dada

por ser vida humana e relacional e, portanto, amorosa, uma vez que o amor embasa a

existência da comunidade, assim a vida é movida por um valor e com isso está

participando do eterno. Pois, “amar uma pessoa implica dar uma resposta ao seu valor

pessoal e participar deste valor; ainda mais: é preciso protegê-lo e conservá-lo” (Stein,

2013, p. 212). Assim, o valor de uma comunidade se mede pela densidade de seus valores.

Do bom e do belo que circundam o humano provém a noção de um ser supremo o qual o

homem quer servir, pois nele se encontra no eterno, e a vida valiosa possui sentido. E aí,

se vê um modo positivo do perder-se de um povo, ao deixar o povo que está caminhando

para a perdição, um novo povo pode surgir. E todo aquele que está consciente de pertencer

231
a um povo possui responsabilidades para com ele, o que pressupõe uma determinada

estatura espiritual. Enfim, a formação do ser humano tem muito a ver com seu povo, mas

se deve, em última instância a Deus, a quem deve seu ser diretamente e indiretamente –

por meio de seu povo e da humanidade. Assim, Deus é quem determina a importância das

comunidades e as funções do homem dentro delas, e o cumprimento das mesmas está sob

a responsabilidade e liberdade humanas. E dentro do homem há uma esfera livre de toda

a sua transitoriedade e que responde somente a Deus. Deste modo, o valor do homem está

em ouvir o chamado de Deus (STEIN, 2013, p. 212-213).

Edith Stein demonstra que tanto a pessoa humana quanto o povo possuem

relações sociais, as quais em última análise sempre ocorrem entre indivíduos, contudo são

indivíduos culturalmente marcados por determinado povo, e com isso sempre as relações

são entre representantes de povos. Além disso, é marcante a iniciativa de fundar tanto a

pessoa humana quanto o povo em algo para além das pessoas, do tempo, e da história –

Deus. Ao ver na constituição do ser humano um ser corporal-anímico209 ao mesmo tempo

percebe que também o povo possui uma esfera espiritual e que a história do mesmo é feita

por aqueles que atingiram uma determinada maturidade de consciência coletiva.

Uma grande conclusão do texto analisado pode ser a seguinte – Deus é o

fundamento e sentido último de toda e qualquer relação social, seja ela do indivíduo ou

do povo. Dessa forma, Stein fala de um sentido que ultrapassa as últimas realidades da

existência, assegurando que o ponto de partida para a compreensão do ser humano não se

finde nele mesmo enquanto finito, mas abre-o ao infinito. O que, automaticamente, gera

uma implicação ética, a de reconhecer o infinito no outro, seja o outro indivíduo ou povo.

Este reconhecimento do infinito do outro embasado no infinito do outro fundante (Deus)

209
A esta formulação fica o interesse de relacionar a concepção de corpo-anímico de Stein ao conceito de
soma-pneumatikon de Paulo. Teria ela se baseado no autor da Carta aos Coríntios?

232
e em relação com o infinito do eu, traça por si só um caminho comunitário em que o eu e

o outro se encontram no outro fundante que é eterno. Assim, o ser social da pessoa é

lançado em uma relação eterna por estar entrelaçada por Deus.

É importante destacar que Stein fala do “homem-Deus” que escolheu integrar

um determinado povo para agir de forma redentora. Ao dizer isso, acende a possibilidade

de uma outra questão ética, abrindo o ser humano ao referencial último da existência.

Sabendo de sua conversão ao catolicismo se pode afirmar que este “homem-Deus” é Jesus

Cristo, o qual serve de referencial ético de duas formas – totalmente homem e totalmente

Deus. Assim, além de fundar a vida, Deus é também aquele que a realiza e a vive

humanamente, podendo mover todos os seres por meio da relação com Ele. Apesar de

não estar explícito neste texto, também é necessário lembrar que o Deus cristão é

Trindade, ou seja, é em si mesmo comunidade que já engloba a humanidade.

Considerações finais

As contribuições de Edith Stein são fundamentais para compreender o problema

da dicotomia pessoa-comunidade que enfrentamos em nossas sociedades. O pensamento

de Edith Stein possui conotações éticas, uma vez que se entende a ética como base da

dimensão relacional da pessoa humana. Nesse sentido, a abordagem de Edith Stein, ao

tratar do ser humano e dessas relações, faz com que se pense na perspectiva não somente

da ética do indivíduo, mas da ética do povo ou da comunidade como um todo.

De fato a estrutura da pessoa humana e da comunidade em Edith Stein se dá por

meio desta síntese filosófico-teológica que reconhece a dignidade humana a partir de sua

humanidade, sendo que sua humanidade já é em si digna por estar fundada em Deus.

Embora não se tenha tratado deste tópico especificamente no texto analisado sabe-se da

grande importância dada por Edith Stein a empatia. Com a empatia conhecemos nós

233
mesmos e re-conhecemos os outros como semelhantes a nós, outros eus, em reciproca

doação de sentido. A empatia nos leva a reconhecer que o outro não é o diferente. O ato

empático cura qualquer tipo de indiferença. As relações sociais devem se dar a partir da

empatia, pois este é o mecanismo que permite uma relação social ética. A empatia,

enquanto este sentir dentro do outro já é em si carregada de alteridade, e, portanto,

elemento basilar para se pensar e fazer ética. Assim, empatia e mística são duas dimensões

das relações éticas do homem, pois dizem respeito ao relacionamento com o outro e com

Deus. Para Edith Stein empatia diz relação intra e interpessoal, manifesta a relação entre

o próprio e o estranho, entre aquilo que me envolve em primeira pessoa e aquilo que se

dá no contexto do meu viver (MANGANARO, 2014). Compreender a essência do seu

pensamento crítico e coerente, especialmente sobre a empatia, se constitui um dos meios

mais completos para uma fecunda atuação da fenomenologia do direito, para a

compreensão da passagem da consideração filosófica da pessoa humana àquela teológica.

Enfim, a abordagem de Edith Stein sobre a pessoa e a comunidade possui na sua

formulação teórica um caráter relacional ontológico e oferecer respostas aos diversos

tipos de dicotomias presentes em nossa cultura. A perspectiva de fundar uma ética em

Deus é válida e urgente, do contrário, apesar de enriquecida pela perspectiva do outro, a

ética enquanto relação mística seria aniquilada, e a pessoa humana estaria condenada a

não desenvolver sua vida e suas relações ao nível mais alto da existência humana, que é

a relação com Deus. Não importa se somos chamados a agir numa comunidade mais

restrita ou mais ampla, mas sim, importa a consciência de que o nosso agir numa

comunidade será fecundo também para a comunidade maior. Resumindo o pensamento

de Edith Stein e tendo em consideração o conjunto de suas obras, podemos dizer que a

comunidade se coloca no nível espiritual, na esfera dos valores onde o conceito

comunidade se entrelaça com o de com-unidade. A comunidade é considerada uma

234
personalidade de ordem superior, que não elimina a singularidade, mas a potencializa ao

multiplicá-la. Não a relativiza, não absolutiza, mas a compreende num conjunto, num

todo mais amplo, fundado sobre uma gramática fenomenológica da relação.

Referências

MANGANARO, P. Empatia. Padova: Ed. Messaggero di Padova, 2014.

STEIN, E. Essere finito e Essere eterno. Per una elevazione al senso dell’essere. Roma:

Città Nuova, 1988.

STEIN, E. Il problema dell’empatia. Roma: Studium, 1998.

STEIN, E. Introduzione alla filosofia. Roma: Città Nuova, 1998.

STEIN, E. La struttura della persona umana. Corso di antropologia filosofica. Roma:

Città Nuova-OCD, 2013.

STEIN, E. Psicologia e scienze dello spirito. Contributi per una fondazione filosofica.

Roma: Città Nuova,1996.

235
EDITH STEIN E O CONCEITO DE PESSOA

Juvenal Savian Filho*

Universidade Federal de São Paulo

E-mail: jsfilho@usp.br

Resumo: Este artigo interroga por que Edith Stein, numa primeira fase de sua obra,

associa o conceito de pessoa apenas ao caráter espiritual do ser humano e, numa segunda

fase, baseada na experiência intersubjetiva, o associa à individualidade. Destaca também

elementos da releitura steiniana da definição dada por Boécio e termina pela análise do

modo como a filósofa inverte a aproximação tradicional do conceito de pessoa e o

mistério cristão da Trindade: em vez de falar do ser trinitário divino com base em tríades

observadas no ser humano, Edith Stein descreve o ser humano uno com base nos dados

revelados sobre a Trindade.

Palavras-chave: pessoa; espiritualidade; individualidade; intersubjetividade; trindade.

EDITH STEIN AND THE CONCEPT OF PERSON

Abstract: This paper asks why Edith Stein, in the first phase of her work, associates the

concept of person only to the spiritual nature of human beings and, subsequently, based

on inter-subjective experience, associates it with the individuality. This paper also

emphasizes some elements of steinian reinterpretation of the definition given by Boethius

and ends by examining how the philosopher reverses the traditional relation between the

concept of person and Christian mystery of Trinity: instead of relying on human triads to

*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.

236
speak about God, Edith Stein is based on Trinity’s biblical revelation to describe the

human being.

Key words: person; spirituality; individuality; intersubjectivity; trinity.

Edith Stein emprega o termo pessoa, ao longo de sua obra, para referir-se ao

indivíduo humano como ser que se destaca no conjunto da Natureza por sua capacidade

de reflexão, autorreflexão, apercepção de valores e comunicação, quer dizer, por sua

espiritualidade.

Já em sua tese de doutorado, O problema da empatia, aparece sua primeira

concepção de pessoa como o ser dotado da legalidade racional da vida espiritual

(Vernunftgesetzlichkeit des geistigen Lebens)210. Se a vida psíquica ou a alma refere-se,

em geral, à dimensão da vida que não se reduz ao conjunto dos eventos físicos

causalmente condicionados e aos quais estão sujeitos os indivíduos por seus corpos, o

espírito designa a dimensão da consciência e propriamente da consciência pura.

Em outras palavras, o indivíduo humano é pessoa porque pode escapar às malhas

da Natureza pela consciência e é capaz de captar o movimento natural como objeto ou

fenômeno que se doa à sua consciência, o que faz Edith Stein dizer: “a consciência como

correlato do mundo objetivo não é Natureza, mas espírito”211. Essa concepção será

mantida na obra Introdução à filosofia, receberá novas conotações na Estrutura da pessoa

humana e será sintetizada em Ser finito e ser eterno pela definição tomada de Boécio de

210
Cf. O problema da empatia IV, 7, a (p. 131). Indicaremos aqui, entre parênteses, a página
correspondente nos respectivos volumes da edição crítica (ver bibliografia).
211
Ibidem IV, 1 (p. 108).

237
Roma: pessoa é a essência individual de natureza racional (Einzelwesen von vernünftiger

Natur)212.

Entre o primeiro uso de pessoa e a definição boeciana retomada por Edith Stein na

fase madura de seu pensamento não há diferenças radicais, mas apenas esta: a noção de

substância individual de natureza racional enfatiza a individualidade (dotada, está claro,

de racionalidade), ao passo que o primeiro uso dedicava-se a apenas apontar para a

racionalidade (espiritualidade) como a marca distintiva do ser humano em meio à

Natureza. Certamente, Edith Stein, ao escrever O problema da empatia, não tinha em

mente o que realizaria em Ser finito e ser eterno, ou seja, um projeto filosófico de

reinterpretação fenomenológica do pensamento clássico fundado em Platão, Aristóteles,

Santo Agostinho, Santo Tomás e Duns Escoto. Por isso, enfatizar a individualidade não

era uma preocupação central da primeira fase de seu trabalho, como será no meio e no

fim dele (por exemplo, na Estrutura da pessoa humana e no Ser finito e ser eterno ou na

Ciência da cruz). Entender sua definição de pessoa, ou ainda, investigar o sentido de ela

ter assumido a definição boeciana de pessoa requer, portanto, entender sua necessidade

de enfatizar a individualidade.

Uma primeira resposta, aliás óbvia, consiste em dizer que Edith enfatizará a

individualidade porque assim o fizeram os autores que ela toma como referências na

metade e no final de sua vida. Porém, dizer apenas isso não significa explicitar o sentido

de seu trabalho intelectual. É preciso manter a pergunta pelo porquê de sua ênfase na

individualidade. Para respondê-la, o caminho mais indicado seria a análise da articulação

conceitual construída por Edith Stein; mas, é preciso reconhecer que ela mesma se

conecta com uma tradição que remonta a diferentes filosofias da Antiguidade e da Idade

212
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).

238
Média, de modo que recuperar os elementos centrais dessa tradição pode oferecer

condições para uma leitura mais apropriada do seu pensamento.

Há, todavia, uma dificuldade metodológica nessa tarefa: é preciso encontrar o que

justifica uma conexão entre o uso que faz Edith Stein do termo pessoa com a história

desse termo. Isso quer dizer que é preciso localizar, no próprio texto steiniano, referências

que mostrem o quanto Edith Stein tinha consciência dessa história. Do contrário, corre-

se o risco de reconstruir arbitrariamente um percurso histórico sem que nada garanta que

ele pode iluminar o sentido do uso do termo em Edith Stein. Agrava essa dificuldade o

fato de que Edith Stein, na única ocasião em que dá uma definição direta de pessoa, cita

a definição de Boécio sem mencioná-lo e fornece como fonte a questão 29 da primeira

parte da Suma de teologia de Tomás de Aquino213. Isso torna difícil, evidentemente,

afirmar com segurança que Edith Stein dedicou-se ao estudo detalhado da história do uso

do termo pessoa, mas, ao mesmo tempo, garante que ao menos um “momento” dessa

história foi por ela investigado, qual seja, o da interpretação do termo feita por Tomás de

Aquino. Esse momento, porém, remete necessária e explicitamente a outros dois, de modo

que se pode pretender que Edith Stein os conheceu. São eles a definição de pessoa dada

por Boécio e a redefinição elaborada por Ricardo de São Vítor, fundamentais para Tomás

de Aquino, que as analisa no conjunto das questões 27-29 da Prima Pars da Suma de

teologia, tomada por sua vez como base por Edith Stein.

O conceito de pessoa em Edith Stein

213
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).

239
No presente texto, não percorreremos a linha conceitual que certamente Edith Stein

reconstruiu e que remonta de Tomás a Boécio, passando por Ricardo de São Vítor214.

Ater-nos-emos ao que nos parecem ser duas “fases” em continuidade direta no emprego

steiniano do conceito de pessoa.

Em O problema da empatia, tal conceito serve para designar em geral a

espiritualidade do indivíduo humano ou a constituição espiritual de cada ser humano.

Edith Stein não dá uma definição direta do termo; aliás, é algo notável que, ao longo das

partes II e III, há pouquíssimas ocorrências de Person; Edith prefere falar de Individuum.

Porém, na parte IV, ao tratar do conceito de espírito e de ciências do espírito (hoje

conhecidas como ciências humanas), Person aparece amplamente. Isso confirma que, na

primeira fase do pensamento steiniano, pessoa é apenas uma referência ao indivíduo

humano psicofísico e espiritual, quer dizer, ao ente que, em meio à Natureza, destaca-se

por ter, “além” de um corpo e uma alma, também um espírito. Estas são as características

que constarão do conceito de pessoa com que lida Edith Stein em sua tese de doutorado215:

individualidade, legalidade da razão e apercepção de valores.

Essas notas são confirmadas pela obra Introdução à filosofia, em que Edith fala

claramente de pessoa como ser vivente dotado de uma vida de consciência216. Nessa obra,

entretanto, há, por assim dizer, uma evolução com respeito ao conceito de pessoa presente

214
Esse caminho conceitual e a sua exploração por Edith Stein são por nós apresentados em detalhe no
artigo O conceito de pessoa e sua história em Edith Stein, que será publicado em 2015 na coletânea
organizada pelo Prof. Dr. Tommy A. Goto, da Universidade Federal de Uberlândia.
215
Cf., por exemplo, ibidem, IV, 3 (pp. 116-126). É curioso notar que esses dados são explorados numa
passagem em que Edith Stein se vale de uma obra de Wilhelm Dilthey, para criticá-la, intitulada
Contribuição para o estudo da individualidade (Beiträge zum Studium der Individualität), mas, em vez de
falar de individualidade, Edith Stein prefere falar de personalidade. Não há dúvida de que, nesse uso, ela
sofreu influências não só de seu orientador, Edmund Husserl, mas também e sobretudo de Max Scheler,
a cujas conferências Edith assistiu em Gotinga e que foram depois publicadas na forma de livro, com o
título O formalismo na ética e a ética material (Der formalismus in der Ethik und die materiale Wortethik).
Edith, aliás, toma essa obra como base de sua investigação do sentimento, da emoção e do valor.
216
Cf. Introdução à filosofia II, II, 4 (p. 142).

240
em O problema da empatia, pois Edith Stein explora dois elementos que só apareciam

discretamente em sua tese de doutorado: (i) a afirmação da intersubjetividade como

condição da experiência individual; (ii) a afirmação de um núcleo pessoal ou ponto de

irradiação de onde brota o modo de o indivíduo realizar aquilo que tem de comum com

sua espécie.

A afirmação da intersubjetividade como condição da experiência individual é

elaborada por Edith graças a uma experiência inegável: embora as sensações possuam

algo de inteiramente subjetivo, elas também possuem algo de objetivo, observável pela

coincidência do conteúdo percebido por diferentes sujeitos. Em outras palavras, ainda que

a sensação se realize em primeira pessoa, seu conteúdo mostra ser o mesmo percebido

por outros indivíduos, o que mostra haver uma independência da coisa percebida em

relação àqueles que percebem. A essa experiência Edith chama intersubjetividade: a

experiência do mundo exterior compreende a relação com outros sujeitos. Assim, na

existência individual mesma haveria uma orientação para a alteridade, sem a qual cada

indivíduo sequer teria consciência de si mesmo217. No entanto, garante-se também que a

sede da consciência é individual, pois, embora os conteúdos da percepção em geral

possam ser idênticos, cada sujeito colhe-os de maneira inteiramente única e

incompartilhável.

Essa será a base para Edith Stein exprimir a experiência individual como

experiência nascida de uma fonte de irradiação ou núcleo próprio de cada sujeito. Ela

observa que cada indivíduo não reproduz simplesmente aquilo que tem de comum com

sua espécie, quer dizer, seus condicionamentos, mas imprime-lhes sempre uma feição

inteiramente singular. A essa fonte de irradiação ou cerne da alma, Edith denomina

217
Cf. ibidem, Introdução, 7 (pp. 93-98).

241
essência da pessoa218. Deve-se cuidar, aqui, para não associar tal cerne com um ponto,

ao modo de uma descrição espacial; trata-se, ao contrário, de um modo de ser, um ato.

Isso é bastante visível na análise do caráter, pois, como diz Edith Stein, “pode-se estar de

acordo com os outros sobre as qualidades de caráter de alguém e de seus valores, e pode-

se mesmo exigir de mim ‘atenção’ a seus valores, mas que eu deva amar esse alguém em

função desses valores, isso não se pode requerer de mim; afinal, se e como amo alguém

é algo que se funda sobre o modo como as suas peculiaridades vêm ao encontro das

minhas; é algo absolutamente único, assim como são únicas tais peculiaridades”219.

Raciocinando pelo absurdo, podemos dizer que, se cada indivíduo não vivesse de modo

inteiramente próprio e singular aquilo que tem de comum com outros indivíduos, então a

apercepção de qualidades em alguém (experiência partilhada por vários sujeitos)

obrigaria a todos os que têm essa apercepção a amar esse alguém. Quer dizer, para todo

indivíduo cujas qualidades fossem percebidas por um grupo de sujeitos, haveria um amor

automático da parte desse mesmo grupo. Ora, o absurdo dessa proposição confirma que,

apesar da objetividade da apercepção das qualidades de um indivíduo, o fato de alguém

amá-lo dependerá do modo individual de esse alguém viver a apercepção. A esse modo

individual, essência da pessoa, centro e fonte de irradiação, Edith Stein também chama

de “coloração” individual, formada de sentido e valor220.

Pode-se dizer, portanto, que o conceito de pessoa com que Edith Stein opera já na

Introdução à filosofia não apenas escapa ao risco de definir o indivíduo em função da

espécie, mas insere na própria individualidade uma abertura à alteridade ou um ser

relacional. É curioso, porém, que ela não ofereça uma definição direta de pessoa. Ela não

218
O uso da palavra essência, aqui, não remete ao sentido metafísico ou como se entendia no pensamento
antigo, medieval ou neoescolástico. O leitor é convidado a pensar na noção de essência tal usada
especificamente pela fenomenologia de matriz husserliana. Ver nota 15, adiante.
219
Ibidem, II, II, B, 3, c, a (p. 158).
220
Cf. idem, ibidem.

242
o faz nem em sua maior obra de antropologia, a Estrutura da pessoa humana, mas apenas

descreve o que é ser pessoa ou o que é a pessoalidade. Nessa última obra, Edith fala

majoritariamente de ser humano, reservando o termo pessoa para momentos estratégicos

de sua análise. Num desses momentos, ela esclarece com termos eloquentes o que

considera a espiritualidade característica do ser humano e a nota central do conceito de

pessoa:

(...) o ser humano pode e deve formar-se a si mesmo; (...) ele é um ser que diz

‘eu’; nenhum animal pode fazê-lo; olho nos olhos de um animal e vejo algo

que me olha; vejo um interior na sua alma, uma alma que dá atenção ao meu

olhar e à minha presença, mas é uma alma muda e prisioneira, aprisionada em

si, incapaz de ir além de si mesma e compreender-se, incapaz de sair de si

mesma e unir-se a mim; olho nos olhos de um ser humano e o seu olhar me

responde, deixa-me entrar na sua interioridade ou me afasta; é senhor de sua

alma e pode abrir ou fechar as portas; (...) espiritualidade pessoal significa

vigilância e abertura; não só existo, não só vivo, mas tenho consciência do

meu existir e do meu viver; e tudo isso em um único ato; (...) a vida espiritual

é também um saber originário a respeito do outro, é ser nas outras coisas, ver

dentro de um mundo que está diante da pessoa; a consciência de si é abertura

para a interioridade, a consciência do outro é abertura para o exterior; eis uma

primeira interpretação da espiritualidade221.

A essa altura, percebe-se como a espiritualidade inclui as três notas do conceito de

pessoa já evocados aqui: a individualidade, a racionalidade e o sentimento. Essas

características compõem o conceito de pessoa desde que ganhou cidadania filosófica, na

221
Estrutura da pessoa humana VI, II, 1 (p. 106).

243
era Patrística. Mas Edith Stein desenvolve virtualidades nelas contidas, explorando a

intersubjetividade (o que insere na ideia de pessoa a inter-relação) e o centro da alma (o

que põe em primeiro plano a singularidade de cada indivíduo, sem concebê-lo apenas em

função do que é comum à espécie humana). Podemos dizer que esses dois elementos,

enfatizando a singularidade de cada indivíduo humano, constituem a segunda fase da

compreensão steiniana da noção de pessoa. Esse termo não mais designa simplesmente a

espiritualidade de cada ser humano (tal como fazia Edith em O problema da empatia),

mas agora articula tal espiritualidade com a radical individualidade de cada ser humano

(tal como aparece em A estrutura da pessoa humana). A estratégia dessa articulação é a

exploração do fundamento da experiência subjetiva (tal como já aparece em Introdução

à Filosofia).

O ápice da compreensão steiniana do conceito de pessoa

O ápice da segunda fase talvez seja obtido em seu final, não por ser “final”, mas

por lançar mão de recurso que traz clareza sem igual à compreensão da noção de pessoa.

A preparação desse clímax faz-se desde a A estrutura da pessoa humana, mas eclode em

Ser finito e ser eterno, quando Edith Stein toma o modelo teológico cristão da Trindade

como base para explicar a pessoa humana.

Com efeito, historicamente, ao escrever A estrutura da pessoa humana, Edith já

havia sido convertida pela fé cristã e estudava assiduamente o pensamento escolástico.

Tomás de Aquino e Duns Escoto oferecerão a Edith Stein, na fase madura de seu

pensamento, recursos que permitirão sofisticar sua fenomenologia222. É o que se observa

222
O leitor sem intimidade com a fenomenologia de Husserl poderá introduzir-se nessa filosofia pela
leitura da Introdução à filosofia, de Edith Stein, e pela leitura do próprio Husserl (os textos talvez mais
acessíveis são as Meditações cartesianas e A crise das ciências europeias e a fenomenologia

244
com o conceito de pessoa, pois Ser finito e ser eterno será a única obra em que Edith o

definirá explicitamente, retomando a definição dada por ψoécio: “pessoa é uma

substância individual de natureza racional” (Einzelwesen von vernünftiger Natur)223.

Edith tem o cuidado de, ao traduzir em alemão, não utilizar o termo Substanz, mas

Wesen, o que mostra sua intenção de manter-se no registro fenomenológico mesmo

transcendental). Enquanto não adentra na obra mesma dos dois filósofos, pode ser-lhe útil a leitura do
apítuloà Fe o e ologiaà et di a:àEd u dàHusse l , no livro A filosofia contemporânea, de Wolfgang
Stegmüller (Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Vol. 1. São Paulo: EPU, 2002, pp. 58-91), do livro
Husserl, de Jean-Michel Salanskis (Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Estação Liberdade,
2006), e do livro Pessoa humana e singularidade em Edith Stein, de Francesco Alfieri (Org. e trad. Clio
Francesca Tricarico. São Paulo: Perspectiva, 2014). Sem pretender definir em poucas linhas o sentido da
fenomenologia, damos aqui um breve exemplo, tomado de Edith Stein. Em sua tese de doutorado, sobre
O problema da empatia, ela pretende descrever o que são os atos empáticos e explica que eles são atos
nos quais uma pessoa pode entender o que outra pessoa vivencia. Todo um campo de questões desenha-
se em torno dessa explicação. Por exemplo, como sei que o que eu vejo no outro corresponde realmente
ao que ele vivencia? Se a vivência é do outro, como posso dizer que tenho a mesma vivência ou que capto
exatamente o sentido da vivência alheia? Ao tratar dessas questões, Edith Stein diz que uma
fenomenologia da empatia descreve o que a empatia é; identifica a essência da empatia. Isso não significa
explicar como surge a empatia; explicar como surge é o trabalho da psicologia. A psicologia, por sua vez,
não pergunta pelo que é o ato empático, mas já lida com uma definição dele e procura explicar sua origem
em cada indivíduo. Cabe à fenomenologia clarear a essência disso que é pressuposto pela psicologia. Esse
exemplo permite entender um pouco melhor a concepção da fenomenologia como ciência das essências.
Ela clareia as essências que são pressupostas por todos os tipos de saber e mesmo da experiência
cotidiana. Com efeito, a fenomenologia não considera nada como pressuposto (não só os objetos dos
saberes, mas também o próprio mundo, as experiências psíquicas, o senso comum, tudo enfim); ela busca
cavar o sentido desses pressupostos, as essências de tudo aquilo que parece natural em nossos atos de
consciência. O leitor não pode, porém, ter em mente uma concepção de consciência ao modo moderno
do empirismo ou do idealismo (a consciência como tabula rasa na qual se inscrevem dados vindos da
sensação ou como instância habitada por ideias que seriam projetadas na sensação, a fim de iluminá-la).
Na fenomenologia, a consciência é o modo de ser do ser humano, é sua relação com o mundo e com si
mesmo, donde Husserl falar de fluxo de atos em que a atenção está sempre voltada para algum objeto
(consciência é consciência de alguma coisa). Ao investigar a consciência, Husserl se dá conta de que a
atividade consciente opera com formas universais (essências) reveladas pelo modo como as coisas
aparecem (fenômeno) para a consciência. Desse modo de aparição ou fenômeno vem o termo
fenomenologia. Não se trata, porém, do fenômeno em sentido kantiano, como se por trás da aparição
das coisas houvesse aquilo que as coisas são em si mesmas. Para Husserl, não há coisa em si diferente de
fenômeno, pois o que as coisas são é o que elas mostram de si. Esse mostrar-se ou doar-se das coisas
mesmas revela a essência delas, o que elas são. Por exemplo, uma cor é sempre ligada a uma superfície;
um triângulo é sempre convexo etc. Estar ligada a uma superfície é uma característica da essência da cor;
ser convexo é da essência do triângulo; e assim por diante. As formas universais ou essências não são,
portanto, formas unidas a matérias, como se fossem partes de um todo. O leitor deve ficar atento para
não associar a palavra essência, da fenomenologia, com a maneira geral de as pessoas falarem de essência
em sentido escolástico ou platônico-aristotélico. Mesmo Platão, Aristóteles e os Escolásticos não viam as
ess iasà o oà oisas à ueàe t a à aà o posiç oàdeà adaàe te.àáà espeitoàdeàTo sàdeàá ui o,àauto à
caro a Edith Stein, vale a leitura do capítulo sobre sua filosofia no livro A filosofia na Idade Média, de
Étienne Gilson (Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996). Na continuação deste artigo, o
termo essência adquirirá caráter central, de modo que o leitor é convidado a redobrar sua atenção, a fim
de não o confundir com o que as vulgatas filosóficas dizem a respeito desse termo.
223
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).

245
quando lança mão de elaborações medievais ou escolásticas. Mas o sentido é o mesmo:

essência (Wesen) indica uma unidade de sentido tanto quanto substância (Substanz). Sua

definição, a rigor, seria: “pessoa é uma essência individual de natureza racional”.

Na definição de Edith Stein, desaparece a redundância de que se podia ver na

definição de ψoécio (falar de “substância” e de “substância individual”), pois Edith ela

tira o foco de atenção da existência como suporte (substância) e transfere-o para a unidade

de sentido (essência). No entanto, ao citar a definição em latim, ela explica que se fala de

substância individual porque a pessoa contém em seu quê (isto é, em sua identidade) algo

de incomunicável (Unmitteilbar) que não partilha com nenhuma outra224.

Essa explicação, tomada em si mesma, não remete necessariamente ao trabalho já

feito por Edith Stein na Introdução à filosofia e na Estrutura da pessoa humana, pois

insistir na individualidade como posse de algo incomunicável não implica a afirmação da

intersubjetividade como constitutiva da natureza humana nem a garantia de que o

indivíduo não seja concebido apenas em função do que tem em comum com outros

indivíduos. Poder-se-ia, por exemplo, dizer que o que uma pessoa tem de incomunicável

é a somatória precisa de suas características, somatória essa dificilmente encontrável em

outra pessoa. Por essa razão, Edith Stein, algumas páginas adiante, enfrenta

explicitamente a tarefa de elucidar o que entende por pessoa e sua estratégia será

aprofundar a interdependência entre os conceitos de pessoa e de espírito. Nesse momento,

ela explicita o sentido do que anunciara na Introdução à filosofia e em A estrutura da

pessoa humana.

No seu dizer, só se chama de pessoa aquilo que manifesta uma essência espiritual;

e espiritual é “aquilo que é não espacial e não material, que possui uma interioridade em

224
Cf. idem, ibidem.

246
sentido obviamente não espacial e que permanece em si, saindo de si mesmo”225. Na

análise steiniana da pessoa será decisivo o jogo entre imaterialidade, permanência em si

e saída de si. O desafio é entender o que Edith Stein entendia por “permanecer em si,

saindo de si”.

Sua base é a constatação de que todo ser que diz “eu” é um ser consciente de seu

existir. Ora, sendo consciente de seu existir, este ser “permanece em si”, mas não apenas

permanece, como também vê que sua vida brota de seu interior. Vendo que sua vida brota

de seu interior, dá-se conta de que pode compreender sua vida e informá-la com

liberdade226. Informá-la com liberdade implica, enfim, “sair de si”, ir ao encontro do

mundo227. Permanência e saída (que na linguagem da Estrutura da pessoa humana

equivalem a vigilância e abertura) constituem toda a espiritualidade da pessoa e revelam

o alcance filosófico da interpretação que Edith Stein oferece à definição boeciana: é

pessoa o ser que é capaz de ter consciência em geral e consciência de si e que é orientado,

por sua constituição íntima, a sair de si e ir em direção ao outro num exercício de

liberdade.

O centro de onde jorra a consciência e a liberdade (a permanência em si e a saída

de si) é o núcleo da alma. Edith consagrará várias páginas ao tema em Ser finito e ser

225
Ibidem VII, 2 (pp. 307-308).
226
Aqui não se deve pensar em liberdade como liberdade de escolha de arbítrio, pois escolher entre x, y
ou z é só um modo – e o menos intenso – de praticar a liberdade. Por outro lado, a liberdade não é uma
indeterminação pela qual se poderia fazer o que se quer, pois essa possibilidade não é dada a nenhum
ser humano e, mesmo que fosse dada, seria autodestrutiva. Ao contrário, a liberdade consistirá na
possibilidade de cada indivíduo jogar com as determinações às quais está submetido (físicas e psíquicas)
e produzir o seu modo singular e consciente de viver. Dessa perspectiva, a materialidade e o psiquismo
são espiritualizados, quer dizer, são assumidos pela dimensão consciente, numa experiência unitária, e
deixam de ser vistos como meros condicionamentos. É nessa experiência unitária que, como diz Edith
Stein em várias obras, mas principalmente na Ciência da cruz, a pessoa pode perceber a presença divina
em si e praticar o seu maior gesto de liberdade: não sendo constrangida a crer em Deus por nenhum
ele e toà físi oà ouà psí ui o,à aà pessoaà podeà dize à si à aà eleà u aà afi aç oà adi alà deà sua própria
autonomia.
227
Cf. ibidem VII, 2 (p. 309).

247
eterno, esclarecendo que esse núcleo deve ser entendido ao modo de forma vazia228. Ela

chega a dizer que todo ser vivo tem um núcleo, que é sua própria alma e de onde brota o

modo de ser de cada indivíduo de uma espécie229; no caso do ser humano, porém, esse

núcleo não é apenas psíquico, mas espiritual, pois não se reduz à dimensão vegetativa,

sensitiva e emocional, mas inclui a racionalidade e a liberdade. Trata-se do modo único e

irrepetível pelo qual cada pessoa vive sua existência, efetivando tudo o que tem de comum

com sua espécie, porém de maneira inteiramente singular.

No entanto, não é propriamente essa descrição do ser pessoal o elemento original

do trabalho filosófico realizado por Edith Stein em Ser finito e ser eterno. A novidade

inegável está no método adotado por Edith Stein para aprofundar a compreensão de

pessoa. Ela não opera propriamente uma análise conceitual ou um levantamento de

detalhes ainda não explorados; na realidade, ela sequer parte do uso que se faz da noção

de pessoa no mundo natural. Ao contrário, Edith Stein parte do modelo teológico cristão

da Trindade divina para iluminar a compreensão da pessoa humana. Ela não assume a

definição boeciana para falar diretamente do ser humano. Ela a assume ao falar das

pessoas da Trindade, para, então, passar à pessoa humana. Esse é o procedimento

explícito do § 2 da parte VII de Ser finito e ser eterno, que Edith inicia dizendo:

A busca do sentido do ser conduziu-nos até o primeiro Ser: o Ser em

pessoa230; e mesmo em três pessoas. Para compreender isso, e à medida da

capacidade de nossa compreensão, nós esclarecemos o que se deve entender

por pessoa, a fim de obter uma nova compreensão do ser finito partindo do

primeiro Ser. Mas o ser pessoal como tal e, por conseguinte, o Ser primeiro

228
Pa aàoàse tidoàp op ia e teàditoàdaàe p ess oà fo aà azia à Leerform), ver: ibidem, IV, 3, 17-18.
229
Cf. ibidem, VII, 3, 2 (pp. 314-315).
230
A análise steiniana do ser, que conduz ao Ser primeiro, bem como sua interpretação da revelação
bíblica do nome de Deus como Aquele que é ou Eu Sou, encontram-se precisamente na parte VI e no § 1
da mesma parte VII.

248
mesmo permanecem muito obscuros para nós se não conseguimos esclarecer

a essência do espírito. Já concebemos o ser divino como ser espiritual, e, se

encaramos a pessoa como suporte de uma natureza dotada de razão, sua

natureza espiritual parece também já expressa, pois espírito e razão parecem

convir um ao outro mutuamente231.

Isso quer dizer que Edith partiu da concepção de pessoa como suporte (substância)

de uma natureza racional e deu-se conta de que, sendo o primeiro Ser uma natureza

racional, então há algo como uma pessoalidade do primeiro Ser; na verdade, por ser ele

quem é, ou seja, o ser primeiro, absoluto, ele é o Ser em pessoa. Assim, se a noção de

pessoa em seu uso adequado ao ser humano permitiu chegar a dizer que o Ser primeiro é

o modelo perfeito de pessoalidade, nada mais natural do que buscar no conhecimento da

pessoalidade do Ser primeiro elementos que clareiem a pessoalidade do ser humano. Isso

equivale a reconhecer que certos dados só podem ser conhecidos quando a reflexão

debruça-se sobre o Ser primeiro, mas, uma vez conhecidos, eles podem iluminar a

compreensão do ser criado. Trata-se de tomar o Ser primeiro como arquétipo do ser

criado.

Diferentemente de Santo Agostinho, que já havia encontrado na tríade inteligência–

memória–vontade uma base para falar da Trindade, Edith Stein tomará a Trindade (tal

como revelada e elaborada na teologia cristã) para falar do ser humano.

À guisa de introdução ao trabalho steiniano e de forma sucinta232, podemos dizer

que, segundo Edith Stein, é possível ver que, assim como o Pai é aquele de quem

procedem todas as coisas, mas que não procede ele mesmo de nada, assim é a alma

231
Ser finito e ser eterno VII, 2 (p. 307).
232
Desenvolvemos mais longamente o trabalho trinitário-antropológico de Edith Stein no artigo
mencionado na nota 5.

249
humana; por outro lado, assim como o Filho é gerado ou forma essencial nascida do Pai,

assim é o corpo humano; por fim, assim como o Espírito Santo é o que circula de modo

livre e gratuito entre o Pai e o Filho, assim é o espírito233. Por conseguinte, se Pai, Filho

e Espírito Santo são três substâncias ou pessoas unidas pela singularidade da essência,

sem produzir três deuses, assim também alma, corpo e espírito são três dimensões unidas

pela singularidade da pessoa, sem produzir um aglomerado de três partes, mas um ser

unitário em que os três componentes interpenetram-se, inhabitam-se ou circumenvolvem-

se, constituindo a essência da pessoalidade, que é identificada pela individualidade, pela

racionalidade e pelo sentimento. O corpo é imagem do Filho, porque é a dimensão que

cada indivíduo recebe de fora de si; a alma é imagem do Pai, porque é a fonte interior de

onde brota a vida de cada indivíduo; e o espírito é imagem do Espírito Santo, pois

significa movimento, amor e liberdade.

As notas da pessoalidade aparecerão, então, nos três âmbitos: o corpo não pode ser

visto como matéria inerte animada por uma alma, pois isso não respeitaria a inhabitação

entre corpo, alma e espírito. O único corpo inerte no cosmo é o mineral; e mesmo ele,

possuindo uma forma, não deixa de ser enformado pelo espírito do criador de todas as

coisas. Quanto ao corpo de uma pessoa (portanto, corpo humano) ele é já, de certa forma,

alma e espírito, assim como a alma é já, de certa forma, corpo e espírito, e assim como

espírito é já, de certa forma, corpo e alma. Por essa razão, o corpo é já dotado, a seu modo,

de individualidade, racionalidade e sentimento (ele é índice de individualidade como

233
Cf. ibidem (p. 308). Aqui é preciso ter em vista que a posição relativa das pessoas divinas no interior da
Trindade não termina numa afirmação de cada pessoa divina como dotada de uma especificidade ou
exclusividade. Quando Tomás de Aquino fala do princípio eterno (Pai) e dos principiados eternos (Filho e
Espírito Santo), pretende, em continuidade com Agostinho, apontar para o fato de que a única diferença
entre as pessoas divinas está nas relações eternas de origem, não na essência ou natureza. Então,
comparar as dimensões da trindade humana com as pessoas da Trindade, como faz Edith Stein, requer
que não se isolem nem as pessoas divinas nem as dimensões humanas, mas que elas sejam todas vistas
em sua recíproca inhabitação, como procuraremos mostrar na sequência. Ver a nota 22 do presente
estudo.

250
conjunto de características físicas e é capaz de racionalidade e sentimento), assim como

também o são a alma (motor da individualidade e capaz de racionalidade e sentimento) e

o espírito (propriamente racionalidade e sentimento, mas cuja ação colore a

individualidade movida pela alma e exteriorizada pelo corpo).

O modelo da Trindade impede que entendamos o corpo humano como mera parte

física animada por uma alma e movida por um espírito, pois isso não respeitaria a unidade

trinitária ou o modelo da inhabitação das três pessoas divinas. Isso quer dizer que, na

pessoa humana, o corpo também não é uma simples dimensão animal, mas uma

animalidade tipicamente humana. O corpo humano já é corpo-com-alma-e-espírito, assim

como a alma já é alma-com-corpo-e-espírito e o espírito já é espírito-com-corpo-e-alma.

Em outras palavras, nosso corpo é corpo de seres espirituais, corpo humano, ao mesmo

tempo em que nosso espírito é espírito de seres corporais, espírito humano. O modelo da

Trindade, assim, ilumina nossa autocompreensão por exigir que não falemos de nós

mesmos como junções de partes, mas como seres unitários em que os componentes

distintos estão implicados radicalmente entre si. Dessa perspectiva, nem o corpo será um

mero aglomerado, pois ele é estruturado por uma alma. Se o modelo da Trindade é o da

circumincessão ou inhabitação, então o Pai, o Filho e o Espírito Santo só se distinguem

por suas relações de origem; nenhum deles tem alguma característica específica que

reserva para si e não partilha com os outros. Pensar o contrário significaria romper a

unidade de essência dos três. Do mesmo modo, a pessoa humana, trinitária por essência,

é a circumincessão ou inhabitação viva de corpo, alma e espírito.

Diferentemente de todos os autores que estabeleceram analogias entre a criação e a

Trindade, Edith Stein não se restringe ao campo espiritual (falando apenas, por exemplo,

de inteligência, memória e vontade, como fez Santo Agostinho), mas inclui o corpo na

analogia. Além disso, a inhabitação das pessoas trinitárias (o que os teólogos, a partir do

251
século VI, chamarão tecnicamente de pericorese) torna-se modelo para a compreensão

da unidade existente entre corpo, alma e espírito. Ao apresentar a Santíssima Trindade

como modelo do ser humano, Edith Stein exige que se abandone toda concepção tripartite

que tome o corpo, a alma e o espírito como realidades independentes ou marcadas por

alguma fronteira. Interpenetram-se ou inhabitam-se totalmente, segundo o modelo

pericorético. Não é à toa que Franz Brentano e Edmund Husserl, quando definiram aquilo

que faz a especificidade do mental ou do psíquico em distinção com o físico (quer dizer,

a intencionalidade ou direção para um objeto; objetividade imanente à consciência),

usaram o vocabulário da teologia da pericorese: Inexistenz (existência imanente,

“existência em”) e Einwohnung (inhabitação, “habitar em”), correlativos dos termos

latinos inexistentia, inhabitatio e circumincessio. Da perspectiva do trabalho steiniano,

sequer uma expressão tão usada como “indivíduo psicofísico” é suficiente para indicar a

circumincessão entre corpo e alma, pois psicofísico conserva ainda uma conotação de

aglomerado. Mesmo quando dirá que a “energia vital espiritual” consome a “energia vital

física”, Edith não pretenderá que isso deva ser entendido como duas energias vitais. São

duas da perspectiva de nosso discurso, assim como corpo e alma são dois do ponto de

vista de nossa análise e expressão, mas, em si mesmas, essas realidades, embora distintas,

compõem uma unidade. Esse parece ser o esforço que Edith Stein exige do leitor de Ser

finito e ser eterno: não se trata de projetar na divindade a tripartição que vemos nas

criaturas, mas de projetar na criatura a não tripartição da Trindade.

252
A EMPATIA NO CORPO A CORPO DE COMUNIDADES DE COMBATE: O

CIRCUITO SENSÍVEL DO ENCONTRO – DA ARTE MARCIAL À

ABERTURA CLÍNICA

Cristiano Roque Antunes Barreira234

Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

E-mail: crisroba@gmail.com

Resumo: Uma fenomenologia do combate mostra como, em função de sua estrutura

intencional, quando as práticas sistematizadas de luta não se reduzem aos objetivos

estritamente pragmáticos de defesa pessoal ou de vitória esportiva, há o desenvolvimento

daquilo que pode ser chamado propriamente arte marcial. Os fins práticos de uma arte

marcial não se encerram em si mesmos. Configurando-se como tradição existencial, a

qualquer tempo e lugar, independentemente de suas particularizações, pode-se aplicar à

arte marcial um adágio chinês milenar, segundo o qual é necessário conhecer ao oponente

e a si mesmo. Não se tratando prioritariamente de um conhecimento discursivo e reflexivo

de si e do outro, é no corpo a corpo da luta que o ir e vir de disposições e efetivações

intencionais ganha eficácia e revela o desenvolvimento de um conhecimento intuitivo

caracterizado pela abertura e apreensão do outro. Tal desenvolvimento depende de um

silenciamento da vontade e da memória que privilegia o tempo presente. Trata-se de

engendrar uma cumplicidade capaz de partilhar e antecipar os atos alheios graças a uma

permeabilidade corporal que coloca em evidência o circuito de sensibilidade – esfera

hilética – constitutivo da empatia. Sob o norte da eficácia combativa, os praticantes de

artes marciais cultivam técnicas corporais pelo exercício recíproco da luta. Este exercício

materializa o sentido comunitário, evocado por Stein, pelo qual “um sujeito aceita o outro

234
Psicólogo, Doutor em Psicologia é Professor Associado da Universidade de São Paulo na Escola de
Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto.

253
como sujeito e não lhe tem adiante, mas vive com ele e se determina por seus motivos

vitais”.Em paralelo com o pensamento clínico de Gilberto Safra, o encontro que

potencialmente se desenvolve na luta coloca em destaque a face estética da experiência

empática. Desatada de fins estritamente práticos – defesa pessoal e esporte – o

desenvolvimento no interior de uma arte marcial passa a depender de abertura e cuidado

com relação ao outro intimamente vinculados à dimensão estética do cuidado clínico.

Palavras chave: empatia; corpo; encontro; arte marcial.

EMPATHY IN THE BODY TO BODY DIMENSION OF COMBATANTS

COMMUNITY: THE SENSIBLE CIRCUIT OF THE ENCOUNTER – FROM

MARTIAL ARTS TO CLINICAL OPENNESS

Abstract: A phenomenology of the combat shows how, due to its intentional structure,

when the systematic fighting practices cannot be reduced to strictly pragmatic purposes

of self-defense or sporting victory, there is the development of what can properly be called

martial art. The practical purpose of a martial art do not end in themselves. Assuming the

role of existential tradition, anytime, anywhere, regardless of its particularizations, it can

be applied an ancient Chinese martial art adage, whereby it is necessary to know the

opponent and yourself. Since it is not primarily a discursive and reflective knowledge of

themselves and the other, is in the body to body of fighting that the coming and going of

intentional disposals and efetivations wins efficacy and reveals the development of an

intuitive knowledge characterized by openness and grasping of the other. This

development depends on a silencing of will and memory that favors the present time. This

is engendering a complicity able to share and anticipate the actions of others through a

body permeability which highlights the sensitivity circuit - hyletic dimension -

constitutive of empathy. Under the northern of combative effectiveness, martial artists

254
cultivate body techniques by mutual exercise of the fight. This exercise embodies the

sense of community, evoked by Stein, in which "a subject accepts the other as subject and

you have him no in front of, but lives with him and is determined by its vital reasons" .In

parallel with the clinical thinking of Gilberto Safra, the encounter that is potentially

developed in fighting highlights the aesthetic face of empathic experience. Disjonted of

a strictly practical purposes - self-defense and sport - the development in a martial art

becomes dependent of opening and careful about other intimately linked to the aesthetic

dimension of clinical care.

Keywords: empathy; body; encounter; martial arts.

De pernas cruzadas ao redor de uma mesinha

Na década de 1940, já contando com mais de 75 anos de idade, Gichin Funakoshi,

mestre que é celebrado como o pai do karate moderno, abre um livro sobre sua arte

marcial com um devaneio:A imagem que eu conservava na mente enquanto escrevia (...)

era a de um grupo reunido: numa sala aconchegante, todos estávamos sentados de

pernas cruzadas ao redor de uma mesinha; bebíamos chá, enquanto eu respondia a

perguntas sobre karate (Funakoshi, 1998, p.11). A imagem é expressiva: o ancião, o

ambiente acolhedor, a deferência dos mais jovens à sabedoria. Mais de duas décadas

haviam se passado desde que Funakoshi deixara sua cidade na pequena Okinawa, onde

fora professor, migrando para Tóquio decidido a enfrentar o desafio de difundir uma arte

que apenas há pouco tempo vinha deixando de ser praticada restrita e secretamente,

sempre às escondidas. É por sua autobiografia que sabemos que seu objetivo era

contribuir educativamente com a transformação que, desde o ano de seu nascimento,

1868, a era Meiji impunha a um país que se abria à modernização e, portanto, ao Ocidente.

255
Passos bem mais largos já vinham sendo dados há tempos por um mestre de outra

prática de combate, e com quem Funakoshi estabeleceria uma relação de amizade.

Efetivando um dos dois princípios de sua arte suave, a ideia debem-estar mútuo, em

japonês jita kyoei, Jigoro Kano tivera formação universitária ocidentalizada e dominava

plenamente o inglês, quando, já na virada do século XIX para o XX, aventurou-se a

difundir o Judô pela Europa e Estados Unidos. Diz ele:O Japão já aprendeu muitas coisas

com outras nações do mundo. Em troca, ele deve ensinar algo ao mundo. No futuro, se o

Japão ensinar o judô que eu apoio, (...) contribuirá pela primeira vez para a cultura

mundial (Kano, 2008, p. 12).

O mestre do Judô viria a ser considerado o patrono da Educação Física japonesa,

seria o primeiro membro asiático do Comitê Olímpico Internacional, reitor da

Universidade de Tóquio, idealizador do Judô competitivo que, apesar de suas resistências,

viria a ser um esporte olímpico. A suposta modéstia dos feitos de Funakoshi, em

comparação aos feitos de Kano, se dilui quando se consideram suas origens. Para difundir

sua arte e torná-la aceita no restante do Japão, a exemplo do inglês dominado por Kano,

o mestre de karate precisava dominar uma segunda língua, o japonês e não apenas o

dialeto falado na pequena e humilde Okinawa. Quando se avaliam os alcances de suas

empreitadas, mais uma vez a suposta modéstia dos feitos de Funakoshi se dilui em relação

aos de Kano. Afinal, o karate se espalhou pelo mundo e se diversificou esportivamente,

abrindo espaço ao interesse público por diferentes artes marciais de variados países do

mundo, da Coréia à Tailândia, da Europa ao Brasil, para não dizer do apelo estético que

cativou o mundo cinematográfico. É interessante observar que estas duas práticas de

combate sem armas, o Judô e o karate, são os exemplares mais difundidos

internacionalmente do caminho do guerreiro japonês, o Budô, muitas vezes tomado

equivocamente como sinônimo de arte marcial (Stevens, 1997).

256
Para a temática ora abordada, interessa bem menos umacaracterização histórica e

sistemática,que especifique e diferencie estas e outras artes marciais, do que frisar alguns

pontos comuns que, nesta pequena introdução, se sobressaem junto à intenção destes dois

grandes mestres. A começar pela convicção do sentido educativo atribuído a essas

práticas de combate. Situando seu valor num momento histórico significativo para o

Japão e para o mundo, como ainda provariam os nacionalismos instilando as grandes

guerras do século XX, para aqueles mestres, o Judô e o Karate têm contribuições a dar à

formação das novas gerações e à cultura mundial. Os mestres parecem ver em suas artes

uma vocação para a universalidade, o que pode ser atribuído ao cosmopolistismo da

formação de Kano e à solidez do confucianismo na formação clássica de Funakoshi. Mas

ver essa vocação em práticas de combate, tantas vezes associadas a sectarismos familiares

em Okinawa e mesmo a disputas encarniçadas entre clãs e linhagens de estilos de jiu-jítsu

em arruaças violentas no Japão, é um mérito cuja grandeza é difícil de avaliar.

Voltemos, todavia, à imagem inicial evocada por Funakoshi na abertura de seu

livro. Ali se imprimem elementos culturais já indicados. É notório que, de certo modo, a

imagem invoque o leitor a tê-la consigo, a colocar-se imaginariamenteaí onde o

ensinamento se dá originarinalmente, no face a face, no corpo a corpo do convívio cuja

ausência desmancharia o karate em abstrações. Os contos, lendas e histórias descritos por

Funakoshi visam, segundo argumenta, esclarecer a verdadeira natureza do karate. Por um

lado, desfazer mitos e exageros sobre a arte, por outro, apresentá-la sob o vigor sereno

que, segundo a tradição defendida pelo mestre, rege a atitude do praticante, se faz melhor,

sem dúvida, quando se tem diante de si não meras palavras, mas a própria modulação

afetiva da atitude que acompanha o autor de uma narrativa. Isso é tanto mais válido por

ser tão corpórea a experiência originária recuperada na narração.

257
O combate ocorre corpo a corpo. É em relações intersubjetivas corporalmente

definidas, portanto, que as comunidades de combate podem se desenvolver. Seu

direcionamento não pode ser arbitrário sob o risco de se esfacelar. Escavar sob as muitas

formas culturais que as comunidades de combate assumem como artes marciais, não sem

a sombra de incorrer em reducionismos, possibilita explicitar elementosdeterminantes na

experiência vivencial que dá direção a essas comunidades.Talvez estejam aí mesmo as

fontes vivenciais para o projeto educativo de ordem universal a que não apenas Kano e

Funakoshi se dedicaram, mas em seus passos e no de muitos outros, diferentes tradições

culturais de combate acorrem para atualizar seu sentido. Por isso, daqui em diante,

seguiremos as pistas das mais imediatas e elementares experiências combativas, aquelas

que uma dupla de praticantes realiza intersubjetivamente. Para tanto, não é pouco o que

precisa ser posto em suspenso a fim de dar evidência à estrutura essencial dos fenômenos

em questão.

A empatia: na trilha do corpo a corpo

Nas pegadas destas pistas somos favorecidos pelo caminho anteriormente aberto

por alguns fenomenólogos. No que tange ao face a face, isto é, no que diz respeito ao

reconhecimento do outro, é o estudo da empatia, finamente realizado por Edith Stein, que

limpa o terreno de acesso à experiência intersubjetiva. Já a arqueologia fenomenológica

das culturas, desenvolvida por Angela Ales Bello com fidelidade à fenomenologia

clássica de Husserl e Stein, é um convite para o desenvolvimento de uma psicologia

fenomenológica, que já vem se realizando no Brasil, sensível à inerradicável dimensão

cultural da pessoa humana. Trata-se aí de uma via de análise de fenômenos configurados

culturalmente, apreendendo, na correlação com a estrutura ontológica da pessoa, a

intencionalidade constitutiva dos mesmos.

258
Se em A bela adormecida e outras vinhetas (Barreira, 2014), publicado no livro

Empatia. Edmund Husserl e Edith Stein – Apresentações didáticas, organizado por

Juvenal Savian, tivemos a oportunidade de examinar alguns limites existenciais do

fenômeno empático, abordando a condição do adormecimento e da morte, trata-se aqui,

bem ao contrário, de avançar rumo à intersubjetividade vivida por pessoas despertas e

que se confrontam fisicamente. Assim, perguntar-nos sobre a redução a algumas das mais

elementares experiências combativas consiste, em outras palavras, a nos perguntar quais

são os contornos da empatia vividos nas práticas de combate. Para fazê-lo é necessário

começar a escavação da superfície.

Mestre Funakoshi dizia que a “prática verdadeira é feita não com palavras, mas

com o corpo todo” (1994, p. 114), enquanto mestre Kano alertava que “as lições de moral

que podem ser aprendidas em [uma prática](...) de judô são baseadas em fatos e

provavelmente causarão uma impressão muito maior [do que conversas

instrutivas](Kano, 2008, p. 90).É a experiência própria que faz Tanaka, um dos mestres

que introduziram o karate no Brasil, herdeiro de uma tradição existencial que dá à

experiência corporal a responsabilidade pelo aprendizado, levando-o a dizer: “karate,

músculo que aprende depois vem cabeça”(ψarreira, 2013, p. 179). Outra assertiva de

Funakoshi – “Treine com o coração e com a alma, sem se preocupar com a teoria” (1994,

p.114) – encontrará, numa ampla análise que apresentamos em O sentido karate-do: faces

históricas, psicológicas e fenomenológicas (Barreira, 2013c), a estrutura constitutiva que

lhe dá sustentação. Sem a experiência de esvaziamento deliberativo e emocional, a

resposta corporal que faz do karate uma prática existencial é ocupada por gestos pouco

significativos, por muito pensados ou teorizados discursivamente. Em outras palavras, é

a espessura ética da corporeidade que ainda não comparece a uma experiência que cobra

anos de dedicação para elevar-se a caminho, tradição existencial. O que nestes relatos e

259
citações pode soar um dualismo com os valores às avessas, o corpo priorizado em relação

à mente, é mais fiel ao que eles expressam se vistos, antes, como uma ênfase na

experiência vivida com base na intuição perceptiva, cujo ancoramento na carne é o ponto

de partida para conclusões e entendimentos num registro mais abstrato e racionalizado.

χinda é Funakoshi que adverte: “O que você aprender ouvindo as palavras dos outros

será esquecido rapidamente; o que você aprender com seu corpo todo será lembrado pelo

resto da vida” (1994, p.114).

Estas advertências encontram ressonância numa pesquisa seminal em estudos

antropológicos contemporâneos. A etnografia do francês LoïcWacquantenvolveu praticar

boxe numa academia norte-americana e até lutar oficialmente. A citação do acadêmico

contempla cada aspecto daquelas advertências que os mestres no Japão ou no Brasil

fizeramhá dezenas de anos ou recentemente

(...) excluindo a apreensão contemplativa e destemporalizante da postura teórica,

então há poucas atividades que sejam mais “práticas” que o boxe. De fato, as

regras da arte pugilística remetem a movimentos do corpo que só podem ser

apreendidos completamente em ato e que se inscrevem na fronteira do que é

dizível e inteligível intelectualmente. Além disso, o boxe consiste de uma série de

trocas estratégicas, em que os erros são pagos no próprio ato, em que a força e a

frequência dos golpes encaixados estabelecem o balanço instantâneo da

performance: a ação e sua avaliação confundem-se, e o retorno reflexivo está, por

definição, excluído da atividade. (Wacquant, 2002, p. 78 e 79).

Isso indica que nas práticas combativas há similaridades experienciais que

acontecem no registro do corpo próprio dos praticantes, transcendendo certas fronteiras

culturais. Todavia, estas similaridades experienciais terão suas conformações próprias,

atravessadas e preenchidas, moduladas e instigadas por valores e fins, situações e

260
contextos próprios a cada prática. Filosofia de vida, inclusão social, cidadania, formação

do caráter, amor, liberdade, união, respeito, igualdade, resgate de um povo sofrido,

resistência, tradições dos ancestrais: estas são algumas representações que diferentes

praticantes de capoeira entrevistados por nós dão à sua arte235. Há muita história impressa

nessas representações. Aquém dos simbolismos, o aprofundamento nas experiências dos

praticantes reconduz as historicidades comunitárias e singulares à corporeidade onde se

inscrevem, e se atualizam corpo a corpo.

Com cerca de 50 anos, um mestre de capoeira entrevistado diz que “a capoeira

vem ensinando através das cantigas, das experiências de mestres antigos, como se portar

na própria vida. Como saber entrar e sair de qualquer lugar. É no olhar do parceiro, nos

trejeitos do parceiro, no jogo de corpo do parceiro que vou vivenciar essa filosofia”. Seja

frisando os trejeitos do jogo de corpo ou o ki – energia vital na concepção sino-japonesa

(Tokitsu, 2000) –, é na apreensão da intencionalidade do corpo próprio do oponente que

mora um aspecto decisivo do aprimoramento nas artes marciais. Trata-se de uma sensível

capacidade de apreensão intencional que implica também uma disponibilização adequada

do corpo próprio. Essa disponibilização difere profundamente do posicionamento de

alguém centrado exclusivamente em sua deliberação de vencer, impelido pela

agressividade hostil, ou não.

É uma professora de Capoeira que nos dirá que “se você não tiver respeito, você

acaba machucando, (...) deixando um parceiro pra lá, que poderia estar junto. Então

respeitando seu parceiro você está amando.”

Conheça ao outro, conheça a si

235
As entrevistas com capoeiristas aqui citadas foram concedidas a Thiago Ono da Silva, membro do
Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Práticas Corporais.

261
Ecoando o milenar Sun Tzu, Funakoshi recomenda: “conheça ao inimigo e

conheça a si próprio; em cem batalhas você nunca estará em perigo” (idem, p. 248).

Conhecer-se significa conhecer as próprias habilidades, o próprio corpo e seus limites,

mas também o próprio caráter que deve ser polido, sem enrijecer-se no orgulho.

Conhecer-se não é pensar-se, é praticar, viver corporalmente o karate como modo de

viver a si mesmo e se conduzir no processo de formação de sua pessoa.

É bastante comum que, numa comunidade de prática de combate, a lealdade entre

praticantes, especialmente a lealdade que define a relação mestre-discípulo, seja um valor

enaltecido pela própria experiência da confiança ali promovida. Às vezes esta lealdade se

encadeia entre diferentes gerações de uma escola ou estilo, ao modo de uma reverência

pelos mestres ancestrais. Um professor de capoeira nos confidenciou em entrevista que

trabalhar hoje para quebrar a resistência com relação à cultura negra é, ao seu modo,

manter vivo aquilo em que os mestres de antigamente acreditaram e pelo que lutaram.A

luta física contra a opressão se atualiza como luta pela cidadania, como luta contra a

discriminação. E isso é reiterado experiencialmente, em miúdos, no desafio que se

caracteriza como luta corporal propriamente dita (Barreira, 2013a, 2013b). Não é fácil

descrever a própria experiência de lutar. Muito rapidamente o relato cede o passo para o

critério moral que o reveste. Mas também é possível extrair a percepção que modula o

senso moral. Um jovem de 18 anos, faixa preta de karate, nos diz236: “ali eu coloco acima

de tudo o respeito com o meu adversário, (...) ele não é meu inimigo (...), ele é meu

adversário e merece respeito. Durante a luta (...) eu percebo (...) se o cara é uma pessoa

que (...) pede uma luta (...) mais forte [ou] uma luta mais fraca. (...) Eu não tento impor a

ele o jeito que eu quero lutar”. De maneira muito semelhante, um jovem professor de

Capoeira nos informa que ao “compartilhar (...) o jogo (...), a capoeira em si, na forma

236
As entrevistas com caratecas aqui citadas foram concedidas a Mário Lúcio da Silva Júnior, membro do
Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Práticas Corporais.

262
tradicional, (...) o respeito entra (...)na questão de eu esperar, (...) de saber onde o outro é

capaz de chegar (...) e respeitar isso dele, não impedi-lo de realizar o que (...) é capaz”. É

em potencializar a capacidade alheia que habita o sentido educativo das comunidades de

combate. Lutar põe em processo vivo, intercorporalmente, o conhecimento de si e do

adversário. Trata-se aqui da mais plena expressão da empatia nas práticas de combate: a

luta é o desafio recíproco do combate pelo combate, isto é, do combate que não encontra

sua motivação essencial n’outro lugar que não em si mesmo (ψarreira, 2013a, 2013b).

Entretanto, sustentar o desafio nessas condições é resistir a uma pressão que

ameaça a própria plenitude da empatia pertinente à experiência de lutar. A modificação

dessas condições é uma mudança qualitativa da experiência que transforma o combate.

Quando isso acontece o sentido da luta desmorona deixando emergir, junto ao

obscurecimento empático, outro sentido combativo. Vejamos um exemplo. Nosso

entrevistado tem 30 anos e conta a situação mais desnorteanteque viveu num treino de

karate:

“eu não sabia lutar direito, era faixa vermelha, (...) começando a aprender, tinha

13 anos. Ele já era um cara experiente, já tinha seus 20 (...) anos, faixa preta. E

durante esse treino (...) ele me dava um tapa, (...) segurava a minha mão, foi me

provocando. Eu tava tranquilo lutando, ele me dava tapa na cara, eu tentava manter

o controle, (...) cada tapa que ele me dava ia me irritando (...). Ao invés dele me

dar um soco, ao invés dele me falar, dele me ensinar, ele ameaçava e, antes que

eu pudesse defender, dava tapa na minha cara… χquilo foi metirando o controle,

(...) [era um treino só de soco], comecei a me irritar (...) e simplesmente chutei

ele, [dei um golpe baixo] (...)e ele já caiu no chão.O sensei já parou o treino ali na

hora e me advertiu. (...) Mas eu me senti ofendido, (...) por ele estar me batendo,

263
de forma voluntária, (...) ele tava me provocando, não sei porque. (...) Então foi

onde aconteceu, que eu perdi o equilíbrio e parti pra um golpe baixo”.

A intensidade hostil de quem experiencia o combate nessa posição é de tal grau

que, mesmo se instantaneamente, o outro é desumanizado – só é visto na fixação daquela

motivação à qual se dirige agressivamente. Trata-se da mais unilateral figura combativa,

aquela em que a relação intersubjetiva, em certo momento, cede lugar a uma relação de

sujeito a coisa. É certo que não deixa de haver um grau mínimo de empatia, aquela que

possibilita o reconhecimento da existência de um outro. Entretanto, a empatia é

obscurecida por uma hostilidade que vai da raiva ao ódio, subtraindo qualquer valor do

oponente, tendo-o, ao contrário, como uma motivação ameaçadora que deve ser

eliminada. Constituída numa vivência unilateral e hostil esta forma de viver o combate é

a que, normalmente, denominamos como briga (Barreira, 2013a, 2013b).

Como nos conta um mestre de capoeira: “Se você usa a técnica em mim, eu vou

usar a técnica. Se você usar a maldade, eu vou usar a perversidade.” Para ele, trata-se de

estar atento ao fato de que “...todos somos iguais, o homem é um bicho igual, só que é o

pior bicho que existe na face da Terra”.

Já sem haver a perda do autocontrole, mas vivenciando a transformação do desafio

como uma questão de honra, o sujeito pode perceber-se desmerecido, no limite,

coisificado pelo outro, assumindo o combate como um modo de reparar o desrespeito. É

outro praticante de karate que nos conta:

“Eu estava (...) lutando com um rapaz e (...) estava difícil encaixar um golpe nele

(...). Ele começou a esnobar, abaixar a guarda de propósito, fazer cara de cínico

(...). Fiquei meio jururu com ele. Foi uma única vez até hoje que eu dei um golpe

mesmo com intenção de acertar mais forte. (...)Eu fiquei pronto (...) para o contra-

ataque e, na hora que ele veio, acertei de propósito a boca dele. (...) Vi ele

264
colocando a língua assim… que ele sentiu. E eu me senti bem com aquilo. (...)

Não foi uma coisa boa que eu fiz, mas teve aquela sensação de satisfação, de ter

acertado ele do jeito que queria ali, para descontar o esnobe (...) que ele estava

sendo”.

Num caso como esse, constata-se que o desafio, ao modo do duelo, torna-se uma

resposta a um fechamento alheio que comparece como injúria, eventualmente como

imposição ostensiva.

A briga, como um descontrole que coisifica o outro; o duelo como um desafio que

obedece a exigência de não ser rebaixado, de não ser tratado como mera coisa, querendo

restabelecer o próprio valor. Ambos informam como a empatia participa decisivamente

das formas de combate e, como tal, como a empatia participa do desafio visceral que as

comunidades de combate empreendem almejando para si um sentido de desenvolvimento

ético traçado na carne de seus protagonistas. O praticante de artes marciais se enreda

numa cultura comunitária que quer emular o auto-controle: a luta é o desafio ético de se

proteger da coisificação alheia e de se controlar para evitar o envolvimento em situações

que coisifiquem o outro. Em suma, é o desenvolvimento de um modo empático de estar

presente (Barreira, 2013a, 2013b, Melo & Barreira, no prelo).

Sob o norte da eficácia combativa, os praticantes de artes marciais cultivam

técnicas corporais pelo exercício recíproco da luta. Este exercício materializa o sentido

comunitário, evocado por Stein, pelo qual “um sujeito aceita o outro como sujeito e não

lhe tem adiante, mas vive com ele e se determina por seus motivos vitais” (Stein, 1999,

p.159).

É a clareza existencial dessa experiência, em sua espessura mais estrita, que fez

com que, após décadas de prática, brigas e desafios ao longo da vida, um mestre como

ShigeruEgami concluísse que:

265
A essência da arte é a mútua cooperação. Esta é a finalidade do karate-do. (...)

A relevância disso para o treinamento e prática em karate é que estes são, na

realidade, meios para buscar e explorar a essência do ser humano. (...) Conhecer

a si mesmo, conhecer seu oponente, compreender o relacionamento entre os dois:

estes são os verdadeiros objetivos do treinamento. (...)

Este é o segredo do karate – coexistir com seu oponente. (Egami, 2000, p. 14 e

15, tradução própria).

Da luta à clínica: abertura mútua

Coexistir com seu oponente, compreender o relacionamento conhecendo melhor

a si mesmo e ao outro; cooperar mutuamente e explorar a essência do ser humano. Para

tanto, na arte marcial em geral, o desenvolvimento do praticante depende de um

silenciamento da vontade e da memória que privilegia o tempo presente (Barreira, 2008).

A plenitude do aqui e agora se esfuma quando a consciência se volta e concentra no

passado fazendo-se lembrança e memória. Voltando-se ao que se quer chegar, ao futuro,

a experiência de vontade também embaça a atenção ao aqui e agora. Em termos técnicos,

estar aqui e agora é não ter à consciência mais do que retenção e protensão. Na situação

de luta, trata-se de engendrar uma penetrante cumplicidade – a despeito do fechamento

do oponente – capaz de partilhar e antecipar os atos alheios, graças a uma permeabilidade

corporal que coloca em evidência o circuito de sensibilidade – esfera hilética –

constitutivo da empatia.

O paralelo da situação de luta com a situação clínica se dá especialmente quanto

a um momento que é constitutivo para os relacionamentos que se dão em ambos os

encontros – o acompanhamento sensível do outro. Em seu pensamento clínico, Gilberto

Safra recorre a Edith Stein para refletir que

266
A possibilidade de acompanhar a expressão descritiva plástica ou o modo como a

corporeidade do outro aparece permite que realizemos com o nosso próprio corpo

o mesmo circuito descrito ou apresentado. Dessa maneira, podemos compreender

os sentimentos dos nossos analisandos através do que nos apresentam, se também

os acompanharmos por meio de nossa sensibilidade corporal. (Safra, 2006, p.47).

As insuspeitas relações entre clínica e luta fazem-se ver num processo dialógico,

corporalmente informado e desafiador. O encontro que potencialmente se desenvolve na

luta coloca em destaque a face estética da experiência empática. Pode-se pensar que a

carência de descrição fenomenológica rigorosa da empatia em diferentes corpus teóricos

da clínica psicológica seja sintomático de algo? Aparentemente sim. A hipótese é de que

o obscurecimento da experiência empática se dê pelo enaltecimento de abordagens

teóricas centradas na linguagem, principalmente de uma linguagem verbal que será

decodificada psicologicamente. Em termos práticos, menos a experiência do sujeito e

mais sua interpretação vem à tona, o que arrisca a objetivá-lo enquanto sujeito da

experiência. Por outro lado, as expectativas de que a prática clínica seja uma abordagem

técnico-instrumental, que intervém e transforma seu usuário naquilo que lhe faz sofrer,

também corresponde a um processo de objetivação do psicólogo. Portanto, assim como

na clínica, com suas várias formas de desencontro, como a reificação teórica do paciente

ou a reificação técnica do papel do psicólogo, o desafio de sustentar a reciprocidade

combativa, não possuída pela hostilidade, faz da luta a experiência ética por excelência

de qualquer arte marcial. É a modulação inter-afetiva que torna lutar e clinicar uma

caminhada sobre o fio da navalha em que, para um lado ou outro, deslizar é fechar ou ser

fechado, coisificar ou ser coisificado, comprometendo ou sustentando a abertura

interpessoal recíproca que as constitui.

267
Referências

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269
O QUE PODE O CORPO DE UMA CRIANÇA AUTISTA?

Maria Izabel Tafuri

Universidade Federal de Brasília

E-mail: izabeltafuri@gmail.com

Resumo: A clínica psicanalítica com crianças autistas, revisitada por uma análise crítica

da história do conhecimento psicanalítico, exige uma atenção sensível à ética do

encontro, ocorrido em um setting. Nesse sentido, a Fenomenologia da Vida de Michel

Henry nos permite questionar a interpretação verbal como ferramenta indispensável para

a criação da relação transferencial na clínica psicanalítica com a criança autista. Segundo

Henry, os princípios asseguradores e tranqüilizadores de uma Intencionalidade

enquanto doadores de sentido protegem o sujeito em relação ao outro. A interpretação

verbal é refletida nesse trabalho como um princípio assegurador e tranqüilizador para o

psicanalista por ser intencional e doadora de sentido. E, o mais inquietante, a

interpretação verbal pode servir para proteger o psicanalista em relação ao paciente.

Palavras chave: autismo, fenomenologia, interpretação

WHAT CAN THE BODY OF AN AUTISTIC CHILD?

Abstract: The psychoanalytic treatment of autistic children, revisited by a critical

analysis of the history of psychoanalytic knowledge, requires a sensitive attention to the

ethics of meeting, which occurred in one setting. Taking into consideration, Michel

Henry’s phenomenology of life allows us to question the verbal interpretation as an

indispensable tool for the creation of the transference relationship in the psychoanalytic

270
clinic with the autistic child. According to M. Henry, the principles and guarantors of

intentionality while reassuring donors sense that protect the subject in relation to another.

The verbal interpretation is reflected in this work as a reassuring and comforting

principle it is intentional, giver of meaning. And, the most disturbing, verbal

interpretation may serve to protect the analyst towards the patient.

Keywords: autism, phenomenology, interpretation

Introdução

O encontro com uma criança que não estabelece contato afetivo com o outro, que

não brinca e que não representa simbolicamente a realidade foi retratada pela primeira

vez, na clínica psicanalítica, por Melanie Klein (1930), com o caso do Pequeno Dick.

Segundo a autora, o psicanalista necessita fazer interpretações verbais, mesmo que sejam

oriundas de ações pouco representativas de crianças ensimesmadas, que não fantasiam a

realidade. À época, Klein afirmou categoricamente, “senti-me obrigada a fazer minhas

interpretações à base do meu conhecimento geral, sendo as representações do material

de Dick relativamente vagas” (Klein, 1930:73). Segundo a psicanalista, o simbolismo

pode ser revelado pela criança inibida por detalhes do seu comportamento permitindo

que o analista faça uma interpretação para, nesse caso, criar a relação transferencial que

caracteriza a relação analítica com a criança.

Por meio do caso clínico do Pequeno Dick, a aplicação do método interpretativo

freudiano com uma criança ensimesmada foi esboçada no meio psicanalítico. A ação de

interpretar ganhou uma nova vertente, extrair e conferir sentido aos comportamentos e

sons emitidos por uma criança que não cria fantasias. Dessa forma, Klein promoveu uma

modificação significativa na ação interpretativa (deutung), ou melhor, no fazer

analítico, tal como definido por Freud.

271
A palavra germânica utilizada por Freud (1900/1980) ─ deutung ─ foi traduzida por

interpretação, inicialmente utilizada para as ações de traduzir, explicar e revelar um

sentido oculto dos sonhos a partir dos símbolos e associações livres. Segundo Mezan

(1986), deuten é tornar nítido o que parece confuso ou embaraçado e, ao mesmo tempo,

revelar a lógica, mostrar as conexões daquilo que se está interpretando como o conjunto

da vida psíquica da pessoa. Nesse sentido, o analista foi comparado a um arqueólogo ou

a um detetive.

Outra vertente aberta por Klein está relacionada à interpretação na relação

transferencial. A análise de Dick demonstrou que, mesmo com uma criança

ensimesmada, o analista pode criar a relação transferencial por meio da interpretação

verbal, desde o início do tratamento. O psicanalista extrai valor simbólico das

representações vagas da criança, interpretando angústias mal simbolizadas. Klein não se

deteve na primeira fase da interpretação: traduzir o material simbólico (sonhos e

associações livres) trazido pelo paciente. Como Dick não desenvolvia qualquer tipo de

jogo, Klein antecipou uma interpretação. Ao dizer que as representações do material de

Dick eram relativamente vagas, Klein passou a escutar a si mesma e interpretar a partir

de um saber adquirido previamente, tendo em vista a ausência de um material clínico

representativo do paciente.

Com Klein, a interpretação (deuten) se aproximou mais do sentido de mostrar

significado, significar (bedeutung- gesto explicativo de mostrar com o dedo da mão), do

que do de traduzir. Klein se sentiu ‘obrigada’ a interpretar, mesmo na ausência de um

material clínico proveniente apenas da criança. Esta proposição kleiniana dá ao analista

a capacidade não apenas de ser tradutor e intérprete de um texto estrangeiro oferecido

pelo paciente, como também ser aquele que extrai sentido de comportamentos não

simbólicos de uma criança. Uma proposição que fere a ética do encontro por trazer uma

272
significação oriunda de um saber apriorístico.

O Paradigma da Interpretação depois de Klein

A fórmula kleiniana, uma vez contextualizada nas várias psicanálises existentes,

produziu, ao longo das últimas décadas, diferentes formas de interpretação —

interpretação do jogo (Klein, 1932), interpretação das figuras e objetos autistas (Tustin,

1972; Meltzer, 1975; Haag, 1985; Ogden, 1989), interpretação ou tradução dos

significantes (Lefort, 1980; Jerusanlinsky, 1988, Laznik-Penot, 1995). Como se pode

ver, a marca da necessária interpretação verbal permaneceu como um modelo técnico

psicanalítico de estabelecer a relação transferencial com a criança ensimesmada. O que

nos permite concluir a presença de princípios oriundos de uma clínica em que o paciente

é representado a partir de um conhecimento apriorístico por parte do psicanalista. Não

seria essa técnica, um princípio assegurador de um encontro marcado pelo não saber?

A clínica lacaniana atual determina o lugar do psicanalista como aquele que junto à

criança autista, “antecipa um sujeito a advir” por meio de uma “aposta de interpretação”

para o estabelecimento da relação transferencial. Laznik-Penot (1995) diz,

(...) o trabalho psicanalítico com uma criança autista se faz ao avesso da cura analítica

clássica: o objetivo do analista não é o de interpretar os fantasmas de um sujeito no

inconsciente já constituído, mas o de permitir o advento do sujeito. Faz-se aqui

intérprete no sentido de tradutor de língua estrangeira, ao mesmo tempo tradutor em

relação à criança e aos pais. (p.11)

Por meio de uma “aposta interpretativa” (Jerusalinsky, 1999), o sujeito poderá

advir, ou seja, ser falante. Esse recorte se faz indispensável para repensar a ética do

encontro com uma criança que não fala. Colocada no lugar de um sujeito a advir, toda a

273
clínica está centralizada em fazer falar. Nesse cenário, o sujeito nasce, pelo menos, duas

vezes: uma vez como organismo vivo e, outra vez, como sujeito falante. O humano é

pensado como qualquer coisa pré-ontológica, que precisa encontrar a sua finitude

adotando a prótese da linguagem.

Partindo da noção de Michel Henry (1985, 1990, 2001, 2003) sobre os princípios

asseguradores e tranqüilizadores das ciências naturais, a urgência em interpretar estaria

a serviço das escolas de psicanálise, a despeito de uma clínica baseada no encontro. A

mesma crítica dirigida às ciências naturais pode ser também refletida no campo

psicanalítico à medida que o psicanalista se oferece à criança autista como doador de um

sentido apriorístico. Michel Henry, ao falar da Fenomenalidade Pura, diz que é na

materialidade do fenômeno, como ele é dado originalmente em mim, que se dá uma

possível abertura ao outro. E o primeiro momento de uma relação de mim para o outro

não é de intenção doadora de sentido, asseguradora de meus próprios medos, mas exige

uma vulnerabilidade originária, não patológica e constitutiva do humano. E é nessa

vulnerabilidade originária que o afeto pode aparecer e anunciar-se.

A noção de vulnerabilidade originária, oriunda da fenomenologia da vida de

Michel Henry, pode ser reconhecida na clínica psicanalítica com uma criança autista, a

partir dos ensinamentos de Ferenczi e, principalmente, de Winnicott. Inspirado na

psicanálise de crianças Ferenczi (1921/1992) traçou adaptações da técnica analítica a fim

de viabilizar o atendimento de “casos difíceis”. Segundo o psicanalista é necessário

“introduzir modificações substanciais na técnica de análise de adultos, quase sempre no

sentido de uma atenuação do rigor técnico habitual” (p. 70). Da mesma forma, para tratar

pacientes cujos traumas sobrecarregaram seu desenvolvimento no sentido da

psicopatologia Ferenczi (1928/1992) e Winnicott (1967/2007) preconizaram a

necessidade de elasticidade da técnica psicanalítica, para além da interpretação verbal.

274
Segundo Ferenczi, é essencial que o analista funcione de forma plástica e se

permita ceder às tendências do paciente (Ferenczi, 1928/1992), se adequando ao ritmo do

analisando ao invés de enquadrá-lo na rigidez da técnica clássica. Winnicott (1971)

comenta sobre a necessidade do terapeuta de se entregar ao nonsense, à disformidade e à

atemporalidade para estabelecer a relação clínica com pacientes difíceis.

Seguindo o pensamento de Winnicott, Gilberto Safra (1999) aponta para a ampliação

de uma clínica que compreenda a apresentação do sofrimento humano como uma

cristalização da esperança. No caso de Ricardo, Safra diz, “estamos frente a fenômenos

que iniciam o sujeito na experiência de ser, para então poder existir como ser humano.

Repetir o perfil sonoro que ele emitia era ecoar a singularidade de sua existência. O

terrível é emitir um som sem que ele jamais seja ecoado por outro ser humano, o que

significa perder-se em espaços infinitos, aniquiladores de qualquer registro de vida

psíquica”. (p. 31)

Com Ferenczi, Winnicott e Safra, podemos perceber como as ações terapêuticas

podem existir para além dos princípios asseguradores de uma interpretação verbal,

doadora de sentido. Vivenciar o caos do nonsense com um paciente por meio da ação do

terapeuta de ecoar os sons de uma criança que não representa a realidade seria, na

linguagem de Michel Henry, vivenciar a vulnerabilidade originária por meio da qual o

afeto pode aparecer e anunciar-se. Nessa mesma abordagem, o caso de Maria foi

apresentado por Tafuri (2003) na Tese de Doutorado denominada “Dos sons à palavra:

explorações sobre o tratamento psicanalítico com a criança autista”. Foi um caso clínico

paradigmático desde o primeiro encontro caracterizado pela ausência de interpretações

verbais no início do tratamento, ocorrido na década de 1990.

275
Revisitando o caso de Maria

O primeiro encontro com Maria, uma criança autista de três anos, foi marcado por

um fenômeno sensível: a criança emitia sons fortes e estridentes que tinham uma

sonoridade estranha, pareciam metalizados, desprovidos da sonoridade da voz humana.

Entretanto, essa sonoridade mudava completamente, quando, de forma inesperada, a

criança começava a girar as mãos em frente ao seu rosto com muita velocidade e leveza,

parecia hipnotizada consigo mesma. Nesses momentos, sua voz era mais melodiosa e

acompanhava o ritmo do seu corpo: sentada no chão, balançava o corpo para frente e para

trás, em um ritmo cadenciado, como se estivesse sentada em uma cadeira de balanço

invisível. O estado de prazer demonstrado por Maria era visível e atraente. Havia ritmo,

melodia e a expressão de um estado psíquico tranqüilo. Porém, a criança estava

completamente absorta em suas próprias sensações.

Em outros momentos, Maria corria na ponta dos pés, de um lado para outro, sem

nenhuma exploração dos objetos da sala de consulta. Essas corridas, sem olhar para os

objetos e nem tão pouco para a terapeuta, eram acompanhadas de sons metalizados e

estridentes, como se ela estivesse em um estado psíquico de sofrimento. Também de

forma repentina, entrava em um estado de agonia, se mordia, batia a cabeça nas paredes

e não aceitava consolo por parte de qualquer outro, até mesmo dos pais que lá estavam.

No primeiro encontro com Maria, veio à mente da terapeuta, a imagem de um beija-

flor. Ela pulava na ponta dos pés de forma ágil e muito rápida, em um mesmo lugar, na

frente de um objeto. Fitava o objeto de forma insistente e interessada, ao mesmo tempo,

balançava as mãos e os braços como se quisesse voar. Os sons se tornavam mais

estridentes e, de vez em quando, encostava as pontas dos dedos, de forma rápida e fugaz,

no objeto fitado por ela. Maria não encostava o corpo dela em nenhum objeto. Parecia

276
um beija-flor que toca a flor apenas com o bico, mantendo o seu corpo suspenso no ar

pelo movimento rápido de suas asas.

A partir da imagem do beija-flor a analista percebera o lugar que Maria a colocava

naquele primeiro encontro. Não havia, na verdade, um isolamento radical em relação aos

objetos da realidade. Ela tocava os objetos com a ponta dos dedos, de forma fugaz e,

aparentemente, descomprometida. Entretanto, era possível perceber que havia uma

escolha e certo interesse e, em alguns momentos, um verdadeiro êxtase em tocar alguns

objetos. A maneira dela de entrar em contato com a realidade foi trazida à mente da

analista por meio de uma imagem, a do beija-flor criada de forma totalmente inesperada.

Uma imagem bela e determinante para a analista repensar o lugar ocupado por ela na

relação transferencial com Maria.

Naquele primeiro encontro havia a presença de uma primeira comunicação oriunda

da criatividade primária (Winnicott, 1951) de um sujeito em estado de sofrimento.

Portanto, não seria necessário antecipar por meio de apostas interpretativas um sujeito a

advir. Maria estava presente enquanto sons, maneirismos e toques sensíveis nos objetos.

Uma presença de ser não passível de ser nomeada, porém, acolhida terapeuticamente por

meio da ação do psicanalista de ecoar os sons produzidos pela criança, por mais

anárquicos que pareciam ser. Diferentemente de traduzir ou decodificar os sons de Maria,

a terapeuta passou a vivenciar os sons e os maneirismos em si mesmos, sem

decodificação, tradução ou interpretação.

Nesse sentido, a voz da analista teve uma função primordial na evolução do

tratamento da criança. Maíra passou a brincar com os sons criando a relação

transferencial com a analista na ausência das interpretações verbais. Segundo Freud,

espera-se do psicanalista um estado de disponibilidade fundamental, um pathos em

relação ao outro. Uma abertura ao outro, qualquer que seja esse outro, falante ou não

277
falante. Nesse sentido, a clínica psicanalítica nos remete à natureza de um encontro para

além das interpretações verbais. E no processo de abertura ao encontro com o outro,

algumas questões se fazem necessárias: o que pode o corpo de uma criança autista para

além da interpretação verbal do analista?

O que pode o corpo de uma criança autista

À luz das noções de Michel Henry, trazidas por Florinda Martins (2010, 2014) é

possível revisitar o texto original da psicanalista de Maria e identificar os princípios

asseguradores e tranqüilizadores oriundos das interpretações verbais:

As interpretações brotavam em minha mente de forma tão insistente e automática

que me impediam de vivenciar o isolamento em que Maria me colocava. Na verdade,

os meus pensamentos serviam para preencher o meu mundo interno, pois eu me

sentia extremamente só na presença da pequena. À medida que eu tentava explicar,

para mim mesma, as reações de Maria, eu entrava em contato com um saber que

apenas me dava uma ilusória segurança: a de compreender o seu ensimesmamento.

Chequei à conclusão de que precisava de outro tipo de conhecimento para viver o

ensimesmamento, aquele oriundo de minhas impressões sobre aquela criança, e não

o conhecimento proveniente das interpretações explicativas que me vinha à mente,

quase que de forma automatizada. (Tafuri, 2003:34)

Desde o primeiro encontro, a analista passou a ecoar os sons de Maria, sem olhar

diretamente para ela, como se não a estivesse procurando. Ela se fazia existir nos sons

produzidos, de forma anárquica. Seguindo os ensinamentos de Winnicott (1971) e Safra

(1999), nos sons de Maria estava a criatividade primária de uma criança ensimesmada

em um mundo desmantelado de sensações. E, na linguagem de Michel Henry, foi na

278
materialidade do fenômeno, os sons ecoados pela analista, que o afeto pôde enunciar-se.

Ao longo das sessões, Maria passou a encostar as costas das mãos na boca da terapeuta.

E, aos poucos, passou a olhar e a colocar o dedo indicador dentro da boca da analista. Era

como se procurasse os sons na boca do outro. Para a terapeuta, a criança parecia tão frágil

e sensível ao outro, que mesmo as palavras poderiam ser invasivas e duras demais para

ela. Falar com ela seria o mesmo que tocá-la com palavras. E ela era frágil demais para

ser tocada. O que Maria precisava era encontrar o outro sem ser invadida por uma

presença excessiva desse outro. Ou seja, o terapeuta precisaria estar lá para ser encontrado

(Tafuri e Safra, 2012). Portanto, as interpretações verbais ficaram em suspenso.

Depois de algum tempo de exploração do corpo da terapeuta por parte de Maria

ocorreu um fato surpreendente e organizador do setting. A pequena passou a esperar que

a analista a imitasse o que constituiu um jogo de sons em uma relação transferencial

estabelecida na ausência de interpretações verbais. Uma espera marcada por gestos

corporais, por exemplo, caso a terapeuta não a imitasse, Maria se mostrava em

sofrimento, começava a se morder, arranhar a terapeuta ou a gritar de forma desesperada.

O jogo dos sons foi se tronando cada vez mais elaborado, o sofrimento relacionado à

espera foi sendo substituído por um brincar sensível. Ou seja, a pequena passou a brincar

de se esconder para esperar a imitação dos sons por parte da terapeuta. Ela se escondia

debaixo da mesinha de brincar, emitia os sons e esperava! O rosto de Maria passou a

expressar alegria e prazer em ser encontrada. A terapeuta passou a ecoar os sons da

pequena acrescentando o gesto do encontro que assim ocorria. Ao escutar os sons de

Maria a terapeuta emitia os sons procurando por ela em lugares distintos da sala, atrás da

porta, no banheiro, etc. Em seguida, olhava debaixo da mesa e demonstrava imenso prazer

em encontrá-la, modificando a entonação dos sons habituais para a sonoridade do ‘achei’!

279
Nesse contexto do jogo dos sons, Maria passou a olhar para a analista, a se deixar ser

acalentada fisicamente, a fazer as primeiras garatujas e os primeiros vocábulos. A

psicanalista passou então a interpretar as primeiras representações gráficas e verbais da

criança e a análise prosseguiu até a entrada de Maria na Universidade, quando completara

22 anos.

Considerações Finais

O corpo de uma criança autista pode permitir a abertura ao outro se for vivenciado

como fenomenalidade pura do afeto. Por outro lado, a criança examinada, interpretada ou

decodificada pelo outro em uma fenomenalidade da representação está fadada ao

mutismo. Uma aposta interpretativa, anterior a qualquer enunciação da criança, parece

ser um princípio assegurador e tranqüilizador para a preservação de uma técnica. Abrir-

se em relação ao outro, qualquer que seja esse outro, é escapar do domínio das intenções,

como foi visto nos casos de Ricardo (Safra, 1999) e Maria (Tafuri, 2003). À medida que

o corpo de uma criança autista só pode ser lido como cifra efetuada pela criança e ser

engajada pelo analista numa rede significante, cuja consistência é dada pelo imaginário,

o psicanalista se fecha em uma rede de significados. Nesse caso, nada mais faz do que se

antecipar em relação ao outro e inserir a criança nas categorias pré-estabelecidas da

linguagem. O psicanalista que aposta uma interpretação insere a criança em redes diversas

antecipando e constituindo uma lógica ainda inexistente para a criança.

Tanto Ricardo como Maria se apresentaram como seres sonoros não passíveis de

serem decodificados, traduzidos ou interpretados verbalmente. Resta ao psicanalista

“estar lá para ser encontrado” (Tafuri e Safra, 2012). Maria, desde o primeiro encontro,

mostrava-se presente por meio de gestos e sons que expressavam a ‘criatividade primária’

280
(Winnicott, 1951). Cabe ao terapeuta seguir a ética de um encontro sensível, o de

acompanhar os sons e maneirismos da criança se oferecendo como um objeto disponível

a ser encontrado.

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283
PSICOLOGIA, TEOLOGIA E FENOMENOLOGIA: EM BUSCA DE MÚTUO

(RE)CONHECIMENTO

Karin Hellen Kepler Wondracek

Faculdades EST, São Leopoldo237

E-mail: karinkw@gmail.com

Resumo: O objetivo desse trabalho é realizar um percorrido testemunhal-conceitual das

relações encontradas entre as diferentes áreas nos 30 anos de clínica e docência. Parte-se

da escala de atitudes de Wulff para com a religião, e analisa-se o impacto das mesmas

nos psicólogos. Num segundo momento trabalha-se a necessidade de mútuo

reconhecimento das influências da teologia judaico-cristã na psicanálise (Freud, Klein e

Winnicott), no paradigma na relacionalidade para o diálogo interdisciplinar (James

Loder), na fenomenologia da Vida (Michel Henry). Ao abordar a vida e suas

manifestações, a fenomenologia nos oferece um paradigma para a clínica do inaparente

(Carlos Hernández), que favorece a consideração das diferentes dimensões do humano.

Palavras-chave: Mútuo reconhecimento; psicologia, teologia, fenomenologia da vida,

clínica.

Abstract: The aim of this work is to expose a testimonial-conceptual journey of

relationships between different areas in 30 years of clinical practice and teaching.

Begining with Wulff's scale of attitudes toward religion, we analyse their impact on

237
Psicanalista com atividade em Porto Alegre; coordenadora do Grupo de Pesquisa em Fenomenologia
da Vida, Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Corpo de
Psicólogos e Psiquiatras Cristãos.

284
patients and therapists. In a second moment we bring the need for mutual recognition of

the influences of Jewish-Christian theology in psychoanalysis (Freud, Klein and

Winnicott), in the relational paradigm for interdisciplinary dialogue (James Loder), and

in Phenomenology of Life (Michel Henry) . The set of knowledge works by

complementarity and offers us a paradigm for the clinic of the unapparent (Carlos

Hernández), which favors the clinical work that considers the different dimensions of

person and community.

Keywords: Mutual recognition; psychology, theology, phenomenology of life, clinical

practice.

I. Da minha história e buscas

Parto da vida... no duplo sentido da expressão: meu nascimento me doa na vida

(Michel Henry) e meu começo como terapeuta também se dá no acolhimento do que está

vivo no paciente e ressoa em mim. Logo, atender a esse convite é fazê-lo a partir do

próprio percurso na clínica, iniciada em 1982. Por isso, essa fala apenas se torna possível

se for testemunhal, e a partir disso contar dos encontros, dos autores e dos estudos que

aprofundaram uma experiência clínica que reconheça as diferentes dimensões do

humano. Nesse sentido, sou muito grata aos professores Gilberto Safra e Andrés Eduardo

A. Antúnez que acolheram essas questões nesse ambiente universitário tão seleto, e que

através dos seus percursos têm convidado a psicologia brasileira a se tornar mais aberta

ao humano, sem descartar suas complexidades.

Iniciarei meu testemunho no meu curso de psicologia, ao qual chegara vinda de

uma pequena comunidade de imigrantes alemães no interior do Rio Grande do Sul, na

qual a religiosidade permeava todos os aspectos da vida. Foi traumático ouvir docentes

ironizarem a religião e indicarem como leitura obrigatória textos totalmente contrários à

285
espiritualidade, apresentando-os como “a verdade”. Tentei falar com um dos professores

e contar da minha experiência positiva na minha pequena comunidade, e ouvi dele que

em breve eu teria de optar entre a psicologia e a religião, que não seria possível manter

ambas em minha vida.

Desconcertada, fui para a biblioteca, e procurei por livros que me auxiliassem

nessa questão. Muitas vezes, desde pequena, os livros foram refúgio, consolo e abertura.

Algo que também minha educação cristã me ensinou a buscar, nas leituras diárias daquele

que se chama de “Livro dos livros”, especialmente quando estava angustiada.

Naquela hora os livros não foram de muita ajuda, apenas me mostraram que eu

não abriria mão tão facilmente de nenhuma das dimensões, pois amava a psicologia e

continuava amando a espiritualidade. Mais tarde aprendi num livro, organizado a partir

dos Congressos de Psicologia e Senso Religioso da ANPEPP, que aprendi com Marilia

Ancona-Lopez (1999) que esse professor, como muitos outros nos cursos de psicologia,

adotara uma atitude reducionista do fenômeno religioso, na qual a chave é a palavra “ou”:

ou psicologia ou religião, atitude que dentro do paradigma complexo (Morin) e da

consideração do conhecimento pessoal (Polanyi, 1964) não é mais concebida como

cientificamente correta.

A inquietude inicial me levou a investigar essas tensões – e no corpo e rodapé

desse texto-testemunho acrescento autores que me lançaram luzes e os resultados que

foram se formando em mim nessas investigações. Faço-o com o objetivo de indicar

caminhos que auxiliem quem tenha vontade de aprofundar essas questões!

Mas somente livros não bastam! – É preciso que a teoria seja encarnada nos

relacionamentos, e nisso destaco o pertencimento desde os tempos de estudantes ao Corpo

de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – CPPC –um fórum de pesquisas que desde 1976

286
investiga a relação entre psicoterapias e espiritualidade.238 Nesse ambiente conheci

terapeutas e teóricos consistentes, inicialmente mais internacionais porque no Brasil o

paradigma positivista ainda dominava nos ambientes acadêmicos (Faria, 2003),

restringindo em muito a relação ciência-fé. Lá aprendi que em outros países esse diálogo

acontecia e de forma muito fecunda, que era possível conversar, investigar, sem excluir

nenhuma das dimensões, mostrando que a pessoa não se define apenas por um dos

aspectos. Mais tarde conheci o grupo similar norte-americano “CχPS- Christian

Association for Psychological Studies” (www.caps.net) e seu braço psicanalítico

“SEPTT”239 que inclusive mantém uma formação psicanalítica e uma parceria para

estudos doutorais que integram espiritualidade e psicanálise.

Diferente do que recomendava meu professor, ali aprendi a conjugar o “e” –

psicologia e espiritualidade. Encontrei na escala de atitudes de David M. Wulff (apud

Ancona-Lopez, 1999)240 a compreensão das diferentes atitudes de psicólogos e religiosos

em relação à religião. Seu quadro de atitudes perante o religioso nos auxilia a perceber as

diferentes formas de lidar com a espiritualidade.

Wulff construiu um esquema bidimensional que define quatro atitudes em termos

da combinação de duas variáveis fundamentais. Ele as usa tanto para averiguar os

238
O Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – www.cppc.org.br - mostra em sua história esse percurso
apoiado por terapeutas e pensadores de vários continentes e formações
http://www.cppc.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=27
239
Society for exploration of psychoanalytical therapies and theology – SEPTT. Do site www.septt.org :
As academics and clinicians, we are committed to the dialogue of Christian theology and the
psychoanalytic therapies. We believe that such a conversation is both consonant with historic Christianity
and supportive of its redemptive telos. As a community united by shared psychoanalytic interests and
faith, we seek to enact the relationality that is intrinsic to both, through the collegial and scholarly bonds
nurtured in this forum. Moreover, we believe that the synergistic effect of our interdisciplinary dialogue
combined with a rich sense of community, will engender scholarly writing that will be generative to both
psychoanalysis and Christianity. It is our hope that applications of theologically grounded psychoanalytic
theo à illàulti atel àse eàtoàe lighte àtheà oade à ultu alàho izo . Acesso em 31 out. 2014.
240
Nossa primeira abordagem desse modelo foi no texto preparado para a discussão da religiosidade do
psicólogo, no XVIII Congresso Nacional do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, em Florianópolis,
2013. Publicado na Revista Teologia – Wondracek, 2013.

287
sentimentos religiosos dos pacientes como as posturas de profissionais psi. Nesses

últimos, inclui a análise do conteúdo acadêmico acerca da religião. Os dois eixos de Wulff

são Exclusão-inclusão da transcendência (vertical), e Afirmação literal- simbólica

(horizontal), e formam quatro quadrantes, a partir dos quais o indivíduo se relaciona com

a religiosidade e os conteúdos religiosos, conforme quadro abaixo: (Ancona-Lopez, 1999,

p. 78)

Marilia Ancona-Lopez expressa a preocupação de que há uma carência na

formação dos psicólogos para lidar com a religiosidade: “o psicólogo clínico enfrenta é a

ausência de eixos referenciais que o auxiliem a refletir e considerar as experiências

religiosas quando elas aparecem na clínica psicológica” (1999, p. 77). A autora expressa

que nem todas as linhas de psicoterapia incluem a religiosidade no seu escopo, o que

deixa o clínico “perdido” (1999, p. 79), necessitando buscar referentes em outras áreas

288
ou em sua própria experiência. Pelos depoimentos de colegas, expresso que as vivências

foram em grande parte traumáticas e reducionistas, e por isso não favorecem a abordagem

empática.

As atitudes de Wullf podem nos auxiliar a identificar essas dificuldades no

trabalho clínico:

Atitude de Negação literal: (quadrante que combina exclusão da transcendência

com afirmação literal): estas pessoas “assumem que a linguagem religiosa deve ser

entendida de forma literal, mas rejeitam por princípio tudo o que é nela apresentado. Elas

dessacralizam todos os conteúdos religiosos. Os profissionais psi que habitam esse

quadrante “reduzem a religião a um conjunto de afirmações irracionais a serem extirpadas

ou apropriadas pelas ciências e esclarecidas racionalmente.” (1999, p. 79) Para Wulff, o

pior efeito recai sobre aqueles que defendem a negação literal, pois bloqueiam a si

mesmos de entrar em contato com as metáforas religiosas. E, na posição de terapeutas e

docentes, impedem seus pacientes e alunos de aprofundar a riqueza dessas experiências,

considerando-as como “sintoma a ser ultrapassado ou sinal de irracionalidade e

imaturidade psicossocial”. (p. 79) Dessa forma negam a dimensão da transcendência,

constitutiva do humano, e buscam explicá-la apenas pela dimensão racional.

Atitude de Afirmação literal: (combina inclusão da transcendência com

afirmação literal). Nesse quadrante, o inferior esquerdo, encontram-se expressões que

reiteram a existência literal do objeto religioso. Esta é a atitude dos fundamentalistas

religiosos, que apenas aceitam as contribuições das ciências quando estas estão em total

acordo com suas convicções, e assim minimizam os condicionamentos históricos e

sociológicos que influenciam as doutrinas.

Características dos profissionais psi que habitam este quadrante: Agem a partir da

religião e da visão de ser humano nela contida, o que redunda em generalizações

289
idealizadas e regras de comportamento. O comportamento profissional que aparece como

o mais adequado para aqueles psicólogos clínicos que se sentem numa posição próxima

à da afirmação literal é o de procurar apoio em teorias que não entrem em choque com

suas crenças. Desenvolvem uma imagem profissional associada à denominação religiosa

que defendem, de modo a possibilitar a seus clientes a escolha, ou não, pela orientação

religiosa que será predominante no atendimento enquanto conjunto de valores, visão de

ser humano e de sentido de vida.

Em outras palavras, não há aceitação incondicional do paciente, não há respeito

pela sua história de vida, nem abertura ao diferente e a ressignificações promovidas no

espaço do consultório. Tudo deve ser enquadrado no esquema referencial defendido pelo

terapeuta.

Atitude de Interpretação redutiva: (combina exclusão da transcendência e

afirmação simbólica) Esta atitude, colocada no quadrante 3, aproxima-se da negação

literal, pois também exclui a transcendência da linguagem e práticas religiosas. “Vê a

religião como um fenômeno social ingênuo e ultrapassado e busca perspectivas

científicas, consideradas competentes para interpretar, a partir delas, os conteúdos

religiosos” (1999, p. 80). Encontramos a mesma preocupação no psicanalista Odilon de

Mello Franco (1995), que explicitamos na introdução da nossa tese de doutorado: “o

desconhecimento que muitos analistas têm de campos como o existencial, o artístico e o

religioso, redunda num “ponto cego” preocupante na clínica psicanalítica: os pacientes

sentem que seus valores mais sublimes são sistematicamente reduzidos ao infantil, e com

isso a clínica não permite que sejam retrabalhados além desse âmbito. Isto é, a

antropologia de base dos psicanalistas, herdeira do positivismo dominante nos tempos de

290
Freud, deixa de contemplar algumas dimensões essenciais da vida e com isso reduz a

compreensão da condição humana e de seus conflitos” (Wondracek, 2010, p. 14)241.

Características dos profissionais psi: Seus trabalhos têm cunho explicativo, buscando

identificar causas da experiência religiosa nos campos biológicos, psicológicos, históricos

e/ou ambientais. “O objetivo implícito é transformar ou eliminar o campo religioso,

reduzindo-o a outras áreas” (1999, p. 80). Ancona-Lopez agrega que grande parte dos

psicólogos se situa nesse quadrante. Esta atitude reducionista em terapeutas, líderes de

órgãos de classe ou docentes das faculdades de psicologia não contempla a profundidade

com que uma pessoa religiosa vivencia sua fé, o que obstaculiza o diálogo e o avanço nos

pontos de vista debatidos; tenta achatar a vida para apenas um plano, excluindo a riqueza

do mistério, do transcendente, do sagrado como fascinosum et tremendum (Rudolf Otto,

2007). Voltando à linguagem testemunhal e a meu diálogo com meu professor, penso que

sua atitude estaria nesse quadrante de redução.

Atitude de interpretação restauradora: (combinação de inclusão da

transcendência com realidade simbólica). Esta atitude afirma a realidade da

transcendência, com uma diferença significativa da atitude fundamentalista: Evita julgar

as ideias ou objetos religiosos. Sua tarefa é reorganizar os objetos da fé religiosa de modo

a restaurar a ligação com a realidade transcendente para a qual apontam. Eles não são

reduzidos a termos puramente cognitivos, mas se engajam na vida interna e expressam

sentimentos, valores e esperanças que organizam e regulam o fluxo das interações dos

sujeitos.

Conforme Wulff e Ancona-Lopez, há duas tarefas que aguardam a hermenêutica

moderna, opostas e complementares: desmistificar os símbolos religiosos para tirar deles

241
A mesma preocupação é explicitada em Faria, 2003; Safra, G. 2006; Rizzuto, 2006; bem como nosso
capítulo F eud,àPfiste àeàsuasàilusões:àQueà i ia?àQueà eligi o?àWo d a ek,à .

291
a idolatria e ilusão e ao mesmo tempo restaurar e retomar os símbolos, para que se tornem

novamente “uma fonte de significados e de fé”. (1999, p. 81) Esta dupla tarefa permeia a

atividade clínica e acadêmica dos profissionais psi abertos aos conteúdos religiosos.

Requer humildade epistemológica, reconhecendo que não se sabe tudo:

As realidades da religião, rituais, símbolos e metáforas são reconhecidos em sua

multidimensionalidade e a pessoa vivencia o poder iluminativo e a densidade dos

símbolos. Cliente e psicólogo abrem-se aos mitos, rituais e pensamentos

metafóricos abordando a religião por seus referenciais experienciais: sentimentos

profundos e estados internos que vão desde vivências cotidianas a estados

transcendentais, sutis ou claramente reconhecidos como místicos. (Ancona-

Lopez, 1999, p. 81)

A atitude de interpretação restauradora é a que denota maior maturidade

psicológica, pois é crítica e flexível, implicando um bom conhecimento de si e do outro,

bem como responsabilidade para a escuta e para o trabalho clínico.

II. O poder integrador do sonho

Esta busca por integrar as diferentes dimensões também se apresentava nos meus

sonhos: Durante uma de minhas análises, sonhei que habitava uma casa de dois andares,

sendo um térreo e outro porão: no andar térreo, de cima, estava a sala com pessoas

conhecidas da família e da profissão. No andar de baixo estavam pessoas ligadas à

espiritualidade, num ambiente mais íntimo, mais obscurecido, com menos presenças, mas

igualmente significativo. Analisei que sou uma pessoa que habita dois andares, e meu

fundamento se encontra no nascimento transcendental, esse nascimento no qual sou dada

à vida, como aprendi com Michel Henry na elaboração da tese de doutorado (2010).

292
Esse sonho representa o modo como me sentia “na vida” – habitada por diversas

dimensões, que convidam a vivê-las simultaneamente, tal qual uma casa da vários

andares. No andar de cima, o refúgio na biblioteca se transformou em pesquisas242, em

traduções (1998, 2003), em estudos de mestrado (2005) e doutorado (2010), em docência

e supervisão. O “andar de baixo” foi desenvolvido com leituras cotidianas de textos

sagrados (Hernández, 1998, 2005)243, aproximação a mestres espirituais do presente e do

passado244, práticas meditativas. Sempre nessa busca de mútuo reconhecimento dos

diferentes âmbitos que me compõe. Afinal, sou uma pessoa habitada por no mínimo dois

andares!

Em busca do mútuo reconhecimento na história da psicanálise

Dentro dessa atitude de abertura do quarto quadrante de Wulff, uma das tarefas

hermenêuticas é reconhecer a presença do religioso no ser humano, e por conseguinte,

também na compreensão psicológica do mesmo. Re-conhecer, atitude que remonta à

herança da teologia cristã em Hegel (apud Hoffman, 2011), implica o reconhecimento da

subjetividade do outro, e também aceitar a mútua influência e pertinência.

Para a psicanálise, reconhecer significa levantar o esquecimento e a redução

epistemológica decorrente do paradigma moderno e fisicalista que ela obteve por nascer

no século XIX. O esquecimento do religioso já fora afirmado pelo próprio Freud a seu

242
Ma ti e osà e t eà à eà ,à ju toà o à oà psi a alistaà “ gioà deà Gou aà F a o,à oà G upoà
I depe de teàdeàEstudosàdeàPsi a liseàeà‘eligi o .àátual e teà oo de a osàoàG upoàdeàPes uisaàe à
Aconselhamento e Psicologia Pastoral e o Grupo de Pesquisa de Fenomenologia da Vida, na Faculdades
EST, registrados no Diretório de Grupos do CNPQ.
243
O psiquiatra argentino Carlos Hernández nos presenteou em 1998 um guia de leitura bíblica para o
desenvolvimento da alma, Leamos la Bíblia, que tem ajudado muitos profissionais da área psi a
vivenciarem as riquezas do cristianismo. Essa incursão está auxiliando um grupo de psicólogos e
psi uiat asà i uladosàaoàCPPCààaà edigi e à o e t iosàdaà Bí liaàdeàEstudoàCo selhei a à ,à“BB ,à
editada pelo psicólogo e teólogo Karl Kepler. Em 2015 seu Novo Testamento será lançado em inglês e
espanhol.
244
Mestre Eckhart, Hildegard von Bingen, Teresa de Ávila, São João da Cruz, Nicolau de Cusa, Inácio de
Loyola, Jacob Boeme, Tersteegen, Edith Stein, Henry Nouwen, além dos poemas de Adélia Prado, Armindo
Trevisan, Roberto Zwetsch, entre outros.

293
amigo Oskar Pfister245 e depois trabalhado pelo psicanalista-pastor (Wondracek, 2003,

2005). A participação na tradução das Cartas entre Freud e Pfister (Freud & Meng, 1998)

abriu um leque de ressignificações possíveis, indicando dois precursores do atual diálogo

interdisciplinar (Caon, 2003), no qual ambos reconheceram os campos que os habitavam

a partir do desejo comum de diminuir o sofrimento humano. Novamente a clínica se

constitui o ponto de encontro dos diferentes andares e saberes...

A psicanalista Marie Hoffman, docente do Curso de Pós-graduação em psicanálise

da Universidade de Nova York e uma das coordenadoras do SEPTT, expressa que há um

trabalho epistemológico a fazer no diálogo entre psicanálise e cristianismo: É preciso que

ambos reconheçam suas influências mútuas. Reconhecimento mútuo não é apenas um

termo, mas constitui o eixo da intersubjetividade, uma das bases hegelianas da postura

clínica de Jessica Benjamin assumida por Hoffman(2011). Se cada vez mais se reconhece

o paradigma relacional nas teorias do conhecimento (Polany, 1964, Loder & Neidhardt,

1992, Hernández, 2008), este tema se torna relevante para a clínica, especialmente para a

compreensão das dimensões envolvidas na relação terapêutica.

Hoffman (2010, 2011) comenta que em tempos de objetividades que reduzem o

valor do humano, a psicanálise e a teologia são guardiãs do seu mistério, no que

curiosamente são acompanhadas pelos avanços das neurociências, que apontam para a

complexidade do humano, bem maior do que anteriormente se supunha. A autora ressalta

que cristianismo e psicanálise não são apenas separadamente guardiãs desse mistério, mas

conservam entre si alguns aspectos que as aparentam, e essas raízes comuns devem ser

trazidas à luz.

245
F eud,à a taà deà . . :à Estouà uitoàad i adoàdeà ueà es oà ão tenha me lembrado de quão
grande auxílio o método psicanalítico pode fornecer à cura de almas, porém isto deve ter acontecido
porqueàu à auàhe egeà o oàeuàest àdista teàdessaàesfe aàdeàideias à ,àp.à

294
Para começar, falemos de Freud...

Reconhecimentos mútuos: Freud e a Bíblia

O reconhecimento da influência da Bíblia no pensamento de Freud veio apenas

em 1935, quando inseriu a seguinte frase na sua autobiografia: “Meu profundo interesse

pela história da Bíblia (quase logo depois de ter aprendido a arte da leitura) teve, conforme

reconheci muito mais tarde, efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse.” (1925,

p. 18)

A Bíblia também é o segundo livro mais citado por Freud – entre Goethe e

Shakespeare... Ele próprio escreveu várias obras sobre personagens e temas religiosos.

Infelizmente, poucos dos seus seguidores contemporâneos conservam esse interesse, e

por isso perdem a riqueza desse tesouro simbólico para a vida consciente e inconsciente

dos pacientes e dos fenômenos sociais. O reconhecimento do próprio Freud da influência

da Bíblia foi objeto da pesquisa de doutorado da psicanalista Betty B. Fuks (2000), da

qual tomamos alguns eixos:

1. A história do povo hebreu é marcada pelo exílio, pelo deserto, pelo nomadismo

e pelo contato pemanente com o estrangeiro. Isso faz com que em todo tempo se

esteja em contato com “o estranho”, também remetendo a um “estranho” dentro

do psiquismo.

2. O Deus dos hebreus é representado por um tetragrama – IHVH –, cuja

pronúncia foi esquecida, remetendo a que a divindade sempre está além da

representação que se fará dela. Seu Deus é alteridade absoluta, inquietante

estranheza e por isso presença de angústia. “YHVH não pode exercer a função de

espelho porque é alteridade radical, avesso a qualquer forma de representação”.

(2000, p. 108)

295
3. A escrita hebraica comporta uma polissemia de interpretações, sem que uma

negue a veracidade da outra. O texto, assim, é aproximado da obra de arte, com

sentido inesgotável, “está ancorado no mais além do simbólico: tecido de

diferenças é criação ex-nihilo” (2000, p. 122). As palavras são lidas e

interpretadas levando em conta o branco do papel que as circunda – sempre outro,

sempre diferente do já sabido, tal como seu Deus. “Quando se imprime alma às

letras, como diziam os antigos escribas, o sentido de uma palavra pode revelar

significações inteiramente insólitas.” (p. 122)

4. Se Deus é irrepresentável, assim também o humano, feito à imagem de Deus,

em certa medida o é. Este é o conceito de Kadosh [santo, separado]: o humano

para além da representação. Eis o paradoxo da condição humana: ser feito à

imagem e semelhança desse Deus que não admite imagem. A partir disso, Fuks

comenta que o conceito psicanalítico de pulsão também é iconoclasta – e no mútuo

reconhecimento não apenas próximo à Vontade cega de Schopenhauer, mas perto

do mandamento de não fazer imagens de Deus:

Todas as letras e palavras escritas no corpus teórico psicanalítico não

recobrem, seja com figuras, seja com definições, este conceito, cujos

fundamentos se enraizam na impossibilidade de fixar-se uma

representação para a inesgotável melodia pulsional, assim determinando

um vazio presente em sua estrutura: a pulsão se traduz apenas como uma

potência que se presentifica em representações efêmeras e transitórias

(Fuks, 2000, p. 14).

O reconhecimento da influência do judaísmo bíblico na psicanálise amplia a base

dos conceitos psicanalíticos, torna-os alicerçados em uma tradição milenar, fonte na qual

a obra de Freud é ressignificada. A impossibilidade de fixar-se numa representação

296
concede à pulsão a errância, tal qual a do seu povo – que vagueou por desertos e segue

vagueando, em contato com esse estrangeiro do afeto e do inconsciente. Riquezas

semânticas a explorar debaixo da atitude de interpretação restauradora, aberta a surpresas

e diálogos, como na relação entre Freud e Oskar Pfister.

O mútuo reconhecimento em Oskar Pfister

Oskar Pfister (1873-1956) foi um dos primeiros psicanalistas a ver a proximidade

de Freud com sua herança. Aproximou Freud dos antigos profetas hebreus, e via na

psicanálise “Um novo acesso ao velho Evangelho”, título de um de seus livros. (Pfister,

1918) Numa carta a Freud comenta que prática analítica se assemelha à acolhida graciosa

que Deus faz do ser humano:

Na concepção genuinamente cristã da graça, como parece na parábola do filho

perdido (Lucas 15), acontece evidentemente uma regressão para aquela fase

infantil na qual a criança ainda não é tratada segundo a medida do bem ou do mal,

mas simplesmente é servida com amor e bondade. [...] por acaso não reside em

toda graça e perdão uma prática analítica? (Pfister, carta de 31.7.1930, 1998, p.

273)

A atitude acolhedora do analista, tal como preconiza Freud, reflete o que o

Evangelho quer dizer com “graça e verdade”. Nesse sentido, as terapias preservam para

nossos dias o que é genuíno no modo cristão de considerar o ser humano. E, como já

lamentava Pfister, o ambiente analítico reflete mais esse amor do que os próprios espaços

“oficiais” da religião cristã. (Pfister, [1927] 2003)

297
Mútuo reconhecimento nos pioneiros: raízes cristãs em Klein e Winnicott

Hoffman (2010, 2011) pode ser considerada ousada ao expressar que assim como

em Freud há influências da teologia hebraica, pode-se re-conhecer traços cristãos em

vários pioneiros da psicanálise, como em Ferenczi, Melanie Klein, Fairbarn, Winnicott,

Bion. Trago apenas dois exemplos, resgatados da sua obra:

- O conceito de gratidão de Melanie Klein preserva a raiz ‘graça’ – “dom”, “oferta”,

reconhecimento do “bom” que é recebido da mãe, sem merecê-lo. Melanie Klein foi

criada na tradição católica, e seu conceito de gratidão recebe essa influência: gratidão é a

resposta aos atos graciosos ofertados pela mãe, depois do bebê expressar as pulsões

agressivas a ela.

- O conceito de “sobrevivência do analista” de Winnicott tem raízes na sua trajetória

cristã, que aos poucos começa a ser conhecida (Hoffman, 2011; Parker, 2012, Wondracek,

2012). Winnicott nasceu num lar metodista, e acompanhava o pai à igreja todos os

domingos para estudar a Bíblia desde sua tenra infância. Segundo Hoffman, o psicanalista

inglês tomou a narrativa cristã de morte-ressurreição como paradigma para teorizar a

importância da mãe sobreviver ao ataque do bebê, sem retaliá-lo. “Os dons dados por

ambos os pais e pelo analista evolvem para algo muito além de justiça, e requerem e

superam a lógica da recompensa equivalente” (p. 169). Da mesma forma, a dedicação do

terapeuta não se dá pelo pagamento, mas está ancorada na economia do dom.

Hoffman acrescenta um dado interessante numa nota de rodapé: que a palavra

grega para o latim “gratus” é “charis”, que significa “graça” e forma a base da

“Eucaristia”, que remete à refeição sacramental. Essa refeição é a própria experiência de

sobrevivência após a destruição, a gratidão e a comunhão dos crentes em torno dessa

298
sobrevivência. Estes conceitos permeiam a compreensão da relação mãe-bebê e da

relação analista-paciente.

Mútuo reconhecimento no paradigma relacional

Na psicologia e psicanálise o lugar do outro é primordial: nascemos na

relacionalidade, e apenas nos constituímos nela. Também esse aspecto originário já se

encontra na narrativa do Gênesis – no relato da criação somos constituídos como “imagem

e semelhança” de um outro, no caso, de Deus (Gen. 1.26). A riqueza desse texto fundante

começa a ser explorada: escritos conjuntos entre psicanalistas e exegetas bíblicos (Lebrun

& Wénin, 2010), ensaios psicanalíticos resultantes de grupos de estudo de psicanálise e

Bíblia (Balmary, 1993, 1997, 1999, Wondracek, 2014) Apenas uma menção: Balmary

(1993) chama a atenção que o Gênesis traz o verbo plural quando o divino cria o humano:

“Façamos o humano à nossa imagem”. Seria um indício da necessidade de que a criança

se constitua numa relação plural, nunca numa dualidade?

Uma segunda pitada: para apresentar a nutrição, o Gênesis apresenta Deus em

primeira pessoa do singular: “Eu vos dou todo alimento”. Se iniciamos a vida nutridos

pela nossa mãe, também aqui é do Deus pessoal que os humanos recebem o alimento. A

primeira pessoa não é usada para se enaltecer (por exemplo “Eu faço a luz”) mas para

se doar. Um critério pode ser criado aqui, para distinguir religiões amorosas de religiões

mágicas e alienantes.246

246
Este comentário foi preparado para constar na Bíblia de Estudo Conselheira, cujo livro de Gênesis está
sendo lançado no ambiente virtual da Sociedade Bíblica do Brasil. www.sbb.org.br

299
James Loder247, teólogo do Seminário de Princeton, expressa que o Gênesis nos

aponta que somos exocêntricos, nosso centro está na relação com um outro. O ser humano

inicia a sua vida se apoiando numa imagem de alguém fora dele mesmo, conceito bíblico

que será trabalhado por Freud, Lacan e Winnicott. Loder expressa que esta relação Eu-

Tu adquire vida por si, e a relacionalidade embasa a própria racionalidade, conforme

expressa a ciência contemporânea. (Loder, 1998, Polany, 1964)

A pergunta que fica no ar é se a partir desse reconhecimento não ocorre uma

“mistura” dos diferentes saberes. Curiosamente, é a própria teologia que traz um modelo

para pensar a abordagem interdisciplinar de forma a manter a independência de cada saber

e ao mesmo tempo propiciar a sua participação. Para Loder (1998), o grande debate

ocorrido no V Século, que ficou conhecido como Concílio da Calcedônia a respeito da

natureza de Jesus Cristo, não apenas conceitua uma verdade a respeito da natureza de

Cristo (simultaneamente humano e divino), mas apresenta um paradigma para relacionar

campos diferentes de saberes, e para nosso estudo, sobre como relacionar o fato de ser

psicólogo e cristão.

O Concílio de Calcedônia expressa uma verdade teológica e também um padrão

de pensamento que considera a integridade de duas naturezas diversas em um só

corpo. Este padrão constitui uma forma de relacionalidade e racionalidade que

aparece numa variedade de outros contextos, de modo a superar numerosos

problemas surgidos nos estudos interdisciplinares. (Loder apud Wondracek,

Rehbein, Cartell, 2012)

247
JAMES E. LODER (1931-2002) foi professor no Seminário de Princeton, com formação teológica,
filosófica, psicanalítica, educacional e em física. Foi um dos pioneiros na abordagem interdisciplinar dos
fenômenos humanos, tendo participado de grupos de investigação já na década de 60.

300
Loder (1998) explicita que esta unidade aparece na epistemologia, como a

inevitável dualidade da relação Eu-mim, sempre experimentada como a unidade do self.

Na física, esta mesma estrutura embasa a teoria quântica de Niels Bohr para explicar a

relacionalidade bipolar entre onda e partícula na natureza da luz. E no diálogo

interdisciplinar fornece um paradigma que considera ambos os saberes em toda sua

validade.

Mútuo reconhecimento na fenomenologia da vida

Aos poucos o Brasil toma contato com a nova filosofia francesa, na qual há um

interessante retorno aos textos fundantes da nossa cultura judaico-cristã. Especialmente a

fenomenologia da Vida, com Michel Henry, Jean-Luc Marion e Jean Louis Chrétien

fizeram a tarefa epistemológica de reconhecer as contribuições da teologia cristã para o

conhecimento do humano.

Michel Henry em seu livro Eu sou a verdade (1998) bebe em fontes profundas:

nos místicos como Meister Eckhart e no Evangelho de João: no logos joanino está o

melhor conceito de Verdade: invisível, irrepresentável e encarnada afetivamente.248

Henry desenvolve a fenomenologia do invisível, da vida que antecede o pensamento e o

doa. Propõe a inversão fenomenológica e o duplo aparecer como paradigma, muito

próximo da lógica calcedônica desenvolvida por Loder. Suas ideias a respeito da

afetividade como condição fundante e encarnada desafia nossa clínica para acolher o

irrepresentável e o impensável. Um aspecto também já percebido por Julia Kristeva

248
Para maior aprofundamento consultar o capítulo 3 da nossa tese (2010), bem como o Glossário ao final
da mesma.

301
(1987) e Françoise Dolto (1997), que expressam que o Ocidente precisa reconhecer de

sua herança cristã a doação da subjetividade e de nosso ego afetivo.

Somos filhos nascidos na Vida absoluta, essa é nossa condição. Florinda Martins

(2003) expressa com muita sensibilidade as consequências do fechamento ou da abertura

a esse reconhecimento:

Distantes do que em nós é princípio, é nós que nos distanciamos perdendo, ao

mesmo tempo, qualquer possibilidade de relação, já que, ao ser a inocência

primordial da vida fundação do sujeito, é nela que colhemos o princípio da

relação: a Vida que a si se nos dá, que a nós se abraça, é fundação do eu e

paradigma de relação. Mais, apenas porque afectos na vida podemos, enquanto

vivos, agir!

Para Henry (1987), o desconhecimento desse nascimento transcendental, leva a

civilização ocidental para o afastamento da vida e para a barbárie sutilmente disfarçada

de progresso tecnológico, contribuindo para o incremento do que na psicanálise

chamamos de novas doenças da alma (Kristeva, 2002; Safra, 2004).

Henry (2001) também se nutre do cristianismo ao investigar a questão da

imanência. No seu livro Encarnação: uma filosofia da carne denuncia o equívoco de

tomar o pensamento como ato primeiro, indicando que é necessário religar a capacidade

de pensar com sua doação na vida. Reconectando o pensamento com sua doação

originária na vida, habilita-o a experimentar em si a doação da vida na imanência, sem

necessidade prévia do caminho da representação. Henry descobre no cristianismo a

primeira teorização consistente da origem invisível do corpo e de suas propriedades. O

verbo se torna carne (João 1.1). Essa conexão reordena, entre outros, a relação entre

corpo, pensamento e linguagem: essa última é conectada com corpo e carne. Aqui se

302
efetua para ele a subordinação dos fenômenos da linguagem à fenomenalidade pura, mas

isso não apaga as especificidades dos fenômenos da linguagem, antes conecta-os com sua

possibilidade mais originária, o Logos (2001, p. 45).249

No seu último livro Palavras de Cristo (2004)250 Henry desenvolve este tema,

remetendo a linguagem à sua carência e ingenuidade, quando considera o representável

como única realidade (p. 73). Assim oculta uma palavra mais original, a Palavra da Vida,

capaz de criar o que enuncia, que diz respeito à relação que a vida faz com os seres vivos.

Essa é a palavra “cuja possibilidade é a própria Vida e na qual a vida fala de si, revelando-

se a si mesma – na qual a nossa própria vida se nos diz e constantemente”. (p. 74),

O alcance clínico dessa forma de compreender a linguagem é imenso, pois no

autoprovar-se do sofrimento pode-se descobrir, além do conteúdo expresso, a revelação

dessa outra Palavra. Desta forma, muitas experiências críticas se tornam fonte de

crescimento, de revelação, de conexão com a vida. (Pölking, 2014; Bangel, 2014)251

III. Um amanhecer com esperança: mútuo reconhecimento na clínica

Tendo o paradigma da encarnação como base, nossa sensibilidade na clínica é

aguçada para compreender a pessoa humana, tema desse Congresso, de uma forma muito

mais complexa e profunda. Segundo Loder (1998), o ser humano está igualmente

estruturado para o insight matemático e para a experiência mística. Em linguagem de

249
Para aprofundamento cf. o capítulo 4 de nossa tese (2010).
250
Para maior compreensão cf. capítulo 5 da nossa tese (2010).
251
Além desse artigo, a psicanalista Marina Lúcia Tambelli Bangel está concluindo sua dissertação na
Faculdades EST a respeito do sofrimento infantil que se apresenta na contemporaneidade, e que na
interlocução entre teologia, fenomenologia da Vida e psicanálise pode ser trabalhado auxiliando a criança
a sentir-se. Estará disponível em 2015 no site www.est.edu.br

303
Michel Henry, no paradigma do duplo aparecer temos acesso às verdades do mundo e às

verdades da vida (Wondracek, 2011). Como expressa Gilberto Safra (2014):

Diante desse fenômeno, temos um processo pelo qual o self da pessoa como que se

abre para o transcendente, acolhendo em meio à humildade o seu estado de criatura

diante da grandeza do Absoluto. Nessa condição a pessoa percebe-se como deficiente

de sua capacidade de amar, [...] No entanto, esse reconhecimento mesmo torna-a

profundamente amorosa.

Nossa clínica, portanto, deve poder simultaneamente considerar as formações do

inconsciente e acolher o mistério, e este remete à outra palavra, não interpretável, mas

passível de ser testemunhada (Safra, 2006). É necessária uma postura de respeito e espera

para com a revelação, e não apenas atenção ao timing da interpretação.

Pacientes chegam e contam suas histórias infantis, memórias que se fazem

presentes por sonhos, atos falhos, associações livres, transferência. Tento acolhê-los e

discernir o que deve ser interpretado e o que deve ser testemunhado. Aos poucos, ganham

confiança para contar suas experiências com o sagrado através de sonhos, visões, orações,

leituras, falar em línguas, encontros nos quais, tal como aos discípulos de Emaús, “ardia

o coração” (Lc 24, 32). Como expressa Gilberto Safra:

Nesse ponto, a pessoa se apropria dos princípios que compõe sua utopia, seu sonho

sobre o absoluto. Estamos no momento em que a pessoa se dá conta do modo

como o sentido de sua vida se constitui e a maneira como a sua espiritualidade se

descortina. A espiritualidade é o movimento pelo qual a pessoa se encaminha em

direção à maneira como realiza a sua concepção pessoal sobre o absoluto ou sobre

o divino. Quando ela se apercebe desse processo e se apropria dele, tem acesso à

304
sua espiritualidade: a maneira peculiar como ela se abre para o mais além, para

a transcendência final de sua existência (2006, p. 126).

Carlos Hernández (2008, 2014) expressa que a clínica pós-moderna deveria se

chamar de “clínica do inaparente”, na qual se integram o “momento profano” e o

“momento sagrado” como complementares. Nesse segundo, “se inverte a mirada

deixando que a novidade da auto-manifestação do paciente impacte a situação clínica”

(2008, p. 142).

Voltando a meu sonho, se espera que ambos os andares revelem seus habitantes,

suas luzes e suas sombras. Nem sempre estas devem ser escancaradas com a luz da

interpretação, mas apenas contempladas com a luz de uma pequena lâmpada, de uma

pequena vela tremulante perante o sopro do espírito. (Alves, 1984).

Nesse sentido, uma digressão se faz presente também no aspecto teórico-clínico.

No paradigma do duplo aparecer, ou dos dois andares, podemos ampliar a questão que

Freud (1908) coloca como fundante do desenvolvimento emocional e cognitivo da

criança. A pergunta-chave “De onde vem os bebês?” – levará à descoberta da diferença

sexual bem como da diferença de gerações (Chasseguet-Smirgel, 1988) e desta forma

encaminhará o desenvolvimento afetivo-cognitivo. No duplo aparecer henryano, essa

pergunta é acrescida da questão “Que poder doa a vida?” (Wondracek, 2010) Henry

expressa que temos duplo nascimento – dos nossos pais, com nossa biografia ancorada

na relação com nossa família. Mas também temos nosso nascimento na vida absoluta,

doadora de toda a vida, inclusive da dos nossos pais. Esse processo pode ser reconhecido

e testemunhado, e muitas vezes se torna a base para a superação de traumas precoces,

especialmente para aqueles que não foram afortunados na relação com os pais visíveis.

Como expressa o poeta Armindo Trevisan a respeito desse duplo nascimento:

305
Elogio

Minha mãe:

poeta algum

é capaz de louvar o ventre que o trouxe,

por mais que adoce

a língua em que nasceu.

Poeta algum encontra

o caminho do coração,

que se assemelha a uma estrada antiga,

por onde passavam

carruagens reais

e por onde viajavam Bach e Mozart.

Só me resta extrair

das jazidas secretas

da memória

o meu diamante mais puro.

Depois falar-te,

com a limpidez

da água

de uma fonte coberta por folhas mortas:

- És aquela que preparou

o ninho à minha alma,

306
que veio de um Seio

Maior do que o teu.

Será que nossa clínica se abre para essas questões de duplo nascimento, sem

desconsiderar nenhum dos andares?(Wondracek, 2005a) Pois se formos coerentes com a

quarta atitude de Wulff, não devemos reduzir nossa vida a uma só dimensão, mas senti-

la em sua complexidade na nossa imanência. Essa percepção está presente na afirmação

de Andrés A. Antúnez (2012, p. 85) a partir da fenomenologia da Vida:

... todo ser humano busca a Vida, antes que a Morte, mas a vida não precisa ser

necessariamente buscada, ela está em nós, somos afetos na vida, já que só

podemos ser na Vida, somos Vida, estamos nela, seja com amor ou ódio, alegria

ou tristeza, facetas da Vida, sempre, sem possibilidades de nos distanciarmos de

nós mesmos.

IV. Horizontes de encaminhamentos

Se iniciei com o testemunho do percurso inicial, gostaria de concluir sintetizando o

que tenho re-conhecido no meu percurso como psicanalista e investigadora:

Com Ancona-Lopez e Wulf – abrir-me para a simultaneidade da dimensão

psicológica e do sagrado; isso constitui a atitude científica mais coerente com a

complexidade humana.

Com Pfister - reconhecer Freud como continuador e herdeiro de uma antropologia

que nasce no irrepresentável e na polissemia. Inserir o humano em realidades que o

abraçam e o abarcam.

307
Com Loder - considerar simultaneamente os diferentes saberes reunidos na lógica da

encarnação, possibilitando dar a cada um o seu proprium, sem reduzi-los, confundi-los e

nem substitui-los.

Com Hoffman – resgatar a contribuição do cristianismo nas teorias psicanalíticas dos

pioneiros. Reconhecer essas heranças e fazê-las trabalhar para apropriação do tesouro

que, tal como expressa o Evangelho, nos traz “coisas novas e velhas” (Mt 13.44). χs

novas estão nos desenvolvimentos contemporâneos que dialogam com as mais

sofisticadas pesquisas científicas sobre o humano; as velhas surgem no resgate da

sabedoria contida nos textos sagrados e no reconhecimento de sua presença nas teorias

psicológicas.

Com Henry – considerar a vida doada na imanência, que nos abre à clínica do

irrepresentável, resgatando o primado do afeto e a revelação da vida no seu pathos. O

conceito de duplo aparecer mostra a possibilidade de fazer conviver as diferentes

dimensões, sem que elas se anulem ou reduzam mutuamente.

E no meu consultório, com meus pacientes, aprendendo a interpretar e a

presenciar/testemunhar, acolhendo o inconsciente e o mistério que se faz carne neles e

em mim.

Como encaminhamento esperançoso, recordo a preocupação de Marilia Ancona-

Lopez trazida no início, de que a formação de psicólogos carece de espaços que

contemplem as diferentes dimensões do humano, e especificamente do religioso. O que

foi vivido nesse evento traz esperança: presença de psicólogos(as), psicanalistas,

fenomenólogos(as), teólogos(as) abertas a se deixar afetar pelo saber de cada um. O

trabalho desenvolvido no IPUSP e neste Congresso indica que já temos esses espaços de

308
formação em constituição. Que se continue a trabalhar integrando as diferentes

dimensões!

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313
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERDÃO E O NÃO-PERDÃO NA

CLÍNICA DO ENVELHECIMENTO.

Fernando Genaro Junior

Instituto de Ciências Humanas, Curso de Psicologia, Universidade Paulista.

E-mail: fernando.genaro@gmail.com

Resumo - O presente trabalho parte de uma experiência clínica-institucional junto à

pacientes idosos atendidos num Centro de Referência do Idoso ligado ao Sistema Único

de Saúde o SUS. Há algum tempo (Genaro Junior, 2012; 2013) tenho me detido na

investigação das especificidades da prática clínica com essa população, sendo

identificado que uma das várias necessidades próprias do processo de envelhecer esta

ligada a urgência de rever os sentidos da vida. Logo, a necessidade de se viver as várias

facetas do perdão, como oportunidade de abrir novos espaços a fim de sonhar um fim

último possível e destinar a continuidade da vida para as futuras gerações. Assim como,

em algumas situações clínicas, a necessidade de viver o não-perdão sem que isso

signifique ressentimento e paralisação do devir. Contudo, para tecer tais considerações,

recorro a própria prática clínica por meio de vinhetas e teço algumas compreensões sobre

o perdão e o não perdão como faceta constitutiva na velhice. Ao longo me minhas

considerações acompanho-me de alguns autores, tais como Safra, Arendt e Levinas.

Palavras-chave: Clínica do Envelhecimento; Perdão, Não-Perdão, Safra, Levinas.

SOME CONSIDERATIONS ABOUT FORGIVENESS AND NON-

FORGIVENESS IN CLINICAL AGING

314
Abstract -This work is part of a clinic-institutional experience with elderly patients

treated at a Reference Elderly connected to Sistema Único de Saúde - SUS. Some time

ago (Genaro Junior, 2012, 2013a, 2013b) have held me in investigating the specificity of

clinical practice with this population, identified a number of specific needs of aging is

linked to the urgency of reviewing the meanings of life process. Soon, the need to live the

many facets of forgiveness, as opening up new spaces to dream a final end possible and

allocate the continuity of life for future generations. Just as, in some clinical situations,

the need to live without the non-forgiveness and resentment that means stoppage of

becoming. However, such considerations to weave, turn to their own clinical practice

through vignettes and weave some insights about forgiveness and no forgiveness as a

constitutive facet in old age. Throughout my considerations accompany me to some

authors, such as Safra, Arendt and Levinas.

Keywords: Aging Clinic, Forgiveness, No Forgiveness, Safra, Levinas.

Introdução

Na atualidade, observamos que o mundo envelhece de forma acelerada, tendo em

vista as melhores condições de saúde e saneamento, somadas aos avanços tecnológicos

da medicina. Nesse mesmo ritmo, a população brasileira envelhece de maneira

significativa e, de acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU,

2005), o Brasil será o sexto país com o maior número de pessoas idosas no mundo até

2025.

O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),

realizado em 2010, apontou que 7,4% da população têm mais de 65 anos, contra apenas

4,8% em 1991, sendo as regiões Sul e Sudeste demonstram as maiores taxas de

envelhecimento em relação as outras regiões do Brasil. A projeção do instituto sugere que

315
o Brasil terá aproximadamente 216 milhões de habitantes em 2025, dos quais 31,3

milhões, isto é, 14% dessa população serão idosos. Em 2040, quando a expectativa de

vida alcançará 81,2 anos, serão aproximadamente 52 milhões de brasileiros idosos.

Ante ao crescimento significativo do número de idosos, observamos que os

sistemas de saúde atuais não estão preparados para atender tal demanda, havendo pouco

investimento nessa área, incluindo aqui a própria atuação da Psicologia (Genaro Junior,

2013a). No entanto, um marco importante para a consideração das necessidades do idoso

foi a criação do Estatuto do Idoso em 2003 (Lei no.:10.741/2003), com o estabelecimento

de Conselhos Nacionais dos Direitos dos Idosos e suas delegacias regionais e municipais

e a criação de centros de referência do idoso por região, como o da Zona Norte de São

Paulo, local em que idealizei e implantei o serviço de psicologia clínica para pacientes

idosos252.

Esse trabalho é desdobramento da minha tese de doutoramento em psicologia

clínica defendida no departamento de psicologia clínica do Instituto de Psicologia da

Universidade São Paulo no ano de 2013, nela discorreu-se a partir da minha experiência

clínica-institucional como psicólogo idealizador e coordenador de um serviço de

psicologia clínica a pacientes idosos no Sistema Único de Saúde, o SUS, sobre o processo

de implantação do serviço de psicologia, e com isso foi possível levantar os principais

eixos clínicos dessa prática (Genaro Junior, 2013a). Dentre os vários eixos um deles se

refere a necessidade de se viver diferentes facetas do perdão. Outro, surgido após a defesa

da tese, relaciona-se ao não-perdão como possibilidade. Assim, nesse trabalho busco

apresentar e discutir esses dois aspectos fundamentais na clínica do envelhecimento: o

perdão e o não-perdão numa tentativa reflexiva clínica e teórica sob a perspectiva ética

252 Para maiores informações e desenvolvimentos sobre o assunto favor consultar: Genaro Junior, F.
(2013b). Clínica do envelhecimento: concepções e casos clínicos. São Bernardo do Campo-SP: Editora
Todas as Musas.

316
proposta por Safra (2004), considerando a importância do ambiente humano como

condição da experiência de ser, e continuar sendo em diferentes etapas da vida. Busco

também interlocuções na concepção de perdão em Arendt (1958/2011) em suas

discussões sobre a condição humana, e sobre o não-perdão em Levinas (1968/2003)

como necessidade constitutiva em detrimento de algumas experiências em que o ethos

humano (Safra, 2004) se fragmentou, sem que isso signifique, ou redunde em

ressentimento. A fim de discutir tais aspectos utilizo-me de duas vinhetas clínicas como

ponto de partida para tecer algumas considerações sobre o tema em destaque nesse

trabalho.

Vinheta clínica 1

O sr. Rafael253, 78 anos, cardíaco, viúvo, pai de cinco filhos, vive sozinho. Chegou

até o serviço de psicologia por intermédio da enfermagem. Logo no primeiro contato

relatou:

Dureza de vida! Fiz muita coisa errada. . . (silêncio). Trabalhei muito, não

deixava faltar nada em casa, mas judiei muito da patroa e dos filhos!

Bebia, ficava nervoso, cego e quebrava tudo! Bati muito nos meus filhos,

na minha falecida, era de ir pro hospital! Meus filhos me querem bem hoje,

tentam ficar perto, mas eu não me perdoo!!! Já fui na igreja, falei com

padre, mas é difícil. . . Tô ficando doente, isolado do mundo. . . Será que

tem jeito doutor? [sic]

Nesse breve contato, o sr. Rafael já nos anunciava o que lhe era necessário: a

necessidade de perdão parecia ser a única saída. No entanto, para isso era necessário

253Nome fictício a fim de preservar a identidade do atendido, cabe salientar que houve consentimento
para fins de pesquisa conforme as prerrogativas éticas em voga.

317
desvencilhar-se de si mesmo, aspecto complexo e difícil durante toda a sua vida. A

onipotência e a culpa, ainda que defensivas, o impediam de viver o perdão, deixando-o

estanque diante do sentido da vida.

Vinheta clínica 2

Sra.Teresa254, 70 anos na época, casada há 47 anos, natural de Minas Gerais, não

teve filhos – abortou naturalmente em três tentativas de engravidar, costureira aposentada.

A sra. Teresa foi encaminhada ao serviço por sua médica geriatra, tendo em vista seu

quadro depressivo, que não respondia aos antidepressivos. Já na triagem nos deparamos

com uma senhora corporalmente oprimida, com significativas rugas por todo seu corpo,

aparentando ser muito mais velha e logo de início nos comunica: “. . . Sabe que é? Eu

nunca tive amor de mãe, só maus tratos, tento ser calma, mas muitas vezes nem consigo

dormir!. . .” [sic]. A sra. Teresa começou então a me relatar o quanto havia sido torturada

por sua mãe ao longo de toda vida, a começar do seu nascimento; era a filha caçula de

uma prole de quatro mulheres, sua mãe esperava um filho homem. Eis sua primeira

experiência de violência: ao nascer, sua mãe constatando ser mais uma menina, colocou-

a num formigueiro. Uma tia que acompanhava o parto na casa, pois vivia na “roça”, foi

quem a retirou do formigueiro e cuidou dela nos seus primeiros dias; suas irmãs mais

velhas contam que a mãe não deixou nenhuma delas se aproximar para ajudar.

“eu era basicamente uma escrava e, ao mesmo tempo, me culpava, pois

meu pai, antes de morrer, eu era menina, pediu que eu cuidasse da minha

mãe, apesar das suas crueldades. . .” [sic]. Além da violência física,

apanhava muito até sua adolescência (sem motivos). Sua mãe lhe rogava

254
Nome fictício a fim de preservar a identidade do atendido, cabe salientar que houve consentimento
para fins de pesquisa conforme as prerrogativas éticas em voga.

318
pragas do tipo “você vai ter doença ruim. . . marido ruim. . . não vai servir

nem pra pôr filho no mundo. . .” [sic].

A sra. Teresa havia se casado com um homem que reproduzia a violência vivida

com sua mãe (ele a agredia fisicamente e a controlava pelo medo); a profecia da sua mãe

parecia se cumprir, teve três abortos naturais e, há cinco anos atrás, um câncer de mama.

Sra. Teresa não se mostrava ressentida pelo vivido, mas perdoar sua mãe não lhe era

possível, sua situação esboçava para a necessidade de se apropriar do não-perdão como

uma posição diante do mal materno experenciado.

Velhice: a necessidade urgente de perdão e não-perdão

Observamos que, na clínica, há um movimento de busca por compreensão se dá

continuamente, a cada sessão que se inicia e termina como o movimento natural da vida.

Entretanto, com a chegada da velhice, tal necessidade surge de maneira mais urgente. A

partir de um balanço existencial como nos aponta Safra (2006a) e Genaro Junior (2013b),

além dos aspectos físicos e psíquicos, a pessoa idosa vive inevitavelmente, consciente ou

inconscientemente, um balanço da sua vida em seu sentido maior, para assim poder vir a

formular um fim possível ao qual possa destinar a sua existência – experiência fecunda

para se acolher a própria velhice e a possibilidade de morrer. Trata-se de um aspecto

desenvolvido por Safra (2006b) como teleologia – referente ao Telos. Para Safra (2006b),

a finitude determina o homem. E nesse momento de vida, a velhice, há uma maior

consciência dela do que em outras etapas da vida. Para Safra (2007), o gesto humano

sempre se origina e caminha em direção a um fim e “essa situação o faz um ente sempre

acontecendo entre dois elementos fundamentais: Arché e Telos255. Há um movimento no

255 Safra recorre à Filosofia para contemplar aspectos essenciais da existência humana e seus
desdobramentos na clínica atual. Assim, ao se referir a Arché, o autor define como sendo uma faceta da
existência aonde tudo se inicia: a origem do gesto, o originário. O mesmo acontece com o termo Telos, o
qual se refere ao fim, finalidade, conclusão do gesto humano, assim como o findar do próprio ser humano.

319
ser humano que se relaciona ao anseio do fim” (p. 84). Sendo assim, todo gesto humano

busca, por meio de uma ação, um fim em si, bem como realiza concepções sobre ele a

partir da sua própria biografia e ontologia. Cabe reconhecer que esses movimentos entre

Arché e Telos acontecem o tempo todo, mas na velhice isso ganha maior dimensão, com

o advento da proximidade da morte e da maior noção do que é o tempo. Nesse contexto,

observamos, por exemplo, que é comum na clínica com idosos a presença de certa

preocupação para que a morte não ocorra no momento que estejam a sós. Como nos

assinala Safra (2006b):

A morte, assim como o nascimento, necessita ocorrer em comunidade para que

aconteça a dignidade do nascer e do morrer... Nascer e morrer, para o ser humano,

é entrar e sair do mundo humano. Há a necessidade fundamental do homem de

que o Outro esteja presente em todo o seu percurso de vida. (p. 90-91)

Safra (2006b) está fazendo referência a que a necessidade de presença do outro

tanto no nascimento, quanto na morte, relaciona-se a uma presença como condição de

interlocução e testemunho, a despeito de que a pessoa esteja só. A questão é que se não

há a presença do “outro”, a solidão é vivida como absoluta, sem rosto humano (Safra,

2006b).

Nesse tempo legítimo de balanço sobre o sentido da vida, vivida ou não como

realização, é que Safra (2006a) assinala uma das necessidades fundamentais na velhice:

a de viver diferentes facetas do perdão. Trata-se da possibilidade de poder perdoar a si

mesmo, os outros, planos/sonhos que não aconteceram, ou outros que não saíram como

previsto, em outras palavras, perdoar a própria vida. Contudo, é importante ressaltar que

o perdão surge como uma necessidade humana, sem qualquer relação externa, religiosa,

dogmática/institucional. O autor reconhece que é na vivência do perdão que se poderá

abrir um novo espaço para se viver o não vivido, assim como recolocar aquilo que não

320
pôde acontecer e/ou aquilo que ficou impedido por diversos motivos. Isto é necessário

para que o idoso possa destinar-se a algo e não perder de vista o horizonte de futuro, ainda

que esse seja a própria morte. Assim conjugado, obtém-se a preservação da memória, da

história– gesto reparador a toda uma vida, como podemos observar na situação clínica da

vinheta 1, sr. Rafael anseia tal reparação, sente-se impedido para prosseguir.

Nessa perspectiva, do perdão, verificamos que a fenomenologia de Arendt

(1958/2011) sobre a condição humana nos auxilia para uma compreensão mais apurado

sobre o assunto. A autora reitera e acrescenta as concepções descritas por Safra (2006b)

até o momento aqui enfocado.

Arendt (1958/2011) em sua célebre obra A condição humana, aponta que o poder

de perdoar não está posto num nível superior, mas sim na potencialidade do próprio gesto

público. A redenção apresentada por ela só seria viável pela via do perdão. Assim, sob a

perspectiva da ação, somente o perdão poderia desfazer os atos passados, ainda que

impensadas as faltas do seu agente. Arendt (1958/2011) em relação à dialética do perdão

e promessa enfatiza:

(...) portanto, dependem da pluralidade, da presença e da ação de outros, pois

ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se sentir obrigado por uma

promessa feita apenas por si mesmo; o perdão e promessa realizados na solitude

e no isolamento permanecem sem realidade e não podem significar mais do que

um papel que a pessoa encena para si mesma. (p. 296)

Em sua ênfase, Arendt (1958/2011) chama a atenção para a necessidade de outrem

como presença humana que outorga a ação como gesto. Sem essa possibilidade de

alteridade pública, aquilo que seria genuíno e libertador torna-se sem abertura ontológica

de sentidos. Em outras palavras, irreversível e, portanto, sem experiência de continuidade

de self, ao contrário, pura paralisação. Sob essa dialética, a do perdão e promessa, ela

321
enfatiza a dialética simbólica do desligar-ligar – no registro humano, um que nos ligaria

(memória) e desligaria do passado (via perdão) e a outra que nos ligaria a um futuro (via

promessa). A autora aborda tais necessidades em razão daquilo que, em sua obra,

denominou de fraquezas intrínsecas à pluralidade da condição humana. É também sob tal

perspectiva que se tornar impossível institucionalizar o perdão, cuja relação com o amor

o mantém afastado do político, diferentemente da promessa; no entanto, não podemos

deixar de reconhecer seu caráter público.

Sendo assim, observamos que o perdão traz consigo uma qualidade temporal, de

reversibilidade e continuidade, aspectos importantes quando nos referimos à velhice

como resposta à vida, bem como à sua finitude marcada pela morte.

Acrescentando, sob o vértice ontológico, o perdão, segundo Safra (2006b), torna-

se então um gesto de desconstrução do si mesmo em direção à humildade; sem esta, fica

impedido de acontecer como experiência legítima. Ademais, torna-se uma falácia externa

sem qualquer desconstrução; ao contrário, a encenação mencionada por Arendt

(1958/2011) torna-se cada vez mais onipotente, sem perspectiva para o novo. Dito de

outra maneira, o perdão, como gesto de desconstrução, portanto experiência de

humildade, é que possibilita a renovação da vida em qualquer etapa da vida, mas na

velhice ele alcança uma maior noção – é na velhice que se necessita perdoar um percurso,

não raras vezes, todo o percurso (Safra, 2006b). Nesse sentido, percebemos que o perdão,

como ato humano de humildade, é um processo complexo, requisitando a desconstrução

do self. Assim, podemos pensar: o que dificultaria o perdão? Observamos que as situações

em que há a presença do ressentimento são freqüentes na clínica (Genaro Junior, 2012,

2013b; Khel, 2004) sendo esta uma problemática da esfera narcísica, impossível de

esquecer – pois tal posição é sentida como danosa a si mesmo. Verificamos que a pessoa

ressentida não pode renunciar a si mesma em direção ao perdão; ainda se vitimiza,

322
consciente ou inconscientemente, ficando detida numa experiência passada, seja por

culpa ou por necessidade de vingança, como, por exemplo, a dificuldade do Sr. Rafael

poder vir a se perdoar, conforme a vinheta clínica 1. Portanto, não podendo ser

responsável por seu gesto e por seu próprio destino – o perdão ficaria impedido.

No entanto, como ilustrado na vinheta clínica 2, sra. Teresa não se apresentava

ressentida, mas ainda assim o mal se fazia presente: perdoar parecia não ser possível...

Aqui verificamos uma situação clínica em que o não-perdão surge como necessidade

humana. Levinas (1968/2003) em suas sessões de comentários talmúdicos – textos que

tratam de pensamentos de sábios e não de visões proféticas, ao contrário, suas leituras e

discussões consistem em se preocupar, diante de cada uma dessas informações aparentes

sobre o além, com aquilo que a informação pode significar na vida do homem. O autor

destaca:

As faltas do homem em relação a Deus são perdoadas pelo Dia do Perdão;

as faltas do homem em relação a outro não lhe são perdoadas pelo Dia do

Perdão, a menos que, antes de mais nada, ele tenha apaziguado o outro

(Levinas, 1968/2003, p.29)

Levinas (1968/2003) problematiza a dimensão do perdão enfocando a dimensão

do respeito ao Outro como ética, questionando a possibilidade de perdão entre os seres

humanos. Levinas (1968/2003) ao longo da sua apresentação reitera a partir de

Maimônides, que tudo o que se diz de Deus no judaísmo significa, pela práxis, humano!

Assim, Deus qualquer que seja o significado final e, de todo modo, sem disfarces –

aparece como consciência humana vestido de valores éticos! O ideal, o racional, o

universal, o eterno, o Altíssimo... Noções permeáveis à inteligência – são as suas vestes

morais. No entanto, quando Levinas (1968/2003) problematiza a questão do perdão

assinalando que perdoar é o mesmo que liberar o outro (ofensor) da sua responsabilidade

323
– sem que isso seja um ressentimento como comumente a psicanálise e a psicologia

preconizam. Eis algumas das dificuldades para se perdoar que ele nos aponta: Como saber

e contar com as boas intenções do ofendido? O ofensor pode medir por si só a extensão

dos seus erros/falhas? Sabemos até que ponto vai a nossa má vontade? Temos

verdadeiramente o poder de pedir perdão? Como perdoar, se o ofensor, inconsciente dos

seus pensamentos mais profundos, não pode pedir perdão? (Levinas, 1968/2003).

Levinas (1968/2003) acrescenta dizendo que a partir desse momento, entraríamos

na rota das ofensas, entramos talvez, numa via sem saída. Enfatizando há duas condições

para o perdão: a boa-vontade do ofendido e a plena consciência do ofensor (p.53). Ora,

se o ofensor é essencialmente inconsciente, a agressividade do ofensor seja talvez a sua

própria inconsciência. Assim, a agressão é equiparada por desatenção humana, assim,

em essência, o perdão para o autor seria impossível.

Diante das ideias do autor, observamos que ele não parte de uma perspectiva

ontológica do perdão, mas sim, de uma visão a partir do registro filosófico, e, sobretudo,

ético.

Nesse ponto da sua aula Levinas (1968/2003) apresenta uma dimensão radical a

partir do Talmud, enfatizando suas discussões no registro ético, já não mais filofófico: a

experiência religiosa não pode – pelo menos para o Talmud, deixar de ser antes uma

experiência moral. Dito de outra forma, não é possível avistar o rosto divino, senão antes

ter podido se haver com as questões morais do rosto puramente humano. Nesse sentido,

Levinas apresenta o judaísmo como uma religião de adultos, em que o teológico recebe

aqui um significado moral e ético. Ele continua, e mais adiante problematizando o

perdão: e se o outro se recusar a perdoar? Acrescenta que além do outro poder recusar e

deixar-me eternamente imperdoado, tal questão encerra ensinamentos sobre a essência do

divino. Afirmando que desde que sejamos dois há esse perigo!

324
O autor discorre sobre a distinção das faltas com relação a Deus e daquelas faltas

que dizem respeito aos homens. Refere que toda ofensa verbal ou que não cause prejuízo

moral ou material ao próximo, constituem faltas. Com relação a Deus, toda transgressão

dos interditos e dos mandamentos rituais, a idolatria e o desespero são consideradas a

faltas cometidas em relação ao Eterno, a Deus. Levinas (1968/2003) sublinha que tais

faltas destroem do Dia do Perdão (data judaica), vivenciado como mera contrição e

simples rito de penitência, bem como as faltas em relação ao próximo são

automaticamente, ofensas a Deus.

Levinas (1968/2003) nos traz questões complexas, mas indiscutivelmente próprias

da condição humana precária. Aqui, podemos observar a necessidade de um trabalho

especialmente interno, mas também externo, na medida em que é explicitamente tratado

por um ritual num calendário vivido em comunidade em meios aos outros homens. Assim,

mais do que um mero auto perdão seguro de si (onipotente) ou um perdão divido, mágico,

o perdão humano é complexo e difícil de alcançar, quando Levinas (1968/2003) apresenta

o judaísmo como religião de adultos, ele esta nos mostrando que o perdão é no fundo um

assumir a responsabilidade pela ofensa, uma espécie de se apropriar dela na maioria das

vezes, pois não há o que se resolver.... O mal, como doença da alma, carece de uma

solenidade do perdão pública, comunitária, uma experiência de profunda interiorização,

paradoxalmente coletiva. Como vimos com a vinheta clínica do Sr. Rafael em que

buscava apaziguar seus ofendidos digamos assim. Sra. Teresa não se tornou ressentida,

mas carecia se apropriar da possibilidade de não perdoar sua mãe diante das suas faltas,

ambos na velhice vivem facetas da vida eminentemente adulta em que se responsabilizar

e assumir uma posição é o mesmo que se tornar maduro em termos do desenvolvimento

de si mesmo. Levinas (1968/2003) nos diz que para que a consciência moral “danificada”

possa atingir a sua intimidade e reconquistar a integridade ninguém pode reconquistar por

325
si mesmo. Em outras palavras, um trabalho que equivale ao perdão de Deus. Eis aqui a

necessidade de uma data no calendário para o Dia do Perdão, como data que se origina

na vida comunitária, para regeneração interior – eu diria de um rosto em Sorbonost!

(Safra, 2004).

Considerações finais

Procuramos, nesse percurso, realizar um trabalho de apresentação e reflexão sobre

dois aspectos fundamentais e específicos da clínica do envelhecimento: a necessidade de

viver o perdão e o não-perdão. Assim, percebemos que as noções sobre velhice, perdão e

não-perdão apresentadas pelos autores tornam-se condições éticas e humanas necessárias

no processo de envelhecimento de forma geral, mas, sobretudo, na velhice. Tais aspectos

presentes na atividade clínica e no encontro intersubjetivo com o outro, nesse momento

de vida, podem fazer com que a velhice seja mais bem acolhida, assim como também

fornecer um ambiente psicoterapêutico de alteridade, fecundo, e que, além de sustentar,

pode auxiliar a pessoa idosa na revisão do sentido da vida vivida (passado); a partir dessa

revisão, essa pessoa poderá, então, destinar as suas questões fundamentais.

Desta forma, do holding inicial à necessidade de holding na cultura, observamos

que o ser humano, em seu ciclo vital, é um ser de passagem, carente de outrem; do nascer

ao morrer, a dignidade humana é posta na condição de alteridade.

Como apresentado anteriormente, a velhice é marcada por um processo de

contínua desconstrução, vivida no corpo, no social e no próprio self. Logo a clínica do

envelhecimento visaria oferecer e sustentar lugar e ambiência necessários para o encontro

humano, em que se possa favorecer o sonho do fim último, como também ser espaço de

interlocução aos balanços existenciais, a atualização daquilo que não foi, para que se

possa vir a ser (Safra, 2006a). Retomando Safra (2004), o ser humano, como ser de

326
passagem, está assentado entre a origem (Arché) e o fim (Telos). Tal condição existencial

de início e fim evidencia que somos seres precários, mesmo porque sabemos que não há

nenhuma garantia da permanência daquilo que criamos. Nesse âmbito, o ser humano é

um ente peregrino, num constante vir a ser, que deve realizar-se no seu dia-a-dia, que é

finito e que, na velhice, ganha maior consciência.

Face ao processo reflexivo e multifacetado, que a clínica do envelhecimento

demanda, o idoso em sua revisão do sentido da vida, como experiência fundamental para

envelhecer e morrer, necessita viver várias facetas do perdão, bem como o não-perdão,

sendo este apresentado como uma das necessidades elementares nesse momento da vida,

como apontado anteriormente.

Em outras palavras, percebemos que a clínica do envelhecimento está ancorada

na premissa de que todo fim é uma oportunidade para recomeçar. Desta forma, penso ser

a clínica do envelhecimento ambiente que oferta e sustenta, lugar de alteridade frente ao

processo de desconstrução e de vários lutos. Seja pela via do perdão, quanto do não-

perdão a vida carece ser recomeçada, sonhada e findada. Desta forma, tal clínica visa

recuperar aspectos fundantes na velhice, como: a dignidade, a possibilidade de rever a

vida e de findá-la como gesto pessoal de realização, acontecimento, memória do mundo

diante do outro. Na condição de humanos, nascemos e morremos frente a outrem.

Referências

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original publicado em 1958)

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329
CONTRIBUIÇÕES DE EUGÈNE MINKOWSKI NO CAMPO DO

ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO (AT) DE PACIENTES GRAVES

Danilo Salles Faizibaioff

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos e Laboratório

Prosopon

E-mail: danilo.faizibaioff@usp.br

Resumo: O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma modalidade clínica recente que,

apesar de haver nascido como um dispositivo complementar em Saúde Mental,

atualmente vem ocupando um lugar central no tratamento de pacientes com graves

questões psicopatológicas. Durante esta metamorfose, estudos clínicos e teóricos de

outras abordagens que não a psicanálise clássica têm se mostrado imprescindíveis, tal

qual a psicopatologia fenômeno-estrutural de Eugène Minkowski (1885-1972). Esta

apresentação explora os aportes deste autor para a fundamentação do campo do AT em

três aspectos: nosológico, filosófico e clínico. Vinhetas clínicas de casos atendidos no

enquadre do AT foram utilizadas para ilustrar as concepções fenomenológicas de

Minkowski aqui apresentadas. Conclui-se que são de relevância não-desprezível as

referidas contribuições minkowskianas para a legitimação do dispositivo clínico e

diagnóstico do Acompanhamento Terapêutico.

Palavras-Chave: Acompanhamento Terapêutico; Fenomenologia; Psicopatologia

Fenômeno-Estrutural; Hospitalidade; Compenetração

330
EUGÈNE MINKOWSKI'S CONTRIBUTIONS TO THE THERAPEUTIC

ACCOMPANIMENT (AT) FIELD OF SERIOUS PATIENTS

Abstract: The Therapeutic Accompaniment (AT) is a recent clinical modality that,

despite was born as a complementary device at the Mental Health field, presently has

been occupying a central place in the treatment of patients with serious

psychopathological disorders. During this metamorphosis, clinical and theoretical studies

of others approaches than classical psychoanalysis have proved essential, such as the

phenomeno-structural psychopathology of Eugène Minkowski (1885-1972). This

presentation explores the contributions of this author to the AT field authentication in

three aspects: nosological, philosophical and clinical. Clinical vignettes of cases attended

in the setting of AT were used to illustrate the phenomenological concepts of Minkowski

presented here. In conclusion, we found that these have non-negligible relevance to the

legitimacy of the diagnostic and clinical device of Therapeutic Accompaniment.

KeyWords: Therapeutic Accompaniment; Phenomenology; Phenomeno-structural

Psychopathology; Hospitality; Interpenetration.

Introdução

Corolário dos fundamentos da Reforma Psiquiátrica, o Acompanhamento

Terapêutico (AT)256 é um dispositivo clínico-assistencial específico, cujos germes, no

Brasil e na Argentina, enraizaram-se nas décadas de 1960 e 70, através da figura

embrionária do auxiliar psiquiátrico, encarnada, à época, por alguns psicanalistas que

trabalhavam em hospitais e comunidades terapêuticas (Antúnez, Barretto, & Safra, 2011).

256
Ao longo deste projeto, adotaremos a abreviatura proposta por Barretto (2012a): “AT” para
Acompanhamento Terapêutico e “at” para acompanhante terapêutico(a).

331
Estes profissionais começaram a acompanhar pacientes com graves questões

psicopatológicas em espaços extra-hospitalares, de forma que o AT passou a ocorrer, uma

vez desinstitucionalizados tais pacientes, em seu ambiente cotidiano, fora de instituições

manicomiais (Antúnez, 2012).

Exclusivamente alicerçado na técnica e nosografia psicanalíticas clássicas quando

de seu nascimento, o AT não cessa em demandar uma ampliação epistemológica e

ontológica sobre a qual possa assentar-se eticamente (Safra, 2006, 2008), isto é, acolher

as mais graves e diversas manifestações psicopatológicas que se apresentam nos dias

atuais (Safra, 2009, 2014). Afinal, como afirma Cruz (2012), a despeito da revolução

ideológica operada pela reforma psiquiátrica, no sentido das importantes transformações

nas representações sociais do fenômeno da loucura, "a dimensão política estrita não

contempla a radicalidade da loucura a ser cuidada" (p. 23).

Neste âmbito, destacam-se a produção psicanalítica contemporânea de Gilberto

Safra (Barretto, 2012b) e de autores do campo da Fenomenologia, tais quais Edith Stein

(Possani, 2012), Michel Henry (Antúnez, 2014; Antúnez & Martins, 2013) e Eugène

Minkowski (Antúnez, Barretto, & Safra, 2011; Faizibaioff & Antúnez, 2014; Faizibaioff,

Antúnez, & Gonzalez, no prelo).

Dentre estes autores, enfatizo especialmente Minkowski, pois, já em 1923,

apresentou um artigo no qual opera uma análise psicológica e fenomenológica de um caso

de melancolia esquizofrênica, o qual acompanhara durante quase 2 meses, dia e noite, no

ambiente cotidiano do paciente (Minkowski, 1923/1970), em moldes formais e éticos

(Antúnez, Barretto, & Safra, 2011) bastante similares aos quais, 40 anos depois, fundar-

se-ia o AT na América Latina.

332
Objetivo e Método

Esta apresentação objetiva ilustrar as contribuições de Eugène Minkowski para o

campo do AT com pacientes graves, nos âmbitos nosológico, filosófico e clínico,

aprofundando o trabalho inicial de Antúnez, Barretto e Safra (2011) no que se refere à

consideração deste autor para se (re)pensar o AT.

Para o tal, foram recortados três âmbitos de sua obra: o caráter terapêutico da

noção de esquizofrenia (em contraposição à antiga demência precoce), a consideração

fenomenológica do tempo vivido na psicopatologia e a noção de diagnóstico por

compenetração. Passaremos, a seguir, por cada um deles, complementando suas idéias

com vinhetas clínicas de casos de AT atendidos, em sua maioria, pelo presente autor257.

O Caráter Terapêutico da Noção de Esquizofrenia

Minkowski (1885-1972) nasceu em São Petersburgo, originário de família

polonesa. À causa das vicissitudes russo-polacas no período da Primeira Grande Guerra,

partiu para Munique concluir seu curso de medicina, finalizando-o em 1908. Em 1911,

mudou-se para Zurique, iniciando os trabalhos como assistente mal-remunerado na

clínica de Bleuler, por onde passaram, também, nomes como Jung, Lacan e Rorschach

(Antúnez, 2012).

Participou, em diálogo mas também diferenciado-se de Bleuler258, da revisão e

transformação nosológica da antiga categoria da demência precoce - contraposta, até

257
Todos os nomes dos pacientes referidos são fictícios.
258
Neste movimento, a psicopatologia tanto de Minkowski como de Bleuer, "diferentemente da ênfase
descritiva e classificatória de Kraepelin, fundava-se na busca da delimitação precisa do 'transtorno
gerador' do distúrbio mental" (Pereira, 2004, p. 126). Contudo, Minkowski diferenciou-se de Bleuler ao
considerar a essência da afecção esquizofrênica na perda do contato vital com a realidade, e não na
clivagem da personalidade (esquize do eu), como este propusera através do conceito de Spaltung

333
então, com a loucura maníaco-depressiva, tidas como as duas grandes entidades

diagnósticas dentro do campo das psicoses endógenas - para a da Esquizofrenia

(Minkowski, 1927/2000).

Minkowski (2000), em sua clássica obra "A Esquizofrenia", critica a noção de

demência: uma vez que ela implica a ideia de uma "perda irreparável das funções

psíquicas, está feita para paralisar toda tentativa de tratamento" (p. 216, tradução

nossa259). À época, tratava-se de, uma vez estabelecido o diagnóstico de demência

precoce a um paciente, cruzar os braços e "assistir, como espectadores inabaláveis, à

evolução fatal de seu mal" (p. 226).

Já a noção de Esquizofrenia, para Minkowski (1927/2000), supera a mera

descrição sindrômica ou mesmo nosocrônica do quadro mórbido, aportando que a

essência de dita afecção reside na perda do contato vital do sujeito com a realidade. Ele

concebeu esta realidade como um ambiente comunitário, coabitado por clínico, paciente

e todas as outras pessoas compreendidas como nossos semelhantes. Assim, a princípio,

pensar nesta perda do contato vital com a realidade implica considerar que, na patologia,

há uma considerável afetação ao nível da relação interpessoal, mas, ao contrário de na

demência, também "implica a ideia da possibilidade de restabelecer dito contato, seja por

completo ou, pelo menos, em parte" [itálicos nossos] (p. 217).

Há, aqui, um reposicionamento clínico a partir desta virada diagnóstica operada

pela noção de Esquizofrenia, já que "o fato mesmo de abordar o paciente como indivíduo

que pode se curar260 influi, sem que nos demos conta, em toda nossa atitude frente a ele",

(Barthélémy, 2012). Ademais, assim como Binswanger, Minkowski utilizava-se do método husserliano na
abordagem dos fenômenos psicopatológicos (Minkowski, 2000).
259
Todas as citações do referido autor foram por mim traduzidas nesta apresentação. Assim, dispensarei
o termo "tradução nossa" nas próximas.
260
Ressaltando que, como pontua o próprio autor, esta "cura" compreende os avanços parciais, o que
implica, sobretudo no campo do AT, pequenos progressos que tendem a ser vividos como grandes

334
isto é, tão somente deixando de considerarmos nossos pacientes incuráveis, argumenta o

autor, diminui-se o peso desta "força hostil que é para o enfermo a realidade, da qual ele

se afasta cada vez mais" (Minkowski, 1927/2000 p 217).

As matizes de intervenção terapêutica, então, passam a orbitar a tentativa do

clínico em estabelecer um vínculo interpessoal, ainda que mínimo, com os pacientes

gravemente adoecidos261, uma vez que lhes vale mais um "laço frágil e pouco profundo"

do que "o vazio absoluto" (Minkowski, 1927/2000, p. 193). Ele cita o exemplo de uma

paciente de Bleuler em cujo repertório comportamental não constava nada mais do que

movimentos estereotipados. Todas as tentativas de diálogo discursivo, através de

perguntas bem formuladas, sequer entravam por um ouvido e saíam pelo outro; antes,

elas nem chegavam a penetrar no psiquismo da paciente. Houve um dia, contudo, em que

Bleuler executou movimentos corporais análogos aos dela e, surpreendentemente,

rompeu-se o seu mutismo autístico, conseguindo a paciente com ele travar uma precária,

porém incipiente, conversação.

Experiência no campo do AT semelhante a esta e que contempla os pontos

apresentados por Minkowski (1927/2000) nos traz Barretto (2012a), em uma vinheta

clínica que aqui reproduzo literalmente:

Tive a oportunidade de acompanhar João, um rapaz de 22 anos, que vivia em um

estado autístico. Era comum a ecolalia, aquela repetição de frases e palavras. Para

inaugurações e novas possibilidades psíquicas e existenciais. Não trabalhamos, no AT, no sentido de


reestabelecer um estado anterior à instalação do quadro mórbido, supostamente saudável, mas sim de
favorecer a emergência de aspectos da singularidade da pessoa que nunca antes puderam se manifestar.
A este respeito, Cf. Winnicott (1989/1967).
261
Embora Minkowski (1927/2000) tenha produzido esta visão clínico-diagnóstica em relação ao campo
da Esquizofrenia, podemos, dada a gravidade da condição psicopatológica dos pacientes no enquadre do
AT (Maduenho, 2012), generalizá-la sem prejuízos de grande ordem. Afinal, se em todo enfermo mental
existe uma afetação ao nível da temporalidade (Tatossian, 2012), e dada a dinâmica fenomenológica do
tempo vivido com o ímpeto pessoal (élan vital) (Minkowski, 1933/1973), também nele encontra-se
presente uma perturbação no seu contato vital com a realidade, ainda que em maior ou menor grau.

335
ele, esta se transformou em um jogo. Ele sempre emitia sons, os quais o analista

tinha de repetir. Após alguns anos de trabalho, o analista se deu conta de que o

paciente repetia as palavras ou frases alterando o perfil melódico, e, quando o

analista foi capaz de repetir exatamente a melodia proposta pelo paciente, este

entrou em estado de júbilo. Ele (paciente) viveu uma experiência estética na qual

pôde ser compreendido por um outro, houve uma comunicação verdadeira, ao ter

sido encontrado onde seu ser se ancora: a musicalidade. A partir desta experiência,

observou-se uma saída gradual do estado autístico. (p. 145-146)

O Tempo Vivido nos transtornos mentais

Na busca essencial, que entrelaça o singular ao universal (Dartigues, 1973), dos

fenômenos psíquicos mórbidos, Minkowski (1966/1999, 1933/1973, 1927/2000,

1923/1970) depara-se com a fecundidade da noção bergsoniana do tempo vivido em suas

investigações psicopatológicas, concebendo que, na patologia, "o fenômeno do tempo e

provavelmente também o do espaço situam-se e organizam-se na consciência mórbida

diversamente a como os concebemos de maneira habitual" (Minkowski, 1933/1973,

p.12).

Ainda que de forma idiossincrática, em todas as síndromes psiquiátricas haveria

uma persistente alteração na maneira como o sujeito experimenta o tempo: de uma forma

geral, assiste-se à vivência ininterrupta de um passado que se repete, à incapacidade de

encontrar satisfação no vazio do presente e à perda da possibilidade de projetar-se num

devir em aberto (Tatossian, 2012), sem excesso de sensorialização psíquica (Safra, 2013).

Vemos, por exemplo, na compulsão psicoativa de Aline, uma estrutura de vivência

temporal restrita ao agora, com uma importante dificuldade de suportar e lidar com

336
conteúdos ideacionais e afetivos de seu passado, os quais insistem em penetrar no

presente através do fenômeno temporal da recordação (Minkowski, 1933/1973; Messas,

2006). "Eu estou sempre nascendo", afirma-me em determinado encontro, após (mais)

uma recaída de álcool, cocaína e crack, a qual a deixara desaparecida por 4 dias. Quanto

ao futuro vivido, cujo fenômeno da esperança é um de seus componentes essenciais

(Minkowski, 1933/1973), a paciente experimenta-o restrita a um futuro imediato,

calculado, descortinando-lhe o devir apenas até aonde chega um pensamento abstrato com

pretensões bidimensionais de previsão.

Marca da condição patológica de Aline, então, é a desesperança no devir e na

própria fenomenalidade da vida, o que leva o at, por exemplo, a tentar resgatar, ainda que

precariamente, sua capacidade de surpreender-se. Houve um dia em que, após receber

uma ligação de Aline em pleno estado de agonia, fui-lhe buscar no trabalho sem aviso

prévio. Ao avistar-me, numa mistura de susto, vergonha e deslumbre, perguntou-me o

que estava eu fazendo ali. "Surpresa, Aline! Vim te buscar", afirmei em tom sintônico.

Ela entrou no carro um tanto sem graça e, no caminho de volta para sua casa, desdobrou-

se um diálogo profundo e compenetrado, no e através do qual ela pôde reformular e dar

andamento a algumas de suas questões fundamentais. Ao descer Aline do carro, já na

frente de sua casa, despedi-me e disse-lhe, em tom contemplativo e bem-humorado:

"Aline, nunca subestime a capacidade da vida em te surpreender!". Ela sorriu e me

agradeceu.

Minkowski (1933/1973) retoma o tempo-qualidade bergsoniano, contemplando o

fenômeno temporal em sua totalidade, e, assim, supera a mera consideração de sua faceta

espacializada e racionalizada, nomeada pelo mesmo Bergson de tempo-assimilado-ao-

espaço. O tempo-assimilado-ao-espaço, como sintetizei em outro momento (Faizibaioff

& Antúnez, 2014), corresponde ao "tempo do relógio e do calendário, da Física (ainda

337
que em suas modernas teorias da relatividade), da avaliação médica a respeito da

orientação temporal de um sujeito hospitalizado" (p. 56). Já o tempo-qualidade,

fenomenologicamente, é esta "'massa fluida', esse oceano em movimento, misterioso,

grandioso e poderoso que vejo em torno de mim, em mim, em todas as partes, em uma

palavra, quando medito sobre o tempo. É o devir", que implica a marcha existencial

humana "em direção a um futuro indefinível e inacessível" (Minkowski, 1933/1973, p.

22).

Minkowski (1933/1973), baseado em Bergson e a partir desta distinção, passa à

abordagem do fenômeno temporal da duração. Ele descreve a diferença entre a duração

vivida, referente às experiências que se experimentam em harmonia com nossa

interioridade e enraizamento na experiência vivente, e a duração elementar pensada,

experienciando-as a partir do estabelecimento racional de um intervalo de tempo

mensurável (∆t). No primeiro caso, trata-se de fenômenos que penetram no fluxo vivente

do tempo, durando enquanto fluem e fluindo enquanto duram; já no segundo, o fenômeno

é experimentado como "uma série de instantes que se sucedem" (p. 28), como "pontos

justapostos" (p. 29), os quais se apresentam, ao nível da experiência, sem penetração no

fluxo temporal.

Marcos é um paciente extremamente irritadiço e agressivo. Não tolera atrasos de

espécie alguma, e apenas consegue sair de casa com seu relógio de pulso. Atravessado

por uma história marcada por violentas fraturas éticas, vive num estado de sofrimento e

ansiedade profundos e incessantes. Acompanhado no enquadre do AT, praticamente em

todos os encontros interpela-me com sua inquietação essencial: "Quanto tempo vai

demorar para eu começar a melhorar? Quanto dura este seu tratamento?".

Neste caso, nota-se que a estrutura vivencial temporal de Marcos está restrita à

faceta espacializada e intelecutalizada do tempo. Ele não acessa, nos diferentes

338
acontecimentos de sua vida, a qualidade da duração vivida que, segundo Barthelémy

(2012), refere-se à própria possibilidade de experimentar, abrindo-nos à dimensão

processual da experiência, no sentido de vivenciar o começo, o meio e o fim de todos os

eventos vitais. Cada episódio da vida de Marcos, inclusive nossos encontros, é por ele

reduzido à duração racional, que consiste no estabelecimento de um intervalo de tempo

(∆t) passível de ser contabilizado. Daí sua impossibilidade de relaxar minimamente,

(des)enraizando-se na perene experiência ansiogênica. A intervenção, aqui, está menos

relacionada às decifrações e reelaborações dos conteúdos afetivos e discursivos do

paciente do que ao constante esforço do at em ajudá-lo a deter-se com calma e serenidade

frente a estes, mostrando-lhe, como diz Minkowski (1933/1973), que "ir rapidamente não

é suficiente" (p. 7).

Diagnóstico por Compenetração

O trabalho de AT por mim realizado está assentado na ética da Hospitalidade

(Safra, 2009), a qual convida o at a suportar, sustentar e destinar os desarranjos psíquicos

- e, eventualmente, físicos - decorrentes do acolhimento devotado da alteridade radical da

pessoa do paciente. Trata-se de uma postura clínica de suspensão fenomenológica, de

esvaziamento de si quando do encontro com o outro, de tal forma que, assim como quando

convidamos alguém a entrar e ficar à vontade em nossas casas, esta pessoa que passa a

nos habitar tende a perturbar a organização de nosso lar em maior ou menor grau262.

262
Pensemos num convidado que, ao adentrar nossa casa, não repara que seus sapatos estão cheios de
barro e suja nosso chão; que, eventualmente, acende um cigarro, sendo que não gostamos muito da
fumaça por ele produzida, ou mesmo quebra, sem querer, nossa taça de cristal favorita. Suportar e
conviver com estes desarranjos que o outro provoca em nosso lar - em maior ou menor grau - é a metáfora
que Safra (2009) utiliza para pensar a Hospitalidade no encontro clínico. A convivência prolongada, fora
do consultório, com pacientes extremamente adoecidos, tende a provocar desorganizações,
perturbações e rupturas dilacerantes no psiquismo do at, frente às quais este deve buscar seus espaços

339
Minkowski (1927/2000), "em perfeita comunhão de ideias com Binswanger" (p.

82), tocou neste ponto ao retomar a relevância do "diagnóstico por compenetração" (p.

80), postura simultaneamente investigativa e terapêutica que "penetra na personalidade

do outro em sua totalidade como tal e que a percebe, em um só ato, por sentimento, em

tudo o que há de morto e vivo nela" (p. 82). Ao mesmo nível do diagnóstico por razão -

que consiste na clássica descrição fenomênica das alterações quantitativas e qualitativas

das funções psíquicas -, o autor eleva o da compenetração, afirmando, inclusive, que esta

faceta diagnóstica é ainda mais importante do que aquela num grande número de casos.

O que está em jogo, aqui, é a valorização da auto-afetação do clínico, das

experiências afetivas pré-reflexivas que se lhe manifestam, sobretudo nos casos de

pacientes graves, na forma de vivências estéticas, não-verbais (Safra, 1999). Não é uma

questão, como comumente se pode pensar, de sentir empaticamente o mesmo que o

paciente está sentindo; antes, em harmonia com o princípio da Sintonia - cuja uma das

manifestações é a empatia (Minkowski, 1933/1973) - trata-se de abrir-se e não temer as

vivências subjetivas despertadas em nós, ats, quando do encontro compenetrado com

nossos pacientes. Devemos, pelo contrário, acolhê-las e delas utilizarmo-nos para

contemplar o caso em suas mais significativas facetas diagnósticas e terapêuticas263.

Em sua experiência clínica radical de acompanhamento de um paciente grave

durante quase 2 meses, 24h por dia, em seu ambiente cotidiano, Minkowski (1923/1970)

descreve os "inconvenientes que pode apresentar uma simbiose deste tipo" (p. 15):

impregnado pela certeza manifesta do paciente de que, no dia seguinte, ser-lhe-ia

de cura, visando à sobrevivência na e continuidade da relação interpessoal com seus acompanhados


(Maduenho 2012).
263
A este respeito, faço a ressalva de que tais vivências não correspondem, necessariamente, a fenômenos
contratransferenciais. Além de não estarmos, na presente exposição, no campo da Psicanálise, mesmo
dentro dele já se sabe que nem tudo o que é despertado no clínico, quando do encontro com seu paciente,
é da ordem da transferência/contratransferência (Cf. Maduenho, 2010).

340
outorgada uma mortal punição, não mais consegue dormir; sente-se extremamente

constrangido e envergonhado quando o paciente introduz seus próprios filhos, que na

época o visitaram e acabaram por conhecer o enfermo, em seu delírio persecutório, nesta

"maquinação tão desumana" que o constituía (p. 22). O fato de poder observar, in loco, a

quantidade de dinheiro que o paciente gastava atuando seu delírio, deixa-o espantado,

uma vez que, na época, Minkowski passava por importantes dificuldades financeiras

(Antúnez, 2012). O clima entre ele e seu paciente tornava-se, muitas vezes,

reciprocamente hostil, de forma que Minkowski (1923/1970), a respeito destas vivências

desconcertantes às quais está submetido o clínico no acompanhamento de pessoas muito

adoecidas, sintetiza:

Não podemos conservar uma atitude médica 24 horas por dia; terminamos por

atuar, a respeito do enfermo, igualmente às outras pessoas que o rodeiam.

Compaixão, doçura, persuasão, impaciência e fúria se sucedem assim

alternadamente. De maneira que, nas circunstâncias precipitadas, não só

observamos o enfermo senão que, ademais, temos a possibilidade de projetar, a

cada instante, sua vida psíquica sobre nosso próprio psiquismo. É como se duas

melodias radicalmente desarmônicas fossem executada simultaneamente e se

estabelecesse, entretanto, uma certa equivalência entre as notas de uma e outra. E

isso nos permite adentrar um pouco mais que o habitual no psiquismo do enfermo.

(p. 17-18)

A este respeito, lembro-me de Raul, um paciente com grave dependência e

compulsão a substâncias psicoativas que comecei a acompanhar em uma de suas diversas

internações, durante a qual eu fazia alguns plantões noturnos. Seu nível de

desenraizamento das relações interpessoais era tamanho que todo o nosso trabalho de AT

orbitou a construção de um vínculo mínimo que pudesse, ainda que precariamente,

341
atender às suas necessidades mais primitivas. Os impactos vivenciais que experimentei

ao longo dos diversos (des)encontros com este paciente, em especial, chamaram-me a

atenção para a questão da compenetração, tão cara a Minkowski. Sobre um dia em que

fui violentamente invadido pela agonia de Raul, escrevi:

Na calada da noite, gritos de horror me impelem a abandonar o conforto da minha

cama de plantonista e solapar todo o cansaço acumulado depois de 16h seguidas

de trabalho. Subo correndo para averiguar o que acontece com Raul. Encontra-se

em seu quarto, recaído de álcool e cocaína, agitado e beirando o descontrole

destrutivo. Sua voz se altera, pronuncia palavras num misterioso idioma, sua

afeição está distorcida. Eis o anúncio da angústia no registro do demoníaco,

denunciando todos aqueles encontros significativos que não puderam se dar em

sua história. Adicção farmacológica, ansiedade fronteiriça, sofrimento sem rosto!

Frente à urgência e à emergência que revelam o impasse do dependente químico

em estabelecer-se para além de sua toxicomania auto e heterodestrutiva, penso em

como seria útil contratarmos John Constantine para nossa equipe. Acompanhante

terapêutico ou exorcista? Que trabalho é este que me propus a fazer?

(FAIZIBAIOFF, 2013, p. 4)

Eu e o restante da equipe, na ocasião, conseguimos contornar a situação e acalmá-

lo, sem necessidade de procedimentos extremos, tal qual a remoção psiquiátrica. No dia

seguinte, fui a uma viagem pré-agendada à praia com uma turma de amigos, mas algo

daquela experiência de contato íntimo com os demônios de Raul não cansava de não se

inscrever em mim. Ele havia me comunicado profundamente, na noite anterior, a

turbulência e o desfalecimento perenes que marcam a sua estada neste mundo.

Impregnado dos elementos transbordantes e inassimiláveis desta experiência de

acolhimento radical de sua alteridade, enlouqueci: coloquei-me, sem dar-me muita conta,

342
a "apanhar" das ondas do mar, às quais me expunha sem qualquer reação, levando vários

caldos e rasteiras na areia grossa (eu me encontrava numa praia de tombo, num dia de

especial ressaca marítima).

Eu emitia, entre um e outro caldo, "gargalhadas horripilantes", para utilizar-me

do preciso termo de que Cauchick (2001) lança mão em seu trabalho sobre AT e Esquizo-

Análise, o qual contempla especialmente a questão dos desarranjos que os ats

experimentamos neste enquadre clínico264. Quando meus amigos viram-me naquela

situação, vieram imediatamente a meu socorro, talvez só não mais assustados do que eu

mesmo com tudo aquilo.

Apenas alguns dias depois eu consegui iniciar a integração e digestão destes

horripilantes fenômenos subjetivos, os quais haviam tomado total conta do meu ser desde

aquela última noite com Raul. Para o tal, utilizei-me intensamente dos meus espaços de

cura (Maduenho, 2012). Pude, assim, ao reencontrar-me com o paciente, comunicar-lhe

o quanto aquela experiência havia sido disruptiva para mim, e que eu começava a entender

que o seu sofrimento era de uma ordem tal que em muito ultrapassava a questão do abuso

de substâncias psicoativas. A partir deste dia, passei a escutá-lo, enxergá-lo e

compreendê-lo de um lugar mais originário, um lugar de violência e fraturas éticas

fundantes, as quais antecediam, em muitos anos, seu primeiro trago num cachimbo de

crack.

Foi apenas abrindo-me em total disponibilidade para com Raul, deixando-me

afetar pelo nosso (des)encontro às custas de um imprevisível enlouquecimento pessoal

temporário, e tratando de sobreviver a esta experiência desconcertante com a utilização

264
A autora o faz, por exemplo, retomando o conceito do corpo sem órgãos (CsO), que vai ao encontro da
questão da hospitalidade e da compenetração no sentido do esvaziamento de si frente ao outro,
respeitadas, naturalmente, as devidas ressalvas epistemológicas entre esquizo-análise e psicopatologia
fenômeno-estrutural.

343
destas vivências demoníacas em prol do paciente, que pude compreender mais

profundamente sua agonia e, então, reposicionar minha conduta interventiva. De tal forma

que esta ética da compenetração, destacada por Minkowski (1927/2000), possibilitou,

ainda que aos trancos e barrancos, uma virada diagnóstica e terapêutica no referido caso,

o qual acompanho no enquadre do AT até hoje, com importantes evoluções desde então.

Considerações finais

Ao longo desta apresentação, busquei ressaltar três pontos no que se refere às

contribuições de Minkowski para a fundamentação do AT.

Em primeiro lugar, vimos que sua insatisfação e questionamento à categoria

nosológica da demência precoce levou-o a uma fecunda pesquisa psicopatológica junto a

Bleuler e outros psiquiatras e psicopatólogos do começo do século passado, cujos frutos

implicaram uma revolução diagnóstica com importantes consequências clínicas no

âmbito das manifestações mórbidas mais desafiadoras à época. Devemos, enquanto ats,

questionar as categorizações nosográficas que, hoje, se nos impõe política e clinicamente

de forma muito pouco esperançosa - sobretudo se pensarmos nos ditos "transtornos de

personalidade" - além de estarem construídas, no plano discursivo, de uma forma que

fomente a identificação do paciente para com elas265. Não é incomum termos

acompanhados que, ao se apresentarem num encontro inicial de AT, nos digam, antes de

tudo: "Olá, eu sou CID F60.31".

265
Bem como questionar a própria estrutura de concepção psicopatológica que voltou a ganhar força
global a partir dos anos 1980, quando, cada vez mais, as (des)considerações dos fenômenos mórbidos
passam a ser descritas em termos eminentemente fenomênicos, sem qualquer preocupação com uma
compreensão fenomenológica e antropológica dos mesmos. A este respeito, Cf. Faizibaioff e Antúnez,
2014.

344
E, em se falando de esperança, compreendida por Minkowski (1933/1973) como

um fenômeno de natureza temporal, penetramos na retroalimentação por ele operada

entre uma fenomenologia do tempo e a psicopatologia fenômeno-estrutural, a qual nos

ajuda a pensar os casos de AT a partir da dimensão do tempo vivido pelos pacientes

(Faizibaioff, Antúnez, & González, no prelo). Isto amplia nossa compreensão clínica nos

âmbitos diagnóstico e interventivo, uma vez que se atente à dimensão essencial, ou

melhor, estrutural dos fenômenos que se apresentam diretamente à consciência

(Dartigues, 1973).

Finalmente, na esteira da interpenetração de todos estes pontos levantados,

desembocamos no diagnóstico por compenetração, que nos abre à dimensão ética da

Hospitalidade no encontro com nossos acompanhados. Finalizo, assim, com uma frase de

John Rickman, citada por seu amigo Winnicott (1961/1989, p. 102): "Insanidade é não

ser capaz de encontrar alguém que te aguente".

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349
O HOMEM DO SUBSOLO ENCONTRA A CLÍNICA

Renan Silva Carletti

Pontifícia Univesidade Católica de São Paulo -Mestrando em Ciências da Religião

Email: renan002@gmail.com

Resumo - A presente comunicação pretende investigar como a personagem do romance

Memórias do Subsolo de F. Dostoiévski colabora para reflexões da clínica no

contemporâneo. Não se trata de leva-lo ao divã, mas colocá-lo ao lado do aparato teórico

do analista como auxiliar no detector de fenômenos da modernidade. Este trajeto será

feito por meio dos autores Gilberto Safra e Jimmy Cabral. O primeiro nos auxilia a

aproximar a personagem da clínica com seu livro A po-ética na clínica contemporânea,

enquanto o segundo apresenta-nos as contribuições das reflexões teológicas que

Dostoiévski proporciona para a modernidade por meio de sua tese de doutorado

Dostoiévski – Consciência Trágica e Crítica Teológica da Modernidade – Subterrâneo,

Tragédia e Negatividade Teológica. Verificamos assim, como o romancista russo ainda

se mostra atual e como é possível um encadeamento entre a clínica e o pensamento deste

autor.

Palavras-chave: Dostoiévski; Memórias do Subsolo; clínica; modernidade;

contemporâneo.

Abstract - This communication aims to investigate how the character in the novel Notes

from Underground by F. Dostoevsky contributes to reflections of the contemporary

clinic. It is not take him to the couch, but put it next to the theoretical apparatus of the

analyst as an auxiliary detector in the phenomena of modernity. This path will be made

350
by the authors Gilberto Safra and Jimmy Cabral. The first helps us to approach the

character of the clinic with his book The po-ethics in contemporary clinical practice,

while the second shows us the contributions of theological reflections that Dostoevsky

gives to modernity through his doctoral thesis Dostoevsky - Tragic Consciousness and

Theological critique of Modernity - Underground, Tragedy and Theological Negativity.

We verified so, how the Russian novelist is still current and how can have a linkage

between the clinic and the thought of this author.

Key-words: Dostoevsky; Notes from the Underground; clinic; modernity; contemporary.

Introdução

A obra Memórias do Subsolo de Fiodor Dostoiévski discute sobre diversos temas.

O livro foi escrito em 1864, período em que a Rússia vivia um debate intenso entre quais

os caminhos deveria tomar para progredir nas mudanças que estavam acontecendo, e é

divido em duas partes. Na primeira, a qual foi mais utilizada neste trabalho, o autor

discute, a partir da personagem, os temas da discussão vigente na Rússia. Na segunda, a

mesma personagem narra situações de sua vida. O que segregava fundamentalmente a

polarização de posições na Rússia do século XIX era que uns acreditavam que a decisão

a ser tomada era importar, de imediato, as ideias ocidentais (europeias) e incluí-las no

cotidiano russo. Outros, como Dostoiévski, acreditavam que a mudança devia ser

paulatina e, devido a um forte sentimento nacionalista, defendiam que não era necessária

a importação destes princípios. É neste contexto que nasce a obra. Antes de seu início, o

autor alerta que a personagem é fictícia, mas homens como ele poderão ser facilmente

encontrados por ai (Frank, 2013).

Dentre as características das ideias europeias destacava-se o racionalismo. Este

tinha como característica propor modos de vida ideais para os seres humanos em sistemas

351
baseados na razão. Pensadores como Tchernichévski defendiam uma destas teorias, a qual

fazia a defesa do que denominavam “egoísmo racional”. Dentro deste pensamento, o

homem é um ser utilitarista e que busca cada vez mais o melhor para si. E assim, cada um

buscando o melhor para si, culminaria-se em uma sociedade melhor (Frank, 2013).

Dostoiévski, inicialmente, não discordou totalmente das ideias de Tchernichévski.

Concordavam que a Rússia estava num momento de mudança e que era necessário

valorizar este momento, mas discordavam em como implementá-las. Além disso, frisava

“não posso acreditar que o homem seja somente um tubo de ensaio” (Dostoiévski apud

Frank, 2013, p. 153), ou seja, ele não negava certo racionalismo, mas não podia deixar

que somente ele justificasse uma série de atitudes. E aí, surge o homem do subsolo. Uma

personagem que emerge das contradições humanas para gritar que não cederá aos cálculos

da razão. Não porque os negue, mas porque acredita que se o homem agir conforme uma

tabela, então, estará morto (Dostoiévski, 2000).

A personagem é construída de modo que escapa a qualquer tentativa de

racionalização totalitária. O homem do subsolo enuncia uma afirmação e logo, em

seguida, a desfaz. Demonstra os enunciados da época que afirmavam conhecer o caminho

para a satisfação completa do homem e enumera diversas questões a eles. Ao final da

primeira parte, proclama que todas as páginas anteriores não passaram de divagações e

que talvez o melhor seja não fazer nada (Dostoiévski, 2000). Nesta dissonância, entre

aquilo que ele busca e aquilo que pode ser, e desiludido ao final com o mar de dúvidas

em que se mergulhou, a personagem exprime seu caráter trágico notado por Cabral

(2012).

Em seu estudo, Cabral (2012) mostra como a obra de Dostoiévski é marcada por

uma tensão teológica de um homem que está em um conflito constante em relação a

questões como Deus, o sofrimento e o mal. Para nenhum destes três tópicos há respostas

352
definitivas e a partir daí que se constitui o caráter trágico do pensamento de Dostoiévski.

O debater-se constante e infindável diante destas questões expressa o que o autor

denomina como uma teologia trágica.

Dentro desta perspectiva, une-se a interpretação de Pondé (2013) que colabora

para percebermos que em Dostoiévski, o humano é aquele que resiste às tentativas de

totalização por um sistema identitário. Com o auxílio do trabalho de Bahktin, notamos

como aquilo que define o homem é, justamente, sua fuga constante às tentativas de

coisificação por meio de definições. Quando ele pensa ser algo ou alguém o diz, no

instante seguinte, ele já está se questionando sobre aquilo que no segundo anterior ele

acreditou “ser”.

Mostraremos como estas características podem ser aproximadas de fenômenos

atuais na clínica psicológica e quem nos auxilia nesta tarefa é Safra (2004). Por meio de

sua obra A po-ética na clínica contemporânea verificaremos como uma clínica com estes

traços do pensamento de Dostoiévski pode ser pensada para nossos tempos. Evidenciando

os elementos como as questões referentes à liberdade e ao sofrimento, conectando-as com

a prática clínica e o panorama atual do mundo contemporâneo.

O debate com Tchernichévski

A discussão entre Dostoiévski e Tchernichévski é oportuna a nosso trabalho, pois,

ainda que mais de cem anos nos separem do período em questão, alguns temas mostram-

se relevantes ainda hoje. Como, por exemplo, a discussão sobre a finalidade da arte. Para

além do fato da arte ser um artificio de grande valia na clínica, discutir sobre sua

finalidade é também mostrar perspectivas cruciais sobre a condição humana. Para

Tchernichévski, a arte era uma possibilidade de lidar com as frustrações e privações da

353
vida, como um morador da cidade que faz poemas para o campo e ao mudar-se para o

campo, passa a negligenciar o enaltecimento de toda a natureza ao seu redor. Dostoiévski

rejeita esta ideia de que a arte serve unicamente como compensador de frustrações

materiais, para ele:

(...) a arte é para o homem como uma necessidade tanto quanto a de comer e de

beber. A necessidade de beleza, e as criações que a materializam, são inseparáveis

do homem e sem ela é possível que o homem não tenha vontade de viver. O

homem tem sede de [beleza...] e é nisso talvez que reside o maior mistério da

criação artística, o de que a imagem da beleza que emerge de suas mãos

transforma-se imediatamente em ídolo fora de quaisquer estipulações

(Dostoiévski apud Frank, 2013, p. 130)

Portanto, a arte seria um ato que toca os traços irracionais do homem, uma vez

que aquilo que sai de suas mãos não cabe em qualquer categorização ou noção

previamente conhecida, portanto, fora de qualquer estipulação. No entanto, esta

irracionalidade aqui presente não se apresenta como um “elogio a loucura”, mas, sinaliza

que os trabalhos artísticos que o homem realiza, escapam a sua capacidade de

decodificação. Ou seja, é uma irracionalidade que ultrapassa os limites do homem e atinge

o tênue limite entre arte e religião (Frank, 2013).

Dostoiévski avança em suas considerações sobre a arte ao afirmar que o homem

vive mais intensamente quando está em desarmonia com a realidade. Nestes casos, é onde

a necessidade de beleza se mostra mais intensamente, pois ela traz serenidade e harmonia

(Dostoiévski apud Frank, 2013).

Retomemos aqui as considerações de Tchernichévski citadas acima sobre a arte e

mostremos como elas se articulam com o posicionamento de Dostoiévski. Ambos

354
concordam que a arte surge de desarmonia com a realidade. Podemos chamar de uma

ausência ou privação de algo. Entretanto, a partir deste ponto, cada um segue por um

caminho diferente.

Tchernichévski acredita que uma satisfação plena do homem seja possível e arte

seria um escape enquanto não se conquista esta plenitude material possível ao homem na

Terra. Já Dostoiévski relaciona esta satisfação total a imagens da morte e da decadência

moral. Para ele, o homem depois de atingir o ideal de seus desejos:

(...) caía numa espécie de melancolia e chegava mesmo a provocar essa

melancolia a si mesmo; [...] não só deixava de dar valor ao que desfrutava, mas

também divergia até mesmo conscientemente do caminho apropriado,

estimulando em si gostos que eram excêntricos, malsãos, picantes, incompatíveis,

ás vezes monstruosos, perdendo o sentimento e o senso estético da beleza sadia e

exigindo em seu lugar o excepcional. (Dostoiévski apud Frank, 2013, p. 131)

Portanto, tomar a possibilidade de satisfação plena como norte para as ações

humanas, era defender em última instância a perversidade e a corrupção moral. A

satisfação completa dos desejos, se possível, atingiria ao homem como uma forma de

tédio que levaria a buscar os desejos mais levianos para livrar-se desta sensação. Nas

palavras do homem do subsolo, passaríamos a espetar alfinetes de ouro no seio das

escravas como o fez Cleópatra266 (Dostoiévski, 2000). Estas ideias de Dostoiévski vão

culminar numa crítica a uma estética utilitarista que prescrevia a ideia de que a arte deve

ser uma utilidade267.

266
Dize à ueàCle pat aà des ulpai-me este exemplo da história romana) gostava de cravar alfinetes de
ouro nos seios de suas cativas, deleitando-seà o àseusàg itosàeà o ulsões. à Dostoi ski,à ,àp.à
267
Pode osàhoje,àlo aliza àestaàposiç oà aàe p ess oà a teàe gajadaàso ial e te .

355
Apesar destas querelas conceituais, Dostoiévski, tal como Tchernichévski,

defendia o nacionalismo russo e questões sociais parecidas. Entretanto, podemos dizer

que utilizavam-se de vias diferentes e vislumbravam finais distintos. Como exemplo,

temos a discussão que surgiu entre Tchernichévski e Kátkov. A revista de Tchernichévski

denominada O Contemporâneo entrou em discussão com um intelectual denominado

Kátkov, o qual escrevia para a revista de Dostoiévski chamada O Tempo e era um grande

crítico do liberalismo europeu, o qual Tchernichévski era partidário. Para atacá-lo,

Kátkov escreve que quem vê o homem como apenas “sais, ácidos e álcalis químicos, com

o mesmo sentido e força que esses compostos têm para nós num tubo de ensaio, não tem

direito de falar dos direitos do homem, de seu bem-estar e da melhoria de sua condição.”

(Kátkov apud Frank, 2013, p. 153).

Dostoiévski mesmo com ressalvas, toma partido ao lado de Tchernichévski e

ressalta ao mesmo tempo as discordâncias com o “cientificismo” de Tchernichévski,

apontando que sua perspectiva sobre o homem defende sua impossibilidade em resumi-

lo a fatores químicos e conceituais:

Posso assegurar-lhe que eu que escrevo estas linhas não acho nem acredito que

tenha provindo inteiramente de um tubo de ensaio. Não posso acreditar nisso. No

entanto, mesmo que eu tivesse essa convicção, por que isso me impediria de falar

dos direitos do homem, de seu bem-estar e da melhoria de sua condição?

(Dostoiévski apud Frank, 2013, p. 153, grifos nossos)

O romancista descreve que não pode acreditar que o homem provenha somente de

um tubo de ensaio. Entretanto, aquele que assim encara a gênese do homem, não deve ser

privado de dizer sobre sua situação. Esta impossibilidade que Dostoiévski encontra ao

afirmar a origem do homem a partir de bases estritamente racionais pode estar relacionada

ao cristianismo ortodoxo dos camponeses com quem conviveu durante o período em que

356
esteve na prisão na Sibéria. Esta sua apologia ao cristianismo é melhor exemplificada

através da ética cristã que ele delineia no mesmo texto:

Sejam quais forem suas convicções, os homens devem permanecer homens, não

lhes é possível destruir sua própria natureza; o instinto de conservação continuaria

imutável neles, e além disso, o homem, pelo fato de ser homem, sentiria a

necessidade de amar o próximo, a necessidade de sacrificar-se pelo próximo,

porque o amor é impensável sem o autosacrifício, e o amor, repetimos, não pode

ser destruído. O homem teria então de odiar o que constitui a sua própria natureza.

O senhor pode acreditar nisso? (Dostoiévski apud Frank, 2013, p. 154)

Para Frank (2013), esse ódio contra sua própria natureza é descrito no homem do

subsolo, que se conflita por buscar anular de toda forma sua consciência moral.

Entretanto, o efeito parece ser inverso, quanto mais ele se esforça para anular qualquer

sentimento amigável ou de simpatia que ele tenha por alguém, mais ele sofre para manter

esta anulação completa de sua preocupação moral.

É em meio a este debate que surge a publicação de Memórias do Subsolo em

resposta a um livro lançado por Tchernichévski denominado Que Fazer?. Este último é

um romance em que o destino humano é levado à satisfação completa de suas

necessidades por meio da realização da utopia socialista. E era esta completa satisfação

prometida por um projeto utópico que Dostoiévski não aceitava e que irá desfiá-la e fazê-

la cair por terra em seu novo romance.

O homem do subsolo, um crítico da modernidade

O homem do subsolo é a personagem escolhido para expor a crítica de Dostoiévski

a esta satisfação completa dos desejos humanos. Todo este contexto em que a obra foi

357
pensada culmina em um esgarçamento do homem moderno que se debate contra sua

própria condição, buscando absolutizar a razão para que ela o liberte de qualquer

possibilidade de angústia (Cabral, 2012). O que o homem do subsolo realiza é fazer

emergir a dissonância entre o homem e a realidade, entre ele e sua própria condição,

evidenciando a impossibilidade de um sistema racional de extirpar esta desarmonia.

Na obra, esta situação é expressa pelo “muro de pedra” que a personagem diversas

vezes se refere na parte I. Para ele: “O impossível quer dizer um muro de pedra? Mas que

muro de pedra? Bem, naturalmente as leis da natureza, as conclusões das ciências

naturais, a matemática.” (Dostoiévski, 2000, p. 24). Este muro que tranquiliza os homens

de ação, como citado no livro, é o conforto encontrado nos sistemas racionais e que

buscam apaziguar qualquer tipo de desconforto que possa advir com estas respostas.

Na sequência, a personagem utiliza o exemplo da afirmação de que o homem

descende do macaco e nada se pode fazer contra este fato. Assim como se convencerem

racionalmente de que uma gotícula de gordura valer mais do que cem mil seres humanos,

nada se pode fazer contra isto. É neste ritmo que o homem do subsolo argumenta mais

um parágrafo, até que afirma: “χté parece que semelhante muro de pedra é realmente um

tranquilizador e que de fato contém alguma palavra para o mundo, só porque constitui o

dois e dois são quatro. Oh, absurdo os absurdos” (Dostoiévski, 2000, p. 25). Neste trecho,

Dostoiévski mostra como este muro muitas vezes não é algo que nos traz tranquilidade e

que justamente a existência dele, por mais aceitável e racional que seja, pode muito nos

atormentar.

É este tormento que ele vê que não pode cessar, pois anulá-lo levaria a corrupção

moral já citada anteriormente. Também a religião pode ser capaz de levar a essa

tranquilidade “em demasia” e fazer-nos crer que se dois e dois são quatro, como o homem

do subsolo diz, então tudo está resolvido. Dentro desta crítica à harmonia, a proposta do

358
pensamento de Dostoiévski é não escamotear ou tentar negar esta angústia com artifícios,

sejam religiosos, ou racionais, mas fazer expurgar este desalinhamento que existe entre o

desejo humano e aquilo que se oferece a ele. Com isso, o intuito é extrair do cristianismo

este seu viés trágico (Cabral, 2012).

Este cristianismo trágico esteve distante em sua acepção europeia. Como nota

Cabral (2012): “χ teologia clássica, como racionalização de conteúdos religiosos, tem

como próprio de sua constituição uma forma de reconciliação objetiva, desdenhosa da

experiência trágica.” (Cabral, 2012, p. 37). Para Camus, o modo de vida cristão endossado

pela modernidade destitui toda tensão existente no cristianismo entre a impotência

humana e a ordem sagrada, resumida na passagem do monte Gólgota em: “meu Deus,

porque me abandonaste?” (Camus apud Cabral, 2012, p.38).

É este trecho “meu Deus, porque me abandonaste?” que indica o caminho para a

intepretação feita por Cabral (2012), pois, ela mostra que a ordem divina não está

imperativa na condição humana, mas se vê desregulada em sua própria condição. Vê-se

abandonado, para no instante, encontrar-se cuidado. Esta oscilação é parte da estrutura

humana que para Dostoiévski é impossível de ser vencida, e se caso for, levará a

humanidade a um caos moral.

Para Dostoiévski, assim como o materialismo cientifico, a extirpação do problema

teológico levará a morte do homem. A questão teológica é um problema e não uma

solução. Assim como afirmado em uma carta a Appolon Maikov, Dostoiévski afirma que

a principal questão de sua vida foi a existência ou não de Deus (Dostoiévski apud Cabral,

2012). Ainda que ele mesmo sustente a existência após os anos de sua prisão na Sibéria

(Cabral, 2012)268.

268
Sabemos que Dostoiévski opta pela religião, mas deixa claro em suas anotações que foi após debater-
se contra os nós da razão e sua fé atravessar o crisol da dúvida. (Dostoiévski apud Frank, 2010) Ou seja,

359
Portanto, esta tentativa de anular o que nos é desconhecido e esta inquietação

teológica e existencial, Cabral descreve como um tipo de “recalcamento” que teria

ocorrido que se passa na modernidade: “Neste sentido, toda a síntese moderna apresenta-

se como uma tentativa de recalcamento do desconhecido, uma forma de planificar e

organizar a condição humana dentro de critérios que obedeçam à razão e o entendimento.”

(Cabral, 2012, p. 31) Esta síntese é justamente esta empreitada tanto feita pela religião

quanto pela razão em minar este viés trágico que pudesse aparecer na modernidade.

Esta absolutização da vida pela razão foi chamada por Lev Chestov, filósofo russo

e judeu, de tentativa de negação do mistério do “império da forma sobre a vida” (Chestov

apud Cabral, 2012, p. 37). É a este império, que pode também ser representado pela

medicina ou mesmo pela psicologia, que o homem do subsolo resiste. No início ele diz

ser supersticioso o suficiente para acreditar na medicina após a digressão: “Creio que

sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que

estou sofrendo.” (Dostoiévski, 2000, p.15). χpesar de dizer que acredita sofrer no fígado,

no instante seguinte, diz que não entende sobre sua doença e depois, não sabe o que está

sofrendo. Este é um ritmo presente muitas vezes nesta primeira parte do livro. A

personagem apresenta uma afirmação, em seguida, a questiona e depois acaba por negar

a primeira afirmação. Este movimento de subtrair-se as tentativas de dominação da

linguagem e da razão pode ser chamada de “subjetividade inquieta” (Chipraz apud Cabral,

2012).

Somemos aqui as contribuições de Bahktin, utilizadas por Cabral (2012), que frisa

a consciência despedaçada dos personagens de Dostoiévski. Não entraremos na

não se trata de uma opção religiosa para apaziguamento dos desafios da racionalidade, mas uma fé que
se construiu em meio a estes desafios.

360
dissolução subjetiva dos personagens de Dostoiévski que Bahktin argumenta em sua obra

O problema da poética em Dostoiévski, mas interessam-nos, este confrontar-se com o

fato de que nenhum saber é capaz de dizer ao humano que ele, realmente, é. Pondé (2013)

capta muito bem esta característica na obra de Dostoiévski.

Como bem salientado por ele, esta característica percebida incialmente por

Bahktin tem sua origem na teologia ortodoxa. Pondé (2013) afirma que para Dostoiévski

o ser humano aspira uma condição absoluta, mas mantém-se apenas na condição

relativista. Ou seja, aspira um saber absoluto, mas depara-se o tempo inteiro com a dúvida

e com seus questionamentos sobre sua própria condição. Esta ansiedade em saber quem

se é choca-se com a liberdade de não se sentir contemplado por as definições que a ele

oferecem. Nesta perspectiva, definir o humano é coisificá-lo (Pondé, 2013). Desta

coisificação, ele irrompe com sua liberdade a cada vez que não se satisfaz com uma

definição.

Quem ilustra muito bem esta crítica a razão aliada à defesa da liberdade radical

do ser humano é o crítico Joseph Frank. Vejamos como ele contribui diretamente para

análise do seguinte trecho:

Está claro que é muito atraente viver em bases puramente racionais, mesmo que

não seja de fraternidade, quer dizer é bom quando garantem a você tudo, exigindo

em troca apenas trabalho e concórdia. Mas nisso aparece novamente um

problema: o homem fica, ao que parece, completamente garantido, prometem

dar-lhe de comer e de beber, proporcionar-lhe trabalho e, em troca, exigem-lhe

apenas uma partícula de sua liberdade individual, em prol do bem comum; é de

fato apenas uma partícula, uma insignificante partícula. Mas não, o homem não

quer viver segundo estes cálculos, dói-lhe ceder mesmo esta partícula.

(Dostoiévski, 2000, p. 137)

361
Neste trecho, a crítica à racionalidade apresenta-se acompanhado da defesa da

liberdade humana que, para Frank (2013), é um dos motes principais de Memórias do

Subsolo. Liberdade esta que luta constantemente para não ser submetida a nenhuma

ordem estrita, seja ela a prisão, o trabalho, ou a razão. Se fosse necessário encontrar um

esboço da definição de humano para sintetizarmos o que aqui estamos argumentando

(ainda que isto seria irmos contra nossos próprios argumentos), seria de que o homem é

aquele que luta até o último segundo por um grão de liberdade, pela possibilidade mínima

de escapar a qualquer momento de uma ordem exterior que busque sistematizar seus atos.

O homem do subsolo encontra a clínica

O homem ainda hoje se debate com a absolutização da razão, talvez ainda mais

intensamente nos tempos atuais. Com o avanço do racionalismo, ele se debate hoje com

a ciência, as tentativas de totalização da saúde e os diagnósticos. Retomemos alguns

trechos deste trabalho. Vejamos como eles se unem a alguns fragmentos clínicos e

contribuem para a reflexão aqui proposta.

Dostoiévski em seu debate com Tchernichévski mostra que apesar deste tomar a

posição de que o homem tem sua origem apenas por bases estritamente racionais, isso

não o impedia de opinar sobre possibilidades de melhoria do bem-estar humano. Podemos

comparar o exemplo do tubo de ensaio descrito anteriormente com os diagnósticos

realizados pela psiquiatria. Alguns psicólogos tomam a posição de Kátkov e optam por

negar a psicopatologia, encarando-a como um inimigo direto da clínica. No entanto, na

perspectiva defendida por Dostoiévski, a psicopatologia deve ter o direito de opinar sobre

como buscar melhorias para o ser humano, mas, não poderia estagnar nesta posição, já

que o homem não pode ser somente isso. E, neste momento, a clínica se abre para este

362
homem que não cabe em um tubo de ensaio. Notamos afirmação semelhante no trecho

de Memórias do Subsolo:

Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão

é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de

querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com

a razão e com todo o coçar-se. (Dostoiévski, 2000, p. 41)

É sobre este coçar-se que a clínica se debruça, sobre este ato que às vezes caminha

para distante da razão e atravessa um sem fim de contradições. Esta coceira expressada

na fala de um paciente que diz “devia seguir mais a razão que o coração, né?”. Ela constata

que a vida é formada pela razão e pelo coração, mas que titubeia entre essas duas posições.

Podemos pensar aqui “o coração” como esse coçar-se já que ela o opõe ao ato racional,

tal qual Dostoiévski realiza em sua obra.

Este coçar-se é, também, a liberdade agindo contra a coisificação do homem

identificada por Pondé (2013), a partir da definição. Muitos pacientes chegam ao

consultório buscando um diagnóstico ou mesmo um conceito que encaixe perfeitamente

em seu sofrimento. Tenho “síndrome do pânico”, “sou dependente excessivamente dos

outros”? São não só diagnósticos, mas também adjetivos sobre quem acreditam ser.

Encontram o “muro” citado pelo homem do subsolo em todas as direções que tentam

caminhar. Esta situação se dá a partir do “sofrimento do totalmente pensado” como

apontado por Safra (2004). Esta imersão em um mundo de definições que não encontra

lugar para este processo de rompimento com a coisificação. Não será uma possibilidade

de ação da clínica inquietá-los diante deste muro? Como um lugar que esta coisificação

se dissolva?

363
A discussão sobre a finalidade da arte contribui para pensarmos a utopia da

felicidade atual. Esta que é expressada em frases no consultório como “quero ter paz

interior” e outras declarações que revelam uma busca por um cessar de conflitos.

Dostoiévski ressalta a importância do ser humano estar em certo desacordo com a

realidade para que assim possa viver mais intensamente. Ora, a clínica nos propõe este

desafio de acolher este pedido de “paz interior”, mas, é seu objetivo também uma ausência

de conflitos?

Já na citação de Dostoiévski em que ele descreve que um homem que não ama,

está lutando contra sua própria natureza coaduna com a perspectiva de Safra (2004). Ele

afirma que uma pessoa pode estar em um estado de sofrimento tamanho que não se

encontra capaz de “viver”. Estas pessoas sofreram tanto, que vivem em um estado de

congelamento, refreando constantemente qualquer sentimento amistoso que possa ter, por

ter sofrido em demasia com outras relações.

Contribui para essa reflexão sobre o amor, a intepretação de Joseph Frank (2013)

sobre Memórias do Subsolo. Ele nos traz a interpretação do homem do subsolo por meio

da “dialética da vaidade” e este processo se dá quando a personagem se humilha para que

assim se convença de sua superioridade inflacionando seu “terrível amor-próprio”. O

fenômeno atual das selfies sem maquiagem segue o mesmo tom, em um fingimento que

dribla a vaidade, faz-se da humilhação da beleza uma função de próprio enaltecimento.

Na sequência, Cabral (2012) chama de negatividade quando o homem percebe sua

subjetividade deslocada do mundo. O homem se opõe a qualquer serenidade que o homem

teórico poderia ter, ou diante de qualquer teoria que poderia aplacar seu sofrimento.

Deixam-se de lado os dizeres dos psicólogos para se construir algo novo. Em um relato

de paciente, ela diversas vezes diz que uma psicóloga havia dito a ela que ela não lidava

bem com perdas. A paciente volta nesta característica que acredita defini-la, um sem

364
número de vezes. Ou seja, cristaliza-se na posição de saber este lugar de que uma razão

moderna, um psicólogo ou médico, sabe me dizer quem eu sou. Mas, ela “se coça” diante

disso, ou seja, inúmeras vezes volta a esta afirmação e busco provocar esta retomada.

A isso se refere também Safra (2004) quando fala do idioma pessoal do paciente.

Não se pode provocar a coceira na razão sem antes conhecer como este muro foi

construído. Adentrar aos poucos no universo singular de uma pessoa, é ir aprendendo seu

idioma, como ela se define, seus trejeitos ao falar, um termo diferente que pode usar para

definir algo usual, adjetivos e apelidos que se vale para falar de alguém.

Apesar de Sudário (2012) mostrar como um cristianismo trágico debate sobre

questões como o sentido na vida, percebemos que no consultório as pessoas não se

perguntam sobre o sentido de suas vidas, mas querem falar de seus sofrimentos. Tal qual

o homem do subsolo, o que move a vida não é o seu sentido, mas sim, o sofrimento de

cada um. Questionar-se sobre o sentido dela parece-me um questionamento de homens

letrados em seus livros e é o que o homem do subsolo não faz em seu discurso. A obra

não versa sobre a vida e seu sentido, mas sobre um homem que sofre na relação com

aqueles que o circundam. Como salienta Safra (2004), a clínica se dá sobre os eventos do

cotidiano, sobre a narração dos fatos que acometem aqueles que decidem ir a um

consultório.

Por fim, defender uma clínica para além deste humano que cabe em um tubo de

ensaio é afirmar sua liberdade e criatividade. Ou seja, “a pessoa humana seria, a seu ver,

não uma substância ou um conjunto de traços, mas um ato, um ato criativo!” (ψerdiaev

apud Safra, 2004, p. 59). Esta perspectiva de liberdade radical está aliada ao que o autor

defende sobre o ser humano como “inédito, como misterioso, como ser criativo” (Safra,

2004, p. 58). Ora, não é propriamente a liberdade a grande aliada da criatividade? Trata-

se do fato de que uma é imensurável justamente pela existência da outra. Safra (2004)

365
salienta que a liberdade, juntamente com a necessidade são as duas contrapartidas para

pensar o humano como ser criativo.

Conclusão

Nossas questões atuais, não são tão novas assim. Os temas são os mesmos com

uma roupagem nova. O debate entre Tchernichévski e Dostoiévski, que fomentou a

escrita de Memórias do Subsolo, pode ser facilmente transferido para nosso tempo com

questões como “o que é o homem?”, “o que pode um homem?”.

Perguntas como essas são feitas o tempo inteiro na obra de Dostoiévski e é por

meio delas que ele traça sua teologia trágica. Deixar-se de perguntar sobre elas pode ser

um grande perigo e uma estagnação que a modernidade tentou, mas até agora, não

conseguiu realizá-la por completo. Continuamos com desejos insatisfeitos e

questionamentos como esses surgem no ambiente da clínica.

Perguntar-se sobre seu próprio sofrimento é o que a clínica propicia. Em uma

tentativa de dar conta da frustração moderna de “o médico disse que tenho isso, mas...”,

mostra-nos como muitas vezes o diagnóstico não é suficiente, e, nesta brecha, a

experiência clínica abre-se como uma oportunidade para falar sobre isso. Resta-nos este

papel de provocadores, de alguém que desconfia não só dos diagnósticos, mas também

das próprias palavras.

Bibliografia

Cabral, J. S. (2012). Dostoiévski – Consciência Trágica e Crítica Teológica da

Modernidade – Subterrâneo, Tragédia e Negatividade Teológica. Rio de Janeiro: Tese

366
de Doutorado, Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro Retrived from http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21047/21047.PDF

Dostoiévski, F. (2000). Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34.

Frank, J. (2012) Dostoiévski – Os efeitos da libertação 1860-1865. São Paulo: Edusp.

Frank. J. (2010) Dostoevsky: a writer in his time. Princeton: Princeton University Press.

Pondé, L. F. (2013). Crítica e profecia: A filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo:

Editora Leya.

Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. São Paulo: Idéias e Letras.

367
A LITERATURA NA CLÍNICA FENOMENOLÓGICA: PESSOA, VIVÊNCIAS

E LEITURA

Jean Marlos Pinheiro Borba

Grupo de Estudos e Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica -

GEPFPF /Universidade Federal do Maranhão

E-mail: jean.marlos@ufma.br

Afinal, nossa vida é, para nós, transparente, mas o que é transparente é o mais difícil

de ver. (Ortega y Gasset, 1965 apud Aguiar, 2010, p. 94)

Resumo: Este artigo tem como objetivo descrever e apresentar a vivência de associação

entre Psicologia Fenomenológica e Literatura no atendimento clínico. Reafirma-se que a

prática do psicólogo atuante tanto na clínica como na área social permite ver e

compreender com muita clareza como os fenômenos apresentados pelas pessoas

atendidas têm relação direta com o mundo-da-vida, assim como com as interações, as

fantasias e aquilo que as mobilizavam ou paralizavam. No espaço clínico, o psicólogo

deve atuar de modo a (des)velar os sentidos encobertos nas vivências das pessoas

atendidas. Em fenomenologia não há como desvencilhar mundo e consciência, nem

tampouco o lugar da intersubjetividade. Edmund Husserl, Jean-Paul Sartre e José Ortega

y Gasset são trazidos, brevemente, ao diálogo neste trabalho, que tem como a intenção de

exemplificar e confirmar a necessidade de tematizar a relação consciência-mundo via

liberdade, outro e literatura. A literatura é apresentada como uma clínica estendida, ou

seja, como “recurso” facilitador do acesso as vivências das pessoas atendidas. Tendo

como base a atitude fenomenológica são apresentados breves exemplos de três pessoas

368
atendidas na clínica que fizeram a leitura dos livros A metamorfose de Franz Kafka e

Solidão e Liberdade de Jadir Machado Lessa e o ensaio O que é o Esclarecimento de

Imanuel Kant. Por fim, apresento os “resultados” que ratificam a viabilidade que a

literatura oferece ao psicólogo como uma possibilidade de estender a terapia para além

dos muros do espaço terapêutico.

Palavras-chaves: Psicologia; Clínica; Terapia; Fenomenologia; Literatura.

THE LITERATURE IN CLINICAL PHENOMENOLOGICAL: PERSON,

EXPERIENCES AND READING

Abstract: This article aims to describe and present the experience of association between

Phenomenological Psychology and Literature in clinical assistance. It is reiterated that

the practice of both clinical psychologist and the social area allows you to see and

understand very clearly how the phenomenon presented by the people attending are

directly related to the lifeworld, as well as the interactions, fantasies and what mobilized

or paralyzed. In the clinical space, the psychologist must act in order to unveil the hidden

meanings in the experiences of people assisted. In phenomenology there is no how to

detach world and consciousness, nor the place of intersubjectivity. Husserl, Sartre and

Ortega y Gasset are brought into the dialogue in this work, which aims to exemplify and

confirm the need to develop the theme of consciousness-world relationship through

freedom, and other literature. The literature is presented as an extended clinic, that is, as

"resource" facilitator of the acess of experiences of the people assisted. Based on the

phenomenological attitude are presented brief examples of three people attending the

clinic who read the books A metamorfose de Franz Kafka e Solidão and Liberdade de

Jadir Machado Lessa and the trial O que é o Esclarecimento de Imanuel Kant. Finally, I

369
present the "results" that confirm the viability that literature offers the psychologist as a

possibility to extend the therapy beyond the walls of the therapeutic space.

Keywords: Psychology; clinic; therapy; phenomenology; Literature.

Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar algumas contribuições da experiência

de “uso” da leitura de algumas literaturas na clínica fenomenológica. As reflexões acerca

dos pontos de encontro percebidos são tematizadas brevemente sem a intenção de fechar

o assunto, mas possibilitar a discussão no sentido de promover o diálogo entre literatura,

fenomenologia e clínica.

Não pretendo evidenciar as diferenças entre o olhar fenomenológico de

Edmund Husserl e as filosofias de Jean-Paul Sartre e José Ortega y Gasset, mas sim

apresentar as contribuições que permitiram a concretização da metodologia utilizada na

prática clínica com pessoas de baixa renda em uma comunidade da periferia de São Luís.

Uma questão norteadora de minha inquietação foi inicialmente como

possibilitar a tomada de consciência sobre a própria situação de ingenuidade, de

encobrimento das responsabilidades sobre as escolhas existenciais no mundo da vida das

pessoas atendidas. Como ajudá-las profissionalmente a compreender o que as levou para

a ratificarem manutenção da atitude natural e ingênua para conduzir a própria existência,

dentre elas o agir em má-fé269 e o abandono da própria liberdade?

O trabalho como psicólogo na clínica de 2011 até o presente momento tem

possibilitado conhecer e vivenciar fenômenos diferentes e ajudar profissionalmente as

pessoas atendidas em situação de sofrimento. O trabalho foi conduzido de modo a

permitir a ampliação da consciência via acesso às vivências por elas recordadas. Tanto

269
Ver Sartre (2003)

370
para Wilhelm Dilthey (1984/2008) quanto para Edmund Husserl o ato de compreender o

sentido e o significado das vivências para aquele que as vivencia é o que permite acessar

o mundo vivido. Nesse período, por meio dos relatos das vivencias recordadas e

compartilhadas no espaço clínico, tive a oportunidade de compreender como, ao longo de

anos, estas pessoas em questão optaram por mentir para si mesmas (agindo de má-fé),

afastado-se das suas responsabilidades, do mundo, e nas suas próprias palavras

acovardando-se diante da ameaça do julgamento e do olhar do outro.

O trabalho na clínica permite que a pessoa atendida entre em contato com

suas vivências e, a partir disso, exerça a reflexão sobre seu mundo vivido. Tomar

consciência de suas escolhas através da recordação de suas vivências para compreendê-

las em sua mostração imediata é uma das características do modo como o psicólogo que

atua com base nos fundamentos husserlianos e/ou sartreanos atua. Consciência é sempre

intencionalidade, movimento, um lançar-se para fora em busca do alcance daquilo que

projeta para si mesma. Como nos lembra à máxima husserliana “Toda consciência é

consciência de algo”, contudo ter consciência de algo não é suficiente, é preciso que esse

alguém tenha consciência de ter consciência, por isso a psicologia fenomenológica

possibilita a antes de qualquer outra atitude, a reflexão com atenção sobre o que é objeto

da reflexão por aquele que reflete.

Algumas pessoas quando procuram o atendimento clínico iniciam o contato

com suas próprias vivências regado a muito estranhamento com as escolhas e as

circunstâncias vividas, a surpresa se dá com mais veemência quando elas entram em

contato com o sentido que deram a estas vivências, principalmente quando as vivências

são encobertas pela ingenuidade e com o auxílio do terapeuta são (des) cobertas.

Assim, como cabe ao psicólogo clínico manter-se afastado de teorias que

tentem explicar os modos de ser e estar no mundo, para adotar a atitude de compreensão

371
fenomenológica. Assim como afirmou Dilthey (1894/2008): “Explicamos a natureza,

compreendemos a vida anímica” (p. 15). χo referir-se a compreensão Dilthey apresenta

a diferença significativa entre a psicologia de base explicativa e a psicologia

compreensiva, ponto que considero ser comum entre o olhar fenomenológico e o olhar

diltheyano.

Para promover esta reflexão o artigo está estruturado da seguinte forma: após

a introdução é apresentado o que é e em que consiste a clínica fenomenológica de base

husserliana e seus diálogos com as filosofias da existência. Dando seqüência é discutido

os diálogos e contribuições das filosofias da existência para a clínica de base

fenomenológica. E na última sessão é apresentado o relato do “uso” da literatura na

clínica, como uma “clínica estendida”.

Discutindo alguns fundamentos da fenomenologia

Edmund Husserl (1859-1958), pai da fenomenologia não teve a oportunidade

de escrever sobre Psicologia Clínica, mas sobre Psicologia Fenomenológica (1925/1977).

A atuação clínica não foi sua preocupação, pois esta não era sua formação, todavia o seu

interesse pela Psicologia e a sua crítica ao psicologismo, ao naturalismo e ao positivismo

lógico, deixaram inúmeras contribuições para que hoje os psicólogos das abordagens

fenomenológico-existencial, existencial-fenomenológica, existencial-humanista, gestalt-

terapia e centrada na pessoa possam ampliar o alcance de suas intervenções, por fim

pensar a clínica como método e não apenas como um espaço. Apesar de conhecer o que

ocorria no espaço clínico as contribuições do mestre são importantes para a Ciência e para

Psicologia. Husserl manteve interesse e uma considerável aproximação da

Fenomenologia com a Psicologia e com a Lógica.

372
Sua crítica ao psicologismo é imprescindível para aqueles que pretendem

atuar ou atuam na abordagem fenomenológica, existencial e humanista. Crítica esta que

foi seguida por seus predecessores tais como: Martin Heidegger, Maurice Mearleau-

Ponty e Jean- Paul Sartre, principalmente, bem como por outros grandes nomes da

psicopatologia tais como: Karl Jaspers, L. Biswanger e Nobre de Belo. (HUSSERL,

1900/2014; 1911/1965)

Na direção de estabelecer uma crítica à psicologia experimental Araujo

(2013) apresenta o manifesto escrito pelos filósofos alemães em 1913 contra a ocupação

das cadeiras de filosofia por representantes da psicologia experimental. Essa dominância

trouxe como mais relevante o caráter pragmático e prático, bem característicos do método

científico. Este manifesto é um marco importante da história da psicologia, todavia não

tem sido referenciado nos principais manuais de Psicologia existentes no mercado

editorial.

A fenomenologia rompeu com o domínio da perspectiva positivista em vários

ramos do conhecimento e deixou como principais contribuições:

a) a crítica ao psicologismo e a naturalização da consciência;

b) o método fenomenológico;

c) a inseparabilidade entre subjetividade e objetividade, entre sujeito e

objeto; e,

d) o re-estabelecimento da relação entre Filosofia e Psicologia, interrompida

pelo integrante do Círculo de Viena.

Como ícone central Husserl foi responsável pelas bases da fenomenologia e do

resgate do sentido do fundamento, do puro e daquilo que é imediatamente revelado à

consciência, esclarecendo as desvantagens das análises a priorísticas.

Mas o que é a fenomenologia?

373
É no próprio Husserl (1907/2008, p. 44) que está a definição: “Fenomenologia´ -

designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmpo tempo e

acima de tudo, ´fenomenologia´ designa um método e uma atitude intelctual

especificamente filosófica, o método especificamente filosófico.”

A fenomenologia é nos termos de Husserl uma atitude e um método. Atitude

porque exige uma mudança de postura diante do modo como nos dirigimos aos mundos

e aos fenômenos e, um método por proporcionar o rigor necessário para a mostração e

(des) cobrimento dos fenômenos.

A “clínica” de base fenomenológica

O que se chama de clínica merece ser (des) coberto. De acordo com Agras

(1986) o uso do termo clínica deriva da psicopatologia médica e está diretamente ligado

aos cuidados que o médico tinha com o doente que estava acamado, logo a psicologia

clínica tem associação direta a quem está doente.

Se a psicologia clínica tem sua origem ligada a essa situação de diagnóstico

e terapia de quem está em situação de doença, precisamos usar o termo com muito

cuidado, pois conforme lembra a autora a própria psicanálise teve dominância durante

anos no discurso da patologização do psíquico e isso é uma herança não agradável que

associa quem busca apoio do psicólogo estar doente, estar acometido de alguma

psicopatologia.

Todas essas ideias corroboram para que uma nomenclatura não seja superior

ao que fundamenta a prática clínica.

Na prática clínica de base fenomenológica, o psicólogo deve fazer o exercício

da suspensão, ou seja, da epoché, colocando fora de circuito a atitude natural (Husserl,

2006).

374
Nesta discussão foram escolhidas as contribuições de Holanda (1997), Pereira

Junior (2011), Aviz (2013), Gomes e de Castro (2010), Franco (2012) e Rodrigues (2008)

no que diz respeito aos argumentos que justificam a psicoterapia e clínica

fenomenológica.

Para o médico português Rodrigues (2008):

Fenomenologia clínica será portanto o estudo do modo de ser desde ente

concreto que, na cama ou no cadeirão do consultório, põe a questão do seu ser. Não uma

reflexão sobre o ser em geral, mas um ser empenhado e geralmente angustiado

questionamento sobre o si mesmo. (...) Fenomenologia clínica não deve, pois ser

confundida com qualquer actividade de aconselhamento filosófico que parte de outras

premissas.

Contribuições e diálogos com as filosofias da existência

Os filósofos que se debruçaram sobre a existência têm diferentes pontos de

vista e contribuições que, podem, se necessário for, ser utilizado no trabalho do psicólogo

em atividade clínica.

Em clínica fenomenológica270, de base husserliana, a intenção central do

Psicólogo passa a ser, diante dos fenômenos apresentados pela pessoa atendida, o auxilio

para que esta possa acessar de forma mais clara e objetiva os fenômenos vivenciados, mas

que por algum motivo não consegue perceber as intenções e pré-conceitos que tem em

relação a eles mesmos. É muito comum nos casos que serão aqui discutidos que o

atendido crie um jogo justificador e argumentativo como se estivesse defendendo aquilo

que vê de modo racional. Não sabe ele muitas vezes que usa da razão de modo irracional,

270
A perspectiva clínica de base husserliana é resultado de reflexões nas obras de Husserl e em seus
comentadores, assim como também com as reflexões e contribuições de Gomes e de Castro (2010),
Moreira (2010), Pereira Junior (2011), Aviz (2013) sobre a fenomenologia na clínica.

375
ou seja, cria intencionalmente argumentos para não entrar em contato puro com os

fenômenos que descreve.

Nessa perspectiva, cabe ao psicólogo clínico ao utilizar a atitude

fenomenológica e o método fenomenológico para, de modo intencional, permitir que o

atendido entre em contato com as questões que ele mesmo apresenta, mais ainda não

consegue, pode utilizar a literatura como um “recurso” para facilitar o encontro consigo

mesmo.

Diz Sartre (1943/1997, p. 290): “O outro é o mediador indispensável entre

mim e mim mesmo.”

Nesse sentido o Psicólogo não abre mão do vínculo, nem da emoção que está

encoberta, mas ao contrário, a (des) vela o fenômeno na sua imediatez. O profissional de

psicologia então se opta pelo diálogo com as contribuições de Husserl e Sartre, ele tem

em mãos, elementos capazes de auxiliar na compreensão de fenômenos que

frequentemente aparecem nos relatos das pessoas atendidas, tais como: o medo, a

vergonha ou a raiva, fenômenos que se revelam na presença do outro. Assim, a vergonha

é vergonha de si diante do outro; essas duas estruturas são inseparáveis. Mas, ao mesmo

tempo necessita do outro para captar plenamente todas as estruturas do meu ser; o Para-

si remete ao Para-outro”.

“Sabedor dessa dialogicidade o psicólogo promove a reflexão sobre o

encontro da consciência com o mundo mediada pelo outro. Reconheço que sou como o

outro me vê.” (Sartre, 1997, p. 290)

Se o homem em situação de terapia ainda não tem clareza das suas próprias

intenções ele nega a si mesmo, nega a constituição da sua história de vida, da trajetória

que o fez chegar até onde ele se encontra no presente, e foca sua justificativa no objeto

376
que entende ser a “causa” da sua angústia. Este é o uso da racionalidade para tentar

justificar os caminhos que tomou até chegar a sua situação atual.

Pereira (2008) apresenta a convergência entre o pensamento de Husserl e o

pensamento de Sartre. Dentre as convergências destaco:

a) ambos insurgem-se contra o equívoco teórico de separação cartesiana

radical da consciência (res cogitans) e do mundo (res extensa);

b) atacam o materialismo e idealismo por considerarem que o ser humano

vive numa indissociabilidade corpo-consciência-mundo;

c) ambos propõem um retorno ao eidos, isto é, ao estudo das coisas nelas e

por elas mesmas, na sua manifestação concreta, tais quais se apresentam no

mundo, suprimindo todos os conceitos estabelecidos “a priori”, obre as

coisas;

d) concordam que o “outro” é condição indispensável para a constituição do

mundo, já que não há nada mais concreto que a existência do outro;

e) a primazia da intersubjetividade sobre a subjetividade. (p. 278)

Como foi dito anteriormente, sabedores das diferenças entre os pensadores

acima, não será colocado acento sobre elas, mas sim nos pontos de convergência. Destaco

como central em ambos pensamentos o lugar que o outro e o mundo ocupam na

constituição subjetiva. Não eu sem outro, nem tampouco sem mundo.

A literatura como “clínica estendida”

Por literatura utilizada em situação clínica designo todo livro ou parte de uma

obra, que não seja livro de “autoajuda”, capaz de promover uma reflexão à pessoa

atendida. E para poder sugerir a leitura o psicólogo deve ter o conhecimento da obra, dos

recursos cognitivos e afetivos da pessoa atendida, para que diante desta avaliação

continuar a sugestão. É bom lembrar que o caráter não é de diretividade como pode

377
parecer, mas de sugestão. Caso a pessoa atendida aceita ela deverá ler a obra e se assim

desejar relatar como foi o contato com a obra e o que ela lhe possibilitou. É preciso desde

já permitir o exercício da vida, da liberdade da responsabilidade.

A literatura como clínica estendida é o nome que atribuo ao uso como um

“recurso” auxiliar da intervenção clínica. Este uso dependerá daquilo que a pessoa em

situação de atendimento traz, do que necessita e de sua capacidade cognitiva e afetiva

para entrar em contato com o tipo de leitura sugerida. O Psicólogo precisa conhecer

previamente o autor e o enredo do livro que possa vir a sugerir, assim como as

“características” da pessoa atendida para avaliar com muita clareza se ela tem condições

de se apropriar da leitura no momento sugerido. Caso aceite, ela recebe cópia do material

ou tem a indicação para aquisição e posterior leitura. Em geral são obras de domínio

público ou quando não são, dependendo da condição financeira do atendido, indicamos a

compra do original ou o emprestamos.

A experiência que será aqui relatada compõe um conjunto de vivências onde

o psicoterapeuta sugeriu leituras para as pessoas atendidas com o objetivo, de caso os

textos fossem lidos, o atendido poderia ter o contato com um texto que tivesse um enredo

próximo das suas histórias. As literaturas previamente selecionadas e sugeridas têm em

si mesmas um conteúdo existencial e levam à reflexão quase que imediata daquele que a

lê.

Com 3 (três) pessoas atendidas foram sugeridas a leitura das seguintes obras:

Solidão e Liberdade de autoria de Jadir Machado Lessa e A metamorfose de Franz Kafka.

Chamarei aqui por questões de sigilo as pessoas atendidas por pa1, pa2 e pa3. São os

fenômenos que interessam nesta investigação e não as pessoas, no sentido de identificação

de suas características. Tratarei então de situações por ela vivenciadas e, a partir disso,

tentarei demonstrar brevemente como a literatura as auxiliou na tomada de consciência.

378
PA1 Homem Leu parcialmente Solidão e Liberdade (parou por 3

vezes no capítulo 3 – Os Riscos de assumir a própria

vida); Leu integralmente A Metamorfose de Kafka;

Leu integralemente O que é o esclarecimento de I.

Kant

PA2 Mulher Leu integralmente Solidão e Liberdade

Leu integralmente A Metamorfose de Kafka

PA3 Mulher Leu integralmente Solidão e Liberdade

Leu integralmente A Metamorfose de Kafka

Fonte: Fonte própria; anotações do autor durante as sessões, 2011/2014.

Legenda: PA1 – Pessoa atendida 1; PA2 – Pessoa atendida 2; PA3 – Pessoa

atendida 3

Foi sugerida a leitura do livro A metamorfose de Franz Kafka que está

disponível gratuitamente em sites de domínio público. E porquê esta leitura foi sugerida?

Os casos atendidos são semelhantes quanto ao modo como Pa1, Pa2 e Pa3 conduziam sua

existência e suas escolhas. Eles se referiam a si mesmos e evidenciavam sua a estima por

eles mesmos, em geral, baixa.

É importante destacar que duas das três pessoas, afirmam sem “pestanejar”

logo no encontro subseqüente a indicação da leitura, a seguinte frase: “_ Esse livro foi

escrito para mim?” E, a partir daí começavam a fazer referência ao modo como elas

mesmas estavam encobrindo suas responsabilidades e fazendo uso da sua relação consigo

mesmo e com o outro, ou seja, seu modo de ser e estar no mundo. Coube ao psicólogo

379
instigar a reflexão e o retorno ao mundo vivido, como forma de compreender o significado

das vivências, a temporalidade e as manifestações delas oriundas.

Como acessar o mundo vivido? Como fazer com que o mundo da vida não

seja apenas tematizado, mas seja percebido pelo atendido como o centro onde suas

questões desembocam? Em fenomenologia acentuamos o mundo-da-vida como lócus

onde a existência acontece. Em essência o homem existe no mundo com os outros.

Husserl (2012) utiliza o termo mundo da vida (Lesbenwelt) para diferenciá-

lo do conceito científico tradicional de mundo, colocando-o apenas como um lugar. Na

fenomenologia husserliana mundo da vida é o mundo concreto que é vivenciado pelo

homem, não sendo possível desligá-lo de sua relação coma própria vida. O mundo para a

fenomenologia não pode ser separado, pois ele é movimento, é fluxo de vividos estando

assim diretamente associado à consciência e as suas intenções.

Werneck (2010) resgata a fenomenologia como orientação filosófica para a

psicologia clínica e confirma ser ela uma alternativa para compreender as formas que o

paciente tem de se relacionar com o mundo, perspectiva contrária a outros modos de

abordagem que já iniciam o trabalho tendo o categorizar e o diagnosticar como modo de

investigação do vivido.

A literatura promoveu a tomada de consciência quase que imediata da

situação vivenciada, pois no caso do texto em questão o personagem central toma

consciência que se transformou em um inseto e passa a compreender o peso das escolhas

que tomou ao longo de anos. Ter consciência da sua circunstância de certo modo causa

pânico e ao mesmo tempo alívio.

A literatura utilizada assim como uma terapia estendida da situação clínica

possibilita encontro do homem com ele mesmo, num primeiro momento pela

380
identificação, num segundo pela reflexão sobre a aproximação da estória escrita com a

sua própria história.

Concordo com Aguiar (2010) quando diz:

A psicoterapia não é apontamento de caminhos, nem laboratório ortopédico,

mas convite à reflexão sobre a experiência de vida, da própria vida. A terapia

de nada serve se não tiver conexão com a vida mais precisamente com o

sentido que cada um atribui a sua vida, o que já é um ato de liberdade (p. 89).

Cabe então à psicoterapia proporcionar este encontro do homem com a

liberdade e entrar em contato com a liberdade é viver a própria vida em sua mais pura

manifestação. Disso o atendido não pode se desviar, pois a vida é sua, quer queira ou não.

O atendido também tem a angústia como possibilidade de entrar em contato

com seu modo de ser e existir e, nesse sentido o psicólogo clínico vai se “utilizar” do

aparecimento dela como “estratégia” para promover o acesso às vivências. Nesse sentido,

Feijoo (2008) argumenta: “Para atuar clinicamente, o psicólogo deve ater-se ao estudo da

condição própria do existir humano: a angústia, através da qual o homem pode emergir

em sua singularidade e, assim, não se perde no geral (p. 315)”.

Considerações finais

O existir humano é complexo e multifacetado, cada existência tem em si

mesma o conteúdo necessário para a sua compreensão e análise, por isso em clínica

fenomenológica não se faz uso de qualquer que seja o a priori ou de teorias, elas ficam

temporariamente suspensas para que a análise transcorra apenas com a aquilo que a

pessoa atendida traz para a situação clínica.

Tanto clínica como a fenomenologia são métodos quando se faz a associação

de ambos tem a conhecida como clínica fenomenológica.

381
Utilizar literatura na situação de terapia não é algo comum, o relato deste

trabalho tem como objetivo compartilhar a síntese de algumas situações percebidas, assim

como pontuar como as pessoas atendidas na situação de leitora atribuem significado às

suas vivências de leitura. As três pessoas têm em comum uma certa identificação com as

questões existências que foram apresentadas. A Literatura é um modo de expressão da

subjetividade e das relações intersubjetivas que o autor estabelece no mundo da vida e

não deve ser vista apenas como um recurso.

Referências

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Ortega y Gasset. Contextos Clínicos, Unisinos, 3(2):88-96, jul.-dez.

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introdução, tradução e comentários.

AUGRAS, M. (1998). O ser da compreensão: fenomenologia da situação de

psicodiagnóstico. (8a. ed.) Petrópolis, RJ Paulo: Vozes.

FEIJOO, A. M. L. C. de, A filosofia da existência e s fundamentos da clínica

fenomenológica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, ano 8, n. 2, p. 309-

318, 1º. Semestre de 2008.

HUSSERL, Edmund (2012). A crise da humanidade europeia e a fenomenologia

transcendetal. Rio de Janeiro: Forense.

LESSA, J. M.(2003). Solidão e Liberdade. (2a. ed.). Rio de Janeiro: SAEP.

382
PEREIRA, D. Q (2008). Sartre Fenomenólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia,

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RODRIGUES, V. A (2008). Fenomenologia Clínica das perturbações da personalidade.

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SARTRE, J-P (2006). Esboço para uma teoria das emoções. São Paulo: LP&M.

______(2003). O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 12 ed. Petrópolis,

RJ: Vozes.

WERNECK, B (2009). Fenomenologia como orientação filosófica para a Psicologia

Clínica. Psychiatry on line Brasil. ago. 2009, v.14, n. 8. Disponível em:

http://www.polbr.med.br/ano09/pcl0809.php.

383
LINGUAGEM E FENOMENOLOGIA: ESTUDOS SOBRE A PALAVRA NO

ACONTECER DA PSICOTERAPIA

Andrea Cristina Morganti271 & Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

Instituto de Psicologia da USP

E-mails: andreamorganti@usp.br, antunez@usp.br

Resumo: Este trabalho pretende investigar o processo psicoterápico de base

fenomenológica ao considerar a palavra na psicoterapia como um modo da téchne, no seu

sentido originário, como caminho possível para a aparição do que está oculto, ou seja, um

processo de se revelar a si mesmo para sua compreensão. Nesse modo não se opera um

caminho definitivo a ser seguido como na técnica, nem tampouco um objetivo a ser

conquistado. Baseia-se antes num método e ética. Propomos pôr em relevo a palavra

como modo de aparição do ser na psicoterapia, e entender em que consiste a linguagem

– e a conversa - para a aproximação de cada si mesmo com seu próprio modo de ser, e de

sua história. Nesse trabalho será trazido principalmente as contribuições de Paul Ricoeur

para as definições de linguagem e metáfora.

Palavras-chave: Psicoterapia; Psicologia Clínica; Psicologia fenomenológica.;

Linguagem; Metáfora.

Abstract: The purpose of this work is to investigate the psychotherapeutic process on

phenomenological basis by considering the word in psychotherapy as a way of téchne, in

its original meaning, as a possible way for the emergence of what is hidden, that is a

271
Bolsista CAPES.

384
process of revealing itself to its own understanding. In this mode, one does not operate a

defined path to be followed as it happens in the technical, nor a goal to be achieved.

Instead, it is based on a method and in ethics. We propose to emphasize the word as an

appearance mode of being in psychotherapy, and to understand what constitutes language

- and conversation - for approaching each itself with its own way of being, and with their

history. This work has mainly brought the contributions of Paul Ricoeur for the

definitions of language and metaphor.

Keywords: Psychotherapy; Clinical Psychology; Phenomenological Psychology;

Language; Metaphor.

Uso a palavra para compor meus silêncios.


Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios
Manoel de Barros

385
Introdução

Não é tarefa fácil fazer uma explanação representativa do que consiste a

psicoterapia272. A experiência clínica nos mostra, sob uma ótica privilegiada, um leque

sem fim na diversidade e multiplicidade de cada processo terapêutico vivido

exclusivamente por cada pessoa. É de comum acordo entre os psicólogos que cada pessoa

possa investir num processo psicoterápico ela mesma, e viver essa experiência da forma

autoral e única, fazendo do seu processo tão singular quanto si mesma, quanto suas

experiências e história, quanto a construção do significado que aquele espaço carrega e

vai se descobrindo para si.

O desafio de explanar a psicoterapia talvez nos fosse abreviado se utilizássemos

alguns conceitos da psicanálise, que compreende um articulado e fino constructo teórico

que explicam a dinâmica metapsicológica. Talvez esse trabalho nos fosse facilitado se

considerássemos o sistema das relações econômicas e tópicas entre consciente e

inconsciente – um método científico com heranças das ciências empíricas, e que sem

dúvidas nos oferece contribuições significativas para o desenvolvimento e a construção

da psicologia clínica. Contudo, não o faremos.

Ao contrário, faremos um esforço para dialogar sobre a prática psicoterápica a partir

de um exercício fenomenológico.

Então, em que consiste a psicoterapia fenomenológica? Estaríamos enfrentando

uma grande complicação se o nosso intuito fosse tentar provar sua eficácia, ou chegar a

um produto adquirido ao ‘final’ do processo. Seria mais viável dizer o que a

fenomenologia não é, afinal, ela surge justamente como uma inquietação, como um

272
Ao falarmos de psicoterapia ou processo psicoterápico estaremos nos referindo especificamente ao
modelo tradicional inaugurado por Freud (e não à teoria psicanalítica), sendo um processo caracterizado
pela fala e a conversa, embora tenhamos conhecimento de outras terapias que se utilizam de diferentes
recursos centrais tais como o corpo, ou a música etc.

386
questionamento da dissolução da filosofia no modo científico de pensar, como crítica à

metodologia de conhecimento científico que rejeita do âmbito do real e do próprio

conhecimento tudo aquilo que não possa estar subordinado à estrita noção de verdade

(ALES BELLO, 2004).

A inauguração deste pensamento nas ciências humanas retira o homem de uma

estrutura encerrada e rígida, de uma perspectiva que o captura num ‘modo de ser

universal’, como ocorre numa teoria definitiva donde se observam processos de causa e

efeito. Ao contrário, a fenomenologia, conforme Ales Bello (2004), considera que não só

não podemos nos ater à premissa de verdade como devemos questioná-la. Assim, invoca-

se o caráter de provisoriedade e relatividade da verdade não como “falha” na construção

do pensamento, mas justamente como possibilidade e abertura para a compreensão. Nesse

sentido, seguindo o pensamento da autora, não se trata de provar quão errada é a

metafísica - pois isso incorreria em cometer aquilo que se critica - mas de mostrar o quão

única e absoluta ela não é. Assim afirma Feijoo (2004):

Em uma perspectiva metafísica, faz-se necessário definir e enquadrar a técnica

como um meio para atingir um fim, e assim considerá-la como algo definitivo,

fechado e sob o domínio do homem. Trata-se de uma concepção instrumental e

antropológica da técnica. No mundo tal como projetado pela tecnologia científica

pode ocorrer um enclausuramento da visão do cientista. Na relação substitutiva que

estabelece com o mundo, ele, cientista, acaba por esquecer-se da essência das coisas

e, priorizando o pensamento calculante, não deixa margem a outras possibilidades

de compreensão. (p. 88).

Neste ponto, compreende-se porque a psicoterapia não é pautada em “resultados

esperados”, uma vez que se defende que cada ser não é se não uma possibilidade na sua

387
abertura e imprevisibilidade. Não se pode controlar nem tampouco prever o que cada

pessoa se tornará. Com isso queremos dizer que não há o que defina o ser do ser humano,

o ser-aí é desprovido de qualquer natureza. Conforme Casanova (2013 p. 29-30) “o termo

ser-aí nasce da suspensão exigida de início pelo projeto fenomenológico husserliano”, e

avança no pensamento heideggeriano ao esclarecer que a essência do ser-aí reside em sua

existência. Ou seja, o ser-aí ek-siste, que significa estar originalmente aberto e lançado

para fora de si, num mundo conjuntural situado numa época e numa cultura vigente.

O procedimento da psicoterapia

Cabe então perguntar o que oferece uma psicoterapia de orientação

fenomenológica?

Uma tendência característica da nossa época, a pós-modernidade, seria a de

responder a essa pergunta tendo em vista um objetivo claro e definido, algo que pudesse

trazer um referencial específico como meta a ser alcançada. Dessa forma, privilegiaria-se

uma avaliação de mesuração padronizada e controlada, tendo em vista resultados que

pudessem ser objetivamente verificados. Conforme Feijoo (2004), compreende-se que

este modelo atende aos procedimentos da técnica, necessário para algumas ciências

específicas que se efetuam na rigidez de procedimentos que assegurem o estado das coisas

controlado e bem definidos. É o campo das ciências que atuam, por exemplo, na

verificabilidade das ciências naturais e físicas, é o caso da engenharia civil que

obrigatoriamente trabalha para anular ou compensar fragilidades estruturais a garantir a

segurança das edificações de construções, e proteger o bem estar social enquanto espaço

físico.

388
O conceito da técnica é trazida pela autora em seu artigo A psicologia clínica:

técnica e téchne para contrapor a noção de ciência a que se propõe a psicologia e o

procedimento do seu exercício na psicoterapia. Não se trata de negar os benefícios

(necessários!) da técnica em certas áreas distintas da psicologia, mas apenas de

demonstrar que a base de atuação se encaminha de uma outra forma. Enquanto as

construções civis trabalham com concreto, areia, pedra, a psicologia se dedica a questões

do ser humano, os objetos de estudo são radicalmente distintos, e portanto, a perspectiva

é radicalmente diferente. Trata-se de esclarecer a dessemelhança dos objetos e a visão de

homem na perspectiva fenomenológica.

O equívoco que se observa no momento atual é a supervalorização exigente do

desempenho do homem em diversos campos: profissional, pessoal, estético…

ocasionando a sobreposição do olhar às coisas ao olhar o humano. É sobre isso que Feijoo

se ocupa em seu texto ao expor que a técnica tem um significado característico dos modos

de produção da nossa sociedade, principalmente por cair no risco de uma extrapolação

desses procedimentos e seus efeitos recaírem no modo como cada um se vê e se

experimenta como ser humano.

Safra (2005, p. 124) aponta que uma grave dificuldade do homem contemporâneo

é não abrir espaço para o mistério, para o incerto (que é a própria condição ontológica do

homem), sendo o psicólogo também capturado e obturado por esta tendência no momento

em que “o conhecimento da Psicologia e da Psicanálise possibilitou algumas formulações,

algum conhecimento sobre a situação humana, vemos muitas vezes que a teoria do

analista lhe rouba a possibilidade de viver o mistério com o seu paciente. Isto é trágico!”.

O autor traz ainda a contribuição de Florensky ao dizer da liberdade:

389
(…) implica que o homem nasce de um gesto, de uma ação que acontece na

instabilidade, entre o ser e o não-ser. O ser humano jamais está encerrado no mundo,

por isso não pode ser nomeado, nem capturado por nenhum esquema. Viver é

caminhar para o mais além, em que cada passo é uma ação que dá ou não

autenticidade ao percurso pela vida, em função do que se é. (Safra, 2005, p. 125).

No livro Os dois nascimentos do homem os autores João Augusto Pompéia e Bilê

T. Sapienza também oferecem um capítulo destinado a essa questão. Segundo os autores,

“Esta é a época em que tudo pode ser produzido, em que tudo é factível, de maneira cada

vez melhor e mais rápida” (Pompéia & Sapienza, 2011, p. 124). É a técnica que permite

avançar em tecnologias e se apoderar da natureza, é o desenvolvimento do “pensamento

calculante”, onde todas as coisas tornam-se mensuráveis e controláveis. Na época da

técnica é como se tudo pudesse ser dominado e reproduzido. Sua eficiência é medida a

partir dos resultados atingidos, a partir de seus objetivos claros e definidos, e na

padronização de seus processos, bem como a supressão de imprevistos e efeitos

inesperados. “O perigo está na perda da liberdade frente aos dispositivos técnicos, criação

do próprio homem, cuja essência pode se sobrepor à essência do homem, e deste modo,

tornar esse homem escravo de sua própria criatura.” (Feijoo, 2004, p. 90). Vê-se aí o

homem cair na impessoalidade do “todo mundo”, sendo capturado pela autonomização

da técnica. Ou como diria Galimerti (citado por Safra, 2006, p. 32) “assistimos uma

reviravolta pela qual o sujeito da história não é mais o homem, e sim a técnica que,

emancipando-se da condição de mero instrumento, dispõe da natureza como um fundo e

do homem como um funcionário seu”. Desse modo, também Heidegger

(...) refere-se ao abandono do pensamento meditante, característico da

modernidade, como falta de pensamento. Diz que no pensamento calculante o

homem acredita na razão como perfeição, considerando-se sagaz e proficiente, e

390
ainda que, através de seus cálculos, pode prever e controlar tudo a sua volta. Quando

esta forma de pensar predomina, dão-se as objeções com relação ao meditar, que

passa a ser considerado como superficial e, portanto, não dá conta da realidade, e

que, além disso, não tem nenhuma utilidade de caráter prático. Acredita o homem

da ciência que, por se tratar de uma meditação, este modo de pensar faz-se pequeno

frente ao pensamento que calcula. (FEIJOO, 2004, p.88).

O pensamento meditante está relacionado ao que os gregos chamavam de téchne,

diferente do atual significado de técnica. A téchne designava um processo meditativo

onde se exercia, não sem esforços, o pensar dedicado sobre algo que podia ser trazido à

luz depois de empenhar-se na reflexão sobre a coisa. Segundo Pompéia (2011) a téchne é

o procedimento que permite que “alguma coisa que ainda não era passava a ser.” A isso

é que se chama de produção, e então, poiesis no sentido estrito. Ao modo da poiesis

acontece o desvelamento enquanto manifestação do oculto, ou aquilo que se chama

alétheia, comumente traduzida por verdade. Diferente da concepção metafísica, a téchne

permite um campo de abertura para a mostração da verdade enquanto deixar aparecer

aquilo que está encoberto, ao seu modo, respeitando seus limites e possibilidades. Ela

também é processo de produção das artes.

Este breve esclarecimento nos auxilia a avançar no mundo da psicoterapia

fenomenológica e pensarmos a téchne como modo de procedimento desse processo.

O acontecer da psicoterapia

Quando recebemos no consultório pessoas interessadas em iniciar um processo

terapêutico, de inicio e na maioria das vezes relatam estar vivendo momentos de muita

angústia. Muitas delas chegam com uma problemática existencial que gera sofrimento, e

que tem a necessidade de ser resolvida. Mas há também aquelas que chegam à terapia

391
sem nenhuma queixa específica, senão com uma sofrível sensação de estranheza de si

mesmas e de suas vidas. Ou ainda, as que não conseguem dizer exatamente o que está

lhes passando porque elas mesmas não entendem o próprio incômodo. Algumas pessoas

dizem estar observando suas vidas lhes escapando das mãos, como se estivessem

percorrendo um caminho desconhecido e alheio, sem mais saber o porquê e nem se esse

trilhar no qual estão (ainda) faz algum sentido. Como se precisassem resgatar o

significado da própria experiência e os elos de sentido que lhe trouxeram até ali.

A reconstrução desse mistério narrável em várias línguas e versões precisa de

tempo. Sabemos que os seus problemas estão ancorados em tantos outros aspectos ainda

não esclarecidos, acumulados durante anos. Nesse caso, o terapeuta auxilia o processo

oferecendo o

compromisso de percorrer com o paciente um caminho em que, juntos, se

aproximarão da história vivida por ele, dos seus modos de ser consigo mesmo e

com os outros, dos seus planos de futuro, do que tem constituído a sua vida,

incluindo aí aquilo pelo que ele procurou a terapia. (Pompéia & Sapienza, 2011, p.

131)

Feijoo (2004) acrescenta que o psicoterapeuta pode trabalhar como facilitador no

modo da téchne, “permitindo que o ser venha à presença tal como se constitui no seu

modo de ser”. Ainda sobre a prática e método do terapeuta, descreve a autora:

O psicoterapeuta que vê o homem como abertura, portanto em devir, não se

deixando apreender por nenhum sistema e teoria, vai atuar pela téchne, deixando

que o homem transpareça a si mesmo ao seu modo e a partir de si mesmo. Assim,

o psicólogo não mantém nenhum referencial de verdade nem indica o melhor

392
caminho para tal homem: é este que, no seu desvelar, vai deixando-se vir à presença,

reconhecendo-se em sua vulnerabilidade. (Feijoo, 2004, p. 89)

A prática clínica quebra com a lógica do pensamento calculante, oferecendo ao

cliente uma parceria para se meditar sobre a verdade de sua história. Essa disposição da

dupla favorece o alargamento na compreensão e a aproximação do paciente ao seu próprio

modo de ser, e de como se dão suas relações com os outros e com o mundo. Não importa

os resultados a que se chegarão, uma vez que a aposta está no processo de desvelamento

em si, sem certezas ou direções definidas.

O que permite que isso aconteça, defende Pompéia (2011, p. 138) “é o fato de, como

humanos, sermos dotados da palavra. A palavra inscreve todos os acontecimentos, todas

as questões humanas na totalidade da história. A palavra constrói um espaço em que se

pode morar.” Ele refere à palavra como o caminho possível para o aparecer do homem, e

a linguagem como morada do ser do ser humano.

A palavra e a linguagem

A frase acima de Pompéia é decisiva ao declarar que a palavra é central da

psicoterapia no modelo tradicional. Ora, afinal trata-se de duas pessoas, cliente-terapeuta,

que se encontram e conversam. O cliente/paciente vem ao terapeuta e relata verbalmente

coisas que lhe aconteceram durante a semana, conta alguma situação complicada e

desagradável que teve no trabalho, descreve sonhos que o inquietaram de alguma maneira

sem saber seu significado, retoma a reflexão de algum ponto específico das conversas de

sessões passadas, descreve cautelosamente seus medos e anseios… e tantas outras

situações. É só a partir do relato que se tem acesso ao mundo do outro.

393
A partir da minha própria experiência na psicoterapia como paciente pude273

vivenciar, em alguns momentos, a dificuldade em usar as palavras para aquilo que eu

queria comunicar. Não sabia se o repertório que tinha era suficiente para me fazer

entender naquilo que é da ordem do incompreensível para nós mesmos. Não raro, parecia-

me faltar palavras para me sentir representada em minha própria fala, em referência a uma

experiência particular. Nesses momentos eu recorria à música, à literatura, à poesia, e

também à escrita. Pude observar, ao longo da minha experiência como psicóloga clínica

que alguns pacientes descreviam experimentar semelhantes sensações.

Sempre fui capturada pela habilidade da escritora Clarice Lispector dizer o

‘indizível’, ou de transmitir uma sensação visceralmente familiar em suas páginas, sem

conseguir localizar aonde exatamente ela diz aquilo que nos diz. Com maestria

transformava a narrativa em compreensão absolutamente translúcida, embora tratando do

abstrato, àquilo da ordem do impalpável. Como se manuseasse as palavras de forma a

serem absorvidas pelos poros, ou por um processo de osmose, como se algumas coisas só

pudesse ser ditas por metáforas. Tal era o impacto de sua leitura que a compreensão de

seus livros me parecia ser vivida no corpo. Não à toa, Clarice Lispector dedicou boa parte

de seus escritos às questões oriundas do existir.

Para a filosofia tradicional, a linguagem importava enquanto instrumento do

pensamento àquilo que se intencionava revelar. A linguagem era vista como algo exterior,

que era utilizada como mera expressão e às vezes até “entendida como barreira à

manifestação das ideias.” (Carmo, 2004, p. 95). Nesse sentido, as palavras eram signos

que designavam alguma outra coisa, como se um valor ou significado lhes fosse atribuído.

Então, seria como dizer que as palavras eram pensadas como recurso ou ferramenta para

273
A primeira autora do trabalho

394
exprimir uma experiência interna, supondo-se assim, uma distinção marcada entre

“mundo interno” e “mundo externo”, algo passível de representação.

Podemos pensar que mesmo na perspectiva do desvelamento de si (como em

qualquer outro enunciado se espera), uma construção de norma formal da linguagem em

seus termos gramaticais é pronunciada. Dentro do estilo de cada um e da capacidade de

organização pessoal do momento, segue-se minimamente uma estrutura regrada de cada

língua, mesmo essa organização estrutural não passando pela reflexão da consciência274.

Essa estrutura tende a ordenar o sentido da mensagem que se intenta transmitir.

Seria possível mesmo compreender a linguagem nesse termo dual e objetivo?

O filósofo Paul Ricoeur se ocupou dessas questões, e fez um percurso que passa

por considerações linguísticas e semânticas afim de compreender a epistemologia da

interpretação. A proposta de Ricoeur era trazer a discussão da linguagem fora do aporte

metodológico que apreende as ciências da natureza. Em A teoria da interpretação o autor

faz uma descrição compreensiva da linguagem tanto em termos estruturais (no resgate às

ideia dos linguistas) quando do seu significado. A sua leitura de Saussure é uma retomada

conceitual dessa ideia primeira na proposta de superar tal sistema binário (objetivo-

subjetivo). O ponto de início desta obra é marcar a distinção trazida por Saussure entre a

linguagem como langue e como parole. Segundo Ricoeur (2006, p. 14) “se o discurso

hoje, para nós, é problemático é porque as principais realizações da linguística dizem

respeito à língua enquanto estrutura e sistema e não enquanto usada. A nossa tarefa será,

portanto, de libertar o discurso do seu exílio marginal e precário”.

274
Nesta pesquisa compreendemos consciência diferentemente da psicanálise. Conforme Ales Bello
,àpà à aà o s i iaà oà um lugar físico, nem um lugar específico, nem é de caráter espiritual ou
psíquico. É como um ponto de convergência das operações humanas, que nos permite dizer o que
esta osà dize doà ouà faze à oà ueà faze osà o oà se esà hu a os .à Pa aà aisà detalhesà e à Introdução à
Fenomenologia (2006): Bauru, EDUSC.

395
Ricoeur vai oferecer uma novo modo de pensar a diferença dicotômica da

linguagem, trazida por Saussure. O autor propõe abandonar a oposição daquilo que seria

uma mensagem individual e particular (a chamada parole), que estaria dentro de um

conjunto de códigos coletivo (denominado langue). Nessa estrutura, seria a langue o

objeto de uma única ciência, “a descrição dos sistemas sincrônicos da linguagem”. Ela é

a perpetuação atemporal de um conjunto de códigos, anônimo e sistemático para uma

determinada comunidade linguística. Este campo sublinha a área científica da linguagem

na capacidade combinatória pertencente a estrutura de um sistema . O código não pertence

ao tempo da mesma maneira que a mensagem, “uma mensagem é intencional; é intentada

por alguém” e por isso localizada no contexto e no tempo (tanto no momento da própria

apresentação - e o esvanecer do discurso em seguida - , quanto na conjugação verbal).

Por outro lado, "o código é anônimo e não intentado”, colocando-se como teoria geral dos

signos, a semiótica. "Em tais sistemas finitos” diz ele, “todas as relações são imanentes

ao sistema”, tratado como um sistema auto-suficiente de relações internas. (p. 17-18). Na

leitura fenomenológica essa última frase parece nos tão estranha quanto a suposta

existentência de um sistema independente alheio ao ser humano.

Nosso esforço será no sentido de não fixarmos nessa estrutura objetiva, pois, assim

como propõe Ricoeur. Seu caminho escolhido foi o

da investigação sobre a linguagem, o meio pelo qual a compreensão é um modo de

ser, pois é através dela que se poderá elucidar uma semântica do conceito de

interpretação. Essa semântica se constitui em torno do tema da significação, da

multiplicidade de sentidos e de sua capacidade simbólica. O objetivo de Ricoeur

era mostrar que a compreensão de expressões multívocas ou simbólicas é um

momento da compreensão de si, por isso, ele defende que o elemento comum a toda

atividade interpretante, da exegese à psicanálise, é o duplo sentido ou o múltiplo

396
sentido, que tem como função, de uma maneira geral, mostrar escondendo. (Paula,

2012, p. 243).

Embora a maior dedicação do autor seja sobre a teoria da interpretação da análise

escrita, utilizaremos a sua contribuição sobre e a metáfora e o símbolo para pensarmos

também o evento do discurso, contribuição essa que nos ajudará na investigação deste

trabalho com foco na psicoterapia.

A diferença marcada entre ambos os eventos (discurso e escrita) é aquilo que

Ricoeur chama de distanciamento, espaço entre o autor do texto e o sentido do texto

propriamente dito, há uma lacuna entre o que foi dito, e o que o leitor lê. Nos texto e em

outros tipos de compreensão indireta, que tem o caráter do evento impessoal ou indireto

e de relação assimétrica, apenas o autor fala sem a possibilidade de resposta. A intenção

do autor, nesse caso, fica aquém do alcance. Na conversa entre duas pessoas o discurso

oral implica um outro, a explicação é feita direcionada a alguém, e assim, “a explicação

e a compreensão tendem a sobrepor-se e a transitar de uma para outra” (Ricoeur, 1976, p.

84). Nesse cenário entre locutor e ouvinte, diz ele que o que é dito é um tipo "imediato de

expressão”, onde se localiza o sujeito que fala, e o sujeito que escuta, sendo ambos

participantes desse processo dialético de explicação, compreensão e síntese. Ou seja,

compreender o sentido do locutor e compreender o sentido da enunciação constituem um

processo circular e infinito. Na compreensão oral “a transposição para um vida psíquica

alheia encontra apoio na identidade da esfera participada da significação”, é o exemplo

do setting terapêutico que, como nas palavras de Ricoeur, são veiculadas experiências de

outras mentes” (diferente dos texto e outros tipos de compreensão indireta, que tem o

caráter do evento impessoal). Independente da compreensão ser direta, ou indireta,

Ricoeur afirma que o princípio comum entre elas é a empatia.

397
Conforme manifestamos, o principal elemento da contribuição de Ricoeur para este

trabalho refere-se ao estudo do símbolo e da metáfora. Esses são os dois elementos

principais de sua obra citada que nos auxiliará no entendimento da palavra como

enunciado próprio e de mostração do mundo do paciente. Neste momento, tomaremos a

metáfora como pedra angular para a compreensão daquilo que se fala como discurso

autoral, pleno em sua significação a partir da fala daquele que discursa.

O despertar da metáfora enquanto estilo potente da linguagem se deu num primeiro

momento através da literatura. Ricoeur expõe o sentido explicito e implícito da metáfora,

onde a distinção entre denotação e conotação seriam a tradução do que a tradição

positivista chamaria de linguagem cognitiva e linguagem emotiva. Disso, entende-se que

uma conotação “é extra-semântica, porque consiste no entrelaçamento de evocações

emotivas, que carecem de valor cognitivo.” (Ricoeur, 1976, p. 58). Explicita-se aí o

absurdo da metáfora ao tentar interpretar literalmente sua enunciação: ela é desconstrução

de termos usuais, sendo imprescindível que ela seja compreendida numa e por uma

interpretação, dentro de determinado contexto. A interpretação metafórica pressupõe uma

interpretação literal que se autodestrói numa contradição significante” (p. 62). Sua

expressão pode ser considerada a criação particular de significação que compreende o

mundo próprio daquele que fala. A metáfora é a quebra, é a destruição do mundo

formatado e aprendido. É a criatividade autoral de transformar signos prévios em sentidos

particulares. Para que se mantenha esse status, é necessário preserva-la como metáfora

viva (Ricoeur, 1976, p. 64), livre dos vícios de linguagem cujos significados tangenciaram

para um falatório275 impessoal.

275
Segundo Heidegger, o falatório é um dos modos do ser-aí cair na impropriedade, ou seja, um modo
pelo qual o ser foge de si mes o,àeàadotaàaàfo aàdosàout os,àouàoàdoà todoà u do àpa aà uida àdeàsià
es o.à Éà oà dize à otidia oà ueà todoà u do à diz,à à e aliza à aà i pessoalidadeà da uiloà ueà seà est à
a ostu ado .àEssaàideiaà à e àes iuçadaàe àsuaào aàSer e Tempo.

398
Sobre isso, ilustramos com uma passagem de Safra (2006, p. 32) que nos diz algo

semelhante ao referir-se sobre a o falar:

A fala do ser humano tanto pode ser tamponamento como pode ser acolhimento

daquilo que se revela. A fala pode estar a serviço de uma tentativa de construir um

fechamento da condição humana, de obstruir, de velar a condição ontológica do ser

humano, ou ela pode ser acolhimento do que existe, do que se revela. Nesse sentido,

em termos de linguagem, a fala pode aparecer como um dizer ou como um dito.

Ou seja, o autor refere que a fala tanto pode se dar enquanto voz própria a convocar

a sonoridade que reverbera de si, quanto a fala da palavra pode ser o retirar-se ou aquilo

que é dito a partir de ecos viciados. Ou seja, em termos de linguagem, a simples

denominação não esgota o poder e nem o sentido da palavra. A metáfora viva é uma

expressão clara de tornar os sentidos das palavras em invenção própria para o significado

de uma frase, é a ampliação dos sentidos, distinto das palavras do dicionário.

Sobre as metáforas, Ricoeur traz duas conclusões finais: a primeira é que “as

metáforas genuínas não se podem traduzir. (…). χs metáforas de tensão não são

traduzíveis, porque criam o seu sentido (…) e que sua paráfrase é infinita, incapaz de

exaurir o sentido inovador.”. (Ricoeur, 1976, p. 64). χ segunda conclusão do autor é que

uma metáfora não é um ornamento no discurso pois está além do seu valor emotivo, ela

é construção: a metáfora, segundo ele, “diz-nos algo de novo acerca da realidade”.

Sobre os símbolos

399
Ricoeur descreve o símbolo como "elemento polissêmico, jamais preso a uma única

significação" (A. Barthélémy, setembro, 2014)276. O símbolo é uma estrutura de

significação que nos “dá a pensar”, ou seja, o símbolo apresenta um sentido direto,

primário que nos encaminha para um sentido doravante, onde só é possível chegar no

sentido secundário, ao excedente do sentido, a partir do primário. Explica Ricoeur (1976,

p. 67):

Este excesso de sentido é o resíduo da interpretação literal. No entanto, para quem

participa na significação simbólica, não há efetivamente duas significações, uma

literal e outra simbólica, mas antes um único movimento que o traslada de um nível

para o outro e que o assimila à segunda significação por meio de ou através da

significação literal.

O símbolo não é só o representante de objeto ausente (como se verifica na

psicanálise), isso seria o pobre símbolo. Já para Florensky, o símbolo é evento poético

propriamente dito. É parte da realidade, é janela pela qual contemplo a transcendência do

outro. O símbolo é sempre a membrana com a dimensão infinita.” (G. Safra, comunicação

pessoal, outubro, 2014)277. Da mesma forma Ricoeur (1976, p. 68) nos diz que "o símbolo

não é passível de ser tratado pela linguagem conceptual por existir muito mais num

símbolo do que em qualquer dos seus equivalentes conceituais”, este é um pensamento

que o encaminha a dimensão do sagrado.

276
Relato pessoal do Seminário Internacional e Disciplina de pós-graduação PSC5902 "A Psicopatologia
Fenômeno-Estrutural: Aproximação Teórica, Clínica, Psicopatológica e Terapêutica", oferecida pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 25 e 26 de setembro de 2014.
277 Relato pessoal em aula da disciplina PSC5963-1 Diálogos Clínicos: a Contribuição de Pavel Florensky,
oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 22 e 29 de outubro de
2014.

400
Para o filósofo, o símbolo é a consistência da imagem, há uma relação de

semelhança entre o significante e significado. A fonte do símbolo emerge do mundo

sensível, como a árvore, o céu e muitas vezes nos apresenta sua dimensão com o sagrado

(ex. o céu abre um sentido que ultrapassa o homem). “É nesse sentido que os símbolos

estão ligados no interior do universo sagrado: os símbolos só vêm à linguagem na medida

em que os próprios elementos do mundo se tornam transparentes”. (Ricoeur, 1976, p. 73).

Isso marca toda a diferença do símbolo com a metáfora está é uma criação livre do

discurso, enquanto que o símbolo carrega em si a dimensão do cosmos. É somente a partir

da capacidade do cosmos significar que se funda com a capacidade de falar, “por

conseguinte, a lógica do sentido deriva da estrutura real do universo sagrado”. (Ricoeur,

1976, p. 73). Todo o símbolo depende de sua narração a partir do discurso, caso contrário,

os mitos que narram como as coisas chegaram ao mundo permaneceriam não reveladas,

ou dependeriam de novos rituais que pudessem novamente expor este processo.

Compreende-se que o "simbolismo só atua quando a sua estrutura é interpretada. Nesse

sentido, exige-se uma hermenêutica mínima para o funcionamento de qualquer

simbolismo”. (Ricoeur, 1976, p. 74).

Conclusão

A situação clínica pode ser um espaço privilegiado que acontece através das

palavras e símbolos porque possibilita, antes de tudo, o devir. Na impossibilidade de se

apreender o infinito do ser humano, e ao entender a palavra como evento do ser humano

que cria o homem e a aparição do seu mundo, então compreende-se que a palavra, na

perspectiva ontológica, também é possibilidade de revelação da verdade do outro e de si

mesmo. Ou seja, ao contrário do que se poderia pensar, na perspectiva fenomenológica a

401
palavra não é um instrumento, ou um símbolo opaco desprovido de autenticidade (embora

possa ser, a depender de seu “uso”), embora estejamos, conforme diz Safra (2004, p. 46),

“mais habituados a encarar a linguagem de maneira objetificada, fora do registro

ontológico, que a reduz em um sistema de signos, que informa e refere.”

Fizemos um percurso que inicialmente apresenta a visão de homem da

fenomenologia para justificar o procedimento da psicoterapia contrapondo a tendência

“coisificante" da nossa época, e a sobreposição da técnica ao homem.

O homem, na sua condição ontológica aberta e indefinível jamais é passível de ser

teorizado ou previsível. Dessa forma, diante da pessoa a única possibilidade é o símbolo

e a palavra, que como vimos, aponta a infinitude da experiência. (G. Safra, comunicação

pessoal, outubro, 2014)278. Entendemos que a palavra e a linguagem devem ser superada

em sua análise objetiva no momento em que a concebemos como evento ontológico.

Compreendemos haver o discurso objetificado que distancia o locutor daquilo que fala,

mas em oposição a isso, a palavra também carrega sua dimensão criativa, capaz de trazer

ao ouvinte a possibilidade de compartilhar a experiência particular, e ampliar seu

significado a partir de construções metafóricas.

Transpondo essa compreensão para a situação clínica, concluo que o psicoterapeuta

deveria ser aquele que permite a abertura de um espaço em si para caber e acolher

amorosamente o infinito do outro, ampliando sentidos e significados como na

irredutibilidade da metáfora. Isso pressupõe que o terapeuta possa abraçar o próprio

278 Relato pessoal em aula da disciplina PSC5963-1 Diálogos Clínicos: a Contribuição de Pavel Florensky,
oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 22 e 29 de outubro de
2014.

402
abismo, a contemplar o próprio mistério para suportar o aparecer do mistério do existir e

o mistério do outro.

E assim, encerramos com Ricoeur (1976, p. 77):

(...) a história das palavras e da cultura parece indicar que, se a linguagem nunca

constitui o estrato mais superficial da nossa experiência simbólica, este estrato

profundo apenas se torna acessível a nós na medida em que se forma e articula a

um nível linguístico e literário, uma vez que as metáforas mais insistentes se pegam

ao entrelaçamento da infra-estrutura simbólica e da superestrutura metafórica.

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403
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LISPECTOR, C. (1999). A descoberta do mundo. Nosso idioma. Rio de Janeiro: Roco,

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VATTIMO, G. (1996). Introdução à Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget.

404
VIVÊNCIAS PSÍQUICAS FACE À VIOLÊNCIA NA PERSPECTIVA DA

FENOMENOLOGIA DE EDITH STEIN

Suzana F. Brasiliense Carneiro279 & Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

Instituto de Psicologia da USP

E-mail: sf.carneiro@uol.com.br

Resumo:Este trabalho é o recorte de uma pesquisa de doutorado cujo objetivo é

compreender as vivências de pessoas que habitam a periferia de Salvador à luz da

fenomenologia de Edith Stein. Refletimos aqui sobre a vivência de dois estrangeiros face

à violência, descrita como uma “cegueira protetora” em relação às hostilidades locais. As

investigações de Stein a respeito das dimensões psíquica e espiritual do ser humano nos

ajudam a compreender a vivência descrita não apenas no âmbito restrito de uma reação

involuntária do “sujeito vítima”, mas como parte de um processo de adaptação que

culmina com um posicionamento pessoal de um “sujeito consciente”.

Palavras-chave: Edith Stein; vivências psíquicas; vivências espirituais; violência;

consciência

PSYCHOLOGICAL EXPERIENCES LIVED IN FACE OF VIOLENCE, FROM

THE PERSPECTIVE OF EDITH STEIN’S PHENOMENOLOGY.

Abstract: This work is part of a doctoral research whose goal is to understand the lived

experiences of people who live in the outskirts of the city of Salvador in light of Edith

279
Bolsista doutorado FAPESP.

405
Stein’s phenomenology. Here we reflect on the experience lived by two foreigners facing

violence, described as a "protective blindness" in relation to local hostilities. The

investigations of Stein about the psychological and spiritual dimensions of the human

being help us to understand the experience described not only in the narrow context of an

involuntary reaction of a "victim subject", but also as part of an adaptation process that

culminates with a personal position of a "conscious subject".

Keywords: Edith Stein; psychological lived experiences; spiritual lived experiences;

violence; consciousness

Introdução

Este trabalho é o recorte de uma pesquisa de doutorado cujo objetivo é

compreender as vivências fundamentais de pessoas que habitam a periferia de Salvador à

luz da fenomenologia de Edith Stein. Na primeira fase da investigação, a pesquisadora se

hospedou no local por 10 dias e realizou entrevistas com 7 moradores idosos (3 homens

e 4 mulheres), que falaram a respeito da fundação do bairro. Realizou também um diário

de bordo em que registrou conversas com missionários estrangeiros a respeito de suas

vivências no bairro. No presente trabalho descreveremos duas situações relatadas que nos

chamaram a atenção pela presença de um elemento comum: o dar-se conta de uma

“cegueira protetora” inicial no contato com a violência.

Antes, porém, de adentrarmos na descrição e análise das vivências referidas,

apresentaremos brevemente o contexto de pesquisa.

406
Contexto de pesquisa

O bairro do Uruguai, popularmente conhecido como “χlagados”, localiza-se na

região sudoeste da cidade de Salvador, na área denominada “cidade baixa”. Nos anos 50,

esta região, onde se encontra a Península de Itapagipe, foi nomeada polo industrial de

Salvador, passando a abrigar muitas indústrias, inclusive multinacionais. Esta situação

atraiu famílias vindas principalmente do interior da Bahia, que se mudaram para a região

em busca de trabalho. A falta de recursos financeiros destas pessoas impossibilitou sua

instalação em moradias dignas. Os migrantes invadiram uma região de água e construíram

barracos de madeira, chamados de palafitas. Alguns anos depois os próprios moradores

iniciaram um processo de aterro com lixo e restos de material de construção vindos de

outras regiões da cidade. Posteriormente, parte da região foi aterrada com auxílio do

governo local280.

Em 1980, o Papa João Paulo II visitou o bairro e inaugurou a Igreja Nossa Senhora

dos Alagados, construída em função de sua visita. De acordo com os moradores, o bairro

se desenvolveu muito nesta época por interesse do governo que sabia que a visita de João

Paulo II “atrairia os olhos do mundo para eles”. A Igreja foi construída no alto de uma

colina que, por ser uma região geográfica estratégica, era cobiçada pelas duas facções do

tráfico presentes no bairro. A mesma colina também era conhecida como local onde a

polícia praticava atos de violência, assassinatos contra os moradores, principalmente

contra os jovens envolvidos ou não com o tráfico. Por este motivo, o bairro do Uruguai

era e ainda é uma região marcada pela violência.

280
Informações colhidas de relatos dos moradores.

407
A presença da Igreja Nossa Senhora dos Alagados atraiu a vinda de missionários,

tanto de sacerdotes como de jovens que se dispõem a realizar um trabalho social e de

evangelização com os moradores. Os relatos a seguir foram justamente de um sacerdote

que morou no Uruguai como pároco da Igreja Nossa Senhora dos Alagados durante 9

anos. O segundo relato é de uma jovem francesa com a qual a pesquisadora conversou

após um ano em que ela estava no local. Apresentaremos a seguir os relatos de Daniel e

Joana, nomes fictícios com os quais nos referiremos a estes dois participantes da pesquisa.

Daniel

Daniel é sacerdote da Diocese de Tulle na França e veio ao Brasil através de um

contrato Fidei Donum281 estabelecido entre a sua Diocese e a Arquidiocese de Salvador.

Em 1994 foi morar no bairro do Uruguai, passando a ser pároco da Igreja Nossa Senhora

dos Alagados. Assumiu esta função a pedido do então Arcebispo de Salvador, D. Lucas

Moreira Neves devido à situação difícil em que a Igreja se encontrava. Como vimos, por

ser a colina onde a Igreja se encontra, um local cobiçado pelo tráfico de drogas, os padres

que ali se instalavam sofriam ataques frequentes como roubos e ameaças de morte. Com

isto, nos primeiros anos, já haviam passado 6 padres, que após algum tempo enfrentando

esta situação, acabavam indo embora. Ao assumir a paróquia, Daniel passou a oferecer

atividades de cunho social para os moradores com o apoio de um jovem casal francês que

permaneceu por 2 anos como missionários no Uruguai. Juntos iniciaram um projeto de

formação com meninas adolescentes.

281
O contrato Fidei Donum é um contrato de cooperação estabelecido entre duas Dioceses. Através dele,
o sacerdote de uma das Dioceses é enviado por seu Bispo para servir à Diocese parceira por um período
determinado. Este modelo de colaboração foi proposto pelo Papa PioàXIIà aàCa taàE í li aà FideiàDo u à
de 1957 em que se tratou da necessidade de ajudar sobretudo as missões da África (Carta Encíclia Fidei
Donum - Retirado do site em 21/09/2014
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_21041957_fidei-
donum_po.html).

408
De acordo com depoimento de Daniel, após algum tempo de projeto, “fomos

descobrindo o inferno da realidade”. Isto porque muitas meninas que vinham participar

eram “meninas dos chefões do tráfico” e tinham uma postura bastante arrogante em

relação ao padre, aos colaboradores e às outras jovens. Com o tempo, Daniel percebeu

que elas não estavam interessada no que eles ofereciam (formação humana, curso

profissionalizante), mas vinham com a esperança de “conseguirem algum dinheiro”.

Conta que chegaram a ser assaltados no projeto por cumplicidade de algumas alunas.

Além disso, houve casos em que algumas jovens pararam de frequentar o projeto sem

lhes dar satisfação. Posteriormente, descobriram que o motivo do sumiço havia sido o

fato de serem ameaçadas pelos traficantes.

Ao relatar esta situação Daniel afirma: “Tivemos uma Graça de cegueira que nos

havia libertado de um medo maior”. Entretanto, o desvelar-se da realidade e a consciência

das dificuldades não desencorajaram Daniel e sua equipe. Daniel se deu conta de que o

projeto era “muito idealista” e que havia sido concebido por “três cabeças francesas”, ou

seja, precisava ser adaptado à realidade e cultura local. Perceberam a necessidade de se

prepararem melhor para esta missão e por isso, decidiram interromper o projeto por um

ano para se formarem. Cada um dos colaboradores buscou uma formação: uma na área

da psicologia, outra na área da sexualidade e um rapaz nas questões sociais, buscando

compreender melhor o contexto dos “χlagados” e o significado de uma invasão.

Joana

Joana é uma pedagoga de 30 anos, vinda do sul da França para trabalhar no

Reforço Escolar que funciona no salão da Igreja Nossa Senhora dos Alagados e atende

crianças de 7 a 10 anos no contra turno escolar. Em seu país ela havia trabalhado com

moradores de rua e também com crianças com deficiência mental. Além disso, tinha

409
vivido por alguns meses na África em uma missão com “Irmã Emmanuelle do Cairo”282.

Joana afirmou que durante os primeiros meses no Uruguai, achou que o local não fosse

tão pobre e violento como as pessoas haviam dito. Comparava a pobreza material ao que

tinha visto na África e achava as pessoas ricas ali, pois tinham geladeira e até mesmo

televisão.

De acordo com Joana, esta visão inicial do bairro mudou radicalmente após alguns

meses e o divisor de águas para esta mudança foi um sonho. Contou que uma noite sonhou

com tudo o que tinha vivido nos primeiros meses no Uruguai. Disse que as cenas

passavam como um filme em que ela viu tudo o que não queria ver. Afirmou que era

“como se o meu consciente não visse a violência, mas tudo estava sendo guardado no

inconsciente”.

Contou por exemplo, que na noite em que chegou em Salvador havia uma festa

na sua rua e ela não conseguiu chegar em casa. “Havia muitas pessoas bêbadas e drogadas,

algumas caídas no chão.” Disse que este foi o primeiro choque e que naquele momento

compreendeu o que devia esperar do local. Joana afirmou que foi o primeiro quadro que

viu e que, como em uma exposição, este quadro apontava para os próximos que ela veria.

Viu uma mulher na rua carregando um bebê de colo, que por estar bêbada deixava o bebê

cair no chão a todo momento. Viu muitas outras coisas das quais ela realmente se deu

conta a partir do sonho.

De fato, de acordo com Joana, os três primeiros meses no bairro foram muito

intensos e ela afirma que teve que descobrir quase tudo sozinha. Fazia visita às casas

282
Irmã Emmanuelle de Cairo era uma religiosa de origem belga. Pertencia à Congregação de Nossa
Senhora do Sion e trabalhou durante muitos anos na favela de Ezbet-Nakhl no Cairo (Egito), motivo pelo
qual ficou conhecida co oà aà i zi haà dosà e digos .à Mo euà e à à aà F a ça,à aosà à a osà
(informações retiradas do web site no dia 21/9/2014
http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/vaticano/faleceu-em-franca-a-irmazinha-dos-mendigos/).

410
acompanhada pelas crianças do reforço escolar e se esforçava muito para aprender o

português. Afirma que esteve tão ocupada neste início, que não teve tempo de refletir a

respeito de tudo o que estava vivendo e fazendo. Foi neste contexto que Joana sonhou.

Descreve o sonho como um filme onde ela reconhecia cada imagem: a festa na

sua rua no dia da chegada, o movimento do tráfico, a mulher bêbada com o bebê. Os

sentimentos que associa ao sonho são de angústia, medo, vontade de ir embora, de fugir.

Conta que após esta experiência, ficou com uma sensação de estar paralisada. Disse que

antes do sonho não percebia nada. Via o movimento de carros, mas não percebia que eram

traficantes. Fazia visitas na “invasão” (parte menos urbanizada do bairro e dominada por

uma das facções do tráfico) e não achava perigoso. Mas afirma que depois do sonho toda

essa visão mudou. χfirma que seus olhos se abriram e ela viu “uma pobreza tão profunda

como nunca tinha visto”. Disse ter se dado conta da pobreza em relação à violência, à

questão social, material e também em relação à fraqueza psicológica das pessoas.

Em relação à pobreza material, descobriu por exemplo, que as pessoas compravam

a televisão parcelada e só pagavam a primeira parcela. Como na “invasão” não há um

endereço certo e também as pessoas tem medo de entrar, os moradores estavam

protegidos, inclusive contra a polícia. Para Joana, o sonho foi, portanto, um divisor de

águas que mudou sua visão e também os sentimentos. Após esta experiência, ficou muito

tempo sem sair de casa porque tinha medo. Só queria ficar em seu quarto lendo.

Ao ser questionada sobre o que ela lia, Joana conta que leu livros sobre a vida de

Dom Bosco, irmã Emmanuelle do Cairo, padre Guy Gilbert, Abbé Pierre, Charles de

Foucauld, entre outros. Disse que hoje percebe que “lia a vida de pessoas que acreditavam

no amor”, que buscou livros que contavam a história de “pessoas que ajudaram outras

pessoas em dificuldade”. Joana afirmou que estas leituras foram importantes porque

começou a encontrar semelhanças entre a vida daquelas pessoas e a sua, e com isso

411
começou a “achar forças” para continuar a missão sem medo. Conta que tinha fé, mas que

os livros lhe deram esperança. Relata que “precisava” deste tipo de leitura.

Após dois meses Joana conseguiu retomar suas atividades sem medo. Disse que

com o tempo encontrou um modo de se colocar, uma postura que tem funcionado: quando

percebe algum perigo, olha as pessoas com amor e ao mesmo tempo com um olhar muito

firme. No momento do perigo, sente seu estômago contrair e diz para si mesma: “- Nada

pode ser pior do que eu já vivi”.

Joana afirma que essa experiência mudou sua vida. Hoje se sente forte, como se

pudesse enfrentar qualquer coisa. Sente também que aumentou a sua compaixão em

relação às pessoas. Quando vê uma criança na rua ou uma pessoa deitada na calçada tem

vontade de ajoelhar diante dela. Contou que sempre fez trabalho voluntário, sempre quis

ajudar o próximo, mas há uma diferença agora, pois nunca tinha tido este desejo de se

ajoelhar diante da pessoa. Conta que agora “vê Deus através destas pessoas”.

Ao ser questionada a respeito do que havia feito com que ela continuasse a missão

mesmo com todas essas dificuldades, Joana respondeu que havia sido o amor dela pelas

crianças e o amor que recebe das crianças. Contou que o amor das crianças pouco a pouco

a abriu para algumas pessoas adultas, principalmente para as mulheres. Algo muito difícil

para ela nesta missão foi o fato de se deparar com “homens terríveis no bairro: bêbados,

traficantes, homens que abusam das mulheres e crianças, e que não cuidam de ninguém”.

Disse que isto a ajudou a pensar que a mulher precisa de ajuda. Contou que antes de vir

para o Brasil tinha em mente um projeto de abrir uma casa de acolhida para mulheres e

que após esta experiência no bairro, a vontade de colocar este projeto em prática

aumentou. Está decidida a trabalhar com isto quando sua missão no Brasil acabar. Em

relação à continuidade da missão no Uruguai, Joana afirma que quer morar na “invasão”

412
e este seu desejo se expressa pela seguinte afirmação: “- Quero mostrar o meu amor pelo

povo, até [grande a ponto] de querer morar com eles”.

Análise dos relatos

Os relatos de Daniel e Joana foram selecionados a partir de uma experiência

semelhante vivida pela pesquisadora na sua primeira estadia no Uruguai para coleta de

campo, a qual descrevemos a seguir:

Fui almoçar na casa de Ester283 para entrevistá-la. Ester me recebeu em uma

varanda que fica no segundo andar de um sobrado de 3 andares. A varanda é cercada por

um muro baixo, o que permitiu o contato com um vizinho que trabalhava ao lado.

Enquanto sua filha acabava de preparar o almoço, começamos a entrevista. Deixei o

gravador ligado em cima da mesa e Ester foi relatando sua vida no Uruguai. A certa altura,

ouvimos um barulho muito forte e percebi que Ester ficou assustada. Ela colocou a mão

no peito e disse: “- Meu Deus o que é isso?” Em seguida gritou com uma voz nervosa ao

vizinho para saber do que se tratava. Sem resposta, me disse que eram fogos e

continuamos a entrevista.

Naquele momento, eu não havia me dado conta de nada. Lembro-me de ter

assustado com o barulho, mas de ter continuado a entrevista sem prestar mais atenção a

este fato após ter sido assegurada por Ester de que eram fogos. Passados alguns meses,

ao escutar a entrevista no gravador, fui surpreendida pelo barulho como se fosse a

primeira vez que o estivesse ouvindo. Desta vez me dei conta de que era barulho de arma

de fogo e senti medo por ter estado tão próxima de tiros. Foi como se a força da realidade

283
Nome fictício escolhido para esta senhora que morou durante 34 anos no bairro do Uruguai. Ester
faleceu 8 meses após a entrevista.

413
violenta que eu tentava amenizar deixando-me assegurar pela fala de Ester de que eram

fogos, tivesse rompido um véu protetor que me havia permitido caminhar pelo bairro “em

segurança”. χo tomar consciência desta situação, associei-a imediatamente aos relatos de

Daniel e Joana, identificando neles vivências semelhantes a minha em que aspectos

negativos da realidade do Uruguai se desvelaram tirando-os de um estado que denomino

“cegueira protetora”.

É interessante notar que as três pessoas são estrangeiras (dois franceses e uma

brasileira paulistana) e que os relatos dizem respeito ao período inicial de convivência no

bairro do Uruguai. Interessante notar ainda, recorrendo à antropologia filosófica de Edith

Stein (2000), que apesar das diferenças culturais, sociais, circunstanciais, estas pessoas

tiveram vivências semelhantes no contato com o bairro. Tal semelhança se faz possível

pela estrutura comum que as irmana enquanto membros da grande comunidade humana.

Acrescido a isto, destacamos a possibilidade da pesquisadora de identificar as vivências

semelhantes a sua nos relatos de outros pela capacidade empática. De fato, Edith Stein

(1998) descreve a vivência da empatia como a capacidade de reconhecermos um ser

humano diante de nós e a possibilidade de compreender suas vivências justamente por

termos uma estrutura comum. Ales Bello (1998) escreve a respeito da empatia:

O ato empático, contrariamente ao modo como é compreendido pelos psicólogos

que se ocupam da empatia, não é uma sensação nem um sentimento; nem um ato

da percepção interna de si e muitos menos diz respeito à recordação e à

imaginação; mas é ato concreto e originário, através do qual podemos colher de

modo não originário uma vivência alheia (Ales Bello, 1998, p. 50).

Portanto, pela empatia, foi possível o reconhecimento de vivências comuns entre

pessoas estrangeiras no contato com o bairro do Uruguai. Neste sentido, a empatia nos

414
auxiliou no processo de redução fenomenológica onde selecionamos do material

recolhido, vivências que nos parecem essenciais para a compreensão do fenômeno da

formação humana em contexto de violência. Isto porque o reconhecimento de uma

vivência comum aponta para sua relevância no estudo e nos motiva ao esforço de

compreensão iluminados pela fenomenologia de Stein.

Na obra intitulada “Psicologia e Ciências do Espírito: contribuições para uma

fundamentação filosófica” a autora apresenta uma análise essencial da psique e do espírito

procurando compreender a natureza da relação entre as vivências de cada uma destas

dimensões e também do entrelaçamento entre elas. Stein (1999) deixa claro que não há

uma relação causal linear entre as vivências, não sendo possível, portanto, identificar um

elemento particular ou uma vivência particular que cause outra, como poderíamos ser

tentados a buscar.

No âmbito da realidade psíquica, Stein (1999) identifica uma qualidade

permanente que acompanha a constante transformação dos estados psíquicos e que

identifica como a causa que media a passagem de uma qualidade psíquica a outra. Trata-

se da força vital, cujo aumento ou diminuição repercute na dinâmica entre as vivências.

O processo causal desencadeado pela força vital pode ser melhor compreendido se

tomarmos a análise de Edith Stein (1999) a respeito da constituição das vivências.

Segundo a autora (Stein, 1999) toda vivência é composta por três componentes: o

conteúdo, o viver o conteúdo, e a consciência deste viver. O conteúdo é o objeto para o

qual a consciência se volta, o conteúdo que ela recebe e que pode ser externo (como um

dado de cor) ou interno à pessoa (um estado de bem estar, por exemplo) (Stein, 1999). O

viver o conteúdo refere-se ao modo como ele é apreendido pela consciência. Diz respeito

à intensidade com a qual o conteúdo é vivido e relaciona-se à quantidade de força vital,

ou seja, quanto maior a força vital, maior a intensidade do viver.

415
O viver por sua vez influenciará o terceiro componente citado por Stein (1999)

que é a consciência deste viver. Tal consciência pode ser traduzida como o “dar-se conta”

do que se está vivendo e não deve ser confundida com a consciência que é fruto da

vivencia espiritual da reflexão. Edith Stein (1999) ilustra a influência que o viver tem

sobre a consciência deste viver (o dar-se conta dele) ao afirmar que quanto mais intenso

é o viver, mais clara e desperta será a consciência dele.

Tendo introduzido alguns aspectos fundamentais da discussão de Edith Stein a

respeito das vivências e da relação entre elas, passaremos à análise dos relatos de Daniel

e Joana, colocando-os em diálogo com estas noções.

A análise que aqui realizamos é composta por dois diferentes movimentos. O

primeiro diz respeito a uma visão aberta e ampla que busca captar o que é comum aos

relatos. O segundo esforça-se para adentar nas singularidades e compreender as dinâmicas

psíquicas individuais. O percurso comum será o fio condutor de nossa análise e inserido

nele discutiremos os movimentos pessoais.

Individuamos nos relatos de Daniel e Joana quatro momentos diferentes: 1) o

ouvir falar sobre a violência do bairro; 2) o contato direto com o bairro onde prevalece a

“cegueira protetora” em relação à violência; 3) o dar-se conta da violência e o

recolhimento; 4) a retomada do contato com um novo olhar e de um modo novo.

O primeiro contato com o bairro do Uruguai tanto para Joana como para Daniel

foi a partir de relatos de terceiros, o que significa na visão de Edith Stein (1998), que seu

acesso ao bairro se deu primeiramente por vivências não originárias, ou seja, pela escuta

das vivências de terceiros em relação ao Uruguai e não pelo seu contato direto com o

local (Stein, 1998, p.73). Não podemos afirmar com segurança, mas provavelmente tais

416
relatos permitiram a Daniel e Joana formular, pela vivência da imaginação, uma visão

própria da realidade do Uruguai, e com esta visão ali chegaram.

Embora este primeiro momento – ouvir falar sobre a violência do bairro – não

apareça no relato de Daniel, este contou-nos que o Uruguai “tinha uma fama terrível” no

bairro onde morava e que isto o deixava temeroso. Também Joana havia escutado falar

do Uruguai como um local onde a pobreza e a violência eram grandes, o que pode ser

ilustrado pela afirmação de que no início “não achava o bairro assim tão pobre e violento

quanto falavam, pois na África era pior”.

Esta afirmação de Joana nos remete ao segundo momento descrito como o contato

direto com o bairro e a “cegueira protetora”. χpesar de ter presenciado cenas difíceis

como a festa em frente a sua casa no dia da chegada, Joana relata que não percebia a

violência, que via por exemplo o movimento de carros, mas não enxergava que esta

movimentação relacionava-se ao tráfico de drogas. Joana via, mas não enxergava.

Presenciava, mas não se dava conta da realidade. É a esta vivência que chamamos de

“cegueira protetora” e cuja natureza χles ψello (2006) nos ajuda a compreender ao

apresentar as características essências da dimensão psíquica do ser humano de acordo

com as investigações de Husserl e Edith Stein, relacionada às vivências reativas, aos

impulsos, tendências e tensões que acontecem independente da nossa vontade. De fato,

identificamos nesta análise a “cegueira protetora” como uma vivência psíquica reativa de

fechamento ou negação da realidade. Mais especificamente, para aspectos negativos desta

realidade cujo contato poderia provocar sofrimento, medo, desencorajamento ou outras

reações de forte intensidade que poderiam paralisar Daniel, Joana (e a pesquisadora),

impedindo-os de dar continuidade às atividades desenvolvidas.

Esta análise da “cegueira protetora” como uma vivência psíquica é comum a Joana

e Daniel. Entretanto, a forma como cada um descreveu esta vivência e o sentido pessoal

417
conferido a ela nos permite adentrar nas suas singularidades. Joana, por exemplo,

descreve a vivência dizendo: “ – Era como se o meu consciente não visse a violência, mas

tudo estava sendo guardado no inconsciente”. Joana não nega o contato com a violência,

mas afirma a impossibilidade de dar-se conta dela, ou seja, a impossibilidade de vivenciá-

la de modo consciente e de refletir a respeito desta realidade. Esta possibilidade pode ser

compreendida a partir da análise de Edith Stein (1999) a respeito do modo como as

vivências se organizam na pessoa.

As vivências não acontecem de forma linear uma após a outra como se fossem

fases intermitentes. Elas se apresentam de forma conjunta em um processo ininterrupto,

formando o que Stein chama de “fluxo de vivências” (Stein, 1999). χ autora compara

este fluxo a um rio284 que flui de modo contínuo. A cada momento novas vivências vão

sendo agregadas de modo que haja uma sucessão, mas também uma coexistência de

vivências que se organizam por camadas neste fluxo. Nesta dinâmica, podemos pensar

que a percepção da violência ocorreu, mas pode ter sido registrada em uma camada mais

profunda do fluxo onde ela permaneceu viva, embora não consciente. Stein considera

uma vivência “viva”, aquela que atua na pessoa no sentido de “produzir novas fases no

fluxo”, novas vivências, como por exemplo, o sonho (Stein, 1999, p. 46).

Outro aspecto do relato de Joana que nos chama a atenção e permite compreender

a vivência da “cegueira protetora”, foi o fato dela expressar que isto aconteceu nos três

primeiros meses após sua chegada. Joana é francesa, vem de outra cultura e estava

descobrindo um ambiente estranho para ela; conhecendo as pessoas e aprendendo o

português. Estava, portanto, em um difícil processo de adaptação que exigia grande

284
A imagem do fluxo como um rio foi trazida pela Profa. Dra. Angela Ales Bello em referência a Edith
Stein, durante Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro
de 2014, intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aà P“C 1).
Conteúdo retirado das anotações pessoais da pesquisadora.

418
dispêndio de força vital e toda a atenção voltada para este processo. De fato, de acordo

com Stein (1999), “a capacidade de receber os dados sensíveis e a intensidade com que

eles se apresentam depende do estado de nossa força vital naquele determinado momento”

(Stein, 1999, p.66). Portanto, a diminuição da quantidade de força vital provocada pelo

esforço necessário para o desenvolvimento de novas habilidades (o falar português por

exemplo), acabou enfraquecendo “o viver” e a “consciência do viver” de outras vivências

de Joana que aconteciam concomitantemente.

Pelo seu relato, percebemos que Joana esteve concentrada no processo adaptativo

principalmente em relação ao seu trabalho no reforço escolar e no contato com as crianças

e suas famílias. Estava, como ela afirma, em um esforço tão grande que não tinha tempo

de refletir sobre tudo o que vivia. A força vital de Joana era utilizada na realização das

atividades do dia a dia e no estudo do português que aprendia principalmente com as

crianças. A falta de tempo neste caso associa-se ao grande esforço que tomava todo o seu

dia, inclusive as noites onde ela refletia sim, mas a respeito do trabalho no reforço escolar

e das expressões que ouvia as crianças falar e que procurava compreender. Joana estava

imersa em uma atividade adaptativa bastante exigente e a “cegueira protetora” neste caso,

pode ser compreendida como uma impossibilidade psíquica de dar conta de certos

aspectos da realidade pela falta de força vital, pela falta de disponibilidade interior e pela

necessidade de assumir a missão a qual havia se proposto.

Este último aspecto assemelha-se à descrição e ao sentido dado por Daniel em

relação à “cegueira protetora”, que pode ser compreendido a partir da afirmação que fez

ao relatar a descoberta de que as jovens que participavam dos projetos sociais podiam ser

ameaçadas de morte: “- Isso para nós foi mais um passo na descoberta do inferno da

realidade que descobrimos só gradativamente, com uma Graça de cegueira que nos

libertou de um medo maior”. Daniel viveu a “cegueira protetora” como uma ação da

419
Providência Divina que os poupou de um medo que poderia tê-los paralisado ou

desencorajado à realização do projeto. Dissemos que este aspecto se assemelha à vivencia

de Joana no sentido de que a “cegueira protetora” permitiu o engajamento de ambos nas

atividades implicadas com a missão assumida por cada um: o trabalho com as crianças e

com as adolescentes.

Por outro lado, diferentemente de Joana, Daniel não negou o medo, ou seja, a

vivência da “cegueira protetora” não o anestesiou em relação à realidade violenta, mas

amenizou uma forte reação psíquica pela qual poderia ter sido tomado caso a violência

fosse descoberta de uma vez e não gradativamente. Ao contrário, o relato de Joana

demonstra certa anestesia, ou seja, não sentia medo, tinha uma reação psíquica de recusa

(não aceitação) dos aspectos negativos da realidade, que buscava justificar pela

racionalização cujo discurso pautava-se em uma comparação com o que havia vivido na

África.

Ao falarmos em racionalização, entramos no âmbito da dimensão espiritual do ser

humano, descrita por Ales Bello como referente às vivências da reflexão, avaliação,

compreensão, pensamento e decisão (Ales Bello, 2006, p. 39). De acordo com Ales

Bello285, quando a dimensão espiritual se submete à reação psíquica de recusa, ela

encontra justificativas teóricas para afirmar esta recusa. Inserida nesta dinâmica,

compreendemos as vivências de Joana, ou seja, como uma recusa da violência e um

discurso racional espiritual que justifica a ausência da violência, negada nos primeiros

meses de seu percurso no Uruguai.

285
Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro de 2014,
intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aàP“C 1). Conteúdo
retirado das anotações pessoais da pesquisadora.

420
Passado este momento inicial, entramos na vivência relacionada ao dar-se conta

da realidade e à reação que esta consciência causou: o recolhimento. Como vimos, para

Daniel este “dar-se conta”, descrito como a “descoberta do inferno da realidade”,

aconteceu de forma gradual a partir da sua experiência nos projetos sociais, que

alargavam o contato com os moradores para além da comunidade paroquial, permitindo

o acesso à pessoas e realidades menos evidentes, ligadas por exemplo ao tráfico de drogas.

Foi, portanto, um desvelar-se gradual da violência pelo contato com as pessoas, a partir

do projeto.

A tomada de consciência da realidade difícil e complexa que deveriam enfrentar

fez com que Daniel e sua equipe decidissem fazer uma pausa neste serviço, daí o

recolhimento. Houve a reação de medo, mas ela não foi paralisante. Ao contrário, a

consciência dos aspectos desafiadores da realidade levou-os a refletir e a buscar caminhos

para um melhor enfrentamento da situação. Vemos ativada aqui a dimensão espiritual.

Perceberam que eram muito “idealistas” e que “o projeto não poderia funcionar porque

tinha sido pensado por três cabeças francesas”. Diante desta tomada de consciência e

reflexão a respeito do vivido, Daniel e sua equipe recolheram-se por um período e cada

um buscou uma formação diferente e complementar a fim de darem continuidade à missão

de forma mais adaptada à realidade que se desvelara.

No caso de Joana, o dar-se conta da violência ocorreu de forma abrupta, a partir

de um sonho. Joana relatou que viu no sonho cenas familiares, reconhecendo que já as

havia presenciado. Realmente Joana já tinha entrado em contato com a violência, mas a

“cegueira protetora” a havia anestesiado. O fato dela reconhecer as cenas no sonho,

demonstra que aquelas não eram vivências inconscientes, mas sim, vivências para as

quais ela procurava não se voltar. Com o sonho, entretanto, Joana foi colocada frente a

421
frente com estas vivências, que emergiram de uma camada mais profunda do fluxo,

despontando na consciência.

Sobre este aspecto, afirma Stein: “χquilo que passou, mas que ainda vive, se une

no viver com algo que nasce naquele momento, formando as unidades do fluxo” (Stein,

1999, p. 46). Neste sentido, há uma sucessão, mas também uma coexistência de vivências.

Por esta descrição, podemos compreender que as cenas vividas no sonho de Joana diziam

respeito a vivências passadas ainda ativas no fluxo, que surgiram novamente no sonho

como uma presentificação286. Ainda recorrendo à análise de Stein (1999) a respeito do

fluxo de vivências, a autora (Stein, 1999) afirma que a unidade do fluxo é dada pelo eu,

que é uno e que une em si passado, presente e futuro; que “sente sair de si vida nova a

cada momento e leva consigo todo o traço (rastro) do passado” (Stein, 1999, p.49).

No caso de Joana, o dar-se conta da violência pela vivência do sonho, veio

acompanhado de uma forte reação psíquica de medo. O desvelar-se da violência tirou

Joana da anestesia promovida pela “cegueira protetora” e esta realidade a afetou

profundamente. Joana ficou paralisada. Conta que foi invadida por sentimentos de

angustia e medo, e que por algum tempo não conseguia sair de casa. Assim como Daniel,

Joana recolheu-se. Recolheu-se não em busca de uma formação sistemática, mas em

busca de si mesma e da possibilidade de lidar com os conteúdos difíceis da realidade que

se impunha.

Joana recolheu-se. Mas o recolhimento de Joana não foi um fechamento total, pois

ela permaneceu em diálogo com pessoas que intuía que pudessem lhe ajudar. Pessoas

286
Oàte oà p ese tifi aç o à à itadoàpo àEdithà“tei àaoàt ata àdaàdife e çaàe t eà atosào igi ios àeà
oào igi ios .àNosàatosà oào igi iosà o oàaà e o daç o,àpo àe e plo,àoào jetoà e o dadoà oàest à
p ese teàe à a eàeàosso ,à asàseàto aàp ese teàpelaàp ese tifi aç o.àáàp ese tifi aç o,àpo ta to,à o
está ligada ao objeto, mas é própria do ato, no caso, o ato da recordação (Stein, 1998, p. 74).

422
cujo exemplo de vida lhe serviam de alimento espiritual, iluminando sua experiência e

dando sentido ao sofrimento vivido. Tal diálogo se deu justamente pela leitura sobre a

vida de pessoas identificadas por ela como “pessoas que acreditavam no amor”, que

“ajudaram outras pessoas em dificuldade”. Os nomes citados possuem em comum o fato

de serem religiosos franceses ou europeus: Dom Bosco, irmã Emmanuelle do Cairo, padre

Guy Gilbert, Charles de Foucauld, entre outros.

Joana relatou que encontrava semelhanças entre a vida destas pessoas e a sua, e

que com isto começou a “achar forças” para continuar a missão sem medo. Conta que os

livros lhe deram esperança. Podemos compreender esta vivência pela descrição de Stein

a respeito das fontes de força vital. De acordo com a autora (Stein, 1999) nossa força vital

pode ser acrescida a partir do contato com outras pessoas ou com objetos que são fonte

de valor para nós. No caso de Joana, houve uma atração pelos livros que tratavam da

biografia de pessoas que viviam experiências semelhantes a sua e que a ajudaram a

compreender e a se posicionar diante das dificuldades enfrentadas. Sendo assim, os livros

foram uma fonte de força vital para Joana, pois lhe trouxeram novo vigor para continuar

a missão.

Após o período de recolhimento que permitiu Daniel e Joana lidarem com as

vivencias difíceis ligada a violência, ambos retornaram à atividade com uma nova visão

e de um modo novo. Em que sentido? Ao acolher a complexidade da realidade do Uruguai

e as dificuldades enfrentadas no projeto, Daniel buscou recursos de enfrentamento pela

formação de seus colaboradores e pela abertura e escuta da realidade das jovens com as

quais trabalhavam. Estes dois elementos contribuíram para um posicionamento diferente

do inicial, onde ele buscou responder de forma consciente e não mais reativa ao apelo da

realidade.

423
No caso de Joana, o recolhimento e a leitura a fortaleceram e ela encontrou sentido

para sua missão, dando um “sim” pessoal à continuidade da mesma. Este sim é descrito

por Edith Stein como o “fiat” que ela caracteriza como o início de um ato voluntário, de

uma tomada de posição que brota do eu. Trata-se não do ato em si, mas da “passagem de

um propósito à ação” (Stein, 1999, p. 89).

Se no início Joana negava a violência e não tinha tempo para refletir a respeito de

tudo o que vivia, agora ela se coloca de modo bastante consciente e atenta. O discurso

inicial que amenizava os aspectos negativos da realidade é substituído pela afirmação: “-

Eu vi uma pobreza tão profunda como nunca tinha visto”. O novo olhar também diz

respeito à descoberta da presença de Deus na pessoa que sofre. Trata-se de uma

experiência religiosa que trouxe novo sentido ao seu trabalho. De acordo com Ales

Bello287, a vivência religiosa não se coloca ao lado das vivências de outras naturezas como

uma vivência a mais, mas é uma vivência de fundo que dá sentido a todas as outras,

perpassando o dia a dia da pessoa. Joana conta que passou a sentir compaixão pelas

pessoas na rua e a ter vontade de se ajoelhar diante delas.

Além disso, Joana descobriu um modo próprio de lidar com as situações de perigo,

em que ela busca integrar amor e firmeza. Relata: “- No momento do perigo, sinto meu

estômago contrair e digo para mim mesma que nada pode ser pior do que eu já vivi”.

Então, olha a pessoa nos olhos com amor e firmeza. Esta descrição de Joana demonstra a

diferença entre a percepção de si no início e após o processo desencadeado pelo sonho.

Da “cegueira protetora” Joana passa a uma consciência de si e de todas as dimensões de

seu ser, incluindo a percepção do corpo vivido: “sinto meu estômago contrair”. Percebe

287
Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro de 2014,
intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aàP“C 1). Conteúdo
retirado das anotações pessoais da pesquisadora.

424
não apenas a contração involuntária, mas também utiliza o corpo de forma consciente,

colocando-o a serviço de uma decisão espiritual, ou seja, o corpo se torna expressão de

um posicionamento consciente do eu que é o querer demonstrar um olhar firme e amoroso

ao mesmo tempo. Esta vivência ilustra a afirmação de Stein (2000) de que a percepção

do nosso corpo não acontece de fora para dentro, mas pela percepção interior,

concomitantemente com a experiência do próprio eu.

A percepção exterior do próprio corpo não é a ponte para a experiência do próprio

eu. Certamente o corpo é percebido exteriormente, mas esta não é a experiência

fundamental e se funde com a percepção da interioridade, com a qual eu sinto o

corpo vivente e me sinto nele. Isto implica que eu seja consciente do meu eu, não

apenas do meu corpo vivente, mas de todo o eu corpóreo, animado, espiritual

(Stein, 2000, p.69).

De fato, compreendemos o percurso de Joana como uma tomada de consciência

não apenas da violência externa, mas de si mesma. Um percurso em que ela conseguiu

integrar os aspectos sombrios da realidade e encontrar forças para responder com

liberdade e consciência à missão a que se propôs.

Considerações finais

Este trabalho teve início a partir de uma experiência da pesquisadora em campo e

da possibilidade de identificar situações semelhantes a sua nos relatos dos participantes

pela vivência da empatia. A identificação de elementos comuns nos diferentes relatos é

denominada por ψarreira e Ranieri (2013, p.464) “cruzamento intencional” e trata-se de

uma importante etapa da pesquisa fenomenológica. De acordo com os autores, o

cruzamento intencional visa tomar o conjunto dos relatos como variações da experiência

425
vivida a fim de identificar os elementos comuns que determinam o sentido próprio do

fenômeno tematizado; no nosso caso, as vivencias psíquicas face à violência.

Após selecionar e apresentar os trechos dos relatos que colocavam em evidência

a vivência estudada, realizamos uma análise tomando como referência a antropologia

filosófica de Edith Stein, em que ela individua e ao mesmo tempo demonstra a unidade

entre as três dimensões constitutivas do ser humano: corpo, psique (impulsos, tendências,

tensões que involuntários) e espírito (reflexão, avaliação, análise, vontade).

Identificamos nos relatos de Daniel e Joana um movimento comum que

descrevemos em quatro momentos: 1) o ouvir falar sobre a violência do bairro; 2) o

contato direto com o bairro onde prevalece a “cegueira protetora” em relação à violência;

3) o dar-se conta da violência e o recolhimento; 4) a retomada do contato com um novo

olhar e de um modo novo. Pela análise realizada, estes momentos podem ser traduzidos

como um percurso pessoal que parte de um contato indireto com o bairro, ou seja, de uma

primeira aproximação teórica e se desenvolve passando por uma reação psíquica de

recusa da realidade violenta; um desvelar-se desta realidade (gradual no caso de Daniel e

abrupto no caso de Joana); uma fase de distanciamento da realidade e o retorno com uma

nova postura, onde prevalece não mais um “sujeito vítima”, e sim um “sujeito

consciente”.

Por este novo modo de ver e se posicionar diante dos desafios da realidade do

Uruguai, podemos contemplar os movimentos de Joana e Daniel como um percurso

formativo em que eles puderam crescer na consciência de si e da realidade que os

circundava. Encontraram um modo próprio de se relacionar com a violência de forma que

ela não os tomassem completamente impedindo-os de enxergar a beleza do bairro e de

integrar as diversas facetas da realidade. O amor das crianças e a dignidade das meninas

adolescentes motivaram a retomada das atividades de Joana e Daniel, ajudando-os a

426
responder de modo livre e consciente ao apelo pessoal que os havia levado até o Uruguai.

Passaram da reação psíquica à dimensão espiritual onde refletiram, compreenderam,

recuperaram as forças e tomaram a decisão de continuar, agora mais fortes e preparados.

O percurso de Joana e Daniel remete-nos a imagem de uma pessoa em seu

primeiro contato com mar. Atraída pela beleza e pelo movimento que convida à interação,

a pessoa se atira na água sem medo. Sente-se segura e confiante até ser pega desprevenida

por uma onda que lhe dá um grande caldo e lhe leva para areia. Assustada, sai da água

para se recompor. Contempla novamente o mar e o vê não apenas lúdico, mas também

traiçoeiro. Volta a entrar na água, agora com mais atenção e cautela. O mar já não é

desconhecido. Também já não é conhecido apenas pelos livros, mas pela experiência

vivida. Esta experiência trouxe à pessoa um novo olhar e um novo modo de se relacionar.

O percurso de Joana e Daniel ilustram este movimento formativo que acontece

cada vez que nos posicionamos diante da realidade que nos toca.

Referências

Ales Bello, A. (2006). Introdução à fenomenologia. Bauru, SP: Edusc.

χles ψello, χ. (1998). Introduzione. In Stein, E. Il problema dell’empatia (pp. 21-53).

Roma: Edizioni Studium.

Barreira, C. R. A., & Ranieri, L. P. (2013). Aplicação de contribuições de Edith Stein à

sistematização de pesquisa fenomenológica em psicologia: a entrevista como fonte de

acesso às vivências. In Mahfoud, M., & Massimi, M. (orgs.). Edith Stein e a Psicologia:

teoria e pesquisa (pp. 449 - 466). Belo Horizonte: Artesã.

427
Stein, E. (1998). Il problema dell’empatia. Roma: Edizioni Studium.

Stein, E. (1999). Psicologia e scienze dello spirito: contributi per una fondazione

filosofica. Roma: Città Nuova.

Stein, E. (2000). La struttura della persona umana. Roma: Città Nuova.

428
COMUNICAÇÕES ORAIS

429
PLANTÃO PSICOLÓGICO DE GESTANTES HIPERTENSAS ATENDIDAS NO

AMBULATÓRIO DE HIPERTENSÃO ARTERIAL E NEFROPATIAS NA

GESTAÇÃO NA ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE

FEDERAL DE SÃO PAULO - EPM – UNIFESP

Vera Lucia Lotufo Belardi Neto, Jussara Sato &Nelson Sass

Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina – EPM-UNIFESP

E-mails: verabelardi@uol.com.br, jussarasato@yahoo.com, nelsonsa.alp@terra.com.br

O conhecimento sempre busca a verdade, mesmo se

essa verdade, como nas ciências, nunca é permanente, mas

uma veracidade provisória que esperamos trocar por

outras mais acuradas à medida que o conhecimento

progride {...} a verdade é aquilo que somos compelidos a

admitir pela natureza de nossos sentidos ou do nosso

cérebro.

Arendt, H.

Resumo: Este trabalho objetivou discutir como os aspectos psicológicos são vividos na

gestação de risco pelas gestantes hipertensas, a partir da implantação de um serviço de

plantão psicológico no Ambulatório de Hipertensão Arterial e Nefropatias na Gestação

da EPM – UNIFESP. Analisou-se os depoimentos de 19 gestantes hipertensas utilizando

a metodologia qualitativa, fenomenológica, através da entrevista não-diretiva. O texto das

narrativas foi dividido em unidades de significado, possibilitando a construção de uma

430
compreensão psicológica acerca das vivências das pacientes nas suas relações com

familiares, no trabalho, na gestação e educação de filhos.

Palavras-chave: Plantão psicológico em ambulatório; gestantes hipertensas,

fenomenologia, prática psicológica com gestantes.

Abstract - This study aimed to discuss how psychological aspects are experienced in the

risk of pregnancy by hypertensive pregnant women, from the implementation of a

psychological duty service in the Hypertension Clinic and Kidney Diseases in Pregnancy

EPM - UNIFESP. Data were collected from the narrative of 19 hypertensive pregnant

women using a qualitative methodology, phenomenological, through non-directive

interview. The text of the narrative was divided into meaning units, allowing the

construction of a psychological understanding of the experiences of patients in their

relations with family, at work, during pregnancy and parenting,

Keywords: Psychological duty service; hypertensive pregnant women, phenomenology,

psychological practice with pregnant women.

Introdução

Para implantar a prática do plantão psicológico no Ambulatório de Hipertensão

Arterial e Nefropatias na Gestação da EPM - UNIFESP foi necessário buscar subsídios

no conhecimento sobre plantão psicológico, que surgiu pela primeira vez no Brasil na

Universidade de São Paulo, no curso de graduação da Faculdade de Psicologia, em 1969.

No final da década de 70, o Grupo de Psicologia Humanista Fenomenológica e

Existencial constituiu no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e no Sedes

Sapientiae, fundado em 1975, o Aconselhamento Psicológico Centrado no cliente, bem

431
como o “Serviço de χconselhamento Psicológico”, interessados em discutir e aprofundar

o conhecimento na Abordagem Centrada na Pessoa, cujo expoente principal é Carl Rogers

(Rosemberg, RL, 1987). Nessa época a Dra Rosemberg propõe a criação do Plantão

Psicológico inspirado nas walk-in clinics, surgidas nos Estados Unidos, para prestar um

atendimento imediato à comunidade; pois o Instituto de Psicologia da USP já oferecia um

serviço de “plantão” que consistia em um atendimento psicológico regular.

Com o tempo o serviço de plantão psicológico foi se modificando em decorrência

das características das regiões que o implantaram e da especificidade de sua atuação,

passando a agregar outras abordagens teóricas (Nogueira-Martins, 2007).

Mahfoud (1999) diz que o plantão surgiu da necessidade de beneficiar a população

que necessita de ajuda psicológica e nem sempre conta com ela no momento da

emergência dessa necessidade. O plantão psicológico do ponto de vista do profissional

pede uma disponibilidade para se defrontar com o não-planejado e enfrentar a

problemática trazida pela demanda no momento da sua expressão, ou seja, estar

disponível para acolher a experiência do paciente e não o problema. Dessa forma, há a

possibilidade de responder à experiência deste no momento presente do encontro,

permitindo uma clarificação do seu pedido de ajuda, no sentido de facilitar uma visão

mais clara de si mesmo. A sistematicidade do atendimento depende do momento e da

necessidade e oferece a apropriação de escolhas para enfrentar a situação que gerou

sofrimento.

O plantão psicológico é uma técnica que possibilita a realização de uma escuta

eficiente em um curto espaço de tempo, em uma instituição pública com população com

história de hipertensão arterial e doença renal crônica. Esse serviço não pretende substituir

432
a psicoterapia, nem tem a finalidade de triagem, embora ainda que seja possível realizar

encaminhamentos.

Morato (1999) relata que nessa atividade de campo duas atitudes constituem-se

fundamentais: ver e ouvir. Porém, sublinha que essas atitudes não se expressam em juízos,

nem interpretações, mas constitui-se em elementos fundantes de reflexão, visando à

compreensão que se expressa na forma de relatos descritivos da experiência humana.

Há outras universidades brasileiras que oferecem o serviço de plantão psicológico

como a PUCCAMP, UNIP, USU, UFMG e outras, além do Instituto de Psicologia da

Universidade de São Paulo.

O serviço de plantão psicológico no ambulatório de hipertensão arterial

assemelha-se ao plantão clínico na proposta de constituir-se um espaço de esclarecimento

do sofrimento da pessoa que o procura, diante dos conflitos e impasses que se

desenvolvem no decorrer do período de gestação de mulheres hipertensas atendidas nesse

ambulatório específico. Diferencia-se do plantão clínico, na medida em que tem o foco

nos conflitos gerados pela situação de risco enfrentada pelas gestantes hipertensas como

organizadoras de demanda, mas compartilha com aquele a situação de acolhimento e

abertura, que podem resultar em efeitos terapêuticos.

Sass, N. et al. (2006) afirmam que a hipertensão é uma complicação médica

frequente na gestação e uma importante causa de morbidade e mortalidade perinatal.

Diferentemente à hipertensão que antecede a gestação, a hipertensão que surge durante a

gestação apresenta um caráter mais nefasto para essas mulheres.

Oliveira, L. et al. (2006) referem que o aspecto mais relevante na fisiopatologia

da doença hipertensiva específica da gravidez é a pré-eclâmpsia, que pode levar à

433
insuficiência de múltiplos órgãos, tais como alterações cardiocirculatórias, pulmonares,

hematológicas, hepáticas, cerebrais, renais e outras.

Daher, Mattar & Sass (2006) revelam que a pré-eclâmpsia incide em cerca de 5 a

10% das gestações normais caracterizando-se pela tríade, hipertensão, edema e

proteinúria. Ela costuma instalar-se após a 20ª semana de gestação, podendo evoluir para

casos mais graves como eclampsia e síndrome de Hellp.

A pesquisa abaixo descrita refere-se ao atendimento em plantão psicológico, no

período de fevereiro de 2011 a dezembro de 2012, no Departamento de Obstetrícia, na

disciplina de Patologias Obstétricas e Tocurgia, no Ambulatório de Hipertensão Arterial

e Nefropatias na Gestação da EPM – UNIFESP em São Paulo, que constituiu um romper

com limites estabelecidos dos atendimentos tradicionais de consultório, um atendimento

que aceita outros parâmetros para orientar o seu desenvolvimento, estando o psicólogo

pesquisador imerso no ambulatório do hospital São Paulo.

Tivemos autorização do chefe do Ambulatório de Hipertensão Arterial e

Nefropatias na Gestação, Dr. Nelson Sass, para fazer a pesquisa com essas pacientes, ele

é médico obstetra e também autor deste artigo.

Objetivo

Identificar e discutir como os aspectos psicológicos são vividos durante a gestação de

risco pelas gestantes hipertensas atendidas no Ambulatório de Hipertensão Arterial e

Nefropatias na Gestação da EPM – UNIFESP.

Compreender a prática de atendimento em plantão psicológico, que já vem sendo feita

há quatro anos, como mais uma opção de prática hospitalar e ambulatorial.

434
Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que os resultados são apresentados de

forma descritiva e não numérica. É uma pesquisa que depende do rigor da intuição e

habilidade do pesquisador para manusear técnicas e recursos para tratar o fenômeno, pois

não há hipóteses formuladas, nem existem critérios absolutos na coleta de dados.

A fenomenologia só é acessível a um método fenomenológico. Não é uma teoria

psicológica e sim uma filosofia cujo método de conhecimento está preocupado em

investigar o ser e os modos desse ser expressar a sua verdade. A perspectiva em que se

coloca a fenomenologia está em aceitar que a verdade é relativa e tem caráter provisório

e mutável. A insegurança que emerge dessa questão é própria do existir.

O método fenomenológico utilizado em psicologia consiste num processo

específico para abordar a consciência e a experiência humana imediata. Pode ser definido

como um tipo de observação sistemática e de descrição da experiência de um indivíduo

consciente, numa dada situação (Cury, 1987, p. 43).

Utilizou-se a entrevista aberta. Inicialmente as gestantes hipertensas participaram

de um grupo de mães, esses grupos acontecem todas as terças-feiras, das 9hs às 10hs. As

gestantes são orientadas sobre a doença hipertensiva na gestação e aquelas que necessitam

de um atendimento individual são convidadas a participar, espontaneamente, do

atendimento em plantão. Foram atendidas, no plantão psicológico, 19 gestantes

hipertensas que, espontaneamente procuraram o atendimento com a psicóloga com

exceção de uma que foi encaminhada pela assistente social. O número de atendimentos

individuais às gestantes variou de 2 a 7 atendimentos conforme solicitação da demanda.

Os relatos foram transcritos pela psicóloga logo após os encontros. Esse

procedimento apresenta alguns problemas pelo fato de não ser possível transcrevê-los

435
literalmente. Optamos por não gravar as entrevistas, devido ao receio da população sobre

a possibilidade de quebra de sigilo. Todas as gestantes assinaram o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido. Tomamos o cuidado de mudar os nomes verdadeiros

das pacientes para nomes fictícios.

A escolha dos relatos priorizou a qualidade e não a quantidade, e pensou-se em

tomar alguns critérios, abrindo mão da “neutralidade de escolha”. Das 19 mulheres

pesquisadas escolheu-se três relatos cujas gestantes retornaram ao atendimento entre 3 e

5 vezes. Foram utilizados como critério para escolha dos relatos, os relativos aos aspectos

psicológicos vividos pelas gestantes hipertensas que apresentavam ansiedade decorrente

da hipertensão além de outros conflitos na área psicológica.

Análise e interpretação dos encontros

1) Primeiro relato clínico:

A história do primeiro relato trata de uma gestante hipertensa, engenheira

agrônoma, nome fictício Lara, de 38 anos, compareceu ao Ambulatório na 10ª semana de

gestação do quarto filho. Na primeira gravidez teve aborto espontâneo com 11 semanas

de gestação, na segunda gravidez teve a segunda filha que tem atualmente quatro anos de

idade. Perdeu o terceiro filho devido a um “surto psiquiátrico do marido que foi

diagnosticado com transtorno bipolar” (sic). Segundo informação da paciente perdeu

esse “terceiro bebê” e a partir daí desenvolveu “depressão reativa”. Afirma que teve

dois afastamentos do trabalho por causa da depressão e foi medicada com fluoxetina.

Como ficou grávida pela quarta vez, sem que desejasse, precisou parar de tomar a

medicação (fluoxetina) e a médica receitou “Passiflorine”. Queixou-se de sentir “muita

436
irritação com a filha” e não ter “paciência” com ela. Outra preocupação apresentada era

com a hipertensão arterial, pois conhecia os riscos de pré-eclâmpsia.

A escuta e o acolhimento que teve no Plantão propiciou refletir sobre a situação a

qual estava passando, nas perdas dos bebês anteriores e na falta de apoio do marido, que

apresentou surto psiquiátrico, no momento em que ela precisava de uma figura forte ao

seu lado. Além disso, tinha conhecimento de que a ansiedade e preocupação com a

hipertensão arterial na gravidez eram fatores de risco para a gestante. E, por fim, a

clarificação das responsabilidades ao assumir sozinha a criação da filha de quatro anos,

que exigia atenção constante. De forma que a paciente sentia uma sobrecarga psíquica,

que afetava a compreensão do momento vivido. Tivemos cinco encontros durante o pré-

natal, além do apoio psicológico foi feito trabalho de relaxamento e respiração.

A cada encontro era perguntado como estava se sentindo, e, ela dizia que se sentia

melhor e que sabia que podia tirar suas dúvidas e dividir suas ansiedades no plantão

psicológico. Afirmou: “...é bom a gente poder tirar as dúvidas e falar com alguém que

explica as coisas para gente” (sic). Orientamos também que buscasse ajuda com algum

familiar ou parente próximo que pudesse apoia-la nesse momento mais frágil e auxiliasse

com o futuro bebê.

2) Segundo relato clínico:

O segundo relato Suelen, evangélica, funcionária de uma concessionária de

automóveis, 44 anos, desde os quinze apresentava hipertensão arterial crônica. Teve cinco

abortos e fez tratamento antes de engravidar por sete anos antes do primeiro filho, que

naquele momento estava com 20 anos. Após esta gestação não tomou nenhum

contraceptivo, nem fez qualquer planejamento familiar. Engravidou e veio para o

atendimento no pré-natal, quando estava na 12ª semana de gestação. Procurou o plantão,

437
pois estava angustiada porque há um mês o filho mais velho foi preso. Ele envolveu-se

com colegas vizinhos do bairro onde mora, que fizeram um assalto. Deu carona

(“ingenuamente”) para os colegas, que foram abordados pela polícia que fez o flagrante.

A mãe afirmava que o filho era inocente, que trabalhava na mesma concessionária de

automóveis que ela e tinha bons antecedentes, “sempre foi trabalhador, nunca me deu

problemas” (sic). Suelen visitava o filho na prisão junto com o marido toda semana e

somando-se a isso, passavam por crise financeira e dificuldades “para pagar um bom

advogado” (sic). Preocupava-se com a saúde do rapaz e sua condição física na prisão.

Durante os atendimentos (cinco) no plantão demonstrou ansiedade e preocupação com

este filho, que parecia ser o foco de sua atenção. O jovem acabou sendo condenado a seis

anos e meio de prisão em regime fechado. Ela sentia que o filho preso estava sendo

injustiçado, pois “não tinha cometido crime algum” (sic). Sentia-se culpada e impotente

por não conseguir provar a inocência do filho. Outra preocupação apresentada pela

gestante era com a idade avançada para engravidar. Essa gravidez não era esperada, “veio

sem a gente planejar e eu já sou de idade para engravidar.....tenho pressão alta” (sic).

Pedia para ser atendida pela psicóloga todas as vezes que vinha para a consulta do pré-

natal. Refletimos a experiência vivida de sofrimento e oferecemos uma abertura para

questionar sua realidade e a necessidade de procurar ajuda para o filho, sem esquecer o

bebê que estava para nascer e tomar os devidos cuidados para controlar a pressão arterial.

Acompanhamos o pré-natal, todos os exames solicitados, inclusive os quatro ultrassons

feitos, que mostravam que o bebê estava bem. O plantão mostrou-se um lugar de escuta

atenciosa e reflexão procurando aliviar o sofrimento e o sentimento de culpa da família,

mostrando a necessidade de abrir um espaço psíquico para o novo bebê que ia nascer.

3) Terceiro relato clínico:

438
O terceiro relato narra a história de Helena, 27 anos, trabalhava em empresa de

ônibus, grávida de 35 semanas de gestação do segundo filho. O primeiro filho tem sete

anos, e, é filho do primeiro casamento da paciente. Separada há três anos do ex-marido,

ele bebia e ameaçava espancá-la. Procurou o plantão psicológico com queixa de muito

medo de problemas de parto e má-formação do bebê. Conta que aos treze anos ela e a

irmã mais velha sofreram abuso sexual do padrasto. A mãe pediu que a irmã fosse morar

com uma tia. Tinha muito medo de contar à mãe que ela também sofrera abuso, e, que a

mãe poderia não acreditar, além do medo de sofrer represálias do padrasto. Nesta época

a genitora de Helena descobriu que estava com a Doença de Chagas ao mesmo tempo em

que engravidou do marido (padrasto). A partir daí a paciente decidiu não contar para a

mãe do abuso que sofrera do padrasto e, ao mesmo tempo, a descoberta da pressão arterial

elevada. Quando engravidou desse bebê (do segundo marido), começou a apresentar

pesadelos e medo de morrer. Fisicamente examinada pelos médicos, a pressão estava

controlada com medicação e não apresentava outros problemas de saúde. Apoiada pelo

plantão, refletimos sobre sua história de vida e ela concluiu que sua gravidez a fazia

lembrar-se da época da descoberta da doença de Chagas e da descoberta da gravidez da

mãe. Percebeu que ‘associava sua gravidez à gravidez da mãe e ao abuso sexual sofrido

pelo padrasto’. Conscientizou-se do sentimento de culpa e de hostilidade que sentia em

relação à mãe e da culpa que tinha por sua irmã ter saído de casa e ela não. Até aquela

data nenhuma das três, paciente, irmã e mãe tinham conversado sobre o ocorrido.

Tivemos três encontros no plantão e a paciente referiu que começava a compreender os

pesadelos e o medo de morrer e relatou que procurou a irmã para conversar.

Resultados

439
O plantão psicológico mostrou-se um espaço de cuidado para um momento de

urgência, de reflexão sobre o modo de ver e compreender o mundo, possibilitando a

criação de novos sentidos. Além disso, propiciou à pessoa uma abertura de si mesma e

orientação para novas escolhas na vida com os outros, filhos e marido.

Tabela 1. O plantão psicológico em número (total dos atendimentos).

Demanda Nº de pessoas Nº de retornos porcentagens

1-Ansiedade devido a hipertensão 8 30 42,10%

arterial na gestação

2- Depressão devido a problemas 1 5 5,26%

anteriores à gestação

3- Depressão devido à gestação 1 3 5,26%

4- Dificuldades sexuais 1 2 5,26%

5-Abuso sexual na adolescência 1 6 5,26%

(padrasto)

6-Abandono pelo companheiro 2 8 10,52%

7- Conflitos Familiares 3 15,78%

8- Má-formação fetal 1 2 5,26%

9- Comportamento de risco 1 3 5,26%

Total 19 100%

440
Tivemos por objetivo identificar e discutir como os aspectos psicológicos são

vividos durante a gestação de risco pelas gestantes hipertensas atendidas no ambulatório

de hipertensão arterial da Unifesp e destacar o plantão psicológico como mais uma opção

de prática ambulatorial em hospitais.

O primeiro relato traz a história de Lara que viveu perdas gestacionais anteriores

impactantes para ela. Faz uma associação da perda do terceiro filho com o desencadear

de um surto psiquiátrico no marido e nela depressão, tendo que ser medicada com

fluoxetina. A gravidez do quarto filho, não desejada, o luto pelas perdas anteriores, o surto

do marido, tornaram-na frágil e com pouca disponibilidade psíquica para cuidar da filha

de quatro anos. A solidão sentida estava sendo vivida como absoluta e seria preciso a

experiência do encontro com alguém para dividir suas angústias e sofrimentos (Safra,

2006). Além do atendimento em plantão foi feito um trabalho de apoio com exercícios de

relaxamento, respiração e orientação sobre a doença hipertensiva na gravidez.

No segundo relato, Suelen uma mulher mais velha, traz uma gravidez indesejada

com maiores riscos na gestação, agravada pela hipertensão arterial crônica. Adicionando-

se a isso o fato de que o filho mais velho é preso, vítima de uma “cilada dos amigos”.

Suelen vive a experiência de agonia impensável, ou seja, uma aflição sem fim, vivida do

ponto de vista temporal e espacial. Na agonia impensável há um estancamento, pois

ocorre uma experiência sem devir ou construção de sentido (Safra, 2006, p. 93). Na visão

de Suelen as desconfianças nas Instituições que deveriam proteger os cidadãos, a gravidez

não planejada, a idade avançada (44 anos) e a dor de imaginar o sofrimento do filho preso,

levaram-na a uma paralização e falta de perspectiva de futuro. De forma que o

acolhimento no plantão ajudou-a compartilhar seu sofrimento e dividir sua dor.

No terceiro relato, Helena solicita atendimento no plantão com queixa de

pesadelos e medo de morrer. Relata um primeiro casamento desfeito por agressões e

441
ameaças físicas do ex-marido. Durante a entrevista conta do abuso-sexual sofrido por ela

e a irmã mais velha pelo padrasto. A mãe que deveria ser uma figura de proteção e

confiança não a protege, nem a ela, nem a irmã. Agravado pelo fato da notícia da doença

de Chagas da mãe e pela gravidez do padrasto, ela perde a coragem de contar para a mãe

o abuso a que foi submetida. Sente-se culpada pela saída da irmã de casa. Conscientizou-

se de que os pesadelos e o medo de morrer resultavam da hostilidade que sentia da mãe

por não ter defendido as filhas e culpada pelo “abandono” da irmã e pelo abuso sofrido

pelo padrasto.

Em suma, no primeiro relato observamos que os lutos não elaborados pelas perdas

em gestações anteriores e conflitos na situação conjugal fragilizaram lhe o ego, a ponto

de desenvolver uma depressão. Sem ter plena consciência desses conflitos engravida

novamente do quarto filho com agravante de apresentar hipertensão arterial na gravidez.

O segundo relato traz a história de uma mulher com vida conjugal estável e um casamento

de vinte anos. De repente sua vida é “sacudida” por uma gravidez não planejada, com 44

anos de idade e hipertensão arterial, somado ao fato do filho mais velho ser preso

“injustamente”. E por fim, o terceiro relato narra a história de Helena, separada do

primeiro marido há três anos. A separação ocorreu por agressões psíquicas e ameaças

físicas desse marido. Narra também o abuso sexual sofrido por ela e a irmã mais velha

pelo padrasto quando ainda era adolescente. Casada pela segunda vez e grávida do

segundo filho chega ao Ambulatório com queixa de pesadelos e medo da morte. Através

de sua narrativa e do acolhimento que sentiu no plantão psicológico pode perceber as

hostilidades que sentia em relação à mãe, que não a protegeu e sentimentos de culpa em

relação à irmã.

Além da ansiedade com a hipertensão arterial na gestação o plantão psicológico

oportunizou o revelar de conflitos conjugais, familiares, elaboração de lutos anteriores a

442
atual gestação, abuso sexual na adolescência e a busca de novas perspectivas de vida

frente ao nascimento do futuro bebê.

Considerações finais

As reflexões aqui apresentadas não pretenderam esgotar como as gestantes

hipertensas vivem a condição de gravidez. Alguns aspectos foram desvelados, outros

permanecem ocultos e as perspectivas sobre a hipertensão na gestação podem ser vistas

sob outro ângulo.

Tivemos por objetivo identificar e discutir como os aspectos psicológicos são

vividos durante a gestação de risco pelas gestantes hipertensas atendidas no ambulatório

de hipertensão arterial da Unifesp e destacar o plantão psicológico como mais uma opção

de prática ambulatorial em hospitais.

O apoio e acolhimento psicológico dado pelo plantão psicológico, no Ambulatório

de Hipertensão Arterial e Nefropatias na Gravidez oportunizou às pacientes a

possibilidade de lidar com suas experiências ontológicas e favoreceu através de suas

narrativas a clarificação e consciência ao revelar aspectos fundamentais da condição

humana. Lembrando o autor:

O sofrimento decorrente da biografia de uma pessoa revela aspectos

fundamentais, ontológicos, de sua condição humana. O sofrimento é a

esperança! A apropriação desse saber, proporcionada pelo encontro com o

Outro, lhe permite que seu gesto re-posicione as questões fundamentais

sobre o destino humano, recriando o sentido de sua existência. (Safra,

2006, p.30).

443
O plantão psicológico destacou-se como mais uma opção de prática no

atendimento ambulatorial em hospitais e apoio às gestantes de alto risco.

Essa pesquisa buscou, como princípio, a produção de um conhecimento científico

baseado na ética e na busca de proporcionar melhores condições na qualidade de vida e

no cuidado de si pelas gestantes hipertensas atendidas nesse ambulatório de Hipertensão

Arterial e Nefropatias na Gestação. Procurou contribuir para somar-se a outros estudos

que abordam a gestação em hipertensas e outras patologias, oferecendo apoio às mulheres

e suas famílias.

Referências

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Safra, G. (2006). A Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo

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445
EDITH STEIN LÊ HANS ULRICH GUMBRECHT: UMA ANÁLISE DO

SÉCULO XX

Danilo Souza Ferreira288

Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

E-mail: danilosf1901@hotmail.com

Resumo: O artigo busca analisar a contribuição da filosofa, carmelita e mártir do nazismo

Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz) para a definição sobre o papel intelectual,

presente em sua comunicação O Intelecto e os Intelectuais escrito em 1930, sendo a

própria autora um exemplo desta definição como podemos analisar através da sua

biografia, que foi demonstrado por João Paulo II: “A fé e a razão são como duas asas que

elevam á contemplação da verdade”.

Palavras-Chave: intelectualidade feminina; biografia; correspondência; intelectual;

fenomenologia.

Abstract: The paper analyzes the contribution of the philosopher, Carmelite and martyr

of Nazism, Edith Stein (St. Teresa Benedicta of the Cross) for the definition of the

intellectual role, present in her communication Intellect and Intellectuals written in 1930,

with the author herself being an example of this definition, as we can see in her biography,

which was demonstrated by John Paul II: "Faith and reason are like two wings that lift to

the contemplation of the truth."

Keyword: Edith Stein; feminine intellect; biography; correspondence; Intellect;

phenomenology.

288
Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP .

446
A pós-modernidade e o conceito de Observador de Segunda Ordem

O século XX pode ser definido como um período de grandes traumas, entre eles

as grandes guerras mundiais, os fascismos em geral, a Guerra Fria, os movimentos de

descolonização, sendo esta a experiência que provocou a necessidade de se responder à

pergunta de Alice A.R.Eckahrdt: “Como se pode falar daquilo que é indizível ? ” E, ainda

segundo Hayden White, esta experiência apresenta um peso ético extraordinário, o qual

provoca a necessidade de ser lembrada, e, ao mesmo tempo, apresenta aos historiadores

em geral a dificuldade para tematizá-la, para descrevê-la . Este momento de crise permitiu

uma nova forma de experimentar e se relacionar com o tempo e com o mundo,

compreendidas por Hans Ulrich Gumbrecht a partir da noção de “observador de segunda

ordem”. No texto “Cascatas de Modernidade”, o teórico da literatura e historiador alemão

apresenta a hipótese de que durante a modernidade, o homem viu a si mesmo como o

reverencial da produção do saber, sendo uma conseqüência desta experiência, o

sentimento de que o sujeito é estranho ao mundo que o cerca, sendo necessário ao homem

observar o mundo e ao mesmo tempo se perceber como agente neste mesmo mundo. A

descrição desta experiência de tempo é denominada por Hans Gumbrech como

observador de segunda ordem.

Pretendo, neste texto, investigar o pensamento de Edith Stein a partir da hipótese

de que suas reflexões se desenvolvem no interior deste regime epistemológico que é o da

“observação de segunda ordem”, e isto porque a autora teve o cuidado de evidenciar sua

própria experiência no interior do século XX como condição de possibilidade de suas

reflexões sobre a história e sobre o ensino. Esta filósofa, convertida ao cristianismo,

participou da I Guerra Mundial como membro da Cruz Vermelha, tendo recebido a

medalha da coragem por sua dedicação e seriedade no trabalho de enfermagem. Foi

também personagem ativa durante a Segunda Guerra contra o movimento nazista,

447
chegando mesmo a escrever uma carta ao papa Pio XI a fim de denunciar esta ideologia.

Já monja carmelita descalça foi perseguida e morta em 9 de junho de 1942, em Auschwitz,

aliás, como definiu o papa João Paulo II na encíclica de 1 de maio de 1985, “Edith Stein

que traz em sua vida uma síntese dramática de nosso século”.

A relação entre Edith Stein e o conhecimento histórico

Ezequiel García Rojo ao descrever a importância de Edith Stein para o século XX

, apresenta como tese central o que legitimou a sua posição ao presente foi segundo as

palavras do autor do El Siglo XX a la luz de Edith Stein :

(…) sino tambiem porque Ella misma se identifico com El discurrir de los eventos

habidos em El (...) Buena parte de La história alemana Del siglo XX puede

seguirse a partir de los relatos autobiográficos steinianos ; eso si , es La história

vivida desde dentro por una alemana , y que no siempre aparece em los libros

oficiales .”289(ROJO,1991, p.1)

A biografia de Edith Stein permite ao pesquisador múltiplas abordagens no qual

poderíamos destacar o papel da mulher, filósofa, teóloga, carmelita e intelectual, judia e

alemã. Infelizmente este artigo assim como a compreensão de uma biografia uma forma

de análise não consegue descrever a totalidade, de uma experiência vivida como nos

define Pierre Bourdieu:

A vida experimentada (vivida) não é a mesma que a vida escrita da biografia e da

autobiografia. Esse ato narrativo seria, na visão do autor uma ilusão retórica ,como

demonstra o romance moderno , o real é descontinuo ,contém elementos fora de

289
ROJO, Ezequiel Garcia. El Siglo XX a luz de Edith Stein, 1991. P. 1.

448
razão e fora de propósito, é imprevisto e cheio de razões justapostas.(BOURDIEU,

1996, p. 185).

Ezequiel García Rojo em seu estudo EL siglo XX A LA LUZ DE EDITH

STEINsendo este texto apresentado no Simpósio Internacional-Edith Stein em

comemoração ao primeiro centenário da filosofa carmelita em 1991, buscava analisar a

figura steniana como uma mulher que possui um espírito para descrever e aprender o real.

Este espírito é caracterizado pelo autor, por sua habilidade de descrever aquilo que

observa as pessoas e as situações, tentando de maneira simples em sua autobiografia

Estrellas Amarilas e em suas cartas, não apenas descrever os espaços em que

experimentava a vida, mas também, as relações políticos e sociais que estavam inseridas

nestes espaços.

Neste sentido, podemos perceber que ao buscar esta verdade como dita

anteriormente, é a meta da jovem Edith Stein, em 28 de abril de 1911, inicia a sua carreira

acadêmica em Breslau, onde se matricula nos cursos de germanística, história,

propedêutica filosófica e Psicologia.

Na Universidade, onde esta autora se reencontrava com uma maior compreensão

do mundo, e pela primeira vez uma possibilidade de diálogo que possibilita a maior

reflexão de sua verdade interior, o que ela descreverá como o momento mais feliz de sua

vida.

No campo da história, Edith Stein teve como professor o historiador Max Lehann

na universidade de Gottingen, onde este apresentava a sua turma uma visão positivista,

de Ranke a quem o professor se considerava herdeiro, o estudo das Grandes conquistas

políticas européias, sobre este conhecimento a autora descreve: “χ este amor por La

história no era en mi un simple sumergirme romântico em El passado. Iba unido

449
estrechamente a uma participação apaixonada em los sucessos políticos Del presente,

como história que se está haciendo”.

Esta comunicação tem como objetivo, apresentar a filósofa Carmelita Edith Stein

através do conceito fenomenológico de “experiência de vida290” apresentado por Hans

Ulrich Gumbrech, reconstituir a conferência: O Intelecto e os Intelectuais escrita em 1930

por Edith Stein, e através desta reconstituição, descrever o papel do intelectual e como

esta categoria social se manifesta sobre o real destacando a dimensão ética deste grupo e

em um terceiro momento apresentar como a filosofa carmelita, descreve através da

experiência religiosa através de uma analise para se vivenciar a crise do século XX.

Para a reconstrução desta conferência, buscaremos analisar as correspondências

transcritas na obra Estrelas Amarillas291, escritas por Edith Stein a Emil Vierneisel e

através delas, pensar os motivos da conferência não como um pensamento isolado, mas

que nasce de uma busca em pensar o presente da própria autora e como Edith Stein se

relaciona com a sociedade que a cerca, do que a própria Stein chamará de “χ busca pela

verdade” 292.

Esta relação entre o intelectual e a sua reflexão sobre o presente e intimamente

ligada com a realidade ou a apreensão sobre o real que o cerca durante os eventos

traumáticos do século XX no qual podemos destacar os eventos da primeira e segunda

guerra os movimentos de descolonização entre outros acontecimentos o que motivou

segundo Hans Ulrich Gumbrech uma nova forma do homem se relacionar com o tempo

isto é com o mundo que o cerca.

290
GUMBRECHT, Has Ul i h.àDepoisàdeà Depoisàdeàap e de à àaàhist ia ,àoà ueàfaze à o àoàpasadoà
agora?. p. 33.
291
STEIN, Edith Estrellas Amarillas. 2 edição. Madri: Editorial de Espiritualidad, 1992.
292
TERUEL, Pedro Jesús. El camino de Edith Stein. Universidad Católica de Murcia, 2006.

450
Tal movimento denominado no texto “Cascatas de modernidade” como a

necessidade de homem de observar o mundo e ao mesmo tempo percebesse como agente

neste mesmo mundo, a descrição desta experiência de tempo, e denominada por Hans

Gumbrech como observador de segunda ordem. 293

Esta compreensão de pensar as questões relacionadas ao seu presente possibilitara

a filosofa da fenomenologia uma maior reflexão que se atuará não apenas no âmbito

intelectual mais também no campo social, como podemos citar como exemplo uma carta

escrita por Edith Stein em 12 de dezembro de 1919 em Breslau.

Carta em que Edith Stein, escreve para Korand Haenisch ministro de Ciência, arte

e Educação, onde este e questionado sobre a justificativa apresentada para a doutora

Emmy Noether, doutora em Matemática pela Universidade de Gotingan, em que esta não

pode assumir o posto de professora catedrática do departamento histórico filosófico por

ser mulher e não apresentar precedentes.

Como resposta de Edith para esta situação tem: “La senora em cueston estaria ‘por

encima de La media de los professores ordinários’; de ahi que El caso no podriá servir de

precedente.” Stein, Edith carta 89.

A resposta a este questionamento ocorreu em 21 de fevereiro de 1920, quando o

ministro respondia através de uma carta , que compartilhava do mesmo ponto de vista da

filosofa no qual o pertencimento do sexo feminino não poderia ser visto como

impedimento para assumir uma cátedra, e se propôs a corrigir a injustiça cometida contra

a doutora Emmy Noether.

GUMBRECHT, Has Ulrich. Cascatas de Modernidade. p. 12.


293

451
Roman Ingarden escreveu que Edith Stein, nunca tinha escrito uma só palavra que

não acreditasse este ato de crer se torna uma importante chave para entender a trajetória

religiosa em Edith Stein o que o filósofo D’artagnande χlmeidaψarcelos294 em seu texto

Algumas contribuições de Edith Stein para uma justa Hermenêutica do Humano, nos

apresenta como uma conseqüência de sua razão rigorosa sendo esta aprendida com

Edmund Hurssel sendo a fenomenologia descrita pela autora de sua pátria filosófica na

obra Ser finito e Ser Eterno e de uma fé radical e lúcida temperada por uma mística

profunda.

Apesar de uma aproximação com o catolicismo o ano em que ocorreu a sua

decisão de pedir o batismo foi descrita por Elisabetth de Miribel em seu livro Edith Stein:

No dia primeiro de janeiro do ano do senhor de 1922, foi batizada Edith Stein,

doutora em filosofia, com a idade de trinta anos. Nascida em Breslau, em 12 de

outubro de 1891, filha de Siegfried Stein e Augusta Courant, converteu-se do

judaísmo (à Igreja) depois de instrução e preparação convenientes. Recebeu os

nomes de Teresa, Hedwige. Sua madrinha foi à senhora Hedwige Corand (de

solteira Martius), domiciliada em Bergzabern. 295

A partir do primeiro dia Edith Stein descrevera a sua vivencia espiritual para

primeiro satisfazer o seu desejo por encontrar a verdade e poder significar a sua

experiência e através desta analise dialogar com o próximo e mesmo se deixar ser afetado

por ele como o seu estudo sobre a empatia onde pretende compreender o outro.

294
Bá‘CELO“,à D á tag a à deà ál eida.à áLGUMá“à CONT‘IBUIÇÕE“à DEà EDITHà “TEINà Pá‘áà UMáà JU“Táà
HERMENÊUTICA DO HUMANO, 2011.
295
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição. Aparecida, SP: Santuário,
2006. P. 67.

452
Para confirmar esta hipótese analisaremos a conferencia feita a pedido do

catedrático da universidade de Heidelberg Emil Vierneisel, que pediu para Edith

Stein,através de uma carta escrita no dia 30 de setembro de 1930, que ela ministrasse uma

palestra , sendo que Stein propõe como tema de sua palestra o Intelecto e os intelectuais

onde pretendia demonstrar a importância do papel dos intelectual com a sociedade , tendo

como modelo principal São Tomas de Aquino, sendo esta realizada em 02 de dezembro

de 1930 na universidade Heidelberg .

No dia 2 de dezembro ocorreu a conferência na Universidade de Heidelberg,

porque como dito anteriormente Edith Stein deve outras conferências internacionais como

“Sobre as idéias da formação” que apresentou em 18 de outubro em Speyer e em 8 de

Novembro, em Bendorf onde esta discorreu sobre a conferencia “Fundamentos da

formação da mulher”.

Paz! Muito estimado Senhor Doutor Vierneisel:

Muito me alegro de que santo Tomás há despertado tanta satisfação para

você.Regressamos muito contentes para casa, e depois de meia hora

desembarcamos diante da porta do convento. Obrigada de coração, também a sua

querida esposa, por seus amáveis cuidados.

Pode disser, por favor, ao professor Lossen que falei com a Madre do internado e

que esta disposta a cumprir seu desejo, se bem esta Páscoa dificilmente será

possível? A resposta definitiva ocorrera quando falarei com a reverenda Madre,

que em estes momentos esta em viagem (Stein, 1930, p 885-886)296

296
Pax !Muy estimado senordoctorVierneisel :Mucho me alegro de que santo Tomás haya despertado
tanta satisfacción em usted. Regresamosmuy contentas a casa, y depués de media hora desembarcamos
delante de La puerta Del convento. Gracias, de corazón, también a su querida esposa, por todas
amabilidades y cuidados? Quieresdecirle, por favor, al professor Lossen que hehablado com laPrefectadel
internado y que está dispuesta a cumplirsudeseo, si bien esta Pascuadifícilmente será posible? La respueta

453
Infelizmente o manuscrito original da conferência não foi conservado apenas uma

folha com o índice, como nos aponta a biógrafa Elizabeth de Miribel em seu trabalho

sobre Edith Stein. A maioria das cartas escritas pela filósofa carmelita foram destruídas

devido a um processo de apagamento da memória, sendo decorrente do medo por parte

daqueles que conviveram com Edith, da perseguição anti-semita:“χs poucas cartas que

restaram – conhecemos algumas graças a irmã Aldegonde, Beneditina, e a senhora

Biberstein – deixam transparecer uma humanidade tão rica, uma inteligência tão rara que

essa destruição tornou-se ainda mais lastimável.”297

Fazendo uma análise do índice desta conferência podemos perceber que a maior

preocupação de Edith Stein não é o papel do intelectual, mas sim o ser humano, tal como

pode ser vista em toda a sua obra, por exemplo, em Sobre o Problema da Empatia, no

qual a preocupação de Stein é a relação do indivíduo com o outro e como este é afetado

através do diálogo, tese defendida em 1916, e A Pesquisa sobre o Estado escrita em 1925

onde a preocupação de Stein é sobre como os seres humanos são afetados em seu diálogo

com o outro:

A tendência para a pessoa se justifica objetivamente e é valiosa porque, de fato, a

pessoa está acima de todos os valores objetivos. Toda verdade precisa ser

reconhecida. Toda verdade precisa ser reconhecida por pessoas, toda beleza

precisa ser vista e avaliada por pessoas, Nesse sentido, todos os valores objetivos

estão ai para as pessoas. Atrás de tudo o que há de valioso no mundo está a pessoa

do criador que, como protótipo, encerra em si todos os valores imagináveis e os

excede. Entre as criaturas, o mais elevado é aquele que foi criado á sua imagem

definitiva La dará cuandohayahablado com La reverenda Madre, que em estos momentos está de
viaje.(STEIN ,1930,p 885-886).
297
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição. Aparecida, SP: Santuário,
2006. P. 27.

454
exatamente na personalidade, ou seja, no âmbito de nossa experiência – o ser

humano. Edith Stein. (Kusano, 2009, p7).

Edith Stein possui uma grande reflexão sobre o seu tempo, vendo o presente como

uma experiência que possibilita uma visão histórica. Através de uma análise do seu tempo

é que a pesquisadora define a importância ética de sua obra o intelecto e os intelectuais,

onde esta começa com um alerta sobre o papel dos intelectuais quando estes se vêem

enquanto guias.

Para ela, a visão do intelectual enquanto guia é preocupante porque fere a

liberdade dos indivíduos que vivem nesta sociedade. Em geral este líder não se sente

afetado pelo outro porque se considera maior que a sociedade, portanto o líder intelectual

não se deixa afetar pelo mesmo, que afeta os homens de vontade, pois não vivencia os

seus reais problemas, sendo o campo do intelectual apenas uma vivência dos problemas

no âmbito Teórico.

Sob tal perspectiva Edith Stein faz uma crítica contundente aos próprios lideres

dos regimes socialistas, como nos aponta o próprio texto da conferência:

Isso explica a influência dos lideres Socialistas que “vieram de baixo”. χquele

que, com mãos suaves e bem cuidadas, com movimentos ligeiros e flexíveis, se

revela como alguém que não conhece o trabalho corporal duro, aquele que fala ao

povo na linguagem fluida e correta dos “cultos” e sobrevoa despreocupado sobre

as duras realidades da luta diária pela vida, e de antemão suspeito. (Stein, 1930, p

11)

Para a autora o que definiria o papel de guia seriam os homens de vontade e ação,

que, apesar de eles não serem intelectuais, porque as suas inquietações não apresentam

455
um caráter apenas teórico, mas sim a sua aplicabilidade no mundo material, conseguiriam

administrar com mais clareza a sociedade.

Em contraposição aos homens de vontade Edith Stein nos apresenta os homens,

cuja maior preocupação não é o campo material, mas sim o campo teórico: os intelectuais.

Edith Stein utiliza o conceito Tomista de revelação para o qual o conhecimento

está presente através da ação da graça divina e por isso deve ser revelado ao homem, para

definir a classe dos intelectuais: “Um setor de seres-humanos sente-se chamado ao

esclarecimento e ao enriquecimento intelectual.” (STEIN, 1930, p 7).

Stein nos esclarece que existem diferentes tipos te intelectuais, como o intelecto

agens, sendo estes aqueles que, por dom da graça, criam invenções para um maior auxílio

da comunidade; outros tipos de intelectual são aqueles traduzem as idéias e reflexões

feitas pelo que Edith Stein denomina como espíritos sintéticos, para maior compreensão

das idéias destes pensadores.

Ao apresentar os modelos de intelectuais, a filósofa carmelita apresenta com maior

destaque dois tipos de pensadores que trabalham de maneira diferente daqueles descritos

anteriormente, os quais vivenciam a inteligência natural, estes possuem uma maior

sensibilidade.

Esta maior sensibilidade é denominada por Stein de Intellectus possibilis. Os

intelectuais aos qual este conhecimento se torna revelado são o Místico e o Profeta,

porque têm acesso as emoções, as quais aqueles que possuem a inteligência natural não

conseguem desvelar, tais como os mistérios de fé, os acontecimentos futuros e o estado

íntimo das almas.

456
O papel da Comunidade na obra O Intelecto e os Intelectuais por Edith Stein

Como podemos perceber pelos modelos de intelectuais apresentados pela filósofa

carmelita, todos estes apresentam como objetivo de maior formação e vivência o serviço

à pessoa humana, como um artesão, com suas reflexões sobre o real, devem ajudar na

construção da comunidade:

Devemos ter claro que essa atitude nos aparta da grande massa. Fora da

universidade, luta-se contra as necessidades da vida em suas inúmeras formas.

Basta sairmos das nossas atividades reflexivas para nos depararmos com elas,

nelas nos encontramos situados entre pessoas a quem devemos ajuda. Portanto,

não devemos nos sentir como seres estranhos que vivem em um mundo inacessível

a eles. (Stein, 1930, p. 11).

Edith Stein percebe que o serviço ao outro é a missão dos intelectuais, mas

também para entendermos o sentido de comunidade, devemos pensar no serviço ao outro.

A escolha que Stein faz para representar a comunidade, o deixar-se afetar pelo outro,

próprio de seu projeto filosófico, e por ela mencionado em duas representações. A

primeira uma fabula escrita por Menênio Agripa298, chamada Os membros e do estômago,

no qual os membros se negaram a trabalhar para o estomago é este se debilitou e a segunda

representação do filósofo grego Platão apresentado na obra Politéia onde é apresentado

o sistema de organização do organismo social.

Nas duas representações, a sociedade é vista como hierarquizada, mas cada grupo

depende da organização das outras classes; o que Stein propõe é uma analise não apenas

superficial, mas sim uma análise da essência desta sociedade, na qual cada ser humano

298
MenênioAgripa ( AgrippaMeneniusLanatus ) cônsul Romano , morto em 493 a.C.

457
possui a mesma capacidade, mas a utiliza de maneira diferente o que justifica a sua

posição social, como demonstrado pela autora:

Toda sociedade, da mais reduzida, a família, à mais ampla, a humanidade inteira,

é de fato um organismo, no qual os membros e os órgãos formam os indivíduos e

os grupos nos quais estes indivíduos estão inseridos. As forças fundamentais da

alma e do corpo são as mesmas em todos os seres humanos, mas encontram-se

dispostas e desenvolvidas em diferentes proporções. Ao grau de disposições e ao

nível de desenvolvimento delas corresponde a posição do individuo e a do grupo

nos conjuntos. (Stein, 1930, p 1).

299
As três dimensões do ser humano (corpo, alma e espírito) , que para a filósofa

carmelita constituem o ser humano, estão também presentes na conferência O Intelecto e

os Intelectuais , quando , ao estudar a pessoa humana, ela nos define como um

microcosmo no qual ela demonstra que somos formados primeiramente por uma

dimensão física, pela qual nos permitimos ações e processos mecânicos, uma dimensão

espiritual, que forma o ser humano e que nos permite a experiência com o sagrado, esta

terceira dimensão era a sensibilidade que nos permite ser afetado pelo outro e onde se

manifesta a inteligência e a vontade.

A inteligência e a vontade permitem que sejamos a auxiliados por aquilo que nos

é revelado: o outro, a partir do momento em que somos afetados por ele e, por outro lado,

com o nosso trabalho podemos auxiliá-lo em suas angústias e sofrimentos.

299
KUSANO, Marina Bar. A Antropologia de Edith Stein: Entre Deus e a Filosofia. 2009.

458
Para Edith Stein o intelectual, não pode ser visto como guia mais sim como um

artesão que com as suas reflexões sobre o real, deve ajudar na construção de uma

sociedade. Sendo que para tanto de reconhecer os seus limites como definiu a autora:

Devemos ter claro que essa atitude nos aparta da grande massa. Fora da

universidade, luta-se contra as necessidades da vida em suas inúmeras formas.

Basta sairmos das nossas atividades reflexivas para nos depararmos com elas,

nelas, nos encontramos situados entre pessoas a quem devemos ajuda. Portanto,

não devemos nos sentir como seres estranhos que vivem em um mundo inacessível

a eles (...). Vê que o intelecto humano não pode desvelar as verdades supremas e

últimas e que nas questões mais essenciais,portando, na configuração prática da

vida, um homem simples com uma luz de origem superior pode superar o maior

sábio (Stein,1930, pg. 11)

Referências

ψχRCELOS, D’χrtagnan de χlmeida. χLGUMχS CONTRIψUIÇÕES DE EDITH

STEIN PARA UMA JUSTA HERMENÊUTICA DO HUMANO, 2011.

FELDMANN, Christian, Edith Stein: Judia, filósofa y Carmelita.Barcelona : Heder , 1988

GUMBRECHT, Has Ulrich. Cascatas de Modernidade. Modernização dos

Sentidos,1988.

GUMψRECHT, Has Ulrich. Depois de “Depois de aprender cm a história”, o que fazer

com o pasado agora?, 2000.

KUSSANO, Mariana. A Antropologia de Edith Stein : Entre Deus e a filosofia. PUC-SP

2009.

MALERBA, Jurandir. A História Escrita: teoria e história da historiografia.2006.

459
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição.

Aparecida, SP: Santuário, 2006.

STEIN, Edith. Estrellas Amarillas.2ª edição. Madri: Editorial de Espiritualidad, 1992.

STEIN, Edith. Ser finito y ser eterno: Ensayo de una ascensión al sentido del ser. México:

Fondo de Cultura Econômica, 1995.

STEIN, Edith. Obras Completas (espanhol). Conferências (1926-1933) Burgos: Monte

Carmelo, 2003.

TERUEL, Pedro Jesús. El camino de Edith Stein. Universidad Católica de Murcia, 2006.

http://www.everyoneweb.es/WA/DataFilesholocaust/EdithSteinBriefPiusXI.pdf

460
A PESSOA ESPIRITUAL E SUA CONSCIÊNCIA MORAL

Marcos Vinicius da Costa Meireles300

Universidade Federal de Juiz de Fora

E-mail: mfilo09@gmail.com

Resumo: Este artigo se propõe a discutir a manifestação da pessoa profunda-espiritual

do ser humano na consciência moral tendo como aporte teórico Viktor Frankl. O vienense

concebe a pessoa como integralidade articulada, passando a vê-la como ser bio-psico-

espiritual. Esta última dimensão, também chamada de noética, agrupa as outras duas e se

manifesta através delas, como é o caso da consciência moral (Gewissen). Referida

dimensão do ser humano, que se encontra em parte imersa no inconsciente, tem a tarefa

de trazer pela antecipação a pessoa profunda-espiritual. Noutro termos, a dimensão

espiritual busca não o ser que é, mas um ser que ainda não é, ou que deveria ser. Ela busca

as possibilidades de realização de uma pessoa autêntica e ética. Tal manifestação é

essencial no pensamento frankliano, pois a vida questiona a cada um sobre o seu sentido,

portanto, é necessária uma resposta pessoal, que se concretiza com o desvelamento dos

sentidos escondidos nas situações. O ser humano não é onisciente ao ponto de saber todas

as verdades, muito menos portador de poder para fazer tudo que lhe apraz. Por outro lado,

é capacitado pela consciência moral a se lançar singularmente na busca das verdades que

lhe conferem sentido. Por essa razão, a consciência dirige-se para algo pessoal,

apresentando um “deveria-ser” individual. Não é um ditame abarcado pela “lei geral” que

a consciência provê, mas uma prescrição da “lei individual”. É o que Frankl define como

um “instinto ético” que se contraporá à razão prática. Desta forma, viver uma vida

300
Mestrando no departamento de Ciência da Religião

461
conscienciosa é, de fato, estar intimamente ligado, ainda que inconscientemente, à

espiritualidade.

Palavras-chave: consciência moral; dimensão espiritual; pessoa profunda-espiritual;

Viktor Frankl.

THE SPIRITUAL PERSON AND YOUR MORAL CONSCIENTIOUS

Abstract: This article proposes to discuss the manifestation of deep-spiritual person the

human being into moral consciousness having as the theoretical Viktor Frankl. The

Viennese sees the person as a articulated integrity, going see her as being bio-psycho-

spiritual. This last dimension, also called noetical, the other two groups together and

manifests itself through them, as in the case of the moral conscience (Gewissen). Such

dimension the human being into, which is immersed into the unconscious part, has the

task of bringing the anticipation of deep-spiritual person. In another terms, the spiritual

dimension search not the be which is, but a being who is not yet, or should that be. She

seeks the chances of achieving a genuine and ethical person. Such a manifestation is

essential in frankliano thought, for life to each one question about your meaning, therefore

a personal answer, which is concretized with the unveiling of the hidden meanings in the

situations is required. The human being is not omniscient to the point of knowing all

truths, much less the bearer of power to do everything he pleases. On the other hand, is

trained pela moral consciousness to throw the singularly search of truths that give it

meaning . For this reason, consciousness heads off to something personal, with a "should-

be" individual. It is not a dictate encompassed by the "general law" that provides

consciousness, but a prescription of "personal law". It is what Frankl defines as a "moral

instinct" that contrasting practical reason. In this way, live a conscientious life is, in fact,

be closely linked, albeit unconsciously, to spirituality.

462
Keywords: moral consciousness; spiritual dimension; seep-spiritual person; Viktor

Frankl.

Introdução

A presente comunicação, que trata sobre a manifestação espiritual na consciência

moral, baseia-se na obra A presença ignorada de Deus de Viktor Frankl. Este nasceu em

26 de março de 1905, em Viena, e faleceu em 1997. Estudou medicina na Universidade

de Viena e se especializou nas áreas de neurologia e psiquiatria. Também lecionou em

Viena, posteriormente. Mais tarde, também foi docente na Universidade Internacional da

Califórnia, Harvard, Stanford, Dallas e Pittsburgh. Filho de uma família judia, em 1942,

foi deportado, com sua esposa e pais para os campos de concentração. Em 1944, Frankl

vai para Auschwitz e somente em 1945 é libertado do holocausto pelo exército norte-

americano, porém sua esposa, pais e irmãos morreram nos campos de concentração.

Foi psiquiatra e neurologista, fundador da Terceira Escola Vienense de

Psicoterapia, a Logoterapia301, tem uma abordagem considerada fenomenológica,

existencialista, humanista e teísta (Coelho Junior & Mahfoud, 2001), buscando

compreender a existência através dos fenômenos especificamente humanos, identificados

a partir da dimensão noética ou dimensão espiritual, que no seu dinamismo próprio,

estimula a uma vivência própria de si. Noutro termos, seu empenho filosófico se

caracteriza, pelo esforço de compilar e transmitir uma visão mais digna e integral do ser

humano com todas as suas dimensões. O ser humano passa a ser concebido como pessoa

que transcende o nível psicofísico e puramente imanente e alça voo para a dimensão

301
A logoterapia ou terceira via de psicoterapia de Viena busca uma análise existencial, e por sua vez, uma
abordagem antropológica centrada no princípio motivacional da vontade de sentido. É um método
te ap uti oàespe ífi oàpa aàoàt ata e toàdoà azioàe iste ial àeàdasàneuroses noogênicas.

463
espiritual, encontrando na sua dimensão existencial, que é profunda e autêntica, o seu

próprio ser singular.

O inconsciente espiritual frankliano

A teoria essencial do pensamento frankliano é de que a necessidade mais

elementar do ser humano pelo sentido da vida. Sentido este, que tem caráter motivacional

para lançar o ser humano em uma busca que o torne singular. Para Frankl, os sentidos

estão presentes nas situações concretas e cotidianas da vida. O ser humano está colocado

diante delas e deve decidir pessoalmente sobre eles. Tal decisão implica num modo

próprio de escolha, não é escolher o que os outros escolhem - conformismo, ou o que

outros mandam escolher - autoritarismo, mas sim uma escolha de caráter singular, pois o

sentido é único e exclusivo a cada pessoa, sendo ela capaz de desvelar o sentido oculto

em cada situação, ou seja, suas características muito pessoais, em maior ou menor grau,

revelam grande capacidade de perscrutar sentido profundo nas mais variadas situações.

A concepção antropológica no pensamento de Frankl é que há uma unidade em

meio a uma realidade tridimensional, o ser humano é concebido como bio-psico-

espiritual. Tais realidades presentes no ser humano podem ser compreendidas em esfera

da facticidade, onde estão presentes o corpo e a psique, e esfera da existência, sendo a

primazia da dimensão espiritual. Para desvelar os sentidos ocultos nas situações, o ser

humano deve estar em sintonia com sua dimensão espiritual. Esta dimensão de

característica inconsciente é considerada a dimensão distintiva do ser humano por conter

as possibilidades de uma existência e por motivar a concretude de tais possibilidades. O

espiritual não é o lugar de um ser que é, mas de um ser que não é, ou seja, é o lugar de

um ser que deveria ser. É o lugar da realização.

464
Ao conceber o conceito de inconsciente espiritual, Viktor Frankl está superando

uma tradição vigente no século XX, advinda de um avanço científico que preconiza a

pessoa dentro dos moldes positivistas e materialistas, sendo esta concebida impulsionada

e determinada pelo seu aparelho psíquico. Tal visão objetiva, tira da pessoa seus aspectos

subjetivos. Com isso a integralidade antropológica é reduzida a uma operação corpo-

mente, cuja realidade inconsciente é pertencente aos instintos e repressões, sendo a pessoa

justificada pela sua realidade material.

A análise existencial de Frankl apresenta um novo conceito de ser humano. O

inconsciente espiritual é ampliado, pois não é lugar apenas de uma instintividade e

repressões, mas da essência302. “Em lugar do automatismo do aparelho psíquico,

preconiza a autonomia da existência espiritual” (Frankl, 1997, p.15). Com isto, o

inconsciente não é apenas o lugar de uma profundeza instintiva, mas de uma real

profundeza: a espiritual. A análise existencial ressalta uma característica que a filosofia

contemporânea utiliza e que ocupa um lugar de destaque na logoterapia: a existência, cuja

essência mais profunda é a de ser responsável. A ampliação do inconsciente destaca no

ser humano a sua singularidade e autonomia de decidir sobre si e sobre as coisas, “é daí

que brotam as inspirações artísticas, a religiosidade, as crenças e as intuições que

possibilitam o livre arbítrio” (Fabry, 1984, p. 51).

Ser responsável é responder à pergunta que a vida lhe faz sobre a existência e que

carece ser com sentido. O ser humano responde, pois não é ele que inquire sobre o sentido

da vida, mas é o próprio interrogado e quem deve responder. Resposta esta que não tem

característica retórica, mas de concretude. O ser humano através dos atos responde sobre

o sentido. Com isso, ressalta-se a singularidade, sendo que o sentido é diverso em

possibilidades, mas único a cada pessoa, apenas ela própria pode assumir uma atitude

302
Entendido como condição de possibilidade, fundamento de possibilitação.

465
perante algo ou alguém. As respostas são as atitudes dadas, isto é, a responsabilidade

assumida no aqui e agora de cada situação.

Nessa constituição de ser bio-psico-espiritual, a pessoa tem o psicofísico, mas não

tem a si, ele é si mesmo. O psicofísico é parte de sua constituição, mas não de sua

determinação; o que define o ser humano como pessoa é uma vivência calcada na

espiritualidade que primeiramente é inconsciente. “χ verdadeira ‘pessoa profunda’, ou

seja, o espiritual-existencial em sua dimensão profunda, é sempre inconsciente. Isto

significa que a ‘pessoa profunda’ não é apenas facultativamente, mas obrigatoriamente,

inconsciente” (Frankl, 1997, p. 32).

No hiato ontológico entre a facticidade e a existência, o corpo e a psique

isoladamente não são capazes de auxiliar na escolha das atitudes a serem assumidas, pois

possuem relação com o fato e não com a existência propriamente. Isso faz com que se

possa concluir que as atitudes responsáveis brotam do espiritual, pois a verdadeira pessoa,

a profunda-espiritual, não é apenas a que decide, mas ser pessoa significa também

necessariamente ser indivíduo.

Como tal, porém, está sempre centrado, centrado em torno do meio, em torno de

seu próprio centro. O que, porém, se encontra neste centro? O que preenche este

meio? Lembremo-nos daquela definição de Max Scheler sobre a pessoa: ele a

compreende como detentora, mas também como “centro”, de atos espirituais.

Sendo, porém, a pessoa aquela da qual se originam os atos espirituais, ela também

constitui o centro espiritual em torno da qual se agrupa o psicofísico (Frankl, 1997,

p. 20).

Tal centro por ser uma realidade de possibilidades e que ainda não se concretizou

é uma ‘realidade de execução’, pois só pode ser adimplida como resposta às necessidades

da vida, sendo também irracional por sua característica inconsciente e pré-lógica, pois só

466
posteriormente a intendemos. Tal realidade de execução manifesta-se através da

consciência e da responsabilidade. Duas realidades ontológicas que se apresentam como

fenômenos primários por serem próprias da pessoa-espiritual em uma vivência

existencial. Realidades que sempre estiveram contidas no ser humano, mas que

necessitam de uma escolha em assumi-las.

O ser humano tem a tarefa de desvelar o sentido presente nas situações, pois a

necessidade de sentido é a mais elementar das necessidades e a consciência tem a

capacidade de “farejar” no aqui e agora de cada momento este significado específico. χ

consciência tem a tarefa de formular ao indivíduo a possibilidade de realizar

concretamente em cada situação os valores (Peter, 2005).

Sentido só precisa, mas também pode ser encontrado, e na busca pelo mesmo é a

consciência que orienta a pessoa. Em síntese a consciência é um órgão de sentido.

Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o sentido único

e exclusivo oculto em cada situação (Frankl, 1997, p. 68).

Para Frankl, a consciência possui duas realidades: em nível ôntico é a

consciência303 em sua realidade como “órgão de sentido”, e anterior a esta realidade,

como fenômeno primário, em nível ontológico está a que procuramos perscrutar, a

consciência moral304. Não é a consideração de duas consciências, mas uma única com

realidades distintas, pois a consciência nasce da dimensão existencial e apenas em parte

é consciente.

Na verdade, também aquilo que chamamos de consciência se estende até uma

rofundidade inconsciente, isto é, tem suas origens num fundo inconsciente:

justamente as grandes e autênticas (existencialmente autênticas) decisões na

303
Bewusstsein – E àale oàsig ifi aà o he i e toàdoà ueàseàpassaàe à s .à Notaàdeà odap àp ese teà
em Frankl, 1997, p.23).
304
Gewissen – Em alemão sig ifi aàaà fa uldadeàdeàesta ele e àjulga e tosàdosàatosà o aisà ealizados .à
(Nota de rodapé presente em Frankl, 1997, p.23).

467
existência humana ocorrem sempre de maneira irrefletida e, portanto inconsciente.

Na sua origem, a consciência está imersa no inconsciente (Frankl, 1997, p. 26).

Resumindo: podemos inferir que no núcleo central da pessoa, a dimensão

espiritual, se encontra o projeto de um ser individual. Por meio de sua consciência

existencial, a moral, lhe é antecipado um ser que deveria ser, ou seja, a possibilidade de

concretude deste ser moral. Aqui é necessário realçar a distinção entre pessoa espiritual e

pessoa profunda-espiritual. A primeira é a realidade de alguém que busca na concretude

a vivência da dimensão espiritual, podendo ser consciente ou inconsciente; é o projeto já

antecipado pela consciência moral.

A segunda realidade a qual nos referimos, a profunda-espiritual, constitui a

verdadeira pessoa; ela é necessariamente inconsciente por conter o projeto de

individualidade, é o núcleo de onde brotam as condições de se elevar acima dos

condicionamentos e tornar-se si mesmo. Tratemos agora da consciência moral,

instrumento do qual o ser humano é dotado e que antecipa intuitivamente o projeto

contido neste núcleo pessoal, possibilitando uma vivencia espiritual pela pessoa.

A consciência moral

No processo de construção da pessoa em conformidade com seu modo de ser mais

próprio, sua pessoa-profunda-espiritual, a consciência desempenha papel essencial. Esta

atua na existência mostrando as possibilidades de realização e auxiliando para que tais

escolhas sejam realizadas. Em sua dupla realidade, a consciência é consciente e

inconsciente, ôntica e ontológica, possuindo funções distintas, o que acontece em vista da

integralidade da pessoa em seu processo de tornar-se si mesmo.

A consciência (Bewusstsein) torna-se acessível um ser que é (Seindes), a

consciência moral (Gewessin), ao contrário, não um ser que é, mas ser que ainda

468
não é, ou seja, um ser que deveria ser (Sein-sollendes). Este ser que deveria ser

não é, portanto, real, mas algo que ainda precisa tornar-se real; não é real, mas

meramente possível (embora, num sentido mais elevado, esta simples

possibilidade representa novamente uma necessidade) (Frankl, 1997, p. 27).

A vivência existencial, partindo de uma simples possibilidade que o espiritual

indica à uma necessidade de realização para que a vida seja vivida com sentido, é

concebida na perspectiva de Frankl, dentro de uma dinâmica dos fenômenos primários. É

o dinamismo entre ser-responsável e ser-consciencioso. Tais realidades são inerentes,

pois o ser humano é incondicionalmente um ser que decide e cuja força de decisão

encontra-se enraizada na sua profundeza espiritual, lugar do ser possível.

O ser-que-deveria-ser encontra-se em uma inconsciência, não podendo

acontecer se primeiramente não for antecipado pelo espiritual, que é inconsciente por

conter um projeto, a possibilidade do existir, que pode se tornar real pela atitude assumida,

mas que anteriormente lhe é antecipada pela consciência moral. Tal antecipação no

pensamento de Frankl recebe o nome de intuição. É considerada a própria voz da

transcendência. A consciência moral possui, portanto, uma função essencialmente

intuitiva de apresentar um ser possível que se tornará a necessidade de um ser real.

A autêntica consciência, a que Frankl apresenta, não é a que se herda dos pais, da

religião ou da sociedade em que se está engajado. Esse fenômeno especificamente

humano deve ser levado a sério. É necessário “ouvir” a consciência, se se deseja

uma autenticidade na vida. É necessário estar atento aos apontamentos que a

consciência fornece perante as situações. “Responder à voz” da consciência é uma

atitude de não passividade perante os apontamentos que ela fornece, é tomar

atitudes perante as situações, é confiar na intuição, para que possa se realizar a

pessoa profunda-espiritual (Meireles, 2011, p. 34).

469
É por estar imersa no espiritual que tal consciência apresenta-se como a voz da

profundeza que diz à singularidade. Como num ato de visão, a consciência percebe na

realidade em que a pessoa está inserida o sentido existencial que necessita ser desvelado

e assumido. Neste sentido, a consciência ética (ethos) é primeiramente irracional, e só

posteriormente racionalizável.

Ao procurar exemplificar o processo de intuição da consciência moral, Frankl

apresenta um fenômeno análogo, o amor. O eros é igualmente irracional e intuitivo, pois

percebe um ser que não é, mas que poderia ser onde com isso se descobre valores na

pessoa que se ama. “Somente o amor, somente ele, é capaz de ver a pessoa na sua

singularidade, como indivíduo absoluto que é. Neste sentido, o amor possui importante

função cognitiva” (Frankl, 1997, p. 29).

A moral se efetiva sempre de um modo concreto em um ser que se encontra diante

de uma situação a qual o impele a antecipar intuitivamente o ser-que-deveria-ser

percebido pela consciência moral como um ser possível, o qual anseia sua

realização numa posterioridade (Moreira; Abre & Oliveira, 2006, p. 631).

Neste sentido, a consciência moral com característica essencialmente intuitiva é

considerada por Frankl como irracional, por não ser completamente racionalizável em sua

realidade de execução, da mesma forma que todo chamado exame de consciência só é

concebível a posteriori. Também é pré-logica por ser ontologicamente uma pré-

compreensão do ser e pré-moral por ser anterior a qualquer moral explícita, sendo a

consciência moral, portanto, inescrutável e apenas exequível. Destarte, a moral não é algo

externo ao ser humano, mas intrínseco a ele, sendo a consciência moral responsável por

intuir este modo de ser, estando ela inserida nesta realidade inconsciente.

A vivência espiritual

470
A consciência Gewessin conduz o ser humano a uma vivência existencialmente

moral. Tal vivência surge por meio da antecipação espiritual da pessoa profunda-

espiritual como expressão de possibilidade, que ao confrontar-se com as situações se

transforma em necessidade de realização. A atitude essencialmente humana é a livre e

responsável escolha. O ser humano é livre para trabalhar a favor ou contra suas intuições

espirituais. Experimentar a realização concedida pela dimensão espiritual é entrar em uma

compreensão pré-moral dos valores humanos, anterior à conduta e ao ato moral que será

experienciado.

A moral não é uma exigência externa que ressoa sobre o homem e o constitui

como um ser moral, mas exatamente o oposto: uma exigência proveniente de sua

interioridade espiritual orientada para fora, para além de sua existência, para uma

experiência que o transcende, pois o humano é a busca de sentido que se faz no

enlaçamento com o outro. (Frankl, 1978, p. 32).

A vivência segundo a consciência moral está assentada em uma existência

espiritual, que segundo Frankl, levando-a as últimas consequências, culminará com o que

ele define como transcendência da consciência. Esta não tem uma voz que diz na

singularidade, ela é a própria voz da transcendência. “Somente o caráter transcendente da

consciência faz com que possamos compreender o homem, e especialmente sua

responsabilidade num sentido mais profundo” (Frankl, 1997, p. 41).

Segundo Frankl, a voz da transcendência que é a consciência moral, não provém do ser

humano, pois a consciência como um fato psicológico imanente remete por si mesma a

uma transcendência. Não se sabe a origem desta instância extra-humana a qual a

consciência moral se dirige, mas é possível afirmar que é de caráter pessoal levando cada

pessoa a uma reprodução ou imagem fiel de si.

471
É justamente tarefa da consciência revelar ao ser humano “aquele único

necessário”, o que é sempre algo exclusivo. Trata-se daquela possibilidade única

e exclusiva de uma pessoa concreta numa situação concreta, possibilidade à qual

Max Scheler quis se referir com o conceito de ‘valores de situação’. Refere-se,

portanto, a algo absolutamente individual, a um ‘deveria ser’ individual que não

pode ser abarcado por nenhuma ‘lei geral’ (Frankl, 1997, p. 27).

Assim sendo, a moralidade sempre se manifesta sobre a face de uma escolha a

qual Frankl (1992) diz ter origem no inconsciente. A moral está entretecida a uma

profundeza espiritual e se expressa como resposta – atitude diante das situações. É uma

moral que não deve ser entendida no molde pragmático kantiano, pois como já dito, não

é um conhecimento a priori e nem uma moral com pretensão universal. Ao contrário de

uma lei universal que rege em caráter genérico e esquemático como nos animais, por meio

do seu instinto vital, o ser humano é guiado por um instinto ético, cuja eficácia deste é

garantida por dirigir o ser humano na singularidade que lhe é própria e concreta.

Assim uma vida a partir da consciência é sempre uma vida absolutamente pessoal

dirigida a uma situação absolutamente concreta, àquilo que possa importar em

nossa existência única e individual: a consciência considera sempre o “aqui” (Da)

concreto do meu ser (Sein) pessoal. (Frankl, 1997, p. 28).

O ser humano para Frankl não é um ser condicionado pela cultura, sociedade ou

pelo seu aparelho psíquico, ao contrário, é um ser incondicionado e por isso é um ser

ético, pois suas atitudes não estão pautadas em obrigações externas, mas em uma

necessidade que lhe é interna. A transcendência faz parte da constituição do ser pessoa e

desta forma o ser humano está sempre se orientando para qualquer coisa diversa dele

próprio, seja um sentido que se possa realizar, seja outro ser humano que venha a

472
encontrar e amar, seja ainda uma causa à qual se consagre ou, finalmente, um Totalmente

Outro em quem possa crer.

A manifestação da pessoa profunda-espiritual na consciência moral tem por

princípio dirigir a conduta humana à finalidade de encontrar a satisfação do ser humano,

sendo esta, não um fim em si mesmo, mas orientada à vivência alteritária, pois “o homem

realiza-se não se preocupando com o realizar-se, mas esquecendo-se de si mesmo e

dando-se, descuidando-se de si e concretamente seus pensamentos para além de si”

(Frankl, 2005, p. 29).

Conclusão

Assim se percebe que a consciência moral, ou melhor, a voz da transcendência,

fala ao ser humano em vista de realizar uma vivência singular no mundo. Na sua função

essencialmente intuitiva, a consciência tem a tarefa de desvelar ao ser humano aquele

“único necessário”. Ela conduz a uma transformação do meramente possível a uma

necessidade de tornar-se concreto. É expressão do interior que plasma o exterior. Desta

forma, uma vivência moral é uma vivência espiritual, não um impulso determinista da

atividade psíquica, mas uma intencionalidade da existência humana.

A dimensão distintiva do ser humano aponta para uma direção que ultrapassa o

existir pessoal em vista de uma alteridade. Não sendo um ditame genérico o que a

consciência provê, mas uma prescrição da lei individual. Logo, a moral não é algo externo

ao ser humano, mas intrínseco a ele, mais ainda, é uma capacidade que lhe possibilita

tornar-se autêntico.

A autotranscedência é uma capacidade ontológica do ser humano que ressalta a

sua busca por sentido, ultrapassando os limites psíquicos e biológicos em direção à

existência. Ao aceitar as intuições, o ser humano pode elaborar com sua consciência um

473
diálogo, podendo atribuir a este diálogo uma característica de experiência religiosa. Não

procuramos desenvolver este ponto nesta comunicação, mas fazemos questão de apontar

uma abordagem deísta no pensamento de Frankl.

Resta concluir que a dimensão existencial-espiritual está em todos. Depende do

ser humano perceber, aceitar e viver essa dimensão, como uma manifestação espontânea,

que faz no amor ou na dor, a consciência encontrar novas formas de ser, criar e conviver

livre e respeitosamente. Essa força espiritual leva-o a enfrentar os problemas da

existência, descobrindo um para que viver enquanto a vida pulsa.

Referências

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São Paulo: ECE.

FRANKL, V. E. (1978) Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro:

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65642001000200006&lng=pt&nrm=iso>.

474
MEIRELES, M. V. C. (2011) A existência autêntica: uma busca na dimensão espiritual

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MOREIRA, J. O; ABREU, A. K. C & OLIVEIRA, M. C. O. (2006) Moralidade e

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Maringá, v. 11, n. 3, p. 633 (627-635), (set./dez.).

PETER, R. (2005) Viktor Frankl: A antropologia como terapia. 2. ed. São Paulo: Paulus.

475
EMOÇÃO EM CONTEXTO DA PSICOTERAPIA FENOMENOLÓGICA

EXISTENCIAL

José Tomás Ossa Acharán, SPPE, IFEN

Daniel Sousa, SPPE, ISPA

E-mail: joseto.ossa@gmail.com

Resumo: Este estudo teve como objetivo fazer uma reflexão sobre as emoções em

contexto psicoterapêutico. Começando por uma breve compreensão histórica, para logo

passar ao entendimento das emoções nas ciências naturais e diferentes modelos teóricos

de compreensão psicológica. Neste ponto foram encontradas grandes semelhanças na

forma de entender como funcionam as emoções nos distintos modelos científicos. A partir

daqui, foi trabalhado com maior minúcia a visão fenomenológica existencial das emoções

em contexto psicoterapêutico. Este modelo ligado tanto a psicologia como a filosofia

compreende as emoções como sendo um fenómeno em que nos relacionamos de forma

específica com o mundo, influenciando a nossa forma de estar com nos próprios e com

os outros, as escolhas que tomamos e as sensações corporais que sentimos em

determinado momento. Além disso, foi explorada a ideia da intencionalidade dos atos da

consciência, entendendo-se como sendo o fato de que cada emoção possui um significado

e a pertinência de perceber este significado em contexto psicoterapêutico.

Palavras-chave: psicoterapia; fenomenologia existencial; psicologia; emoção.

EMOTION IN EXISTENTIAL PHENOMENOLOGICAL PSYCHOTHERAPY

CONTEXT

476
Abstract:This study aimed to make a reflection on the emotions in psychotherapeutic

context. It starts with a brief historical understanding, and then move to the understanding

of emotions in the natural sciences and different theoretical models of psychological

understanding. At this point we found strong similarities in the way of how emotions are

understood in different models. From here, it was studied with more detail´s the

existential phenomenological view of emotions in psychotherapeutic context. This model

encompasses the emotions as a phenomenon in which we relate specifically to the world,

influencing our way of being with ourselves and others, the choices we make and the

bodily sensations that we feel at any time. Moreover, it explored the idea of intentionality

of acts of consciousness, understood as being the fact that every emotion has a meaning

and the relevance to perceive this meaning in psychotherapy context.

Keywords: psychotherapy; existential phenomenology; psychology; emotion.

Introdução

Nos últimos anos, podemos apreciar um aumento na quantidade de estudos feitos

sobre as emoções em diferentes disciplinas. Isto está acontecendo em certas áreas da

psicologia, tais como a psicologia cognitiva, com o seu principal autor sendo Greenberg

e a psicologia fenomenológica existencial, com Strasser e Ratcliffe que têm produzido

bastante bibliografia neste tema. Nas neurociências podemos destacar Damásio que vem

explorando o funcionamento das emoções no cérebro, como no corpo em geral, desde já

há alguns anos. Devido a esta diversidade de abordagens que estudam a mesma temática,

recentemente têm surgido discussões para definir a natureza e o papel das emoções, a

relação entre emoção e expressão, as variâncias culturais da emoção, a estrutura narrativa

da emoção e como as emoções diferem de outros tipos de estados mentais, tais como

estado de humor e sentimento. Neste sentido, o objetivo deste estudo será apresentar

477
diferentes autores que têm investido na compreensão das emoções nos seus respetivos

modelos e abordagens teóricas, para assim chegar a uma visão global da temática.

Por outra parte, em psicoterapias a exploração das emoções foi inicialmente exposta

por Frank (1963) no texto sobre a persuasão e cura. Desde então, ficou claro para muitos

psicoterapeutas e psicólogos dedicados a teoria que o sistema afetivo é fundamental tanto

para a compreensão, como para a mudança da experiência e comportamento humano. De

fato, a exploração das emoções e a reorganização delas tem aumentado na reorganização

teórica, como sendo fulcral para a mudança terapêutica em várias modelos terapêuticos

(Greenberg, 2003, p.1). Vai ser no contexto psicoterapêutico, e com base no modelo

fenomenológico existencial, que será explorado de forma mais exaustiva a função das

emoções em psicoterapias. Uma questão central nos trabalhos filosóficos e científicos

contemporâneos é como as emoções se relacionam com sentimentos corporais. Ratcliffe

(2008, p.1) diz que hoje em dia assume-se que as experiências de estados corporais são

distintas de experiências de coisas fora do corpo. Em contraste, a maioria das emoções

são estados intencionais que não têm o corpo como sendo seu objeto primário. Desta

forma, este estudo procurará explicar os temas até agora apresentados, tentando ser o mais

claro e conciso, para assim levantar dúvidas e discussões sobre esta rica e pertinente

temática relacionada às psicoterapias.

Base histórica do entendimento da emoção

Aristóteles foi um dos primeiros a questionar o porquê, e de onde vêm as emoções.

Na metáfora expressada no master and slave da teoria aristotélica, ele refere que as

emoções são primitivas e desprovidas de inteligência, expressões humanas bestiais.

Prossegue explicando que a sabedoria e a razão devem, portanto, estar firmemente no

controlo e os impulsos perigosos devem ser suprimidos. Esta noção de emoções perigosas

478
tem tido uma influência resistente na civilização ocidental (Strasser, 2005, p.23). Durante

a idade média, a filosofia cristã estava preocupada com a noção de pecado causada pelas

emoções. David Hume foi um dos primeiros filósofos a confrontar o lugar inferior das

emoções, ao dizer “a razão está longe de ser escrava da paixão”, em última instância, até

ele voltou ao modelo Aristotélico do master and slave (Solomon, 1993, p.3). Mais tarde,

surge o nascimento da ciência afetiva com Charles Darwin (1998) no século XIX, na obra

intitulada The Expression of Emotions in Man and Animals, sendo a sua primeira edição

lançada em 1872, causando imediatamente grande interesse em toda a comunidade

científica da época. Apenas no século XX as emoções têm sido consideradas como uma

vivência holística da existência humana. Mas antes, William James em 1884 apresenta

um entendimento bastante diferente do que era comum para a sua época. Para Damásio

(2010, p.149) James inverteu a sequência tradicional de acontecimentos no processo da

emoção e colocou o corpo de permeio entre o estímulo causal e a experiência da emoção.

Deixava de haver um estado mental chamado emoção que dava origem aos efeitos do

corpo. Agora havia, isso sim, a perceção de um estímulo que causava certos efeitos no

corpo. Era uma proposta arrojada e a investigação moderna subscreve-a integralmente.

Para Greenberg (2008, p.49), que é psicólogo cognitivo, as emoções são um recurso

adaptativo fundamental porque elas envolvem um sistema significativo que informa as

pessoas sobre o significado dos eventos para o seu bem-estar, e também organiza as

pessoas para uma rápida ação adaptada a situação. Segundo Fitzpatrick e Stalikas (2008,

p.158) existe uma falta de curiosidade sobre as emoções positivas em psicoterapias que

vem da base dos valores judaico-cristãos, onde é enfatizado a disciplina, a contenção, e

uma limpa identificação com a moral de deus, dos seus desejos e saúde. Devido a isto

Fitzpatrick e Stalikas (2008, p.158) argumentam que em razão deste contexto histórico

vê-se refletido como está influenciada a experimentação de emoções positiva nas teorias

479
clássicas da psicologia humanista. Neste trabalho não será feita a diferenciação entre

emoções positivas ou negativas, já que aquilo que se pretende é estudar o próprio

fenómeno da emoção, indiferentemente dela ser entendida como positiva ou não.

Diferentes perspetivas

Considerei importante fazer uma rápida revisão sobre o entendimento das

emoções sendo explicado por diferentes modelos científicos. Será de total pertinência

identificar no que difere o entendimento das emoções, como também, as semelhanças que

possam existir entre as diferentes explicações que as diversas perspetivas encontram para

entender tal fenómeno. Contudo, diversos investigadores concordam em que a emoção é

composta por diferentes dimensões (Mennin e Farach, 2007, Sloan e Kring, 2007, Suveg,

Southam-Gerow, Goodman, e Kendall, 2007, Zeman, Klimes-Dougan, Cassano, e

Adrian, 2007, citado em Burum e Goldfried, 2007, p.407). Uma das elaborações mais

compreensivas da temática é a definição multifacetada das emoções de Salomon (2002,

citado em Burum e Goldfried, 2007, p.407), sendo uma estrutura holística que consiste

em expressões de comportamento, substratos fisiológicos, experiências fenomenológicas,

processos cognitivos e contextos sociais.

Segundo LeDoux´s (1996, citado em Greenberg, 2008, p.50), estudos feitos na

área de neurobiologia têm demonstrado que é possível para o nosso cérebro, registar o

significado emocional de um estímulo antes que ele seja totalmente processado pelo

sistema percetivo. Ele sugere que existem dois tipos de caminhos para a produção de

emoções. Aquilo que ele chamou de low road, que é por exemplo, quando a amígdala

sente perigo e difunde um sinal de emergência angustiante para a mente e o corpo. O

outro tipo de manifestação da emoção é o high road, que é quando a mesma informação

é transportada desde o tálamo até o neocórtex. LeDoux´s notou que a perceção emocional

480
precognitiva, que é processada pela low road, fundamentalmente é adaptativa, já que ela

permite que a pessoa responda rapidamente a um acontecimento antes que outros tipos de

processamentos complexos, que consomem mais tempo, tenham surgido e, por

consequência, retardem o tempo de reação. No estudo de Berntson, Bacharan, Damasio,

Tranel e Cacioppo (2007, p.123) ficou em evidência que, quando o sujeito era exposto a

fotos, contexto ou estados de perceção com conteúdo emocional existia uma ativação da

amígdala, sendo esta medida pelo método funcional de imagens cerebrais. Nos resultados,

concluem que a amígdala é acionada durante uma emoção, mas não é necessária para a

produção de um estado emocional. Desta forma os resultados indicam que a amígdala é

importante para registar a estimulação ou o impacto emocional especialmente devido a

um estímulo adverso (Berntson e outros, 2007, p.129).

Para a perspetiva cognitivo-comportamental as emoções têm ganho um lugar cada

vez mais proeminente na psicoterapia contemporânea, sendo um tema central no estudo

da consciência. Magnativa (2006, p.517) refere que a maioria das doenças mentais

inevitavelmente inclui respostas emocionais mal adaptadas, que são em parte o resultado

de experiências traumatizantes em uma etapa tenra do desenvolvimento, não sendo

totalmente metabolizadas. As emoções são a força central para manter padrões antigos

(evitando a ansiedade da mudança) e para aprender padrões novos e melhor adaptados

(Magnativa, 2006, p.520). Por sua vez, Barish (2009, p.8) refere que as emoções não são

apenas sentimento, as emoções focadas são atenção, direcionadas ou projetadas na

imaginação, surgimento de memórias e preparação para a ação. Ainda diz que, toda

emoção serve uma função adaptativa desenvolvida através da evolução humana. Desta

perspetiva funcionalista, a diferenciação entre afeto, cognição e comportamento muitas

vezes acaba sendo arbitrária: o pensamento influencia os sentimentos, e os sentimentos

influenciam a reflexão e a ação. Em seu estudo, Leahy (2007, p.353) descreve como as

481
teorias de aprendizagem, modelos de processamento emocional, tratamentos expostos e

até abordagens baseadas na emoção dependem da cognição. Ele integra emoção e

cognição numa terapia de esquema emocional. Leahy (2007, p.356) conclui o estudo

referindo a importância das emoções no âmbito da aplicação das terapias cognitivo-

comportamental. No entanto, ele diz que, a cognição pode ter um papel essencial na ajuda

da avaliação interpretativa do paciente, que dá origem a uma emoção intensa. Desta

forma, existe um veredicto nas diferentes formas de trabalhar as emoções neste modelo

psicoterapêutico que é a melhoria do cliente, mas que se chega a este destino através de

diferentes significados.

Segundo Greenberg (2008, p.51) todos os modelos teóricos em psicologia,

concordam em que as emoções produzem tendências para atuar de uma determinada

forma como resposta para certos acontecimentos, organizando um modo básico de

informação que é processada em movimento tendo um papel independente no

funcionamento, podendo afetar a cognição. Desta forma Greenberg explica que existem

as emoções primárias, que são entendidas como as emoções mais fundamentais, reações

imediatas para uma situação. Posteriormente surgem as emoções secundárias, que são

respostas emocionais que a pessoa tem sobre a sua própria resposta emocional sobre o

estímulo, em vez de ser uma resposta apenas à própria situação. Greenberg e Pascuale-

Leone (2006, p.612) dizem que para trabalhar com as emoções primeiramente tem que se

diferenciar as experiencias emocionais, que são adaptadas ou mal adaptadas, com as

emoções que são primárias e secundárias. As primárias têm de ser acedidas de forma

consciente devido ao conteúdo adaptativo e pela capacidade de organizar a ação. Pelo

contrário, as emoções mal adaptadas necessitam ser acedidas de forma a serem

transformadas, em um processo que as expõem em uma nova experiência, e desta forma,

482
cria-se um novo significado. As emoções secundárias precisam de ser ultrapassadas para

se aproximarem de uma emoção primária.

Para Gross e Rottenberg (2007, p.324) emoção é um caso especial de afeto, sendo

relativamente breve, mas mantendo a forma referencial do afeto. Isto é, a emoção surge

quando um evento externo ou interno sinaliza ao indivíduo, que algo importante pode

estar prestes a acontecer. Para Gross e Rottenberg (2007, p.324) a forma como as

psicopatologias alternam as características temporais das emoções está apenas

começando a ser entendido, mas esta ideia tem importantes implicações para as pesquisas

em psicoterapia, já que sugere que diferentes distúrbios mentais podem apresentar

diferentes objetivos de intervenção que podem apresentar-se ao longo do desdobramento

da linha temporal de uma resposta emocional.

Em psicoterapia fenomenológica existencial, Strasser (2005, p.25) descreve que,

sua experiência com os seus clientes tem-lhe demonstrado que as emoções expressam-se

de duas formas. Existe um momento de expressão que aparece como instantâneo,

surpreso, pré-reflexivo, como uma expressão primária. Isto deveria ser seguido por uma

consciencialização da experiência. No momento que os clientes tornam-se

consciencializados das experiencias emocionais, eles podem avalia-las, explora-las, e

afastar-se do sentimento espontâneo de estar totalmente fora de controle, ou agarrados à

emoção. A primeira destas experiências emocionais Strasser vai chama-la como pré-

reflexiva (unreflective) e a última como resposta reflexiva. Strasser apegou-se a esta

terminologia derivando a Jean-Paul Sartre (1972, p.79), quem define as emoções pelo seu

estado pré-reflexivo. Sartre acredita que as emoções pré-reflexivas só podem ser ditas

emoções como tal, quando elas acontecem no momento imediato em que acontecem. Em

sequência disto, logo que contemplamos e avaliamos este sentimento interno, ele deixa

de ser uma emoção. Mas Sartre (1972, p.96) vai além disso, já que diz que as emoções

483
transformam o mundo num lugar mágico. O exemplo que ele descreve é de uma situação

hipotética de quando um revolver é posicionado e apontado para a minha cabeça, existe

um tipo de feitiço sobre a minha pessoa que vai perder o controlo e acabar por desmaiar.

Desmaio em razão de aniquilar a ameaça. De acordo com Sartre, eu transformo o mundo

através da mágica num lugar seguro. Para Strasser (2005, p.25) este argumento trabalha

bem para as emoções negativas como o medo, a raiva, a repugnai, entre outros, mas

quando olhamos as emoções positivas como a alegria, é difícil de ver a existência de um

estado pré-reflexivo espontâneo. Por exemplo, a alegria iria aparecer para conotar um

estado de harmoniosa contemplação, um estado de reflexão, e não causaria tremores

corporais nem desmaios.

Ao observar as diferentes perspetivas podemos considerar que todas elas acabam

apresentando um entendimento muito similar que difere, principalmente, no nome que é

dado ao mesmo fenómeno. É bastante interessante perceber que os neurocientistas falam

das high e low roads referindo-se a estados precognitivos e cognitivos do processamento

das emoções no cérebro, ou como o modelo cognitivo fala das emoções primárias e

secundárias e os psicólogos existencialistas falam das emoções pré-reflexivas e das

reflexivas. Desta forma, independentemente do modelo apresentado, o estudo deste

fenómeno, revela duas fases ou etapas. Assim sendo, a identificação destas etapas, será

fundamental no processo psicoterapêutico.

Diferenciação entre emoção e sentimento

Durante a leitura desta temática muitas vezes fica pouco claro quando se está falando

das emoções ou dos sentimentos, por está razão vou procurar desenvolver esta

diferenciação. Assim sendo, para Damásio (2010, p.142) as emoções são programas

complexos, em grande medida automatizados, de ações modeladas pela evolução. As

484
ações são completadas por um programa cognitivo que inclui certos conceitos e modos

de cognição, mas o mundo das emoções é, sobretudo, um mundo de ações levadas a cabo

no nosso corpo, desde as expressões faciais e posições do corpo até às mudanças nas

vísceras e meio interno. Os sentimentos da emoção, por outro lado, são perceções

compostas daquilo que acontece no corpo e na mente quando sentimos emoções.

Greenberg e Paivio (2003, p.7) referem que o afeto é uma resposta biológica não

consciente à estimulação, que envolve processos automáticos, fisiológicos, motivacionais

e neuronais, formando parte do sistema de respostas de comportamento evolutivamente

adaptativos. Eles apenas acontecem, em quanto que, tanto as emoções como os

sentimentos são produtos conscientes deste processo afetivo não consciente. Para o

sentimento eles dizem que envolvem uma consciencialização das sensações básicas de

afetos. Isto envolve experiências de sensações corporais, como por exemplo, sentir-se

agitado, ou sentir-se tenso. Os sentimentos de sensações corporais mais complexos que

envolvem significado, como sentir-se decaído ou desanimado, sentir que alguma coisa

não está bem, ou sentir que alguém não se interessa por nós, eles chamam de sentimentos

complexos, envolvendo afetos para a forma como os vemos. Para as emoções eles

explicam que são experiências que surgem quando as tendências de ação e estados de

sentimentos são unidos com situações que evocam o self. As emoções são experiências

que envolvem a integração de vários níveis de processamento.

A distinção geral entre emoção e sentimento é razoavelmente clara. Enquanto as

emoções são ações acompanhadas por ideias e modos de pensar, os sentimentos

emocionais são sobretudo perceções daquilo que o nosso corpo faz durante a emoção, a

parte das perceções do estado da nossa mente durante o mesmo período de tempo. Em

organismos de cérebro simples, capazes de levar a cabo comportamentos mas sem um

processo mental, também existem emoções, mas não lhes seguem, necessariamente,

485
estados de sentimento emocional. As emoções funcionam quando as imagens processadas

no cérebro colocam em ação uma série de regiões incitadoras de emoções, como, por

exemplo, a amígdala ou regiões especiais do córtex do lóbulo frontal. Um fato importante,

pelo menos no caso dos seres humanos, é também o de virem à mente certas ideias e

planos. Os sentimentos de emoção constituem o passo seguinte, surgindo logo depois da

emoção, e representando o legítimo, consequente e derradeiro empreendimento do

processo emocional: a perceção composta de tudo o que aconteceu durante a emoção –

as ações, as ideias, o estilo com que as ideias fluem – lenta ou rápida, fixa numa imagem,

ou trocando rapidamente uma imagem por outra (Damásio, 2010, p.144). Fica claro que

não é possível, do todo, separarmos emoções de sentimentos, nem seria este o propósito

deste estudo, mas pelo contrário, será nesta estreita relação entre estes dois fenómenos

que será desenvolvido este estudo.

Pertinência das emoções em contexto psicoterapêutico

Este estudo, como já foi referido anteriormente, pretende explorar as emoções em

contexto psicoterapêutico. Assim, Strasser (2005, p.24) refere que o papel das emoções

em contexto terapêutico não pode ser desvalorizado. Toda emoção está conectada com o

que se dá, que ilumina o nosso worldview. Assim, cada emoção é uma manifestação de

um aspeto do nosso worldview. De facto, pode-se dizer que as emoções são a melhor

ferramenta para que os clientes se redescubram e voltem a familiarizar-se com alguns

aspetos do seu worldview e com a ambivalência que os trouxe à terapia num primeiro

lugar. Greenberg (2003, p.4) diz que o aspeto crucial do desenvolvimento da terapia é

promover a integração das experiências afetivas e emocionais básicas com a organização

existente das suas experiências. É principalmente necessário, particularmente em terapia,

um entendimento de quais emoções nos indicam qual a forma que estamos a conduzir as

486
nossas vidas. Greenberg e Paivio (2003, p.4) sugerem que é somente através do acesso às

emoções e ao significado emocional que os problemas emocionais podem ser resolvidos.

Em terapia alguns tipos de emoções são vistos como curativos em si mesmo. As respostas

das emoções primárias são criativamente organizadoras porque ajudam a estabelecer

novas prioridades. Assim, quando ajudamos os clientes a atender e simbolizar suas

experiências primárias – tristeza, raiva, ou alegria – ajuda-os a aceder a importantes

necessidades/objetivos/ preocupações e a criar novos significados. Embora as emoções

nos organizem para a ação e constroem novas estruturas adaptativas, elas também estão

envolvidas no desmantelamento de velhas e estáticas estruturas. Desta forma, segundo

Greenberg e Paivio (2003) ao trabalhar com emoções em psicoterapia é, portanto, análogo

no desenvolvimento da regulação emocional que ocorre no processo do desenvolvimento

normal. Ao sustentar uma sintonia empática com as emoções dos clientes, como das suas

experiências, converte-se numa tarefa terapêutica crucial para ajudar as pessoas a tornar-

se ciente sobre algo e regular as suas experiências emocionais.

Segundo Burum e Goldfried (2007, p.408) determinar a estrutura exata das emoções

é essencial não apenas para interpretar medidas contraditórias, mas também para aceder

à consciencialização emocional que, como vai ser discutido, é tão central para muitos

tratamentos psicológicos. No estudo de Sloan e Kring (2007, p.317), referem que os

indivíduos não são capazes de refletir e responder ativamente os seus estados emotivos,

indicando que as expressões verbais das emoções, comportamentos emocionais, e até

pensamentos emocionalmente ligados têm de ser considerados como aspetos da

consciencialização das emoções, separadamente da emoção em si. Na prática, a forma

como medimos e definimos as emoções depende do nosso propósito. Por outro lado,

falhar no reconhecimento das emoções não só vai minar o seu potencial produtivo, mas

também pode acarretar consequências interpessoais negativas. Assim sendo, ter

487
limitações na consciencialização emocional pode levar a patologia. O estudo de Sloan e

Kring (2007, p.318) demonstra que uma melhor consciencialização das emoções prediz

melhores resultados no tratamento, mas por outra parte, uma menor consciencialização

está associado à possibilidade de que exista um distúrbio psicológico, incluindo

ansiedade, depressão, e distúrbios somáticos, distúrbios da alimentação, e distúrbios de

personalidade. Segundo Samoilov e Goldfried (2000, p.382), durante uma sessão, a

estimulação de uma emoção é vista como essencial para incentivar a reorganização de

temas emocionais que estão nas entrelinhas, como também à assimilação de nova

informação, e formação de estruturas de significados implícitos.

As emoções e a psicoterapia Fenomenológica Existencial

A partir deste ponto, o estudo estará direcionado a explorar de forma mais

aprofundada a perspetiva fenomenológica existencial sobre as emoções em contexto

psicoterapêutico. Para Strasser (2005, p.8), a consciência humana está sempre direcionada

para o mundo que lhe dá significado. Isto quer dizer, que se eu tomo consciência sobre a

raiva que estou sentindo, então a minha atenção estará direcionado para alguma coisa ou

alguém. Isto também quer dizer que estou atribuindo significado à esta coisa ou alguém

(Husserl, 1975, p.10). Merleau-Ponty propõe que a fenomenologia é uma filosofia, onde

todo o seu esforço está em descobrir o contacto naïve com o mundo (1962, p.226). Isto é

alcançado pela tentativa de colocar a um lado, ou por fazer aquilo que é chamado de

epoche, entende-se como a suspensão dos nossos preconceitos e julgamentos

preconcebidos e estar aberto à nossa experiência imediata. Assim, a fenomenologia

procura descrever o fenómeno, em vez de analisa-lo e explica-lo. Ao fazer isto o

investigador está a dar um passo atrás, para observar o fenómeno tal como ele é.

Considerando isto, as terapias de orientação existenciais, reivindicam que o método

488
fenomenológico de investigação é mais efetivo para examinar os fenómenos humanos do

que o método científico. Então, fazer a quebra fenomenológica entende-se como sendo a

suspensão das nossas expectativas que nos prejudicam em focar-nos na perceção imediata

das nossas experiências.

O papel das emoções nas experiências e no pensamento

Quando observamos o papel das emoções chegamos ao ponto onde as emoções

são a sensação de mudança corporal, que são ativadas durante a perceção e contribuem

para a estrutura fenomenológica da perceção (Ratcliffe, 2008, p.225). Neste sentido as

emoções não são percebidas como sendo separadas da cognição, mas como constituidoras

dela. Tendo o papel de estruturar o mundo experiencial, que forma o plano de fundo para

as nossas diferentes escolhas. Desta forma, o ponto não é que possamos ou devamos ir

simplesmente com as nossas emoções e escolher em que acreditar ou como agir apesar

das evidências. Os sentimentos relevantes aparecem somente em relação com aquilo que

William James chamou de opções de vida. Em outras palavras, os sentimentos arbitram

entre aquilo que acreditamos e as nossas ações, que já estão intelectualmente julgadas,

para aquilo que já estamos predispostos a fazer. Portanto as emoções não são a única base

para as escolhas. Muitas das sensações que regulam as crenças e as atividades não são

características comuns das emoções.

Abertura ao worldview

Para Strasser (2005, p.10) criamos a nossa construção de self para existir num

mundo cheio de facticidades e limitações. Isto manifesta-se de infinitas formas, como nas

nossas relações interpessoais, nas nossas escolhas, nas aspirações e emoções. A soma de

489
todas estas facticidades expressa a nossa construção de self. A nossa autoestima depende

da nossa construção de self, juntos revelam o nosso worldview. Existem algumas

facticidades universais, sendo o facto de estarmos vivos, que nascemos e que a nossa

existência é finita, estas condições da existência por si só impõe a estrutura do ser. Esta

estrutura espelha as possibilidades e limitações que enfrenta o ser humano. De forma a

existir no mundo, enfrentando estas limitações, criamos um worldview que se manifesta,

a si mesmo, de múltiplas formas. Assim formamos relações interpessoais, valores e as

suas polaridades, crenças ou significados e sistemas de comportamentos, sedimentação

das crenças e de sistema de comportamentos, aspirações e liberdade de escolha. De forma

resumida, o nosso worldview é a expressão da soma total das particularidades de forma

de ser-com, ser-para e ser-no-mundo.

Strasser (2005, p.20) refere que o propósito da psicoterapia é criar as condições e o

ambiente onde os clientes possam explorar e revelar o seu worldview. Os clientes serão

capazes de ver as suas discordâncias e contradições. Geralmente, estas descobertas não

são revelações estrondosas, são meramente revelações sobre algo que eles já sabiam. Este

reconhecimento, pode produzir insights que, pela sua vez, produzem ainda mais insights,

então o facto conhecido torna-se reconhecido e refletido. Strasser explica que a

consciencialização do nosso worldview fornece-nos um suporte para ser empático com os

clientes e para ser terapeutas em vez de estar a fazer terapia. É nesse processo que as

emoções jogam um papel vital, já que as emoções estão presentes em todas as nossas

ações e elas divulgam o worldview do cliente. Estes aspetos emocionais causam, nos

clientes, uma redescoberta dos seus valores e do sistema de comportamentos e tornam-se

cientes de parte das suas sedimentações mais rígidas.

A relação terapêutica

490
É somente através do desenvolvimento de uma relação bem estabelecida entre o

cliente e o psicoterapeuta que poderão ser trabalhadas, as emoções em contexto

psicoterapêutico. O fortalecimento da relação entre cliente e terapeuta pode ajudar a

facilitar a vontade de processar emoções pelo cliente. Várias pesquisas têm indicado que

a aliança terapêutica está relacionada com resultados positivos no cliente (Stringer, J.,

Levitt, H., Berman, J., & Mathews S., 2010, p.496) e crucial para um processamento

emocional saudável (Greenberg & Pascuale-Leone, 2006). Uma relação de validação e

de confiança pode reduzir a resistência do cliente com o terapeuta e com as suas próprias

experiências e sentimentos, sendo a autorreflexão fundamental. Para Bondi (2005; citado

em Bennett, 2009, p.245) relacionar-se, significa que meus sentimentos não podem ser

simplesmente explicados através de mim, mas através da minha relação com outros onde

o contexto da nossa interação também é significativo. Isto quer dizer entrar num aspeto

fundamental de toda relação psicoterapêutica, a intersubjetividade.

Em psicoterapia fenomenológica existencial, Cooper (2003, p.109) explica-nos

que os clientes são encorajados a encontrar sua unicidade na forma de ser, e também,

existe uma forte ênfase na construção duma relação de igual para igual entre o terapeuta

e o cliente. Mas o terapeuta tem que estar consciente da sua abertura ao outro, sendo isto

a vontade de respeitar e confirmar a forma de ser e os diferentes pontos de vista do outro,

em vez de tentar impor os seus próprios pressupostos e preconceitos. Segundo Teixeira

(1996, p.55) a relação terapêutica enraizada ao método fenomenológico, é enquanto

apreensão da presença do outro tal como ele se manifesta diante de nós. Assim, é

necessário estabelecer contacto (sintonizado), aceder ao seu estado de consciência

(empatizando) e compreender, as estruturas de conexões de sentidos que manifestem a

estrutura pessoal do mundo do paciente. Todavia, o aspeto mais central é o de que a

relação terapêutica é um encontro, encontro enquanto tal: uma relação existencial cujo

491
significado essencial é o estar-com. Antes de mais, a relação terapeuta-paciente é um

encontro entre uma existência e outra existência implicando: a presença (de estar-por-si),

a reciprocidade (enquanto troca ou estar-para-o-outro), o cuidado (acolhendo o outro na

sua esfera vital) e, ainda, o laço emocional entre um Eu e um Tu que criam um Nós numa

reciprocidade ativa para que, através do Tu o outro se venha a iluminar e a descobrir. É

encontro terapêutico na medida em que acontece uma relação de ajuda que tem um devir

no tempo, convida o outro a vir-a-ser como se deseja e se permite e, finalmente,

proporciona meios para a mudança que é, no essencial, aberturas a novas possibilidades

no encontro consigo mesmo, com o seu projeto. Desta forma pode-se conjugar com o que

Spinelli (2006a, p.180) diz sobre o modelo fenomenológico existencial, sendo que este

assume uma intersubjetividade na base de toda a atividade mental. Em outras palavras, é

argumentado que tudo o que somos, ou podemos ser, conhecimento de tudo o que é

refletido, definido ou distinguido, é derivado da relação. Assim sendo, as emoções vão

surgir no acontecer desta relação.

Aqui o propósito é, não apenas entrar no mundo do cliente através das suas

experiencias, mas que através desta entrada possa surgir um momento de

intersubjetividade entre ambas as partes. Sendo que as emoções jogam um papel

fundamental nesta entrada ao mundo do cliente, já que, como diz Strasser (2005, p.31) as

emoções não revelam apenas o worldview individual, mas também revelam a

singularidade de cada indivíduo. As nossas diferenças estão na forma em como reagimos

aos nossos sistemas de valores e comportamentos. Todos nós manifestamos e

experienciamos as nossas emoções, mas todos diferenciamo-nos na forma como às

experienciamos e reagimos a elas. Spinelli (2006b, p.5) explica que esta exploração não

tenta alterar ou prevenir a decisão do cliente, ou impor a moral do terapeuta sobre ele, ou

para expor os pontos de vista atuais destes outros do mundo do cliente, em vez disso, este

492
enfoque sobre as dimensões do mundo focalizado (world-focused dimensions) servem

para implicar a sua decisão, as suas novas escolhas de forma de ser, de tal maneira a que

inclua as suas experiências vivenciais do mundo e os outros que existem nela, com toda

a sua complexidade, em vez de permitir a possibilidade de considerar um mundo onde

não encaixem as suas experiencias já vividas.

Emoções reflexivas e pré-reflexivas

Em psicoterapia, é importante distinguir entre as emoções reflexivas e as pré-

reflexivas. Quando os clientes divulgam as suas emoções, muitas delas continuam no

fundo da sua mente e muitas vezes emergem na terapia. Por exemplo com a raiva, na

maioria das vezes não estamos conscientes da raiva em si. Apenas sentimo-nos

contrariados com algo ou alguém, mas no momento em que apreciamos e avaliamos estas

emoções, conseguimos falar sobre elas e explorar como foi a experiência (Strasser, 2005,

p.24).

Segundo Strasser (2005, p.27) os psicoterapeutas deparam-se de forma bastante

regular com clientes que pedem para ser ajudados com as suas explosões de raiva, culpa

ou emoções semelhantes a estas. O que estes clientes aparentemente estão pedindo é que

sejam eliminadas estas emoções primárias e pré-reflexivas. Mas as emoções pré-

reflexivas fazem parte da factualidade da nossa existência, embora nós tenhamos a

capacidade não apenas de avalia-las, mas também de parar de rumina-las uma vez que

estejamos cientes dela. Em outras palavras, as emoções reflexivas são emoções que

podemos controlar. Um dos objetivos da terapia é explorar os dois tipos de emoções.

Quando as emoções pré-reflexivas emergem na nossa consciência podem ser examinadas

e discutidas, e os clientes podem descobrir as suas ambiguidades e desafia-las. Podemos

dizer que, enquanto os clientes ficam cientes das suas emoções elas já estão num modo

493
reflexivo, claramente não podemos explorar algo do qual não sejamos cientes de. O

processo em terapia é, portanto, facilitar que as emoções pré-reflexivas emerjam em

emoções reflexivas. O que realmente interessa é como levamos os clientes, da forma mais

empática, para explorar as emoções que englobam a sua existência e levar a

consciencialização das emoções pré-reflexivas através das quais eles possam explorar o

seu worldview.

Strasser (2005, p.28) nos diz que as emoções estão sempre presentes em todas as

atividades ou manifestações em psicoterapia. Existem muitos clientes que tem dificuldade

em estar em contato com as suas emoções, mas as emoções estão continuamente

engajadas na consciência humana. Desde o ponto de vista teórico, para Sartre (1972,

p.101) o facto de que as emoções estejam sempre presentes na nossa consciência, é a

revelação da nossa própria consciência, assim sendo, emoção é precisamente consciência.

A maioria dos psicólogos e cientistas teóricos chegaram a conclusões semelhantes. Por

exemplo, Carroll Izard (1991, p.80) que é um cientista da biologia evolutiva, chegou a

conclusão desde um ponto de vista teórico diferente. A sua tese é que as emoções estão

constantemente connosco, sendo que elas jogam um papel muito significativo em como

interpretamos o mundo a nossa volta.

As emoções invariavelmente possuem significado

Podemos entender que as emoções estão sempre direcionadas para algo ou

alguém. Segundo Strasser (2005, p.30) quando o cliente expressa emoção, ela está sempre

direcionada para alguma coisa. Além disso, as emoções sempre revelam a autoestima do

indivíduo. Psicoterapeutas que escutem, a fim de suscitar os seus clientes em expressar

as suas emoções, vão poder ajudar os clientes a revelar alguns aspetos do seu worldview

e desafia-los, desta forma podendo trabalhar em conjunto aquilo que surgir, estando com

494
a pessoa neste momento que muitas vezes suscita sofrimento devido a experiências do

passado.

O pressuposto principal de Sartre (1972) é que as emoções estão sempre presente

na nossa consciência e que elas sempre têm algum significado. Sartre agarrou a última

noção de Husserl, quem avançou com a noção de intencionalidade, referindo que a nossa

consciência é sempre intencional em relação a alguma coisa. A partir de isto, Sartre

desenvolveu a doutrina em que as emoções, como todo ato mental, estão direcionadas

para alguma coisa, um objeto. A palavra ´intencionalidade` é original do latim intendere,

que significa diretamente em frente. Husserl (1997, p. 217) diz que a consciência é sempre

consciência de alguma coisa. Sendo a emoção um ato da consciência, ela tem

intencionalidade, estando direcionada para alguma coisa.

Não podemos separar as emoções dos sentimentos corporais que elas carregam,

para Ratcliffe (2008, p.36) os sentimentos corporais não são nem estados isolados de

intencionalidade nem estados que podem ter somente o corpo ou uma parte dele como

objeto. Em vez disso, eles fazem parte da estrutura da intencionalidade. Um sentimento

precisa ser, primeiro e principalmente, uma experiência de alguma parte do corpo onde

tenha acontecido. O sentimento pode ser a forma como algo diferente do corpo é

experienciado, em vez de ser ele mesmo o objeto da experiência. As coisas são

experienciadas através de sentimentos corporais e o próprio corpo pode ou não ser o

objeto mais saliente do sentimento. Mesmo quando não é o objeto da experiência,

continua sentindo-se de forma que é fenomenologicamente acessível.

Ratcliffe (2008, p.37) explica que os sentimentos não são experiências somente do

corpo ou somente da relação com o mundo. Em vez disso, os dois aspetos da experiência

são fenomenologicamente indivisíveis. Os sentimentos parecem ser formas de

experienciar o self, o mundo e também a relação self-mundo, sendo que os três aspetos

495
são inseparáveis. Eles são orientações existenciais, pensamento e atividade. Desta forma

pode-se ampliar a categoria de emoção para assim abranger estes sentimentos. A

terminologia “sentimento” é caracterizada por entender as diversas formas como nos

encontramos no mundo, também é utilizado para descrever como é estar em uma dada

situação. Mas Ratcliffe (2008, p.38) sugere que certas formas de usar o termo

“sentimento” realçam categorias caracteristicamente fenomenológicas, em virtude de

duas características compartidas. Em primeiro lugar, os sentimentos não são dirigidos

para um objeto ou situação específica, mas são no fundo, orientações através das quais as

experiências como um todo são estruturadas. Assim, elas são sentimentos corporais.

Sendo estes sentimentos os constituidores da estrutura básica do ser-aí, tendo um

sustentar sobre as coisas funcionando como um contexto com pressupostos para todas as

atividade intelectuais e práticas. Assim, Ratcliffe refere-se a estes sentimentos como

sendo os sentimentos existenciais. Heidegger (1984, p.151) refere que aquilo que

designamos como ontologicamente com a terminologia encontrar-se é onticamente o

mais conhecido e o mais quotidiano: o estado de espírito. Antes de qualquer psicologia

dos sentimentos, trata-se de observar este fenómeno como um fundamental existencial e

perfilar a sua estrutura. O fato de que os sentimentos possam trocar-se e misturar-se

apenas diz que o ser-aí é em cada caso, sempre num estado de espírito.

Discussão

Não existimos nem estamos em quanto seres vivos sem emoções, é através e com

elas que nos relacionamos com todo o nosso mundo. Ter consciência sobre o significado

daquilo que estamos sentindo, em determinados momentos, acredito que é fundamental

não apenas no contexto psicoterapêutico, mas para ser capazes de tomar as melhores

decisões sobre determinados momentos das nossas vidas. Assim, o papel das emoções é

496
entregar e divulgar muitos aspetos sobre o sistema de valores e comportamentos de um

indivíduo. Como anteriormente mencionado, mesmo estando conscientes ou não do nosso

estado emocional, divulgamo-nos através das emoções. Warnock (1962, p.25) refere-se

sobre aquilo que Heidegger escreveu “para as emoções… podemos redescobrir o todo da

realidade humana, para as emoções é a realidade humana assumindo-se e tomando uma

direccionalidade emocional para com o mundo”. Neste sentido, Heidegger, Husserl,

Warnock e Sartre propõe que através da intencionalidade da nossa consciência, sendo a

emoção um ato dela, estamos constantemente a revelar-nos, sendo que esta forma

especifica de exposição contém sempre significados.

Já as sensações corporais moldam a forma como as coisas nos aparecem e, por

consequência, estruturam nossa racionalidade e a forma de estar-no-mundo. Assim, os

sentimentos regulam a forma de tomar decisões, conformando o mundo experiencial onde

as decisões são feitas e somente então, onde predomina a incerteza, predispomo-nos a

determinada opções de vida. Para Heidegger (2001), o sentido que desvela o através do

homem, nunca se dá a partir de algo a priori transcendental, e só é na medida em que se

desvela no seu horizonte histórico. Isto, porque o que caracteriza o modelo de ser do

homem, a existência, é precisamente o fator de que seu sentido está sempre em jogo,

somente podendo ser compreendido a partir das suas próprias vivências ligadas ao seu

contexto histórico-cultural.

Como implicação para a prática no âmbito da psicoterapia fenomenológica

existencial, podemos sugerir que, o fenómeno da emoção quando surge durante uma

sessão carrega enorme riqueza sobre o entendimento do worldview da pessoa. Nosso

trabalho, como psicoterapeuta, poderá ser o de possibilitar um momento diferenciado para

a exploração destas emoções, através da descrição das sensações corporais e das vivências

que aparecem conectadas a esta experiência. Desta forma, possibilitasse um espaço de

497
respeito e cuidado sobre a compreensão do outro, acompanhando a pessoa nessa

experiência, estando junto dela em tudo o que possa surgir, tentando clarear o caminho

em vez de obstaculiza-lo com conteúdos que não respeitem àquela pessoa. Este momento

de exploração pode desenvolver uma corrente de ligações com partes sedimentadas do

worldview do cliente. Assim, abre-se um caminho de reflexão sobre estes fenómenos que

estavam conectados a outras vivências que se encontravam em uma forma pré-reflexiva

no corpo, iluminando uma serie de novas possibilidades de compreensão de si.

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501
O REBAIXAMENTO COMO FATOR DE PRESTÍGIO SOCIAL NO

DISCURSO DO MORGADO DE MATEUS

Renata Ferreira Munhoz

FFLCH/USP – Letras Clássicas e Vernáculas - Filologia e Língua Portuguesa.

E-mail: renatamunhoz2000@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho baseia-se na tese, provisoriamente intitulada “A avaliatividade no

discurso de correspondências oficiais do governo do Morgado de Mateus”. Trata-se da

análise da construção e manutenção do ethos do governador e capitão general de São

Paulo, no período de 1765 a 1775, por meio de seu discurso oficial. São analisados

fragmentos textuais retirados de cartas que compuseram a documentação pública enviada

dessa capitania aos governantes hierarquicamente superiores em Portugal. Dentre as

diversas características do discurso do período, será estudado o aspecto da “vassalagem”

enquanto prática de rebaixamento e menosprezo da própria persona. O recurso de

inferiorizar-se e exaltar o outro (hierarquicamente superior), bastante empregado no

período setecentista, além da evidente função de apresentar-se submisso ao sistema

monárquico vigente, permite, embora paradoxalmente, a elevação da estima do ethos do

sujeito em seu meio social. A análise do discurso veiculado no corpus será embasada na

teoria do Sistema de Avaliatividade, desenvolvida por Martin e White (2005), a fim de se

conceberem as marcas textuais que exemplificam a ideologia coeva, bem como as esferas

contextuais que motivaram a sujeição como garantia de prestígio social. Pretende-se,

portanto, verificar a intersubjetividade que legitimou o poder no século XVIII e sua

repercussão atual.

Palavras-chave: Ethos; Filologia; Análise do Discurso; Manuscritas setecentistas;

Avaliatividade.

502
THE DOWNGRADE AS A SOCIAL PRESTIGE FACTOR IN THE

SPEECH OF THE MORGADO OF MATEUS

Abstract: This paper is based on the thesis, provisionally called "The Appraisal speech

in the official correspondence from the government of the Morgado of Mateus". It intends

to analyse the construction and maintenance of the ethos of the Morgado of Mateus, who

was the governor and captain general of São Paulo, in the period of 1765-1775. Textual

fragments from the public letters sent to the Conde of Oeiras (better known as the Marquis

of Pombal) in Portugal, the main ruler of the captaincy of São Paulo. Among several

features of the discourse of the period, the aspect of the "allegiance" will be studied. The

author used to reduce himself in order to extol his reader. This practice was used in the

eighteenth-century due to on one hand to present themselves submissive to the current

monarchical system and, on the other hand, to build their ethos. The discourse analysis of

the letters will be based on the Appraisal System Theory, by Martin and White (2005), in

order to better understand the coeval ideology as well as the social prestige. Therefore,

this paper intends to check how the intersubjectivity legitimized the monarchical power

in the eighteenth century and its repercussion nowadays.

Keywords: Ethos; Philology; Discourse Analysis; Eighteenth-century manuscripts;

Appraisal.

Introdução

Este artigo intenciona analisar as estratégias discursivas empregadas pelo Morgado

de Mateus em seu discurso oficial com a finalidade de demonstrar submissão pessoal e

exaltar os seus superiores na hierarquia do governo monárquico coevo. Para tanto,

estudam-se a seguir fragmentos textuais retirados de quatro cartas manuscritas enviadas

503
pelo Morgado de Mateus (Dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão) em seu período

de governo, de 1765 a 1775, como governador e capitão-general de São Paulo sobre

assuntos variados que envolviam a prática da governança da capitania. Todos os

documentos manuscritos analisados foram enviados de São Paulo a Portugal, para o

Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo (posteriormente, o Marquês de

Pombal). Foram selecionados por conterem o mesmo tom de distanciamento e respeito

em relação ao interlocutor, embora sejam divergentes quanto ao conteúdo temático de

que tratam. Como elementos passíveis de análise com o aporte da Teoria da

Avaliatividade, serão apresentados alguns itens da esfera do discurso, portadores da

ideologia da exaltação do interlocutor em detrimento da manutenção do ethos autoral.

O conceito de ethos é aqui entendido como a imagem que o autor constrói de si em

seu discurso para exercer uma influência em seu interlocutor. Em análise do discurso,

esse termo emprestado da retórica antiga foi retomado por Kerbrat-Orecchioni (1980)

como a imagem que os interlocutores fazem de si no processo de troca dentro dos

parâmetros da subjetividade da linguagem. (p. 20)

A metodologia empregada para desenvolver a análise adota como base a edição

textual fidedignamente proposta pela Filologia, por meio da transcrição semidiplomática

do original manuscrito a partir de sua versão fac-similar. Nessa etapa, empregaram-se as

“Normas para Transcrição de Documentos Manuscritos”, propostas durante o 2º.

Seminário “Para a História do Português do ψrasil”, realizado em Campos do Jordão, em

maio de 1998, disponíveis em Cambraia et al (2001, p. 13). Embora a ortografia do

período contenha marcas pessoais do escriba e seja mantida de forma genuína pela edição

semidiplomática, optou-se pela atualização da linguagem para facilitar a leitura dos

trechos citados.

504
A título de ilustração, será apresentada a carta III como modelo em sua imagem fac-

similar, acompanhado da respectiva transcrição. Vale ressaltar que, muito embora se

apresente a seguir a versão atualizada dos fragmentos, a edição semidiplomática,

comumente empregada nos trabalhos da área de Filologia, facilita o estabelecimento do

texto, uma vez que apresenta, por exemplo, o desenvolvimento das abreviaturas.

Como cartas oficiais, referentes à administração oficial da capitania, de autoria

intelectual do Morgado de Mateus (por ele ditados aos secretários e, posteriormente,

assinados por seu próprio punho), apresentam a tentativa de padronização do discurso

com base na estrutura formal da espécie textual. Apesar disso, o aspecto da submissão

evidencia a existência da intersubjetividade incutida nos elementos discursivos

veiculados nessa documentação.

As cartas

Foram elencados quatro documentos manuscritos da espécie documental ‘carta’,

catalogados em Arruda (2000), para comporem a análise deste estudo. Todos são datados

dos dez anos que compõem o período de governo do Morgado de Mateus (de 1765 a

1775), têm os mesmos interlocutores e a mesma data tópica, a capitania de São Paulo,

com exceção da carta I, produzida na Vila de Santos, onde o governador iniciou sua

estadia no Brasil, antes de tomar posse efetivamente em São Paulo. As quatro cartas foram

produzidas pela autoria intelectual do Governador e Capitão-General da capitania de São

Paulo, o Morgado de Mateus, Dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, e

endereçadas ao Secretário do Reino, o Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e

Melo.

Convém retomar que a carta é uma espécie documental não-diplomática, uma vez

que não conta com uma fórmula padronizada de redação. No entanto, pode ser estudada

505
como um diploma, devido aos padrões formais do período e ao objetivo que atende de

corresponder “ao alto escalão da administração pública em comunicações sociais

decorrentes de cargo e função públicos.” (ψellotto, 2002, p. 51)

Ao longo das análises, a reprodução das cartas será fragmentária, em linguagem

atualizada, e se dará entre aspas simples ‘’, seguida da menção do número da carta de

onde o trecho foi retirado. Por exemplo (C. I), quando se tratar da carta I. Por não serem

reproduzidas na íntegra (apenas a carta III encontra-se reproduzida no anexo, a título de

exemplo), cabe apresentar o verbete descritivo de cada uma:

I. Datada de 28 de maio de 1765, informa ao rei Dom José I das primeiras ideias do

seu governo e das dificuldades que ia encontrando e transmitindo-lhes os seus

agradecimentos pelo favor do cargo concedido e os seus desejos de feliz saúde.

II. Datada de 03 de julho de 1767, apresenta queixas dos insultos e impropérios de

que tem sido alvo por meio de cartazes anônimos, expostos à porta das igrejas, nos quais

são postas a ridículo as principais disposições de seu governo, repetindo-se o sucedido na

vila de Paranaguá, fato a que se referiu em carta de 16 de janeiro de 1767. Expõe a forma

honesta como executa sempre as reais ordens, e pede que lhe faça justiça no caso dos seus

inimigos conseguirem que chegue ao Reino as calúnias com que pretendem depô-lo.

III. Datada de 04 de agosto de 1767, cumprimenta e reverencia o Secretário do

Reino, o Conde de Oeiras, reiterando sua obediência.

IV. Datada de 18 de junho de 1774, afirma a sua amizade e informa ter entregue ao

Bispo de São Paulo, Dom Frei Manuel da Ressurreição, o colégio onde estava morando.

Pede que lhe envie o que achar mais justo sobre as questões de seu governo, a fim de

poder desempenhar corretamente a sua função para o real serviço.

506
Metodologia de análise

Parte-se do conceito de que “uma teoria deve ser geral, no sentido em que ela deve

pôr à nossa disposição um instrumental que nos permita reconhecer não apenas um dado

objeto ou objetos já submetidos a nossa experiência, como também todos os objetos

possíveis da mesma natureza suposta.” (Hjelmslev, 2003, p. 19). χssim, selecionou-se a

Teoria da Avaliatividade por fornecer metodologia de análise que possibilita a observação

dos elementos de ordem intersubjetiva, relacionada à esfera da valoração. Criada “como

um sistema interpessoal ao nível da semântica do discurso” (Martin e White, 2005, p. 33),

a Teoria da Avaliatividade deriva da Linguística Sistêmico Funcional (LSF), a partir da

metafunção interpessoal proposta pela gramática funcional de Halliday e Mattiessen

(2004). Por representar um sistema discursivo, a Avaliatividade pressupõe a existência

dos demais sistemas: “negociação, periodicidade, identificação, ideação e conjunção”

(Martin e White, 2005, p. 162), embora não os estude.

Essa teoria define que a valoração pela linguagem cumpre três funções principais:

atitude, gradação e engajamento. A atitude engloba o posicionamento atitudinal do autor,

por meio do elogio e da censura, apresentando os seus sentimentos e julgamentos sobre o

que o cerca. Essa função é subdividida em afeto (que expressa estados emocionais), em

julgamento (referente a normas e valores) e apreciação (recurso de expressar gostos). A

gradação é responsável por intensificar ou mitigar os significados dos dois subsistemas

anteriores. Divide-se em força, que gradua as avaliações, para intensificar ou mitigar os

significados; e foco, que gradua contextos não possíveis de gradação. Já o engajamento

trata da adesão ou não do autor em relação aos posicionamentos de outrem.

A partir das funções elencadas, a análise será construída com base no escopo das

duas primeiras: a atitude e a gradação. Intenciona-se, com isso, melhor compreender as

três questões básicas postuladas pela própria Teoria da χvaliatividade: “a) como os

507
autores constroem sua identidade para si mesmos; b) como os autores posicionam-se

diante dos potenciais destinatários; c) como os autores constroem a audiência ideal para

seus textos.” (Martin e White, 2005, p. 40).

Além disso, adotaram-se os pressupostos teóricos referentes à construção do

discurso político (Charaudeau, 2013, 2014) e à manutenção do poder (Dijk, 2012), a fim

de se observarem “os modos em que se utilizam as formas linguísticas em diversas

expressões e manipulações do poder” (Meyer, 2003, p. 31). Cria-se, no nível discursivo,

o conceito de identidade do autor, no sentido de ser o sujeito, enquanto “primado da

mediação reflexiva sobre a posição imediata do sujeito, tal qual se exprime na primeira

pessoa do singular: ‘eu penso’, ‘eu sou’” (Charaudeau e Maingueneau, 2008), entendido

a partir do princípio da alteridade.

Desse modo, a metodologia de análise parte do pressuposto de que há em toda

formulação discursiva um ponto de vista codificado, veiculado no texto de forma explícita

ou implícita. Por meio do detalhamento do sistema com o aporte das ferramentas teóricas

elencadas, pretende-se analisar os aspectos referentes à intersubjetividade contida nos

manuscritos setecentistas.

Esfera do laudatório

A escrita do século XVIII serviu comumente de instrumento à manutenção do

princípio entendido como o de ‘vassalagem’, enquanto subordinação dos cidadãos frente

ao governo monárquico estabelecido. Por se tratar de instrumento simbólico de poder, a

produção escrita era associada ao que se entendia por ‘poder oficial’, aquele diretamente

ligado ao Rei e aos ocupantes dos demais cargos por ele instituídos.

As produções discursivas de caráter laudatório veiculadas nas cartas visam a

enaltecer as qualidades do Conde de Oeiras, colocando-o em posição superior aos demais

508
homens, a quem Morgado de Mateus espera ‘poder ter a satisfação e o gosto de aparecer

todas as vezes que lhe for possível aos pés de Vossa Excelência’ (C. I). O rebaixamento

do autor, deve-se ao ethos de grandeza e merecimento atribuído ao interlocutor, o Conde

de Oeiras, na construção discursiva do próprio Morgado de Mateus.

Diante dessa superioridade, o autor recomenda que ‘Deus permita acrescentar a

Vossa Excelência muitos anos de vida para amparo de nós todos, pois só em Vossa

Excelência esperamos todo o nosso bem e toda a nossa felicidade.’ (C. IV). Eleva-se ainda

mais o ethos do interlocutor ao se atribuir a dependência de seu amparo para que se tenha

o bem e a felicidade. Reforça-se tal asserção com os intensificadores ‘todo’ e ‘toda’ a

ampliarem o escopo dessas venturas.

Em contrapartida, o assunto tratado pela carta II demonstra o estarrecimento do

autor diante da ruptura da função laudatória de louvação da escrita. Trata-se da oposição

imediata do laudatório de aprovação: a produção do vitupério ou sátira, que fizeram de

seu governo: ‘foram pregar na porta [da igreja] uma vergonhosa sátira’ (C. II). χ

classificação ‘vergonhosa’ exprime o julgamento de sanção social, à medida que a atitude

contraria a ordem oficial estabelecida ao desrespeitar o representante do governo, mas

traz em si também a marca do afeto negativo. Descreve com detalhes os seus planos

criticados: ‘são escarnecidas as tropas, e o seu luzido fardamento, chamando-me

destruidor do povo’ (C. II). χo ser considerado ‘destruidor do povo’, pelo fato de impor

o alistamento militar dos moradores da capitania de São Paulo à formação das tropas, usa

a adjetivação com a atitude de julgamento de estima social ‘luzido’, a fim de comprovar

a distinção dessas tropas.

Na mesma sátira, é chamado de ‘carreiro’, ao se criticarem as lavouras que vinha

instituindo como base de seu governo e criticam as a criação das ‘vilas, chamando-me

fidalgo da aldeia, e de meia tigela, e outros vários impropérios indignos de pôr na presença

509
de Vossa Excelência’ (C. II). Todas as ofensas remetem às suas medidas de governo e,

por isso, ofendem seu ethos público, colocada por ele acima da esfera pessoal. Mas o que

mais o preocupa é o fato de terem concluído a sátira ‘com muitas ameaças de darem de

mim conta a Vossa Excelência para que me desse carreira e me pusesse não menos que

na forca.’ (C. II)

Por se tratar de algo que o incomodou demais, a carta narra com detalhes o ocorrido:

‘tirou logo o vigário capitular a dita sátira e a consumiu, de sorte que se não soube nada

nesse dia e nos seguintes. Porém, não contentes com este excesso, passaram a fazer outro

maior, pondo-me a mesma sátira dentro de uma carta fechada diante do bofete em que eu

costumo despachar, e então é que a vi, e pouco depois me disseram o que já tinha sucedido

de aparecer outra pregada na porta da Igreja do Recolhimento de Santa Tereza.’ (C. II).

Dos muitos detalhes, destacam-se os de ordem religiosa, pois a igreja era o lugar público

onde se afixara a sátira e, sobretudo, revela-se a atitude de proteção do vigário, que retirou

a sátira antes que outros a vissem, evitando aborrecimentos no dia festivo. Além disso, a

esfera da gradação permite que a passagem narrativa ganhe cores, com a intensificação

‘não contentes com este excesso, passaram a fazer outro maior’, o que tangencia a

afetividade.

Como bom estrategista, Morgado de Mateus tenta descobrir o autor da sátira de

forma velada: ‘tenho dissimulado até agora e vou fazendo toda a diligência para descobrir

os cúmplices desta obra, o que até agora não tem sido possível. Se eu os puder conhecer,

lhes darei o castigo merecido’ (C. II). Para descobrir os responsáveis, empenha ‘toda a

diligência’, em que a gradação de força indica sua resolução em resolver o caso pessoal,

elevado à esfera do público. Com isso, o princípio da justiça entra em voga por meio do

‘merecido castigo’, em que o culpado seria punido de acordo com o julgamento de sanção

510
social em voga, em que uma sátira seria (como posteriormente de fato o foi) considerada

um crime grave.

O poder de mando dos interlocutores deve-se ao fato de serem pessoas com poderes

delegados pelo soberano pelo critério do ‘merecimento’. O Conde de Oeiras ganhou esse

título nobilitário por sua eficiente atuação na reconstrução de Lisboa após o terremoto de

1755. Já Morgado de Mateus tem o seu cargo de governado por conta de sua experiência

militar de vitória no episódio “Defesa da Passagem do Rio Tua” (ψellotto, 1979, p. 14),

na Campanha de 1762 em Trás-os-Montes contra os espanhóis, o que legitima sua

nomeação com a patente de capitão-mor. Dessas conquistas pessoais, resulta o destaque

do ethos de cada um dos interlocutores, vinculados à ligação afetiva e o contrato de

fidelidade com o Rei.

Em troca de proteção e benefícios pessoais, o autor constantemente jurava

fidelidade ao Rei de Portugal. Tal fidelidade incluía a promessa de cumprir as ordens e

imposições do governo d’além mar, mesmo quando essas determinações contrariassem

os interesses locais, o que comumente ocorria. E, sobretudo, gerir o governo de forma a

evitar dissabores à Coroa Portuguesa: ‘eu me opunha para coibir os seus efeitos, e

conservar, como conservo, mediante o favor de Deus até o presente, a tranquilidade

pública.’ (C. II). χlém das medidas em si, seu empenho é comprovado pelas afirmativas

reiteradas de que ‘eu sirvo com zelo e amor a Sua Majestade’ (C. II) e, sobretudo da

demonstração do grau de dificuldade de sua missão: ‘Eu os acho muito decadentes, sem

rendas, sem cultura e sem sujeitos de que me possam ajudar. Quase tudo me é necessário

formar de novo’ (C. I). χo se referir à capitania de São Paulo, sempre apresenta os

inúmeros problemas a serem vencidos, o que faz com que suas execuções ganhem aura

de verdadeiras conquistas. Atinge, por meio dessas estratégias discursivas, a proposta de

elevar o nível de conceituação de seu ethos.

511
As relações de poder

Normalmente, a tramitação dos documentos administrativos cumpre etapas que

podem gerar a produção de outros documentos, formando um processo: “uns são sempre

ascendentes, como as cartas, outros, sempre descendentes, como a carta régia.” (ψellotto,

2014, p. 398). Ao se observar que as cartas são trocadas entre as mais altas esferas do

governo, na transmissão ascendente, os assuntos comumente tratam de assuntos de ordem

pública, dos quais transmite apenas o necessário: ‘por me parecer desnecessário cansar

muito a Vossa Excelência o repeti-las’ (C. IV). χ estratégia de resumir informações e

evitar a redundância de assuntos é também explicitada ao se valorizar o tempo do leitor

‘Desculpe-me Vossa Excelência ter lhe embaraçado tanto tempo’ (C. II). Retoma-se, com

isso, o princípio da legitimação do poder atribuído ao interlocutor e, como consequência,

confere ao autor o mecanismo de valorização de seu bom senso.

O conceito de “poder” é baseado em uma “a noção tão complexa quanto vaga”

(Dijk, 2012, p. 9). Em termos sociológicos, pode-se definir o poder como um conceito

normativo que, segundo Duverger (1983, p. 152) define a situação daqueles que têm o

direito de exigir que os outros se verguem às suas diretivas numa relação social, porque

o sistema de normas e de valores da coletividade na qual se desenvolveu esta relação

estabelece este direito. O poder por excelência é pertencente ao Rei, por ser o “portador

de uma voz cuja onipotência resulta de ela não se encontrar aqui, mas em um além

inacessível” (Charaudeau, 2013, p. 69) o poder da realeza é legitimado pela filiação de

natureza sagrada, como herança natural da predestinação, da qual derivam os atributos e

qualidades pessoais.

As relações de poder no nível social manifestam-se na interação, haja vista que “o

poder social é geralmente indireto e age por meio da ‘mente’ das pessoas, por exemplo,

controlando necessárias informações de que precisam para planejar ou executar suas

512
ações.” (Dijk, 2012, p. 42). Daí a extrema necessidade de relatar todas as ações de seu

governo em um diário e enviar em documentos oficiais, relatos de sua governança: ‘Esta

ocasião que me permite a frota e a obrigação de dar conta a Sua Majestade, que Deus

guarde, das primeiras ideias do meu governo’ (C. I). O princípio de reportar ações ao

superior reforça a tenção constante de demonstração de poderes, em que aquele que detém

menos serve-se de estratagemas que sirvam de ponto de contato e validem a relação com

o outro. Daí a atribuição de seu bom relacionamento com o Conde de Oeiras, desejando

‘a continuação de uma saúde muito feliz, com que nos seguremos /mediante o vigilante

zelo de Vossa Excelência/ todos os aumentos, e felicidades desta Monarquia, a

consolação e amparo dos que, como eu, têm em Vossa Excelência sua fortuna e toda a

sua esperança’ (C. III), de modo a personificar nele suas realizações. Na mesma diretriz,

de modo muito mais amplo, atribui a ele a manutenção do próprio sistema monárquico.

Charaudeau (2013, p. 10) estabelece que o espaço público seja o lugar propício para

a representação de papéis sociais. Nesse “jogo de máscaras”, os interlocutores dão vida a

personagens, sempre recorrendo a estratégias que os permitam a preservação da face e

garantam uma interação harmônica. Diante disso, Morgado de Mateus apresenta em

forma de confissão o desejo de acertar: ‘Confesso, Senhor, que desejara ter presa a meu

arbítrio a fortuna: para poder ter préstimo e adquirir os maiores acertos neste meu

emprego’ (C. I). Esse desejo, no entanto, está restrito a uma hipótese, o que o invalida e,

por conseguinte, justifica suas falhas futuras.

Com base na concepção de que o discurso político serve-se de estratégias capazes

de construir a identidade do político que o enuncia, verifica-se que a construção discursiva

é sempre repleta de significado, o que pode ser ainda mais representativo se as entrelinhas

forem consideradas. Por exemplo, a afirmação de ‘que em toda a parte possa eu ter o

gosto, e a satisfação de me chegarem estas estimáveis, e desejadas notícias para alívio do

513
meu cuidado e da minha grande saudade e desempenho dos meus votos e dos meus

interesses’ (C. I) pode parecer meramente de cunho afetivo. No entanto, a vital

importância que se atribui ao recebimento de ‘notícias’ pode ser entendida como a busca

do poder. Uma vez que a comunicação com o Reino ocorria unicamente por via das

correspondências enviadas e recebidas, o contato com a esfera do poder se daria por

intermédio dos papéis. χfinal, “o poder é tanto exercido quanto reproduzido no e pelo

discurso. Sem comunicação escrita (e falada), o poder na sociedade não pode ser exercido

ou legitimado” (Dijk, 2012, p. 85).

Intenciona-se, por meio do envio e espera de recebimento das correspondências

oficiais, o reconhecimento social, que seria dado à distância, por meio das

correspondências. Assim, constrói-se “um estado comunicativo em que as condições

intersubjetivas da integridade pessoal aparecem como preenchidas” (Honneth, 2003, p.

268).

Com isso, o Morgado de Mateus serve-se da prática de constantemente registrar

suas ações. Por exemplo ao agir sem a validação prévia, justifica-se: ‘em muitas coisas

me tenho visto duvidoso do que será mais conforme as intenções de Vossa Excelência e

me resolvi segundo o que eu quisera que se me fizesse a mim em semelhante caso’ (C. I).

O fato de agir de acordo com o que queria receber retoma os preceitos cristãos, detentores

de prestígio social, o que justificaria o fato de porventura não ter agido de acordo com as

‘intenções’ do governo central.

Acima do que se pode ser feito contra a pessoa, está a preocupação do que pode ser

feito com seu ethos: ‘Mas eu não temo o que cá me podem fazer, temo que na presença

de Vossa Excelência representem de mim algumas queixas com que Vossa Excelência

venha a pôr em dúvida o meu procedimento, por isso quero prevenir a Vossa Excelência

dando-lhe esta notícia para que Vossa Excelência me faça a justiça de me ouvir, sendo

514
servido, sobre as culpas que quiserem acumular-me os meus inimigos’ (C. II) Pode-se

afirmar, diante dessa asserção, que o ethos enquanto sua representação social é mais

importante do que si mesmo em sua integridade física.

Linguagem formulaica

Embora tenham sido selecionadas apenas cartas, cuja espécie textual é de cunho

não diplomático, as cartas contam com um padrão estabelecido pela “redação mais ou

menos padronizada” (ψellotto, 2002, p. 77). Em detrimento da ausência de rigidez

estabelecida de forma, essa padronização deve-se ao emprego reiterado dos mesmos

termos em partes determinadas da redação dessas missivas.

As expressões formulaicas comumente empregadas iniciam-se no vocativo ou

endereçamento, com ‘Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor’ (C. I, II, III e IV). Essa

fórmula é retomada ao final das cartas, antes do fecho de cortesia, a anteceder o título do

interlocutor, o ‘Conde de Oeiras’ (C. I, II e III) ou ‘Marquês de Pombal’ (C. IV). Os

pronomes de tratamento, abreviados nas epístolas contém em si, além do padrão da mais

alta formalidade, o aspecto da gradação de força, por meio da intensificação contida na

forma do superlativo. Termos similares são usados como adjetivos ‘Ilustríssima e

Excelentíssima pessoa’ (C. IV), em que o julgamento de estima social exalta o

destinatário da mensagem. Inclui-se a esta a menção ‘e casa de Vossa Excelência’ (C. I),

ao se desejar que mantenha o poder do Estado e a felicidade.

O fecho de cortesia recorrente em todas as cartas: ‘de Vossa Excelência cativo e

menor criado’ antecede a assinatura de próprio punho do autor intelectual (Morgado de

Mateus), grafada como ‘Dom Luís χntónio de Sousa’, recebe o acréscimo, na carta I do

termo ‘Meu Senhor’, situando à altura a persona do Conde de Oeiras. A escolha dos

termos ‘cativo’ e ‘criado’ pressupõe a atitude de julgamento de sanção social, designando

515
o comportamento do autor. Apesar da semântica de rebaixamento que acarretam, geram

destaque ao ethos do autor. Do mesmo modo, a adjetivação do superlativo ‘menor’ atua

como a gradação de força, que visa (mesmo que paradoxalmente) a intensificar o escopo

da posição social desse governante.

No decorrer das cartas, a tratativa é constante e sempre formal, com o uso do

pronome de tratamento ‘Vossa Excelência’. Embora o teor quantitativo não seja o escopo

deste artigo, vale mencionar que o emprego dessa fórmula para se manter o contato com

o interlocutor é uma estratégia bastante empregada, cuja ocorrência soma 17 vezes ao

longo das três páginas da carta I, tanto como pronome de tratamento quanto como

possessivo ‘de Vossa Excelência’. Do mesmo modo, aparece 16 vezes na carta II; 11, na

carta IV; e 6 vezes na carta III, que está redigida em apenas uma página, diferente das

demais, com três.

χ fórmula ‘Deus guarde a Vossa Excelência’, empregada para o fechamento das

correspondências, inclui a esfera do religioso católico ao discurso, tornando legítimas as

intenções anteriormente apresentadas. A esfera ideológica do religioso católico está

bastante internalizada nas correspondências oficiais setecentistas, o que explica o fato de

ser “difícil separar o brasileiro do católico: o catolicismo foi realmente o cimento de nossa

unidade” (Freyre, 2007: 92). χ mesma formulação é usada quando se menciona o Rei:

‘Sua Majestade, que Deus guarde’ (C. II). De tão usual, essa colocação de termos

apresenta-se como uma espécie de epíteto na estrutura redacional das cartas.

Imagens construídas pela ideologia do rebaixamento

A esfera discursiva assume um escopo mais tangível quando emprega a construção

de imagens por meio de figuras de linguagem, sobretudo as metáforas, as figuras mais

importantes. Entende-se que as metáforas podem exercer uma função persuasiva no

516
discurso político, pois “fornecem uma analogia condensada e um julgamento de valor

concentrado” (Charaudeau e Maingueneau, 2008, p. 330), atuando como um recurso de

evitar a comparação declarada e normalizar o ethos, naturalizando-o ao leitor, o que

contribui para a manipulação do discurso. As metáforas empregadas encontram-se

introjetadas no imaginário católico, o que lhes confere ainda mais força e destaque: ‘Sabe

Vossa Excelência também que aos tiros da inveja, da calúnia e da arrogância, nem a

inocência de Cristo, nem a iminência do respeito pode ser isenta.’ (C. II). χs investidas

dos que se opõem a seus planos de governo são nomeadas ‘tiros’, como elementos

direcionados contra alguém na intenção de ferir ou matar. Contra tais investidas, nem

mesmo as esferas religiosas mais altas, como a do Cristo, foram isentas.

Há também uma metáfora que, embora mais implícita, serve-se da imagem

idealizada do ‘Espírito Santo’, para comparar à acertada medida proposta pelo conde de

se criarem tropas na capitania de São Paulo. ‘He sem dúvida que só o Espírito Santo e a

iluminada compreensão de Vossa Excelência podia determinar a criação destas tropas’

(C. II)

Outra figura de linguagem bastante representativa é a metonímia, que consiste na

“designação de um objeto pelo nome de outro, [por conta de semelhanças], seja sua

existência, seja sua maneira de ser” (Charaudeau e Maingueneau, 2008, p. 332) e promove

um afastamento da normalidade do que se esperava no nível discursivo, homogeneizando

o conteúdo semântico do enunciado. Por exemplo, a expressão ‘Vou juntamente aos pés

de Vossa Excelência’ (C. III) que apresenta a esfera do físico. χ imagem do ato de

submissão ao outro ganha a imagem do ato físico, de baixar-se aos pés do outro. Conta,

portanto, com a escala da gradação, em que o ato de rebaixamento do outro frente a seu

superior assume a escala máxima.

517
A imagem dos pés é recorrente, como a única parte do corpo em que se pode

merecer o acesso, por ser a mais rente ao chão: ‘ψeijo reverente os pés de Vossa

Excelência’ (C. III); ‘ψusco os pés de Vossa Excelência’ (C. IV). χ construção discursiva

de reverenciar-se aos pés do outro e levar os lábios a esses pés para lhes beijar pressuporia

a total redução do ethos. Entretanto, de maneira paradoxal, esse aparente rebaixamento

constitui um recurso discursivo, e (se possível fosse) até mesmo atitudinal, para elevar a

representação de si próprio perante os superiores na hierarquia monárquica.

Além dos pés, como a imagem do mais baixo na estrutura do corpo humano,

apresenta-se a metonímia das mãos, como a parte que representaria a pessoa do Conde de

Oeiras na execução de suas ações. Com isso, observam-se as seguintes ocorrências: ‘Na

poderosa mão de Vossa Excelência que humildemente beijo, me encomendo a mim

mesmo, a meus filhos e a toda a minha casa’ (C. I); ‘Por isso me valho da poderosa mão

de Vossa Excelência’ (C. II). O epíteto ‘poderosa mão’ contém a carga semântica do afeto

de polaridade positiva, mas, sobretudo, a do julgamento de estima social. Essa estima

social, por se tratar da mão daquele que pode cuidar da família e das propriedades,

ascenciona-se à esfera da sanção social. Diante disso, o Conde seria, a exemplo do Rei, o

executor dos desígnios divinos, aquele que deteria o poder temporal.

(Des)construção do ethos

Uma estratégia discursiva recorrente é a da aparente desconstrução do ethos, por

meio da negação dos valores pessoais, no intuito de provar as características socialmente

ideadas de humildade e de subserviência. Ao se negar o conjunto das qualidades pessoais,

intenciona-se que o interlocutor verifique a incoerência desse rebaixamento extremo e

adote a atitude oposta: a de exaltar as qualidades negadas por esse autor. Nessa medida,

as negações seriam marcas linguísticas de ordem paradoxal, visando à aprovação do

518
superior. O fragmento ‘o grande dito com que o mesmo Senhor e Vossa Excelência me

honraram em se fiar de mim, sem eu ter merecimentos’ (C. I) aponta essa estratégia, uma

vez que o autor nega o seu merecimento. Essa negativa contradiz o universo da verdade,

haja vista os méritos pessoais que conduziram a sua nomeação, na tentativa de manipular

a reação do interlocutor.

Outra assertiva de rebaixamento está contida no fragmento: ‘Vossa Excelência será

servido dar nestas matérias as providências que lhe parecem mais justas, ilustrando com

as suas sábias instruções o meu entendimento’ (C. IV), em que sua inteligência é

subestimada em relação à do Conde, na mesma linha de construção discursiva que a da

negação anterior.

Embora exalte os atributos do seu interlocutor, em detrimento dos seus próprios, o

Morgado de Mateus afirma que ‘ninguém melhor do que Vossa Excelência sabe, que eu,

que me posso enganar com as paixões e com o amor próprio’ (C. II). χo se preocupar

com o fato de poder exaltar suas qualidades, reitera a ideia de que sua postura de

rebaixamento seria sincera e não um mecanismo de promoção do ethos. Serve-se de um

elemento típico da manipulação, que é o de “comunicar crenças implicitamente, isto é,

sem realmente afirmá-las e, portanto, com pouca chance de serem questionadas.” (Dijk,

2012, p. 123)

Deliberadamente, coloca o bem do seu governo acima de sua própria pessoa: ‘Não

desejo outra ventura, nem outro despacho mais do que alcançar que os meus cuidados, as

minhas diligências, e os meus desvelos em que não descanso, possam vir a servir de algum

aumento a estes Estados.’ (C. I). Mostra-se sempre desinteressado do que possa lhe ser

útil pessoalmente, visando ao bem do seu serviço.

Ao assumir os erros, redime-se ao alegar não ter errado de forma premeditada:

‘Peço encarecidamente a Vossa Excelência me perdoe em tudo o que possa ter

519
desacertado; porque asseguro muito muito a Vossa Excelência que me parece não terá

sido nem com dolo, nem por interesse.’ (C. I). O fato de poder errar fica diluído pela

justificativa de não se ter errado por querer prejudicar, nem por interesses pessoais. A

humildade é usada como recurso para justificar e, sobretudo, para redimir os erros. De

acordo com a dogmática católica (adotada de forma evidente pelos interlocutores) da

absolvição dos pecados mediante o arrependimento, o fato de reconhecer os erros seria o

bastante para serem perdoados, especialmente quando se comprova que não houve

intenção de errar.

Novamente em busca da reação de causar estranhamento no leitor a fim de que ele

conclua por si a falta de consistência da assertiva, afirma que tem vícios: ‘atacando não

os meus vícios /que era o que deveriam fazer/ mas as disposições principais do meu

governo, em que executo as reais ordens de Sua Majestade’ (C. II). χssegura, dessa

maneira, que se sentiria menos ofendido se suas falhas de conduta fossem criticadas ao

invés do seu trabalho, como foi feito.

Opõe-se, constantemente, aos corruptores da ordem, contrários ao governo, afinal

‘‘nem a reta administração da justiça se pode praticar, sem levantar o ódio dos maus: estes

são os que ofendem, que os bons não obram desta sorte, senão o bem e a caridade’ (C.

II). Por meio desse postulado, implicitamente situa a si mesmo no grupo dos ‘bons’ e, por

conseguinte, divulga a proposta de que seus atos estariam ligados ao ‘bem’ e à ‘caridade’.

Emprega o recurso da gradação de força ao intensificar com o adjetivo

‘indefectível’ o julgamento de estima social de ‘clemência’, no fragmento ‘e da

indefectível clemência de Sua Majestade, que Deus guarde, para que me não falte a graça

do mesmo Senhor porque sem ela nem as grandezas, quanto mais a minha humildade,

pode conservar-se, e melhor me fora não viver.’ (C. II). χpresenta a hipótese de que nem

mesmo os detentores de grandezas poderiam suportar a ausência de ‘graça’ do Rei.

520
Verbaliza, em acréscimo, deter a característica da humildade, como um julgamento de

estima social de polaridade negativa, mais uma vez de modo a rebaixar-se.

Estratégias deliberadas de vassalagem

Nas relações pessoais, que refletiam as relações políticas do período, estava

implícito o ‘contrato de vassalagem’. Esse contrato chegou a ser um documento escrito

com direitos e obrigações dos vassalos em relação a seus senhorios no período feudal e

estendeu-se ao longo dos séculos aos moradores de algumas colônias. Mesmo sem a

existência literal de contratos vassálicos entre os governantes, as nomeações já podem ser

consideradas como tal. Afinal, os governantes mantinham conduta de submissão às

ordens reais, responsáveis por sua nomeação, baseada nos critérios pessoais de confiança

e de amizade, do qual derivava a constante possibilidade de destituição. Daí os

governantes manterem em evidência o princípio de fidelidade ao Rei e, com isso, o

constante realce de seu ethos: ‘e do modo possível rendo a Vossa Excelência as graças

pelos especiais benefícios que a grandeza de Vossa Excelência está dispendendo

continuamente comigo, e com a minha casa’ (C. IV). Os benefícios recebidos são

considerados o bastante para o emprego vocabular de itens como ‘criados’, ‘súditos’, que

demonstram a submissão e obediência total ao superior em nome do Rei.

A obrigação perante o soberano reflete-se de forma explícita: ‘Dispense, meu

Senhor, a grandeza de Vossa Excelência que a um criado tão afetivo, e tão infinitamente

obrigado a Vossa Excelência como eu sou’ (C. I), ou até mesmo de maneira implícita,

por meio da prática do enaltecimento pessoal: ‘Desejo muito que a preciosíssima saúde

de Vossa Excelência se conserve sempre feliz para meu amparo. Que a amabilíssima

família da ilustríssima e excelentíssima casa de Vossa Excelência goze da mesma perfeita

disposição’ (C. I), em que se desejava a manutenção da prosperidade ao interlocutor.

521
O reconhecimento da valoração social do conde ganha instância máxima no

seguinte trecho: ‘a todos Vossa Excelência como pai e autor que é de tudo o que somos,

nos ampare e sustente e favoreça como pode’ (C. I). χ construção do imaginário de

paternidade associa o governo monárquico ao da religião católica, em que todas as

possibilidades provêm do pai.

χ postura para se ‘protestar a minha fiel obediência e reverente escravidão’ (C. III)

seria a de reverência do vassalo frente ao soberano, em que, humildemente, punha as

mãos juntas dentro das mãos do senhor como forma de simbolizar a submissão ao controle

do outro. Esse gesto, nomeado hominaticum no latim, tornou-se homenatge em um dialeto

da língua francesa e resultou no termo ‘homenagem’. χssim, prestava-se homenagem por

meio das cartas: ‘o meu reverente obséquio, a suma veneração com que de toda a parte

adoto o respeito de Vossa Excelência e a viva memória que sempre tenho das

recomendações de Vossa Excelência dos seus impreteríveis preceitos, e das inumeráveis

mercês com que Vossa Excelência me tem engrandecido’ (C. I). Sentindo-se agraciado

pelas concessões recebidas, agradece de maneira a seus superiores de maneira expressa e

deseja que ‘Deus, Nosso Senhor, guarde a Vossa Excelência para meu amparo’ (C. II),

incluindo-se como beneficiário da proteção divina, embora abaixo de seu superior.

Considerações finais

O presente artigo intencionou observar o discurso oficial setecentista produzido

pelo governador Morgado de Mateus em cartas enviadas a Portugal, no que diz respeito

às práticas que aparentemente denotam rebaixamento e menosprezo do seu ethos. Para

tanto, foram apresentadas as estratégias de enaltecimento do Conde de Oeiras enquanto

interlocutor e representante do Rei e as relações de poder contidas na intersubjetividade

dessa relação de direcionamento ascendente. Apresentaram-se alguns exemplos da

522
produção de imagens construídas pelo universo ideológico da vassalagem. Em acréscimo,

observaram-se a construção e manutenção do ethos do governador e capitão-general de

São Paulo por meio da materialidade discursiva do rebaixamento e de estratégias da

“vassalagem”.

No conjunto das quatro cartas apresentadas por meio de fragmentos, dessa maneira,

observa-se a prática comum no período setecentista de inferiorizar-se e exaltar o outro, a

fim de que o outro, de forma solidária, fizesse o mesmo. Ao ter ações e comportamento

elogiados pelo interlocutor, sobretudo por se tratar do grande detentor de poder, o Conde

de Oeiras, o Morgado de Mateus garantiria um estatuto de destaque ao seu ethos.

Observando-se as formas como o poder é “exercido, manifestado, descrito,

disfarçado ou legitimado” (Dijk, 2012, p. 39) no discurso político escrito na segunda

metade do século XVIII, nota-se que o discurso setecentista grafado nas cartas ultrapassa

a proposta de meramente comunicar as ocorrências locais e solicitar orientações. Esse

discurso pressupunha o cuidado com a manutenção de seu ethos por parte do autor e, em

última instância, conduzia à legitimação do poder das autoridades políticas europeias no

Brasil colonial. Observa-se, com isso, que o poder social não apenas aparece ‘nos’ ou

‘por meio dos’ discursos, mas também que é relevante como força societal ‘por detrás’

dos discursos, conforme Dijk (2012, p. 32)

Com base no pressuposto de que “a maioria das ideologias são formadas

discursivamente” (Dijk, 2012, p. 33), objetivou-se analisar o discurso veiculado nas cartas

administrativas do Morgado de Mateus em suas estruturas cognitivas e sociais. Tal análise

visou, portanto, retratar, mesmo que sucintamente, como se davam a construção das

identidades e as relações de poder setecentistas, a fim de se ampliar o conhecimento da

realidade e do imaginário coevos.

523
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525
Anexo – Carta III

526
Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Com esta occaziaõ MeuSenhor; dedar conta aVossaExcelência

doquetenho disposto Sobre os negocios prezentes do estado des

taCapitania, Voujuntamente Aos pés deVossaExcelência protestar

a minhafiel obediencia, ereverente escravidaõ, Edezejar

aVossaExcelência acontinuaçaõ dehuâ Saude mui feLix, Comque

Nos Seguremos /mediante o vigiLante Zelo deVossaExcelência/ to=

dos os augmentos, efelicidades desta Monarchia, EaCon-

soLaçaõ, eamparo dosque como eu tem em VossaExcelência sSua for-

tuna, etoda aSua esperança.

Bejo reverente os pés deVossaExcelência que Deoz

guarde muitos annos. Saõ PauLo 4 de Agosto de 1767.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Conde deOeyras De VossaExcelência

Cativo emenor Creado.

DomLuis AntoniodeSouza

527
AS EXIGÊNCIAS E PRESSÕES DA VIDA CONTEMPORÂNEA

Fernando José Matias* & Stéfani Niewöhner**

Faculdades EST, São Leopoldo

E-mails: fernandojosematias@hotmail.com, stefaniniewohner@gmail.com

Resumo: A depressão é um dos transtornos contemporâneos mais frequentes entre as

patologias mentais, tanto assim que foi chamada de “resfriado da psicopatologia”. Essa

sua assiduidade faz com que se imponha como uma das situações mais desafiadoras na

sociedade atual, revelando assim a necessidade de alternativas que sejam

metodologicamente refletidas e aprofundadas pelas mais variadas áreas do saber,

especialmente as das Ciências Humanas. Propõe-se então, a partir de exploração

bibliográfica, apontar algumas hipóteses referentes a exigências e pressões da vida

contemporânea que contribuem para esse processo de adoecimento social e comunitário

em que o ser humano está inserido e que irão nele se refletir. Conclui-se,

preeminentemente, que a base sobre a qual o Aconselhamento Pastoral tem a sua

inquietação e interação é o sofrimento humano, seja ele individual ou

coletivo/comunitário. Assim sendo, o Aconselhamento Pastoral tem a sua contribuição a

dar através da leitura teológica que faz da realidade; bem como propondo caminhos de

libertação e fortalecimento daqueles que se sentem esmagados pelas exigências e pressões

do modelo atual de vida. A fé cristã é a base do Aconselhamento Pastoral, cujo espaço

terapêutico de cuidado é a comunidade eclesial.

*
Mestrando – Pós-graduado – Bacharel em teologia – Faculdades EST – São Leopoldo, RS, Brasil. Bolsista
CAPES.
**
Mestranda e Bacharel em Teologia – Faculdades EST – São Leopoldo, RS, Brasil. Bolsista Cnpq.

528
Palavras-chave: Depressão, exigências, pressões, aconselhamento pastoral.

THE DEMANDS AND PRESSURES OF CONTEMPORARY LIFE

Abstract: Depression is one of the most frequent contemporary disorders among mental

pathologies, so much that it was called "cold of psychopathology". It’s attendance

imposes itself as one of the most challenging situations in today's society, thus revealing

the need for alternatives that are methodologically reflected and deepened by most diverse

areas of knowledge, particularly the Humanities. This article intends, from

bibliographical exploration, to pointing out some hypotheses regarding the demands and

pressures of contemporary life that contribute to this process of social and community

disease in which the human being is inserted and that will be reflected on him.

Preeminently, it’s concluded that the basis on which the Pastoral Counseling has its

restlessness and interaction is the human suffering, be it individual or collective /

community. Thus, the Pastoral Counseling has its contribution to offer through the

theological reading from the reality; well as proposing ways of liberation and

empowerment of those who feel overwhelmed by the demands and pressures of the

current model of life. The Christian faith is the basis of Pastoral Counseling, whose

therapeutic space of care is the ecclesial community.

Key words: Depression, demands, pressures, pastoral counseling.

Considerações iniciais

Vivemos num período de grandes questionamentos, mudanças e de adaptações

em relação ao ser humano e as suas mais diversas formas relacionamentos com o mundo

que está em sua volta. (Malta, 2010, p. 100). Esse novo quadro complexo em que o ser

humano contemporâneo está inserido pode ser ou tornar-se doentio e adoecedor. Afinal

529
de contas, a saúde e o bem-estar não dependem exclusivamente do bom funcionamento

dos órgãos, mas de muitas outras variáveis em que o indivíduo está inserido em sua

integralidade, inclusive a sua vida psíquica. Conseguintemente, muitas dessas dimensões

da realidade podem se tornar pesadas e, em muitas ocasiões, esmagadoras. (Glasenapp,

2012, p. 95, 96).

O peso que o ser humano, nosso contemporâneo, tenta carregar sobre os ombros

é impressionantemente maior do que as forças que ele tem a disposição. Anda encurvado,

cabisbaixo. Enfrenta uma situação parecida com aquela descrita na mitologia grega, ao

tratar sobre o castigo de Atlas. O ser humano tenta, e às vezes acha que conseguirá,

carregar e sustentar o peso do mundo e do firmamento sobre suas costas, o que se torna

desumano e tem sido a causa do adoecimento de muitas pessoas. Ninguém de nós “deveria

sentir-se isoladamente responsável por carregar todo o peso do mundo ou sobre si. Seria

um ‘castigo’ totalmente injusto, uma dívida não cobrável, uma responsabilidade

impossível de ser assumida”. (Assmann, 2000, p. 9).

Competição desmedida

Este modelo de vida em que estamos inseridos, extremamente competitivo, impõe

fardos incompatíveis com as capacidades que desenvolvemos ao longo da nossa história de

vida. Vivemos uma espécie de “darwinismo social” onde reina uma espécie de competição

desmedida em que os “mais aptos” são selecionados e, a seu modo, sobrevivem.

Consequentemente, as pessoas que não se enquadram nas superexpectativas desse modelo

são condenadas à solidão, ao abandono, ao desemprego, à pobreza, à existência marginal,

sendo assim devoradas por um sistema cruelmente capitalista. (Brakemeier, 2002, p. 12).

Segundo Kehl (2009, p. 22), um povo que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo

que se limite à lógica do mercado capital, não é capaz de amar e cuidar de seus deprimidos,

530
pois, a título do discurso capitalista, ela mesma é responsável pelo desenvolvimento e

desencadeamento de tal mal que se instala entre o seu povo.

O modelo competitivo, da busca desenfreada por sucesso, da lógica de ser sempre

o/a melhor, de estar sempre em evidência, em primeiro plano, é um modelo social adoecido.

Segundo Solomon (2010, p. 575), “Em sociedades animais, o tema essencial do sucesso é ‘eu

sou mais forte que você’, enquanto que nas sociedades humanas é, num grau muito maior,

‘eu sou incrivelmente bom’”, melhor que você. Frente a essa realidade se revela o seguinte

fato, assim como um animal pode ficar deprimido por ser espancado pelo seu grupo, o ser

humano pode ficar doente e deprimido por não estar em alto conceito ou por não ser digno

de admiração diante de seus semelhantes, por não ter atingido aquele nível de

superexpectativas irreais e irrealizáveis que foram projetados sobre si ou que ele mesmo

projetou sobre si (Solomon, 2010, p. 577). É necessário atentar ao seguinte fato, como

vivemos num mundo que é falho e vulnerável, pessoas perfeccionistas tendem ser deprimidas

e, ao mesmo tempo, pessoas das quais se exige constante perfeição tornam-se mais

vulneráveis à depressão (Solomon, 2010, p. 104).

Tudo aquilo que está relacionado a exigências supra-humanas, deveriam ser

descartadas, para o bem do ser humano. Aquelas coisas que se enquadram na categoria do

dever, do ter que fazer. O livre prazer deveria ocupar o lugar do patológico e irrealizável

dever. Tenho que ser o mais rápido, o melhor e realizar tudo com perfeição e sem erros.

Tenho que ser uma boa mãe e um bom pai, sempre disponível; tenho que ser um bom filho,

uma boa filha. Tenho que alcançar a perfeição em tudo. “χ quebra das minhas ilusões

também rompe a couraça que eu construí à minha volta. E assim sou aberto ao meu verdadeiro

Eu, para a imagem original e verdadeira que Deus fez de mim.” (Grün, 2011, p. 55).

O problema ainda se agrava se pensarmos que as superexpectativas projetadas

sobre o ser, além de irrealizáveis, são mutáveis e flutuantes. Conforme Brakemeier (2002,

531
p. 17), os modelos sociais contemporâneos são extremamente líquidos, metamórficos e

inconstantes. Querer estar sempre em alto e admirável conceito parece ser algo irreal, e

doentio. Sendo assim, para a humanidade a lei da selva se mostra como mortal. Além do

mais, lembra-nos bem Solomon (2010), os animais selvagens estão livres de alguns fardos

que pesam sobre o ser humano. Animais selvagens, por exemplo, não precisam assumir

empregos dos quais não gostam ou vão se arrepender; “não se forçam a interagir

calmamente, ano após ano, com aqueles de quem não gostam; não brigam pela custódia

do filho” (p. 577) e, no final, isso faz muita diferença.

Não há dúvida que o modelo de vida atual em que estamos inseridos é complexo

e faz com que vivamos em uma sociedade adoecida, patologizada e fragilizada.

Formação para o mercado de trabalho e a coisificação do ser humano

No âmbito das escolhas profissionais, temos a sequência da problemática. A busca

pelo espaço do exercício profissional exige cada vez mais conhecimentos técnicos e

específicos das pessoas que querem se candidatar a tal vaga. Há pouco mais de uma década

atrás, século XX, ter um diploma de datilografia era uma vantagem para ingressar no

mercado de trabalho, era motivo de orgulho, tanto assim que o diploma ia parar numa

moldura da parede da casa. Poderíamos nos perguntar o que vale hoje um diploma de

datilografia? (Cortella, 2013, p. 93).

Percebe-se atualmente uma explosão de ofertas de cursos técnicos que servem

para instrumentalizar o ser humano para que assim se torne uma boa ferramenta no atual

mercado de trabalho. Entretanto, não se percebe, nem de longe na mesma proporção, uma

procura e oferta no mercado de trabalho de cursos que ofereçam formação ligada, por

exemplo, à poesia, à filosofia e a tudo aquilo que envolve métodos de profunda reflexão

humana. Para o nosso modelo de mercado atual, isso parece desperdício e perda de tempo.

532
O que se quer é uma formação técnica, instrumental que, apesar de limitada, não deixa a

máquina capital parar. Mas justamente aí reside uma grande armadilha, pois as técnicas

para suprir as exigências do mercado sempre são cambiáveis, se modificam, se

transformam, pois as exigências do mercado são flutuantes. Novos níveis de qualidade são

exigidos a cada novo dia. O que faz com que novas técnicas e invenções logo, logo se

tornem ultrapassadas e obsoletas. E, pior ainda, o ser humano que as desenvolveu e as

dominava tão logo também é descartado, pois não atende mais a demanda e as exigências

do mercado atual. Neste processo, a dimensão emocional e afetiva do ser humano é

completamente ignorada e prioriza-se apenas a sua dimensão funcional, instrumental,

maquinal. (Castanho e Castanho, 2000, p. 95-131).

Ao mesmo tempo em que assistimos uma explosão de lançamentos e novos

inventos tecnológicos, o cérebro humano parece evoluir de forma mais lenta. Não

conseguimos sequer acompanhar o modelo de vida no qual estamos inseridos. O ser

humano está cercado de uma parafernália tecnológica da qual não domina e não sabe bem

como usar, e isso se reflete em todas as áreas. Até mesmo na área da saúde tem-se a

“sensação de que a tecnologia médica avançou além da capacidade médica de usá-la

sabiamente” (Glasenapp, 2012, p. 107).

Além disso, é importante lembrarmos que

A invisibilidade das profissões cuja contínua diversificação resulta numa gama

de possibilidades além da nossa compreensão. Nas sociedades pré-industriais,

uma criança podia caminhar por sua aldeia e ver os adultos trabalhando. Escolhia

(onde a escolha era possível) seu próprio trabalho com base em uma compreensão

bastante completa do que acarretava cada uma das ocupações disponíveis – o que

era ser um ferreiro, um moleiro ou um padeiro. [...] isso não é verdade em nossa

sociedade pós-industrial. Poucas pessoas sabem desde a infância o que faz

533
exatamente um gerente de fundos ou um administrador de cuidados de saúde ou

um professor-adjunto, ou como seria ter essas profissões. (Solomon, 2010, p. 579).

Isso gera insegurança, medo e instabilidade, pois muitas pessoas não sabem ao

certo o que é ou que fazem determinadas profissões ou cargos.

Muitas formas de exercício profissional estão fazendo com que pessoas

adoeçam. Algumas categorias de profissões sobrecarregam a pessoa e isso faz com que a

sua vida psíquica fique vulnerável. Uma pesquisa realizada pelo King’s College de

Londres revelou que “profissões que exigem atenção constante e respostas velozes

durante muitas horas por dia provocam depressão (e ‘estresse’) entre os que se dedicam

a elas”. (Kehl, 2009, p. 148). Os sintomas depressivos mais relatados entre o grupo de

trabalhadores investigados são: desânimo, falta de prazer na vida, sentimento de vazio e

de inutilidade.

Outro grande problema que se escancara no meio profissional é o processo de

desumanização. Existe uma “frieza” generalizada e instalada nos diversos meios do

exercício profissional. A supremacia da razão e da objetivação afastou o ser humano de

si mesmo e do seu próximo. (Malta, 2010, p. 100)

A desumanização, a tecnização e a despersonalização do ser humano fazem com

que o sujeito se torne objeto desfigurado, sem identidade e fique, paulatinamente, sem

dignidade a ser considerada. Esse processo degradador culmina na ideia de que a pessoa

somente tem um valor sob o aspecto dos valores comerciais. Ou seja, importa o que ela

tem não o que ela é. Se não tem nada a oferecer, é objeto de manobra e de exploração,

mercadoria “que se compra ou se despreza, força que se impõe ou sucumbe, máquina que

vira sucata tão logo deixa de funcionar” ou assim que não tenha nada a oferecer.

(Brakemeier, 2002, p. 13).

534
As pessoas são destituídas de seus nomes e passam a ser conhecidas por números

ou funções. São “substituídas por abstrações, entidades econômicas, lucros e dinheiro”.

(Wondracek, 2012, p. 95). São tratadas “matematicamente, informaticamente,

estatisticamente, contadas como animais, sendo tido em menor apreço do que esses” (Henry

em Wondracek, 2012, p. 95).

Esse processo de desumanização tem muitas facetas e fundamenta, por exemplo,

explorações desmedidas, apartheids sociais, violência endêmica em várias esferas da vida

e disputas desumanas por poder (Brakemeier, 2002, p. 12, 13). Com isso, constitui-se não

apenas um modelo de vida injusto e doentio, mas especialmente desumano, pois o ser

humano deixa de ser visto e compreendido como humano.

Conforme Boff (2008), esse modelo de trabalho, de competitividade desmedida,

de escravidão estrutural produtiva, de racionalismo exacerbado, de despersonalização e

desumanização está relacionado à cegueira causada pela ganância capital. Nessa cegueira,

o ser humano passa a funcionar como uma máquina. No entanto,

Há algo nos seres humanos que não se encontra nas máquinas, [...] o sentimento,

a capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e de sentir-se afetado. Um

computador e um robô não têm condições de cuidar do meio ambiente, de chorar

sobre as desgraças dos outros e de jubilar-se com a alegria do amigo. Um

computador não tem coração. (Boff, 2008, p. 99).

Para Boff (2008), o sentimento e atitude que pode mudar esse quadro, é o

cuidado. O ser humano que não sente mais, não se deixa tocar pela dor do outro, que não

se emociona, não se envolve, que é frio e calculista, está mais para máquina, que para

humano. Boff segue a sua reflexão e relata que o cuidado essencial é capaz de transformar

em sujeitos aquilo que a fria razão coisificou e tornou objeto de descuido, de uso e de

exploração. O cuidado é o sentimento e atitude que torna pessoas, coisas, situações e toda

535
a criação divina, em algo extremamente importante; e aquilo que é importante para nós

se torna alvo do cuidado mais profundo e indelével que está na essência do ser humano.

O cuidado está mais para a emoção e para o coração do que para a fria e calculista razão

do uso utilitário das coisas, criaturas e pessoas. Essa parece ser a forma de resgatar

humanidade mais essencial, fontal e ontológica do ser humano. (Boff, 2008, p. 100-103).

Relações interpessoais adoecidas

A complexidade patológica da vida humana contemporânea se reflete também

na esfera das relações. As pessoas, com poucas exceções, nasciam, cresciam, casavam e

morriam numa mesma localidade ou região. (Solomon, 2010, p. 580). Atualmente as

pessoas conhecem centenas e milhares de outras pessoas que são de muitos lugares

diferentes, no entanto, muitas dessas pessoas vivem isoladas em seu individualismo e se

baseiam na lógica do descartável. Tudo se tornou descartável, inclusive o ser humano foi

coisificado e também se tornou descartável. (Malta, 2010, p. 101, 102). Esse fator revela

que a vida humana e os laços relacionais já não possuem muito valor, pois a pessoa que

foi coisificada pode ser usada, manobrada, manipulada, explorada e desprezada, assim

como se faz com os objetos descartáveis, que começou com um simples guardanapo de

papel. (Brakemeier, 2002, p. 10).

O núcleo familiar se encontra fragilizado, fragmentado e com novos modelos.

As figuras que assumiam papel central no processo de cuidado e condução familiar vivem

atualmente sem tempo para exercer a sua vocação específica no seio familiar.

Não existe lugar para o diálogo entre pais e filhos; as pessoas estão sempre

correndo, o tempo diário no trabalho aumentou; é exigido que os adultos

dediquem-se mais ao trabalho e consequentemente há uma dedicação mínima aos

filhos, que vêm experienciando cada vez mais vivências de abandono; afinal, seus

536
pais não brincam mais com eles, não os põem para dormir. Outro ponto a refletir

é o divórcio, que aumentou consideravelmente e que provocou mudanças

significativas na estrutura familiar: no mais das vezes, o filho vê-se obrigado a

decidir entre o amor da mãe e o amor do pai, ou é acoplado a uma família que não

é originalmente a sua. (Malta, 2010, p. 102).

Kehl (2009) chama a atenção para o perigo dessa falta de tempo, das correrias

cotidianas e enlouquecedoras. Segundo essa autora, as depressões são denúncias de um

mal-estar social instalado na realidade em que vivemos. Nós carecemos a vivência de um

tempo em que o tempo seja menos importante. Um tempo onde as coisas podiam ser

vividas e saboreadas na lentidão e sem as amarras do tempo atual, que parece encurtar a

cada dia.

Gilberto Safra (2004, p. 11-14) ao refletir sobre a fragmentação do ethos no

mundo contemporâneo relata que o modelo de vida atual não reflete mais a medida

humana e que inúmeras formas de sofrimento psíquico são decorrentes das fraturas da

cidadania e de fraturas éticas. Entre essas fraturas o autor destaca: a) a humilhação

decorrida da exclusão social e do sentimento de ser visto pelas outras pessoas como

inferior, indigno e desprezível; b) o desenraizamento étnico (perda de ligação com os

elementos sensoriais e culturais que conectam as pessoas com à memória de sua origem

e a impossibilidade de encontrar e conviver com o seus “iguais”), estético (ideal de um

corpo irreal, falta de descanso e falta de sensibilidade com os ritmos do próprio corpo) e

ético (a falta de respeito e de responsabilidade com o próximo e com o meio em que

vivemos); c) no caso da invisibilidade a pessoa é ignorada, deixou de ser vista como ser

humano, virou parte da paisagem e foi invisibilizada no meio em que vive; d) o

desenvolvimento de uma tecnologia opressora que substitui o contato direto por

mediações tecnológicas e por terceirização de relações primárias. Crianças estão com

537
agenda semanal superlotada das mais variadas atividades, dentro de uma abundância de

diversas técnicas disponíveis. Essas crianças tendem a ficar aflitas e a se organizarem

para fora desse mundo desumano em que vivem, por carecerem de gestos simples

carregados do calor de amor, de cuidado e companheirismo.

Cortella (2013, p. 93) relata que uma pesquisa realizada em nos centros econômicos

mundiais revela que o convívio entre pais executivos junto a seus filhos e filhas não passava

de cinco minutos diários, inclusive no Brasil. Encontro entre pais e filhos se tornou coisa rara

em nossos dias, mesmo para aqueles e aquelas que moram sobre o mesmo teto. Segundo o

autor, somos a primeira geração em que os pais saem de casa, quando lá estão, mais tarde que

os filhos.

Por muitos e muitos anos, séculos até, os adultos acordamos as crianças (filho,

vai para a escola, toma café, toma...); hoje o filho levanta sozinho e sai às 6h30 ou

6h45 na van ou no ônibus, e o pai e a mãe, acordando mais tarde, saem para

trabalhar às 07h30, 8h... Assim, essa família quase não se encontra, filhos são

“criados” por outras pessoas e isso resulta em um impacto negativo na

consolidação de uma comunidade afetiva. (Cortella, 2013, p. 93,94).

Segundo Safra (2004, p. 11-14), é necessário que o ser humano reaprenda a

simplicidade originária da condição humana em tempos de tanta complexidade.

Outro tipo de pressão e peso exercido pelo modelo de vida contemporâneo é

nomadismo. O século XXI tornou-se um desterrador de raízes. As bases que nos eram

historicamente profundas e nos colocavam sobre uma realidade sólida, derreteram,

tornaram-se inconsistentes, fluidas, líquidas. O que era inteiro, o que era uma unidade, se

fragmenta, se despedaça. Isso é válido principalmente para as instituições tradicionais, a

exemplo da família, do matrimônio, do Estado, da Igreja, entre outras tantas (Esperandio,

2007). Um escritor, ao relatar essa problemática, conta a história de um jovem, cuja

538
família se mudou pelo menos cinco vezes num curto período e que se enforcou em um

grande carvalho no quintal de sua última casa. Esse rapaz deixou na árvore um bilhete

espetado que dizia o seguinte: “isto é a única coisa por aqui que tem raízes.” (Solomon,

2010, p. 580).

Bauman (2001, p. 143) trata desse assunto chamando-o de modernidade líquida e

fluida, que é radicalmente o oposto daquilo que anteriormente ele denomina de modernidade

sólida:

Se a modernidade sólida punha a duração eterna como principal motivo e princípio

da ação, a modernidade “fluida” não tem a função para a duração eterna. O “curto

prazo” substituiu o “longo prazo” e fez da instantaneidade seu ideal último.

(Bauman, 2001, p. 143).

Aquilo que eram consideradas bases firmes, fundamentadas e enraizadas na história,

na hereditariedade e na tradição, ficaram abaladas. As coisas não são mais tão previsíveis ou

duradouras. A imagem de algo sólido que, aos poucos, vai derretendo é compatível com o

desenvolvimento da história das relações, da tradição, das estruturas, dos valores, dos

costumes, em todos os seus níveis entre o ser humano, nosso contemporâneo. É o mundo da

vulnerabilidade, da instabilidade e da precariedade em que estamos inseridos. (Bauman,

2001, p. 184).

Faltam referenciais, não há no que se agarrar para não afundar ou então há coisas

demais que confundem e puxam para baixo. Muitas das certezas básicas e sólidas se foram

e muitas pessoas não sabem mais bem o que fazer, o que querer ou o que ser.

Sob o comando da tacocracia

539
A nossa época é marcada pelo seu caráter ‘fast’ e pelo vazio utópico. Tudo precisa

ser realizado com pressa, com rapidez. Cortella fala da tacocracia para nomear a supremacia

da velocidade e da rapidez características de nossos tempos. Segundo o referido autor, a

velocidade é o principal critério de qualidade para avaliarmos uma coisa como positiva ou

negativa. “Vai demorar para ficar pronto? Vou demorar para aprender isso? χ conexão é

demorada? A leitura desse livro é demorada? A visita ao museu é demorada? O culto é

demorado? Aprender a tocar este instrumento é demorado? Demora para fazer essa comida?

Então, não posso querer.” (Cortella, 2013, p. 20). χ pergunta crucial a se fazer é, se tudo

precisa ser feito com tanta rapidez para que eu ganhe mais tempo, o que faço com o tempo

que ganho?

O que regula e rege a nossa atual temporalidade urgente são os relógios de máxima

precisão, aqueles que contam os décimos de segundos, afinal temos pressa e tempo é

dinheiro. A forma de vivenciar os ritmos do corpo e de vida precisa ser rápida e

instantânea. A pulsação própria do corpo, que rege o ritmo do nosso jeito de ser, é

violentamente apressada pelos milésimos de segundos que aprendemos a contar. Ora, isso

não é natural do ser humano e não há medicação que possam nos ajudar a estar regulados

infinitamente neste ritmo descompassado entre corporeidade e temporalidade. (Kehl,

2009, p. 122, 123).

É importante destacar que apenas no fim do século XIII, nas torres das igrejas da

Europa, os relógios mecânicos começaram a marcar uma nova temporalidade para o ser

humano. Antes disso, a passagem do tempo era regulada pelos ciclos da natureza,

fundamental para o trabalho no campo bem como pelos horários dos ritos religiosos. O

tempo do trabalho era definido pelo percurso do sol. O tempo social, do ócio, meditação

e partilha era indicado pela Igreja, através de seus sinos que convidavam o povo para

540
orações em diferentes horas do dia e para as celebrações que aconteciam no templo,

cultos, sepultamentos, etc. (Kehl, 2009, p. 122, 123).

No fim da Idade Média, com o crescimento e desenvolvimento das cidades, que

seguiam uma linha de produção diferente da realidade agrária, marcada pela produção e

comercialização de produtos artesanais, e depois industrializados, é que começaria uma

nova relação do ser humano com o tempo. O tempo não seria mais regido pela ordem

natural e pelos ritmos naturais. Não é mais o sol que dita o horário de começar e de parar

de trabalhar, produzir. Não são os ciclos da natureza e estações do ano que conduzem o

ritmo de vida das pessoas, mas o tempo passa a ser contado de hora em hora. No século

XIV e XV, sem ainda existir os ponteiros dos minutos (que são maiores que o das horas),

surgem novos relógios para serem instalados nas prefeituras das cidades e não mais nas

torres da Igreja, onde se queria dizer, entre outras coisas, que o tempo também pertence a

Deus. Assim, o tempo do comércio, do negócio e do lucro, começa a substituir o tempo da

Igreja. “De lá para cá, o tempo humano nunca mais deixaria de ser contado em dinheiro”,

em produtividade, em competitividade, em rapidez. Agora, em meio a tecnologias

sofisticadas e cronometradas, minutos, segundos ou milésimos de segundos podem fazer a

diferença. (Kehl, 2009, p. 122, 123).

Para Fédida (2009, p. 15), a aceleração em que vivemos atualmente faz com que

tenhamos dificuldades de adaptação criativa neste tempo suprimido e veloz. O resultado

disso é a fragilização da vida psíquica do ser humano.

É frente a essa realidade que a pessoa depressiva “resiste com sua lentidão, seu

mergulho angustiado e angustiante. Ainda que eles não saibam disso, a inadaptação dos

depressivos em relação às formas contemporâneas de aproveitar o tempo pode ser

reveladora da memória recalcada de outra temporalidade, própria do ‘tempo em que o

541
tempo não contava’.” (Kehl, 2009, p. 122, 123). Foi-se o tempo do ócio e sobrou apenas

o tempo do negócio, ou seja, a negação o ócio (Kehl, 2009, p. 164).

Assim, o tempo que as pessoas se permitem esperar atualmente é muito curto.

Tudo exige pressa, agilidade, domínio. É necessário saber muitas coisas em menos tempo

e as pessoas parecem não estar preparadas para isso. (Malta, 2010, p. 101).

As tecnologias invadiram a nossa casa e a nossa vida e não sabemos bem como

funciona a maioria delas. Não sabemos até que ponto são boas ou prejudiciais. Há

muitos estresses específicos para os quais estamos equipados. O colapso da

família é, com certeza, um deles, e o advento da vida solitária é outro. A perda de

contato, e às vezes de intimidade, entre mães que trabalham e seus filhos é outra.

Levar uma vida de trabalho que não inclui nenhuma atividade física ou exercício

é outra. Viver sob uma luz artificial é outra. A perda do conforto da religião é

ainda outra. Incorporar a explosão de informações inerentes a nossa época é mais

outra. A lista pode ser expandida quase indefinidamente. Como podem os nossos

cérebros estar preparados para processar e tolerar tudo isso? Por que isso não seria

desgastante para eles? (Solomon, 2010, p. 581).

Brakemeier (2002, p. 7), refletindo em torno do filósofo Norbert Bolz sobre a

nossa era, lembra-nos: “Nossos grandes problemas não resultam da falta de conhecimento,

e, sim, de orientação; não somos ignorantes, estamos confusos.” É fato, hoje temos acesso

a informações sobre o ser humano e o meio em que vive que outras gerações jamais

conheceram ou tiveram acesso. No entanto, estamos, sim, confusos e desorientados. Uma

enxurrada de informações não garante acesso seguro do saber, antes, podem confundir e

trazer o sentimento de abandono e insegurança. Nosso modelo de vida atual parece não

estar saudável.

542
Diante de um estilo de vida fragilizado, muitos citam a influência de se ter um

sentido maior para a vida. Temos acesso a tantas coisas atualmente, muito mais que aqueles

e aquelas que nos antecederam, mas parece faltar um sentido maior, uma razão de estar aí no

mundo. Uma geração desmotivada, apática, tediosa e com medo do futuro, é uma geração

adoecida, fragilizada. A vida precisa ser vivida como algo que vale a pena, como algo com

um sentido de ser. Uma vida com sentido é uma vida dinâmica, ativa, produtiva. (Brakemeier,

2014, p. 8-10) “Um universo privado de sentido, inanimado, isto é, sem alma, mata também

a nobreza do ser humano e o rebaixa a um organismo que já não vive, e sim funciona.”

(Brakemeier, 2014, p. 15).

Falta de sentido na vida

Viktor Frankl (2008) percebeu que pessoas que tem ou encontram uma razão

para viver se tornam mais resistentes frente às intempéries da vida, pois são capazes de

encontrar um sentido até mesmo do sofrimento e na dor extrema. O referido autor chama

a atenção para algumas pesquisas realizadas na França, reproduzidas e confirmadas em

seu consultório em Viena, em relação à busca de um sentido para a vida.

Anos atrás, realizou-se na França uma pesquisa de opinião pública. Os resultados

mostraram que 89% das pessoas consultadas admitiram que o indivíduo precisa de

“algo” em função do qual viver. E 61% admitiram haver algo ou alguém em suas

próprias vidas pelo qual estariam dispostas até prontas a morrer. [...] Outra pesquisa

estatística, com dados de 7.948 alunos, em 48 Universidades, [...] perguntados sobre

o que consideravam “muito importante” para eles naquele momento, 16% dos

estudantes responderam “ganhar muito dinheiro”, 78% afirmaram que seu principal

543
objetivo era “encontrar um propósito e sentido para minha vida”. (Frankl, 2008, p.

125).

Uma vida com ausência de um sentido duradouro é angustiante e a angústia e

usurpa, exauri e mina as forças e energias vitais do ser humano. É necessário que se

encontre um significado à existência humana no mundo em que vivemos. (Malta, 2010,

p. 97, 98). Segundo Malta (2010, p. 99), consultórios terapêuticos estão lotados de pessoas

que buscam um sentido para a sua vida e que buscam entender as suas angústias.

Descobri que quatro dados são particularmente relevantes para a psicoterapia: a

nevitabilidade da morte para cada um de nós e para aqueles que amamos, a

liberdade de viver como desejamos, nossa fundamental condição de solidão e,

finalmente, a ausência de qualquer significado ou sentido óbvio para a vida.

(Yalom citado por Malta, 2010, p. 99).

Mesmo com toda a ciência e tecnologia ao nosso dispor, o ser humano sente-se

vazio e repleto de questões não respondidas, não resolvidas. O fato de ter um sentido na

vida pode se tornar uma força vital e propulsora para um existir e estar aí no mundo de

forma dinâmica, interativa e viva (Malta, 2010, p. 113). É justamente isso que parece

faltar em nossos tempos complexos e confusos.

É necessária a busca por sentidos temporários, pequenos, que podem variar de

pessoa para pessoa em diversos momentos de sua existência, mas que jamais deveriam

deixar de existir (Frankl, 2008, p. 133-135), como: o envolvimento em favor de

determinada causa ou objeto, esportes, música, arte, literatura, botânica, etc. que motivem

um envolvimento e uma auto-ocupação (Brakemeier, 2014, p. 9,12); mas também é

necessária a busca por um sentido duradouro, eterno, pois somente um sentindo eterno e

duradouro é capaz de trazer um sentido diferenciado aos sentidos temporários e

544
transitórios. Também é verdade que um sentido duradouro é capaz de evitar a ruína da

vida quando os primeiros sumirem ou não fizerem mais sentido. Sendo assim, é

imprudente depositar confiança e expectativas demasiadas naquilo que é transitório e

passageiro; por outro lado “sem um sentido maior, inerente à vida humana em especial e

ao mundo em geral, torna-se difícil sustentar os demais sentidos.” (ψrakemeier, 2014, p.

13).

Nesse sentido, a fé cristã – que também anda atualmente meio à margem em

nossa confusa sociedade – funcionava como uma base sólida e como um princípio

unificador do ser humano à sua essência e elemento central da vida (Malta, 2010, p. 102).

Esse enfraquecimento e desligamento acarretaram prejuízos profundos, pois o ser

humano que desistiu da fé e da espiritualidade arrisca-se a preencher esse lugar com

superficialidades como, por exemplo, as compras exageradas, busca por intensas

emoções, a busca desmedida por um padrão de beleza, a competição, a rivalidade, a

correria cotidiana que lhe traz a falta de tempo (Malta em Gomes, 2010, p. 102) e a

saudade do tempo em que o tempo não importava (Kehl, 2009, p. 122, 123).

Segundo Frankl (2008) faz-se necessário estar atento a esse sentido maior e

unificador que está ligado à essência e fonte da vida, ou então no lugar onde antes existia

a fé e a espiritualidade ficará o buraco de um vazio existencial (Frankl, 2008, p. 131),

habitando dentro de si (Brakemeier, 2014, p. 16). Ambas, tanto o preenchimento com

superficialidade quanto o vazio existencial trazem grandes prejuízos. Dentro dessa

complexa perspectiva, a ausência de uma fé genuína e a crise da espiritualidade trazem

consigo danos em tempos de tanta instabilidade e inseguranças, como os que nos são

impostos em nosso tempo presente.

545
Aconselhamento Pastoral

É necessário já de início deixar claro que o Aconselhamento Pastoral não é uma

função exclusiva de ministros e ministras ordenados; não está ligado exclusivamente à

ideia de dar conselhos e gerar dependência. Não se trata de uma relação de poder, mas de

uma relação dialogal entre parceiros. Essa relação tem como objetivo descobrir junto às

pessoas e em diferentes situações da vida o significado da liberdade cristã dos pecadores

e pecadoras que são aceitos pela graça de Deus, para que, assim, possam restabelecer uma

relação saudável e libertadora com o Deus de sua fé, consigo mesmas e com o próximo

de uma forma madura e consciente. (Schneider-Harpprecht, 2005, p. 291-292).

Segundo Hoch (1989), os instrumentos do Aconselhamento Pastoral são o ouvir

e o falar, pois estes dão voz ao sofrimento para articular o protesto e partir para a ação. O

Aconselhamento Pastoral caminha lado a lado com conhecimentos e técnicas da

psicologia. Afinal, a encarnação de Cristo ultrapassa os limites dos contextos sociais e

atinge os porões mais escuros e profundos da alma humana.

A arte do aconselhamento pastoral e psicológico consiste justamente em

oportunizar relações significativas com as pessoas atendidas de modo que elas,

experimentando uma nova forma de relação interpessoal, sejam capazes de

adquirir consciência dos modelos opressivos de interação a que estavam

submetidas e, aos poucos, ensaiar novos modelos de relacionamento. (Hoch, 2003,

p. 97).

Entre psicólogos que reconhecem a proximidade dialogal entre Poimênica e

Psicologia, podemos citar: Jung, Rogers, Frankl, Skiner, Perls, entre outros. No Brasil, em

1997 – no 2º Encontro Nacional de Profissionais na Área de Aconselhamento Pastoral,

Psicológico e de Saúde – um grupo de mais de quarenta pessoas fundou a Associação

546
Brasileira de Aconselhamento. (Schneider-Harpprecht, 1998, p. 79). Iniciativas

contemporâneas como o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristão (CPPC) também revelam

e reforçam a proximidade entre os dois saberes que prezam pelo cuidado do ser humano em

sua integralidade (Hoch, 1985, p. 249-270).

Assim sendo, é possível dizer que o Aconselhamento Pastoral é uma vocação pela

qual a Igreja como um todo foi e é chamada para cuidar das pessoas, através das pessoas e

do convívio fraterno e solidário entre as diferentes pessoas como fruto da fé. Sendo uma

forma de cuidado, o Aconselhamento Pastoral deve permanecer aberto ao diálogo

interdisciplinar e intervivencial e jamais deve se manifestar de forma unilateral. Pelo

contrário, deve vislumbrar o ser humano em sua integralidade vivencial e existencial.

(Schneider-Harpprecht, 1998, p. 83).

Ward (2001) ressalta que apesar de essa tarefa ser função da Igreja, e não apenas de

ministros e ministras, é impossível negar que o ministro e ministra são símbolos que apontam

para muito além de si mesmos e de sua pessoalidade. O ministro e a ministra apontam e

representam o Deus da vida e também uma comunidade de fé que está na base de sua ação

pastoral. Ou seja, o “visitador pastoral é o representante de Deus e vem de uma comunidade

de fé”. (Ward, 2011, p. 334-344). A referida autora chama atenção e enfatiza a importância

dessa realidade ao afirmar:

Nenhum outro profissional tem esse contexto à disposição para demonstrar a

comunidade de apoio agregada que constitui a força invisível proporcionada ao

paciente que está sozinho no hospital. Por meio das visitas do visitador pastoral o

paciente pode continuar participando da vida da comunidade da igreja da qual já fazia

parte.

547
Quando surge uma crise na vida de um indivíduo, a pessoa do visitador pastoral pode

mais uma vez representar um corpo de pessoas que está oferecendo orações, apoio,

consolo e força. (Ward, 2011, p. 334-344).

A tendência de compreender a atividade do Aconselhamento Pastoral como

tarefa exclusiva do pastor está vinculada à tradição do platonismo, que transparece no

conceito de cura d’almas, ao qual se entende que a salvação da alma imortal é mediada

pela figura pastoral, mediante a confissão e a absolvição. Uma vez que esse dualismo foi

superado e o ser humano voltou a ser compreendido como um ser integral, podemos ir

adiante e aprofundar a reflexão em torno da prática do Aconselhamento Pastoral como

forma de cuidado junto a pessoas fragilizadas em diversas situações da vida. (Schneider-

Harpprecht, 2005, p. 291).

Hoch (2003, p. 98) chama atenção para o fato de que a prática do Aconselhamento

Pastoral é uma forma de pregação do Evangelho encarnada, um jeito concreto de estar aí

no mundo e de se relacionar. Isso claramente não se refere apenas à pregação realizada no

culto, mas também. Ela vai um pouco além e extrapola os limites da vida cúltica e

celebrativa para alcançar o nível das relações e, assim, se encarnar concretamente na

realidade das pessoas. A comunidade cristã como um todo, como agente do cuidado

exercido através da prática do Aconselhamento Pastoral, é convidada a traduzir a Boa Nova

do Evangelho na linguagem das relações e, assim, tornar a solidariedade Evangélica algo

concreto e palpável e encarnado entre o sofrimento alheio. Nesse sentido, o

Aconselhamento Pastoral contextualizado e inculturado se torna uma hermenêutica

integrada da práxis cristã. (Schneider-Harpprecht, 2005, p. 309).

Ward (2001, p. 334-344) ressalta ainda a importância do silêncio no

aconselhamento. Segundo a referida autora, as formas de cuidado pastoral junto a pessoas

548
fragilizadas não se limitam ao discurso verbal, a verdades dogmáticas ou a ensinamentos

prontos e fechados em si. Para Ward, a presença, o estar junto em silêncio, o escutar com

o coração, o ouvir efetivamente a dor da outra pessoa em atitude de metaescuta ou escuta

ativa e profunda são características que denotam grande habilidade da parte do

aconselhador, da aconselhadora. Escutar com o coração, em atitude de metaescuta ou escuta

ativa e profunda, vai além do racional, do ouvir as palavras ditas pela pessoa que sofre. Este

ouvir inteiramente leva em consideração as expressões não verbais como, por exemplo, o

tom da sua voz, a expressões faciais, os gestos, a postura e a linguagem corporal. Ou seja,

a palavra aconselhamento que aqui usamos vai muito além da concepção de dar conselhos,

de dar tutela, de informar ou instruir.

Como fundamento dessa compreensão, podemos nos firmar no exemplo do

próprio Jesus Cristo diante do ser humano fragilizado. A sua vida foi marcada por

compaixão, solidariedade, solicitude, amor, respeito, convívio, comunhão e diálogo. O

seu ministério foi constituído e vivido numa rica, dinâmica e complexa interação com o

próximo que estava diante de si. Esta é a boa nova do Evangelho: Deus, na pessoa de

Jesus Cristo, vem para se relacionar “com seu povo em meio ao sofrimento e o faz de

forma humana, ou seja, através de um relacionamento fraterno, em moldes tais, que a

mais humilde das pessoas seja capaz de entendê-la. E, mais do que entendê-la,

experimentá-la.” (Hoch, 2003, p. 98).

O Aconselhamento Pastoral interage com pessoas em diversas situações de

sofrimento e fragilidade, buscando contribuir através da presença (o estar junto), da relação

direta, do ouvir atentamente (Clinebell, 2007, p. 69), da conversação e de outras formas de

comunicação que sejam metodologicamente refletidas. (Schneider-Harpprecht, 2005, p.

292). Com isso, exerce formas de cuidado e de recomposição quando a vida e as relações

549
humanas estão ofuscadas, comprometidas ou quebrantadas por situações de crise.

(Clinebell, 2007, p. 25).

Diante das situações de quebrantamento humano, a prática Poimênica do

Aconselhamento Pastoral pode propor iniciativas que funcionam como contraponto das

exigências e pressões da vida contemporânea e reaproximem o ser humano de sua

humanidade e temporalidade. Entre essas iniciativas poderíamos citar: Encontros de

contemplatividade no alvorecer; a Lectio divina; a prática da Escutatória (aprender a ouvir

e motivar as pessoas a falarem sobre suas dores); Cultos simbólicos e meditativos como,

por exemplo, o Culto de Tomé; Grupos de visitação (a Igreja indo ao encontro das pessoas

feridas e não apenas esperando elas virem ao seu encontro); Grupo de estudos temáticos;

Encontros e palestras com profissionais da área da saúde que compreendem o ser humano

em sua integralidade; o culto dominical deveria ser um lugar genuinamente de cuidado e

de anuncio da graça e do perdão incondicional de Deus; etc. Essas seriam algumas das

iniciativas que poderiam reconduzir a comunidade cristã no caminho do cuidado,

ajudando as pessoas a se sentirem pertencentes, partes desse corpo maior. A comunidade

é o local onde se vive a fé individual na coletividade, e isso quebra a lógica do

individualismo. É um corpo com muitas partes (1Co 12. 12ss; Rm 12.4-5) que não exclui

ninguém (Gl 3.26-28).

Conclusões

Wondracek (2012, p. 93, 94) alerta, a depressão não é apenas o resultado de um

achatamento da condição humana; ela é também a denúncia de um mal-estar contemporâneo

generalizado, ou, nas palavras de Kehl (2009, p. 32), sintoma de uma sociedade adoecida.

Para Kehl (2009, p. 103), “a depressão como sintoma social, é aquilo que resiste – ao

550
imperativo do gozo, à fé na felicidade consumista, à própria oferta de possibilidades de traição

da via desejante.” Com isso é possível dizer que os próprios sintomas depressivos são, em

última análise, a possibilidade de sobrevivência através de uma espécie neurose glacial que

tenta proteger a vida contra o que ela tem de vivo, como se atuasse através de “um sono de

hibernação”; ou ainda como uma tentativa de cura, frente a uma realidade humanamente

insuportável (FÉDIDA, 2009, p. 34). Para Grün (2011, p. 8), a depressão é um grito de

socorro da alma contra o desarraigamento e a sobrecarga decorrentes das mudanças cada vez

mais rápidas.

A realidade das exigências e pressões da vida contemporânea, resumidamente

descrita aqui, parece se mostrar de fato incompatível com as limitações humanas e isso

causa estresses crônicos, fragilizando e adoecendo o ser humano em vários níveis de sua

existencialidade. As pessoas que quiserem seguir cegamente nessa fluida e complexa

realidade em que vivemos atualmente, sem conseguir desistir de vínculos irreais,

superficiais, imprudentes e esvaziados, certamente sofrerão grandes prejuízos e desgastes

físicos, emocionais, relacionais e existenciais que, por sua vez, podem causar transtornos

à vida psíquica do ser humano, nosso contemporâneo.

Quanto à multidão de pessoas fragilizadas por depressão, Fédida (2009, p. 15)

alerta: quando se trata de vida psíquica, ferida e machucada, em um ser humano

vulnerável, não se pode poupar tempo de escutar. Justamente aqui reside o grande

fracasso da medicina em nossos dias. A psiquiatria, por exemplo, “não tem mais tempo

para se dedicar à observação e escuta dos doentes.” (Fédida, 2009, p. 10). Os médicos se

limitam a transcrever tratamentos única e exclusivamente medicamentoso, sem levar em

conta os dramas e dilemas da vida psíquica e das dores da alma. Na psiquiatria houve um

aniquilamento da concepção de vida psíquica, o que sugere que a depressão seria uma

enfermidade de origem única e exclusivamente biológica e neurobiológica, que deveria

551
ser tratada e corrigida apenas com recursos medicamentosos, alcançados através do uso

de antidepressivos (Fédida, 2009, p. 12), ignorando assim a importância de ser ouvido na

liberdade de seu próprio ritmo e em contato com expressões que possibilitam

redescobertas de realidades que perfazem o universo imaginário de uma vida interior.

Quando não se abre possibilidades para o diálogo interior e exterior, para a catarse, para

uma fala anamnética, onde não se sabe ouvir, acontece um esmagamento e achatamento

da vida psíquica do ser. (Fédida, 2009, p. 32). Conseguintemente, relembremos o alerta

de Fédida (2009, p. 15), quando se trata de vida psíquica, não se pode poupar tempo de

escutar, de ouvir atentamente.

Assim sendo, a comunidade cristã é legitimamente provocada a se reinventar

constantemente e a se edificar como espaço de cuidado, de pertença e de reenraizamento

e não como espaço do espetáculo mercadológico. A Igreja é, nas suas origens, lugar da

prática pastoral de cuidado e “a comunidade cristã é hoje desafiada a criar uma

espiritualidade na qual nossas emoções sejam reconhecidas como mais do que paixões

privadas que devem ser silenciadas por remédios particulares.” (Whitehead e Whitehead,

1997, p. 58).

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554
CICLOTURISMO, CORPO, SAÚDE E QUALIDADE DE VIDA

Leandro Dri Manfiolete & Carmen Maria Aguiar.

PPG Ciências da Motricidade UNESP Rio Claro

E-mail: leandro_dri@hotmail.com

Resumo: O ato de pedalar, técnica de movimento inserida no cotidiano de muitas pessoas,

é uma ação que pode ser incorporada como hábito para a promoção da saúde, visualizada

a partir dos aspectos físicos, psicológicos e sociais que são fatores envolvidos nesta

atividade. Tendo como foco a ampliação das possibilidades de vivência em ambiente

social, o objetivo deste trabalho é conhecer e registrar as relações entre cicloturismo e

qualidade de vida, a partir da perspectiva dos praticantes. A escolha pelos sujeitos

participantes foi feita de maneira intencional, abordando-se 32 pessoas, 30 homens e 2

mulheres, na faixa etária entre 20 e 60 anos. Como critério de inclusão, necessário e

primordial para a riqueza de informações atreladas ao tema, todos os sujeitos deveriam

ter participado de, pelo menos uma vez, a viagem ‘Jacarezinho-χparecida de bike’. Para

a coleta de dados, foram utilizadas as técnicas de entrevista semiestruturada e observação

participante. Para o tratamento e interpretação dos dados, foi empregada a técnica de

análise de conteúdo temático. Emergiram três categorias para discussão: aspectos físicos

e de estilo de vida, motivação pessoal e interação social, sendo que o tema qualidade de

vida permeou os discursos das três categorias. As informações obtidas colaboraram para

a compreensão de outras questões associadas ao cicloturismo, um objeto de estudo mais

amplo.

Palavras-chave: Bicicleta; Cicloturismo; Corpo; Qualidade de Vida; Saúde.

555
Abstract: Pedaling, movement technique inserted into the daily lives of many people, it

is an action that can be incorporated into a habit for health promotion, viewed from the

physical, psychological and social aspects that are factors involved in this activity.

Focusing on expanding the possibilities of living in a social environment, the aim of this

work was to study and record the relationship between cycling and quality of life, from

the perspective of practitioners. Choosing the study subjects was intentional way,

approaching 32 people, 30 men and 2 women, aged between 20 and 60 years. As inclusion

criteria, necessary and vital to the wealth of information linked to the theme, all persons

should have attended at least once, a trip 'Jacarézinho Aparecida-bike'. The techniques of

participant observation and semi-structured interviews were used to collect data. For the

treatment and interpretation of the data, we used the technique of content analysis. Three

categories emerged for discussion: physical aspects and lifestyle, personal motivation and

social interaction, and the quality of life theme permeated the speeches of the three

categories. Information obtained contributed to the understanding of several other issues

associated with cycling, an object of larger study.

Keywords: Bicycle; Cycling; Body; Quality of Life; Health.

1. Introdução

Tendo como foco a ampliação das possibilidades de vivência em ambiente social,

o objetivo deste trabalho é conhecer e registrar a interface das relações entre cicloturismo

e qualidade de vida, a partir da perspectiva dos praticantes. Levando em conta que as

relações sociais são a base das atividades desenvolvidas em todos os segmentos da

sociedade, a proposta do estudo será de contribuir para uma reflexão sobre o “corpo que

556
pedala” no contexto da motricidade humana, compreendendo o ciclista como membro

integrante de um universo sociocultural situado historicamente.

O ato de pedalar faz parte do cotidiano de muitas pessoas e pode ser incorporado

como hábito para a promoção da saúde e, até mesmo, de lazer, considerando os aspectos

físicos, psicológicos e sociais envolvidos nesta atividade. Isto faz com que andar de

bicicleta esteja inserido em diversos contextos socioculturais. Pedalar envolve uma

destreza que exige do ciclista interação corpo-bicicleta, o que se dá por meio de uma

sucessão constante de movimentos que permite o deslocamento rápido, seguro e

agradável. Trata-se de uma técnica corporal, isto é, uma maneira pela qual os indivíduos

utilizam seus corpos, cuja habilidade é apreendida conforme os padrões culturais de cada

sociedade, para realizar determinada atividade.

Percebe-se que o homem (ser humano) faz uso da bicicleta para diversas

finalidades. Pode ser utilizada como transporte no espaço urbano; para fins desportivos

como o “Ciclismo de Estrada”, o ”ψmx” e o mountain bike nas modalidades “Cross

Country” e “Downhill”; como prática de atividade física em academias denominada

“Spinning” e, entre outras modalidades, além do simples pedalar no domingo, pode servir

com o intuito de realizar viagens entre cidades, estados ou países, atividade denominada

cicloturismo.

Para Roldan (2000) o cicloturismo é uma prática de exercício físico onde a questão

do tempo é definida a partir do lugar que o ciclista percorrerá. Independente de sexo ou

idade podendo ser praticado sozinho ou em grupo, pedalar no meio urbano ou rural, em

qualquer época e período e com ou sem equipamentos auxiliares305. Segundo o autor, o

305
Há duas modalidades de cicloturismo: de forma autônoma e com suporte. Viajar com autonomia, o
cicloturista leva consigo tudo o que precisa na viagem, normalmente nas bolsas específicas para bicicleta
chamadas alforjes. Na modalidade com suporte, geralmente é contratado o serviço de apoio motorizado
para levar as bagagens, fazendo com que não seja necessário leva-las na bicicleta (ROLDAN, 2000).

557
objetivo da atividade é de conhecer lugares utilizando a bicicleta como meio de

locomoção, diferenciando-se de outras atividades não competitivas pelas dimensões

espaciais, cronológicas e de planejamento prévio. No Brasil, trata-se de um fenômeno

relativamente novo e, por isso, são encontradas poucas informações sobre a temática,

porém, tem ocorrido um aumento no número de informações nos últimos anos. A guisa

de exemplo, numa pesquisa realizada no sitio de busca Google na internet, foram

encontrados aproximadamente 447.000 páginas brasileiras que, abordavam de alguma

forma o tema cicloturismo.

A bicicleta sempre fez parte da minha vida como transporte. O interesse de se

investigar o ciclismo começou no terceiro ano da faculdade de Bacharelado em Educação

Física na UEL com o estudo das AFAN (Atividades Físicas de Aventura na Natureza),

relacionado aos praticantes de mountain bike e senti a necessidade de vivenciar a

atividade. Foi nesse contexto que realizei a primeira viagem de bicicleta. Saí de Londrina

– PR no dia 18 de dezembro de 2008, com um amigo, mas como ele teve de parar no

primeiro dia, cheguei sozinho à Piracicaba - SP cinco dias depois. Perpassando as cidades

dos dois estados, fiquei três dias pedalando durante a noite, um dia de descanso e, no

último dia, pedalando com a luz do sol cheguei ao destino dando-se por concluído o meu

primeiro cicloturismo. O quadro da bicicleta estava rachado próximo ao pé-de-vela, um

pneu furou duas vezes ao longo da viagem, mas tive a absoluta certeza de que outras

viagens seriam inevitáveis.

Utilizo como retrato o interesse na época pelo cicloturismo que foi quando realizei

a segunda “cicloviagem”, no ano seguinte, com um amigo onde visitamos a cachoeira

Salto do Rio do Tigre na cidade de São Jerônimo da Serra - PR. O curioso desta viagem

se deu na volta quando nos deparamos com um ciclista pedalando numa bicicleta toda

colorida. Tratava-se de Lavoisier Richard, que, naquele momento treinava para seu

558
desafio e nos contou sobre o Break on Through Project - Hard Bike Tour306. No mesmo

ano, ao finalizar a graduação retornei novamente para Piracicaba de bicicleta, mas agora,

hospedando na casa de outras pessoas. As condições foram às mesmas, porém, senti

diferença em relação ao meu corpo, pois enquanto na primeira vez foi um sofrimento

pedalar, desta vez percebi melhor os lugares por onde passei, creio eu, por estar melhor

preparado dado o tempo disponível para percorrer distâncias maiores com maior

frequência.

Com o ingresso na pós-graduação em 2012, publiquei artigo baseado em meu

Trabalho de Conclusão de Curso, que buscava compreender os sentidos da aderência ao

mountain bike na relação ser humano-natureza307. Partiu daí o interesse em investigar o

cicloturismo. Nesse mesmo ano realizei a viagem “Jacarezinho-χparecida de bike” com

os Ciclistas de Maria a qual se seguiu outra viagem no ano seguinte, em 2013. Foi

considerando estas experiências que a pesquisa se estruturou no sentido de compreender

o cicloturismo sob o contexto sociocultural desse grupo.

Considerando esses fatores, o caminho a ser percorrido será o de realizar uma

discussão sobre a condição do ciclista relativa aos aspectos físicos e estilo de vida,

motivação pessoal e interação social. Para a área de Educação Física, tal interesse se

justifica pelo ciclismo ser uma atividade que pode ser incorporada como prática de

atividade física e, ao mesmo tempo, como estilo de vida para o praticante, tamanho o

potencial desta prática corporal como alternativa às atividades físicas habituais. Para

tanto, o presente trabalho subdivide-se em três momentos. O primeiro refere-se a uma

306
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Break onThrough Project: Relato de Experiência sobre a Viagem
Hard Bike Tour no Contexto do Cicloturismo. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Argentina,
Año 16, Nº 162, Noviembre de 2011.
307
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Sentidos da Aderência ao Mountain Bike na Relação Ser-Humano-
Natureza. Revista ALESDE, Curitiba-PR; v. 2, n. 1, 2012.

559
descrição sobre os Ciclistas de Maria, grupo ao qual foram coletadas as informações da

pesquisa. O segundo momento refere-se aos “Procedimentos Metodológicos” delineando

a abordagem utilizada para coleta e análise dos dados. No terceiro momento, “χ

Qualidade de Vida e o Corpo que Pedala” são discutidos os termos chave do estudo e, no

último momento, as “Considerações Finais”.

2. Ciclistas de maria

O grupo Ciclistas de Maria reúne ciclistas que praticam cicloturismo nas rodovias

na região do Vale do Rio Paranapanema, divisor natural dos territórios dos Estados de São

Paulo e Paraná. O grupo tem sede na cidade de Jacarezinho, no estado do Paraná mais

especificamente na “Vidativa Sports”, academia de natação e bicicletaria. Idealizado por

um dos membros líder do grupo Claudio Henrique Cavazzani que, com mais dois amigos,

no ano de 2001, decidiram pedalar da cidade até a Estância Turística de Aparecida - SP,

capital Mariana do ψrasil, surgindo daí a viagem “Jacarezinho-Aparecida de bike”

(Figura 15).

Figura 15: integrantes da primeira viagem Jacarezinho-Aparecida de bike

Fonte: Ciclistas de Maria

560
Com um percurso de aproximadamente 680 quilômetros, o evento ocorre há treze

anos sempre durante o feriado de Corpus Christi. Até a nona edição da viagem, devido

ao menor número de pessoas e maior experiência dos envolvidos, a viagem era realizada

em três dias, porém, com o aumento no número de novos praticantes, o trajeto começou

a ser realizado em quatro dias. No trajeto, os ciclistas pedalam por rodovias asfaltadas

saindo de Jacarezinho pela rodovia Transbrasiliana (BR-153) para Ourinhos e, a partir

daí, cruzam o território do estado de São Paulo no sentido oeste-leste. Saindo desta

rodovia, pedalam sentido a rodovia Orlando Quagliato (SP-327) até a cidade de Santa

Cruz do Rio Pardo, para chegar até a Castelo Branco (SP-280), parando, no primeiro dia,

na cidade de Itatinga (Figura 16).

Figura 16: mapa da trajetória do primeiro dia de viagem

Fonte: Ciclistas de Maria

No segundo dia, os ciclistas continuam por esta mesma rodovia de manhã e, à

tarde, pedalam sentido rodovia do Açúcar (SP-308) e rodovia Santos Dummond (SP-75),

parando, para descanso, na cidade de Indaiatuba (Figura 17).

561
Figura 17: mapa da trajetória do segundo dia de viagem

Fonte: Ciclistas de Maria

No terceiro dia, após passar ao lado do Aeroporto de Viracopos na cidade de

Campinas, o grupo passa rapidamente pela rodovia Anhanguera (SP-330) e atravessa uma

rotatória, seguindo pela rodovia Dom Pedro (SP-65) até a cidade de Jacareí, onde param.

No segundo ano que viajei a parada se deu 20 quilômetros antes, na cidade de Igaratá, em

um hotel às margens da represa do Rio Jaguari (Figura 18).

Figura 18: mapa da trajetória do terceiro dia de viagem

Fonte: Ciclistas de Maria

No quarto e último dia, depois de pedalar certa distância pela rodovia Carvalho

Pinto (SP-070), o grupo passa a percorrer a última e mais perigosa rodovia do trajeto, a

Dutra (BR-116), na cidade de Taubaté (Figura 19). Antes de pedalar o trecho final, o

562
grupo faz uma parada ao lado da “tradicional placa” (Figura 20) que indica a distância de

46 quilômetros até Aparecida.

Figura 19: mapa da trajetória do quarto dia de viagem

Fonte: Ciclistas de Maria

Figura 20: última parada antes da chegada em Aparecida

Fonte: Ciclistas de Maria

Após o trecho percorrido na rodovia mais movimentada do país, o grupo se reúne

em um viaduto próximo à cidade afim de que todos cheguem juntos no complexo da

Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Em seguida, os ciclistas se encontram com os

familiares que viajaram para recepcioná-los na chegada e, quando todos já se

cumprimentaram, se forma um grande círculo para rezarem (Figura 21).

563
Figura 21: momento de oração no encontro de recepção com os familiares

Fonte: Ciclistas de Maria

Depois de se alimentar, o grupo descansa o restante do dia. À noite, no jantar de

confraternização, cada ciclista recebe um certificado de conclusão da viagem e, no ato da

entrega, cada um tem o seu momento para discursar sobre a trajetória percorrida. No

domingo pela manhã, o grupo assiste a missa de Corpus Christi na basílica; logo após

saem para visitar a cidade, almoçam e no começo da tarde retornam de ônibus.

Dois detalhes pertinentes ao contexto da viagem merecem atenção. O primeiro

detalhe se deve a mudança do percurso. Nas primeiras viagens, os Ciclistas de Maria

cruzavam a Marginal do Tietê na cidade de São Paulo, mas devido ao risco de acidentes

com veículos motorizados, o trajeto foi modificado passando agora pelo interior do

estado. O segundo detalhe é derivado desta mudança. Quando a viagem era realizada em

três dias, os ciclistas não paravam no santuário da Mãe e Rainha Schoenstatt na cidade de

Atibaia-SP, porém, a organização decidiu aumentar um dia na viagem para almoçar e

participar de uma missa de agradecimento no local (Figura 22). Sobre o santuário, o

Movimento Apostólico Internacional de Schoenstatt é um movimento católico mariano

fundado em 1914, na cidade de Schonstatt -Alemanha. Atualmente existem 195

santuários espalhados pelo mundo, sendo 22 no Brasil e, dentre estes, está o de Atibaia,

considerado o maior do Brasil e o de Jacarezinho, cidade do grupo Ciclistas de Maria.

564
Figura 22: missa de agradecimento no Santuário Mãe Rainha Schoenstatt

Fonte: Ciclistas de Maria

Um fato relevante da pesquisa é o aumento do número de participantes ao longo

dessas viagens. Até a oitava edição do evento, o número de ciclistas não passava de dez,

porém, em 2010 subiu para treze e, em 2011, vinte e dois ciclistas participaram da viagem.

Devido ao maior número de pessoas, houve a modificação referida no percurso e na

organização, com a implantação do carro e moto de apoio acompanhando os ciclistas

(Figura 23).

Figura 23: carro e moto de apoio

Fonte: Ciclistas de Maria

Após esta alteração, em 2012, o número saltou para vinte e nove ciclistas e, em

2013, trinta e quatro pessoas participaram da viagem. Para cada vez que o ciclista

participou da viagem, ganha uma camiseta personalizada com o logo dos Ciclistas de

Maria (Figura 24).

565
Figura 24: uniforme dos Ciclistas de Maria

Fonte: Ciclistas de Maria

Um membro líder do grupo comenta sobre o aumento na procura pela viagem quando

assume a bicicletaria na qual formou-se um lugar de encontro gerando mais visibilidade

à prática do cicloturismo na região:

Quando montamos a loja há dois anos, virou um ponto de encontro aonde às

pessoas vinham procurar um local para começar a pedalar sobre algumas

sugestões e recomendações e logo acabavam adquirindo sua bicicleta e

equipamento e começa a andar junto com a gente. É também um ponto de saída

para os treinos e viagens, ponto de encontro para vir conversar e referencia do

ciclismo e cicloturismo na região, de locais de mais de 100 km procuram a loja

para adquirir seu equipamento, recomendação ou até mesmo uma orientação vinda

de longe para conversar conosco.

Nas primeiras viagens, a organização era limitada ao ponto dos ciclistas terem de

levar seus pertences no bagageiro da bicicleta durante a viagem e não terem pontos

específicos para alimentação e descanso. Com a abertura do espaço, foi estabelecido um

lugar para discussão sobre a viagem e, percebendo a demanda, o líder do grupo e dono da

bicicletaria começou a pensar numa logística apropriada para a viagem. A partir disso, é

566
ofertado para cada ciclista um pacote de serviços que, dentre os custos, consta de hotel,

alimentação, uniforme e o carro de apoio para levar as bagagens e peças de manutenção

das bicicletas. Este formato fez com que a pessoa se preocupe apenas em pedalar, detalhe

que na visão dele, mudou a forma da viagem trazendo mais segurança para o grupo:

Nesses doze anos mudou muito. Por exemplo, saíamos daqui e não sabia onde ia

parar, pedalava 230 km a 280 km, variando o ano e local de parada, até chegar à

próxima cidade, que a gente prezava em não andar a noite, como prezamos hoje

em relação à segurança, não tinha local definido para parar e com isso, criaram-se

diversas situações que a gente chegava à cidade e não tinha lugar para dormir, não

achava hotel, encontrava local tarde da noite, não achava lugar para jantar e a

viagem, nesses doze anos foi cada vez mais se organizando. Começamos em três

ciclistas e nessa última viagem em 2013, estávamos com trinta e quatro ciclistas,

mais de sessenta pessoas já realizaram esta viagem e, percebemos que quanto

maior o número de ciclistas, alguns cuidados tiveram de ser tomados como a

reserva de hotéis, o meio de locomoção no retorno como o ônibus ser locado para

o retorno nosso, a reserva de restaurantes, tudo isso teve de ser criado, como

também o carro e moto de apoio. Teve de ser criada esta segurança porque se

percebia que o grupo não era mais homogêneo que era no começo, que eram

pessoas bem treinadas com o objetivo de fazer toda a viagem juntos no mesmo

ritmo, do primeiro ao último integrante que chegava. Hoje, percebe no grupo que

há vários níveis de treinamento, então o primeiro do grupo a chegar ao local de

destino chega muitas vezes duas a quatro horas antes do último ciclista chegar. Só

que para isso, o aparato de segurança tem de ser feito do primeiro ao último

ciclista, então por isso contamos com carro e moto de apoio, reservas pré-

definidas. Vimos que nesses doze anos, muita coisa mudou, ou se torna um grupo

567
mais organizado com os equipamentos de segurança melhor, todo mundo

uniformizado, mas o objetivo continua o mesmo de chegar a Aparecida, só que a

forma de chegar se deu de forma diferente de antigamente.

Com o aumento no número de adeptos, a viagem não é mais feita apenas por um

grupo homogêneo como era antes, mas foi desmembrada em vários pequenos grupos e,

para garantir que todos estarão sendo acompanhados foi implantado o apoio motorizado

que melhorou as condições de segurança para os ciclistas. Para acompanhá-los como

apoio é escolhido um dos integrantes do grupo que participava da viagem quando era

realizada sem o carro de apoio. Um desses apoios comenta sobre a diferença entre ir

pedalando e, agora, oferecendo segurança para os que estão pedalando:

Pela experiência de eu já ter ido, uma pessoa no apoio que nunca foi pedalando,

talvez não tenha a mesma visão que eu tenho, eu consigo visualizar o estado físico

de cada um durante a viagem e eu sei pela experiência de já ter ido e sofrido

durante a viagem, eu sei os pontos onde as pessoas irão precisar do apoio, consigo

saber a quilometragem que vão precisar do apoio, consigo pela fisionomia dos

ciclistas saber como eles estão se vai precisar já ou daqui a pouco. Por exemplo,

quando estou atrás, paro e vejo o último, pela fisionomia dele, eu sei se posso

adiantar e o quanto eu posso adiantar, ou se eu tenho que ficar próximo dele

porque daqui a pouco ele vai precisar de mim e os pontos da viagem, o trecho que

força mais e exige do atleta e daí vem o lado da experiência de estrada e do cuidado

com o transito.

Este cuidado de acompanhar todos do grupo, ajudando no momento que o ciclista

precisar, foi uma medida primordial para que aumentasse o número de adeptos. Isto

porque deste modo ninguém fica para trás, pois todos devem chegar ao final do dia no

destino proposto.

568
Em relação às atividades, como o feriado geralmente ocorre no mês do junho, três

meses antes o grupo começa a se reunir duas vezes durante a semana para pedalar, com

saída próxima das 17h30min em frente à mesma igreja de partida da viagem. A distância

dos trajetos varia em aproximadamente 60 quilômetros com duração de três horas, o que

facilita a inserção dos iniciantes que almejam um dia chegar a Aparecida de bicicleta. Aos

finais de semana são realizados os pedais longos, que variam de 100 a 150 quilômetros

de distância com duração média de sete horas, conforme o trajeto escolhido. Com saída

às 06h30min em frente à mesma igreja de partida da viagem para Aparecida, estas

pedaladas são, geralmente, praticadas pelos mais experientes, mas algumas vezes, os

iniciantes se arriscam a pedalar e quem mantém a aderência, se sente confiante e

preparado para fazer a viagem. Na maioria das vezes, o destino das pedaladas são as

estradas de asfalto, porém, algumas vezes, saem para pedalar por caminhos de terra. Esta

característica se deve muito pela viagem ser percorrida na estrada de asfalto, mas também

ao tempo e pela velocidade e distância que se consegue percorrer.

Os encontros do grupo não ficam restritos apenas às pedaladas rotineiras. Quando

o grupo começa a se encontrar para pedalar, uma vez por mês eles se reúnem para assistir

à missa e, após, discutem sobre a logística e organização, fazendo, ao final, um almoço

de confraternização. Esses encontros são realizados para discutir os detalhes da viagem.

Às vezes, alguns dos integrantes do grupo também realizam encontros, com churrasco,

em suas próprias casas para conversarem mais e se conhecerem melhor, depois do “pedal

longo”.

3. Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa é de natureza qualitativa. Conforme Minayo (2010, p. 57), pesquisas

qualitativas se aplicam ao estudo da história, das relações, das representações, das

569
crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos

fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e

pensam. A escolha pelos sujeitos fez-se de maneira intencional, porém, de acordo com o

interesse de ambos: colaborador e pesquisador. Foram abordados trinta e dois indivíduos,

trinta homens e duas mulheres, na faixa etária entre vinte e sessenta anos. O critério de

inclusão foi ter realizado, pelo menos uma vez, a viagem “Jacarezinho-Aparecida de

bike”.

Na volta da segunda viagem que participei no ano de 2013, por estar praticamente

todo o grupo reunido, decidi como momento oportuno para conscientizá-los sobre a

investigação e que, necessitava fazer uma entrevista gravada com aqueles que estivessem

dispostos a participar, dando-lhes liberdade a possíveis dúvidas e questionamentos. Os

participantes das entrevistas foram os ciclistas que o pesquisador teve contato nas duas

viagens que participou. Antes da realização das entrevistas realizadas na “Vidativa

Sports”, foi solicitado para cada sujeito assinar o TCLE – Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido, aprovado pelo CEP - Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos, do

IB - Instituto de Biociências, da UNESP campus Rio Claro. Aos que moravam nas cidades

de Ourinhos - SP e Santa Cruz do Rio Pardo - SP e em Ribeirão do Pinhal – PR foi

agendado um dia para a realização das entrevistas e, como de praxe, o pesquisador se

dirigiu até eles de bicicleta.

Em relação a coleta de dados, foi empregada a técnica de entrevista

semiestruturada em que o entrevistado teve a possibilidade de discorrer sobre o tema em

questão, mas sem se prender à indagação formulada. Este tipo de abordagem permite

maior liberdade aos entrevistados para seguirem a linha de seus próprios pensamentos e

experiências, orientados por questões-chave, tendo por objetivo captar informações sobre

sentidos, significados, motivações, sensações e valores relativos ao tempo de vivência

570
atrelado à prática (MYNAIO, 2010). Nesse tipo de pesquisa, segundo Triviños (2007), o

pesquisador deve assumir no momento da entrevista, uma postura com o colaborador de

uma conversação com um propósito definido, ou seja, deve-se tornar a conversa como

uma forma de interação social mais próxima da realidade valorizando o uso da palavra,

símbolo ou signo por meio da qual os atores sociais constroem procurando dar sentido a

realidade que os cerca.

Foram três meses acompanhando o grupo de forma efetiva, antes da segunda

viagem que participei, seja no espaço de encontros dos ciclistas na ‘Vidativa Sports’,

como também pedalando todo final de semana e, rotineiramente, uma vez durante a

semana, em pedaladas próximas às redondezas da cidade. Um momento importante no

contato com o grupo foi o cicloturismo pelo “Caminho da Fé”, que resultou em um relato

de experiência308.

Depois de gravados os dados, fez-se a transcrição do material coletado. Para a

análise dos dados obtidos, utilizamos a Análise de Conteúdo, definida como um conjunto

de técnicas que visa obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos

relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (BARDIN, 1979, p. 42).

Dentre as modalidades dessa análise, o estudo optou pela temática, por ser segundo

Minayo (2010) a mais simples e apropriada para a investigação qualitativa em saúde.

Emergiram três categorias para análise: aspectos físicos e estilo de vida, motivação

pessoal e interação social. As informações obtidas colaboraram para a compreensão de

várias outras questões associadas ao cicloturismo, um objeto de estudo mais amplo.

308
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Os Ciclistas de Maria e o Caminho da Fé. EFDeportes.com, Revista
Digital. Buenos Aires, Argentina - Año 18, Nº 181, Junio de 2013.

571
4. A qualidade de vida e o corpo que pedala

Neste terceiro momento do trabalho, são apresentadas reflexões que emergiram a

partir dos discursos, a fim de aprofundar o conhecimento sobre o tema. Porém, antes de

abordar as categorias que foram selecionadas para análise, é necessária uma

contextualização sobre a “qualidade de vida” e o “corpo que pedala”, visto que estes dois

termos permeiam os discursos, independente das categorias analíticas.

De acordo com Minayo et. al. (2000), qualidade de vida é uma noção

eminentemente humana, aproximada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar,

amorosa, social e ambiental, que pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural

de todos os elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e

bem-estar. Gonçalves (2004) entende o conceito de qualidade de vida como a percepção

subjetiva do processo de produção, circulação e consumo de bens e riquezas, ou seja, é a

forma pela qual cada pessoa vive seu dia-a-dia. Para Nahas (2001) qualidade de vida é a

condição humana derivada do conjunto de parâmetros individuais e socioambientais, que

caracterizam a forma como vive o ser humano. Não existe um único conceito sobre

qualidade de vida, mas se podem estabelecer elementos para pensar nessa noção enquanto

fruto de indicadores sociais ou individuais, a partir da percepção que os sujeitos

constroem em seu meio (BARBOSA, 1998).

Quanto à análise semântica, tem-se que o termo “Qualidade”, num sentido

filosófico, refere-se a um caráter do objeto, que a princípio nada diz sobre ele, suas

propriedades ou possibilidades sendo que caracterizar algo pela sua qualidade é estipular

um nível bom ou ruim a ele, porém, essa atribuição é subjetiva, de acordo com o

referencial e os elementos considerados (BETTI, 2002). Uma boa percepção de qualidade

de vida dependerá das possibilidades que tenham as pessoas de satisfazer adequadamente

suas necessidades fundamentais, ou seja, uma boa ou má percepção sobre a vida é relativa

572
à qualidade do ambiente em que se encontra o sujeito, ao oferecimento de condições de

realização e de satisfação das necessidades básicas que a própria sociedade estipula como

essenciais, e que o interessado toma e deseja, ou não, como verdade para sua própria vida

(ALMEIDA et. al., 2012, p.38).

A condição de qualidade de vida está ligada à área da saúde. As intervenções nesse

campo se dão em alterações e melhorias do estilo de vida das pessoas (MINAYO et. al.,

2000). O esporte ligado à qualidade de vida é considerado um dos grandes desafios atuais

dos programas de promoção à saúde, cabendo ao educador físico o encargo de que essa

proposição alcance sua finalidade (KREBS, 2002). Para Czeresnia e Freitas (2009), o que

caracteriza a promoção da saúde é os determinantes gerais que influenciam nas condições

de saúde como produto de um amplo número de fatores relacionados com a qualidade de

vida. Dentre estes fatores, inclui-se o padrão adequado de alimentação, nutrição,

habitação, saneamento, boas condições de trabalho, oportunidade de educação ao longo

da vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos e um estilo de vida

responsável adequado com os cuidados de saúde. Segundo Matsudo (2011) o ato de

pedalar como promoção da saúde é uma forma de movimento do corpo que gera

benefícios não apenas no âmbito físico, mas também no psicológico e social

possibilitando o encontro e a socialização com outras pessoas e que contribui em diversos

aspectos para o acesso à qualidade de vida.

Muito se tem vinculado na mídia sobre a relação da bicicleta com a saúde. O tema

é tão importante que o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban

Ki-moon, considerado o advogado da bicicleta, espera que esta cultura continue crescendo

nas cidades. A entidade entende que a mobilidade é uma questão central da agenda atual

e que, já traçou o uso da bicicleta como promoção à saúde no mundo, tanto pela

necessidade de redução de poluentes no ambiente das cidades devido à elevada

573
motorização, como também pela redução de indivíduos portadores de doenças crônico-

degenerativas que a sua utilização como meio de transporte pode representar a médio e

longo prazo (DETRAN-RS, s/d).

A qualidade de vida está ligada a noção de corpo. Por isso, no campo da educação

física dá-se certa ênfase a esta discussão. Acompanhando este substantivo, imprime-se

uma série de adjetivos como saudável, natural, holístico, moderno, consciente, inteiro,

prazeroso, gordo, magro, entre outros (GREINER, 2005). Para aqueles que trabalham

com o corpo humano no contexto do exercício físico e lidam com os adjetivos incutidos

a esta palavra, é importante uma reflexão sobre o tema.

De acordo com a etimologia da palavra, o substantivo corpo nasceu do latim

corpus e corporis e pertence à mesma família de corpulência e incorporar; corpus

designava o corpo morto, o cadáver, em oposição à alma ou anima. Assim, nasceu uma

divisão que atravessou séculos e culturas, separando o material do mental, o corpo morto

do corpo vivo. Nesse caso, a noção de corpo teria a ver com o que é sólido, tangível,

sensível e, sobretudo banhado pela luz, portanto visível e com forma. Como o corpo

abrangeria muitos elementos acabou designando, ainda, tudo que está reunido, uma

“corporação”. χssim, o corpo poderia ser entendido também como corpo de uma doutrina

ou corpo da lógica. Já a carne ou o carnal (em grego sarx e em latim caro) implicaria em

keiro, da palavra grega que significa cortar, destacar (GREINER, 2005, p. 17).

Um filósofo em particular exemplifica esta separação marcando a passagem da

Idade Média para a Moderna e que, ainda influência a atuação do profissional de educação

física é René Descartes. Ao estudar o pensamento do autor, conhecemos o dualismo

cartesiano, cuja premissa é a separação entre corpo e alma. Este pensador que viveu no

século XVII, é considerado o pai da filosofia moderna devido às grandes contribuições

realizadas por ele no mundo científico (ARANHA; MARTINS, 2003).

574
Esta dualidade histórica reflete na relação corpo/bicicleta, no campo da Educação

Física, e impede a maior compreensão da abrangência do fenômeno do ciclismo como

parte de uma cultura de movimento. Para Velozo (2010) grande parte das pesquisas sobre

o tema na literatura da Educação Física brasileira, estão relacionadas à racionalização do

corpo e do movimento tendo como interesse principal a otimização no desempenho do

ciclista. Segundo Kunz e Trebels (2006), as pesquisas na área, geralmente estão baseadas

em um paradigma reducionista, limitando-se a verificar e analisar os mecanismos

fisiológicos, porém, a importância do pesquisador em reconhecer que o homem é um ser

a um só tempo biológico e cultural, é primordial, pois os domínios operacionais

(fisiológico) e relacionais (cultural) estão emaranhados por essência.

Considerando esses argumentos, interpomos uma nova perspectiva de entender a

situação: a relação do “corpo que pedala”. O ‘corpo da bicicleta’ se unifica com o corpo

do seu condutor na composição de uma verdadeira dança conjunta e estrutural. Nesse

caso, o ciclista se põe a prova a uma série de competências práticas e perceptivas que o

permitem pedalar com segurança, dispondo no momento que está em cima da bicicleta,

formas de conduta necessárias para adequar-se a diferentes situações, como a

imprudência de motoristas, a travessia de um local movimentado, as condições adversas

do clima, o som ambiente que se torna importante recurso para o indivíduo conduzir a

bicicleta, como alguns que pedalam ouvindo música e outros o utilizam como espelho

retrovisor de um automóvel, orientando-se, assim, melhor no trânsito.

A bicicleta proporciona uma relação com o corpo de forma única. Podemos

comparar o caminhar com o andar de bicicleta. Enquanto andar a pé é uma sucessão de

desequilíbrios e equilíbrios, já que quando é dado um passo o corpo se desequilibra para

aquele lado, e, para recuperar o equilíbrio, novo passo é dado com a outra perna e assim

sucessivamente, andar de bicicleta parece o oposto disto, pois enquanto a pessoa está em

575
cima da bicicleta e seu corpo desequilibra para um lado, o movimento necessário para

retomar o equilíbrio é, justamente, inclinar a bicicleta para o próprio lado, exatamente no

sentido oposto ao da correção do desequilíbrio do andar natural (GUIMARÃES, 2009).

Quando se está andando a pé e a pessoa desequilibra, é necessário parar para

recuperar o equilíbrio. Na bicicleta, é, novamente, ao contrário. Ao andar de bicicleta,

quando a pessoa começa a perder o equilíbrio, é preciso acelerar as pedaladas para obter

mais velocidade e buscar novamente o equilíbrio. Parece até uma ação antinatural virar a

bicicleta para o lado que está inclinado ou para recuperar o equilíbrio ao aumentar a

velocidade, mas isto ocorre devido à aplicação do princípio do movimento giroscópico309,

mas o fato é que o ato parece fácil tanto que, a maioria das pessoas começa a andar de

bicicleta desde a infância (GUIMARÃES, 2009).

Com a exposição cada vez maior na mídia sobre os usos da bicicleta pela

sociedade nos momentos de lazer, no âmbito esportivo ou, até mesmo, no contexto da

mobilidade urbana, a utilização deste equipamento tem proporcionado uma “redescoberta

do corpo” por quem a usufrui:

As descobertas do corpo possuem uma história secular e vasta, pontuada pelos

avanços e limites do conhecimento humano. Pois se o corpo não cessa de ser

descoberto, é preciso não perder de vista a provisoriedade de cada conhecimento

produzido a seu respeito: constantemente redescoberto, nunca, porém,

completamente revelado! Cada tentativa feita para conhecer o funcionamento do

309
Sobre o movimento giroscópico, este é caracterizado pelo equilíbrio do condutor em cima da bicicleta
quando a velocidade de movimento mantém uma relação linear do guidão com as rodas, ou seja, quando
o ciclista aumenta a cadência da pedalada, ele se movimenta numa direção retilínea ao passo que se ele
quiser realizar uma curva, ele precisa diminuir a velocidade para depois realiza-la, haja vista os
velódromos serem inclinados para que os ciclistas não precisarem diminuir a velocidade. Como exemplo,
podemos observar que, em boa parte das quedas de um ciclista iniciante, se dão no instante de frear e
mudar a trajetória, tamanha a adaptação do corpo que pedala para adequar a este movimento.

576
corpo, incluindo os seus significados biológicos e culturais, é desencadeadora de

esclarecimentos e de dúvidas inusitadas a seu respeito. Da medicina dos humores

à biotecnologia contemporânea, passando pela invenção de regimes, cirurgias,

cosméticos e técnicas disciplinares, o conhecimento do corpo é por excelência

histórico, relacionada aos receios e sonhos de cada época, cultura e grupo social

(Sant'Anna, 2000, p.237).

Embora as descobertas do corpo não sejam uma novidade da atualidade, foram no

decorrer dos últimos quarenta anos do século XX que elas ganharam uma importância

inusitada. Após os movimentos sociais da década de 60, o corpo foi redescoberto na arte,

na política, na ciência e na mídia, provocando um verdadeiro “corporeismo” nas

sociedades ocidentais (SχNT’χNNχ, 2000).

Na década de 80, algumas questões se aliaram a outras redescobertas do corpo.

Pregava-se a necessidade de estimular o físico no lazer e nos esportes sem esquecer-se de

aliar o prazer ao pragmatismo. É quando o estilo esportivo conquistou as ruas e as

moradias de milhares de pessoas que não eram atletas profissionais. Havia, enfim, a

tentativa de acelerar os deslocamentos do corpo e de generalizar o estilo esportivo que

prega a autonomia como norma e a conquista de novos recordes como meta. Para a autora,

nos anos 90 novas redescobertas e críticas são formuladas. Nos grandes centros urbanos,

houve uma aceleração do processo de diminuição das condições mínimas de lazer e de

saúde, sendo assim redescobrir o corpo começava a soar muito menos como moda ou um

signo da modernidade, e muito mais como necessidade básica e opção para garantia de

um mínimo de qualidade de vida (SχNT’χNNχ, 2000).

A bicicleta representa, a partir do ato de pedalar, uma atividade mais natural do

que possa parecer, pois realiza de modo completo a simbiose ‘homem-máquina’,

condição primordial que caracteriza o homem moderno. Seja como instrumento de

577
trabalho, como meio de locomoção das grandes metrópoles às pequenas vilas ou como

esporte praticado por um grande número de adeptos amadores, andar de bicicleta evoluiu

gradativamente desde sua criação e foi incorporado às práticas culturais da modernidade,

ocupando hoje posição de destaque (SCHETINO, 2008). Esta posição deve-se à

versatilidade na qual a bicicleta pode se encaixar na vida das pessoas, até mesmo como

lazer para viajar. O cicloturismo no Brasil se apresenta como um fenômeno com enorme

potencial de crescimento seja para as localidades que ganham com mais turistas como

para o praticante que sente os efeitos no corpo que pedala.

5. Considerações finais

O registro das relações entre cicloturismo e qualidade de vida, objetivo deste

trabalho, possibilitou que fossem elencadas três categorias de análise, que, apesar de

sobreporem em alguns aspectos, buscaram entender o contexto geral do tema, sob a

perspectiva dos praticantes. χs principais contribuições para uma reflexão sobre o “corpo

que pedala” no contexto da motricidade humana foram a respeito da importância do

cicloturismo para a qualidade de vida. χ abordagem utilizada para o grupo “Ciclistas de

Maria” possibilitou que aspectos físicos e estilo de vida, motivação pessoal e interação

social fossem discutidos. Apesar das pessoas falarem sobre consciência ambiental em

andar de bicicleta, nos discursos não foi notado este fator. Um fato que contribuiu para

essa discussão foi que o grupo é interessante do ponto de vista sociocultural, por fazer um

trajeto relativamente longo se dirigindo para um lugar sagrado da religião católica no

nosso país e, além disso, ao longo dos anos o número de praticantes aumentou de forma

significativa.

578
Com relação aos aspectos físicos e estilo de vida, a prática do cicloturismo esteve

ligada, entre outras coisas, à saúde e lazer. A educação para um estilo de vida ativo é uma

das tarefas fundamentais que o profissional de Educação Física deve cumprir, pois se o

objetivo é fazer com que o indivíduo venha a incluir o hábito de atividade física em sua

vida, é fundamental fazer com que estas pessoas sintam prazer em se movimentar e que,

ao longo do tempo, desenvolvam certo grau de habilidade motora, o que lhes dará a

capacidade e motivação para a prática de atividade física (NAHAS, 2006).

Um ponto bastante comentado sobre o cicloturismo foi o compartilhamento de

emoções distintas, que pode gerar um significado para aqueles que pedalam e se reúnem

para conversar sobre a compra de equipamentos, competições, lugares a serem visitados

e ações correlatas. Estas reuniões conferem ao indivíduo o sentido de pertencimento ao

grupo por meio de ideais, atitudes e comportamentos distintos criados a partir de uma

série de códigos e valores que os caracterizam enquanto grupo. Esses aspectos aparecem

como motivação e interesse na interação social.

A utilização da bicicleta pelo ciclista no tempo livre representa uma oportunidade

de distanciamento dos problemas cotidianos, pois ele tem que se concentrar naquele

momento no ato de pedalar e no trânsito da via. É notório que esse gesto é um tipo de

movimento de grande importância para a promoção da saúde, porém, pouco estudado em

nosso país. O primeiro passo para uma possível mudança é a inclusão da disciplina de

ciclismo no currículo dos cursos de Educação Física e áreas correlatas. Em nível

governamental, é necessário colocar em prática uma política cicloviária ampla e urgente

para os municípios com alta densidade populacional, o que acarretará mais pessoas

pedalando e, consequentemente, mais difusão do cicloturismo. Isto se deve à criação e

formação de um ambiente viário mais favorável ao uso da bicicleta, já que o risco de

acidentes com veículos motores é o maior empecilho no cicloturismo.

579
Em relação à intervenção profissional, o cicloturismo se estende para uma gama

de oportunidades a serem desenvolvidas pelo educador físico. Dentre várias

possibilidades, podemos destacar, por exemplo, a criação de clubes de ciclismo e agências

de turismo que promovam viagens de bicicleta, ou até mesmo, nas escolas, a promoção

da conscientização para o uso benéfico da bicicleta, considerando que nesses espaços

podem ser formados futuros cidadãos ciclistas.

A bicicleta chega ao século XXI como uma resposta aos pedidos de mudança, pois

atende ao chamado de uma vida mais saudável porque antes de tudo, ela nos ensina a

estar em harmonia com o tempo e o espaço, fazendo descobrir a realidade em um mundo

invadido pelas imagens. “O ciclismo é um humanismo”, símbolo de um projeto urbano

que talvez possa reconciliar a sociedade consigo mesma (AUGÉ, 2009). A bicicleta se

tornou um significante cultural que começa a unir pessoas de diferentes estratos, pois

sinaliza uma sensibilidade que representa uma interação mais humana e um ambiente

urbano que favoreça a autopropulsão (CARLSSON, 2014).

Acredito na importância da continuidade de pesquisas que evidenciem novas

perspectivas sobre o tema qualidade de vida no contexto sociocultural, pois se torna

relevante o entendimento e aprendizado sobre novas formas de relacionamento, como no

caso o cicloturismo, possibilitando a difusão desse conhecimento afim de que beneficiem

mais pessoas das ressonâncias positivas advindas de experiências significativas como

essa, fazendo com isso nos faz questionar sobre o mundo em que vivemos. Portanto, a

partir da bibliografia, da minha vivência como praticante e pesquisador sobre a atividade

e dos discursos dos sujeitos, o objetivo foi entrelaçar estas três formas de conhecimento,

no caso, a teoria com a práxis, dentro de um contexto social.

580
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583
THOMAS BERNHARD: LUCIDEZ E TESTEMUNHO EM TEMPOS

SOMBRIOS: UM DIÁLOGO ENTRE A LITERATURA E A CLÍNICA

PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA

Daniel Franção Stanchi310

Universidade Paulista (UNIP)

E-mail: danielfrancaostanchi@hotmail.com

Resumo: Neste trabalho pretendo realizar um diálogo com a autobiografia de Thomas

Bernhard (1931-1989), importante escritor e poeta austríaco que viveu no século XX.

Tenho em meu horizonte a compreensão de que seus textos revelam não só as

experiências pessoais que o autor viveu na Áustria do pós-guerra como também são

testemunhos bastante lúcidos da degradação das relações humanas e das condições de

vida no mundo moderno e contemporâneo, aspecto que ameaça a preservação da pessoa

humana na sua dimensão ética e política. Neste sentido, a leitura atenta das palavras de

Bernhard muito nos ensina sobre as condições de vida e as relações humanas que são

estilhaçadas a partir do projeto moderno de dominação e explicação do humano por

sistemas ideológicos e também teóricos (questão que adentra os modelos presentes na

Psicologia e na Psicanálise), aspecto tão presente na peculiaridade dos modos de

sofrimento encontrado com frequência na atualidade, em especial quando nos

debruçamos sobre o fazer clínico, este que, assim como a leitura da obra de um artista,

relava os impasses vividos pela pessoa em seu percurso e ao mesmo tempo deflagram as

condições de vida presentes em um dado momento histórico. A obra de Bernhard

310
Daniel Franção Stanchi é Psicólogo e Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de
São Paulo. Professor do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Paulista – UNIP. Coordenador,
em São Paulo, do Espaço Ethos e Polifonia: Arte, Literatura e Psicanálise.

584
possibilita também uma reflexão sobre a literatura, a escrita e a leitura como

possibilidades de resgate ético da condição humana em tempos sombrios.

Palavras-chaves: Psicanálise; Bernhard; Experiência; Ethos; Sofrimento.

Abstract: This paper intends to establish a conversation with Thomas Bernhard (1931-

1989)’s autobiographical work, an important writer and poet of χustria, who lived in the

XX century. We do have in mind the understanding that his texts reveal not only his

personal experiences in the Austria of the post-war but also gives a very lucid witness

about the degradation of human relations and life conditions in the modern and

contemporary world, an aspect which puts in risk the preservation of the ethic and

political dimension of human condition. In this sense, reading with attention what

Bernhard taught us about the life conditions and the breaking of the relations by

ideological and theoretical systems (aspect which penetrates in the conceptualization of

Psychology and Psychoanalysis too), an aspect which is so common in the peculiarity of

the ways of suffering people have nowadays, in special when we focus the clinical

situation which show us, as the reading of artist’s books also does, that the difficulties a

person lives in his or her way through life is a window to the life condition of the historical

moment he or she is in too. ψernhard’s works give the chance to think about the literature,

writing and reading as a possibility of ethical recover of the human condition in dark

times.

Keywords: Psychoanalysis; Bernhard; Experience; Ethos; Suffering.

585
Thomas Bernhard em 1988.311

Em um dos últimos dias de um inverno em que chove torrencialmente em São

Paulo fazendo parecer que estou no verão embora eu saiba que é a primavera que

começará em poucos dias, ouso pela primeira vez dizer algo sobre Thomas Bernhard. É

a primeira vez que ouso tentar traduzir em palavras o que venho sentindo e descobrindo

nas leituras de seus textos. Meu encontro com a obra deste artista e poeta austríaco que

viveu no pedaço de tempo que separa os anos de 1931 e 1989 se deu a partir de meu

apreço pela boa literatura e pela procura por escritores que narram de modo encarnado

tanto as experiências que chegaram até eles no lugar e no momento histórico onde

estavam e onde nasceram como também as experiências mais intimas que brotam da

imaginação e do coração singular que permeia todo o seu fazer criativo.

311
Fonte: http://miltonribeiro.sul21.com.br/wp-content/uploads/2012/10/Thomas-Bernhard-1988.jpg
Consultado em 30 de agosto de 2013.

586
Mais do que um autor de seu tempo, a Áustria do século XX, atravessada no

coração pelas farpas ensanguentadas das Guerras Mundiais, Bernhard é um artista que se

manteve lúcido em seu tempo e por meio dessa lucidez luminosa (e por vezes impiedosa)

ele nos presenteia com uma obra que desvela aspectos da vida humana que estão para

além de seu tempo e que de meu ponto de vista chegam até nós na atualidade. É

considerando que este autor pode nos ajudar na compreensão da realidade e da clínica

contemporânea que ora apresento este diálogo.

O legado literário que Bernhard nos deixa permite-nos não só acompanhar o

desenrolar da História com seus eventos deslizando no eixo temporal de Chronos, mas,

mais do que isso, Bernhard nos oferta o testemunho de seu sofrimento em um mundo que

já vinha sendo congelado século após século pelo projeto moderno enraizado na frieza

lógica e no racionalismo como verdade suprema sobre o humano, questão que desemboca

nas diversas formas totalitárias e chega até nós dos modos mais irreconhecíveis, inclusive

nas Ciências Humanas. Talvez seja possível dizer que um dos aspectos do que Bernhard

nos mostra desvela um modo sofisticado e peculiar de o Mal comparecer na atualidade.

O Mal é um problema ético, uma experiência que põe em risco a condição humana, como

nos mostrou Paul Ricoeur (1998) no seu estudo sobre O Mal312. E surge, na atualidade,

brincando com a expressão de Jean ψaudrilard, como um “mal transparente” ou como

uma “violência silenciosa ou não reconhecida” que permeia a vida humana fraturando-a,

para citar a expressão usada por Gilberto Safra.

Tenho lido e relido os textos de Bernhard como alguém que aceita ser guiado pelo

autor a uma espécie de passeio que tem me permitido uma experiência contundente,

sofrida, mas sempre luminosa! No fazer artístico de Bernhard, a velha história de

312
RICOEUR, P. (1998) O Mal. Um desafio à filosofia e à teologia. São Paulo: Papirus.

587
literatura e vida não se separarem é levada às últimas consequências, não como uma

questão de mais um “falar bem” entre os tantos disponíveis na atualidade, mas como uma

experiência transbordante em que o texto ajuda a enxergar, sentir e ouvir mais

apuradamente a condição em que vivemos hoje. Para mim, a leitura dos textos de Thomas

Bernhard tem sido curativa, possibilitando uma compreensão mais apurada e mais

aprofundada do meu próprio viver e das experiências dos pacientes que têm me dado

oportunidade de tentar acompanhá-los.

Utilizarei aqui fundamentalmente o diálogo com uma reunião de textos

autobiográficos publicados em português no livro Origem em 2006. Originalmente, estes

textos foram publicados separadamente, em cinco volumes, entre os anos de 1975 e 1982.

Neles, encontramos os relatos de Bernhard de sua infância até a fase adulta quando esteve

internado em um sanatório, doente do pulmão. Escolherei alguns trechos e a partir deles

tecerei algumas reflexões tendo como foco alguns aspectos que tenho observado no fazer

clínico com pacientes de diferentes idades. Tenho encontrado sintonia entre o que

Bernhard nos mostra por meio de sua arte e aquilo que alguns pacientes têm relatado na

situação clínica como experiência de sofrimento.

Em minhas reflexões clínicas tenho dialogado com autores do grupo Independente

de Psicanálise (Middle Group), entre eles estão Donald Winnicott, Marion Milner, Masud

Khan e com as contribuições do psicanalista brasileiro Gilberto Safra. Este é um

referencial teórico e poético que tem permitido minha construção como psicanalista de

um modo pessoal e rigoroso. Neste tipo de perspectiva, o diálogo com artistas e poetas é

bastante valorizado não tanto no sentido de tentar “colocar as obras dos artistas no divã”,

ou seja, de analisar os possíveis conflitos inconscientes presentes na obra ou nos porões

da biografia dos seus autores, mas de nos deixarmos ser afetados pelo texto e pela

sabedoria que transpira nas e entre as palavras do texto. Trata-se de uma compreensão,

588
de um “caminhar junto” em que um poema ou uma obra de arte nos ensina

verdadeiramente algo sobre a experiência humana se estivermos disponíveis. Por

exemplo, em seu poema intitulado “Biografia da dor” ψernhard (2000, p. 119) nos diz o

seguinte: “Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta/ estão

empilhadas as cadeiras e nenhuma pessoa a quem/ Pergunto por mim me viu”. Este é um

tipo de fala que por vezes ouvimos na atualidade de alguns pacientes que relatam suas

experiências de viverem em um mundo onde o rosto de si mesmo não encontra um lugar

no rosto de um outro, momento histórico onde a presença humana se estilhaça. Inúmeros

pacientes apresentam-se na situação clínica com um tipo de fala que não mais faz

referência a um outro humano. São falas que apresentam um viver por vezes esvaziado

de sentidos e de presenças. A situação clínica nesse sentido, afinada com o que nos mostra

Safra (2005), pode vir a ser a possibilidade do encontro com um outro humano que guarde

a memória do que é fundamental, experiência que abre a possibilidade de a pessoa Ser.

Não se trata, portanto, de uma clínica voltada especificamente para a promoção do insight,

mas de uma clínica da experiência e do encontro que abre e funda possibilidades de ser

no mundo humano e no campo cultural.

Bernhard, quando menino, teve a sorte de ter encontrado uma presença humana

viva que, segundo seu relato, foi fundamental em todo seu percurso de vida: seu avô.

Pelos relatos que acompanhamos, este parecia também reconhecer as fraturas presentes

no mundo em que viviam e tentava transmitir esta percepção ao pequeno neto,

acreditando que a formação humana vem desta sabedoria encarnada e não do saber

técnico e abstrato que já permeava a educação naquele contexto. Bernhard considerava o

avô o seu primeiro filósofo, “o sábio da montanha de Ettendorf”, um homem que

detestava o “falatório verborrágico” dos que se achavam instruídos por teorizações ou

589
por discursos religiosos dogmáticos e valorizava o viver simples e as pessoas simples.

Bernhard nos diz:

Os avôs são os professores, os verdadeiros filósofos de cada um de nós; eles

escancaram as cortinas que os outros vivem fechando. Quando estamos com eles,

vemos o que é real, não vemos apenas a plateia, mas o palco também, e vemos

tudo que se passa nos bastidores. Há milênios, os avós criam o demônio onde, sem

eles, só haveria o bom Deus. Graças a eles, ficamos conhecendo o drama por

inteiro, e não apenas a farsa de um fragmento miserável e mentiroso. (...) Meu avô

materno me salvou do embotamento e do fedor monstruoso da tragédia terrena,

na qual bilhões e bilhões de pessoas já sufocaram. Cedo o bastante e sem me

poupar de dolorosos castigos, ele me arrancou do pântano universal: para minha

sorte, primeiro a cabeça, depois o resto. (Bernhard, 2006, p. 23-24)

A convivência com o avô presenteou Bernhard com a disponibilidade para o

simples e para a não aceitação passiva da realidade. Esta relação ofertou ao escritor

sustentação e rosto, fundando no jovem poeta um olhar crítico e sensível sobre o mundo

ao redor, aspecto que ele foi apurando ao longo da vida. Podemos ir reconhecendo, ao

longo de seus textos, como essa relação com o avô parece ter sido fundamental para ele,

não apenas na infância, mas ao longo de toda sua vida. Em outro trecho, ele nos conta:

Ouvir uma pessoa simples falar é um prazer. Ela fala, em vez de tagarelar. Quanto

mais instruídas as pessoas ficam, mais insuportável se torna sua tagarelice. Também

eu me pautava inteiramente por essas palavras. Conseguimos dar ouvidos a um

pedreiro ou lenhador, mas não a uma pessoa instruída, ou dita instruída, porque

afinal, o que há são só pessoas ditas instruídas. Infelizmente, só o que ouvimos é

sempre a tagarelice dos tagarelas, os outros se calam, porque sabem bem que não

há muito a dizer. (Idem, p. 26)

590
É possível encontramos inúmeros trechos nos escritos de Bernhard onde ele

reconhece e testemunha como a presença e o dizer humanos vão sendo estilhaçados em

um mundo onde impera o falatório do dizer bem, a racionalidade e o totalitarismo,

afetando e por vezes destruindo o ambiente e as relações dentro das famílias, na educação

e na cultura. Ele nos chama a atenção para a perda da poesia que nos visita no cotidiano

e no encontro com o outro, quando o surpreendente vai sendo substituído pelo repetitivo.

A natureza e a cultura, por exemplo, deixam de ser usadas pelo humano a fim de que um

caminhar pela vida seja possível com sentidos que vão se renovando e que contemplem

o vir a ser da pessoa humana em sua complexidade, sem reduzi-la a modelos abstratos.

Neste tipo de perspectiva, tanto a natureza e o trabalho assim como o outro humano vão

sendo transformados em objetos funcionais, esvaziados de sentidos e de presença, questão

que se desdobra ao longo do tempo e que comparece com grande frequência na clínica na

atualidade em um tipo de queixa onde o outro parece desaparecer como referência

fundamental no caminhar de alguém pela vida.

Ao apresentar uma obra contundente, Bernhard não floreia as descrições das

situações vividas em grande sofrimento e em um momento da história humana onde a

barbárie era mais do que evidente. Este aspecto visceral de sua obra pode soar um tanto

estranho em uma primeira leitura, no entanto, Bernhard apresenta de um modo bastante

singular a experiência que o atravessou em seu percurso.

O percurso de vida de Bernhard não foi nada fácil. Ainda muito jovem, um amigo

especial morre e ele se depara, pela primeira vez, com a dura experiência de perder

alguém. A morte será para o então jovem menino uma companheira de viagem. Em uma

entrevista dada por ele em 1978, disponível na internet313, Bernhard diz:

313
O breve trecho da entrevista de Thomas Bernhard, realizada por Krista Freischmann em 1978, está
disponível no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=PrHVNNCpvVs

591
A morte foi-me colocada no berço e persegue-me, não tenho nada contra a morte,

simplesmente levo-a comigo e ando com a morte através da vida, por assim dizer.

(...) Nunca tive medo, sempre me defendi disso, pelo contrário a morte me tornou

mais forte, é verdade que pode enfraquecer as pessoas, especialmente quando não

refletem. Então apressam-se, abraçam a doença e dançam até à morte, o que eu

não quero fazer. Eu sempre me revoltei contra a morte, mas não a rejeito porque

seria uma estupidez, não se pode rejeitar a morte porque ela virá, na verdade está

sempre aqui e só se pode: ir com ela ou defender-se dela e por isso preciso dela

nos meus livros.

Ainda menino, Bernhard vai morar com a mãe e o tutor em uma casa que pertencia

a uma velha senhora, sendo que no andar térreo funcionava nada menos que uma

funerária. O tutor e a mãe encontram uma casa para o avô morar no campo. Neste lugar,

o avô, que apreciava profundamente os livros, organiza um espaço para sua biblioteca e

apresenta algo de Hegel, Kant, Schopenhauer e Shakespeare para o jovem neto que ouvia

aqueles nomes com respeito e sensação de mistério, transmitidos pelo seu verdadeiro

professor. Neste período, Bernhard passa a frequentar a escola, onde encontra graves

dificuldades de adaptação e relacionamento com os professores, ambiente onde impera o

ensino teórico e o aprendizado sistemático dos “educadores de araque” (Idem, p. 172).

Todo dia, eu mergulhava no inferno escolar, retornava ao purgatório da

Schaumburgestrasse e, à tarde, subia a montanha sagrada ao encontro do meu avô.

Para mim, a felicidade suprema era poder pernoitar na montanha sagrada. Tinha

comigo o material escolar e, de manha, ia direto da montanha sagrada para o

inferno. Os demônios me atormentavam com crescente impertinência. Nessa

época, a Áustria passou de repente a pertencer à Alemanha, e já não se podia

sequer pronunciar a palavra Áustria. Havia tempo que as pessoas não mais se

592
cumprimentavam com um Grüssgott, e sim com um Heil Hitler, e aos domingos

Traustein exibia não apenas os fiéis de preto, mas também as massas ruidosas de

marro, que antes não existiam na Áustria. (Idem, p. 87)

Aos treze anos de idade, o avô envia Bernhard para um internato em Salzburgo,

onde ele passa a viver e a estudar, lugar em que, segundo ele, tudo contrariava a

criatividade. Ambiente nazicatólico. Tempos de guerra e opressão. As bombas assolavam

a cidade e, por vezes, o único recurso dos que tinham sorte era se esconder em túneis onde

a comida era escassa e as condições péssimas.

Naquela época, meu espírito foi quase destruído, e esse ensombrecimento do

espírito, esse obscurecimento como destruição do espírito ninguém percebeu,

nem uma única pessoa, ninguém se deu conta de que se tratava de um estado

doentio, de uma doença fatal, contra o qual e contra a qual nada foi feito. (Idem,

p. 155)

Em seus relatos, Bernhard testemunha o que ele denomina de destruição ou

ensombrecimento do espírito, situação em que o ser humano encontra-se em meio à

barbárie, momento em que os sentidos de vida possível se estilhaçam e o rosto humano

desaparece.

Lembro-me aqui de que, no campo da Psicanálise, o pediatra e psicanalista inglês

Donald Winnicott (1971) assinalava que, em seu ponto de vista, a pessoa mais adoecida

não seria aquela que haveria se organizado em um modo neurótico ou psicótico de

funcionamento, mas a pessoa mais adoecida seria aquela que teria perdido a esperança,

ou seja, o sentido de si mesmo. Esperança é sinal de saúde para este autor, que considera

o viver mesmo importante como um campo dinâmico onde o ser humano, a partir de sua

593
criatividade primária e da experiência compartilhada, cria o mundo e a si mesmo com

sentidos.

Neste tipo de condição que Bernhard nos dá notícia, estamos diante de uma

situação onde a possibilidade da fé e da esperança estão sendo ameaçadas. Bernhard

observava este fenômeno ocorrendo a sua volta e inclusive nele mesmo, o que por vezes

lhe dava vontade de desistir de tudo e da própria vida. Trata-se de um tipo de adoecimento

que atinge o ethos humano, como nos mostra Safra (2004), ou seja, são organizações de

mundo que ferem os aspectos que possibilitam o viver e o acontecer da vida humana. É

muito interessante como Bernhard parece manter-se lúcido e esperançoso em meio aos

escombros de sua cultura. A esperança, em Bernhard, parece manter-se viva pelo avesso!

Quando tudo parece destruído e não mais contemplar a medida humana, eis que algo

surge que desvela e que preserva algum caminho. No sofrimento, às avessas, o contorno

de um rosto se desvela.

Tudo agora era apenas e tão-somente escassez. Contudo, a feiura e a decadência

– tendo experimentado rápido avanço na cidade não apenas desfigurada pelos

ataques aéreos e suas consequências, mas também transformada pouco a pouco

num caos pelos milhares de refugiados a assaltá-la – conferiram-lhe de repente

traços humanos, de tal modo que só por essa época, nem antes nem depois,

consegui amar de fato minha cidade natal, e amei de todo o coração. (Bernhard,

2006, p. 161)

Bernhard estuda não apenas em um colégio guiado pela lógica nacional-socialista,

mas passa a frequentar outra escola, de orientação católica. Sobre elas, ele observa que a

visão de homem que impera nos dois lugares era a mesma que devastava espíritos e

personalidades, somente os hinos e o discurso dos colégios eram diferentes, mas a lógica

594
era a mesma. Imperava neste ambiente a simulação, a dissimulação e a imbecilização das

massas, perspectiva onde o ser humano era abordado como objeto.

(...) de início (na escola básica), eu havia sido submetido a uma história mentirosa

nazista, dominado, pois pela mentira nazista, agora (no ginásio) era a vez da visão

católica. (...) Não fui infectado por nenhuma das duas porque a precaução do meu

avô me imunizara, mas sofri com elas, como só uma criança na minha idade podia

sofrer. (Idem, p. 188)

Mais uma vez, vemos a presença do avô como alguém que oferta sustentação,

compreensão e amor, mesmo estando distante, em momentos de grande dificuldade. A

experiência de Bernhard com o avô nos lembra dos dizeres de Dostoiévski (1821-1881)

sobre a importância da memória e da educação:

Fala-se muito sobre educação, mas alguma memória sagrada e bela, preservada

desde a infância é, talvez a melhor educação. Se um homem carrega varias dessas

memórias consigo, elas o salvam para o resto de seus dias. Mesmo se somente

uma boa memória vive em nosso coração, ela será o instrumento de nossa salvação

algum dia. (Dostoiévski, 1997, citado por Safra, 2006b, p. 10-11)

Bernhard assinala que aprendeu a arte da observação com o avô, na convivência,

quando caminhavam juntos durante horas. Bernhard assinala também que o avô possuía

um saber dos costumes e condições de vida do povo. Temos aqui bastante sublinhada a

importância da convivência inter-humana e da memória do ethos (a memória do coração),

aspecto fundamental na atualidade, quando por vezes encontramos pessoas que perderam,

em meio às condições de vida globalizada, essa possibilidade e esse contato profundo

com o outro e com a terra.

595
Pensando a situação clínica tendo em vista alguém que perdeu ou que nunca

encontrou a experiência de conviver com um outro humano, considero que o modo como

o analista ou terapeuta trabalha precisa ser revisto. Sobre essas questões, encontrei

diálogo com alguns autores que discutem essa necessidade de o analista rever seus

pressupostos técnicos e teóricos (ver, por exemplo, Khan (1971), Milner (1969),

Winnicott (1954) e Safra (2005, 2004 e 2006a). São autores que, cada qual com seu estilo

pessoal, assinalam a importância de acolher a singularidade do paciente na situação

clínica e de o clínico poder tornar elástica a sua técnica, algo já apontado há tempos por

Ferenczi (1928), o que implica em reorganizar a situação clínica tendo em vista qual a

tarefa clínica que o paciente precisa alcançar e atravessar no processo.

Tenho acompanhado alguns pacientes que me contam a experiência surpreendente

de só conversarem com alguém no momento da sessão. Dizem que vivem em meio a um

falatório. É interessante este tipo de fala, pois desvela o encontro clínico também como

lugar de convivência e não apenas como lugar de exercício intelectual. A transferência

aparece aqui não como um evento que possibilita recordar o passado ou tornar o

inconsciente consciente, mas também como um evento inter-humano que inaugura

possibilidades para o paciente.

Lembro neste momento de um paciente, rapaz de uns 40 anos que em uma sessão

narrou-me um sonho muito importante. Este rapaz apresentava-se de um modo inquieto

na sessão, parecia sempre muito agitado e mexia o corpo sem parar na poltrona. Fomos

trabalhando essas questões e, em uma sessão, ele narrou que havia viajado e que durante

a viagem teve vontade de acordar cedo para ver o nascer do sol pela primeira vez. Dizia-

me perplexo que nunca tinha conseguido parar e contemplar a natureza. Nesta

experiência, para ele muito encantadora, ele dizia que havia sonhado acordado, e que

tinha se sentido quieto pela primeira vez na vida. Disse ainda que tinha pensado em talvez

596
deitar no divã e simplesmente estar quieto, do mesmo modo que experimentava diante do

nascer do sol. Estávamos diante de uma situação em que a possibilidade de uma

convivência se inaugurava!

Por meio da singularidade de sua obra, Bernhard nos aponta essas rupturas que se

presentificam em sua vida e na de seus contemporâneos e que caracterizam um mundo

regido pelo totalitarismo e pela hegemonia da técnica crescente. Sobre este momento

sombrio da história da humanidade, Gabimberti (2006) nos ensina que

A experiência nazista, não pela sua crueldade, mas justamente pela

irracionalidade que nasce da perfeita racionalidade de uma organização, para

a qual “exterminar” tinha o mero significado de “executar um trabalho”, pode ser

assumida como o evento que marca o ato de nascimento da idade da técnica. Não

foi, então, como hoje pode parecer, um evento errante ou atípico para a nossa

época e para o nosso modo de sentir; antes, foi um evento paradigmático, capas

ainda hoje de assinalar que, se não formos capazes de nos colocar à altura do agir

técnico generalizado, com dimensão global e sem lacunas, cada um de nós cairá

nas malhas dessa irresponsabilidade individual que permitirá ao totalitarismo da

técnica continuar avançando irresistivelmente, agora até sem a necessidade do

apoio de superadas ideologias. (Galiberti, 2006, p. 24)

Foi neste ambiente que aos quinze anos de idade, em um dos dias de aula, sem

avisar nada aos familiares, ao invés de rumar para o colégio, Bernhard rumou para a

Secretaria do Trabalho e na mesma manhã foi encaminhado a um comerciante de gêneros

alimentícios, chamado Podlaha. Neste trabalho, Bernhard passaria três anos. A este lugar

ψernhard chamava de “o porão”.

597
χo ir para o porão, ψernhard nos conta que se sentia indo para “o aprendizado

redentor” e não mais para “o odiado ginásio”.

Tinha a sensação de ter escapado de um dos maiores absurdos da humanidade – o

ginásio. De repente, senti: minha existência é de novo uma existência útil. Tinha

escapado de um pesadelo. Já me via enfiando farinha, banha, açúcar, batatas,

semolina e pão em sacos de compras, e estava feliz. (Bernhard, 2006, p. 222)

Bernhard nos conta que o porão sempre fora o centro do bairro de

Scherzhauserfeld. Era um lugar onde as pessoas não só iam para comprar coisas, mas se

tratava de um lugar de encontro. Esta experiência alargou os horizontes do então jovem

Thomas. Ele nos conta que se com o avô tinha aprendido a arte de observar as pessoas,

com o seu chefe de trabalho, o Podhala, ele aprendera a arte da convivência.

Meu avô me escolara na solidão e na autossuficiência, o Podhala, no convívio

com os seres humanos, aliás, com muitos deles e dos mais variados tipos. Com

meu avô, eu frequentara a escola filosófica – de maneira ideal, porque desde cedo

–, com o Podhala em Scherzhauserfeld, a maior de todas, a da realidade absoluta.

Ter frequentado logo cedo essas duas escolas, uma complementando a outra, foi

decisivo na minha vida: elas fundamentaram meu desenvolvimento. Ia para aquele

comercio de alimentos que era um porão e aquele mesmo porão que abrigava o

comércio de alimentos era meu alimento primordial. (Idem, p. 257)

Indo com Bernhard ao porão, podemos reconhecer que ele nos fala de um aspecto

fundamental da vida humana: o convívio. E ao mesmo tempo, ele faz uma denúncia de

como a possibilidade de o convívio acontecer estava em vias de extinção em seu tempo,

aspecto que ele experimentou em sua própria pele tanto nas relações familiares como nos

esquemas educacionais nos quais foi inserido. É interessante o escritor sublinhar que o

598
lugar era para ele o seu alimento primordial. Bernhard dá um estatuto profundo e valioso

ao lugar do convívio inter-humano, a experiência viva e espontânea com os outros. Na

atualidade vemos a enxurrada de livros e manuais que são comercializados com a suposta

intenção de ensinar a convivência para as pessoas. Há inúmeras prateleiras onde são

disponibilizados manuais prontos de como abordar o outro e inclusive de como conviver

consigo mesmo, aspecto que funda o gênero da autoajuda. Este tipo de lógica é

denunciado por Bernhard, perspectiva onde a vida é secundária a um script de como viver

e de como encontrar o outro. Em Bernhard, neste sentido, podemos reconhecer a diferença

entre um aprendizado técnico e um aprendizado pela experiência que brota na

convivência.

Bernhard assinala que no porão ele podia encontrar um tipo de convívio com as

pessoas que lhe trazia o sentimento de que a sua vida tinha sentidos. “Se antes acreditara

não ter futuro nenhum, agora eu o tinha, sim, e cada momento possuía de repente aquilo

que desaparecera de minha vida fazia tempo: fascinação.” (Idem, p. 226). ψernhard

encontra nesse lugar a experiência de convivência que lhe dá a possibilidade de sonhar

um futuro, aspecto necessário da vida humana. Vale lembrar que estamos em um

momento histórico onde sonhar um futuro possível é algo muito complexo diante da

devastação e da desesperança que estava presente nas pessoas e no campo social, algo

que Bernhard observava em seus pais e professores. Todo o projeto moderno da

racionalidade iluminista que vinha sendo aclamando ao longo dos séculos como um modo

seguro e certo de abordar os fenômenos humanos havia literalmente explodido com as

bombas de Hiroshima e Nagasaki, jogando muitos daqueles que sobreviveram em uma

experiência de profundo vazio de sentidos.

Há ainda dois aspectos muito importantes que Bernhard encontra no porão. Ele

nos diz que lá podia surpreender-se com seu fazer e com as pessoas que encontrava. Na

599
atualidade, em um mundo globalizado, onde impera a hegemonia do Mesmo, a

possibilidade de nos surpreendermos está em risco. Vemos um desdobramento deste

fenômeno quando recebemos pacientes que chegam já com um suposto diagnóstico sobre

si mesmo. Eles chegam já afirmando que são depressivos ou que são hiper-ativos, etc, o

que nos mostra que estamos em um mundo onde a nomeação e o empobrecimento da

experiência faz com que a pessoa por vezes se confunda com um nome ou com um tipo

de doença. Quando este fenômeno acontece, observamos certa falência da experiência de

surpreender-se consigo, com os outros e com a própria vida. Esta experiência de

surpreender-se parecia estar atrelada à possibilidade que Bernhard encontrava no porão

de sentir-se pertencendo ao lugar, ao trabalho realizado e àqueles com quem ele

convivia. Indo ao porão, Bernhard nos diz que sentia estar indo cada dia mais ao seu

próprio encontro, e enquanto ia ao ginásio se sentia cada vez mais indo embora de si.

Em seu trabalho, Bernhard mantinha-se lúcido, o que lhe permitia perceber que

muitos dos que vinham ao lugar estavam em busca do convívio e de possibilidades de

vida. As mulheres, diz ele, vinham ao porão para fugir do terrível cotidiano doméstico.

Já os homens, vinham ao porão e enquanto tinham suas garrafas de rum enchidas,

relatavam suas terríveis experiências nas guerras.

Como haviam voltado para casa após o término da guerra – e que houvessem

voltado – disso falavam sem cessar, provavelmente sonhavam com isso quando

não tinham ninguém com quem conversar sobre o assunto. A guerra só tinha

acabado na superfície; nas cabeças das pessoas ela seguia enfurecida. Todos

sabiam como a derrota poderia ter sido evitada e todos tinham previsto o

desenrolar dos acontecimentos. Quando alguém, encostado no balcão, fazia de sua

experiência de guerra o ponto culminante de toda atividade humana significativa

e memorável, era um chefe de estado-maior que tínhamos ali, junto ao balcão. As

600
exceções eram os silentes já sem um braço, com uma placa de metal na cabeça ou

sem as pernas. Esses não se prestavam a debater a guerra, e na maioria iam embora

do porão quando de repente o assunto passava a ser discutido. Entre os homens a

guerra era sempre o assunto número um das conversas. Ela é a poesia do homem,

a obra pela qual ele demanda atenção e consolo vitalícios. Cada um à sua maneira,

aqueles homens se refugiavam na vulgaridade e na vileza, regenerando-se na

apatia total, indigna do ser humano. Tinham aprendido desde cedo a odiar, e

alçaram aquele ódio a seu desenvolvimento máximo em Scherzhauserfeld, contra

tudo e contra todos. Ódio gera ódio, odiavam-se uns aos outros como a tudo o

mais, sem descanso, até a exaustão. (Idem, p. 250-251)

Como nos mostra Bernhard no trecho acima, esses homens viviam o que Simone

Weil denominou de desenraizamento314, este que quando se instala, é espalhado aos

demais destituindo a condição humana em suas raízes, como quando o escritor nos diz

que o ódio gerava ódio. Há também a importância deste lugar que Bernhard reconhecia

como um espaço de convívio onde algumas pessoas podiam, quando tinham condições,

narrar o vivido, como no caso dos homens que recontavam a experiência horrível que

viveram na guerra, sendo esta narrativa a sua única poesia possível. Narrar experiências

implica em alcançar algum domínio diante do que foi vivido, aspecto também abordado

por Walter Benjamin315 quando ele discute a importância do narrar na vida humana em

seu belíssimo texto O Narrador, escrito na década de 1930. Benjamin e também Bernhard

observam que em condições como as vividas durante as guerras o risco é grande de a

pessoa perder a possibilidades de narrar experiências de onde alguma poesia ainda possa

314
WEIL, S. (1943). O Enraizamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001
315
BENJAMIN, W. (1936). “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras
Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.

601
brotar. É importante ressaltarmos que Bernhard está nos apresentando um mundo onde o

adoecimento humano surge como perda da poesia, ou seja, como perda do sentido de

vida e do surpreender-se, da convivência e da possibilidade do intercâmbio de

experiências por meio de narrativas.

Outro aspecto que quero ressaltar ao lado de Bernhard no porão é o fato de ele

encontrar a experiência de alegria. No campo da Psicologia e da Psicanálise ressalta-se

muito a importância do prazer, mas quase não se fala da alegria, não é dado à experiência

de alegria o lugar que ela merece. Encontrar e viver alegria é fundamental para a vida

humana no cotidiano. Bernhard assinala que era necessário que o ambiente do porão

contemplasse a ordem e a limpeza, aspecto que, também como nos mostra Weil são

necessidades da alma humana. É o que nos mostra Bernhard neste belíssimo trecho:

Era necessário que reinasse a ordem e imperasse a limpeza, freguesia e patrão

precisavam ser atendidos e satisfeitos da melhor maneira possível e, no fim do dia,

o caixa tinha de bater. Para meu espanto, o de meus colegas e para espanto

supremo do meu próprio patrão, eu me adaptei com rapidez e não tinha dificuldade

alguma em fazer as coisas de modo correto ou em fazer tudo que era exigido de

mim. Além disso, estava sempre aberto a todos, e a alegria que levava comigo

para o porão era contagiante; de onde vinha aquela súbita capacidade de ser alegre

e de contagiar os outros com minha alegria, não sei, sempre estivera em mim e

agora voltava a ter vazão, não havia sido sufocada. Muitas pessoas iam à

mercearia, isto é, ao porão, para rir comigo. (Idem, p. 265-266)

602
Lembro-me aqui do belíssimo verso do poeta inglês William Blake316 que diz:

O Homem foi feito de Alegria e Sofrimento

E quando isto sabemos certamente

Pelo Mundo seguros nós caminhamos.

Man was made for Joy and Woe

And when this we rightly know

Thro the World we safely go

(Blake, 1977, p. 508)

Em toda essa apresentação que Bernhard faz do porão onde trabalhou podemos

reconhecer aspectos que são fundantes da condição humana. Segundo ele nos conta, lá

era possível encontrar um lugar onde viver em um ambiente humano. No porão, Bernhard

encontrava abrigo e convivência, acompanhado pelo “mestre do contato humano”, como

ele chamava o seu chefe, e onde as suas qualidades também podiam encontrar lugar no

encontro com os outros. Era possível um intercambio de experiências humanas que dava

ao jovem Bernhard continuidade e sustentação, utilizando dois termos muito caros à

linguagem de Winnicott. No campo da Psicanálise, este foi um autor que muito valorizou

o lugar do ambiente humano na constituição do self. Para ele, não é possível abordarmos

o surgimento e o percurso de alguém como humano sem levar em conta as relações

significativas que esta pessoas encontrou ou não e o ambiente cultural onde ela nasceu e

onde vive. Em sua obra, Winnicott destaca o momento primordial da relação da mãe com

316
Marion Milner, poeta e psicanalista importante do Grupo Independente de Psicanálise (Middle Group)
citava esse e outros versos de Blake com frequência. Milner foi uma das poucas ou talvez a única que deu
um estatuto digno e profundo à experiência de alegria na condição humana.

603
o bebê que chega ao mundo e que é recebido pelos cuidados maternos, familiares e

culturais. Ao lermos os textos de Bernhard podemos reconhecer alguns dos aspectos que

Winnicott ressaltou em suas discussões teóricas e clínicas (com grande ênfase na relação

mãe-bebê), se desenrolando no campo da cultura e das relações humanas de modo geral

em outros momentos da vida. O ambiente buscado e encontrado por Bernhard parece

apresenta-se como uma experiência curativa em seu processo de vida. Lá, ele nos conta,

foi possível a ele fazer-se aprendiz e seguir um novo caminho. É neste ambiente, no

convívio com o chefe e com os outro, que Bernhard também descobre um dos gostos que

ele levaria para toda a vida: a música e o canto.

Passei a ir à mercearia ainda com mais gosto do que antes. Meu amor pela música,

que sempre foi e permaneceu o amor da minha vida, logo se ancorava também

num estudo formal (...). o que nunca me fora possível no meu tempo de ginásio

eu agora fazia com naturalidade: dedicava-me à música munido não apenas da

paixão extática, mas da aquisição do conhecimento concreto e preciso, estudando

os fundamentos com base nos quais podia avançar em minha formação musica.

(Idem, p. 298-299)

Há inúmeros aspectos interessantíssimos e muito importantes presentes nos textos

de Thomas Bernhard. Dentro do propósito deste artigo, não caberia seguirmos com a

necessária atenção todos os eventos que ele nos apresenta ao longo das 500 páginas que

compõem seu relato autobiográfico. Porém, há ainda algumas palavras que eu gostaria de

dizer a fim de irmos finalizando.

Ainda no porão, Bernhard adoece. Um resfriado que ele ignorava acabou por

transformar-se em um derrame pleural grave, evento que fez com que ele fosse internado

em uma clínica de recuperação. Neste lugar, Bernhard vive também inúmeras

experiências contundentes, entre elas, ele acompanha pela primeira vez uma pessoa

604
morrer diante dele. Na longa temporada na clínica, Bernhard reconhece a mesma

impessoalidade e distanciamento que ele vinha nos apresentando, por exemplo, na família

e na escola. Vemos, então, que aqueles mesmos aspectos presentes em sua cultura e que

esgarçavam a vida humana – o distanciamento, o falatório, a alienação, a objetificação da

vida humana – adentravam as relações entre os médicos e cuidadores e os pacientes. Estes

aspectos impossibilitavam um relacionamento suficiente entre a equipe e os pacientes e

impossibilitava, por exemplo, a experiência de morrer com dignidade. É neste período

também que Bernhard perde o tão querido avô, que não pode ser enterrado em nenhum

dos cemitérios do bairro, embora a família houvesse tentado durante dez dias, pois o padre

local não autorizava pelo fato de o avô não ter se casado com a avó de Bernhard na Igreja.

A escola do meu avô, que, posso dizer, frequentei desde o meu nascimento, se

fechara com sua morte. Com sua morte repentina, ele me dispensara de suas aulas.

Tinha sido uma escola primária e, por fim, também uma escola superior. Agora,

minha impressão era de que eu tinha uma base sobre a qual construir meu futuro.

(Idem, p. 379)

Para finalizarmos este percurso que desembocou neste momento em que

acompanhamos o jovem Bernhard internado no sanatório de Grafenhof onde ele acabaria

por contrair tuberculose, passando antes pela clínica de Grossgmain, gostaria de destacar

ainda dois aspectos que a literatura de Bernhard revela neste momento.

ψernhard nos conta que “foi ali em Grossgmain, como bem me lembro, que me

pus a explorar os caminhos da chamada literatura universal.” (Idem, p. 398). O autor

nos conta a importância que a leitura exerceu em sua vida, em especial neste momento.

Ele nos conta que pediu aos familiares que lhe trouxessem livros. Leu Shakespeare,

Pascal, Montaigne, Cervantes, Schopenhauer, entre outros. E tais textos ajudaram

Bernhard a dialogar com um companheiro seu de quarto. Bernhard lutava contra a doença

605
e, por meio da leitura, foi possível reunir forças. Além disso, ele nos conta que nesse

momento a presença da mãe foi fundamental para ele. Entre as leituras, eles conversavam

e sua mãe lhe contava momentos de sua própria infância. As visitas mais deliciosas,

segundo ele, foram aquelas nas quais a mãe lia para ele e eles conversavam. Depois de

algum tempo, a mãe de Bernhard morre e seus parentes deixam de escrever para ele. É

neste momento terrível, recheado de sofrimento e solidão, que a literatura surge

novamente como uma possibilidade:

Aprofundei-me na leitura de Verlaine e Trakl, e li Os Demônios, de Dostoiévski

– um livro tão instigante e radical eu nunca tinha lido antes na vida, assim como

nunca tinha lido um livro tão grosso: anestesiei-me, dissolvi-me por algum tempo

nos Demônios. Quando voltei, não quis ler mais nada por algum tempo, porque

tinha certeza de que mergulharia em enorme decepção, num terrível abismo.

Recusei-me durante semanas a qualquer leitura. A enormidade dos Demônios

me fortalecera, mostrara um caminho, me dissera que eu estava no caminho

certo: para fora. Tinha sido afetado por uma literatura selvagem e grande, e dela

emergi eu próprio como herói. Poucas vezes na minha vida posterior a literatura

voltou a ter efeito tão gigantesco sobre mim. (Idem, p. 495)

A leitura foi fundamental como um encontro que possibilitou a Bernhard a

experiência de intimidade e diálogo com pessoas significativas, em especial com a sua

mãe, em um momento bastante contundente e doloroso. Vemos neste tipo de

acontecimento, um belo exemplo da leitura e da literatura como possibilidades de

atravessamento e de cura de alguém. Como diz Mario Quintana em um de seus versos:

quem escreve um poema salva um afogado! Um bom encontro com um texto pode auxiliar

alguém a atravessar um sofrimento ou uma situação de impasse, e no caso de Bernhard

este aspecto fica bem presente. A literatura surge aí como um lugar que sustenta e

606
possibilita a continuidade de si e o diálogo com os outros humanos, tanto aqueles que

estão presentes ao redor da pessoa, como também com a Humanidade que permanecesse

viva nas obras. A obra de arte oferta rosto e presença e nela a humanidade se

presentifica com seus dramas e possibilidades de atravessamento, sendo uma fecunda

possibilidade de interlocução, especialmente em momento em que rosto e a memória

desaparecem.

Surge neste tipo de experiência que Bernhard nos conta a possibilidade de se abrir

um espaço de transicionalidade a partir da obra literária. Isto se dá pelo fato de a leitura

ter surgindo fundamentalmente entre317 Bernhard e sua mãe. Este interessante aspecto da

leitura e da literatura, como possibilidades transicionais para o ser humano em situações

de risco social e de sofrimento, tem sido estudado com profunda maestria e sensibilidade

pela antropóloga francesa Michèle Petit (ver Petit (2009 e 2013). Em seus textos, Petit

nos mostra como o encontro com um texto pode ser de grande ajuda na superação de

dificuldades e no atravessamento das grandes tarefas do percurso humano.

Para finalizarmos, quero retomar algo que eu já disse anteriormente: o encontro

com a obra de Thomas Bernhard tem sido para mim um encontro curativo também, ao

possibilitar-me um aprofundamento das questões sensíveis ao humano, algo tão

fundamental na atualidade, tanto na vida cotidiana como também no trabalho clínico com

pacientes de diferentes idades. A clínica contemporânea e também os tipos de organização

de vida que observamos na atualidade globalizada apontam na direção de uma

reformulação de nosso fazer. Considero que a literatura de Thomas Bernhard é de grande

auxílio em nossa formação como pessoas, ao apontar alguns desses importantes aspectos

317
Winnicott (1971) nos ensina que é no que ele denomina de a terceira área da experiência, que não se
encontra nem no campo subjetivo nem no objetivo, que surge o que ele denomina de área transicional. É
nesta área que o intercambio de experiências humanas se funda na relação com o outro, com as coisas e
com a cultura.

607
que procurei explicitar neste artigo, entre outros. Por vezes, uma das características da

arte é que ela preserva! Trata-se, em meu ponto de vista, de um encontro que pode ser

bastante fecundo na tentativa de aguçarmos nossa atenção e nossa sensibilidade, aspecto

necessário em um mundo onde a formação está cada vez mais deformada, reduzida às

questões tecnicistas e mercadológicas. Para finalizar, deixo ao leitor com alguns trechos

deste que foi um modo bastante contundente de Bernhard fazer um discurso a propósito

de um prêmio que ele havia recebido. É possível reconhecermos nele alguns dos aspectos

centrais do testemunho que o autor nos dá a partir de sua viva lucidez em tempos

sombrios.

Discurso por ocasião da outorga do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática

de Bremen

Não posso me apoiar na lenda dos senhores sobre os músicos de Bremen; não

quero contar história nenhuma; não quero cantar; não quero fazer nenhuma

pregação; uma coisa, porém, é verdade: as lendas pertencem ao passado, as lendas

acerca das cidades, dos Estados e todas as lendas científicas, inclusive as

filosóficas; o mundo dos espíritos já não existe, e o próprio universo não é mais

uma lenda; Europa, a mais bela de todas, está morta; essa é a verdade e a realidade.

Assim como a verdade, a realidade não é uma lenda, e a verdade nunca foi lenda

nenhuma.

Há apenas cinquenta anos, a Europa ainda era só uma lenda, o mundo todo era um

mundo lendário. Hoje, são muitos os que vivem neste mundo lendário, mas o

mundo em que vivem está morto, e mortos eles também. Quem não está morto

vive, e não nas lendas: quem vive não é lenda.

608
Eu próprio também não sou lenda nenhuma, não venho de um mundo lendário;

precisei viver uma longa guerra, vi centenas de milhares morrerem e outros

seguirem adiante, por cima dos mortos; na realidade, tudo seguiu em frente; na

verdade, tudo se modificou; ao longo de cinco décadas, nas quais tudo foi revolta,

tudo mudou, nas quais, de uma lenda milenar, fizeram-se a realidade e a verdade,

tendo sentido um frio cada vez maior, enquanto um mundo novo surgia do velho,

uma natureza nova surgia da antiga.

Viver sem lendas é mais difícil, e é por isso que é tão difícil viver no século XX;

seguimos existindo apenas; não vivemos, ninguém mais vive; mas é bom existir

no século XX; seguir adiante; para onde? Sei que não saí de nenhuma lenda e que

não vou entrar em lenda nenhuma, o que já é um progresso, uma diferença entre

antes e hoje.

Nós nos encontramos agora num território que é o mais terrível de toda a história.

Estamos assustados e, aliás, assustados enquanto material tão gigantesco dos

novos seres humanos – e do novo conhecimento da natureza, e da renovação da

natureza; no último meio século, temos sido, todos nós, juntos, nada mais que uma

única dor; é essa dor que somos nós hoje; essa dor é agora nosso estado de espírito.

Temos sistemas inteiramente novos, temos uma visão do mundo inteiramente

nova, uma visão inteiramente nova e, de fato, extraordinária do mundo em torno

do mundo, assim como temos uma moral inteiramente nova, e ciências e artes

inteiramente novas também. Sentimos tontura e muito frio. Acreditávamos que,

por sermos afinal humanos, perderíamos o equilíbrio, mas não perdemos o

equilíbrio; e fizemos de tudo para não congelar.

609
Tudo mudou porque nós mudamos tudo, a geografia exterior modificou-se tanto

quanto a interior.

Agora, exigimos muito, não nos cansamos de exigir cada vez mais; nenhuma outra

época foi tão exigente quanto é a nossa; existimos megalomaniacamente; mas,

como sabemos que não podemos cair nem congelar, ousamos fazer o que fazemos.

A vida tornou-se ciência apenas, ciência das ciências. Agora, de repente, nos

integramos na natureza. Tornamo-nos íntimos dos elementos. Nós pusemos à

prova a realidade. A realidade nos pôs à prova. Agora conhecemos as leis da

natureza, as infinitas Leis Supremas da Natureza, e podemos, na realidade e na

verdade, estudá-las. Já não dependemos de suposições. Quando contemplamos a

natureza, não vemos mais fantasmas. Escrevemos o capítulo mais ousado no livro

da história mundial; cada um de nós o escreveu sozinho, apavorado, com medo da

morte, não em consonância com sua própria vontade ou com se próprio gosto, mas

segundo a lei da natureza, e escrevemos esse capitulo pelas costas de nossos pais

cegos e de nossos estúpidos professores, pelas nossas próprias costas; depois de

tantos capítulos infindáveis e insossos, o capitulo mais breve e mais importante.

Apavora-nos a claridade de que subitamente o mundo se reveste para nós, nosso

mundo científico; congelamos nessa claridade; mas quisemos tê-la, fomos nós que

a evocamos e, portanto, não nos é lícito reclamar do frio que agora impera. Com

a claridade intensifica-se o frio. Essa claridade e esse frio é que vão imperar de

agora em diante. A ciência da natureza vai nos proporcionar uma claridade maior

e um frio bem mais feroz do que somos capazes de imaginar.

610
Tudo se tornará claro, de uma claridade cada vez maior e mais profunda, e tudo

se tornará gélido, de uma frieza cada vez mais pavorosa. No futuro, teremos a

impressão de um dia sempre claro e sempre frio.

Agradeço aos senhores pela atenção. E agradeço também pela honra que hoje me

concederam. (Bernhard, 2011, p. 89-91)

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613
A RELAÇÃO SUBJETIVA COMO LUGAR DE MEMÓRIA: ENCONTRO EM

CLÍNICA ANALÍTICO-EXISTENCIAL

Jaqueline Cristina Salles318 & Jorge Miranda de Almeida319

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

E-mails: jaquelinesalles@gmail.com e mirandajma@gmail.com

Resumo: Este estudo pretende evidenciar como a relação psicoterapeuta-cliente se

constitui como acontecimento singular de cada subjetividade e lugar de memória no

encontro com o outro na clínica psicológica. Para tanto apresenta os fundamentos da

clínica existencial e suas implicações para a relação psicoterapêutica. Demostra as

contribuições de Paul Ricoeur para compreensão da memória e as inter-relações entre

memória e subjetividade no percurso existencial proposto pela filosofia existencial de

Soren Kierkegaard.

Palavras-chave: relação subjetiva; memória; clínica existencial; Paul Ricoeur;

Kierkegaard.

Abstract: This study aims to show how the relationship between psychotherapist and

client constitute itself as a singular event of each subjectivity and its place of memory

when they meet each other at the psychology clinic. For that, we present the fundamentals

of existential clinic and its implications for the psychotherapeutic relationship. We

318
Psicóloga. Mestranda do programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), bolsista da CAPES, integrante do grupo de pesquisa
Memória, Subjetividade e Subjetivação no pensamento contemporâneo.
319
Professor titular do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (DFCH--UESB). Professor permanente do programa de Pós-graduação (doutorado e
mestrado) em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB. Professor convidado do Programa de Pós-
graduação em Linguística da UESB.

614
demonstrate the contributions of Paul Ricoeur on memory understanding and the

interrelationship between memory and subjectivity on existential journey as proposed by

Søren Kierkegaard’s existential philosophy.

Keywords: subjective relationship; memory; existential clinic; Paul Ricoeur;

Kierkegaard;

Os avanços e estudos sobre a clínica psicológica apontam para algo além do

desenvolvimento de técnicas, mas que é de necessária e fundamental importância a

relação entre psicoterapeuta-cliente, uma vez que, sendo apenas técnica, não realiza o

encontro e nem considera o ser humano como presença. O aspecto relacional tão caro

para o fazer da psicoterapia sinaliza que o acontecer humano está ancorado na existência

que se estabelece consigo e, fundamentalmente com outros. É o que evidencia

Kierkegaard (1974) ao estabelecer que o homem é uma relação que se relaciona consigo

mesmo e que reduplica a relação com o outro que ele denomina como próximo.

Reconhecer a relação entre psicoterapeuta e cliente, para além da técnica é primordial,

pois do contrário, nos mostra Gilberto Safra (2004, p.27), “joga o paciente em direção ao

conceituável, roubando-lhe o indizível e os mistérios do ser”.

Entendemos que a clínica contemporânea apresenta-se como um horizonte de

novos sentidos sociais, um lugar que as pessoas buscam para narrar-se, encontrar um

outro que reconheça sua humanidade, para ressignificar-se, mas fundamentalmente, um

lugar em que faça sentido para a subjetividade em situação. Especialmente num contexto

como o moderno, marcado pela superficialidade, pela descartabilidade e pelo tédio, que

se materializa na singularidade como adoecimentos psíquicos e físicos como a depressão,

o estresse, entre outras doenças.

615
Neste trabalho, pretendemos evidenciar numa perspectiva existencial

fenomenológica como a relação psicoterapeuta-cliente se constitui como acontecimento

singular de cada subjetividade e lugar de memória no encontro com o outro na clínica

psicológica. Para fundamentar este trabalho estaremos dialogando com os teóricos Paul

Ricoeur e Soren Kierkegaard.

A clínica psicológica analítico-existencial

Luis Cláudio Figueiredo (2004) considera que a ética é o que define a clínica

psicológica como clínica, uma vez que está comprometida com a escuta atenta e

sustentação dos conflitos e tensões da pessoa ali presente. χssim, “clinicar é inclinar-se

diante de, dispor-se a aprender com” (p.166), estar aberto ao outro, cuidar, estar

disponível. Para o autor, o clínico seria a escuta de que nosso tempo necessita para ouvir

a si mesmo e encontrar sentido onde faltam palavras, encontrar cuidado em lugares

desconhecidos por nós mesmos. Na esteira de Figueiredo, entendemos a ética na

perspectiva desenvolvida por Lèvinas, Kierkegaard e Hans Jonas, denominada como ética

da alteridade ou da responsabilidade. Como sustenta Almeida (2009), esta ética

diferencia-se das outras teorias ou concepções de ética como a do utilitarismo e a

deontológica em que afirmam o valor universal e abstrato e não consideram a

subjetividade como capaz de assumir a responsabilidade pela decisão livre em concretizar

a ação ética.

Compreendendo a clínica como lugar de encontro, estamos afirmando nossa

realidade existencial que se constrói como relação, pois o ser singular implica a existência

com o outro e não um solipsismo individualista. Esta existência relacional conforme

estabelece Kierkegaard se realiza em comunidade, ou seja, no encontro com um outro que

se constitui como presença concreta. Esse conhecimento e reconhecimento que permite

616
que a singularidade se manifeste nas nossas lembranças e na memória, é uma urgência

para a clínica atual. É também urgente compreender que este outro, ainda que singular e

individual, por existir em comunidade, se apresenta na clínica com tudo que ele é, carrega

e consegue expressar de si em meio a muitos. Portanto, a proposta de clínica aqui

trabalhada considera a vivência social e cultural deste outro como fundamental para a

clínica que se propõe a compreender a existência. Como afirma Safra (2004, p. 25), “a

travessia pela vida é feita por uma linha estreita somente possível pela presença do outro

que porta historicamente o atravessamento das questões da existência humana”.

A abordagem nomeada psicoterapia existencial, surgiu do movimento filosófico

Existencialismo, o qual segundo Rollo May (1988), foi fortemente marcado pelo protesto

do filósofo existencial Soren Kierkegaard contra o racionalismo e idealismo, que

consideravam o homem como um objeto pensante. Conforme Almeida (2009), tal

abordagem desenvolve-se a partir das categorias existenciais, como a subjetividade, a

singularidade, a paixão, o amor, a angústia, a melancolia, a fé, o paradoxo, a liberdade

enredada e se contrapõem ao positivismo e racionalismo na forma de compreender e tratar

o ser humano que era predominantemente reduzido à consciência autossuficiente e

autorreferente e, portanto, egocêntrica e individualista. Desta forma, as teorias e técnicas

até então existentes sobre o homem não eram suficientes para compreender as crises e o

ser humano em sua incompletude.

Logo, nossa abordagem propõe uma forma de compreender o homem em seu

processo de deslocamento de deixar de ser para tornar-se e não explicá-lo apenas, pois

seria definir o homem e engessá-lo num determinado conceito. O tornar-se, não como

conceito, mas como movimento existencial, pois afirma Kierkegaard (2010), em sua obra

O Conceito de Angústia, “o essencial da existência humana, que o homem é individuum

e, como tal, ao mesmo tempo ele mesmo e todo o gênero humano, de maneira que a

617
humanidade participa toda inteira do indivíduo, e o indivíduo participa de todo gênero

humano” (p.30). Deste modo, a perfeição do indivíduo singular consiste em participar

sem reserva dos dramas e mistérios que constituem a existência, pois para Kierkegaard

(2010, p. 31) “a perfeição em si mesma consiste, pois, em participar completamente na

totalidade”.

Segundo May (1988), a psicoterapia existencial volta-se para a história de vida do

cliente e na integração deste com o mundo, de modo que qualquer mudança ou

acontecimento na vida da pessoa interferem em todos os seus aspectos relacionais, pois

estes não estão indissociados.

A clínica analítico-existencial se sustenta em métodos de relação interpessoal e de

análise psicológica cujo objetivo segundo Villegas (citado por Teixeira 2006, p. 289) “é

o de facilitar na pessoa do cliente um auto-conhecimento e uma autonomia psicológica

suficiente para que ele possa assumir livremente a sua existência”. ψusca ainda,

compreender o modo como cada pessoa se relaciona como o mundo, como se percebe em

suas relações com o mundo, com as pessoas e possibilitar por meio do processo

psicoterapêutico uma maior apropriação de si mesmo. Conforme Lessa e Sá (2006, p.

394) “o objetivo da psicoterapia não é enquadrar o paciente em padrões morais ou em

modelos teóricos, mas buscar compreender as possibilidades singulares de existir de cada

um”.

Como o foco do trabalho está na pessoa e todas as suas potencialidades e não

apenas em suas patologias e perturbações, a psicoterapia existencial, para Teixeira (2006)

é entendida como relação de ajuda existencial que auxilia na aprendizagem da liberdade

de escolha, na compreensão da existência enquanto projeto, devir, no qual cada um é

responsável pelas escolhas e caminhos a trilhar nas esferas individuais, coletivas e sociais.

618
O psicólogo como psicoterapeuta pode ser denominado ainda, na clínica

existencial com bases Kierkegaardianas, segundo Feijoo et al. (2013) como ajudante.

Aquele que de forma comprometida ajuda o outro a encontrar-se em sua solidão, que pela

reflexão descobre lucidez e se reposiciona frente aos desafios da existência.

Uma premissa fundamental deste estudo e do trabalho na clínica analítico-

existencial é a relação psicoterapeuta-cliente, compreendida como encontro. Rollo May

(1976) destaca a importância do encontro com o cliente enquanto alteridade, encontro

real e que acontece no presente, que possibilita no momento da psicoterapia o surgimento

de diferentes níveis de relação:

Um nível é aquele das pessoas reais: alegro-me de ver meu paciente (minha reação

variando em diferentes dias e dependendo principalmente da quantidade de horas

que dormi na noite anterior). Nosso encontro suaviza a solidão física, da qual

todos os seres humanos são herdeiros. Outro nível é aquele de amigos;

acreditamos – porque já vimos um bocado, um do outro – que o outro tem algum

interesse genuíno em escutar e entender. Um terceiro nível é sentido como

erótico320 – que deve ser aceito pelo terapeuta se ele pretende ouvir

compreensivamente e também se ele pretende valer-se desse recurso dinâmico

para a mudança. Um quarto nível é o da estima, a capacidade que está inerente

nas relações interpessoais por precaução autotranscendente pelo bem estar do

outro. Todos esses constituem um relacionamento real, cuja distorção é a

transferência (May,1976, p. 19).

Emprega-se “erótico” aqui no sentido geral, em que todos os tipos de relacionamento e coisas possuem
320

uma tônica sexual – cinema, livros, e assim por diante. Naturalmente, não tem efeito na terapia, mas é
mantido como parte da transferência. (nota do autor da obra citada)

619
May (1976) enfatiza que o encontro é permeado pela integralidade da relação entre

terapeuta e cliente, portanto transcende papéis, técnicas e representações e revela-se como

fundamental para uma relação psicoterapêutica genuína.

Importante destacar o sentido de atualidade deste encontro, pois neste momento o

cliente se apresenta, expressa seus sentidos e significados, narra sua história, mas a

possibilidade de mudança, cuidado e reposicionamento frente ao mundo e suas relações

somente é possibilidade no presente. Deste modo, a relação por ser viva, sustenta

conflitos, medos, lembranças dolorosas e prazerosas que se entrecruzam no sentido que a

pessoa atribui a si, seu lugar no mundo e em seu processo de tornar-se.

Neste sentido, a clínica analítico-existencial apresenta-se como um lugar possível

para o encontro, para o apropriar-se de si mesmo e para o cuidado. Onde a dor, a alegria,

a feiura e a beleza de ser humano podem indicar caminhos mais significativos,

amplificados para o sentido de si e da existência. De modo que, para este estudo é

fundamental compreender que as experiências humanas precisam de pertencimento, de

lugares que a ancorem, transcendam valores limitados, e “permitam” o afeto, tão caro

para nossa existência em comunidade.

A memória

Neste estudo adotamos uma perspectiva filosófica para compreensão da memória

como faculdade constituinte do processo de tornar-se si mesmo. Deste modo, atribuímos

o lugar de memória ao encontro, como possibilidade para a relação psicoterapeuta-cliente

surgir. Nossa hipótese é que o psicoterapeuta pode também ser o mobilizador de

lembranças do cliente, já que a narrativa de si implica reconhecer a memória como

elemento elaborador de si mesmo, do reconhecimento de si.

620
Estabelecendo relação com os estudos da Filosofia, destacamos o filósofo Paul

Ricoeur, especialmente na obra A memória, a história e o esquecimento. Nessa obra, ele

compreende a memória como “função específica de acesso ao passado”, dessa forma, ela

se constitui em categoria fundamental para a compreensão do percurso existencial na

psicoterapia (Ricoeur, 2007, p. 25). Ricoeur (2007) empreende uma Fenomenologia da

Memória, na qual sua relação com a imaginação e sua existência no tempo são pontos

fundamentais para a compreensão sobre a problemática da memória. A memória se

diferencia da imaginação, na medida em que esta volta-se para o “fantástico, a ficção, o

irreal, o possível, o utópico”, e a memória é sobretudo relação com o tempo, pois “é

voltada para a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca temporal por

excelência da ‘coisa lembrada’, do ‘lembrado’ como tal (Ricoeur, 2007, p. 26).

Como o filósofo afirma, na sua Fenomenologia, é próprio da memória ser

fragmentária, e por isso seu estudo não pode eximir-se de perguntar: ‘o que’, ‘quem’ e ‘o

como’ se lembra. Mas para manter certa coerência sobre a polissemia que o termo

memória desperta, é imprescindível reconhecer sua relação com tempo.

Ricoeur (2007) nos evidencia que a primeira expressão da memória é o “caráter

objetal da memória: lembramo-nos de alguma coisa” (p. 41). χtenta para a questão da

memória ser singular e as lembranças plurais, ou seja, ao falarmos de memória precisamos

também situar sua relação com as lembranças, em seu traço mais relevante: “ele diz

respeito ao privilégio concedido espontaneamente aos acontecimentos, dentre todas as

‘coisas’ de que nos lembramos” (p. 41). Para o filósofo, os acontecimentos que

lembramos não apenas aparecem, mas reaparecem dentre uma infinidade de coisas

vividas, experimentadas. Neste reaparecer vão apresentando uma mesmidade constituinte

que permite o reconhecer:

621
Os encontros memoráveis prestam-se a ser rememorados, menos de acordo com

sua singularidade não repetível do que conforme sua semelhança típica, até

mesmo conforme seu caráter emblemático: uma imagem composta dos

despertares matinais na casa de Combray assombra as primeiras páginas da

Busca... proustiana (Ricoeur, 2007, p. 42).

Ao empreender este percurso, Ricoeur já acena para outro caráter da experiência

mnemônica: lembrar-se de alguma coisa é lembrar-se de si, ou seja, é reconhecer-se ou

estranhar-se. Ao fazer também uma fenomenologia da lembrança, Ricoeur (2007)

evidencia a rememoração como re-apresentação. Mas como re-apresentação que não é

mais pura, a mesma, há entre a apresentação e a re-apresentação o lapso de tempo. A

condição de re-apresentação é que “o objeto temporal reproduzido não tenha mais, por

assim dizer, pé na percepção. Ele se desprendeu. É realmente passado. E contudo, ele se

encadeia, faz sequência com o presente e sua cauda de cometa”(p.53).

Segundo Oliveira (2009, p.7), compreender a memória em Ricoeur exige a

compreensão da narrativa como algo que “organiza o vivido, dando os contornos da

experiência do viver no mundo”. χ narrativa histórica e entrelaçamento com a memória

se apresentam por meio da temporalidade dos acontecimentos. Assim, a memória é uma

das matrizes da história e está intrinsecamente relacionada com a narrativa como forma

de acesso ou compreensão da memória.

Para Gagnebin de Bons (2011), Ricoeur empreende um estudo sobre a memória

em sua relação com o passado de modo vivo e subjetivo, especialmente porque “o

conhecimento do passado tem por alvo não só a si mesmo, numa pretensa objetividade

desinteressada, mas muito mais uma relação de intensidade ao passado que possibilite

uma atitude e uma ação mais justas no presente” (p.156). χssim, a memória apresenta-se

como um trabalho que envolve questões subjetivas, políticas que dizem da forma como

622
este passado perdura em nosso presente, em nossas ações em relação à memória e a

narrativa de nós mesmos e da nossa história.

Ricoeur (2006) na obra O percurso do reconhecimento nos mostra assim, como a

memória é elemento fundamental para o reconhecimento de si. Uma memória construída

pela experiência do ter vivido, ou seja, de um passado que ocorreu e que por isto, deixa

recordações e pode evidenciar uma presença, algo que perdura de si no tempo. A tais

recordações,

(...) todas elas expressões nas quais se dá a entender a própria passadidade do

passado, seu distanciamento do presente; a distância temporal tampouco pode ser

dita sem um paradoxo que é refletido pela gramática: o passado é ao mesmo

tempo o que não é mais e o que foi (Ricoeur, 2006, p.126).

Por ser movimento e duração, a memória tornar-se um marcador temporal, ou seja,

por meio dela podemos afirmar a presença no tempo do passado, do presente e do futuro

como localizador existencial. “Não temos nada melhor que a memória para significar que

algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (Ricoeur,

2007, p. 40).

É na esfera do reconhecimento que vislumbramos a importância da memória como

constituinte da subjetividade e suas implicações para a relação psicoterapeuta-cliente.

Visto que o reconhecer porta a elaboração de si mesmo, a possibilidade do narrar-se frente

ao outro. Numa perspectiva clínica, Safra (2002) afirma que a memória é possibilidade

de pertencimento, de se perceber e sentir-se enquanto continuidade, construção neste

mundo com outros, numa dinâmica relacional pessoal e coletiva. Logo, afirma, “há uma

busca no fundo de cada ser humano que o leva a buscar em um outro, o encontro que lhe

dê acesso à memória que desconhece. Esse acesso lhe garantiria a participação no mundo

humano” (Safra, 2002, p.28), pois é habitado coletivamente.

623
χfirma Ricoeur (2007, p. 57), “mas o pequeno milagre do reconhecimento é de

envolver em presença a alteridade do decorrido. É nisso que a lembrança é re-

(a)presentação, no duplo sentido de re-:para trás e de novo”, mas não apenas

representação visto ser também modificação:

(...) pelo fenômeno do reconhecimento somos remetidos ao enigma da lembrança

enquanto presença do ausente anteriormente encontrado. E a ‘coisa’ reconhecida

é duas vezes outra: como ausente (diferente da presença) e como anterior

(diferente do presente). E é como outra, emanando de um passado outro, que ela

é reconhecida como sendo a mesma (Ricoeur, 2007, p. 57).

Na psicoterapia, presenciamos e compartilhamos com cada um dos clientes a

experiência narrada da recordação. Neste momento, percebemos, por exemplo, como a

memória corporal não está no passado, mas apresenta-se no presente, nos modos, nos

gestos, nas formas de se expressar, na familiaridade ou estranheza sentida também na

relação que se estabelece entre o psicoterapeuta e cliente. Como nos mostra Ricoeur

(2007), as lembranças sofridas, os traumas recorrem a um esforço de memória para serem

narrados, a uma precisão não encontrada, que os possibilitem serem narrados.

Deste modo, a memória corporal “é povoada de lembranças afetadas por

diferentes graus de distanciamento temporal: a própria extensão do lapso de tempo

decorrido pode ser percebida, sentida, na forma da saudade, da nostalgia” (Ricoeur, 2007,

p. 57). Ou seja, ao narrar-se na clínica, percebemos que o corpo “é o lugar primordial, o

aqui em relação ao qual todos os outros lugares são de lá” (Ricoeur, 2007, p. 59). Vimos

mais uma vez, que o lembrar-se de alguma coisa é lembrar de si, não apenas enquanto

experiência racional, refletida, mas também afetiva, irreal, inominável. E é dessa

possibilidade de lembrar de si, reconhecer ou estranhar a si mesmo, que o movimento de

elaboração da memória e de si mesmo, encontra caminho na relação psicoterapêutica.

624
Subjetividade e memória

Kierkegaard ao trabalhar a categoria da repetição nos mostra como o apropriar-se

de si envolve um trabalho de memória, visto que a relação com o passado se dá como

retomada que ocorre no presente, mediante à repetição. Mas a repetição para o filósofo,

implica em ser si mesmo e ao mesmo tempo diferente, ou seja, trata-se de uma

reapropriação de si, que estabelece a contemporaneidade e ao mesmo tempo a

concretização da síntese de finito e infinito, temporal e eterno, necessidade e liberdade.

A memória em Kierkegaard como repetição ainda precisa ser melhor investigada, mas

está claro desde as primeiras páginas da obra A Repetição (2009), a distinção que ele

estabelece entre a recordação para os gregos e a nova categoria a ser descoberta pela

filosofia moderna.

A repetição pode ser entendida no movimento de voltar-se sobre si mesmo para

recuperar esse si mesmo e, na retomada de si, tornar-se si mesmo, “lá onde a cada instante

se arrisca a vida, onde a cada instante se perde a vida e se volta a ganhá-la”(Kierkegaard,

2009, p. 132). Especificamente, a repetição não é tornar-se, mas é um retomar de si

mesmo, uma recuperação no sentido de escolher a determinação existencial pela qual vale

a pena viver e morrer e que lhe permite tornar-se um homem novo. Poder-se-ia entender

a repetição como memória? De que tipo de memória se trata? Seguramente não é a

lembrança ou a recordação, pois nessas categorias mantém-se uma preocupação que

aprisiona a liberdade, enquanto que a memória como retomada ou recuperação, libera o

indivíduo singular da preocupação para que ele possa ousar inventar-se a si mesmo,

escolhendo um dos vários modos ou tipos de existência.

A repetição é mais precisamente uma reduplicação que se concretiza mediante a

decisão por aquilo que é realizado na temporalidade, mas que tem efeito por toda a

eternidade. Nessa perspectiva, a repetição não se repete: ela inaugura, aprofunda o

625
indivíduo singular em si mesmo e o esquadrinha até o limite para que a educação

edificante seja capaz de propiciar a escolha do decisivo. É por isso que podemos afirmar

que a repetição pode ser entendida como memória.

Deste modo, a subjetividade kierkegaardiana como interioridade não é apenas

reflexão, mas fundamentalmente existência,

(...) não se esquece, nem por um instante, que o sujeito é existente, e que o existir

é um vir-a-ser, e que por isso aquela identidade, própria da verdade, de

pensamento e ser é, portanto, uma quimera da abstração e, em verdade, apenas

um anseio de criação, não porque a verdade não seja uma identidade, mas porque

aquele que conhece é um existente, e, então, a verdade não pode ser uma

identidade para ele enquanto ele existir (Kierkegaard, 2013, p. 207).

Assim, ao compreendermos memória como uma capacidade humana frente a qual

há possibilidade de ação, empreendemos que a subjetividade como relação é também

ação, “pois o desenvolvimento da subjetividade consiste precisamente nisso, em que,

agindo, ele se reelabore a si mesmo em seu pensar sobre sua própria existência, e,

portanto, que ele efetivamente pense o pensado realizando-o” (Kierkegaard, 2013, p.

177). Ou seja, pensar o passado, narrar lembranças e apropriar-se de uma memória

implica a possibilidade de agir e apropriar-se de si mesmo.

Conclusão:

Partindo da polissemia de entendimentos sobre a memória como experiência

humana, encontramos na leitura de Paul Ricoeur elementos que contribuem para pensar

a memória como elemento constituidor de nossa subjetividade. Tendo como lócus

específico para este apropriar-se de si mesmo, a clínica psicológica, elegemos a clínica

com bases existenciais como foco de estudo, pois estabelece como fundamental para o

626
processo psicoterapêutico a relação entre psicoterapeuta e cliente. Vislumbramos numa

leitura filosófica existencial como a memória se constitui como elemento primordial para

o reconhecimento de si e sua interrelação com a subjetividade Kierkegaardiana.

Neste percurso, pensamos a memória na clínica, conforme Safra (2002, p. 25),

“como elemento que permite que a pessoa possa organizar uma identidade”, ou seja,

elemento que possibilita que o sujeito se reconheça situado num contexto, numa história

com outros, contribuindo para a constituição do sentido de si. Podemos compreender que

este sentido de si é construído por meio das relações consigo mesmo e com os outros, nas

relações sociais e culturais, então é permeado pela criação do singular em muitos, nós

somos também estes muitos que estão em nós.

Compreendemos que os lugares são múltiplos para a busca do sentido de si no

mundo, e ainda, que a singular relação psicoterapêutica torna-se um facilitador para o

reconhecimento de si no tempo, na história de si e da história da sua comunidade.

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628
BARBÁRIE NA PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA. UMA INTERSECÇÃO

CONCEITUAL

Maria Aparecida da Silveira Brígido321

Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre

E-mail: masilveira@sinos.net

Resumo: As ideologias da barbárie e a relação com as ciências e a contemporaneidade

são discutidas à luz da fenomenologia da vida de Henry, considerando as constatações

sobre a dramática destruição da cultura e do saber humano. A aniquilação é um ato

resultante de um processo desenvolvido quando a energia da vida permanece sem

utilização no ser humano. A pulsão destrutiva se opõe ao processo civilizatório. A luta

entre pulsão de vida e pulsão de morte desencadeia a evolução da cultura considerando a

teoria freudiana. A agressividade existente no ser humano proporciona a necessidade de

estabelecimento de limites, leis ou de direcionamento para a produção na cultura. A

barbárie em relação à cultura remete ao sujeito desta cultura sendo este transformado por

aquela e a transformando.

Palavras-chave: barbárie; cultura; fenomenologia; psicanálise; pulsão.

BARBARISM IN PSYCHOANALYSIS, SCIENCE AND CULTURE. A

CONCEPTUAL INTERSECTION

Abstract: The ideologies of barbarism and the relationship with the sciences and the

contemporaneity discussed in the light of the phenomenology of the life of Henry,

considering the findings on the dramatic destruction of human culture and knowledge.

Annihilation is an act resulting from a process developed when the life energy remains

321
Psicóloga. Psicanalista e Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Porto Alegre,
Brasil). Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal.

629
unused in human. The destructive drive is opposed to the civilizing process. Fighting

between the drive of life and the death drive triggers the evolution of culture considering

the Freudian theory. Existing aggressiveness in humans provides the need to set limits,

laws or the targeting for production in culture. Barbarism in relation to culture refers to

the subject of this culture, being transformed by this one and transforming it.

Keywords: barbarism; culture; phenomenology; psychoanalysis; drive.

Introdução

A convocação para discutir o tema pessoa, comunidade, Fenomenologia e

Psicologia, despertou o interesse em abrir espaço para escrever sobre a barbárie fazendo

uma interlocução entre os saberes psicanalíticos e filosóficos. A barbárie na cultura e nas

ciências é um tema tratado pelo filósofo Michel Henry e as questões da destrutividade e

a relação com pulsão de vida e de morte são investigadas em textos de Sigmund Freud de

1920 e 1930. A barbárie, enquanto uma ação que é premedita da mente destrutiva, ocorreu

em muitos momentos da história da humanidade e ainda continua vicejando na

contemporaneidade. É importante que possa ser aberto diálogo e construir-se

possibilidades de reflexão sobre o assunto.

Em sua conferência no simpósio de Fenomenologia da Vida no II Congresso

Internacional da Faculdades EST, Carla Canullo (2014) faz uma assinalamento sobre a

concepção henryana da barbárie. De acordo com a autora, a palavra barbárie nasce de

“barbaros”desde a Grécia que assinalava aqueles que não falavam grego; eram os

estrangeiros que balbuciavam. Tanto em Atenas quanto em Roma, os estrangeiros

balbuciavam, pois não conheciam ou não dominavam a lingua (grego e latim) que

deveriam falar para que pudessem ser compreendidos. A palavra não tinha, portanto, o

sentido a ela atribuída.

630
A autora fazendo a ligação com os escritos do filósofo Michel Henry assinala que

que o filósofo nunca escondeu sua crítica frente à ideia de verdade e manifestação,

principalmente frente à concepção galileana de mundo. Ela acrescenta ainda o destaque

ou a estigmatização da barbárie na cultura moderna feita por Michel Henry, e este viés

também o torna um bárbaro aos olhos da filosofia do pensamento grego.

Lima (2005) escreve sobre o tema barbárie e assinala que a primeira e segunda

guerras mundiais são um exemplo surpreendente pior em desumanidade assassina do que

as práticas guerreiras dos conquistadores, bárbaros, do fim do Império Romano. As

tecnologias modernas, os tanques, o gás, a aviação militar, colocadas ao serviço de uma

política imperialista de massacre e de agressão em uma escala imensa no século XX, teve,

como palco, as Guerras Mundiais.

A utilização de meios técnicos modernos gera a industrialização do homicídio e a

exterminação em massa graças às tecnologias científicas de ponta. Estas práticas

associadas à impessoalidade do massacre em que populações inteiras, homens e mulheres,

crianças e idosos são eliminados, com o menor contato pessoal possível entre quem toma

a decisão e as vítimas. Gestão burocrática eficaz é a ideologia legitimadora do tipo

moderno sendo, portanto, biológica, higiênica, científica.

O autor assinala ainda que Auschwitz representa a modernidade não somente pela

sua estrutura de fábrica de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas

mais eficazes, mas pelos possíveis resultados do processo civilizador como

racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral.

Como toda outra ação conduzida de maneira moderna, o Holocausto, por exemplo, deixou

para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação

como primitivos, esbanjadores e ineficazes.

631
Henry (2012) abrindo espaço para a compreensão das ideologias da barbárie,

inicia diferenciando a natureza da humanidade. Ele em sua crítica a uma filosofia

galileana entende que os humanos estão separados da natureza, pois apesar de toda a

possível observação e visão, por exemplo, dos rios, das pedras, das cores, da luz que

brilha, dos verdes e azuis, ela está separada do humano. Esta separação, de acordo com o

filósofo, ocorre porque a subjetividade humana não é levada em conta, assim a

possibilidade de ser afetado pela natureza não ocorre. Os efeitos da natureza são reduzidos

a idealizações físico - matemáticas.

Decorre que os métodos precisos das ciências são na verdade restritivos, pois

muitas vezes as pesquisas são incapazes de responder ao modo como se dá o objeto. O

próprio objeto é definido à priori para que dele possa ser retido o dado a ser pesquisado

(Henry, 2012).

Psicanálise e a pulsão destrutiva

Nos seres humanos, em decorrência de sua construção psíquica, encontra-se o

pulsional que é um processo dinâmico, uma carga energética oriunda das excitações

internas e externas da pessoa (Laplanche & Pontalis, 2001). A destrutividade direcionada

ao mundo externo e a outros, possível constatar em atos de barbárie na

contemporaneidade contra as pessoas, remete ao que em 1920 no artigo Além do Princípio

de Prazer, Freud (1920/1976) desenvolve sobre a pulsão de morte e de vida. Há uma

desfusão do componente das pulsões de vida e de morte e neste processo psíquico todas

as energias que compõem as pulsões tornam-se autônomas ou independentes e criam

caminhos de descarga. O surgimento da vida é a causa da continuação da vida e o esforço

na direção da morte. Existem conflito e conciliação frente às duas tendências. Ao afastar-

632
se da própria pessoa, a pulsão de morte que é psíquica, dirige-se para o mundo exterior

transformando-se em atos.

Na concepção psicanalítica de pulsão, esta é uma tensão psíquica que visa a

descarga para o alívio do excedente pulsional. As descargas dirigem-se a um alvo interno

ou externo, ou seja, a própria pessoa ou alguém no exterior assim como para

objetos/coisas do mundo. O conceito em Freud da pulsão destrutiva é examinado por

Laplanche e Pontalis (2001). Os autores afirmam que ela é utilizada para designar as

pulsões de morte quando direcionada para o mundo exterior. É o “silêncio” que

caracteriza a pulsão de morte, por causa disto que ela é reconhecida nas manifestações e

expressões afastadas da própria pessoa.

Quando em 1930 no trabalho sobre o mal-estar dos homens relacionado à cultura,

Freud ([1929]1930/1974) refletiu que os atos punitivos em si mesmos é que demonstram

a culpa enquanto um sentimento inconsciente. A constatação, nas investigações

freudianas, é que o sentimento de culpa é uma variedade topográfica da angústia. Desta

forma pode-se entender que a angústia sempre está presente em algum espaço psíquico e

por trás dos sintomas manifestados. Entende-se que sentimentos, afetos são energias

circulantes provindas da separação de ideia pelo processo de recalcamento. A angústia,

que é um afeto, circula pelos diferentes espaços psíquicos. Existe, portanto uma

desproporcionalidade entre o sentimento de culpa e sua razão, sejam eles atos ou

pensamentos. É que os sentimentos originalmente hostis que são percebidos geram a

culpa e não necessariamente o ato em si.

A violência e a relação com a civilização levou Endo (2005) a opinar que no texto

freudiano de 1930 estão indícios apontando caminhos de forma inédita para o

entendimento de fenômenos sociais a partir da psicanálise. χfirma o autor que “Somente

distendidos na cultura é que certos processos subjetivos podem ser observados...” (p.201)

633
e acrescenta que na cultura é onde a pulsão de morte assume formas devastadoras e onde

também é regulada.

O desejo desloca-se constantemente, a fim de fugir do confronto e se esforça por

encontrar substitutos – sejam eles objetos ou atos, segundo Freud ([1912-13]1913/1980).

Observa-se que muitas das culpas nos sujeitos se apresentam de forma secundária,

deslocadas ou distorcidas, dificultando sua correlação. Como resposta, a proibição

também se desloca de forma a boicotar os disfarces da libido, num jogo contínuo e eterno.

Desta forma surgem reações como o remorso, o adoecimento, a autopunição como

tentativas de expiação. Se a reparação da transgressão ou violação pode ser corrigida com

a expiação ou renúncia à liberdade, isso prova que se desejava algo proibido,

evidenciando a ambivalência.

χssim Freud destacou “χqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado

que, no fundo, o sentimento de culpa nada mais é que a variedade topográfica da

ansiedade”. E acrescenta na seqüência: “...em fases posteriores, coincide completamente

com o medo do superego” (Freud, [1929]1930/1974, p.159). A angústia, o temor e atos

punitivos quando voltados ao exterior podem ser da ordem da destrutividade quando a

ação é programada e executada nos atos de barbárie que se tem constatado. Encontramos

em Brígido e Peres (2014) ao tratarem dos aspectos da culpa na construção do psiquismo,

afirmam que o estabelecimento de normas é que garantem o interesse e o bem estar da

população, pois esta é uma forma de conter os impulsos destrutivos naturais do ser

humano. Não haveria necessidade de leis caso houvesse rejeição natural ao incesto, ao

parricídio e aos crimes na população.

Conte (2014) amplia os aportes freudianos sobre as questões da consciência moral

e a relação com o superego, pois sendo este um poder externo, uma autoridade parental

que entra no circuito psíquico da perda de amor, castigo e renúncia. Para entrar no mundo

634
da cultura e no convívio com os demais é necessário aceitar que nem tudo é possível e

que há interdição aos desejos.

A barbárie ou os atos bárbaros podem estar nesta complexidade relativa à dinâmica

do sentimento de culpa quando não ocorre as interdições, quando o superego é sádico e a

culpa e a dívida, ao invés de conter os indivíduos, proporcionam o rompimento de

estruturas psíquicas gerando violência.

Fenomenologia da Vida e barbárie

A existência do grupo humano é possível pelos modos diferentes de cultura que

ao longo dos milênios preservam o que existe e esperam ocasião para no saber adquirido

a descoberta da construção de novos mundos. Para o filósofo a cultura é ao mesmo tempo

constituinte do sujeito da cultura e seu objeto (Henry, 2012)

A vida segundo a qual Henry apoia sua tese, não se confunde com um saber

científico, mas com o que denomina de subjetividade. O saber científico é objetivo,

racional, universal e por todos conhecido. A subjetividade não é ter consciência do

mundo, mas ter consciência da consciência do mundo. A cultura é quando não intervém

o saber da consciência nem o da ciência, ela é a vida. Para o filósofo é a essência humana

e não a relação com o objeto. A experiência de si é a subjetividade que se mostra do que

emana, é um saber de si mesmo. Desta forma, a ideologia da ciência não leva em conta o

ser humano como tal, o humano não é valorizado enquanto um ser que tem vida. A vida

é a capacidade de se sentir, ser afetado em si próprio e ser percebido nesta afetação. Esta

afetação é o pathos, é interior e exterior, é a capacidade de sentir, ao perceber algo em si

e fora de si (Henry, 2012).

Quando a ciência anula o saber e o conhecimento que não é científico, o saber e o

conhecimento que remetem ao que o sujeito conhece em si e de si, estamos diante da

635
barbárie. O autor escreve sobre o progresso selvagem da ciência quando não há vínculos

que possam remeter ao que ele chama de vida, pois esta não é a realidade objetiva e

cognoscível. Uma descoberta genial que provocaria efeitos de progresso técnico se

apresenta hoje com finalidades abstratas, como um estranho destino no qual é produzida

prosperidade e também miséria para suprir um desenvolvimento. Um desenvolvimento

econômico resultante da aplicação da ciência que pode ser traduzida por barbárie (Henry,

2012).

Antúnez (2014) entende que toda a Fenomenologia da Vida de Henry é um

complexo trabalho sobre a afetividade e tem suas próprias leis. Estas, entretanto, não são

redutíveis às leis racionalistas das ciências naturais da cultura ocidental cujo pensamento

é dominado pela concepção racional e objetiva.

Considerações Finais

No trabalho sobre o mal-estar dos homens relacionado à cultura, elaborado em

1930, Freud ([1929]1930/1974) refletiu que a observação dos atos punitivos em si

mesmos é que demonstra a culpa enquanto um sentimento inconsciente. É interessante

constatar nestas investigações freudianas quando ele afirma que o sentimento de culpa é

uma variedade topográfica da angústia. Desta forma pode-se entender que a angústia

sempre está presente em algum espaço psíquico e por trás dos sintomas manifestados.

Vimos em Brígido (2014), que para a Fenomenologia da Vida na dor está a

revelação da vida e a forma de expressão desta vida. Sentir que tem sentimento, ter

consciência da consciência de si é uma possibilidade que os aportes filosóficos de Henry

apontam como forma de não aderir aos atos de barbárie. Antúnez (2014), ao referir-se à

clínica, assinala que é necessária uma adesão a si mesmo, ou seja, as necessidades

636
humanas passarem pela via afetiva. Sendo somente desta forma que os seres humanos

constroem uma vida relacional.

A barbárie afeta o ser humano, pois destrói sua dimensão ética e estética. Mas a

barbárie consegue maior visibilidade quando o crime de morte aparece em grandes

proporções, numa forma antes impensável e surpreendente, obtendo imediato destaque

de espetáculo na mídia. Assim, os assassinatos dos moradores de rua de São Paulo são

considerados atos de barbárie, a matança de crianças são igualmente atos de barbárie, ou,

até mesmo, podem ser tipificados como genocídio. A barbárie é contrária ao viver e

preservar.

As mais toscas formas de atividade e organização social são modos de cultura e

tem em sua essência uma organização com leis que tornam possíveis a existência e

sobrevivência do grupo. As atividades humanas desde a vida mais remota na terra, como

manter-se sobre o solo, exercitar os sentidos, desenvolver sua subjetividade, seu

comportamento erótico e etc. como realizações e construções de vida e de cultura, o

homem construiu a partir de si. A constatação é que na atualidade o homem tem sido

regulado pela ciência e não pelo saber próprio de ser humano.

Ao referir sobre a relação da ciência no mundo moderno como sendo uma

barbárie, Henry (2012) entende que a ciência se move inteira e exclusivamente no interior

da relação com o mundo e, portanto, com seus objetos. O mundo é apenas exterioridade

e coisas com um surgimento a cada momento de novas faces sem perceber ou se importar

com aquilo que o ser humano é. Enquanto filósofo da Fenomenologia da Vida acredita

que a cultura repousa sobre o saber da própria vida que consiste no autoconhecimento das

potencialidades subjetivas. A cultura é o desenvolvimento dos saberes da própria vida. É

interessante assinalar que para o autor, a arte, a ética e a religião são relativas à essência

da vida humana e fazem parte de sua raiz. A crítica mais contundente que Henry (2012)

637
faz em relação às ciências é que o ser humano não é reconhecido em seu saber essencial,

o saber não é mais próprio do homem, este perdeu a essência de seu saber-fazer.

A ciência surgiu pela necessidade do ser humano. O que se constata é que a ciência

utilizada para fins destrutivos denota o uso perverso daqueles que não suportam o

diferente. A barbárie é idealização, programação e sistematização de atos destrutivos de

ideias, movimentos ou qualquer coisa que possa ser diferente. Atos de barbárie objetivam

aniquilar aquele que pensa e age diferente ou que se diferencia culturalmente. Desta

forma, entende-se que sendo a pulsão de morte, da ordem da destrutividade, resulta em

ações humanas praticadas e exercidas com fins destrutivos de si e/ou de outro semelhante.

A barbárie pode ser entendida como pulsão de morte em sua mais pura

manifestação de destrutividade. Resta a nós psicólogos e psicanalistas resgatar as

manifestações da pulsão de vida como as que justificam e dão significado ao viver

humano e a cultura. Conte (2014) deixa em seu texto sobre as questões de violência de

estado que através da escuta dos psicanalistas abrem-se espaços que possibilitam a

transformação da dor em vias de recomposição simbólica. Desta forma, reconstroem-se

as manifestações a partir da pulsão de vida.

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640
SAÚDE E VIDA DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR:

PERCEPÇÕES DISCENTES

Suzana Madalena de Melo Silva322 & Luiz Gonçalves Junior323

Universidade Federal de São Carlos

E-mails: suzanam.slv@gmail.com e luiz@ufscar.br

Resumo: O presente estudo teve como objetivo compreender os processos educativos

decorrentes de intervenção realizada junto a escolares do 5º ano do Ensino Fundamental

de uma Escola Estadual localizada na cidade de São Carlos cujo conteúdo prático-teórico

das aulas foi saúde, qualidade de vida e vida de qualidade. Como procedimentos

metodológicos de coleta de dados foram utilizados registros sistemáticos das observações

em Diários de Campo, realizados após cada encontro após autorização expressa dos

pais/responsáveis em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram analisados um

total de 19 diários, compreendendo o período de agosto de 2013 a junho de 2014 com

metodologia de análise inspirada na fenomenologia. Na fase de análise dos dados, após a

realização da redução fenomenológica, emergiram quatro categorias. A saber: A –

Conhecendo e adotando hábitos saudáveis; B - Convivendo e respeitando o outro; C –

Organização das Atividades; D – Gosto e participação nas atividades propostas

Consideramos que os conteúdos trabalhados levaram os alunos a reflexão acerca dos

temas propostos, principalmente às questões relacionadas ao sedentarismo, consumo

excessivo de alimentos industrializados, de açúcares, sal e gordura, como por exemplo,

322
Licencianda em Educação Física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista de
Iniciação Científica PIBIC/CNPq. Membro do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física
(NEFEF/UFSCar).
323
Professor Associado do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana e do Programa de
Pós-Graduação em Educação (DEFMH-PPGE/UFSCar). Membro da Diretoria da Sociedade de Pesquisa
Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH). Coordenador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em
Educação Física (NEFEF/UFSCar). Coordenador Adjunto da Cátedra Joel Martins.

641
após a apresentação dos riscos relacionados ao consumo exacerbado, citando que

reduziriam tais elementos.

Palavras-chaves: Processos Educativos. Educação Física Escolar. Educação Física. Vida

de Qualidade. Saúde.

Abstract: This study aimed to understand the processes arising from educational

intervention done together with students of the 5th year of elementary school a Public

School located in the city of São Carlos whose practical and theoretical content of the

lessons was health, quality of life and life quality . The methodological procedures of

systematic data collection of field observations in diaries, performed after each meeting

after permission from parents / guardians in the Instrument of Consent records were used.

A total of 19 diaries were analyzed, covering the period from August 2013 to June 2014

with analysis methodology inspired by phenomenology. At the stage of data analysis,

after performing the phenomenological reduction, four categories emerged. Namely: A -

Knowing and embracing healthy habits; B - Living and respecting each other; C -

Organization of Activities; D - Taste and participation in the proposed activities. We

consider that the contents worked led students to reflect on the proposed issues, especially

the issues related to sedentary lifestyle, overconsumption of processed foods, sugar, salt

and fat, for example, after the presentation of the risks related to excessive consumption,

citing that would reduce such elements.

Keywords: Educational Processes. School Physical Education. Physical Education.

Quality of life. Health.

642
Introdução

A Educação Física, como área de conhecimento das Ciências da Saúde, pode ser

compreendida por meio de sua história. Nesta, observa-se tendências e concepções que

sofreram influência de diferentes áreas, tais como: a médica, a militar, a pedagógica e a

esportiva.

Ao focarmos na fase médico-higienista percebemos que essa tendência deixou

heranças que influenciaram no desenvolvimento da Educação Física escolar e, se fazem

presentes até a atualidade, porém, em que medida o enfoque trabalhado nas aulas avança

a uma concepção de saúde abrangente, que não se limita ao caráter higienista, que trata o

ser do ponto de vista anátomo-funcional?

Tais informações eram correntes nas aulas e nas leituras complementares que ia

realizando no decorrer das disciplinas desde o meu ingresso no curso de Licenciatura em

Educação Física da Universidade Federal de São Carlos. Assim, fui ampliando os

questionamentos sobre a educação para a saúde voltada para as aulas de Educação Física

escolar. Pois, para além da formação em curso na Educação Física, minha experiência

anterior, como aluna da educação básica, tive aulas voltadas a conteúdos prático-

esportivos, não ocorrendo abordagem do tema saúde ampliado, conforme preconiza os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) ao indicar tal como um dos temas transversais

(BRASIL, 1997).

Nesse sentido, os PCN indicam que:

No âmbito da Educação Física, os conhecimentos construídos devem possibilitar

a análise crítica dos valores sociais, como os padrões de beleza e saúde,

desempenho, competição exacerbada, que se tornaram dominantes na sociedade,

e do seu papel como instrumento de exclusão e discriminação social (BRASIL,

1997, p.31).

643
Os PCN – temas transversais ainda reforçam que é um tema que pode e deve ser

tratado por todas as áreas, ocorrendo também de forma indisciplinar, ou seja, cada

componente curricular aborda esse tema, assumindo uma perspectiva própria de seus

conteúdos:

O ensino de Saúde tem sido um desafio para a educação no que se refere à

possibilidade de garantir uma aprendizagem efetiva e transformadora de atitudes

e hábitos de vida. As experiências mostram que transmitir informações a respeito

do funcionamento do corpo e das características das doenças, bem como de um

elenco de hábitos de higiene, não é suficiente para que os alunos desenvolvam

atitudes de vida saudável.

É preciso educar para a saúde levando em conta todos os aspectos envolvidos na

formação de hábitos e atitudes que acontecem no dia-a-dia da escola. Por esta

razão, a educação para a Saúde será tratada como tema transversal, permeando

todas as áreas que compõem o currículo escolar (BRASIL, 1997, p.245).

Assim como os PCN (BRASIL, 1997), a Proposta Curricular do Estado de São

Paulo, inicialmente denominada como Cadernos do Estado (SÃO PAULO, 2009a; 2009b;

2009c; 2009d), reforçam o conteúdo saúde nas aulas de Educação Física, incluindo-o

junto a diversos temas, tais como: “corpo, saúde e beleza: fatores de risco à saúde e

doenças hipocinéticas” (2a. série do ensino médio – vol.3); “organismo humano,

movimento e saúde” (5a. série do ensino fundamental – vol. 2); corpo, saúde e beleza (1a.

série do ensino médio - vol. 1); exercícios resistidos (musculação): benefícios e riscos à

saúde nas várias faixas etárias (2a. série do ensino médio – vol. 2).

Desse modo, questionamentos pessoais foram sendo aguçados através de

leituras, sendo também determinante na proposição desse estudo a minha articipação

como bolsista do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (ProPET-Saúde)

644
tem reforçado esse interesse e tem me proporcionado experiências significativas que

podem ser levadas ao ambiente escolar, bem como, trazido significantes descobertas

acerca dos temas saúde, qualidade de vida e vida de qualidade, por meio de estudos e

discussões. Como estudante de licenciatura em Educação Física, isto me levou a

novas indagações: O que os alunos entendem por Vida de Qualidade e Qualidade de

Vida? Como a Vida de Qualidade e a Saúde podem ser trabalhadas no ambiente

escolar, especialmente nas aulas de Educação Física? E quais são as contribuições

desse trabalho no cotidiano dos alunos?

O objetivo central desse estudo foi compreender os processos educativos

decorrentes de intervenção realizada junto a escolares do Ensino Fundamental da Escola

Estadual Coronel Paulino Carlos localizada na cidade de São Carlos cujo conteúdo

prático-teórico das aulas foi saúde, qualidade de vida e vida de qualidade.

O presente trabalho está organizado em quatro capítulos. No primeiro

apresentaremos breve revisão de literatura acerca das raízes médico higienistas da

educação física, da compreensão de saúde, discussão sobre as expressões qualidade de

vida e vida de qualidade e as concepções de educação popular e saúde. Após tal revisão

apresentamos os procedimentos de intervenção e de coleta/análise de dados e, por fim, a

construção dos resultados e considerações.

Raízes médico-higienistas da educação física e novas possibilidades no campo da

educação popular e saúde

a) A Educação Física e Suas Raízes

Acerca da história da Educação Física observa-se tendências e concepções que

sofreram influência de diferentes áreas, tais como: a militar, a médico-higienista, a

pedagógica e a esportiva.

645
Para Ghiraldelli (1997):

[...] foi possível resgatar cinco tendências da Educação Física brasileira: A

Educação Física Higienista (até 1930); a Educação Física Militarista (1930-1945);

a Educação Física Pedagogicista (1945-1964); a Educação Física Competitivista

(pós-64); e, finalmente a Educação Física Popular (p.16).

Nessa revisão de literatura daremos destaque a tendência médico-higienista, a

qual interfere diretamente no objeto de estudo em pauta, além de exercer forte influência

na área de Educação Física até os dias de hoje.

Para Ghiraldelli Junior (1997) entre fins do século XIX e início do século XX,

especialmente até 1930, perdurou a tendência da Educação Física por ele denominada

higienista. Nesta o enfoque central era em relação à saúde, do ponto de vista biológico,

tornando a Educação Física lugar fundamental para a formação de homens e mulheres

sadios, fortes, com padrões de conduta higiênicos, visando supostamente formar uma

sociedade livre de doenças infecciosas e dos vícios que poderiam deteriorar a saúde, tal

como o alcoolismo e a frequência a bares.

Conforme afirmação de Soares (1994, p.17), o objetivo era de “[...] em nome da

saúde, manter a ordem, ampliando para o conjunto da população a determinação de

normas para conseguir uma vida saudável, e o pleno funcionamento da sociedade”.

A educação física higienista visava a possibilidade de se resolver o problema da

saúde pública pela educação pela disseminação de padrões de conduta, tornando a

educação física um agente de saneamento público, buscando uma sociedade de doenças

infecciosas e dos vícios deteriorados da saúde e do caráter do homem.

b) Compreensão de Saúde

646
χ Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como: “estado de

completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença” (OMS,

1948). Assumindo tal conceito, nenhum ser humano será totalmente saudável ou

totalmente doente.

Para Carvalho (2001, p.14):

A saúde resulta de possibilidades, que abrangem as condições de vida, de modo

geral, e, em particular, ter acesso a trabalho, serviços de saúde, moradia,

alimentação, lazer conquistados – por direito ou por interesse – ao longo da vida.

Tem saúde quem tem condições de optar na vida. A saúde está diretamente

relacionada com as escolhas que não se restringem tão-somente a poder escolher

este ou aquele trabalho, realizar-se pessoal e profissionalmente com ele, morar

dignamente, comer, relaxar e poder proporcionar condições de vida para os mais

próximos, mas também conseguir viver dignamente com base em valores que não

predominam em uma sociedade como a brasileira – excludente, individualista,

competitiva, consumista. Todos esses são elementos que determinam a nossa

saúde que não é só física, mental ou emocional. É tudo junto, ao mesmo tempo!

Pensar na saúde do Homem é considerá-lo como ser político – cidadão –e ético –

profissional.

Bastante próximo da compreensão da autora anteriormente citada é o conceito

de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual asumimos nesse estudo. Tal

concepção é proveniente da compreensão de saúde apresentada na 8ª Conferência

Nacional de Saúde de 1986, a qual incorpora o saber popular além do acadêmico. Desta

maneira, “saúde é o resultante das condições de vida, ou seja, alimentação, moradia,

emprego, lazer, liberdade de expressão e organização social, acesso à terra”

(BRASIL,1986).

647
Percebemos que tal compreensão considera o ser humano de modo integral e

situado no mundo, não restringindo saúde à ausência de doença entendida esta de modo

exclusivamente biológico.

c) Ter Qualidade de Vida ou Uma Vida de Qualidade?

Conceituar qualidade de vida parece algo bastante complexo e em alguns casos,

é possível perceber que os autores, ao tentar realizar tal tarefa, assemelham a conceituação

de saúde, tratada no tópico anterior.

Para Vecchia et al. (2005):

O conceito de qualidade de vida está relacionado à auto-estima e ao bem-estar

pessoal e abrange uma série de aspectos como a capacidade funcional, o nível

socioeconômico, o estado emocional, a interação social, a atividade intelectual, o

autocuidado, o suporte familiar, o próprio estado de saúde, os valores culturais,

éticos e a religiosidade, o estilo de vida, a satisfação com o emprego e/ou com

atividades diárias e o ambiente em que se vive. O conceito de qualidade de vida,

portanto, varia de autor para autor e, além disso, é um conceito subjetivo

dependente do nível sociocultural, da faixa etária e das aspirações pessoais do

indivíduo (p.247).

Minayo et al. (2000), compreende qualidade de vida como:

É uma noção eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de

satisfação encontrado na vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria

estética existencial. Pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural de

todos os elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto

e bem-estar. O termo abrange muitos significados, que refletem conhecimentos,

experiências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se reportam em

648
variadas épocas, espaços e histórias diferentes, sendo, portanto, uma construção

social com a marca da relatividade cultural (p.10).

Já para a Organização Mundial da Saúde - OMS (1995) qualidade de vida é “a

percepção do indivíduo de sua inserção na vida no contexto da cultura e sistemas de

valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e

preocupações”.

A partir de Brandão (2005, p.34) podemos pensar na perspectiva de uma vida de

qualidade. “[...] essa qualidade reside no crescendo das interações de dons naturais,

sociais e espirituais partilháveis na experiência crescentemente solidária de uma vida que

se ‘vive’ e de uma vida que se ‘é’”, pois num momento onde consumir bens é associado

a qualidade e felicidade na vida se faz necessário dar um significado mais humano como

o fundamento do próprio valor-vida.

Para Brandão (2005, p.35):

Um primeiro passo nessa direção nos convidaria a ousarmos passar do circuito

dos objetos de posse para o círculo dos dons de troca e de partilha. E, por esse

caminho, aprendermos a viver essa passagem, a começar por sentir a vida e a

qualidade de vida como experiências pessoais e comunitárias do bem que se

constrói interiormente e interativamente, de dentro para fora.

Isto porque qualidade de vida é também comumente associada à saúde biológica,

principalmente quando a discussão se relaciona com a realização de exercícios.

Para este autor, atualmente a economia desvairada, adotada pelo mundo do

capital, impõe a tudo e a todos os seus termos incluindo também o mundo do lazer, do

esporte, dos exercícios e da saúde, que são reduzidos aos padrões de compra e venda que

são determinados pelos interesses dos que ocupam posições sociais que permitem

649
manipular pessoas e desejos como mais um produto controlável. Pois, de acordo com

Brandão (2005):

Quase toda a propaganda do mundo do mercado de bens e de serviços insiste em

nos sugerir grandes vôos “de mentira”, ao mesmo tempo em que nos puxa sempre

para baixo, incentivando o desejo de qualificarmos a vida pela conquista do que

pode ser comprado, em vez da ousadia de criarmos por conta própria o que deve

ser vivido (p.38).

Brandão (2005) afirma que no mundo globalizado em que vivemos, dificilmente

encontraremos padrões humanos de qualidade de vida. Já que, para que poucas pessoas

tenham suas vidas de qualidade, outras, fora deste rol, permanecem em condições de vida

desqualificada. Vidas cada vez mais medidas, como sugerido pelo autor, por tabelas de

ranking, onde uns são classificados acima e outros abaixo. A qualidade de vida aparece

com a ideia de algo prometido ao consumidor e isto nos é apresentado/imposto pelas

diferentes formas de veiculação da informação, por exemplo, os grandes anúncios de

condomínios e prédios fechados nos jornais, ou separam o mundo exterior, com a falsa

propaganda de “melhora” na qualidade de vida. Seguindo esta linha, para se sentir alguém

de “qualidade” deve-se “vencer na vida”. Por isso, “a insistência com que os verbos

“fazer”, “ter” e “conquistar”, em lugar de “ser”, “criar” e “realizar”, precedem palavras

que sugerem os mais desejados sonhos da vida de todos nós [...]” (p.35).

Este mesmo autor ainda aponta que qualidade de vida não é uma conquista

pessoal que se alcança por meio de atos de competência e competição. É preciso

“aprender e apreender com; viver através do com-saber experiências cada vez mais densas

e mais fecundas de diálogo consigo mesmo, com o outro e com a vida”. Com o aprender

não se ganha apenas experiência, mas também a riqueza do conhecimento construído.

650
Brandão (2005) sugere que devemos nos descobrir, seres do espírito aberto ao

infinito e à imaginação infinda, de maneira interior e interativamente como uma fração

de conexão do mistério da Vida. Dessa forma, ela torna-se o primeiro critério de valor de

qualidade, envolvendo outros como segurança, paz e conforto, indicando uma vida de

qualidade.

d) Educação Popular e Saúde

Segundo Arroyo (2009) a educação popular propõe-se a com o povo, sair do

silenciamento e ocultamento a que estava submetido nas ciências sociais, na cultura

política e também no pensamento educacional e de saúde.

Oliveira (2010) parte do pressuposto que a cultura popular é uma possibilidade

de transformação no sentido horizontal, em que todos ampliam sua compreensão de

mundo no processo educativo e juntos vão dando forma e conteúdo crítico a um mundo

mais justo. A autora nos alerta também que educação, se faz na práxis, na reflexão e na

ação.

O conhecimento produzido pelas classes subalternas, propõe que o saber das

classes populares é mais do que ideologia:

É mais do que interpretação necessariamente deformada e incompleta da realidade

do subalterno. É neste sentido, também, que a cultura popular deve ser pensada

como cultura, como conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e

explicativo e não como cultura barbarizada, forma decaída da cultura hegemônica,

mera e pobre expressão do particular” (MχRTINS, 1989, p.111).

A Educação Física tem um papel importante a desempenhar nas relações entre

educação popular, saúde e vida de qualidade trabalhando com a construção/desconstrução

651
de diversos conceitos, como por exemplo, na questão de qualidade de vida versus a vida

de qualidade, alimentação saudável, esporte, saúde etc.

Metodologia

a) Procedimentos da Intervenção

Para o desenvolvimento deste trabalho foram realizadas aulas com 35 alunos do

ensino fundamental I da Escola Estadual Coronel Paulino Carlos. Os alunos começaram

a ser acompanhados em 2013 quando se encontravam no 4º ano do ensino fundamental e

a pesquisa foi concluída no ano de 2014 com os mesmos alunos já no 5º ano.

O estudo começou a ser realizado após a assinatura do “Termo de Consentimento

Livre e Esclarecido” (TCLE) pelos pais ou responsáveis.

Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa com Seres

Humanos da Universidade Federal de São Carlos sob o protocolo nº 386.949/2013 (ver

anexo 1). Os encontros da intervenção consistiram em aulas regulares de educação física

escolar em uma escola estadual de ensino da cidade de São Carlos. As aulas ministradas

na intervenção ocorreram uma vez por semana durante as aulas de educação física de um

quinto ano. A turma escolhida foi sugerida pelo professor de educação física da escola

mencionada. As aulas se deram em sua maioria as quartas-feiras entre 8h40min e

9h30min.

A escola escolhida se encontra em um bairro central do município de São Carlos

e os alunos são residentes em diferentes bairros. A área física da escola compreende, além

de 11 salas de aulas, também possui sala de vídeo, sala de informática, cantina, refeitório,

uma quadra descoberta e um pátio coberto. Principalmente nestes dois últimos espaços

ocorrem principalmente às aulas de educação física. Há materiais variados para as aulas

652
de Educação Física: bolas, cones, jogos de tabuleiro, bastões, colchonetes, cordas,

raquetes, entre outros.

Foram entregues 38 Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, destes 27

retornaram com a assinatura do responsável pelos colaboradores da pesquisa, os quais

tiverram as participações registradas em diários de campo. Tomamos todos os cuidados

necessários não mencionando os alunos que não tiveram a participação não autorizada

nos diários de campo. Registra-se ainda que durante o período da realização desta

pesquisa, 3 alunos mudaram de escola.

b) Procedimentos de Coleta e Análise de Dados

Como procedimento básico para a coleta de dados utilizamos o registro

sistemático de notas em Diários de Campo (DC), tanto das observações diretas como das

anotações feitas pelas crianças participantes em seus cadernos de Educação Física, as

quais foram transcritas e incorporadas aos DC, mantendo-se a escrita original dos

participantes mesmo quando com eventuais erros do ponto de vista da língua portuguesa

padrão.

O período de registro ocorreu entre os meses de agosto de 2013 e junho de 2014,

possibilitando a confecção de 19 DC. Salientamos que os nomes dos educadores e

educadoras foram mantidos, a partir de autorização. Contudo, os nomes dos alunos foram

alterados, sendo que os mesmos foram convidados a sugerir nomes fictícios, com total

liberdade de escolha.

Em acordo com Bogdan e Biklen (1994) os DC envolvem aspectos descritivos e

reflexivos. Os aspectos descritivos registrados pelos pesquisadores podem englobar:

retratos dos sujeitos (incluindo sua aparência, roupas, falas, ações); reconstruções do

diálogo (as conversas e os gestos, expressões faciais); descrição do espaço físico (através

653
de desenhos ou mesmo descrições das mobílias, piso, paredes, pintura); relatos de

acontecimentos particulares (caso ocorram e sejam pertinentes); descrição das atividades

(incluindo as atitudes dos participantes); comportamento do observador (considerando-

se a si próprio, suas atitudes, suas suposições e tudo que possa afetar a coleta dos dados).

Já a parte reflexiva envolve: reflexões sobre o método; reflexões sobre conflitos e dilemas

éticos; reflexões sobre o ponto de vista do observador e pontos de clarificação.

Após diversas leituras dos DC foi realizada a identificação de Unidades de

Significado (US) colhidas diretamente dos relatos registrados após cada aula, utilizando

para isso análise inspirada na fenomenologia (MARTINS; BICUDO, 1989; BICUDO;

ESPÓSITO, 1997; GONÇALVES JUNIOR, 2008). As US estão identificadas nos DC

por numeração arábica crescente (1, 2, 3...). Tais US possibilitaram a formação de

categorias temáticas para análise dos dados observando proposições convergentes e

divergentes (d).

Para a formação de categorias, no movimento de redução fenomenológica, foi

confeccionada a matriz nomotética na qual as categorias aparecem identificadas e

apresentadas por letras maiúsculas (A, B, C,...), além de nomeadas com título que

represente o conjunto de dados em apreciação na mesma, enquanto os DC foram

identificados em ordem cronológica crescente por algarismos romanos (I, II, III...).

Assim, na análise de dados a seguir, quando surgir a sigla DC-II-1, por exemplo, refere-

se a Diário de Campo dois, Unidade de Significado um.

Contrução dos resultados

Neste capítulo apresentamos a Matriz Nomotética, com a qual é possível realizar

a análise nomotética pautada nos registros dos diários de campo. Tal análise foi “[...] feita

654
com base na observação das divergências e convergências expressas pelas unidades de

significado” (GχRNICχ, 1997) e possibilitará a construção dos resultados.

Tabela 1: Matriz Nomotética

Categorias A) Conhecendo B) C) D) Gosto e

e adotando Convivendo e Organização participação

hábitos respeitando o das atividades nas atividades

saudáveis outro propostas

Diários de

Campo

DC-I 1, 2d

DC-II 1

DC-III 1, 2

DC-IV 1, 2

DC-V 1, 2 3

DC-VI 1

DC-VII 1d

DC-VIII 1, 2

DC-IX 1d, 2, 3

DC-X 1, 2, 3d, 4d

DC-XI 1, 2d,

DC-XII 2, 3, 4, 5, 6d, 7, 1d 9

655
DC-XIII 1, 2, 3, 4, 5, 6, 16 8, 9, 10, 11, 14,

7, 12, 13, 17, 15, 18, 20, 21,

19, 22, 26, 27 23, 24, 25, 28,

29, 30

DC-XIV 5, 12 1, 3d, 6 2, 4d, 7, 8, 9, 10,

11, 13d,

DC-XV 4, 5d, 6, 7d, 8, 3d 1d 2d, 10, 12, 15,

9, 11, 13, 14, 19 16d, 17d, 18,

DC-XVI 4, 5, 7, 16, 17, 1d, 2 , 3d, 6d, 8, 9, 10,

18 11, 12, 13, 14,

15

DC-XVII 5, 6, 12 1, 8 2, 3d, 4, 7d, 9d,

10, 11d,

DC-XVIII 1d, 2d, 3d, 4d, 6, 10, 11, 14, 15, 16, 17

5, 7, 8, 9, 12, 13

DC-XIX 2, 3, 6, 1, 5d, 8 4, 7

a) Conhecendo e adotando hábitos saudáveis

Nesta categoria se destacam asserções que declaram o conhecimento ou a adoção

e manutenção de hábitos saudáveis proferidos pelos participantes da pesquisa, como na

fala de Giga, ao comentar: “alimentação saudável é comer frutas, verduras e legumes, não

tomar refrigerantes e não comer muita batata frita. Perguntei se os alunos concordaram

com ele e todos concordaram” (DC XIII; 1). Também é possível perceber criticidade

diante de informações transmitidas pela mídia: “Helo disse que sua mãe sempre faz suco

de laranja e que ela já havia percebido que o sabor do suco de caixinha era muito diferente

656
do que o que sua mãe fazia, se eles eram iguais como mostra na TV, porque o gosto era

diferente? (DC XIII; 5).

A fala de SosôLelê também demonstra preocupação com a saúde e a tomada de

decisão frente a informação veículada pela mídia:

Questionei-os também sobre o açúcar, e disse que em uma latinha de refrigerante,

praticamente metade dela é açúcar e que ele também contribui para obesidade. Ao

falar da quantidade de açúcar presente nos refrigerantes, muitos se assustaram e

SosôLelê disse que já que tem tanto açúcar era melhor tomarmos suco. Perguntei

qual tipo de suco era melhor, o natural da fruta ou o de caixinha, ela disse que eles

eram a mesma coisa, pois ela sempre vê os comerciais na TV mostrando que eles

também são feitos da fruta. Então eu lhes disse que eles não eram 100% suco de

fruta, que metade de uma caixinha era água com açúcar e outra metade era o suco

da fruta em si. Giga então ressaltou que na TV eles não mostram isso, e falam que

é saudável. SosôLelê disse que ia falar isso para os pais dela e pedir que no lugar

desses sucos eles próprios fizessem o suco com frutas (DC XIII; 4).

Aprendi que os alimentos são necessários para nosa saude, alguns alimentos são

gostozos e faz bem, e outros são gostozos e não faz bem. Os doces são gostozos

mas pode trazes mal a saude. E as frutas são alimentos que nos faz bem e são

saudaveis. Tem alimentos que agente quer muito mas não sabemos o que tem por

dentro desse alimento (DC XVIII; 22).

Observando a asserção a seguir percebemos que os participantes tinham a

compreensão de hábitos alimentares e consideravam não ser uma tarefa fácil de cumprir:

“GaGames ressaltou que muitas vezes ele e sua família consomem esses tipos de

alimentos, pois todos trabalham e esses alimentos facilitam a vida das pessoas, mas que

infelizmente fazem muito mal à saúde” (DC XIII; 7).

657
A prática de exercícios também apareceu nas anotações do caderno de Educação

Física dos participantes GaGames como um hábito saudável: “Eu entendi que não vale a

pena ficar na frente da teve jogando, porque poderemos ficar obeso igual o monstro. O

melhor é não ficar jogando muito, mais sim ter um limite e fazer mais atividades físicas”

(DC XVI; 18). “Eu entendi que deis de ficar centado jogando vídeo game podemos fazer

exercisio sem parar de jogar” (DC XVII; 12).

Na fala de Giga também é possível observar que ter lazer é considerado como

um hábito saudável “Giga respondeu que lazer era um momento para relaxar e fazer algo

que gosta no seu tempo livre e ressaltou que se você tem tempo para relaxar você tem

mais saúde, pois não vive tão cansado” (DC XIX; 3).

As respostas dos alunos induzidas por meio de questionamentos originaram

tópicos que foram muito importantes para o direcionamento das aulas, tais respostas

ficaram evidentes na asserção a seguir:

Na coluna Qualidade de Vida os alunos falaram: Vida boa, vida suave, vida com

saúde, vida tranquila, alimentação do dia-a-dia, direito de brincar, lazer, esporte,

escola, ser solidário, ter mansão e ter carro. Já na coluna Vida de qualidade

MiniCassio disse não concordar com Loira do Banheiro e Mansônica, ressaltando

que vida de qualidade se tratava de uma alimentação balanceada (DC XII; 4).

A partir dessas falas pudemos dar um direcionamento a aula e percebemos a

mudança de pensamento dos participantes em uma anotação no caderno: “χ prof Suzana

esta trabalhando sobre qualidade de vida é ter e vida de qualidade é ser...” (DC XIII; 17).

E em uma atitude em sala de aula: Imagens como carros e mansões também apareceram

no quadro da vida de qualidade, então ressaltei o significado do termo e os autores

daquelas imagens (EvilGame e Junior) decidiram colocá-las no quadro da qualidade de

vida (DC XII; 8).

658
Na fala de Minnie também foi possível identificar que vida de qualidade pode

ter um significado diferente para cada um:

χlgumas imagens de produtos me chamaram atenção na cartolina “vida de

qualidade”, uma aludindo a um produto para limpeza de roupas e outra um creme

para hidratação dos cabelos. Perguntei quem havia colocado essas duas imagens,

e elas haviam sido colocadas pela mesma pessoa (Minnie), então perguntei por

que ela considerava que tais imagens representavam vida de qualidade e ela

respondeu que para ela vida de qualidade era andar com roupas limpas e cabelos

bonitos (DCXII; 7).

Esta categoria apresentou algumas divergências em relação ao conhecimento dos

assuntos tratados: Pirulita disse que bulimia era uma doença que fazia com que as pessoas

ficassem “loucas por exercício” para emagrecer e Helo concordou com as duas e

acrescentou que na anorexia além das pessoas vomitarem o ingeriram elas comiam pouco

para não engordar (XVIII; 2d). “χo perguntar sobre a vigorexia Juju perguntou se tinha

a ver com marca de iogurte e Kaká respondeu que achava que sim e que devia se tratar

de uma doença de pessoas viciadas nessa marca (XVIII; 4d).

Kaká perguntou se bulimia tinha alguma coisa a ver com bullying, nesse primeiro

momento não respondi nada e disse que queria que eles me respondessem, pois

trataria dos três assuntos na sala de vídeo. AzGames concordou com Kaká e disse

que bulimia era quando a pessoa praticava o bullying (XVIII; 3d).

b) Convivendo e respeitando o outro

No processo de análise dos dados foram encontradas asserções que indicavam o

respeito ao próximo e momentos de comunhão entre os sujeitos. Em relação a afetividade

dos sujeitos com a educadora destacamos o trecho a seguir “Cuca me deu um abraço e

659
comentou que gostava muito das minhas aulas e pediu para carregar os materiais, pois

gostava de ajudar os professores” (DC XIV; 1).

Um pouco antes do início da aula, Helo veio correndo em minha direção e me deu

um saquinho pequeno amarrado, me abraçou e me desejou feliz dia dos

professores. Ao abrir o saquinho, me deparei com um pingente do Mickey, fiquei

bastante feliz pela lembrança e pelo carinho da aluna (DC V; 1).

Kaká perguntou se seria possível fazermos mais aulas assim, então respondi que

infelizmente essa era a última aula que eu teria com eles, Kaká fez uma cara de

chateado e disse que tinha gostado muito das minhas aulas e perguntou se eu

voltaria no próximo semestre, eu disse que não. Então agradeci a participação de

todos nas minhas aulas e disse que tinha sido uma grande oportunidade ministrar

aulas para eles, pois eu havia aprendido muito. Então todas as meninas se

levantaram e vieram me abraçar, de repente todas começaram a pular e gritar o

meu nome, logo em seguida os meninos aderiram ao coro. O sinal bateu, os

meninos vieram se despedir de mim e foram para a sala (DC XIX; 8).

Também foram identificadas asserções que indicam tomadas de decisões frente

a eventuais conflitos em alguma atividade, conforme segue: “Os alunos discutiram entre

si e chegaram à conclusão de que se seria interessante que todos jogassem sentados, pois

seria mais justo para todos” (DC VI; 1). Momentos de respeito e honestidade para com o

próximo também estiveram presentes nas aulas:

Nessa fase eles deveriam passar por cima do banco de costas com os olhos

fechados. Felícia ficou com medo de andar de costas com os olhos fechados e não

realizou a etapa de forma efetiva, então eles foram para a próxima etapa e eu havia

esquecido de tirar uma vida do grupo, então Cristiano Ronaldo me lembrou e

660
EvilGame disse que era pra ele ficar quieto, ele respondeu que não era certo ficar

quieto, pois seria desonesto comigo e com o jogo (DC XVI; 2).

Esta categoria apresentou divergências em relação ao respeito ao próximo e ao

estar junto em alguma atividade. Momentos de desorganização da classe e falta de

respeito com as atividades propostas também foram identificadas:

Juju relatou que um aluno da equipe adversaria tinha acertado a bola em seu rosto

e estava mandando todos os alunos fazerem a mesma coisa, ressaltou que estava

cansada dizendo que participava de um projeto social com ele aos finais de semana

e que sempre acontecia a mesma coisa. Edson e eu tentamos acalmá-la e tentamos

levantar sugestões para que ela retornasse ao jogo, como por exemplo, manter os

dois na mesma equipe ou 10 minutos de jogo para cada um. A aluna disse que não

voltaria para a aula de jeito nenhum e que estava muito chateada com a atitude de

seu colega (DC VII; 1d).

Durante o jogo as reclamações, principalmente por parte das meninas, eram

muitas, pois segundo elas os meninos não passavam a bola. Uma delas

(Mansônica) se dirigiu ao Edson chorando e disse que não queria mais participar

da aula, pois ninguém deixava ela participar. Pouco tempo depois uma outra veio

chorando também dizendo que os meninos ficavam zombando da cara dela pelo

fato dela não saber jogar (DC XI; 2d).

Perguntei sobre o jogo Mario e todos responderam que conheciam e

demonstraram grande empolgação. Ao dizer que nossa aula seria adaptada em um

jogo de vídeo game estilo o do Mario, a gritaria e euforia tomaram conta do

espaço, e acabou atrapalhando a explicação da atividade, Demorou um pouco para

conseguir a atenção de todos novamente e tive que chamar a atenção de Vicky e

661
Neymar umas três vezes. Após alguns minutos consegui acalmá-los para poder

retomar o conteúdo (DC XVI; 1d).

c) Organização das atividades

Durante a leitura e releitura dos DC foram encontradas asserções que apontavam

para o planejamento e organização das atividades:

Nos dirigimos para a sala de Educação Física, onde gravei um vídeo dos alunos

que já entregaram o TCLE deles falando o nome deles, a idade e o nome fictício

que eles gostariam que fosse utilizado no estudo. Tal estratégia foi utilizada para

facilitar a confecção dos diários de campo e para que caso eu esqueça do rosto de

algum aluno, eu possa consultar esse material (DC V; 3).

Outra ocorrência bastante corriqueira era os alunos pedirem para que

realizássemos atividades que não constavam no planejamento, como descrita na fala de

Neymar: “Fui até a sala buscar os alunos e logo fui surpreendida por Neymar que me

perguntou se poderíamos jogar futevôlei. Disse a ele que não seria possível, pois

infelizmente essa atividade não estava no planejamento de aulas” (DC XVII; 1).

O trabalho de (re)leitura dos DC também permitiu avaliação do trabalho da

educadora na prática vivenciada em campo, nessa categoria, por exemplo, identificamos

duas asserções que emergiram como divergências, entre elas:

A princípio a aula seria realizada na sala de vídeo, porém estava chovendo e uma

outra professora já estava realizando suas atividades lá. Educador Edson disse que

poderíamos trocar com ela, mas isso faria com que perdêssemos um certo tempo,

então optei por não passar o vídeo e ficar na sala da Educação Física (DC XII;

1d).

662
A ideia inicial era que os alunos trouxessem figuras de pessoas que achassem

bonitas, porém por uma falha minha e por mudança repentina na data da aula não

consegui avisá-los sobre tal tarefa. Para não prejudicar o que eu havia planejado

para a aula deste dia, cheguei mais cedo na escola e com a ajuda de duas alunas

do 5ºC recortei figuras de pessoas das mais variadas idades, sexo, raça etc. (DC

XV; 1d).

Com olhar crítico, observamos que mesmo com o planejamento e a organização

das aulas, algumas atividades não puderam ser realizadas, mas nessas ocasiões foi

possível reorganizar os planejamentos dos respectivos dias sem trazer qualquer prejuízo

ao conteúdo que seria trabalhado.

d) Gosto e participação nas atividades propostas

Nesta categoria temática se destaca percepções da educadora e das falas e

anotações dos alunos no que diz respeito a manifestações de alegria e prazer destes no

momento da realização das atividades, como na fala de Tatá que aponta ter aprendido

coisas que não sabia “Qualidade de vida e vida de qualidade foi o primeiro assunto das

aulas com a Suzana foi muito legal, coisas que eu não sabia eu aprendi. E as crianças

poderam dar as suas opiniões sobre conversa” (DC XII; 9); “Cacau respondeu que gostou

muito, pois adora brincar de pega-pega, que podíamos jogar esse jogo mais vezes, pois

ela gostou de um pega-pega com personagens” (DC XIII; 11). Na frase escrita no caderno

de Juju também foi possível observar tal elemento: “Eu amei por que é divertido passar

nas fases correr do monstro (DC XVI; 9).

Destacamos também a percepção da educadora: “χo falar sobre o assunto da

aula os alunos ficaram muito eufóricos, começaram a gritar “eba!” (DC XVII; 2).

663
Diversos alunos escreveram em seus cadernos terem gostado das atividades (DC

XIII-15; DC XIII-18; DC XIII-20; DC XIII-21; DC XIII-24; DC XIV – 9; DC XIV – 10;

DC XIV – 11; DC XIV – 14) outros destacaram que “adoraram” (DC XIII-23; DC XIV

– 7) e alguns destacaram que a aula foi “legal” (DC XIII-29; DC XIII-30; DC XIV – 7;).

Poucos explicaram o motivo de ter gostado.

Também foram identificadas situações de desacordo, ou insatisfação:

Cacau disse que ficou chateada por não ter participado. Comentei que infelizmente

o tempo de aula era curto e não deu para todos participarem. Cuca reclamou que

não foi escolhida, pois as colegas só escolheram as pessoas consideradas CDF e

que tiravam notas altas na sala de aula. Comentei com eles que o critério que eles

usaram para escolher os colegas não serviu nessa atividade, pois as respostas eram

sobre si mesmo e não sobre algo específico (DC XIV; 4d).

Identificamos descrições nos cadernos dos alunos referentes ao desacordo com

algum conteúdo trabalhado, como no caso de Loira do ψanheiro: “Não gostei muito da

aula porque fiquei parada” (DC XV; 17d). Algumas falas durante as aulas também foram

identificadas: Felícia disse que não gostou da atividade porque foi muito desorganizada

(XVII; 7d).

Considerações

Em uma pesquisa inspirada na fenomenologia, sua conclusão não indica um final

absoluto, mas a compreensão de uma perspectiva do fenômeno estudado, no caso,

compreender os processos educativos decorrentes de intervenção realizada junto a

escolares do Ensino Fundamental da Escola Estadual Coronel Paulino Carlos, cujo

conteúdo prático-teórico das aulas foi saúde, qualidade de vida e vida de qualidade.

664
Os contratempos encontrados apontavam o possuir, ter e consumir, como podem

ser vistos nos Diários de Campo (Apêndice 2). A tarefa de desconstrução desta ideia que

é apresentada/imposta pelos meios de comunicação não foi fácil, e foi possível observar

que tal visão consumista estava presente nos colaboradores, a fala de FunkBlackKate

representa tal visão: “FunkBlackKate pegou uma imagem de um vídeo game e disse que

ter qualidade de vida era ter esse objeto, pois era de qualidade e trazia muita felicidade

(DC XII; 6d).

Percebemos que conseguimos perceber o início de mudanças no pensamento dos

sujeitos que levam as compreensões sobre uma vida de qualidade e preocupação com seus

hábitos alimentares, como visto nesta asserção:

O sinal tocou e os alunos foram para a sala, logo em seguida Helo voltou com um

pacote de salgadinho e disse que esse era o lanche que havia trazido, mas que

depois da aula de hoje ela ia procurar evitar comer essas coisas, pois fazem muito

mal à saúde e ela não queria ficar obesa (DC XIII; 13).

E foi possível identificar que alguns já possuem um raciocínio crítico da

realidade que os cercam: “χpós a apresentação da inversão dos termos Giga comentou

que a mídia impõe o que devemos fazer, comprar e gostar através dos comerciais (DC

XIII; 5).

Foram identificadas relações de respeito, reciprocidade, comprometimento,

confiança e empatia e momentos de afetividade com os alunos. Neste trecho do DC,

podemos identificar um momento de comunhão e afetividade entre alunos e educadora e

gosto pelo que foi trabalhado em aula citado por ψaixinha: “Eu adorei essa brincadeira

porque é divertida e eu adorei esse tema que a Suzana escolheu eu adoro ela” (DC XIII;

23)

665
Durante a intervenção foi identificada a realização de um trabalho colaborativo,

compartilhado, realizado com os alunos e não para os alunos. Sendo o diálogo princípio

fundante de nossa inserção, conforme nos ensina Freire (2003):

[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que

solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser

transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de

um sujeito no outro, nem tampouco torna-se simples troca de ideias a serem

consumidas pelo permutante (p.79).

Consideramos que, a partir da intervenção pautada especialmente no referencial

Vida de Qualidade (BRANDÃO, 2005), identificamos processos educativos que levaram

a uma apropriação crítica das crianças participantes sobre saúde, hábitos alimentares,

lazer e melhor compreensão e valorização do outro, independente dos padrões e valores

estéticos falseados como saúde e qualidade de vida veiculados pela mídia, conforme

expressou a participante da intervenção e pesquisa, Tatá, no caderno de Educação Física:

Todos são iguais

Todo mundo juga as pessoas bonitas. Só se for magra, loira, olhos azuis. E uma

pessoa negra, gorda, com olhos castanhos, feia.

A anos pessoas gordas eram bonitas, e as magras feias. E a gente ve que isso foi

mudando e as magras ficaram bonitas e as gordas feias.

Tudo isso porque a mídia foi colocando na nossa cabeça que esta pessoa bonita, e

a outra feia.

Acho que isso e crime apesar de não existir lei canto mas e um caso de

decriminação desconhecido pela lei.

No final todos são bonitos (DC XV; 13).

666
Fig. 1: Desenho realizado por Tatá no caderno de Educação Física

Referências

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SÃO PAULO (ESTADO). (2009). Secretaria da Educação. Caderno do Professor:

Educação Física, ensino médio – 2a. série, vol. 2. São Paulo: SEE.

668
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Educação Física, ensino médio – 2a. série, vol. 3. São Paulo: SEE.

SOARES, C. L. (1994). Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores

Associados.

669
INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR:

PERSPECTIVAS PARA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Luana Zanotto & Luiz Gonçalves Junior

Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Educação Física e Motricidade

Humana.

E-mail: luanazanotto@yahoo.com.br

Resumo: Diante tamanhas desigualdades sociais no Brasil, em especial, nos intramuros

escolares, resolvemos estudar as discriminações raciais existentes na escola, enquanto

espaço para re-pensar algumas práticas e posturas frente a folclorização da cultura

africana e afro-brasileira no currículo. O objetivo foi observar contribuições da filosofia

africana, em especial nas aulas de Educação Física, visando a construção de práticas

pedagógicas interculturais. Assim, apresentamos algumas propostas de intervenções

junto as crianças de 3ᵒ e 4ᵒ ano de uma escola pública municipal. Como metodologia o

estudo se apropriou de uma perspectiva de pesquisa qualitativa com inspiração

fenomenológica. A partir da intervenção foram tomadas notas nos diários de classe. Para

análise dos dados foram realizadas fases de identificação das unidades de significado e

organização de categorias. Dialogamos com as perspectivas da Filosofia de África e

algumas possibilidades para seu reconhecimento e valorização nos afazeres pedagógicos.

Com base nas compreensões aos estudos da temática, consideramos que as práticas

contextualizadas aos princípios filosóficos de África contribuem para a ruptura de gestos

de desumanização e desvalorização do outro. Necessitamos conhecer e adotar outras

posturas, com vistas a favorecer a formação positiva de uma identidade negra, bem como

colaborar com a dinâmica aprender-ensinar-aprender.

670
Palavras-chaves: Processos Educativos, Educação das relações étnico-raciais, Educação

Física Escolar, Filosofia Africana, Interculturalidade.

CULTURAL AND PHYSICAL EDUCATION SCHOOL: PROSPECTS FOR

EDUCATION ETHNIC-RACIAL RELATIONS

Abstract: Faced with such huge social inequalities in Brazil, especially in the intramural

school, we decided to study the existing racial discrimination at school, as a place to re-

think some practices and attitudes towards the folklorization of African culture and

african-Brazilian in the curriculum. The goal was to observe contributions of African

philosophy, especially in physical education classes, aimed at building intercultural

teaching practices. Thus, we present some proposals for interventions with children and

3ᵒ 4ᵒ year a public school. As the study methodology appropriated from the perspective

of qualitative research with phenomenological inspiration. Following the intervention

notes were taken daily in class. For data analysis phases of identifying units of meaning

and organization categories were performed. Dialogued with the prospects of Philosophy

of Africa and some possibilities for their recognition and appreciation in educational

affairs. Based on the understandings of thematic studies, we consider the practical to the

philosophical principles of contextualized Africa contribute to the breakdown of acts of

dehumanization and devaluation of others. We need to understand and adopt other

postures, in order to favor the formation of a positive black identity, as well as collaborate

with dynamic learning-teaching-learning.

Keywords: Educational Processes, Education of ethnic-racial relations, physical

education, African Philosophy, Interculturalism.

671
Introdução

Historicamente os conhecimentos e as significações humanas geradas pelas

comunidades africanas e afro-brasileiras, têm sido desprestigiados pelo projeto de

sociedade existente, sociedade que se estrutura e se reestrutura desde o período pré-

colonial, levado a cabo especialmente a partir do século XVI, quando foram iniciadas as

invasões territoriais pelos povos europeus, tal qual foi submetido o território brasileiro.

Sobre esse período, Boff (2003) aponta a ruptura de um processo autônomo dos

povos invadidos, substituído pela tentativa de imposição da cultura dos invasores. A

dominação política fez uso do poder da violência física sobre a população que aqui vivia,

visando a subordinação dos nativos.

Nossa história pátria vem marcada por uma herança de exclusão que estruturou

nossas matrizes sociais. Criou-se aqui, desde os nossos primórdios, um sujeito

histórico de poder, sempre articulado transnacionalmente, que se mantém sem

ruptura até os dias de hoje, onerando poderosamente a invenção de uma nação

soberana [...] (p.31).

Nesse sentido, Bosi (1992, p. 337), apresenta o significado da reinterpretação, o

qual:

[...] toda cultura dominante é absorvida e descodificada pela cultura dominada, de

tal modo que, nesta última, já não fica da cultura superior nada a não ser, talvez,

o desejo que tem os dominados de aprender os dons e os poderes dos patrões.

Freire (1992) compartilha das ideias apresentadas em seus discursos sobre a

expressão da ideologia dominante, os quais sublinham a discriminação sofrida pelos

672
discriminados e o medo da liberdade. Trata-se de uma contestação do mundo real, de

forças exercidas pelos opressores, visando dominar o outro - os oprimidos.

A imposição opressiva de que eram sujeitos sem direitos deu origem ao que

conhecemos em nossos dias por fenômeno do eurocentrismo. Embora o território

brasileiro, assim como os outros territórios colonizados, tenha lutado pela emancipação

política, pela libertação da escravidão, ainda percebemos formas de colonização e

mistificação dos povos oprimidos, tal quais os povos africanos e afro-brasileiros.

Desta forma, todos os povos de origem não europeia foram classificados como

seres animalescos, inferiores, como objetos, não protagonistas de sua história e até não

humanos que, por isso, não precisam ser reconhecidos, tão pouco respeitados.

Fiori (1986) reflete sobre a importância do sujeito em protagonizar sua própria

história e tomá-la em suas mãos, para que possa re- produzir-se, produzindo seu mundo

na incessante luta pela obtenção de condições de renovação e pela conscientização que é

um processo inacabado, assim como são os homens e as mulheres. Tal protagonismo é

crucial para a transformação da realidade, pois somos e nos conhecemos seres capazes de

fazer isso.

Contudo, é lamentável ter de reconhecer que entre nós, no Brasil, este pensamento

ainda prevaleça, gerando sentimentos, posturas e atitudes racistas. Em nosso cotidiano,

deparamo-nos com frases do tipo: “há uma nuvem negra em minha vida” ou “isto poderá

denegrir a minha imagem”, quando se quer expressar que determinado sujeito vivencia

um contexto ruim em sua vida. Ou ainda, presenciarmos situações constrangedoras

cometidas durante as “brincadeiras” de apelidação, encharcadas de más intenções

(GONÇALVES JUNIOR, 2010).

673
As questões referentes ao reconhecimento da sociedade intercultural estão na

superfície das discussões no campo da educação. Assim, entendemos o contexto latino-

americano como interétnico e, portanto devemos combater toda e qualquer postura de

silenciamento às discriminações e as ações eurocêntricas.

Aprovando tal postura, observamos que a Resolução 01/2003 do Conselho

Nacional de Educação (CNE), instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana, via o projeto de Lei nᵒ 10.639/2003 que altera o texto da Lei as

Diretrizes e ψases da Educação Nacional (LDψ), incluindo “História e Cultura Afro-

ψrasileira e χfricana” a serem observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos

níveis e modalidades da Educação Brasileira (BRASIL, 2003).

Em concordância com o referido documento constatamos que a escola assume

papel de destaque para prática de combate ao racismo e de desigualdade racial e social.

Em acordo com a citada Lei:

[…] é papel da escola, de forma democrática e comprometida com a promoção do

ser humano na sua integridade, estimular a formação dos valores, hábitos e

comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de

grupos e minorias (BRASIL, 2003, p.7).

Particularmente no componente curricular Educação Física, observamos que as

práticas pedagógicas ainda estão pautadas em conteúdos exclusivos e circunscritas ao

contexto cultural europeu (GONÇALVES JUNIOR, 2010). Nos Parâmetros Curriculares

Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997) observa-se o surgimento, da Educação Física no

Brasil em princípios do século XX, relacionado às instituições militares e à classe médica,

674
o que em muito corrobora para os modelos de aulas pautadas em práticas

segregacionistas.

Na atualidade o Currículo do Estado de São Paulo, indica que a Educação Física

deve:

[...] tratar da cultura do corpo que se expressa de diversas formas, variado pelo

repertório de conhecimentos que os alunos já possuem sobre diferentes

manifestações corporais e de movimentos e buscar ampliá-lo, aprofundá-lo e

qualificá-lo criticamente (SÃO PAULO, 2011, p. 256).

Para além das aulas de Educação Física, almejamos uma escola pautada no

modelo de interculturalidade, para tanto se faz necessário desfazer alguns equívocos, tal

qual romper o silêncio sobre a história e cultura africana, conhecendo e reconhecendo

outras formas de viver e compreender o mundo.

De acordo com Candau (2008), interculturalidade significa ir além de uma

proposta de diálogo entre as culturas, mostrando às pessoas identificadas como essa ou

aquela cultura que aceitem e compreendam a alteridade. Essa circunstância não permite

defender que uma cultura seja melhor que a outra, mas sim ensinar a pesquisar ou procurar

entender os valores culturais de todas as culturas.

Um possível meio para consolidação e transformação das práticas pedagógicas

interculturais, se pauta na observação da filosofia africana. Nesse sentido, valemos-nos

das produções do sul-africano Desmont Tutu (2012), da etíope Elleni Tedla (1995) e do

moçambicano José P. Castiano (2010) que muito colaboraram para a discussão dos

achados nesta pesquisa, possibilitando outra perspectiva de ação-compreensão.

675
Objetivo

O estudo teve como objetivo observar contribuições da filosofia africana, em

especial nas aulas de Educação Física, visando a construção de práticas pedagógicas

intercultural na escola, no que diz respeito à ruptura com paradigmas eurocêntricos e a

adoção de uma filosofia que corrobore para uma construção identitária negra positiva em

crianças negras e não-negras.

Percurso metodológico

Desde logo, destacamos que esta proposta foi construída concomitante ao

desenvolvimento da disciplina “Teoria da Educação: χportes de χfricanidades”, ofertada

pelo Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de São

Carlos (UFSCar), apoiado na questão suleadora324 da disciplina que buscou compreender

quais significados e dimensões tem a excelência acadêmica e a excelência educativa na

perspectiva de raízes africanas?

Neste período, desenvolvíamos o planejamento pedagógico para o componente

curricular Educação Física em uma escola de educação básica do Município de São

Carlos, SP – Brasil. Junto as discussões teóricos-reflexivas da referida disciplina,

realizamos um levantamento na escola, sobre quais práticas de matriz africana eram

observadas nos afazeres diários. No processo de identificação percebemos que ações

permeadas por esta cosmovisão eram escassas. Quando, raramente, contempladas, as

324
“uste tadoà u aà pe spe ti aà f ei ea a,àoàte oà sulea à ueà oà o staàdosàdi io iosàdaà lí guaà
portuguesa, é utilizado neste estudo para chamar atenção dos(as) leitores(as) para a conotação ideológica
dasà e p essõesà o teado as ,à o tea -se. Norte é primeiro mundo. Norte está em cima, na parte
superior dos mapas alocados nas paredes de diversas salas de aula de escolas do Brasil, assim Norte
transmite os conhecimentos que nós do hemisfério Sul adotamos sem reflexão ao contexto local (FREIRE,
1992, p. 48).

676
professoras faziam uso dos recursos disponíveis na caixa de africanidades325 da escola.

Sobretudo, algumas atividades eram ofertadas via uma pedagogia descontextualizada dos

acontecimentos históricos, sociais e culturais.

Assim, iniciamos a segunda fase do estudo. Nela realizamos dez intervenções326

nas aulas de Educação Física, no período de agosto e setembro de 2013, junto as turmas

do 3ᵒ e 4ᵒ ano do ensino fundamental I.

Os recursos materiais utilizados foram os mesmos utilizados nas aulas que já estão

previstas no início do semestre, por exemplo: bolas, arcos, cordas, livros, aparelho de

som, entre outros. Visando a emersão no objetivo proposto, adicionamos outros materiais,

tais como, vídeos, mapa do continente e materiais para leitura.

Como parte do exercício docente e como instrumento de coleta de dados, foram

elaborados os registros sistemáticos no diário de classe, construídos a partir dos ideais

contidos em diários de campo, elaborado ao final de cada aula. Os diários de campo,

segundo Bogdan e Biklen (1994), são como um relato escrito daquilo que o investigador

vê e percebe, realizando os registros no decurso da recolha com vistas a refletir sobre os

dados de um estudo qualitativo. Baseamo-nos na pesquisa-ação e nas concepções de

pesquisa participante. Esses procedimentos destacam-se pela contínua intervenção no

campo de pesquisa; os sujeitos de pesquisa são colaboradores/as e observam-se mudanças

seguidas de ação a partir da reflexão (BRANDÃO, 1987).

325
Proposta pela Secretária Municipal de Educação da cidade de São Carlos-SP que busca realizar algumas
ações para a implementação das Diretrizes Curriculares Municipais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(SÃO CARLOS, 2009). Nesta caixa contém material pedagógico para o ensino das relações étnico-raciais nas
escolas, composta por 64 livros de literatura infantil, instrumentos musicais, vídeos e CDs
326
As intervenções corresponderam à adoção de novos procedimentos, permeados pelas perspectivas da
filosofia africana, em atividades previstas para o bimestre, bem como a proposições de novas atividades
que buscassem construir saberes sobre África.

677
Com uma perspectiva de pesquisa qualitativa, ancoramo-nos em metodologia de

inspirações fenomenológica. Desta forma, após cuidadoso trabalho de leitura dos diários

de classe e rememoração das experiências vivências no momento das aulas, foi realizada

a identificação das Unidades de Significado, pautados nos registros e memória,

agrupando-as em duas categorias. Tratando-se de um primeiro movimento em busca da

essência dos fenômenos (MARTINS; BICUDO, 1989).

Para formar as categorias foi realizada a redução fenomenológica a partir de

convergências ou divergências identificadas nos relatos expressos nos diários de classe.

No processo de redução emergiram duas categorias, identificadas pelas letras maiúsculas

A e B. Essas categorias são: A) Perspectivas da filosofia de África na escola e B)

Possibilidades para o reconhecimento e valorização da filosofia africana nos afazeres

pedagógicos.

Análise a apresentação dos resultados

a) Perspectivas da filosofia de África na escola

Nos primeiros encontros procuramos observar se as crianças tinham conhecimentos

sobre suas descendências. Percebemos, majoritariamente, depoimentos sobre

pertencimentos a origem “italianas” e “portuguesas”, ou não saber identificar (após

período de pesquisa junto a família). Sobretudo, observamos poucas identificações de

origem “africana”. χ partir da cosmovisão africana buscamos atribuir outro sentido a

respeito do “princípio de afirmação da vida” (TEDLχ, 1995, p. 64) e das interações

igualitárias e solidárias das origens. A cada situação vivida, requeríamos reconhecer o

outro como outro, dotados de potencialidades latentes para o seu vir-a-ser.

678
Não há como negar que a colonização impôs paradigmas educacionais que sempre

negaram, aos conquistados, conhecimentos úteis sobre o seu mundo e sobre sua origem.

A história que nos foi contada traz o ponto de vista do narrador, desta forma, o colonizado

é o condenado. Assim, é comum negar o que somos e tentarmos buscar o que não somos.

Como exemplos dessas contradições refletidas em âmbitos educacionais,

lançamos o nosso olhar para os livros didáticos. Estes materiais tendem a omitir a história

dos povos africanos e indígenas. Identificam-se imagens, palavras e conceitos

estigmatizados, os quais contaminam o currículo, no que diz respeito a omissão da

identidade racial; negros/as e indígenas e folclorização de suas respectivas culturas.

Movidos pela descrição desse contexto e inspirados em estudo de Maranhão e col.

(2007) desenvolvemos oficinas de expressões artísticas que permitissem com que as

crianças manifestassem como elas se viam entre seus pares, na família, e nos distintos

espaços sociais. Observamos, no entanto, que a maior parte delas construiu autoimagens

negativas, expressas em falas como “meus olhos são estranhos” ou “eu não sou tão

bonito/a assim […]”, expressando sentimentos de insegurança e de impossibilidade de

ascensão social, principalmente quando relacionadas às imagens que a mídia apresenta

massivamente, de culto ao corpo belo e branco, as quais provocam sentimento de

inferioridade e segregação.

Nessa dinâmica, refletimos conjuntamente sobre a expressão do povo Akan,

Sankofa. O termo representa por um pássaro africano, um adinkra, que está voltado com

a cabeça para trás. Nesse movimento ele se alimenta das sementes distribuídas em suas

asas; essa representação tem como significado a volta ao passado para atribuir

significações das ações do presente. A palavra, ainda, é entendida por “voltar para a fonte

e buscar” (TEDLχ, 1995, p. 46). Fazíamos referência sobre o poder que cada sujeito

679
possui perante a própria trajetória de vida, construído junto ao convívio e ancestralidade

de sua comunidade.

Na perspectiva da comunidade africana há forte presença da partilha. Não se

verifica a negação do outro, tão pouco a injustiça e desrespeito aos sujeitos humanos e

animais. O modelo de compreensão de mundo africano nos apresenta outro sentido sobre

o respeito à vida e afirmação da mesma, das interações entre as pessoas - buscando

reconhecer o outro como outro, dotados de potencialidades latentes para o seu vir-a-ser.

Apresenta-nos diferente visão do trabalho, de natureza, de comunidade e religião

(TEDLA, 1995).

Nesta obra, a autora revela do pensamento africano sobre a vida não ter sentido se

for vivida fora de uma comunidade, pois o elo humano é cultivado e preservado na

convivência com os outros. A comunidade se manifesta de maneira solidária, onde tudo

se compartilha, se divide e se celebra.

Assim, entendemos que as pessoas se tornam pessoas quando pertencem a uma

comunidade, se reconstroem no solidarizar-se nos existires; aprendem e ensinam num

processo dinâmico de se tornarem humanos e se educarem para a vida.

Em meio a essa dinâmica, construímos saberes sobre o ato de compartilhar. Em

diálogo com Desmond Tutu (2012) tem-se um dos grandes prestígios da cultura africana,

a harmonia e solidariedade entre as pessoas.

Em diálogo com Desmont Tutu (2012) tem-se um dos grandes prestígios da

cultura africana, a harmonia com a comunidade. Para o autor, o povo africano é Ubuntu.

Em nosso weltanschauung africano, nossa visão de mundo, temos algo chamado

ubuntu [...]. “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas”.

680
Precisamos de outros seres para aprendermos a ser humanos, pois ninguém vem

ao mundo totalmente formado. Não saberíamos falar, andar, pensar ou comer

como seres humanos a não ser que aprendêssemos como fazer essas coisas com

outros seres humanos [...] (TUTU, 2012, p. 41).

Nesse sentido, entendemos que ter Ubuntu é saber viver em união um com os(as)

outros(a), os seres humanos existem e persistência por estabelecerem uma condição de

estarem juntos, por formarem uma família, implicados por uma condição de ser se

somente o semelhante também for. Esse conceito ainda expressa “[...] de como as pessoas

são mais importantes que os objetos, os lucros, as posses materiais. Ele fala sobre o valor

intrínseco das pessoas como não dependentes de coisas alheias, como condição social,

raça, credo, gênero ou grandes feitos” (TUTU, 2012, p.42).

b) Possibilidades para o reconhecimento e valorização da filosofia africana nos

afazeres pedagógicos

Os resultados e reflexões obtidos com as intervenções foram positivos, uma vez que

as práticas realizadas conquistaram espaço e visibilidade com as crianças, professoras e

comunidade escolar em geral. Possibilitou (re)pensar posturas discriminatórias e semeou

possibilidades de práticas pedagógicas permeadas pela filosofia africana, apesar de

reconhecermos ser um trabalho inicial e que deva ser incrementado.

A medida do possível, tentávamos fazer com que as vivências entre adultos-

crianças e crianças-crianças fossem perpassadas pela hospitalidade, dedicação,

compaixão, respeito, humildade, reconhecimento, generosidade, simpatia e simplicidade,

salientado para que tais pensamentos transcendessem o ambiente escolar.

Outra experiência possível aconteceu nos momentos em que desenvolvíamos

jogos e brincadeiras de matriz africana. Em uma roda de conversas, levantamos

681
questionamentos sobre “o quê vem na cabeça das crianças” quando pensam sobre o

continente africano, somada aos saberes que elas possuem sobre localização geográfica.

Para emergir à luz esses conhecimentos, elaboramos um jogo no qual cada criança

deveria elencar alguns saberes: nome de três personalidades negras(as) importantes na

história do Brasil, duas práticas culturais de África e, por fim três nomes de países

africanos. Identificamos um reduzido conhecimento sobre os saberes de África entre o

grupo de crianças. Mediante as dificuldades apresentadas, pensamos outra regra para a

atividade, a qual possibilitava resolução em comunhão, juntos, conseguissem responder

o maior número de questões.

Por fim, ressaltamos outro episódio com a prática de confecção da boneca

Abayomi327. Propusemos a confecção em uma dimensão maior em relação tamanho

originário, construído durante as viagens para o Brasil em direção a escravidão, momento

em que as mulheres rasgavam a barra da saia e faziam Abayomis para as crianças

brincarem. Nessa atividade, construímos uma boneca com aproximadamente 40cm de

altura, com vistas a chamar a atenção para as intencionalidades no contexto histórico.

Em meio a tais procedimentos, esteve presente a relação dialógica com o valor

intrínseco ao ser humano, os quais assumem formas e modos concretos de existência num

processo contínuo do ser sendo (CASTIANO, 2010).

Durante as vivências perguntávamos o que elas mais gostavam dos nossos

momentos de conversas, e as repostas foram positivas, em especial, a sensação

confortável que as crianças expressavam por saber que elas serão quando todos forem

Ubuntu. Parafraseando Castiano (2010, p. 158): “[…] assim se compreende a expressão

327
Abayomi é uma boneca de pele negra e estética afro, feita com materiais reaproveitados, retalhos de
pano e malhas. Em sua confecção são se usa cola ou costura, ou qualquer suporte interno (madeira,
arame, grampos, etc) somente retalhos superpostos e nós. Fitas, bordados, miçangas e miudezas definem
o acabamento.

682
africana Eu sou porque tu és, que sublinha que a nossa existência como indivíduos só se

pode compreender através de outros membros da comunidade”.

Essa conduta corresponde à ultrapassagem de uma simples ampliação de

informações para os conteúdos pedagógicos sistematicamente desenvolvidos, tem de se

configurar como gesto de resistência à desumanização, opressão e mistificação, além de

revelar a permanência da herança espiritual, material e intelectual das diversas etnias

africanas (SILVA, 2007).

Sob essa ótica, torna-se possível compartilhar diferentes saberes com e entre as

crianças, descontruindo formas preconceituosas e de negação dos modos de ser dos afro-

brasileiros e africanos, além de possibilitar o conhecimento de outros modos para a

dinâmica de educar-se (GONÇALVES; SILVA, 2003). Deste modo, as crianças puderam

ter contato com outras matrizes participe na formação de nossa cultura, para além da

europeia.

Dedicarmo-nos ao contexto do mundo africano significa possibilitar que um leque

de opções se abra com a intenção de romper preconceitos e ressignificar alguns

entendimentos sobre África, como por exemplo, imaginá-la como território de pura

pobreza, cheio de doenças, que pode oferecer pouco ou quase nada ao mundo. Se

valorizarmos e nos concentrarmos no que é produzido pelos africanos podemos construir

uma base cedimentada para um contexto educacional renovado.

Considerações

Destacar o pensamento de matriz africana, observando outras formas de viver e

compreender o mundo permite ampliar os olhares, repensar e transformar as práticas

683
sociais existentes em nosso meio e, especialmente, perceber o quão esta filosofa diverge

da visão de mundo eurocêntrica, propalada.

A partir do trabalho realizado, pudemos perceber que o desconhecimento sobre a

África, povos africanos e afro-brasileiros permeados por posturas racistas e

discriminatórias, são oriundas de omissões seculares na história que ainda hoje refletem

no imaginário social brasileiro.

Se dedicar aos entendimentos das raízes africanas e transpô-las para o contexto

ocidental de educação, como para outros contextos, exige dos(as) educadores(as) e

alunos(as) o aprender a pensar criticamente, identificar situações de discriminações e não

silenciar diante delas, exige desconstruir distorções e construir novos significados. Exige

não se omitir, exige ir à luta.

Em outras palavras, para que a comunidade se eduque em relações étnico-raciais

positivas, primeiramente carece dos entendimentos sobre o sentido de comunidade nas

bases da filosofia africana, em segundo, que todos(as) os(as) protagonistas da

comunidade escolar estejam engajados (as) em um processo de vencer paradigmas para

desconstruir e, em seguida, construir uma sociedade mais igualitária, solidária e

humanizadora.

Este exercício implica a não omissão de informações ou apresentação fragmentada

de episódios descontextualizados da história. Implica em apresentar a nação negra

brasileira como 52% da população nacional e destacar que esse dado torna o Brasil um

dos países com a maior população negra do mundo (BRASIL, 2003).

Consideramos ter possibilitado, em diálogo comunitário, a construção de aspectos

identitários positivados e fortalecidos entre afro-brasileiro, além de despertar a

consciência negra entre os brancos. Contudo, reconhecemos que não conseguimos

684
modificar as identidades dos/as participantes no curto período, apenas corroboramos para

o despertar de um olhar sobre si, com o outro e do outro.

Refletindo a respeito do modelo eurocêntrico esperamos contribuir para a

construção de uma educação humanizadora que reconheça e valorize a diversidade,

inclusive observando outras cosmovisões como a filosofia africana nas práticas

pedagógicas diárias, pois, como afirma Tutu (2012) o que é positivo em África é também

positivo à humanidade.

À medida que atuamos e transformamos em comunhão a educação física escolar

e a escola, pautados em uma educação das relações étnico-raciais, percebemos que

também podemos auxiliar na construção de um mundo em que “somos quando os outros

também são”: Ubuntu!

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687
O MUNDO DA VIDA NA PERSPECTIVA DO USUÁRIO DE DROGAS

Valéria Christine Albuquerque de Sá Matos* & Jean Marlos Pinheiro Borba**

Universidade Federal do Maranhão - UFMA

E-mails: valcasmatos@gmail.com, jean.marlos@ufma.br

Resumo: este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica cujo objetivo foi refletir

sobre o mundo da vida (Lesbenwelt) do usuário de drogas a partir do referencial da

fenomenologia husserliana. Utilizamos, como fundamento teórico-epistemológico, a

noção de lebenswelt, do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938). Para

compreendermos o mundo da vida do usuário de drogas é necessário um resgate da

subjetividade humana num retorno a vivência originária. A crítica husserliana ao

cientificismo parte do distanciamento deste com as questões referentes ao mundo vivido,

ao seu cotidiano, constituindo a racionalidade científica moderna como parâmetro para

análise de todas as questões pertinentes a vida, ao homem. Em relação ao fenômeno das

drogas, a cientificidade acaba por encobrir o fenômeno tal como este se mostra, reduzindo

a alterações neuroquímicas as questões relativas à existência humana.

Palavras-chaves: mundo da vida; usuário; drogas; fenomenologia; subjetividade.

THE WORLD OF LIFE IN THE PESPECTIVE OF THE DRUG USER

Abstract: this work is the result of a bibliographic research which sought to reflect on

the lifeworld (Lesbenwelt) of drug user from the reference of Husserl's phenomenology.

We use as theoretical and epistemological foundation, the notion of lebenswelt, the

German philosopher Edmund Husserl (1859-1938). To understand the life world of the

*
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão -
UFMA
**
Doutor em Psicologia Social.

688
drug users is necessary a rescue of human subjectivity in a return to original experience.

The Husserl's critique of scientism part of this distance with the issues related to the life

world, to their daily lives, resulting in the modern scientific rationality as a parameter for

analysis of all issues pertaining to life, to man. In relation to the drug phenomenon, the

scientific character eventually cover the phenomenon as it turns out, reducing to

neurochemical changes the issues related to human existence.

Keywords: life world; users; drugs; phenomenology; subjectivity.

Introdução

Levando-se em consideração o alcance e a repercussão do consumo de drogas na

esfera social, entende-se que a dependência de química é um fenômeno de alcance. O

impacto do abuso de drogas é diverso, causando um aprofundamento dos problemas

sociais, econômicos e psicológicos (Puentes, 2008).

No ψrasil, a situação é alarmante: o Ministério da Saúde considera que o abuso e

o tráfico de drogas causam graves danos ao país, gerando custos na esfera social e

econômica que afetam diversas pessoas de modo direto e indireto (ψrasil, 2009).

Em uma pesquisa realizada a nível nacional pela Secretaria Nacional χntidrogas

(SENχD), em colaboração com o Centro ψrasileiro de Informação sobre Drogas

(CEψRID), constatou-se, a nível nacional, um aumento no consumo de cocaína e crack

entre 2001 e 2005. χ partir deste último ano, sobretudo, observou-se um crescimento

alarmante no consumo destas substâncias, responsável por vários problemas de saúde,

violência e criminalidade (ψrasil, 2009).

Em outro estudo realizado no ψrasil (Duarte; Formigoni, 2011), que objetivava

fazer um levantamento a nível nacional sobre o consumo de drogas entre universitários,

identificou-se que quase a metade dos pesquisados (48.7%) afirmou ter feito uso de algum

689
tipo de droga na vida. Entre estes, a maior parte afirmou abusado de álcool (86.2%),

seguido do tabaco (46.7%), maconha (26.1%), inalantes e solventes (20.4%),

anfetamínicos (13.8%), tranquilizantes (12.4%), cocaína (7.7%), alucinógenos (7.6%) e

ecstasy (7.5%).

Um ano depois, constatou-se que a região nordeste do ψrasil deteve a maior

porcentagem de indivíduos que já experimentaram diversos tipos droga (27,6%), com

destaque para o álcool, o tabaco, a maconha, os solventes, os tranquilizantes e os

estimulantes (Duarte; Formigoni, 2011).

É interessante observar que o destaque dado na mídia ao crack, no cenário

brasileiro, não corresponde aos resultados das pesquisas mais recentes realizadas. O que

se constata é que o álcool continua aparecendo enquanto droga de maior consumo na

população, acarretando alterações orgânicas, além de prejuízos marcantes na dinâmica

familiar, social, bem como contribuindo para as mortes no trânsito, homicídios, dentre

outras consequências graves a sociedade. Mas, por ser se tratar de uma droga

culturamente aceita, não se dá o devido enfoque nos meios de comunicação. O cotidiano

é minimizado, o fenômeno é encoberto.

Todos este relatórios produzidos por instituições governamentais permitem

reflexões significativas acerca do consumo de drogas e denunciam um grave cenário

mundial, que acarreta impacto na esfera econômica dos países, profundos danos sociais,

mortes, violência, interrupções de projetos de vida, dentre outros aspectos.

Todavia, os dados quantitativos, estatísticos, que se propõe a demonstrar uma

realidade encontrada, acabam acobertando uma realidade fenomênica. χs estatísticas

reduzem as drogas a números, fazendo com que os sujeitos que vêem estes dados

puramente, deixem de entrar em contato com as diversas questões relativas ao abuso de

690
substâncias psicoativas, as repercursões no mundo da vida do dependente químico. Há

uma naturalização desses dados.

Segundo o Ministério de Saúde do ψrasil (ψrasil, 2009), o que se apresenta é um

aumento no consumo de drogas em paralelo ao aprofundamento dos problemas sociais

como a violência, aliado a um enfraquecimento dos valores, falta de estabelecimento de

metas para o futuro e de sentido na vida do sujeito.

O tema das drogas tem sido discutido por especialistas (ψaistrocchi & Yaría, 2014;

Frankl, 2005) que relacionam esta problemática a questões relativas aos modos de

existência humana, entendendo aquela como consequência de um vazio existencial, o

qual se caracteriza por tédio, ausência de projetos existenciais e a própria falta de sentido

na vida.

χlém destes estudos, o interesse pelo tema foi também despertado pela

proximidade profissional com dependentes químicos, que se iniciou no ano 2004, quando

se integrou uma das equipes dos ambulatórios de álcool e drogas da Secretaria de Saúde

do Estado do Maranhão. χlém desta experiência, fez-se parte da primeira equipe do

Centro de χtenção Psicossocial Álcool e Drogas (CχPS χD), já em 2009. O objetivo das

ações da equipe em ambos os contextos era fornecer tratamento ambulatorial num

contexto de equipe mutiprofissional, favorecendo a reinserção sócio-ocupacional dos

pacientes.

O contato com os usuários de drogas trouxe alguns questionamentos e

inquietações intelectuais em relação à percepção de cada sujeito sobre si mesmo e sobre

o mundo, além dos anseios e dificuldades em relação ao seu projeto existencial. χlgumas

situações foram marcantes e recorrentes nas nossas observações e escuta dos pacientes: o

abandono de projetos de vida com a intensificação do consumo de drogas, a falta de

planificação para o futuro, com uma perspectiva voltada para o momento presente.

691
Era perceptível, em nossos contatos com os usuários de drogas em tratamento, a

ambivalência vivenciada por estes em relação à sedução pelo mundo das drogas, do

tráfico, bem como as diferentes sensações adquiridas com o uso de substâncias, a fuga da

realidade e a vontade de retomar projetos existenciais, tais como trabalhar, constituir uma

família, investir numa formação profissional.

χ atuação profissional junto aos pacientes em tratamento da dependência química

favoreceu vivências que nos aproximaram ao mundo vivido dos dependentes de drogas.

Uma delas, para nós também angustiante, referiu-se às recaídas dos pacientes. Em

diversos momentos, pacientes que estavam em abstinência do uso de drogas por meses e

em processo de reinserção socio-ocupacional, ou seja, sendo reinseridos no mercado de

trabalho, tinham recaídas que os levavam novamente ao mundo das drogas. Nesses

episódios de recaídas, muitos verbalizavam a extrema dificuldade que enfrentavam em

relação à manutenção do quadro de abstinência e as tentativas de restabelecimento de

projetos de vida anteriormente sonhados. Esse movimento sinalizava, em nossa

perspectiva, numa dificuldade dos usuários em compatibilizar o abuso de drogas e a

realização de planos pessoais, de estabelecer contato com o mundo da vida. Um

questionamento nos era recorrente: como pensar sobre o mundo da vida do usuário de

drogas?

Em meio às diversas observações e questionamentos levantados em relação ao

mundo vivido do usuário de substâncias psicoativas, o ponto de partida deste trabalho foi

o de refletir sobre o mundo da vida do usuário de drogas a partir da perspectiva

fenomenológica husserliana.

Marco teórico

a) O mundo da vida: uma compreensão husserliana

692
No mundo atual, tem-se falado em modificações nas diversas esferas da

sociedade, seja numa perspectiva ética, moral e dos valores, o que reflete na concepção

de homem na pós-modernidade, bem como na relação entre o homem e o mundo e nos

vínculos interpessoais (Puentes, 2008).

Fala-se em avanço tecnológico e, em contrapartida, identifica-se um crescente

esvaziamento do homem, acarretando desesperança, vazio existencial, enfraquecimento

dos vínculos afetivos. Um contexto atraente para modificações no consumo de drogas, na

tentativa de fuga da realidade, de compensar o vazio, de satisfação momentânea. Nesse

cenário, entende-se que o resgate do mundo da vida é sinônimo de resgate da

subjetividade humana, ou seja, do homem em sua dimensão holística. (Baistrocchi &

Yaría, 2014; Frankl, 2005).

Ao operar-se um retrocesso histórico-conceitual deste tema, encontra-se um

cenário de crise no contexto europeu, na primeira metade do século XX. Nesta época,

Husserl (1839-1938) inquietou-se diante da busca por fundamentos para a ciência. Nesse

momento, poder-se-ia identificar dois importantes grupos no meio científico: de um lado,

os que defendiam a articulação das leis da natureza com a razão; do outro lado, os que

distinguiam as leis da natureza das leis do espírito, e afirmavam que o fato psicológico, a

mente, a psique, seria o fundamento do saber (Guimarães, 2012).

Mais do que uma escolha entre matrizes divergentes, a questão que se apresentava

no contexto europeo era bem mais complexa. Tratava-se de entender o sentido do mundo

ocidental e da humanidade como um todo, e desta maneira, posicionar-se quanto o ideal

de ciência e o lugar da razão na estruturação do conhecimento. Para Husserl (2012 [1954],

p.3), as transformações decorrentes do positivismo, na forma de ver o mundo pelo homem

moderno foram consequência do abandono de questões significativas para a humanidade,

como por exemplo, o sentido na vida, na história, na liberdade; ou como ele melhor

693
definiu o impacto do racionalismo científico sobre a subjetividade humana ao afirmar que

“meras ciências de fatos fazem meros homens de fatos”.

Husserl inaugura a fenomenologia com sua publicação Investigações lógicas

(1900-1905), momento em que tece uma crítica ao psicologismo, ou seja, a absolutização

do fator psicológico (Guimarães, 2012). Mas é somente em A crise da ciência européia e

a filosofia (1936) que ele destaca a origem da crise da ciência. Para o filósofo, o

objetivismo da ciência não oferece espaço para se abordar questões relativas à

subjetividade humana, constituindo-se, apenas, como a superficie de uma dimensão mais

profunda (Husserl, 2012).

Neste âmbito, em relação à dependência de drogas, os estudos científicos têm sua

relevância na tentativa de esclarecimento do fenômeno, em seus mecanismos físico-

químicos, mas nada tem a acrescentar sobre a subjetividade do indivíduo drogadiccto,

bem como no que se refere às questões relativas ao seu cotidiano, aos seus modos de viver

e estar no mundo com os outros.

Pensamos que as políticas de atenção aos usuários de drogas partem de

concepções de homem e de mundo muitas vezes positivistas, objetivadas; e, ao proporem

um modelo de tratamento na perspectiva da reinserção socio-familiar, acabam

reproduzindo o isolamento, a medicalização e, consequentemente, o afastamento do

mundo da vida. Portanto, ao se analisar os modelos terapêuticos propostos aos

dependentes químicos, o modo como estão estruturados em sua maioria, vale evidenciar

a comprensão husserliana ao tratar do objetivismo imposto pelas ciências da natureza.

Um transvio da racionalidade, uma interpretação demasiado estreita da mesma, de

acordo com o padrão das ciências matemáticas da natureza, com a inevitável

consequência do naturalismo e do objetivismo na compreensão da essência da

subjetividade (Husserl, 2012, [1936], p.6-tradução nossa).

694
A preocupação de Husserl com a tematização sobre o mundo da vida era de buscar

uma fundamentação para a fenomenologia, para uma ética da ciência, dando fim aos

anseios do mundo científico por um saber universal, apodítico (Silva, 2012). Ou, como

afirmou Gadamer (2012) ao abordar a trajetória de Husserl rumo à redução transcedental,

ressaltar o afastamento deste em relação ao cartesianismo, numa busca por aproximações

progressivas com o mundo histórico e social.

Para Husserl (2009, p.8), a ciência trata do ser, ou do valor da verdade, que tem a

pretensão de ser supratemporal. Além disso, estas verdades devem ser válidas para todos

os homens, em seu caráter universal. Em decorrência disso, o mundo científico nunca se

questiona sobre o modo de funcionamento do mundo da vida, ou, como ele destaca, "todas

essas ciências são, enquanto produções do conhecimento para o mundo, uma pretensão

incompreensível”.

A crítica husserliana da própria filosofía era a de que esta se aproximou das

ciências da natureza, buscando o seu reconhecimento enquanto ciência conforme o

paradigma positivista. Como resultado da separação da filosofía dos problemas da vida

cotidiana, ela acabou desvinculando-se das questões referentes ao sentido da vida, da

finalidade da história. (Silva, 2012).

Consequentemente, esta crise de fundamento, ou de sentido, leva o homem a uma

falta de perspectiva na vida, em si mesmo, no mundo. Este é um ponto importante quando

se aborda o mundo da vida do dependente químico. O abuso de drogas no contexto atual

tem sido relacionado a uma falta de sentido na vida, de planificação do futuro, de valores

de vida. (Frankl, 2005; Sedronar, 2010).

Nesse contexto, de crise e busca por fundamentos próprios para o conhecimento,

Husserl (2012) iniciou uma forte discussão sobre o tema do mundo da vida, propondo

uma nova função para o conceito:

695
Em termos de mundo da vida, somos nele objetos entre objetos, como estando

aquí e ali, na certeza da simples experiência, antes de quaisquer verificações científicas,

sejam elas fisiológicas, psicológicas, sociológicas etc. Somos por outro lado, sujeitos para

este mundo, a saber, como os eus-sujeitos a ele referidos de modo teológicamente ativo,

que o experenciam, consideram, valorizam, para quem este mundo circundante tem

somente o sentido de ser que as nossas experiências, os nossos pensamentos, as nossas

valorizações etc., em cada caso lhe conferiram… (Husserl, 2012, [1936], p.84).

Guimarães (2012) e Silva (2012) enfatizam o afastamento do mundo científico

com o mundo da vida. Como resultado da busca de neutralidade no campo científico,

temas como o sentido da vida individual e coletiva, os valores, a cultura, seriam abordados

fora do contexto da ciência. Esta tornou-se insensível ao sentido do ser, que se dá na

subjetividade, e, sendo assim, tem quase nada ou pouco a dizer sobre as necessidades

reais do homem.

As ciências modernas se apoiam no conhecimento técnico para tentar explicar a

história e a vida. Através deste, a ciência assume o direito de explicação absoluta da

realidade. Um movimento pretencioso, uma vez que ela coloca em segundo plano os

acontecimentos da humanidade em detrimento de si própria (Silva, 2012).

A proposta husserliana de resgate de uma consciência da história fez com que

temas relativos ao mundo da vida, como a constituição do sentido, da história, a

sexualidade, o nascimento, a morte, dentre outros, fossem tratados em conexão ao

momento presente, passado ou futuro, ou seja, nas gerações (Goto, 2008).

Ele (Lebenswelt) é o mundo espaço-temporal das coisas, tal como as

experenciamos na nossa vida pré e extracientífica, e que sabemos como experenciáveis

para além das experenciadas. Temos um horizonte de mundo como horizonte da

experiência possível das coisas (Husserl, 2012, p.113).

696
Seguindo este entendimento, o resgate do mundo da vida não se restringiria

somente a uma retomada do sentido da vida, ao se buscar evidenciar as origens das

experiências mundanas, mas, também, implicaria uma mudança de proposta de destacar

a razão como fenômeno anterior ao saber científico (Goto, 2008).

Embora o mundo da vida contemple a ciência enquanto experiência humana, o

conceito de mundo da vida se contrapõe ao de mundo da ciência, uma vez que se trata de

uma crise ética e de sentido, questão central na crise da ciência moderna. O mundo da

vida se dá, desta forma, em niveis pré-científicos, onde o conhecimento científico é

apenas uma dimensão dela (Silva, 2012).

Para Silva (2012) a solução para a crise vivida pela ciência moderna em relação a

técnica e o seu distanciamento do mudo da vida seria solucionado ao se restabelecer o

mundo da vida enquanto esfera de onde a ciência advém; além disso, situando a relação

entre mundo da vida e ciência, em que se estabelece o devido valor e alcance da ciência.

O mundo da vida é un campo de formação de diversas idéias, onde temos contato

com nosso mundo privado, com sentimentos primitivos, originários, que surgem de nossa

experiência imediata, e são reveladas pela intuição. Toda esta dinâmica passa pela

percepção do que se vivencia, do modo como se apresentam os fenômenos subjetivos à

consciência. Segundo Guimarães (2012, p.32):

De um lado, a subjetividade, a conciência intencional iluminadora do mundo,

como lugar absoluto da sua auto-evidenciação, do seu esclarecimento; do outro lado, a

abertura infinita dos horizontes do mundo,…, o mundo é constituído no seu caráter de

horizonticidade. Em geral, os horizontes do mundo se reduzem a capacidade perceptiva

da pessoa humana. A cada indivíduo é dada a potencialidade intencional da consciência

para “descubrir horizontes”.

697
É nessa perspectiva que se compreende que o sujeito que vivencia o mundo da

vida está em constante descoberta de novos horizontes. A importância de ressaltar o

carácter prioritário do mundo da vida se situa nas múltiplas relações em que os objetos se

colocam, com suas diversas significações e suas infinitas manifestações de sentido, de

possibilidades, fruto dos modos de apresentação destes à percepção. (Guimarães, 2012;

Restrepo, 2012).

Nessa perspectiva, ao se aproximar a temática de mundo da vida com a realidade

do usuário de drogas, parte-se da compreensão de que as experiências de cada sujeito são

representativas da realidade vivida por estes num contexto de inúmeras vivências, de

abuso de drogas, de suspensão de projetos de vida, de afastamento do âmbito social, de

tratamento, de retomada de antigos projetos existenciais, de aproximação com os laços

sociais anteriormente rompidos...

Ao falar sobre as experiências cotidianas, Pizzi (2010) ressalta que estas são

importantes para se desvelar o sentido das práticas concretas, e mesmo que seja num

pequeno contexto, existe uma relevância dos fenômenos para aqueles que os vivenciam.

Percebe-se que, para o dependente químico em tratamento, essa relação com o cotidiano

é bem marcada, pois a rotina de abuso de drogas acarreta uma modificação brusca na vida

diária, fazendo com que hábitos adquiridos no decorrer da vida de cada sujeito, sejam

abandonados e substituídos pelo uso de drogas.

b) Mundo da vida e abuso de drogas

Ao se pensar sobre o mundo da vida dos usuários de drogas, devem-se considerar

os inúmeros sentidos que estes atribuem à vida, ao mundo vivido, às suas experiências

advindas de contexto do abuso de drogas e também fora deste.

698
Pizzi (2010) enfatiza que é preciso identificar um conhecimento pré-teórico, e que

apenas quem vivencia determinada realidade, pode explicitar o significado e o sentido

das coisas, dos sujeitos e do próprio mundo vivido.

Em relação aos dependentes químicos, percebe-se um distanciamento das

questões subjetivas, tanto em uma perspectiva intrapessoal quanto interpessoal. Muitos

projetos pessoais dão lugar a uma busca incessante pelo abuso de drogas. É como se

ocorresse uma modificação dos projetos anteriormente estabelecidos, tais como constituir

família, investir numa carreira profissional, adquirir a casa própria, dentre outros. Todos

estes planos são abandonados e que o resta é o abuso de drogas, passando a ser este vivido

enquanto projeto de vida. (Sedronar, 2009).

Desta forma, o usuário de drogas, uma vez que abandona seus projetos de vida,

afasta-se do mundo da vida, das relações anteriormente estabelecidas, do sentido

atribuído à vida por ele mesmo. Este afastamento das questões subjetivas é que dá lugar

a uma crise de sentido. É muito importante para o dependente de drogas resgatar o mundo

da vida como um espaço de atuação das diversas experiências humanas, do contato com

o outro, com sua dor e sofrimento (Struchiner, 2007).

A compreensão do mundo da vida passa por uma reflexão fenomenológica em que

cada indivíduo tem uma capacidade de percepção para descobrir novos horizontes na

busca da realização de seus projetos de vida. Cabe ao homem, diante do horizonte de

possibilidades que o mundo possui, atribuir-lhe sentido e ordená-lo de acordo com estes

sentidos (Silva, 2012; Guimarães, 2012).

Restrepo (2012, p.259) ressalta que no mundo da vida se encontra “nossa

experiência, nossa atividades, desejos, valores e expectativas, a elaboração de projetos ou

a proposta de tarefas”. Nesse entendimento, para qualquer sujeito, o mundo da vida é

sinónimo de perspectiva futura, de planejamento, de aspirações.

699
Para o psiquiatra e doutor em filosofía Viktor Frankl (1932-2002), vários de seus

estudos indicam uma relação entre o abuso de substâncias e questões relativas ao projeto

de vida. Uma pesquisa realizada por este (Frankl, 2005) identificou, entre os usuários de

drogas, a necessidade de encontrar um sentido na vida. Encontrou-se uma correlação de

maior dependência entre os estudantes com uma vida sem sentido, vazia, em comparação

com os estudantes que possuíam projetos de vida.

Segundo o Observatório χrgentino de Drogas (Sedronar, 2009), em estudo

realizado com estudantes de ensino médio no ano de 2007, identificou-se que as baixas

expectativas para o futuro e para desenvolver projetos pessoais têm relação com o

consumo de drogas e que o projeto de vida se consolida como um fator protetor contra o

consumo de substâncias para os adolescentes. Os fatores de proteção podem ser

entendidos como estímulos que, quando presentes na vida do sujeito, reduzem sua

vulnerabilidade

Considerando-se o projeto de vida e o fenômeno da drogadicção, os muitos

significados concebidos por pessoas dependentes de drogas refletem suas perspectivas

existenciais ou a falta destas (Sedronar, 2010). Nos relatos de muitos dependentes

químicos, há uma ênfase no que se refere à necessidade de retomada de projetos de vida

esquecidos ou adormecidos pela relação com a droga.

Ao abordar o tema de projeto existencial, Sartre (2009) considera que este é um

processo, uma construção, uma vez que o homem não nasce fabricado, mas se constitue

ao longo de sua existência, fazendo uso de sua capacidade de escolha, de sua liberdade.

Em sua obra O existencialismo é um humanismo, Sartre (1946/2009) resgata a

relação do homem com o mundo, colocando no sujeito a responsabilidade por seu projeto

existencial. Na compreensão sartreana, “toda ação que não se apóia numa experiência

comprovada está destinada ao fracasso” (Sartre, 2009, p.3). Ou seja, o projeto existencial

700
se faz na prática, no contato com o mundo da vida. Não se trata de vontade ou aspiração

humana.

Sartre (2009) ainda ressalta que o homem não é somente o que ele mostra em

determinado momento, mas o que ele concebe depois de sua existência, o que projeta ser.

Como consequência de suas decisões, ele é responsável por sua existência:

Porque queremos dizer que o homem começa por existir, o que quer dizer que

começa por ser algo que se lança a um porvir, e que é consciente de projetar-se a um

porvir. O homem é ante tudo um projeto que se vive subjetivamente (Sartre, 2009, p.29-

tradução nossa).

Considerando-se que "o homem não é nada mais que seu projeto" (Sartre, 2009,

p.53), não há nada para além de suas ações, de suas realizações, de sua vida. O projeto

não define o homem de modo definitivo, podendo ser reencontrado, redefinido. Este é um

aspecto interessante a ser ressaltado: o caráter inacabado do projeto existencial. Como,

então, fica o projeto existencial de cada dependente químico? Que subjetividades são

produzidas no contexto de abuso de drogas? Compreendendo-se que o projeto de vida é

o que se revela na experiência de cada sujeito, no que este faz e não em suas aspirações e

vontades, entende-se que o dependente químico assume o abuso de drogas enquanto

projeto existencial.

Nesse contexto, não se deve esquecer da liberdade de cada sujeito diante das

questões de sua existência, de suas relações no contexto do mundo da vida, liberdade esta

que se estende ao uso de substâncias psicoativas, da escolha de cada sujeito diante de cada

dose, de cada tragada. Embora, não se trata de minimizar a complexidade deste fenômeno,

do seu impacto sobre os sujeitos e a sociedade.

O homem tem diante de si um mundo de objetividade real, com o tempo

planificado, e, além disso, sua vida universal, representada por sua consciência. Este

701
último tem infinitas possibilidades, mas também um mundo de indeterminações (Husserl,

2009).

Todo propósito, toda ação, dirigidos a este mundo circundante é um agir até-o-

futuro-e-dentro-do-horizonte-de-futuro. O futuro é o reino relativamente determinado e,

sem dúvida, uma vez mais, indeterminado, da espera e das possibilidades ‘reais’. O

predelineamento do esperado e o realmente possível é determinado de diferente modo e

alcance segundo as motivações prefiguradas na trama de vida vivida até esse momento

(Husserl, 2009, p.795, tradução nossa).

À medida que o sujeito adquire experiências de vida, ele alterna momentos de

esperança acerca do futuro, mas também de medos, dúvidas e incertezas. Os temores

tendem a aumentar com as experiências que frustram as expectativas. Consequentemente,

isso vai estabelecendo uma insegurança geral sobre a vida, sentida como expectativa e

temor, probabilidade e certeza (Husserl, 2009).

Para alguns dependentes químicos, as frustrações diante de situações da vida são

motivos que impulsionam a relação de abuso com as drogas. Dificuldades de socialização,

problemas na dinâmica familiar, perda de pessoas importantes na vida e término de

relacionamentos são questões apontadas por usuários como motivadoras para o abuso de

drogas.

Jáuregui (2009) destaca que os projetos de vida constituem sistemas de

interpretação de vida e o sentido se encontra nas experiências de pessoas e grupos. É um

processo dinâmico que se dá no decorrer da vida de uma pessoa e que expressa o sentido

da vivência do individuo.

O sentido se constrói a partir de uma estreita relação com as demais pessoas, com

as organizações e contextos em que se vai forjando uma concepção sobre quem somos,

702
como é o mundo que habitamos e qual pode ser nosso lugar e papel nele (Jáuregui, 2009,

p.39-tradução nossa).

A referida autora enfatiza que os projetos de vida expressam valores ou

antivalores, possibilitando ao sujeito configurar seu projeto de vida auténtico (adaptado)

ou inauténtico (inadaptado). (Jáuregui, 2009).

No contexto dos usuários de drogas, pode-se identificar uma estreita relação entre

dependência química e abandono de projetos existenciais. O que acontece, então? Há um

abandono dos projetos de vida, ou estes são modificados? Nesse sentido, o modo como

cada sujeito dependente de drogas se relaciona consigo mesmo e com o mundo revela o

sentido atribuído a cada experiência, ou seja, se configura no projeto de vida de cada

indivíduo.

Considerações finais

O aprofundamento de questões relativas à subjetividade do dependente químico

coloca-se enquanto fenômeno de investigação de grande relevância diante do atual

contexto de abuso de drogas, em que se percebe modificações nos modos de consumo

com reflexos profundos sobre a relação dos sujeitos consigo mesmos, com o mundo e

com o mundo da vida.

Diante da racionalidade científica, sustentada pelo paradigma científico moderna,

as questões relativas a subjetividade humana ficam esquecidas, uma vez que o método

científico se mostra insuficiente para comprender os fenômenos relativos a

existencialidade. Ou como melhor afirma Canguilhem (2000, p.160) ao discutir sobre o

método experimental aplicado no contexto de saúde: “χ vida, não é, portanto, para o ser

vivo uma dedução monótona, um movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica,

703
ela é debate ou explicação com um meio em que há fugas, vazios, esquivamentos e

resistências inesperadas”.

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707
INSTITUCIONALIZAÇÃO, À LUZ DA TEORIA BOWLBYANA DO APEGO

Mauro Luiz Ferreira Silva.

Faculdades EST, São Leopoldo

E-mail: mauroposest@yahoo.com.br

Resumo: Centenas de crianças mantidas em instituições Brasil afora... Um grave

fenômeno social, que exige um olhar sensível e fundamentado. Um desses fundamentos

consiste, certamente, na investigação dos efeitos psíquicos da privação de vínculo. Pode

uma criança desfrutar de saúde psíquica sem manter proximidade com sua mãe ou com

alguém que desempenhe a função materna, isto é, uma mãe substituta? Quais as

necessidades primárias de vínculo apresentadas por crianças até os oito anos de idade?

Como o comportamento desses indivíduos poderia ser afetado na própria infância e nas

demais fases da vida? Quais os efeitos da não vinculação, nos casos de crianças

institucionalizadas? Para o delineamento desta análise do psiquismo infantil, lançaremos

mão da Teoria do Apego, enunciada pelo notável psiquiatra, psicólogo e psicanalista

inglês, John Bowlby. Apesar de sua longa e pormenorizada investigação, aqui serão

destacados tão só os principais argumentos de sua teoria, evoluindo-se para o modo como

a própria criança percebe o apego. Em seguida trataremos da equivalência entre apegos

natural e substituto, e concluiremos com seis consequências da institucionalização.

Palavras-chave: infância; institucionalização; adoção; teoria do apego; vinculação

materna.

INSTITUTIONALIZATION, IN LIGHT OF BOWLBYAN ATTACHMENT

THEORY

708
Abstract: Hundreds of children held in institutions throughout Brazil... A serious social

phenomenon, which requires a sensitive and grounded look. One of these basics is

certainly an investigation of the psychological effects of deprivation of bonding. Can a

child enjoy mental health without maintaining proximity with their mother or someone

who holds a maternal function, ie, a surrogate mother? What are the primary needs of

bonding of children up to the age of eight? How could the behavior of these individuals

be affected in childhood itself and in the other stages of life? What are the effects of non-

binding, in the case of institutionalized children? To guide this analysis of the child

psyche, we will make use of the Attachment Theory, enunciated by the noted psychiatrist,

psychologist and British psychoanalyst John Bowlby. Despite his long and detailed

research, only the main arguments of his theory will be highlighted here, progressing to

how the child itself perceives the attachment. Following we will treat the equivalence

between natural and substitute attachments, and conclude with six consequences of

institutionalization.

Keywords: childhood; institutionalization; adoption; attachment theory; maternal

attachment.

Considerações Iniciais

Uma série televisiva americana, exibida no Brasil em meados da década de

oitenta, intitulada “Punk, a Levada da ψreca”328, conta a história de uma garota traquinas

e carismática, de oito anos de idade. A menina, abandonada por sua mãe num shopping

center em Chicago, passa a viver num apartamento vazio, e é encontrada pelo síndico do

328
Punky encontra uma lar (parte 1 / 6) Punky a levada da breca 1º episódio. [sic]. (2011). Recuperado de:
http://www.youtube.com/watch?v=P3qq37IG_vo. Os episódios de Punk, a levada da breca podem ser
encontrados em sites da internet.

709
edifício. Ambos se apegam, e o velho e viúvo Artur Bicudo, aos sessenta anos, vai lutar

na justiça pela guarda de Punk, conseguindo, enfim, adotá-la.

Em apenas três dias de convivência, mesmo em meio ao drama de terem de ser

separados pelo juizado de menores, que acaba colocando Punk num orfanato, Artur e a

garotinha constituem tal vínculo que, no terceiro dia, diante do juiz de família declaram

um ao outro, com grande emoção, enquanto se abraçam: “eu te amo”. χ impressão que

se tem, diante de uma cena tão sensível, é a de que os autores da série querem afirmar

que, mesmo o lar mais simples ou inusitado é capaz de fazer uma criança feliz de um

modo que qualquer instituição jamais poderá. Uma garotinha e seu velhote podem formar

uma díade saudável, um par melhor que uma garotinha e sua instituição.

Este é o assunto deste artigo: crianças institucionalizadas e sua necessidade de

adoção; um grave fenômeno social vivido por centenas de crianças Brasil afora, que exige

olhar sensível e fundamentado. Um desses fundamentos consiste, certamente, na

investigação dos efeitos psíquicos da privação do vínculo maternal. Quais as necessidades

primárias de vínculo apresentadas por crianças até os oito anos de idade? Quais danos a

falta de vínculo poderia causar ao seu psiquismo? Quais os efeitos da não vinculação, nos

casos de crianças institucionalizadas? Pode uma criança desfrutar de saúde psíquica sem

manter proximidade com sua mãe ou com alguém que desempenhe a função materna, isto

é, uma mãe substituta? Como o comportamento desses indivíduos poderia ser afetado na

própria infância e nas demais fases da vida?

Para auxiliar-nos nessa investigação, lançaremos mão da Teoria do Apego,

enunciada pelo notável psiquiatra, psicólogo e psicanalista inglês, John Bowlby. Apesar

de sua longa e pormenorizada investigação, aqui serão destacados apenas alguns de seus

conceitos-chave, numa exposição panorâmica, não obstante sintética. Começaremos pela

compreensão dos principais argumentos de sua teoria, evoluindo para o modo como a

710
própria criança percebe o apego. Em seguida, trataremos da equivalência entre apegos

natural e substituto, e concluiremos com seis consequências da institucionalização.

De volta ao drama televisivo... Nas palavras de Punk, antes da adoção, dirigidas

a sua amiguinha Cátia, pulsam uma denúncia e um clamor em milhares de pequenos

corações humanos: “você tem uma coisa que eu não tenho: uma família”. De algum modo,

queremos ouvir, interpretar e reagir a essa voz.

John Bowlby e a Teoria do Apego

Pede-se vênia para uma citação biográfica que, apesar de “cirurgicamente” reduzida,

ainda se mostra relativamente longa.

John Bowlby nasceu em 1907..., estudou Medicina e Psicologia na Universidade de

Cambridge. No terceiro ano da sua licenciatura, interessou-se pelo que mais tarde

viria a chamar-se Psicologia Desenvolvimental. Terminou a sua licenciatura médica

em 1928 e ao mesmo tempo especializou-se em Psiquiatria Infantil e em Psicanálise.

Prestou trabalho voluntário numa escola para crianças delinquentes, o que

influenciou o rumo da sua carreira.... Fez a sua pós-graduação na London Child

Guidance Clinic, com um interesse teórico e clínico na transmissão intergeracional

das relações de “apego”. O contacto com uma obra de Konrad Lorenz desperta em

Bowlby o interesse pela etologia, onde vai procurar novas pistas e explicações para

a relação de vinculação entre mãe e filho.

... psiquiatra inglês com formação psicanalítica e etologista, ... assessor da

Organização Mundial de Saúde na área de saúde mental. Realizou estudos sobre

crianças órfãs, institucionalizadas....

Depois da 2ª Guerra Mundial Bowlby foi convidado para dirigente do departamento

de crianças na Clínica de Tavistock, tendo-a associado ao Instituto de Relações

711
Humanas de Tavistock, onde trabalhou a tempo inteiro como clínico, professor e

investigador na psiquiatria infantil e familiar, entre 1946 e 1972....

Tendo como ponto de partida a Teoria da Vinculação e o estudo de numerosos casos

clínicos, Bowlby em 1980 desenvolveu uma teoria sobre perda e luto, sendo

considerada uma das mais compreensivas sobre a resposta à perda. (Oliveira &

Marques, n.d., p. 2)

Bowlby nos conta que, em 1950, fora convidado pela Organização Mundial de Saúde

para assessorá-la “na área de saúde mental de crianças sem lar” (ψowlby, 1990, p. IX).

Pesquisando o tema em profundidade, ele conheceu os mais eminentes pesquisadores de

psiquiatria infantil e puericultura de seu tempo; uma de suas principais impressões foi o

alto grau de concordância dos estudos, quanto aos princípios que regem a saúde mental

das crianças, bem como quanto aos modos de salvaguardá-la. Em seu relatório à OMS,

Bowlby formulou sua tese nos seguintes termos: “O que se acredita ser essencial para a

saúde mental é que o bebê e a criança pequena experimentem um relacionamento

carinhoso, íntimo e contínuo com a mãe (ou mãe substituta permanente), no qual ambos

encontrem satisfação e prazer” (Bowlby, 1990, p. X).

Além disso, nesse mesmo relatório foi ainda mais específico ao descrever as medidas

para a proteção da “saúde mental de crianças separadas de suas famílias” (Bowlby, 1990,

p. X). Conforme dito anteriormente, apesar de toda abrangência da teoria de Bowlby, os

aspectos que nos cabe analisar resumidamente são, doravante, no que consiste o apego à

figura materna, e o conjunto dos males psíquicos causados pela privação desta.

Quando da elaboração de seu estudo, John Bowlby constatou que seu colega James

Robertson pisava um “terreno predominantemente virgem” (Bowlby, 1990, p. X). A

Robertson coube o mérito de fornecer um poderoso diferencial à analise bowlbyana,

porquanto efetuara não um estudo em retrospectiva, utilizando adultos, mas um exame

712
prospectivo a partir de crianças. Robertson fizera “uma investigação sistemática do

problema dos efeitos da separação da mãe nos primeiros anos da infância sobre o

desenvolvimento da personalidade... observara numerosas crianças antes, durante e

depois de uma temporada fora do lar” (Bowlby, 1990, p. X).

Ainda que em Bowlby tenhamos precipuamente a relação mãe-filho(a), e não um

estudo sobre esta e as demais relações comuns do lar329, e sobre a complexidade dos

efeitos de todas essas privações, é certo que a psicopatologia considera “a perda da figura

materna como uma variável dominante” (Bowlby, 1990, p. XI).

A Teoria do Apego, com sua proposta pioneira da necessidade intrínseca de

vinculação biologicamente determinada, e sua análise prospectiva das crianças, tornou-

se referência mundial sobre “como crianças pequenas reagem à perda... da mãe” (ψowlby,

1990, p. XI).

Função e Constituição do Apego

Para se compreender o comportamento humano, seus costumes e caráter, bem

como, sobretudo, suas paixões, isto é, para que se delineie uma espécie de etologia330

humana, tem-se como cerne o estudo dos vínculos. À luz da Teoria do Apego, diz-nos

Cristiana ψerthoud: “O vínculo, a vinculação, enfim, a ligação afetiva que as pessoas

formam entre si e com o 'mundo das coisas' de modo geral, é, sem dúvida nenhuma, o

cerne do interesse quando se fala em compreender o homem” (ψerthoud, 1997, p. 21).

329
Chamaram-se “relações comuns do lar” àquelas que o senso comum julga ocorrerem mais
frequentemente, a saber: fraternal, filial-paterna e filial-materna, conjugal.
330
O uso do termo Etologia, emprestado da zoologia, onde é amplamente utilizado, deve-se a que inúmeros
estudos analisem o comportamento humano tomando como uma das ferramentas de análise o
comportamento de aves, mamíferos e primatas. E a Teoria do Apego é um desses estudos. Para mais
detalhes, sugere-se a leitura de: Bowlby, John. Ontogênese do comportamento instintivo. In: Bowlby, 1990,
157-188.

713
χ constituição dos elos afetivos é essencial ao ser humano, particularmente “nos

primeiros anos de vida” (ψerthoud, 1997, p. 27), pois é a partir deles, sobretudo, que o

humano se constitui enquanto pessoa331. Mas, a fim de serem saudavelmente

estabelecidos, subsidiando a pessoa para a construção e manutenção, por toda a vida, de

vínculos sociais íntimos, faz-se necessário o ambiente propício. Tal ambiente não é

casual; surge da conjunção absolutamente ativa entre desenvolvimento cognitivo do bebê

e interação social da mãe. Quanto aos bebês, tão precoce é o desvelar de seu impulso de

vinculação que, já no segundo semestre de nascidos, usualmente exibem comportamento

típico de apego332 (Berthoud, 1997, p. 29), pelo qual buscam manter a proximidade com

a figura de apego. Quanto às mães, porém, o impulso para o cuidado, acentuadamente

perceptível desde a gestação, pode ser rechaçado, gerando afastamento constante, mesmo

aversão a seus bebês, o que seria, segundo ψerthoud, uma anomalia resultante “de

perturbações emocionais graves” (ψerthoud, 1997, p. 31).

É preciso uma ressalva: ainda que somente na segunda metade do primeiro ano de

nascido o bebê demonstre claramente o comportamento de apego, muito precocemente

surgem as percepções fundantes vitais do vínculo. John Bowlby nos conta, por exemplo,

“que, no terceiro dia de vida, o bebê já é capaz de discriminar a voz da mãe” (ψowlby,

1990, p. 292). A psicóloga e pesquisadora Ana Celina Albornoz cita uma percepção ainda

mais precoce ao referenciar pesquisas que demonstram, por exemplo, que

(...) através da sensorialidade fetal, o bebê já conhece a mãe através do sabor único

do seu líquido amniótico. O odor conhecido da mãe, reencontrado após o nascimento,

serve como referência tranquilizadora ao bebê.... Nos casos em que é abandonado

331
χ noção de pessoa aqui corresponde a: “o homem em suas relações com o mundo ou consigo
mesmo” (χbbagnano, 2007, p. 761). Isto é, sendo a “pessoa” o humano “em relações”, sem a integral
constituição dessas relações não há “pessoa humana”, mas um ser despersonalizado, brutalizado.
332
Discorrer-se-á mais satisfatoriamente sobre comportamento de apego em Autoadaptabilidade do
Comportamento de Apego.

714
pela mãe logo após o nascimento, o bebê sofre uma perda súbita de todas as suas

referências sensoriais, o que dificulta sua adaptação ao mundo (Albornoz, 2006, p.

30).

Assim, a vinculação afetiva é necessidade inata do ser humano mesmo antes do

nascimento. Tão primitiva quanto vital, a sensorialidade do bebê, ativa mesmo

intrauterinamente, implica preparação para formação de vínculo, talvez o próprio início

de seu estabelecimento (isto se não houver um antecedente diverso, talvez inaferível).

Para Bowlby, essa tendência à formação de uma ligação social íntima é necessidade

básica primária, visando essencialmente à vida: “a proteção contra os predadores é, de

longe, a função mais provável do comportamento de apego” (ψowlby, 1990, p. 242). Ou

seja: conquanto essencial à formação do psiquismo saudável, afetando as vinculações

posteriores ao vínculo materno, o apego é mecanismo natural para a sobrevivência da

espécie. Deste modo, poderíamos afirmar que somos, ou tendemos a ser, em considerável

medida, resultantes (vital e psiquicamente) de nosso primeiro vínculo. Esta não é outra

forma de se postular um determinismo para o curso da vida humana, mas a constatação

de que o vínculo inicial possui grande poder psíquico. Referindo-se a esses primeiros

anos, Berthoud chega a asseverar que

A falta de acessibilidade de uma figura de apego, além de causar ainda a raiva, a

angústia e o desapego, causa danos irreversíveis no desenvolvimento da

personalidade do indivíduo, no sentido em que não lhe permite desenvolver um

modelo adequado de si mesmo e do outro, o que lhe impede de atuar eficientemente

ao longo de toda sua vida (Berthoud, 1997, p. 41).

Consonante à compreensão da relevância da vinculação, o teólogo, filósofo e

psicanalista americano James Loder, discorrendo sobre os elementos fundantes do ego,

afirma que “... o bebê em desenvolvimento se relaciona com as pessoas e o ambiente, e

715
através dessa relação cria estruturas internas que emergem do caos e o capacitam a atender

às necessidades vitais” (Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012, p. 51).

Na perspectiva de Bowlby, no caos loderiano haveria um impulso psíquico

orientado à ordem: o impulso vital para constituição de vínculo afetivo com uma figura

específica. Essa relação estaria entre os primeiros organizadores do psiquismo.

O bebê vai sendo gerado por meio do vínculo gestacional; formado para o vínculo,

mediante a sensorialidade intra-uterina; mantido vivo pelo vínculo, após o nascimento;

afirmado a si mesmo como humano, em seus primeiros meses de nascido, sob o vínculo.

Este, portanto, é para ele essencial.

Neste ponto, cabe voltarmos nossa atenção ao instante do nascimento.

Percepção Infantil do Apego

O ato de nascer é uma batalha entre vida e morte, uma experiência profunda na

qual, em seus movimentos espasmódicos, a criança externa um anseio por viver.

Especialmente em grande número de partos naturais, a luta é possivelmente antecedida

por uma decisão do próprio feto, que determina a hora, não em que será dado à luz, e sim

quando virá à luz. Segundo Renato Santana, obstetra da Universidade Federal de São

Paulo (UNIFESP), “é ele (o feto) quem decide se está pronto ou não para nascer”

(Echeverria, 2003). Uma ação do feto desencadearia o trabalho de parto. Dizemos

“possivelmente”, pois essa perspectiva médica não é consensual333.

De qualquer modo, mesmo nos casos em que se desconheça o elemento que dá início

ao trabalho de parto,

A experiência do nascimento faz o bebê vivenciar um grande contraste.... Isso gera

uma primeira sensação de angústia, um “quase-sufocamento” que interrompe o

333
Segundo a pesquisadora Sonia Nunes, “χpesar da existência de várias teorias explicativas sobre o
que dá início ao trabalho de parto, nenhuma delas foi comprovada cientificamente” (Nunes, 2012, p. 17).

716
“tempo bom” no ventre materno. χo nascer, de uma forma primitiva, a criança vive

uma ameaça de não-ser, que segundo o psicanalista René Spitz, se mostra como uma

sensação de negação da possibilidade de viver que é registrada no hipotálamo....

Freud afirmou que o instinto de morte tem seu primeiro registro nesse momento

(Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012, p.50).

Ora, se o instante do nascimento se faz registrar no hipotálamo334 como primeira

aproximação da possibilidade de morte, e se somente uma ação externa, uma vinculação

ao bebê, pode mantê-lo vivo, infere-se que aquele instante seja norteador para o recém-

nascido, no sentido de provê-lo, ao longo de toda a infância, e para além desta, de uma

associação interna fundante: vínculo-é-vida, ou apego-é-vida.

O bebê não só é naturalmente dotado do impulso vital para o vínculo, mas ele assim

entende a experiência de vinculação: é ela que a tudo dá sentido, sentida e percebida vital.

Tomando-se a experiência intra-uterina como a referência vivencial do bebê, é possível

afirmar-se que, para ele, desde sempre viver satisfatoriamente é e será ter as necessidades

continuamente supridas, o que consiste primariamente em ser mantido próximo de, e ser

estimado por outro vivo. Para Bowlby, são justamente esses os componentes da díade

saudável mãe-filho:

(...) é essencial para a saúde mental que o bebê e a criança pequena experimentem

um relacionamento afetuoso, íntimo e contínuo com sua mãe (ou mãe substituta), no

qual ambos encontrem satisfação e prazer. Uma criança precisa sentir que é objeto

de prazer e de orgulho para a sua mãe. (Bowlby, 1988, p. 73)

Constituição e manutenção do vínculo com a mãe, este sendo entendido desde o

parto como o grande sustentador da vida, estão entre as mais urgentes necessidades dos

334
O hipotálamo consiste em pequena região encefálica, e “está relacionado com a expressão de raiva,
comportamento sexual, prazer e medo” (Kay & Tasman, 2002, p. 102).

717
bebês, bem como das crianças até oito anos de idade. A falta de cuidados maternos sujeita

a seríssimo risco de dano psíquico as crianças até três anos de idade;

(...) o risco ainda é sério entre os três e cinco anos de idade.... Após os cinco anos, o

risco diminui ainda mais, embora não se possa duvidar de que um bom número de

crianças entre os cinco e os sete ou oito anos sejam incapazes de se adaptar

satisfatoriamente a separações (Bowlby, 1988, p. 31).335

Muitas sofrem privação afetiva já na gestação, parto e pós-parto, sendo e

permanecendo privadas de efetivas proximidade, proteção e suprimento.

Em seus relatos de adoções, Berthoud conta-nos a história de uma criança cujo

pseudônimo é “C”:

C. foi colocada para adoção ainda recém-nascida pela mãe biológica no próprio

hospital onde nasceu com sua irmã gêmea. Ambas foram adotadas pelo mesmo casal,

mas aos 28 dias de idade, ainda hospitalizadas, C. perde a irmã. Apesar de ser menor

e a mais “fraquinha” das duas, sobreviveu. Estava desnutrida, desidratada, com

baixo peso e gravíssimo problema de assadura.

Apesar da falta de qualquer registro oficial sobre a sua vida pré-natal, pelas

condições do nascimento pode-se inferir que a gestação não foi saudável. As crianças

nasceram bastante debilitadas fisicamente e com certeza emocionalmente também

(Berthoud, 1997, p. 108).

No mesmo capítulo, conta-nos da criança “χ”, outro caso profundamente

traumático. Quem o relatou foi aquela que se tornou mãe adotiva do bebê:

Eu tentava ajudar! Toda vez que ia até lá, tentava ajudar! Levava roupas, mas

eram consideradas descartáveis, porque a mãe usava no bebê e jogava fora, não

lavava. A casa era um lixo! No meio da cama tinha de tudo e ainda um cachorro

335
Eis o motivo pelo qual enfocamos em nossa pesquisa crianças até oito anos de idade.

718
em cima da criança... Quando ele saiu de lá, ficou a marca dele na parede! A

marcazinha de suor na parede, porque o neném ficou ali 6 meses, sem sair, sem

nada..

Eu acho que ele sofreu maus-tratos, porque umas pessoas que bebem, podem tratar

bem uma criança?... Os vizinhos diziam que a criança berrava de fome. Uma vez

o motorista do caminhão de leite me contou que a mãe estava de manhã na beira

da estrada com um vidrinho de perfume na mão e um bico de borracha e pediu

para ele encher de leite. O bebê mamou na hora e continuou a chorar, e aí a mãe

disse: 'Não' Pode ficar quieto, porque agora você vai mamar só de noite!

(Berthoud, 1997, p. 96)

É digna de ressalva a ausência do sentimento de pertença, nos dois relatos acima,

em especial na história de “χ”. Segundo ψowlby, para que a relação mãe-filho seja

saudável, a mãe precisa “sentir que pertence a seu filho” (ψowlby, 1988, p. 73); isto é: há

uma ambivalência na díade saudável: ambos são sujeitos-objetos, influenciando e se

deixando influenciar intimamente.

Nos relatos de ψerthoud, “C” e “χ” tiveram suas histórias de vida transmudadas pela

experiência da adoção. Quanto a “C”, diz-se que, em sua família adotiva, “O ambiente

familiar é sempre relatado como muito carinhoso e harmonioso” (ψerthoud, 1997, p. 113).

Cristiana ψerthoud, descrevendo a nova realidade vivenciada por “χ”, diz-nos:

A., com dois anos e meio, é uma criança extremamente risonha, alegre e bem

humorada... desde o início da vida na família adotiva, A. foi muito bem aceito pelos

irmãos adolescentes que, como diz a mãe, 'se sentem um pouco seus paizinhos

também, cuidando e acarinhando o tempo todo' (Berthoud, 1997, p. 100).

Mas, e se ao contrário da incorporação num ambiente familiar, adotivo, “χ” e “C”

tivessem permanecido em casas de abrigo? Se, em lugar de à intimidade “familiar”,

719
tivessem sido remetidas ao ambiente institucional? Além das crises comuns às crianças

acolhidas em suas famílias, naturais ou adotivas, que outras mais as crianças em casas de

abrigo tenderiam a desenvolver? Quais as implicações da não adoção? Para se responder

a essas perguntas, cremos seja preciso averiguar a equivalência entre vínculo adotivo e

vínculo natural. Posteriormente retornaremos à pergunta sobre os efeitos da

institucionalização.

Apego Natural e Apego Substituto

Anteriormente sinalizamos que o bebê possui a pré-disposição ao vínculo com sua

mãe natural. Esse é um elemento sumamente importante na estruturação do psiquismo,

capaz de se mostrar insubstituível. Perguntar-se-ia: A preparação intra-uterina do feto

para o estabelecimento do apego à mãe natural impossibilitaria a constituição de apego

substituto? Poder-se-iam equivaler, plena ou parcialmente, vínculo natural e vínculo

adotivo?

Essa questão é plural, comportando inúmeros desdobramentos, dos quais

elencamos três que se mostram, a nosso ver, inolvidáveis: autoadaptabilidade do

comportamento de apego, apego e influência genética, e precocidade do apego substituto.

Autoadaptabilidade do Comportamento de Apego

O apego do bebê à sua mãe não se constitui apenas mediante estímulos não

intencionais como, por exemplo, as experiências intrauterinas de audição da voz materna

e de saboreio do líquido amniótico. Muitos outros constituintes dependem da interação

do bebê e sua estimulação intencional por parte de terceiros.

Desde o “nascimento até aproximadamente dois ou três meses de vida” (Berthoud,

1997, p. 32), passo-a-passo vão surgindo os sinais da participação ativa do bebê no

720
desenvolvimento do apego: sucção, agarramento, acompanhar o outro com os olhos,

balbucio, e corresponder ao sorriso336. A autoadaptabilidade desses comportamentos de

apego fundamenta-se em que, nesse período “o bebê não diferencia a mãe de outras

pessoas, mas responde amistosamente a qualquer pessoa que interaja com ele” (ψerthoud,

1997, p. 32). Essa não determinação da figura de apego parece subentendida em Loder,

pelo uso de expressões indefinidas ao falar, por exemplo, da amamentação e da

correspondência ao sorriso:

Nutrição, em outras palavras, é a prática da relação de amor, de um corpo que se doa

para outro corpo carente.... Se lhe é mostrado (ao bebê) uma figura com a face

humana, ele tende a acompanhar com os olhos e sorri. Se for uma face real que sorri

para o bebê, ele responderá com um sorriso (Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012,

p. 52 [itálico nosso]).

Um corpo, uma figura e uma face não se referem a qualquer indivíduo em particular.

O impulso do bebê para formação de vínculo é inato, porém aberto, a saber, não

especificado. De fato, em Bowlby, diz-nos Berthoud, frequência e intensidade do

cuidado, por parte de uma figura discriminada, determinam, na percepção da criança,

quem seja sua mãe. Mãe “é aquela que se comporta como tal” (Berthoud, 1997, p. 72).

Além disso, os comportamentos de apego, derivados do impulso para o apego, mais

parecem uma busca, uma tentativa, uma investigação que, por si só, deixa clara a não

determinação de uma pessoa específica a quem se dirija o vínculo. Se o bebê, mesmo em

presença de sua mãe biológica, procura uma figura à qual se apegar, evidencia-se que as

questões existenciais (O que sou? Para “onde”337 vou? Etc.) não lhe vêm completamente

336
“Tão regular é esse fenômeno que ele foi chamado... de imprinting [gravação] do que significa ser
humano. Imprinting é o processo pelo qual filhotes, logo que nascem, têm a prontidão para seguir a mãe ou
até uma falsa mãe, identificando-se como membros daquela espécie” (Wondracek, Rehbein, & Cartell,
2012, p. 53).
337
Esse “onde” não corresponde a uma localização geográfica, mas a um “lugar” de afeto, um “quem”.

721
respondidas de antemão; certas respostas lhe serão dadas por quem o “adotar” como filho

ou filha. Deste modo, as percepções intrauterinas do bebê o predisporiam a apegar-se

prioritariamente a sua mãe biológica. Prioritária; não exclusivamente!

Apego e Influência Genética

Ao se falar em equivalência de vínculos natural e adotivo, esbarramos num medo

recorrente na temática da adoção: a herança genética.

Nem a preparação intrauterina do feto, nem o evento do nascimento são

determinantes do estabelecimento do vínculo entre mãe e bebê. A herança genética não é

capaz de forçar uma espécie de determinismo relacional. O apego é “um ‘encontro’ que

pode ou não acontecer entre uma mãe biológica e seu filho, pois não é determinado na

concepção, gestação ou no nascimento, mas sim na relação interpessoal entre eles.”

(Berthoud, 1997, p. 71).

Mesmo quando é acentuada, na criança, a herança genética, ainda assim as

maiores influências na constituição de sua personalidade, e isto inclui o vínculo

relacional, serão o contexto familiar da família adotante e a disposição do próprio bebê

para tal formação. Em artigo da Superinteressante sobre genética e comportamento,

citando-se as palavras do cientista alemão Volkmar Weiss, diz-se que “χs influências

genéticas no intelecto existem, mas estão mergulhadas na interação entre genes,

psicologia e desenvolvimento. Não são diretas, nem irreversíveis, nem inescapáveis, nem

inevitáveis” (Narloch, 2002).

Segundo a psicanalista Gina Levinzon,

É a partir do desempenho da relação parental que se organiza a experiência da criança

e a qualidade de seu vínculo. Para isto contam as fantasias e atitudes profundas dos

pais, e nos primeiros tempos sobretudo as da mãe, o que se verifica em todos os casos,

722
adotivos ou não. Como em qualquer relação entre pais e filhos, se os pais adotivos

vivem a adoção de forma perturbada, isto poderá resultar em um efeito prejudicial no

filho. Segundo Diniz, a excessiva preocupação com a origem biológica 'é um

problema de adulto', que pode repercutir na criança (Levinzon, 2004, p. 30).

Tanto quanto é infundado o temor que ronda o imaginário de pais adotivos, de que a

herança genética seja o maior estruturante no processo de formação da personalidade,

também assim, de modo mais específico, é infundado quanto à constituição do vínculo

afetivo, ou apego.

Um exemplo notável desse falso temor é a pesquisa citada no artigo

supramencionado da Superinteressante: Christiansen e Mednick, pesquisadores

dinamarqueses, conduziram em 1977 estudo que revelou que, no caso de homens adultos

adotados na década de 50, quando ainda eram crianças, comparando-se suas fichas

policiais com as de seus pais adotivos, e com as dos pais biológicos, a maior taxa de

“reprodução” de comportamento violento foi de 22%, quando os pais biológicos também

o eram, contra 12% quando os pais violentos eram os adotivos. Isto é, 78% dos filhos de

pais biológicos violentos não seguiram o histórico policial de seus pais, e 88% dos filhos

de pais adotivos violentos não o fizeram. Isto revela ser a herança genética contribuinte

apenas de tendências, não de destinos inexoráveis.

A herança biológica, a influência do ambiente familiar, uma decisão do próprio

indivíduo construída nos meandros de seu psiquismo, tudo isto tem seu lugar de influência

na vida de filhos adotados. Contudo, dos fatores mencionados, a decisão individual parece

preponderar, isto valendo também para a constituição, ou não, do apego.

Precocidade do Apego Substituto

723
Uma questão primária quanto à averiguação da equivalência entre apegos natural e

adotivo: tanto mais cedo se estabeleça o vínculo com a mãe adotiva, tanto menos se darão

os efeitos nocivos ao psiquismo infantil. Bowlby afirmou categoricamente:

(...) todos aqueles que têm experiências concordam com o fato de que um bebê deve

ser adotado o mais cedo possível.

Há provas... que mostram claramente como é importante, para a saúde mental de

um bebê, que ele seja adotado logo após o nascimento. (Bowlby, 1988, p. 116

[itálico nosso])

A adoção precoce evita que o bebê seja submetido a experiências traumáticas,

experiências tais que causariam até mesmo distúrbios irreversíveis da personalidade.

Esses distúrbios, como veremos, podem-se originar muito prematuramente, o que poderia

fazer o bebê parecer inadequado para adoção, por parte de alguns, isto é: em tais

circunstâncias, a própria tardança na adoção vitimaria o bebê.

χ partir do alerta de χna Celina χlbornoz (2006, p. 30), “Quanto mais

precocemente ocorrerem situações traumáticas na vida de uma criança, mais devastadores

serão seus efeitos”, pode-se inferir que, quanto mais cedo se apresentar ao bebê a figura

à qual ele possa se apegar satisfatoriamente, tanto mais estável será seu psiquismo.

Apesar dos dilemas implicados na adoção prematura, ela ainda é, para bebês e pais

adotivos, uma via melhor que a institucionalização. Ambos os grupos terão maior

possibilidade de adaptação mútua.

Sendo a relação afetuosa, íntima e contínua, essencial à saúde mental do bebê,

mesmo um lar desfavorável, onde ao menos houvesse atenção individualizada, seria

melhor que a internação institucional338. Apego natural e substituto podem se equivaler;

338
Em seu relatório à OMS, ψowlby polemiza ao afirmar que “as crianças se desenvolvem melhor em maus
lares do que em boas instituições.... Os responsáveis por instituições às vezes não querem reconhecer que
as crianças estariam muito melhor mesmo em lares desfavoráveis, quando esta é a conclusão dos assistentes
sociais mais experientes, com treinamento em saúde mental, e fato já comprovado pelas evidências.”. O

724
porém, ao se falar de institucionalização, esta equivalência desce, como veremos, ao nível

da privação radical.

Consequências da Institucionalização

A criança institucionalizada sofre com a ausência de alguém que dela cuide de

modo pessoal, e com quem se sinta segura. Essa privação, especialmente danosa nos

primeiros oito anos da vida, equivale, segundo Bowlby, a um tipo de privação quase total

(Bowlby, 1988, p. 14). Apesar de haver outros diferentes tipos de privação materna339,

unicamente esta é, agora, nosso objeto de análise.

Dois grandes grupos gerais de comportamento podem derivar da falta de cuidados

maternos nos primeiros anos da vida humana:

(...) entre as várias formas de distúrbio estão, por um lado, a tendência para

exigências excessivas no relacionamento com outros e para a ansiedade e a raiva

quando tais exigências não são satisfeitas, como se verifica nas personalidades

dependentes e histéricas; e por outro, um bloqueio na capacidade para estabelecer e

manter relações profundas, como se apresenta nas personalidades indiferentes e

psicopáticas. (Bowlby, 1990, p. XII, [itálico nosso])

A partir desses dois grupos, inúmeros sintomas costumam ser identificados em

crianças institucionalizadas. Tendo em vista as particularidades de cada indivíduo, um ou

mais sintomas, em diferentes graus e associações, podem se manifestar. À luz dos escritos

conceito de lar desfavorável, para aquele pesquisador, consistia num tal em que, mesmo os pais
negligenciando seus filhos, ainda assim lhes proporcionariam precariamente: alimentação (talvez péssima),
abrigo, conforto na angústia, ensino de pequenas coisas. (Bowlby, 1988, p. 74)
339
Mesmo ciente da gama muito ampla de situações em que a criança possa viver sob privação
materna, Bowlby cita três grandes grupos: privação parcial suave, quando, mesmo vivendo em casa com
sua mãe, esta não lhe proporciona os cuidados amorosos suficientes ao seu bem-estar, ou quando, não
vivendo com sua mãe, a criança é cuidada por uma mãe substituta na qual confia; privação parcial
acentuada, quando a mãe substituta é estranha para a criança; e privação quase total, quando, em creches,
hospitais, instituições, a criança não dispõe de uma pessoa determinada, que dela cuide de modo pessoal, e
com quem se sinta segura. (Bowlby, 1988, p. 14)

725
de Bowlby, este pesquisador percebeu a recorrência de seis deles, isto é, os que mais

avultaram durante a pesquisa, e que atingem ora bebês, ora crianças a partir dos dois anos,

ou ambas; quanto à faixa etária, o que importa à nossa pesquisa é a possibilidade do

desenvolvimento de qualquer deles nos primeiros oito anos da vida, período em que o

apego à figura materna é essencial ao psiquismo. Destacamos: incapacidade de reação;

atraso na fala e redução do QI; desenvolvimento físico retardado; contínua insatisfação e

sensação de deslocamento no mundo; deficiência da capacidade exploratória; dificuldade

de se tornar bom pai ou boa mãe.

Olhemos mais detidamente, um a um, esses danos:

Incapacidade de Reação

Desde as primeiras semanas de vida, o bebê institucionalizado apresenta

comportamento passivo. Bowlby chega a asseverar que, para muitos pesquisadores de

renome,

(...) o desenvolvimento da criança que vive em instituições está abaixo da média

desde a mais tenra idade... o bebê que sofre privação pode deixar de sorrir para um

rosto humano ou deixar de reagir quando alguém brinca com ele, pode ficar

inapetente (Bowlby, 1988, p. 22).

Contínua deficiência na proximidade ou no contato físico com uma figura de apego

determinada limitaria a construção, no bebê, de sua identidade. Segundo Loder, o

fenômeno de autoidentificação por meio da face do outro, (neste caso, da figura de apego)

é claramente perceptível a partir do terceiro mês de nascimento. Nessa fase, o bebê

encontra no abraço e no olhar de sua mãe “a própria ordem cósmica, na qual ele se sente

inserido e tem sua identificação confirmada” (Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012, p.

53).

726
Se, como visto anteriormente, para o bebê é o vínculo que o mantém vivo, a não

vinculação se faria perceber como antecipação da morte, uma negação do seu próprio ser.

Sem essa identificação, restariam o deixar de sorrir, de brincar, e a inapetência, os quais

revelariam angústia ante a possibilidade do nada existencial. Segundo a terminologia

ontológica de Heidegger, o “nada da possível impossibilidade de sua própria existência”

(Araújo, 2007, p. 10). Se nada sou, nada preciso ser ou fazer!

Atraso na Fala e Redução do QI

Apesar de este sintoma também se constituir num tipo de comportamento passivo

que poderia ser agrupado no tópico imediatamente anterior, preferimos tratá-lo

distintamente. O motivo é simples: a fala, diferentemente do deixar de sorrir, brincar, e

querer comer, tem sido tratada como um tipo de linguagem exclusiva dos humanos.

Destacamos, deste modo, que a institucionalização inibiria a humanização das crianças.

O desestímulo passo-a-passo as faria deficientes naquilo que se mostra tipicamente

humano.

Bowlby nos conta que uma pesquisa muito cuidadosa

(...) do choro e do balbucio dos bebês mostrou que os que se achavam num orfanato,

desde o nascimento até os seis meses de idade, vocalizavam sempre menos do que os

que viviam com famílias, podendo-se notar claramente a diferença já antes dos dois

meses de idade (Bowlby, 1988, p. 22).

As deficiências de proximidade e contato físico podem originar dificuldades na fala,

tanto em nível motor quanto em nível lógico. A pesquisadora portuguesa Ana Manuela

Pinheiro, citando estudo de Tizzard e Joseph, conta-nos “que as crianças

institucionalizadas apresentavam um menor vocabulário, uma menor capacidade de

727
combinação de palavras e um menor nível de linguagem espontânea, em comparação com

as crianças não-institucionalizadas” (Pinheiro, 2011, p. 12).

Os danos percebidos por Tizzard e Joseph, em especial um nível menor de linguagem

espontânea, denotariam efeitos nocivos às emoções e ao quociente de inteligência dessas

crianças. Berthoud relata-nos que, em pesquisa desenvolvida por Ijendoorn e Vliet-Visser

com sessenta e cinco crianças com cinco anos de idade, “crianças seguramente apegadas

obtiveram o mais alto grau QI” (ψerthoud, 1997, p. 49).

Sem estímulo e apego adequados, a criança institucionalizada tende a que sua

capacidade de comunicação (neste caso, a fala), e sua capacidade de aprender (QI) sejam

prejudicados.

Desenvolvimento Físico Retardado

Crianças institucionalizadas geralmente estão submetidas a diversas privações

peculiares, como, por exemplo, pouco contato com o mundo vasto e externo à casa de

abrigo “e, quando lhes é permitido, tal acontece, geralmente, sob supervisão e com várias

limitações à sua liberdade de interação e contactos com outras pessoas” (Pinheiro, 2011,

p. 11).

A ausência da figura de apego, problema típico da institucionalização, reduz os

estímulos motores, sensoriais e cognitivos, restringindo “peso, altura e perímetro cefálico

da criança” (Pinheiro, 2011, p. 11).

É notável que, quando a criança, bebê ou não, deixa a instituição para ser inserida

no ambiente familiar, em seguida costuma apresentar ganhos significativos de peso, altura

e perímetro cefálico. Bowlby descreve certos efeitos dramáticos de recuperação da figura

materna por parte de bebês: “O bebê imediatamente fica mais animado e ativo; se

728
apresentava febre..., esta desaparece num período de vinte e quatro a setenta e duas horas;

o peso aumenta e a cor melhora.” (ψowlby, 1988, p. 25).

Apesar de, no caso a seguir, Bowlby referir-se a um bebê que se encontrava, não em

uma casa de abrigo, mas num hospital, creio seja adequado mencioná-lo; o problema-

chave, a privação da mãe, fazia-se presente:

Sua aparência era a de um velho, pálido e enrugado. Tinha a respiração tão fraca e

superficial.... Quando foi examinado, vinte e quatro horas após voltar para casa,

estava vocalizando e sorrindo. Embora sua dieta não tivesse sido alterada, começou

imediatamente a engordar, e, no final do primeiro ano, seu peso estava bem dentro

da faixa normal. (Bowlby, 1988, p. 25)

Um conceito reincidente: se é o vínculo que dá sentido à vida, deprime viver sem

estar sob sua contínua influência.

Contínua Insatisfação e Sensação de Deslocamento no Mundo

É na proximidade à figura de apego que a criança encontra satisfação. Antes de o

impulso para o apego ser motivado pela necessidade de satisfação de uma pulsão

libidinosa, ou, ainda, pela necessidade de nutrição, como o diriam certas correntes

psicanalíticas340, Bowlby pensava-o como impulso para a busca de suporte e proteção. E

suporte e proteção trazem consigo um senso primário de bem-estar; a ausência deles, o

mal-estar existencial.

340
No artigo “Psicanálise e teoria da vinculação”, os pesquisadores portugueses Ferreira e Pinho, referindo-
se a uma das divergências entre a Teoria do Apego e certas correntes psicanalíticas, citam Charman:
“Contrariamente à TV [teoria da vinculação, ou apego], que apresenta a vinculação como a necessidade
fundamental dos humanos, a base fundamental da teoria psicanalítica é o determinismo psíquico que
acredita que a génese de todos os problemas psíquicos é determinada por processos inconscientes. Para esta
teoria a criança se vincula com a mãe para que esta o alimente. No entanto, para a TV, uma criança bem
nutrida que seja privada do afecto dos cuidadores não tem sucesso no seu desenvolvimento e pode mesmo
morrer” (Charman. In Ferreira & Pinho, 2009, p. 9).

729
É vital o sentimento de pertença mútua entre mãe e filho(a), para que a criança se

sinta dirigindo-se a alguém que de igual modo a deseja. A criança institucionalizada, por

mais que procure a figura específica que lhe proporcione atenção e proximidade pessoais

e constantes, não a encontra, permanecendo sem um “lugar” (a figura de apego) aonde ir;

ela está sem um endereço no mundo, desapegada, deslocada.

Os efeitos dessa não alocação, esse “Não ser tomado como filho” (χlbornoz,

2006, p. 30) provoca o armazenamento no psiquismo de emoções intensas, porém

incompreensíveis. Passada a infância, podem dar ocasião a “quadros psicopatológicos

graves como a psicose, a personalidade anti-social... e a estruturação de personalidade

borderline” (χlbornoz, 2006, p. 30).

Deficiência da Capacidade Exploratória

A criança desapegada, vivendo sem a relação prazerosa constante com uma figura

de apego específica, tende a apresentar deficiências de aprendizagem. Não apenas por

não lhe ter sido dado o suporte de segurança para que ela se lançasse à descoberta do

mundo à sua volta, nem apenas porque não houve ação participativa da figura de apego à

medida que novas descobertas iam ocorrendo.

De fato, a criança institucionalizada, sem sua particular figura de apego, sofre

continuamente por não ter onde se aconchegar, e em sua vulnerável existência sobrevive

como um repositório de inúmeros sentimentos dolorosos. Somadas às dores da vida

institucional, tem-se ainda as da pré-institucionalização, por vezes inconscientes. Como

resultado desse doloroso acúmulo, ao longo do tempo certas atividades exploratórias,

incluindo a leitura, podem se tornar ameaçadoras. Ana Celina Albornoz é precisa ao

afirmar que “o não aprender pode ser um processo ativo de contra-inteligência, em que a

730
criança busca não ser inteligente, evita pensar, para não conhecer conteúdos dolorosos e

intoleráveis relacionados às suas experiências de vida” (χlbornoz, 2006, p. 34).

A curiosidade, o anseio por saber, tão comum à infância, é superposta pelos

traumas emocionais, não permitindo “que o sujeito aproveite suas potencialidades,

obstaculizando ou impedindo o saber” (χlbornoz, 2006, p. 34). Nesse estado, a criança

manifesta atenção deficiente, com sintomas de indiferença apática ou indisciplinada. O

sentido da existência novamente se perde, pois essa criança vulnerável e incapaz de

pensar sua própria história não estará aberta a “investigar as verdades da vida” (χlbornoz,

2006, p. 36).

Dificuldade de se Tornar Bom Pai ou Boa Mãe

O mais avassalador de todos os efeitos da institucionalização talvez seja a tendência,

que a criança institucionalizada frequentemente terá, de não ser bom pai ou boa mãe.

Bowlby o afirma e exemplifica com a seguinte história:

Um paciente, hoje adulto, proporcionou-nos um quadro vívido e perturbador de

como se sente um garoto de seis anos que fica confinado num hospital por três anos.

Ele descreve “a desesperadora saudade de casa e a infelicidade das primeiras

semanas (que) cederam lugar à indiferença e aborrecimento dos meses

subsequentes”. Descreve como estabeleceu uma ligação apaixonada com a

enfermeira-chefe, que o compensou pela perda do lar, e como, ao voltar, sentiu-se

deslocado e intruso. “No final, este vazio afastou-me de casa novamente... mas

nenhuma segunda figura materna cruzou o meu caminho e, de fato, eu não era, então,

capaz de estabelecer relações estáveis... minhas reações eram exageradas,

frequentemente inadequadas, e tornei-me temperamental e deprimido... Fiquei

também agressivo.”... “Esta agressividade assume uma forma desagradável, que é o

731
fato de tornar-me excessivamente intolerante diante de minhas próprias falhas em

outras pessoas, e é, portanto, uma ameaça à minha relação com meus próprios filhos”

(Bowlby, 1988, p. 32).

“Um garoto de seis anos que fica confinado num hospital por três anos”, ao entrar

na fase adulta ainda percebe que sua vida está sob constante ameaça: a interdição de sua

relação com seus filhos e demais pessoas!

Ainda que a dificultação da paternidade/maternidade possa ser entendida como o

resultado de um amplo conjunto de danos psíquicos, e não como um único dano

ocasionável pelo acolhimento institucional, ela ressalta de modo singular a capacidade de

o dano se perpetuar no psiquismo humano. Bowlby chega a afirmar que, quanto ao

comportamento de apego, não se pode “menosprezar o papel vital que ele desempenha na

vida do homem, do berço à sepultura” (ψowlby, 1990, p. 223 [itálico nosso]).

Considerações Finais

A institucionalização pode propiciar a constituição de uma ferida profunda, uma

inferência equívoca elaborada no self de crianças desapegadas; passados longos anos de

institucionalização, elas tenderiam a assumir com erro: “Se eu estou aqui, sem mãe, é

porque não mereço”!

Se, como visto, por exemplo, no efeito ora elencado, três anos de

institucionalização marcaram definitivamente a vida de um menino de seis anos, qual a

urgência em se prover para bebês e crianças frequentemente “sentenciados” a períodos

muito maiores de institucionalização, meios para a construção de apego materno

satisfatório, seja ele natural ou substituto? A questão da infância abrigada merece lugar

privilegiado na pesquisa, nas rodas de debate, em todas as esferas do poder público e da

sociedade. Os danos psíquicos e sociais mostram-se graves e múltiplos.

732
No dizer de Bowlby, toda criança precisaria ser recebida, sentir que é desejada por

sua mãe natural ou substituta. Será pouco viável, a um pequeno e desvinculado ser

humano, saber quanto vale até que o “adotem”.

Referências

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Editora Universitária.

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do Psicólogo.

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obstétrica para alívio da dor em parturientes (Dissertação de Mestrado). Faculdade

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Desenvolvimentohumano na lógica do espírito: introdução às ideias de James E.

Loder. Joinville, SC: Grafar.

734
NOTAS SOBRE A ONTOLOGIA FREUDIANA

- ARTICULAÇÕES ENTRE ONTOLOGIA, ÉTICA E ESTÉTICA

Ligia Maria Durski341 & Gilberto Safra

Instituto de Psicologia da USP

E-mail. ligiadurski@usp.br

Resumo: Considerando que, em síntese, uma ontologia é a tentativa de resposta para

quais seriam as características básicas que tornam possível dizer que algo, alguém ou

evento, é. Também, considerando que uma ontologia do ser humano designa uma

concepção daquilo que é comum a todos os homens, que define o ser do homem,

lançando-o a determinados desfechos de destino. Então, subtendido às construções,

deduções, inferências e asserções freudianas sobre a constituição psíquica, está uma

ontologia do devir humano. Obviamente, Freud, ao sustentar suas especulações e

teorizações em sua prática clínica e em bases metapsicológicas, buscou decididamente

evitar hipóteses e suposições, perseguindo claramente o reconhecimento da realidade.

Contudo, inevitavelmente, Freud teve também de estabelecer hipóteses a propósito das

características peculiares ao homem que justificasse as evidências sobre sua organização

psíquica e, numa perspectiva ampliada, sobre as formações culturais humanas. Tais

hipóteses deveriam demonstrar concordância com seus achados clínicos e, pela profunda

coerência dessas hipóteses, ainda hoje a ontologia do homem contida na obra freudiana

não foi refutada. Assim, este trabalho pretende apontar algumas referências que auxiliem

a circunscrever a ontologia do homem subtendida na obra freudiana especialmente a partir

341Psicóloga, bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Psicanálise pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutoranda em Psicanálise pela Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Prof. Dr. Gilberto Safra.

735
da especificidade de alguns apontamentos acerca das dimensões ética e estética contidas

nesta obra.

Palavras-chave: Psicanálise; Freud; Ontologia; Ética; Estética.

NOTES ABOUT THE FREUDIAN ONTOLOGY

- ARTICULATIONS BETWEEN ONTOLOGY, ETHICS AND AESTHETICS

Abstract: Considering that, in short, an ontology is the attempt to answer what are the

basic features that make possible say something, someone or event is. Also, considering

that an ontology of the human being means a conception of what is common to all men,

that defines the being of man, throwing him to certain outcomes destination. Then

subtended to the constructions, deductions, inferences and assertions about the Freudian

psychic constitution, is an ontology of human becoming. Obviously, Freud, when support

his speculations and theories in clinical practice and in metapsychological foundations,

sought resolutely avoid hypotheses and assumptions, clearly pursuing the recognition of

reality. However, inevitably, Freud also had to establish hypotheses concerning the man`s

peculiar characteristics that justified the evidences of man`s mental organization. Such

assumptions should demonstrate compliance with the clinical findings and, for the

inherent consistency of these hypotheses, still the ontology of man contained in Freud's

work was not refuted. Therefore, this paper intends to point out some references that help

us to limit the ontology of man subtended in Freud's work, especially from the specificity

of some notes about the ethical and aesthetic dimensions contained in this work.

Keywords: Psychoanalysis; Freud; Ontology; Ethics; Aesthetics.

736
Introdução

Este trabalho é resultado de uma das etapas estabelecidas para o desenvolvimento

de minha tese de doutorado. Etapa esta que objetiva circunscrever o posicionamento

ontológico, ético e estético de Freud subtendido em sua obra e em suas especulações e

teorizações acerca do fazer clínico. Freud será, pois, um dos interlocutores de minhas

indagações e, aqui, pretendo apontar resumidamente o resultado do cumprimento desta

etapa.

Para situar o leitor, vale uma breve descrição de meu percurso. Ao longo de minha

trajetória clínica e acadêmica, ficou claro para mim que a direção do tratamento subtende

um posicionamento ético do analista, quer ele tenha ou não clareza desse fato. Neste

sentido, a busca da clareza sobre meu próprio posicionamento ético na clínica tornou-se

progressivamente premente, pois notei que isso significava a base que sustentava minha

prática. Até o presente, posso dividir meu percurso em três momentos: o que é a

psicanálise – um mergulho na metapsicologia freudiana – articulação entre ontologia,

ética e estética. Estes três momentos continuam vivos e em movimento em minhas

indagações. Quanto mais eu me aprofundava na compreensão da metapsicológica, por

exemplo, mais material de articulação surgia para pensar a prática. Quanto mais eu me

debruçava sobre dado caso clínico, mais associações com a teoria se abriam e assim

sucessivamente (e, ao que tudo indica, infinitamente).

Meu mestrado342 fora marcado por um aprofundamento na metapsicologia

freudiana e na perspectiva winnicottiana sobre a clínica (entre os anos de 2009 e 2011).

Especialmente pelo fato de eu estar trabalhando no departamento de psicologia de um

342
Para saber mais, ver em: DURSKI, L. M. (2011) Entre o Psíquico e o Somático – Um estudo, a partir
das obras de Freud e Winnicott, sobre os limites e as possibilidades da clínica psicanalítica.
Dissertação de Mestrado, orientada pela Prof. Dra. Nadja Nara Barbosa Pinheiro. Universidade Federal do
Paraná (UFPR).

737
hospital geral, eu indagara, na época, especificamente acerca das relações entre corpo

orgânico e aparelho psíquico. Tal seleção de indagação, por assim dizer, se impusera a

mim pela especificidade dos casos que eu atendia e também pelo fato de que para avançar

na especialização da minha prática era preciso maior consistência sobre como eu

conseguia organizar minha compreensão das relações entre tópica, dinâmica e economia

psíquica.

Foi particularmente a interlocução com Winnicott que me permitiu então articular

e colocar em palavras quais impasses clínicos me levaram a investigar mais detidamente

as dimensões ontológica, ética e estética implicadas na direção do tratamento. Notei, na

clínica, que inevitavelmente eu supunha uma ideia de saúde psíquica que não me era clara,

nem necessariamente coerente com a direção de tratamento estabelecida e a forma como

conseguira conceber a metapsicologia. Com minha prática então inteiramente circunscrita

ao consultório particular (após o ano de 2010), com a possibilidade de estabelecer, assim,

atendimentos mais contínuos e de avançar na análise de meus pacientes, pude notar a

recorrência de uma questão específica no que se referia a certas peculiaridades de

sofrimento subjetivo: era comum muitos pacientes fazerem referência a um sentimento

de não pertencerem à própria vida, de serem como que expectadores e não autores da

própria existência, de viverem uma vida sem sentido, mortificada, por assim dizer.

Ficava a cada atendimento cada vez mais evidente para mim uma dor existencial

especifica que aponta, numa perspectiva mais ampliada, para fatores que prejudicam o

devir humano e que pode ser descrita de uma forma mais ou menos organizada da seguinte

forma: a dor de um excesso de adaptação ao meio que desponta a partir de um movimento

de busca de pertencimento, porém à custa de uma violação da própria autenticidade.

Parecia que a clínica começava a deixar mais evidente para mim um tipo de sofrimento

subjetivo que pode assolar o humano na sua possibilidade de experiênciar a própria vida,

738
de sentir-se existindo, de sentir que se é. Tal sofrimento marcava uma confusão e um

dilema entre, por um lado, existir significar pertencer e, por outro, significar diferenciar-

se.

Mas, afinal, o que é esse “ser” do humano que o circunscreve numa comunidade

de destino comum a todos os humanos? Ora, essa é uma pergunta sobre a ontologia do

devir humano e, em dado momento de minhas elucubrações, me dei conta de que

questionar meu posicionamento ético, subtendido à direção do tratamento, me levou

justamente ao campo da ontologia. Assim, em síntese, pode-se dizer que inevitavelmente

a prática pressupõe uma concepção de saúde que, por sua vez, pressupõe uma ética que,

por sua vez, pressupõe uma ontologia. E, para complicar um pouco mais esse quadro, esse

“o que”-fazer contido num posicionamento ético traz outra dimensão daí inseparável, a

do “como”-fazer, a dimensão estética. Pensar o campo da ética necessariamente

articulado ao campo da estética é a consequência de notarmos que, na clínica, não basta

o analista ter clareza sobre a direção do tratamento se ele não tem a sensibilidade

necessária do como organizar essa direção no caso a caso. Seria o mesmo que o analista

fazer uma interpretação correta, na hora errada ou fazer uma interpretação errada e não

admitir seu erro.

Notei, afinal, que subtendido ao sofrimento que muitos de meus pacientes

denunciavam a partir da sensação de não sentir que viviam a própria vida, estava algum

tipo de empecilho ou não desenvolvimento da própria capacidade criativa. Em suma,

trata-se, pois, de uma questão crucial no sentido de refletir sobre alguns determinantes

que prejudicam (ou mesmo impedem) o devir humano. Assim corroborando com alguns

ditos de Winnicott, da sua concepção de saúde estar sustentada no que ele refere sobre a

vida criativamente vivida, tornara-se emergencial um maior esclarecimento sobre as

relações entre criatividade e ontologia do devir humano, uma vez que a clínica e os

739
autores/interlocutores aos quais me referencio – a saber, Freud, Ferenczi e Winnicott –

me levaram a deduzir a existência de uma relação estreita entre o que poderíamos

descrever como o fruir da capacidade criativa e o devir humano. Afinal, é imperativo

perguntarmo-nos, em psicanálise, podemos asseverar que saúde “rima” com criatividade?

Em que termos a direção do tratamento e o manejo da transferência encontram-se

implicados na possibilidade de propiciar, dificultar, facilitar e/ou impedir a emergência

de processos criativos?

Pois bem, com tais indagações em mente, um percurso de estudo entre estes

autores/interlocutores foi concebido. Vejamos agora mais detalhadamente algumas

articulações entre ontologia, ética e estética contida na especificidade obra freudiana.

Ontologia e devir humano na obra freudiana

Em suma, podemos considerar que uma ontologia é a tentativa de resposta para

quais seriam as características básicas que tornam possível dizer que algo, alguém ou

evento, é. Uma ontologia do ser humano designa, neste sentido, uma concepção daquilo

que é comum a todos os homens, que define o ser do homem, lançando-o a determinados

desfechos de destino.

Subtendido às construções, deduções, inferências e asserções freudianas sobre a

constituição psíquica, está uma ontologia do devir humano. Obviamente, Freud, ao

sustentar suas especulações e teorizações em sua prática clínica e em bases

metapsicológicas, buscou decididamente evitar hipóteses e suposições, perseguindo

claramente o reconhecimento da realidade. Contudo, inevitavelmente, Freud teve também

de estabelecer hipóteses a propósito das características peculiares ao homem que

justificasse as evidências sobre sua organização psíquica e, numa perspectiva ampliada,

sobre as formações culturais humanas. Tais hipóteses deveriam demonstrar concordância

740
com seus achados clínicos e, pela notável coerência dessas hipóteses, ainda hoje a

ontologia do homem contida na obra freudiana não foi refutada.

Na tentativa de circunscrevermos a ontologia humana subtendida no espírito

freudiano – e considerando a complexidade de tal empreitada - decidi por recorrer aqui

prioritariamente à perspectiva econômica implícita ao funcionamento psíquico descrita

pelo autor. Ou seja, priorizarei a articulação desenvolvida por Freud acerca da teoria

pulsional por acreditar que esta evidencia algumas importantes peculiaridades de sua

forma de conceber o devir humano.

Pois bem, Freud realiza ao longo de sua obra o exercício árduo de identificar em

quais categorias gerais poderíamos localizar as forças que subjazem ao organismo vivo.

No início de sua clínica com pacientes histéricos, fazendo uso da técnica de hipnose e

estudando a formação dos sonhos, Freud constatou a existência de um movimento que

poderia ser nomeado de economia psíquica, que tinha por base buscar prazer e evitar o

desprazer. Assim, Freud notou uma tendência do ser humano, desde tenra idade, a

movimentar-se com o intuito de satisfazer premências. De início, Freud propôs então

diferenciar estas premências entre “internas” e “externas”. Com relação às forças internas,

Freud organizou o conceito de pulsão que é descrito como um conceito-limite entre o

psíquico e o somático. O conceito de pulsão assinala, pois, uma “medida de exigência de

trabalho [feita] ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo” (Freud, 2004a,

p.148). Com o intuito de salientar a importância da premência pulsional, especialmente

no que tange à questão da economia psíquica, Freud demonstra claramente em seu texto

“Pulsão e os Destinos da Pulsão” (1915) que as formações psíquicas se configuram sobre

a base de reações à pressão pulsional. Ou seja, isso indicaria que a formação do aparelho

psíquico é resultado de processos defensivos que objetivam a satisfação e a ausência de

tensões. O espirito freudiano parece constantemente induzir o leitor a ficar em dúvida se

741
para Freud o devir humano, subtendido na constituição psíquica do homem, sustenta-se

sob a base de reações, de ações ou de frações variadas de ambos.

É por volta de 1915 que a primeira teoria pulsional freudiana fica estabelecida.

Neste momento da obra, podemos ver Freud concluir que as forças não mais divisíveis

que impelem a existência são Fome e Amor, Ananke e Eros. Freud caracteriza assim a

diferença basal entre pulsões do Eu e pulsões sexuais, sendo que as primeiras pulsões

satisfazem-se em si mesmas e as segundas precisam de um objeto para atingir a satisfação.

No entanto, Freud ponderou que o próprio Eu pode ser também objeto de investimento

pulsional e, assim, sua primeira teoria pulsional contradizia-se. Além disso,

especialmente a partir dos fenômenos da compulsão à repetição, constatados em sua

clínica, Freud começou a verificar uma dualidade ainda mais original das forças operantes

no homem: a dualidade entre vida e morte, Eros e Tânatos343.

Em 1920, Freud então escreve que “(...) há duas espécies de processos opostos

que se encontram constantemente em ação na substância viva: um construtivo ou

assimilatório e o outro demolidor ou dissimilatório.” (Freud, 2006a, p.171). χssim, a

dupla tendência entre destruição e construção, entre unir e separar, levou Freud a propor

sua segunda teoria pulsional: a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. Deste

modo, fica estabelecida na obra freudiana o fato de que subjaz a toda manifestação

humana uma dupla tendência entre pulsão de vida e de morte, estando estas fusionadas

em maior ou menor grau:

343
Em suma: “χ psicanálise, que não tinha como trabalhar sem formular alguma hipótese inicial sobre as pulsões,
ateve-se inicialmente à popular diferenciação das pulsões que responde pela fórmula emblemática de “fome e amor”.
Ao fazê-lo, estávamos ao menos evitando enveredar por mais uma definição arbitrária qualquer; ademais, esta distinção
teve fôlego para nos servir por um bom tempo e permitiu um avanço significativo na análise das psiconeuroses. Claro
que o conceito de “sexualidade” e, por consequência, o de pulsão precisaram ser ampliados e acabaram incluindo
muitos aspectos que não se limitam à função de reprodução. (...) Ademais, nossa concepção desde o início sempre foi
dualista, e hoje, quando os termos opostos não são mais designados como pulsões do Eu e pulsões sexuais, mas como
pulsões de vida e pulsões de morte, ela é ainda mais rigorosamente dualista do que antes”. (Freud, 2006a, p. 174).

742
(...) no âmbito psicanalítico, temos de supor que, de algum modo, os dois tipos de

pulsão [de vida e de morte] estão sempre amplamente misturados e amalgamados

em várias proporções. Assim, não teríamos pulsões de morte ou de vida puras,

mas apenas combinações de diversas magnitudes. (Freud, 2007, p.110)

Especialmente entre 1920 e 1924, quando da escrita dos textos “χlém do Princípio

de Prazer”, “O Eu e o Id” e “O Problema Econômico do Masoquismo”, percebemos Freud

preocupado com as contradições inerentes às relações entre o princípio de prazer e a

pulsão de morte e com a incerteza sobre ponderar a existência de um primado da pulsão

de morte.

Sobretudo ao considerar que o princípio de prazer inclui o objetivo de redução da

tensão, Freud demonstra certa dúvida sobre situar o princípio de prazer às pulsões de vida

ou às pulsões de morte. Além disso, outro ponto que deixava a contextualização freudiana

ainda mais contraditória era o fato de haver aumentos de tensão sentidos como prazerosos

e reduções de tensão sentidas como desprazerosas. Pois bem, com estas contrariedades

em mente, em 1924, Freud nos oferece o seguinte resumo sobre esta perspectiva

econômica do funcionamento psíquico:

Nenhum desses três princípios [de Nirvana, de prazer e de realidade] destitui o

outro do poder. Aliás, em geral, eles sabem conviver bem uns com os outros,

embora, é claro, conflitos ocasionais sejam inevitáveis, pois um lado privilegia a

redução quantitativa da carga de estímulos, o outro, as características qualitativas

dessa redução de carga, e o terceiro, um adiamento do escoamento dos estímulos

acumulados, exigindo uma aceitação temporária gerada pelo desprazer. De

qualquer modo, penso que fica claro que o princípio de prazer indubitavelmente é

o guardião não só da vida psíquica, mas da vida como um todo. (Freud, 2007,

p.107).

743
Freud então diferencia princípio de Nirvana e princípio de prazer pela diferença

entre as perspectivas quantitativas e qualitativas do aumento ou redução tensional no

funcionamento psíquico humano. O primeiro estaria ligado à perspectiva quantitativa,

visando redução tensional, enquanto que o segundo estaria ligado à perspectiva

qualitativa, objetivando a busca de prazer e o evitamento do desprazer, não

necessariamente havendo aí uma relação direta entre prazer ser sinônimo de redução

tensional. A pulsão de morte, com sua tendência a separar, destruir e buscar a inércia,

estaria então expressa no princípio de Nirvana, enquanto que a pulsão de vida, com sua

tendência a unir, construir e buscar o movimento, estaria então expressa no princípio de

prazer.

Além disso, Freud novamente nos leva a considerar uma anterioridade do

princípio de Nirvana, sendo o próprio princípio de prazer, embora se diferindo do

princípio de Nirvana, um derivado dele:

(...) tivemos de nos dar conta de que, no curso do desenvolvimento dos seres vivos,

houve uma modificação que transformou o princípio de Nirvana, associado à

pulsão de morte, no princípio de prazer. Portanto, a partir de agora não mais

consideraremos o princípio de Nirvana e o princípio de prazer como uma mesma

coisa. (Freud, 2007, p.106)

De fato, é observável uma tendência de Freud em advogar a favor de uma

perspectiva do desenvolvimento psíquico a partir de reações que, por fim, objetivam um

retorno à morte, morte muitas vezes igualada, por Freud, a um estado inorgânico ou a um

estado de inércia. Aí está uma clara hipótese de Freud - diferente de uma dedução ou

inferência, note-se - pois suposições sobre o que ocorre antes do nascimento e após a

morte é justamente o estado “entre enigmas” no qual todo ser humano está fadado.

744
A questão central aqui é a suposição de uma ontologia do ser humano baseada

num funcionamento reativo que evidencia uma constante luta e anseio de fuga do próprio

existir. Parece que na própria descrição do movimento pulsional, de exercer pressão

constante e ao mesmo tempo objetivar a cessação dessa pressão, Freud declara algo como:

“o homem é na ânsia mesma de não-ser”.

Pois bem, considerando as questões acima referentes à hipótese ontológica

freudiana, uma pergunta específica desponta: subentender o homem como um ser de ação,

um ser de reação ou de ambos ao mesmo tempo tem quais consequências? Uma hipótese

ontológica do devir humano franqueia, pois, uma perspectiva de saúde e, em

consequência, uma perspectiva ética sobre o que caracterizaria um bem e o que

caracterizaria um mal ao devir humano, sobre o que perturbaria e o que facilitaria a

construção, desconstrução e/ou manutenção das bases que sustentam o ser do homem.

Ora, se uma hipótese ontológica repercute no campo da ética é preciso avaliar, pois, no

contexto da clínica psicanalítica, a interferência de tal fato no manejo da transferência e

na direção do tratamento.

A hipótese ontológica freudiana articulada à dimensão ética da clínica.

Em sua etimologia, a palavra Ética origina-se da palavra grega “Ethos” que se

relaciona com “modos de ser” ou “caráter”. Tal palavra significava para os gregos a

morada do homem, a especificidade de sua natureza. Ora, se a ética diz sobre os modos

de ser do homem e se a ontologia do devir humano intenta a verificação das características

que deflagram o ser, tais campos fazem intersecções. Hipotetizar uma ontologia do

homem é incidir no campo da ética na medida em que se cria a partir de tal hipótese um

ideal e uma visada que perpassa a distinção do normal e o patológico e do bem e do mal,

745
na existência humana. Desta forma, uma ontologia significa a base que sustenta um

posicionamento ético.

Como é facilmente observável, para definir o campo da ética muitas vezes é

necessário realizarmos paralelos entre conceitos morais e conceitos de bem e de mal. De

fato, as leis e normas vigentes em qualquer organização humana comportam pressupostos

éticos e morais, havendo ou não ciência de tais pressupostos. Igualmente, é válido

ressaltar que enquanto o campo da moral é composto pela estipulação das regras vigentes

em determinada sociedade, o campo da ética circunscreve-se na reflexão sobre tais

pressupostos morais. Assim, é possível ser ético e moral ao mesmo tempo, embora não

necessariamente, pois ambos não são sinônimos. Poderíamos dizer que o campo da ética

é, pois, um campo aberto de contínua reflexão sobre a procedência e coerência ontológica

dos preceitos morais.

Com referência aos pressupostos éticos contidos na obra freudiana, podemos

observar que importantes reviravoltas são passíveis de destaque a respeito daquilo Freud

definia como a visada da clínica psicanalítica. Com isso, buscando clareza na exposição

da questão, podemos destacar duas proposições freudianas que circunscrevem o que visa

a clínica em sua obra: 1) tornar consciente o inconsciente e, 2) onde o Id estava deve o

Eu advir. Vejamos então alguns apontamentos sobre esse objetivo clínico do “tornar

consciente o inconsciente”. Freud diz, em 1907 que:

[O médico] Deve aprender a deduzir com segurança, das comunicações e associações

conscientes do paciente, o que neste está reprimido, e a descobrir o inconsciente dele

através de suas palavras e seus atos conscientes. (...) Ao serem identificadas suas

origens, a perturbação desaparece; da mesma forma, a analise produz

simultaneamente a cura. (Freud, 1976c, p. 91).

746
Contudo, nesta data, sete anos após a publicação da Interpretação dos Sonhos, a

clínica de Freud começava a indicar de uma maneira mais clara e consistente que o

método psicanalítico não poderia se limitar a apenas trazer à luz os conteúdos recalcados

e os fatores que levaram ao estabelecimento de resistências. Era preciso estender o tempo

do tratamento para que o paciente conseguisse revisitar a partir de novos lugares e

perspectivas seus dilemas e conflitos psíquicos e, assim, galgar alguma abertura um pouco

mais livre de seu circuito sintomático para estabelecer o desfecho, novo ou não, que daria

aos seus impulsos e desejos.

Portanto, no mesmo texto acima citado, Freud avança e pondera que “[O método

psicanalítico] não se limita a esses dois aspectos – tornar consciente o que foi reprimido

e fazer coincidir o esclarecimento e a cura. Estende-se também ao que consideramos o

ponto fundamental de toda modificação: o despertar dos sentimentos.” (Freud, 1976c, p.

91). Vale adiantarmo-nos na obra freudiana e ponderar a importância desse “despertar

dos sentimentos” necessariamente associado ao tornar consciente o inconsciente:

Sabemos que seus atuais sintomas e inibições são consequências de repressões desse

tipo; que constituem um substituto para aquelas coisas que [o paciente] esqueceu.

Que tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para

colocá-lo no caminho da recuperação das lembranças perdidas? Todos os tipos de

coisas. Fornece-nos fragmentos dessas lembranças em seus sonhos, valiosíssimos em

si mesmos, mas via de regra seriamente deformados por todos os fatores relacionados

à formação dos sonhos. Se ele se entrega à associação livre, produz ainda ideias em

que podemos descobrir alusões às experiências reprimidas e derivados dos impulsos

afetivos recalcados, bem como das reações contra eles. (...) Nossa experiência

demonstrou que a relação de transferência, que se estabelece com o analista, é

especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais.

747
É dessa matéria-prima – se assim podemos descrevê-la - que temos de reunir aquilo

de que estamos à procura. (Freud, 1996b, p.292, o grifo é nosso).

Espacialmente na próxima citação fica ainda mais claro que a revelação dos

conteúdos inconscientes seria um primeiro passo na direção do tratamento, sendo

necessário um trabalho elaborativo paralelo e sequencial à recuperação das lembranças

esquecidas. Estes trechos foram extraídos do texto “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914)

e nos auxiliam a esclarecer que a direção do tratamento não se limita à revelação do

inconsciente, mas avança no sentido de propiciar ao paciente a questão sobre “o que fazer

com Isso344”.

O analista simplesmente se havia esquecido de que o fato de dar à resistência um

nome poderia não resultar em sua cessação imediata. Deve-se dar ao paciente tempo

para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para

elaborá-la, para superá-la pela continuação, em desafio a ela, do trabalho analítico

segundo a regra fundamental da análise. Só quando a resistência está em seu auge

é que pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos

instintuais reprimidos que estão alimentando a resistência; e é este tipo de

experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos. O

médico nada mais tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem seu curso,

que não pode ser evitado nem continuamente apressado. Se se apegar a esta

convicção, amiúde ser-lhe-á poupada a ilusão de ter fracassado, quando, de fato,

está conduzindo o tratamento segundo as linhas corretas. (...) Esta elaboração das

resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e

uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que

344 No subitem 2.1.2, quando trabalhar-se-á a questão da direção do tratamento a partir da perspectiva freudiana do “Wo

Es war soll Ich werden” [Onde o Id estava, deve o Eu advir] (Freud, 1933 [1932]), será esclarecido o porquê de termos
colocado a palavra “isso”, com “i” maiúsculo. Mas já podemos adiantar que trata-se do Id da segunda tópica freudiana.

748
efetua maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de

qualquer tipo de tratamento por sugestão. De um ponto de vista teórico, pode-se

correlacioná-la com a ‘ab-reação’ sem a qual o tratamento hipnótico permanecia

ineficaz. (Freud, 1976d, p.203).

Fica, pois, claro ao leitor a relevância do trabalho de elaboração na direção do

tratamento proposta por Freud. A simples revelação do conteúdo recalcado - ou, como

assinalado, o simples dar nome à resistência – não é suficiente para fazer cessar a

resistência. É preciso um trabalho paralelo que envolve a capacidade de paciência do

clínico para que o paciente, em seu ritmo, se convença do poder dos impulsos

inconscientes e recalcados. É preciso esperar para que o paciente, em seu próprio tempo,

elabore e conquiste a capacidade de criar novos desfechos para seus dilemas psíquicos

encontrando alguma libertação, mesmo que relativa, de seu sintoma e do sofrimento

decorrente deste.

Obviamente, muito já avançou numa análise se a repetição tornou-se consciente

pelo paciente e este conseguiu apropriar-se da dimensão ativa e participação inconsciente

de sua compulsão à repetição. Há, porém, outro fator em jogo numa análise além desse

“dar-se conta de que repito ativamente justamente aquilo que resulta em meu sofrimento”

que é: o que faço com isso? Deste modo, a análise desafia as antigas soluções sintomáticas

do analisante e o convida a experimentar um estado paradoxal de liberdade e de

desamparo, pois se, por um lado, a análise direciona-se a possibilitar um movimento lá

onde o paciente encontra-se excessivamente paralisado (compulsão à repetição), por

outro, suspende a muleta do sintoma e desafia o paciente a criar novas formas de caminhar

sem precisar estar necessariamente preso a tal muleta. Assim, a ética freudiana parece

basear-se no reconhecimento de uma “ignorância de si” e na caminhada interminável de

um “descobrir-se”.

749
A outra proposição freudiana destacada é o “Wo Es war soll Ich werden” [Onde o

Id estava (era), deve o Eu advir (ser/estar)] (Freud, 1933 [1932]). Especialmente no que

se refere ao “dever” [soll] contido na frase destacada, podemos inferir uma premissa ética

da clínica para Freud. Aqui, é preciso relembrarmos a descrição de Freud acerca de sua

diferenciação entre Id345, Eu e Supra-Eu346, as três instâncias psíquicas da segunda

tópica347. Vale ressaltar que a primeira tópica (sistema Ics, Pcs e Cs) não fora totalmente

excluída da obra freudiana, mas superposta - em termos dinâmicos - à segunda tópica.

Pois bem, quando da passagem da primeira para a segunda tópica, uma questão

torna-se premente na especulação freudiana após suas constatações acerca do narcisismo

e da formação do Eu: afinal, se o Eu não é uma instância dada a priori, se ele precisa ser

formado, o que há antes da formação do Eu? Aí está a abertura para o que fora nomeado

por Freud de ‘Id’. É preciso atenção cuidadosa sobre este ponto, pois se a direção da

clínica está no “Wo Es was soll Ich Werden”, podemos afirmar que é a esse Id que existe

antes da formação do Eu que o tratamento psicanalítico se direciona. Assim, aquilo que

havia antes da formação do Eu - o Id, ou o chamado Id-Eu ainda não diferenciado -

obviamente não pode ser desconsiderado para pensarmos a clínica. Mas o que é o Id? Ora,

antes da diferenciação sujeito/objeto, Eu/não-Eu, mundo interno/mundo externo, o que

há é um “núcleo indiferenciável”, por assim dizer, que implica que o bebê é tudo e nada

ao mesmo tempo – temos aqui o que Freud nomeou de identificação primária, uma

345 χ título de curiosidade: o pronome „Id‟, em alemão (Das Es), designa „sujeito oculto‟ ou „indeterminado‟. Esse
pronome é geralmente usado em frases como: Es blüht (floresce). Já o pronome alemão „Eu‟ (Das Ich) tem a mesma
forma da primeira pessoa do singular do português, ou seja, é sujeito determinado. O Id seria, portanto, como que o
bebê que não sabe que é um bebê. Esse bebê já é “sujeito”, já é alguém, mas alguém oculto a ele mesmo (ele é alguém
para a mãe, por exemplo). Além disso, veremos que para que haja um sujeito definido (o Eu), invariavelmente esse Eu
precisará do “pano de fundo” do sujeito indefinido (o Id). Em outras palavras, o Eu é o outro do Id e o Id o outro do
Eu. (Comentários do editor. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2007, p.20 e
segs.).
346 Optamos aqui pela nova tradução do antigo Superego , por Supra-Eu (Über-Ich), porque em alemão essa palavra

conota uma idéia de "estar acima", "sobreposto", do que de um super Eu, como um "Eu mais poderoso". O Supra-Eu
guarda a conotação em alemão de "um Eu que paira acima de outro Eu". Estando também de acordo com a tradução
francesa do Surmoi (Sobre-Eu). (Comentários do Editor. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora: IMAGO,
São Paulo-SP, 2007, p.20 e segs.).
347 Neste ponto é preciso considerar que o leitor já tenha alguma familiaridade com a teorização das tópicas freudianas.

750
identificação direta e absoluta entre o bebê e o mundo que o cerca (Freud, 2004b). Mas

então como seria possível ao Eu advir no Id, o Eu que delimita, separa, diferencia,

categoriza, etc. e que tem como núcleo de sua formação justamente o corpo, o qual

encontra na superfície cutânea a membrana por excelência que diferencia o interno do

externo? Em outras palavras, como um “estado” de diferenciação advém num “estado de

indiferenciação”?

Freud, com essa “admissão” do Eu no Id, recorrentemente afirma a direção da

análise como o resgate e/ou conquista da maior autonomia possível do Eu frente às

exigências quantitativas e qualitativas que o invadem oriundas do Id, do Supra-Eu e da

Realidade.

Deste modo, alcançar a transformação do sofrimento neurótico em “infelicidade

comum” (Freud, 1895), conquistar certo grau de capacidade de trabalho e amor (1912)

ou atingir algo como uma “liberdade possível” nas relações entre Eu, Id e Supra-Eu e

diante das exigências dos três princípios implicados no funcionamento psíquico (de

Prazer, de Nirvana e de Realidade), resumiriam esse espírito freudiano quanto à sua

visada clínica.

É importante também destacar que, nesse objetivo do Eu advir no Id, o Eu

consequentemente “consideraria” um inapreensível, pois o Id relaciona-se com uma não-

diferenciação e uma não-contradição entre ideias e sentimentos, supostamente opostos ou

não. Estar convicto de que algo opera dentro de nós, às expensas de nossa consciência e

de que existe um lugar em nós para além de qualquer estrutura lógica-racional, o Id,

significa concebermos que o centro da “galáxia psíquica” não é o Eu. Significa, pois,

saber-se incompleto nesse lugar que opera a consciência de qualquer saber, havendo aí

como que uma eterna porta aberta ao devir e à criação de “devires”.

751
De qualquer maneira, um ponto fica um pouco mais claro a partir do

desenvolvimento aqui realizado, a dimensão ética da clínica expressa na obra freudiana

correlaciona-se diretamente uma “eterna abertura ao devir”, abertura essa deflagrada com

a conquista do sentimento de convicção do inconsciente e que também abre (ou reabre)

um campo vasto e fértil para a liberdade de criação de sentidos, de si e da vida. Abertura

que o sintoma insiste na tarefa impossível de fechar, correlacionando-se isso com o

próprio circuito pulsional no paradoxo entre exercer pressão constante (abrir) e objetivar

a cessação da pressão (fechar). O sintoma significa então uma prisão, uma paralisia

excessiva, que impede o indivíduo de vislumbrar a amplitude de sentidos da vida, como

se ele tivesse à disposição infinitas cores de tinta para pintar a vida, porém só lhe

parecesse acessível uma única cor. Embora seja bastante claro que a realidade muitas

vezes impede o acesso a certas “cores de tinta”, os impedimentos internos exercem uma

paralisia frequentemente mais drástica que a própria realidade pode vir a infringir.

Destas pontuações podemos nos perguntar, finalmente, o que significa essa

abertura ao devir? É ela uma forma de referenciar a característica básica, ou uma das

características básicas, que tornam possível dizer que o homem é. É nessa abertura para

o devir que sustenta-se a ontologia humana? De fato, se sim, seria mesmo lógico que

como consequência do fechamento dessa abertura o que ocorre são manifestações

patológicas que incidem justamente na capacidade de ser do homem. Um fechamento tal

mortifica/paralisa, assim, a própria vida. Faria, pois, parte da ideia de “saúde”, para a

psicanálise, resguardar essa abertura?

A partir do exposto, tudo indica que podemos inferir no ser do homem um lado de

reação, mas, também, um lado de criação, um campo aberto para tal. Campo que parece

gerar desamparo, pois, por ser aberto, não propicia ancoragens a priori, mas uma

constante criação/destruição de ancoragens, que significa a própria liberdade no homem.

752
Parece que o ser do homem refere-se a uma liberdade que se sustenta, paradoxalmente,

nessa abertura “infechável”.

Pois bem, até o momento podemos considerar que Freud tende, novamente, a

depor a favor de uma anterioridade da inércia, muitas vezes gerando dúvidas sobre se o

ser do homem sustenta-se nesse não movimento, no movimento ou em ambos ao mesmo

tempo. Atentemos, pois, à dimensão estética da clínica, para continuarmos esta tentativa

de avanço na circunscrição da ontologia freudiana.

A hipótese ontológica freudiana articulada à dimensao estética subtendida ao

manejo da transferência.

O que pretendemos aqui circunscrever como dimensão estética da clínica

correlaciona-se com o que podemos chamar de um “universo sensível” que é criado no

espaço entre analista-analisante, no campo da relação transferencial. Estando aí inclusas

características tais como: som, luz, tempo, cinestesia, espaço, ritmo, afetos, sentimentos

e emoções. Trata-se da dimensão do “como” se transcorre uma análise e se opera a direção

do tratamento no manejo transferencial - dimensão esta sobreposta, pois, ao “o que” visa

uma análise (campo da ética). Ao tentarmos esse exercício de circunscrever a dimensão

estética da clínica, nos preocupamos, portanto, com o que sente o paciente, além do que

ele pensa, em associação livre. Aqui vale uma citação de Freud:

Enquanto lidamos apenas com lembranças e ideias, permaneceremos na

superfície. Só os sentimentos têm valor na vida mental. Nenhuma força mental é

significativa se não possuir a característica de despertar sentimentos. As ideias só

são reprimidas porque estão associadas à liberação de sentimentos que devem ser

evitados. Seria mais correto dizer que a repressão age sobre sentimentos, mas só

753
nos apercebemos destes através de sua associação com ideias. (Freud, 1976b,

p.55).

Pois bem, tal preocupação com a dimensão estética da clínica não é sem sentido,

porquanto se revelou diretamente interligada, e necessariamente inseparável, à dimensão

ética desta. Consequentemente, na direção do tratamento, percebemos a implicação do

tato do analista quanto à criação de um campo propício ao alcance da convicção do

inconsciente pelo paciente. Freud, no seu conhecido texto sobre os chistes, faz a seguinte

afirmação acerca da atitude estética:

χ atitude estética é lúdica, em contraste com o trabalho. ‘Seria possível que da

liberdade estética brotasse uma espécie de juízo liberador de suas regras e

regulações, ao qual, devido a sua origem, eu chamarei de juízo lúdico’, e está

contido nesse conceito o principal determinante, senão a fórmula total, que

resolverá nosso problema. “χ liberdade produz chistes e os chistes produzem

liberdade”, escreveu Jean Paul. “Fazer chistes é simplesmente jogar com as

ideias”. (Ibid., 24). (...) Uma apreciada definição do chiste considera-o a

habilidade de encontrar similaridades entre coisas dessemelhantes, isto é,

descobrir similaridades escondidas. (FREUD, 1976b, p.23).

Alguns pontos importantes podem ser destacados: a) uma relação entre liberdade

estética e contemplação lúdica; b) uma relação com o objeto pautada na satisfação por

sua simples contemplação; c) uma relação especifica entre atitude estética, lúdico e

liberdade, e; e) a habilidade dos chistes em brincar com diferenciações e indiferenciações

entre coisas a princípio semelhantes ou dessemelhantes.

Seria preciso, pois, verificarmos melhor essa correlação entre a dimensão estética

e o campo lúdico348. Freud, ainda neste mesmo texto, aponta que a habilidade dos chistes

348Certamente, quando chegar a etapa de estudo da obra de Winnicott, prevista para a elaboração da minha tese de
doutorado, a reflexão sobre a dimensão estética e o brincar será significativamente enriquecida.

754
em brincar com diferenciações e indiferenciações entre coisas a princípio semelhantes ou

dessemelhantes diz de um prazer no reconhecimento de algo. Um encantamento por se

encontrar algo escondido e ele refere a isso como “prazer estético”.

Se o ato de reconhecimento suscita de tal modo o prazer, poderíamos esperar que

aos homens ocorra a ideia de exercerem essa capacidade por ela mesma – isto é,

a experimentariam como um jogo. De fato, Aristóteles considerou a alegria

(procedente) do reconhecimento como o fundamento do prazer estético, e é

indiscutível que não se deva desconsiderar esse princípio mesmo que ele não

possua a abrangente importância que lhe foi atribuída por Aristóteles. (Freud,

1976a, p. 144).

Além disso, Freud revela que “(...) os sonhos servem predominantemente para

evitar o desprazer, os chistes para a consecução do prazer; mas para as duas finalidades

convergem todas as nossas atividades mentais.” (Freud, 1976a, p.205). Podemos então

perceber que, enquanto que no chiste há uma ação positivada que leva a um prazer

(estético), no sonho essa tendência é negativada, priorizando a evitar o desprazer.

Notamos que Freud demonstra certa diferença entre uma tendência psíquica de

defesa contra o desprazer (demonstrada nos sonhos) e outra de ação em busca de prazer

(produção de chistes). Ou seja, ao que tudo indica, em mecanismos de ação em busca de

prazer e de reação para evitar o desprazer coadunam-se nosso funcionamento mental.

Aqui, Freud não é, pois, parcial, uma vez não sustenta a concepção do funcionamento

psíquico exclusivamente pela via de formações reativas como parecia ser sua tendência

em outros textos.

Podemos concluir que a questão do prazer estético incide em algo como “sentir

ludicamente a vida”. Essa referência direta que Freud faz entre a dimensão estética e o

755
lúdico aparece, aliás, em vários momentos de sua obra. Eis outro trecho com esta

referência:

Existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes

essa oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e pára de

brincar, após forçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida

com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que

mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto,

pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância;

equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos

de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso

prazer proporcionado pelo humor. (Freud, 1976c, p. 150).

Seguindo esta última citação, podemos asseverar que a dimensão estética que

estamos circunscrevendo aqui diz então de uma perspectiva qualitativa da vida e das

vivencias de dado indivíduo, de um “como” se pode viver a vida. Esse “como” se vive a

vida revela uma manipulação, por assim dizer, da forma pela qual um indivíduo pode

experienciar sua relação com a realidade exterior. Ou seja, diz de uma plasticidade de

modalidades possíveis de relação com os outros e com o mundo, podendo, obviamente,

ser esse outro o si-mesmo.

No texto “O Humor” (1927), Freud deixa claro que esse como se vive a vida, a

atitude estética para com ela, se pauta especialmente nas relações entre o Eu e o Supra-

Eu, na especificidade daquilo que o Supra-Eu construiu acerca do Ideal-de-Eu, das regras

e limitações que impõe ao Eu e da forma como o acolhe e/ou rejeita. É, pois,

especialmente nas tensões e distensões entre o Eu e o Supra-Eu que podemos

compreender melhor a atitude estética de dado indivíduo para consigo e com o mundo.

756
Assim, no que se refere à dimensão estética da atitude humorística e o campo de

relações entre o Eu e o Supra-Eu, uma consideração do editor neste texto “O Humor”

(1927) é bastante significativa: “(...) pela primeira vez, encontramos o superego

apresentado num estado de espírito afável.” (Nota do Editor, 1950 [1927]). χssim sendo,

o que podemos notar de maneira bastante clara neste texto é certa “liberdade” desse

“como” vivenciamos relações – aqui, em especial as demandas de ideal e imposições do

Supra-Eu frente ao Eu e entre o indivíduo e o mundo externo. Logo, em suma, nota-se

que para além dos fatores da realidade, há, em maior ou menor grau, um campo de

manobra do sujeito anunciado nesse “como”.

Pois bem, como podemos então pensar a articulação dessa dimensão estética no

manejo da transferência? Uma vez que pudemos observar que esta dimensão está

claramente subtendida nas relações que qualquer indivíduo vivencia - pois o caráter de

vivência das relações (nas tensões e distensões entre as instâncias psíquicas e entre o

indivíduo e a realidade) implica tal dimensão - quais considerações Freud realizou ao

longo de sua obra sobre tal tema na especificidade da direção do tratamento?

Como já anunciado, é no campo da transferência que a dimensão estética opera

de maneira tangível numa análise. É nesse espaço entre analista-analisante que o “como”

da vivência da transferência se configura. Neste sentido, vemos na obra freudiana a

referência ao “tato” do analista no que concerne ao manejo da transferência e a uma

preocupação com a sensibilidade do analista para julgar suas ações. No entanto, é fato

que Freud não discorreu ao longo de sua obra de uma maneira muito esquemática sobre

essa questão da sensibilidade do analista. Muitas vezes observamos Freud preocupado

com o que o analista não deve fazer numa análise (haja vista os textos da técnica) e

relegando a essa abstrata concepção de “tato” muito da ação positivada do analista em

sua prática. Apesar disso, muito se pode inferir a respeito dessa questão da implicação da

757
dimensão estética na direção do tratamento. Freud, nesse sentido, ao apoiar-se no

rigorosamente na metapsicológia, possibilitou a abertura mesma para a exposição de tal

questão.

Atendo-nos especialmente ao alcance do sentimento de convicção do

inconsciente e considerando que, paradoxalmente, uma convicção designa uma certeza,

estar convicto do inconsciente seria como que a certeza de uma eterna incerteza. Deste

modo, a convicção do inconsciente significa convicção (algo fechado) de algo sempre

aberto ao devir que, por mais que os sintomas objetivem certo fechamento/estancamento

do inconsciente, sabemos do impossível dessa tarefa. Afinal, lembrando os apontamentos

anteriores, se a principal característica da pulsão (dessa força que nos move) é,

justamente, exercer pressão constante um estancamento aí se faria, pois, impossível.

Podemos notar que com relação à dimensão estética e a obra freudiana, pouco

foi assinalado. No entanto, é importante sublinhar que essa dimensão diz desse “como”

subtendido ao fazer clínico e a uma “margem de manobra”, por assim dizer, e num sentido

mais ampliado, do “como” se experiência não somente a relação transferencial, mas a

própria vida. Sendo que essa “margem de manobra” existe na exata medida dessa “eterna

abertura” evidenciada no funcionamento inconsciente.

Assim, para concluir, com as elucubrações aqui referidas da obra freudiana,

podemos circunscrever que Freud pressupõe então uma ontologia dupla do devir humano,

por assim dizer. Essa ontologia dupla presume o homem como se constituindo

especialmente a partir de reações, de mecanismos de defesa e de formações reativas. No

entanto, Freud demonstra, também e paradoxalmente, o ser humano com uma eterna

abertura ao devir, evidenciando, assim, o homem como um ser que é afetado e constituído

pelo meio, mas que também afeta e constitui esse mesmo meio. Um ser, pois, reativo e

criativo ao mesmo tempo e em maior ou menor grau pendendo para um destes lados,

758
dependendo do caso a caso. Sendo que, no âmbito da clínica, Freud aponta uma

concepção de saúde e de direção do tratamento que prevê como que um equilíbrio entre

esses dois movimentos de abertura e fechamento, evitando excessos de estagnação e de

sofrimento – propondo, pois, um movimento lá onde o paciente encontra-se

excessivamente paralisado.

Referências

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Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Editora: IMAGO, Rio de

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Janeiro. Volume IX, pp. 80-165. (Original publicado em 1907)

___________ (1976d) Recordar, Repetir e Elaborar. In: Obras Psicológicas Completas

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Freud. Vol.I, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, pp 133-175. (Original publicado em

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Freud. Vol.II, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, pp. 123-199. (Original publicado em

1920)

759
___________ (2004b) O Eu e o Id. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora:

IMAGO, São Paulo-SP, pp. 13-93. (Original publicado em 1923)

___________ (2007) O Problema Econômico do Masoquismo. In: Obras Psicológicas de

Sigmund Freud. Vol.III, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, pp.103-125. (Original

publicado em 1924)

___________ (1976e) O Humor. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.

Edição Standard Brasileira. Editora: IMAGO, Rio de Janeiro. Volume XXI, pp. 163-

175. (Original publicado em 1927)

___________ (1996a) Análise Terminável e Interminável. In: Edição Standard Brasileira

das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII. Editora; IMAGO, Rio de

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___________ (1996b) Construções em Análise. Edição Standard Brasileira das Obras

Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Editora; IMAGO, Rio de Janeiro, pp.198-

230. (Original publicado em 1937)

Winnicott, D. W. (1975) O Brincar e a Realidade. Editora: IMAGO, Rio de Janeiro.

Editora: IMAGO, Rio de Janeiro. (Original publicado em 1971)

760
PÔSTERES

761
O AMOR SOB A ÓTICA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL

Thiago de Almeida

Instituto de Psicologia da USP, Departamento de Psicologia da Aprendizagem do

Desenvolvimento da Personalidade

E-mail: thalmeida@usp.br

Resumo: A fenomenologia tem uma compreensão de que o amor é algo construído no

processo de inter-relação Eu-Tu. O indivíduo está o tempo todo buscando a autenticidade

e elementos para compreender a pessoa amada. O encontro entre os amantes não é

percebido como um mero acaso. Para alguns autores fenomenológicos, observa-se que

ambos os parceiros da díade constituída sofrerão influências deste enlace amoroso. A

pessoa que é amada estará o tempo todo em contato com elementos atrativos do outro, e

isso poderá fortalecer, ou não, o amor que experiência. E, ao ter uma vida a dois, o casal

passar a ser uma só unidade, ou seja, um ser-junto em essência. Dessa forma, pode-se

passar a enxergar o ser amado de uma maneira mais completa ao respeitar os seus aspectos

subjetivos e os tornar também partes integrante de si. Nesse sentido, alguns autores da

fenomenologia, entendem que ao amar, estamos na constante busca se significados na

relação com o seu amado, agindo com liberdade e com todo nosso potencial criativo.

Neste sentido, este trabalho buscará mostrar a aplicação da visão fenomenológica acerca

do amor romântico fundamentado nas concepções de autores como Husserl, Scheler,

Sartre e Lévinas.

Palavras-Chave: amor; fenomenologia; individualidade; relacionamentos interpessoais;

inter-relação Eu-Tu.

762
THE LOVE ACCORDING

TO THE PHENOMENOLOGICAL-EXISTENTIALIST APPROACH

Abstract: The phenomenology has an understanding that love is something built in the

process of inter-I-Thou relationship. The individual is constantly seeking the authenticity

and looking for some elements to understand the loved one. The meeting between lovers

is not perceived as a mere chance. Some phenomenologists observed that both partners

made dyad suffer influences this loving bond. The person who is loved is all the time in

contact with attractive elements of the other, and this can strengthen or not the love

experience. And to have a life together, the couple become a single unit, that is, a being-

together in essence. So, you can go to see the loved one of a more fully to respect their

subjective aspects and make also integral parts of each other. Thus, some authors of

phenomenology, understand that when one loves, this person is in constant seek for

meanings in the relationship with his loved one, acting freely and with all our creative

potential. In this sense, this study will show the application of the phenomenological view

about romantic love based on conceptions of authors such as Husserl, Scheler, Sartre and

Lévinas.

Keywords: love; Phenomenology; individuality; interpersonal relationships; I-Thou

relation.

Considerações iniciais349

O amor precisa ser entendido como vontade, como a vontade que quer que o amado

seja, em sua essência, o que ele é (Heidegger, 2007, p. 366.).

349
Agradeço ao Prof. Dr. Renato Nunes Bittencourt (Departamento de Filosofia - Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ) pela a leitura do manuscrito e por suas contribuições nele contidas.

763
O termo "amor" é utilizado livremente no cotidiano. Há muitos séculos, diferentes

concepções de amor têm sido propostas por poetas, filósofos e romancistas, mas não há,

ainda, um consenso e, talvez, nunca haja uma definição do fenômeno amoroso capaz de

captar sua essência, dadas sua diversidade e subjetividade. Logo, o amor, enquanto um

fenômeno passível de ser estudado, não se permite esquadrinhar por quaisquer que sejam

as representações que parecem querer compreendê-lo em sua totalidade.

Usualmente, o amor costuma ser compreendido como um sentimento que nos

induz a nos aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente amor,

transversal à experiência de união entre as pessoas, e essencial à natureza humana

(Greenberg & Paivio, 1997). De acordo com Paz (1994),

(...) o amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado

sob a condição de que a entrega seja mútua. Em todos os lugares, é difícil este

abandono de si mesmo; poucos coincidem na entrega, e menos ainda conseguem

transcender esta etapa possessiva e gozar o amor como o que realmente é: um

descobrimento perpétuo, uma imersão nas águas da realidade e uma recriação

constante (p. 41).

Em outras palavras, a representação popular de amor consiste na formação de um

vínculo afetivo-sexual com alguém, sendo tida, por muitos, como um objetivo a ser

perseguido, ou como a única forma de alcançar a felicidade. Nesta acepção, o amor leva

um casal a se comprometer mutuamente, ao estabelecer um profundo vínculo entre eles

(Hintz, 2008). Ademais, tanto Almeida e Oliveira (2007) como Braz (2006) defendem

que o amor é a condição fundamental para que a pessoa se realize plenamente enquanto

tal. É um sentimento que participou e participa ativamente da evolução e estruturação da

personalidade, dado que é capaz de aproximar a pessoa de sua essência e propiciar o

desenvolvimento de relações sociais. Mas que fenômeno é esse que possibilita a pessoas,

764
até então desconhecidas uma da outra, se aproximarem e expressarem o desejo de

construir uma vida em conjunto?

Certa vez, Hunt (1974) afirmou: “amor é, sem dúvida, palavra mercurial; embora

vejamos claramente onde ele se encontra, basta encostar o dedo nele para descobrir que

não se encontra ali, mas noutro lugar qualquer” (p.11). Complementarmente, Konder

(2007) considera que o termo amor tem uma “elasticidade impressionante” (p. 7), e

“desempenha um papel sutil ao incitar os seres humanos à busca de um mundo melhor e

mais justo” (p.11), de modo que seu uso acontece segundo as possibilidades mais

idiossincráticas.

De acordo com Duarte (2012), a compreensão da experiência fenomenológica do

amor é uma das mais complexas e desafiantes tarefas da Psicologia, dada a abrangência

de sua dimensão na vida das pessoas e uma vez que compreende uma vasta gama de

formas de ser experienciada, acarretando significativas mudanças existenciais para o ser

humano.

Sousa, Batista e Taumaturgo (2010) afirmam que a fenomenologia é uma postura

ou atitude que reformula o entendimento a respeito dos fenômenos humanos, tais como a

própria compreensão do homem e do mundo, abrangendo a totalidade de ambos e da

inter-relação entre eles. A fenomenologia propõe a compreensão do mundo tal como ele

aparece para nossa consciência, sem que façamos juízos de valor acerca do mesmo, isto

é, o retorno às coisas mesmas, tal como proposto por Husserl (1973), seu criador. Por

conseguinte, o enfoque fenomenológico, despojado dos inerentes preconceitos da

avaliação humana, pretende observar os fatos em sua pureza original, tal como pode ser

reconhecida a intenção primeira de Husserl, ao criar o método fenomenológico. Contudo,

ao final de sua obra, Husserl (2012) passa a questionar os limites desta pretensão,

desenvolvendo mais amplamente o conceito de Lebenswelt.

765
O conceito de Lebenswelt, também conhecido como mundo da vida ou mundo

vivido, foi pensado por Husserl e retomado, posteriormente, por Merleau-Ponty,

constituindo-se como um fio condutor de suas ideias. Segundo o criador desse conceito,

o mundo vivido é o terreno a partir do qual as abstrações da ciência derivam; é o campo

da própria intuição, o universo do que é intuível ou, ainda, um reino de evidências

originárias, para o qual o cientista deveria se voltar para verificar a validade de suas

idealizações, de suas teorias, posto que a ciência interpreta e explica o que é dado

imediatamente neste mundo da vida (Husserl, 2012). De acordo com Messas (2014), o

Lebenswelt é aquele preliminar a qualquer manifestação racional, aquele que habitamos

e que nos constitui e nos circunda, ou seja, é o mundo pré-reflexivo dos fenômenos

subjetivos, antes de serem pensados pelo pensamento discursivo. Neste sentido, de acordo

com Moreira (2012):

(...) no Lebenswelt não há uma cisão entre exterior e interior, individual e social,

consciente e inconsciente, ou seja, o Lebenswelt é simultaneamente sujeito e objeto,

se dá no mundo, no entrelaçamento entre o universal e o singular, no quiasma, no

interstício semântico” (p. 19).

Almeida e Oliveira (2007) apontam que, embora pairem muitas dúvidas a respeito

do que seja o amor, nunca se deixou de falar dele. Atualmente, nos mais diferentes

contextos, são realizadas perguntas a seu respeito. Essas perguntas intrigam não somente

aos indivíduos que as formulam, mas, também, a muitos psicólogos, mesmo àqueles

profissionais cujo enfoque não é, aparentemente, a questão dos relacionamentos

interpessoais amorosos (Almeida & Vanni, 2013). Uma das dificuldades neste âmbito de

pesquisa refere-se ao fato de que o conceito de amor, e mesmo o de paixão, para as

pessoas e seus estados psíquicos são eminentemente subjetivos (Almeida & Madeira,

2014). Entretanto, sentimos os seus efeitos na vida cotidiana e, geralmente, ninguém

766
ignora as penalidades e vicissitudes pelas quais passamos quando os experimentamos.

Portanto, pensar a respeito do amor e da paixão nos coloca frente a esses fenômenos que

conhecemos desde a mais tenra idade, com os quais crescemos e que experimentamos

diariamente, através de vivências emotivas que o acompanham, embora nem sempre

reflitamos sobre as concepções que ele pode assumir (Almeida, 2013; 2014).

Sentirmo-nos amados e podermos amar é uma das nossas mais elevadas

aspirações. Mas o amor não é um sentimento simples. Quando se diz que se ama uma

pessoa, pretende-se expressar, com isso, uma série de atributos desta experiência,

revelando-lhe: que a desejamos, que a idealizamos, que ela nos diverte, que dela

queremos estar próximos, que dela cuidamos e com ela nos preocupamos, bem como que

ela constitui uma prioridade na nossa vida (Bradbury & Karney, 2010).

Expostas estas reflexões iniciais, veremos, em seguida, algumas das ideias de

filósofos que exploraram, sob tais fundamentos metodológicos da Fenomenologia, o

amor em suas obras.

O amor para a Fenomenologia

a) O amor em Husserl

Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859 - 1938) foi um matemático e filósofo

alemão que estabeleceu a escola da Fenomenologia. Ele buscou romper com a orientação

positivista da ciência e da filosofia de sua época, elaborando críticas sobre o historicismo

e o psicologismo no campo da lógica. Não se limitou aos delineamentos do empirismo de

sua época, embora acreditasse que a experiência vivida é a fonte de todo o conhecimento.

Ele trabalhou na construção de um método de redução fenomenológica, pelo qual um

assunto pode vir a ser conhecido diretamente em sua essência.

767
No início do século XX, a Fenomenologia foi considerada um movimento

reformista da filosofia, com origem na Alemanha, dedicando-se ao estudo das grandes

questões da vida (Introna, Ilharco, & Faÿ, 2008), tais quais o ser, a existência, a

consciência, o homem, o conhecimento, a ética, a imaginação, a alteridade, dentre outras.

Foi denominada por Husserl como a “ciência da ciência” (Wissenschaft von der

Wissenschaft, ou, em outra expressão, Wissenschaftslehre, a "doutrina da ciência")

(Kockelmans & Kisiel, 1970, p.5), na medida em que se apresentava como uma teorização

da própria ciência, ao desenvolver a constituição essencial do conhecimento científico.

Uma “ciência da ciência” é, necessariamente, uma ciência do espírito

(Geistwissenschaft). Então, cabe à filosofia, cuja forma última para Husserl é a

fenomenologia transcendental, a tarefa de ser a ciência última, de ser a ciência dos

fundamentos últimos.

Husserl inaugurou a construção método fenomenológico, o qual foi continuado e

estendido por Heidegger (Introna, Ilharco, & Faÿ, 2008), tendo aquele definido as fases

fundamentais do método - a descrição, a redução e a essência - enquanto este

desenvolveu, de uma forma mais exaustiva e completa, a análise feita em cada uma das

fases, ao nele introduzir a hermenêutica, a arte da interpretação (Introna & Ilharco, 2004).

Em um manuscrito inédito da série E, procedente dos anos 1920-1921, Husserl

(1920/1921, citado por Crespo, 2012) escreve:

O amor, em seu sentido verdadeiro, é um dos problemas fundamentais da

fenomenologia, e isso não só na particularidade e individualidade abstratas, mas um

problema universal. É um problema em suas fontes intencionais elementares, bem

como as suas formas de intencionalidade revelaram que se manifesta nas

768
profundezas, nas alturas e em extensões universais, afetando a intencionalidade350.

(p. 16)

Levando-se em consideração o que foi anteriormente citado, alguns autores, como

Crespo (2012), consideram que o amor constitui um motivo ético fundamental na

fenomenologia de Edmund Husserl. Em primeiro lugar, o amor está implicado de uma

característica reveladora e desenvolvedora da individualidade (tanto para o ser amado,

quanto para a pessoa que ama) e, em segundo, tem-se seu caráter fundamental de

comunidade. No caso de amor interpessoal, ele tem o potencial para destacar o caráter

individual da pessoa amada. Ele é definido da seguinte forma: “um prazer ativo na

individualidade pessoal do amado, no seu comportar-se, ativo e passivo, com o seu

entorno, na expressão corporal da sua individualidade, na corporeidade transposta pelo

espírito de um modo geral351” (Husserl, 1920/1921, citado por Crespo, 2012, p. 21).

Nesse sentido, o amor, em Husserl, revelaria a alteridade do outro amado, o que

faz dele um elemento e meio único para atingir esse objetivo, de tal forma que o

conhecimento puro não poderia fazê-lo. Assim, segundo o próprio autor, as leis do

coração lutariam contra as leis racionais.

b) O amor em Scheler

Max Scheler (1874-1928) foi um filósofo alemão que aprimorou o método do

criador da fenomenologia, Edmund Husserl. Scheler ficou conhecido por suas

contribuições acerca dos temas da fenomenologia, ética e antropologia filosófica. Em sua

350
Do original: “Liebe im echten Sinn ist eines der Hauptprobleme der Phänomenologie, und das nicht in
der abstrakten Einzelheit und Vereinzelung, sondern als Universalproblem. Nach den intentionalen
Elementarquellen und nach ihren enthüllten Formen der von den Tiefen zu den Höhen und universalen
Weiten hervortreibenden und sich auswirkenden Intentionalität”. (Ms. E III 2/36b)
351
Pode ser encontrada em: Husserl, E. (1973). Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem
Nachlass. Zweiter Teil: 1921-1928. Hrsg. von Iso Kern (Martinus Nijhogg, Den Haag, 1973), Hua, XIV,
172.

769
obra, podemos identificar um paradoxo, porque, ao mesmo tempo em que a ética

scheleriana é pautada em princípios universais, o filósofo elege o Amor e o Afeto

humanos como sentimentos integrantes de sua filosofia e, em sua teoria, defende que ser

virtuoso ou ser amoroso não atendia a nenhuma finalidade a não ser à consciência de seu

próprio valor (Scheler, 1994).

Max Scheler observa que, no ato do amor, um ser se abandona, para compartilhar

e participar em outro ser como ens intentionale. Dentro e por intermédio do ato de amor,

um ser se encontra com o outro objeto ao afirmar sua tendência em direção à sua própria

perfeição, que ele ativamente ajuda, promove e abençoa. Para Scheler, esta lógica do amor

será a chave para a sua ética filosófica, porque, de alguma forma, a essência do homem é

dada pelo que ele chama de ordo amoris (Scheler, 1996). Scheler entende o amor como

a abertura para a realidade valiosa das situações que nos cercam. O amor, na ótica de

Scheler, seria um explorador ou um guia na busca de valores, sendo capaz de ampliar

cada vez mais a esfera de valores acessíveis ao homem. O amar, em Scheler, é um

fenômeno presente na camada superior nossa vida emocional intencional, e,

concomitantemente é um movimento que descobre valores novos e ainda maiores.

c) O amor em Sartre

Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905 -1980) foi um filósofo, escritor e crítico

francês, conhecido como representante do Existencialismo. Em Sartre, em especial em

“O Ser e o Nada” (Sartre, 1997), o amor é visto como uma possiblidade de escolha

amorosa e intencional da consciência, e não como um valor pré-estabelecido.

Amar, para Sartre, pressupõe não apenas a capacidade de acolher e satisfazer o

outro, mas, sobretudo, vivenciar a angústia da incerteza da satisfação e a certeza de que

nunca se consegue preencher convenientemente o vazio da existência (Sartre, 1997). A

770
comunicação do/no amor é sempre, assim, imprecisa. Mas, desta limitação, o ser humano

afirma a sua paulatina capacidade de transcendência sobre suas dificuldades expressivas,

pois situa-se no plano da contingência, do acaso, que exige o exercício da liberdade de

criação e reinvenção da relação. Como o ser humano não é autocentrado, mas direcionado

ontologicamente para o outro, inevitavelmente o encontro com o outro ocorrerá,

promovendo usualmente o choque das subjetividades, nem sempre afetivamente

convergentes (Sartre, 1997).

Também, para Sartre, o propósito daquele que ama é ser amado, porque só aquele

(a) que ama resgata a contingência do seu ser no mundo, onde não encontra razão para a

existência, dando-lhe um sentido, tornando-o único, necessário, absoluto. Em suas

próprias palavras Sartre (1976):

O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada… χ

total escravização da amada mata o amor do amante. Se a amada se transforma

num autómato, o amante reencontra-se a si mesmo sozinho. Por isso, o amante

não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial

de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser

amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre. (p. 394)

Dessa forma, a fenomenologia de Sartre propõe apontar questões do "ser-um-com-

o-outro" do homem. O filósofo francês, em sua teoria fenomenológica, nos diz que todo

o modo de consciência representa algo, revela algo, apresenta algo, está voltado e

direcionado para algo fora dela mesma. A visão existencialista consiste em negar por

completo o determinismo do indivíduo, destacando suas ações e decisões e defendendo -

uma vez que ela não pressupõe nenhum providencialismo que tutela a existência humana

rumo ao estado de progresso moral ou espiritual - que cabe ao próprio homem tomar as

rédeas da sua existência e afirmar, assim, sua inevitável liberdade. Mas tal situação

771
revela-se aterradora para quem é incapaz de atuar autonomamente em sua existência,

dependendo sempre da chancela de outrem na condução de sua própria vida, e

despersonalizando-se até o cume da alienação. Para Sartre (1997), a sociedade, a natureza

e mesmo a pretensa existência de Deus e de seus imperativos normativos não podem

impor suas escolhas diante dos outros. Em sua obra, Sartre assume que qualquer homem

pode se tornar o que quiser ser, o que escolher ser, de tal forma que sempre poderá mudar,

e os valores morais não são limitantes para as escolhas e projetos do que possa vir a tornar-

se. O autor também afirma que a sociedade não pode impor a cada pessoa sua forma de

amar, tampouco com quem essa ou aquela pessoa deve se relacionar. De acordo com

Soares (2010):

O amor é conflito, entende-se que o ser está em conexão direta com a liberdade

do outro, e dessa inevitável contradição o indivíduo adquire consciência de que o

outro jamais poderá ser plenamente absorvido em sua vida, pois amar é afirmar a

contingência da relação, é afirmar a liberdade de ser do outro. Por conseguinte, o

projeto de um amor para sempre se torna quimérico, pois diversas circunstâncias

podem afetar a conjugação da relação. Isso não significa uma resignação derrotista

para a tolerância das inevitáveis crises conjugais, mas uma espécie de sabedoria

prática que nos torna mais plenos em nossas vidas, pois nossa felicidade amorosa,

ainda que construída na relação com o outro, encontra-se sempre em estado de

flutuação, mesmo com o advento da maturidade existencial. Em suma, o amor em

Sartre é um processo que decorre do exercício da vontade livre de um sujeito pelo

o outro.

Em suma, pode-se pensar que o exercício do livre arbítrio em Sarte, no que

concerne ao fenômeno amoroso, se dá de tal forma que o encontro amoroso pressupõe,

justamente, essa lógica, à medida que o tu-amado interage com o eu-que-ama, e ambos

772
tornam-se um ser-junto em essência, a despeito dos conflitos que surgem nessa inter-

relação. Consequentemente, não se observa, assim, facticidade nessa interação/encontro

amoroso, mas sim uma subjetividade oriunda do vínculo amoroso que torna a existência

do ser amado mais profunda para o parceiro.

d) O amor em Lévinas

Emmanuel Lévinas (1906-1995) foi um filósofo francês nascido numa família

judaica na Lituânia. Este autor foi prisioneiro em um campo de concentração durante a

Segunda Guerra Mundial, tendo vivenciado os horrores da violência fascista. Dedicou-

se, após a guerra, à escrita sobre a alteridade, na qual conduziu uma reflexão acerca da

dificuldade do ser humano em aceitar aquele que difere de si mesmo, que compreende

com desdém e que julga como inferior a si próprio. Este autor foi bastante influenciado

pela fenomenologia de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim como pelas obras

de Martin Heidegger e Franz Rosenzweig. O pensamento de Lévinas parte da ideia de

que a Ética, e não a Ontologia, é a Filosofia primeira. Para Lévinas (2007):

Amar é existir, como se o amante e o amado estivessem sós no mundo. A relação

intersubjetiva do amor não é o início, mas a negação da sociedade. E existe aí,

certamente, uma indicação sobre sua essência. O amor é o eu satisfeito pelo tu,

captando em outrem a justificação do seu ser. A presença de outrem exaure o

conteúdo de tal sociedade. O calor afetivo do amor realiza a consciência desta

satisfação, deste contentamento, desta plenitude encontrada fora de si,

excêntricos. A sociedade do amor é uma sociedade a dois, sociedade de solidões,

refratária à universalidade. (p. 43)

Complementarmente a esse fragmento, Susin, Fabri, Pivatto e Souza (2003)

afirmam:

773
Na proximidade do outro, a suposta soberania do sujeito é questionada. A

significação que nasce da proximidade não é a mesma relação entre termos que se

encontram mediados por uma linguagem comum. Tal significação é um abalo da

consciência tematizante e uma subversão da temporalidade ontológica. (p. 90)

Logo, ao analisarmos a temática amorosa em Lévinas, nos perguntamos: quem é

o outro? De acordo com Costa e Diez (2012), “na visão de totalidade o outro pode ser

reflexo da idéia de um modelo de ser humano ideal e de obliteração da possibilidade de

outra subjetividade” (p.2). Posteriormente, podemos nos perguntar sobre a função do

amor ao outro no processo da subjetivação amorosa. Para nos debruçarmos um pouco

mais nessa reflexão, podemos recorrer a Kierkegaard (2007), que entende o amor como

um evento,

(...) o maior de todos, mas também o mais feliz de todos; o amor é uma alteração,

a mais estranha de todas, mas também a mais desejável – dizemos, afinal, no

melhor sentido da palavra, que uma pessoa tomada pelo amor está alterada, ou

fica mudada; o amor é uma revolução, a mais profunda de todas, porém a mais

feliz! Ele traz uma confusão, e nesta bendita confusão não há para os amantes

nenhuma distinção entre Meu e Teu! Coisa estranha, há de fato um Tu e um Eu, e

não há um Meu nem um Teu! Pois sem Tu e Eu não há amor, e com Meu e Teu

não há amor... (p. 300)

Por essa perspectiva, o amor é apresentado como uma grande revolução, uma

grande transformação, que implica a relação, mas uma relação que não permite que haja

a perda dos envolvidos, como em uma simbiose. É sempre um “Eu” e um “Tu” que estão

unidos, sem perder a singularidade de cada um e, não obstante e concomitantemente, sem

esvair-se na disputa do que é “meu” e do que é “teu”. Nesse sentido, está na assimetria,

774
na deposição do eu, como diria Lévinas (2007), na realidade mesma do amor.

Considerações finais

Dado o exposto, depreende-se que a experiência amorosa é constituída por uma

inter-relação Eu-Tu, na qual se busca a autenticidade e a compreensão do ser amado. A

partir de então, o encontro amoroso passa a ser mais que um mero acaso e, no que respeita

à contribuição da Fenomenologia, esta se constitui como uma ferramenta esclarecedora

do papel do amor na práxis humana. A abordagem fenomenológica do amor tem tentado

perceber os sentimentos e emoções que compõem esta experiência. Nas diversas

contribuições dos autores e de suas obras aqui citadas, pode-se observar que, nestas

concepções fenomenológicas apresentadas, o amor é um projeto de autonomia e de

escolha.

Neste sentido, uma "fenomenologia do amor" está imbuída de um caráter

dinâmico e próprio, em que vão sendo desencadeados e desenvolvidos processos

cambiantes que envolvem variáveis de ordem cognitiva, afetiva, neurofisiológica e

comportamental, em cada uma das pessoas que compõe os sistemas: “eu”, “tu” e “nós”.

Ademais, somente o amor torna os indivíduos capazes de conscientizar o ser amado

daquilo que este pode e deveria vir a ser.

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778
OS ÂMBITOS IRREFLEXIVO E REFLEXIVO DA CONSCIÊNCIA EM

SARTRE

Flávia Augusta Vetter Ferri & Carla Maria Voitena

FADEP -Faculdade de Pato Branco

E-mails: flaviaferri@fadep.br, carla_voitena@hotmail.com

Resumo: Pretende-se, neste artigo, explanar a compreensão de Sartre acerca da

consciência, descrita por ele em dois graus: irreflexivo e reflexivo. Para a realização deste

estudo, utilizaram-se dos variados materiais a que se tiveram acesso, como livros, artigos,

produções online, dentre outros, buscando as comprovações da maneira como Sartre

distinguia a consciência. Levantou-se que o filósofo francês recebeu fortes influências de

Husserl e, apesar do rompimento teórico que se deu anos após essa aproximação, Sartre

se apropriou do conceito husserliano de intencionalidade, considerando toda consciência

como “consciência de”, ou seja, um constante movimento intencional. Embora inspirado

em Husserl, Sartre jamais manteve com o mesmo uma relação de discípulo, e a diferença

conceitual é que Sartre, ao contrário de Husserl, compreende a consciência através de

dois momentos: primeiro e segundo graus. A primeira diz respeito a uma consciência que

se define como pura espontaneidade, que posiciona o mundo, mas, ao mesmo tempo, não

deixa de ser consciência de si mesma, porém, não a posiciona como objeto. Assim,

mesmo estando mergulhada no mundo, a consciência não abdica do estatuto de ser

consciência de si, ou seja, ela toma consciência de si mesma, enquanto é, ao mesmo

tempo, consciência de um objeto transcendente; entretanto, essa consciência de si se dá,

primeiramente, de forma não-posicional. A consciência de segundo grau, por sua vez,

refere-se ao momento em que a consciência volta-se para si, tornando-se, ela mesma, o

objeto da consciência, de maneira posicional, reflexiva.

779
Palavras-chaves: Consciência, Consciência irreflexiva, Consciência reflexiva.

Fenomenologia, Sartre.

THE UNREFLECTIVE AND REFLECTIVE SPHERE OF CONSCIOUSNESS IN

SARTRE

Abstract: This paper aims to explain the way by which Sartre understands the

consciousness, described in two degrees: unreflective and reflective. . For this study, we

used several materials we had access to, such as books, articles, online productions,

among others, in order to find out the evidences on how Sartre distinguished the

consciousness. It has been found that the French philosopher was strong influenced by

Husserl’s ideas, and despite the theoretical rupture, which took place years after this

approximation, Sartre has borrowed the Husserlian concept of intentionality, that

considers all consciousness as consciousness-of something, in other words, a constant

movement of intentionality. Though inspired by Husserl, Sartre never kept with him a

disciple relationship, and the conceptual difference is that Sartre, unlike Husserl,

understood the consciousness through two moments: first and second degree. The first

one is related to a consciousness which is defined as pure spontaneity, that poses itself in

the world, but, at the same time, do not let to be self-consciousness, however, do not

positioned as the object. Like this, even though immersed in the world, the consciousness

does not relinquish the status of being self-consciousness, i.e., it becomes conscious of

itself, as it is at the same time, conscious of a transcendent object, however, this self-

consciousness occurs primarily in a non-positional manner. The second level of

consciousness, on the other hand, refers to the moment when the consciousness turns back

to itself, becoming itself the object of consciousness, in a positional and reflective

780
manner. It is established the ontological primacy of unreflective consciousness in relation

to reflective

Key-words: Consciousness, Consciousness unreflective, Consciousness reflective,

Phenomenology, Sartre.

Introdução

A fenomenologia surgiu no final do século XIX e início do século XX, tendo

como seu fundador o filósofo Edmund Husserl. Nesta época, ocorreu uma reaproximação

da Psicologia com a Filosofia, momento em que esta última procurava revisar as questões

do homem e do mundo (Silva, Lopes & Diniz, 2008).

A fenomenologia surge com uma nova proposta de termos e conceitos,

modificando várias compreensões existentes no âmbito da psicologia e da filosofia.

Dentre elas, a da consciência, que deixa de ser algo substancial e passa a ser caracterizada

como movimento intencional, ou seja, um movimento constante que se dirige para algo,

pois a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Assim como Heidegger e

Merleau-Ponty, e diferentemente de Husserl, Sartre compreende a consciência em dois

momentos: consciência de primeiro grau e consciência de segundo grau (Silva, Lopes &

Diniz, 2008).

Histórico

Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um filósofo francês nascido em Paris. Em

1933, contemplado por uma bolsa de estudos, partiu para a Alemanha, onde entrou em

contato, primeiramente, com a filosofia de Husserl (Almeida, 1988).

Vivenciou e pôde refletir acontecimentos marcantes do século XX, como a

Segunda Guerra Mundial, a qual mudou os rumos de sua vida. Convocado pelo Exército

781
francês, em 1940, Sartre foi feito prisioneiro pelos alemães já no ano seguinte, em 1941.

No cativeiro, estudou a obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Fazendo-se passar por

civil, conseguiu ser libertado, e escreveu boa parte de suas obras durante a guerra. Em

1943, publicou O Ser e o Nada (Sartre, 2013), sua obra filosófica mais conhecida, versão

pessoal da filosofia existencialista de Heidegger (Almeida, 1988).

Sartre (1970) pontuou que a consciência localiza o homem ante a possibilidade

de escolher o que será, sendo esta a própria condição da liberdade humana: escolhendo

sua ação, o homem se escolhe a si mesmo, mas não escolhe sua existência, que já lhe vem

concedida e é requisito de sua escolha. Daqui, surge a famosa máxima existencialista que

declara: a “existência precede a essência” (Sartre, 1970, p. 3), uma vez que,

(...) em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo

e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só

não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente

será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.... O homem nada mais

é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do

existencialismo... Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe,

ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que

tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto

que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-

flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o

homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos

vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é

posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. (p. 4-5)

782
Em 1964, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas o recusou, por não acreditar

se submeter a juízes e julgamentos de seres, mesmo quando premiado (Almeida, 1988).

Fenomenologia

A Fenomenologia surge como campo do saber que visava, em última instância,

ao eu-transcendental, tão caro a Husserl. Quanto à etimologia da palavra

"fenomenologia", Chauí (2010) nos esclarece a dimensão do “phainomenon (fenômeno),

que significa ‘a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para

nossa consciência’” (p.117). Em seguida, complementa:

Fenomenologia significa "conhecimento daquilo que se manifesta para nossa

consciência, daquilo que está presente para a consciência ou para a razão porque

é organizado e explicado com base na própria estrutura a priori da consciência".

A verdade se refere aos fenômenos, e os fenômenos são o que a consciência

conhece (CHAUÍ, 2010, p. 118).

Husserl recebera a influência de Brentano, seu professor, cuja grande

contribuição consistiu na definição do termo intencionalidade. A intencionalidade é a

relação psíquica primária, esta que se estrutura num fenômeno psíquico que é concebido

como parte separável da consciência (Brito, 2012). Na relação intencional, o conteúdo e

ato tornam-se inseparavelmente relacionados por meio da intencionalidade, sendo que

conteúdo é o fenômeno para o qual a consciência está voltada, e ato é a ação intencional

da consciência que se volta para o fenômeno, “pois seria impossível existir um ato de

consciência sem um conteúdo correlato” (ψrito, 2012, p.104). Ou seja, a intencionalidade

é o próprio movimento da consciência, esta que é sempre “consciência de alguma coisa”

(Sartre, 1966, p.28), pois não há algo como uma consciência vazia, por assim dizer.

Neste sentido, segundo Chauí (2010), na perspectiva fenomenológica,

783
a consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato observável, nem é,

como imaginava a metafisica, uma substância pensante ou uma alma, entidade

espiritual. A consciência é uma pura atividade, o ato de constituir essências ou

significações, dando sentido ao mundo das coisas. Estas - ou o mundo, como

significação - são o correlato da consciência, aquilo que é visado por ela e dela

recebe sentido. Não é uma coisa nem uma substância (uma coisa), mas uma

atividade (uma ação). Por ser uma ação que visa os objetos como significações,

toda consciência é sempre consciência de. A isso (ser consciência de), Husserl dá

o nome de intencionalidade. (p. 212)

Alterando todos os pressupostos já existentes sobre a consciência, os fundadores

da fenomenologia a conceituam, então, como um movimento intencional, ela é o próprio

movimento, um ato, e não há local algum que se denomine consciência, ou seja, na

consciência não há nada. Ela sempre se impulsiona para fora de si, interligando-se com

os outros componentes do mundo, através de uma relação co-original, denominada nóese-

noema (Alves, 2013).

Então, na esteira das reflexões propostas pela fenomenologia husserliana, para

Sartre a consciência perde a antiga ideia de lugar, no qual poderiam estar armazenados

conteúdos psíquicos (Dartigues, 1973).

A consciência reflexiva e irreflexiva em Sartre

Considerando a consciência no seu caráter intencional, Sartre classifica-a em

dois graus: Consciência de 1° grau e Consciência de 2° grau, também chamadas,

respectivamente, de irreflexiva, irrefletida, imediata, não posicional, não-tética e

refletida, reflexiva, posicional, tética (Cahet, 2008). A irreflexiva se refere ao primeiro

momento em que a consciência se coloca: ao estar submerso ao mundo, a consciência

784
encontra-se posicional ao mundo e não-posicional de si, ou seja, ela está direcionada,

voltada para o mundo e não para si, como nos esclarece Aires (2007):

Numa tentativa de conceituar, de maneira sucinta, a consciência não-tética,

podemos dizer que é a consciência refletida e direcionada para os objetos;

posiciona os objetos ao voltar-se para eles, porém, não se posiciona perante eles,

por isso, também é conhecida como consciência não-posicional de si; sabe, mas

não sabe que sabe. Em virtude disso é que não podemos considerar toda

consciência como sendo posicional em relação a si mesma. (p.23)

Já a consciência reflexiva manifesta-se num segundo momento, em que a

consciência se torna objeto dela mesma. Trata-se da presença do Eu, do momento no qual

a consciência possui consciência de ser consciência. Ora, ela dirige-se para a própria

consciência, sendo pessoal, e é nesta atitude que ocorre o aparecimento do Eu. Como

afirma Sartre (1996), "por outro lado, não há uma regressão ao infinito, uma vez que a

consciência não tem, absolutamente, necessidade alguma de uma consciência reflexiva

para ser consciência dela mesma. Simplesmente, ela não posiciona a si mesma como

objeto"352 [tradução nossa] (p.29).

A consciência não está em um momento apenas, ela é um vai-e-vem, ou seja, ora

está irreflexiva, ora está reflexiva (Sartre, 2008). Nas palavras do filósofo:

Tende-se muito a acreditar que a ação é uma passagem constante do irrefletido ao

refletido, do mundo a nós mesmos. Perceberíamos o problema (irreflexão-

consciência do mundo), depois perceberíamos a nós mesmos como tendo o

problema a resolver (reflexão), a partir dessa reflexão conceberíamos uma ação a

ser cumprida por nós (reflexão), e então, tornaríamos a descer no mundo para

352
il n'y a d'ailleurs pas ici de renvoi à l'infini puisqu'une conscience n'a nullement besoin d'une conscience
réfléchissante pour être cons- ciente d'elle-même. Simplement elle ne se pose pas à elle-même comme son
objet.

785
executar a ação (irrefletida), considerando apenas o objeto agido. A seguir, todas

as dificuldades novas, todos os fracassos parciais que exigem um estreitamento

da adaptação nos remeteriam de volta ao plano refletido. Daí um vaivém constante

que seria constitutivo da ação. (Sartre, 2008, p. 58)

Para ampliar esta compreensão, o filósofo expõe outro exemplo: no momento

em que se está escrevendo, a consciência não está consciente de si mesma, pois ela está

voltada às palavras e objetos utilizados para escrever. “Escrever é tomar uma consciência

ativa das palavras enquanto elas surgem de minha pena... o eu não aparece de modo algum

aqui” (Sartre, 2008 p. 59 -61). O instante em que o sujeito lembra-se do momento em que

escrevia caracteriza-se pelo segundo âmbito da consciência, o de segundo grau, ou seja,

a consciência voltada para si mesma, pois o eu aparece neste instante, enquanto que na de

primeiro momento – que se dá quando sujeito está escrevendo - a consciência está voltada

ao mundo, às coisas mundanas e, logo, não se posiciona a si mesma. Ressalte-se que

(...) a consciência não tem, teticamente, consciência de si mesma como

degradando-se para escapar à pressão do mundo: tem apenas consciência

posicional da degradação do mundo que passa ao nível mágico. O fato é que ela

é consciência não-tética de si (Sartre, 2008, p.79).

Mas, como diz Sartre (1966, p.30), "toda consciência irreflexiva, sendo

consciência não-tética dela mesma, deixa uma memória não-tética que pode ser

consultada” 353 [tradução nossa]. Assim, tudo o que ocorrer irreflexivamente pode ser

lembrado posteriormente, de maneira reflexiva, pois o “Eu” estará presente.

Primazia ontológica

353
Mais toute conscience irréfléchie, étant conscience non-thétique d'elle- même, laisse un souvenir non-
thétique que l'on peut consulter.

786
A primazia ontológica refere-se à relação que existe entre os dois âmbitos de

consciência descritos por Sartre, o irreflexivo e o reflexivo, sendo que, “de maneira geral,

não é demais relembrarmos que as consciências pré-reflexivas possuem primazia

ontológica diante da consciência reflexiva.” (Cahet, 2008, p. 36). Em outras palavras, “a

reflexão é um modo secundário de consciência e sua existência depende previamente da

consciência pré-reflexiva.” (Ferri, 2013, p. 30), ou seja, para que o âmbito reflexivo

ocorra, deve haver ocorrido o irreflexivo primeiramente, ainda que isto não implique,

necessariamente, que todas as irreflexões se tornarão reflexivas.

Sartre (1966, p.41) ressalta que, "mesmo assim, o irreflexivo tem prioridade

ontológica sobre o reflexivo, porque não há necessidade de ser reflexivo para existir e a

reflexão requer a intervenção de uma consciência de segundo grau” 354 [tradução nossa].

Considerações finais

Ao percorrer o caminho deste estudo, buscamos explicitar a relevância que a

vertente filosófica da Fenomenologia trouxe, ao surgir em meio à crise das ciências. Os

pensadores desta corrente aportaram esclarecimentos sobre facetas de uma nova maneira

de olhar para o fenômeno da consciência.

Mas também nota-se que, ainda que se tratem de pensadores que sejam

classificados numa mesma abordagem filosófica, há diferenças na maneira através de que

olham para os fenômenos, principalmente para a consciência. Buscamos aqui discorrer,

justamente, sobre as peculiaridades do olhar de Sartre para o tal.

Em suma, a consciência é compreendida, pelo filósofo, em dois momentos:

irreflexivo e reflexivo. O primeiro refere-se ao momento em que a consciência se volta

354
Mais même alors l'irréfléchi a la priorité ontologique sur le réfléchi, parce qu'il n'a nullement besoin
d'être réfléchi pour exister et que la réflexion suppose l'intervention d'une conscience du second degré.

787
para algum objeto do mundo, quando ela se posiciona para fora de si; já num segundo

momento, a consciência é objeto de si mesma, ela está voltada para si.

Ressaltou-se, também, a primazia ontológica do âmbito irreflexivo com relação

ao reflexivo. Isso significa que, num primeiro momento, a consciência é caracterizada,

sobretudo, pelo mergulho espontâneo no mundo: ela se volta inteiramente para esta

exterioridade e se define enquanto este movimento. Neste ponto, salta aos olhos a

ausência de um “eu” como objeto para a consciência; este “ego” somente aparecerá com

o movimento reflexivo, num segundo momento, quando a consciência posiciona a si

mesma enquanto objeto. Neste sentido, a consciência não posicional é condição sine qua

non para a atividade reflexiva.

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789
RESUMOS

790
FENOMENOLOGIA, SOFRIMENTO E CRISE PSÍQUICA GRAVE: EM

BUSCA DE SENTIDOS

Ileno Costa (UNB)

E-mail: ilenoc@gmail.com

A partir do construto sofrimento psíquico grave (Costa, 2010, 2013), problematizar-se-á

o que seja uma crise psíquica grave, ou, como mais comumente é conhecida, o “surto

psicótico”. Partindo do paradigma internacional da Intervenção Precoce nas Psicoses,

busca-se ampliar a concepção de pródromos, num diálogo inicial com alguns autores da

fenomenologia, tendo a crise psíquica grave como norteadora de tais reflexões. Embasado

na experiência/empiria de 13 anos de acolhimento de pessoas em primeiras crises

psíquicas graves (com “crises do tipo psicótica”, que vão da neurose grave, passando

pelos estados limítrofes até mesmo à psicose) em Brasília/DF/Brasil, pretende-se debater

os pressupostos do acolhimento do Gipsi (Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras

Crises do Tipo Psicótico), um modelo de intervenção precoce em construção no Brasil e

filiado à IEPA (Austrália). Ao final, busca-se fazer reflexões clínicas sobre como acolher

tais manifestações essencialmente humanas, correlacionando-as com autores seminais da

Fenomenologia, especialmente Levinas (Sofrimento inútil, Alteridade), Heiddeger

(Cuidado e Intersujetividade) e Winnicott (Clínica do Cuidado), numa postura crítica de

inspiração husserliana, levando em conta, em especial, as assim chamadas Éticas da

Alteridade, da Responsabilidade e do Cuidado.

Palavras-chave: fenomenologia; sofrimento; crise psíquica.

791
A MAIOR DOR DO MUNDO: O LUTO MATERNO EM UMA PERSPECTIVA

FENOMENOLÓGICA

Luís Henrique Fuck Michel & Freitas, J.L. (UFPR)

E-mail: luis.hfmichel@gmail.com

O presente trabalho busca refletir acerca da vivência do luto materno na sociedade

brasileira contemporânea, a partir da perspectiva fenomenológico-existencial. Foi

realizada uma pesquisa qualitativa com três mães enlutadas. Utilizou-se o método

fenomenológico de entrevistas com uso de pergunta disparadora. A análise dos dados

seguiu os quatro passos metodológicos de Giorgi. O relato das mães evidenciou diferentes

temáticas, descritas por meio de dez elementos constituintes da vivência de luto materno,

a saber: Dor, Perda de um modo de existir, Espiritualidade, Culpa, Perda do sentido do

mundo-da-vida, Vontade de morrer, Fragmentação dos laços afetivos, Engajamento em

projetos relacionados ao filho, Perpetuação da memória do filho, Estreitamento de laços

com pessoas significativas para o morto. Os resultados obtidos na pesquisa indicam que

embora o luto se modifique ao longo do tempo, a perda de um filho jamais é superada,

compreendendo este sofrimento não mais como uma condição patológica, mas com

especificidades a serem compreendidas.

Palavras-chave: luto materno; fenomenologia; psicologia.

792
FENOMENOLOGIA E TEOLOGIA NO TEXTO FREUDIANO:

INTERCESSÕES ACERCA DA PESSOA HUMANA

Karla Daniele de Sá Maciel Luz (UNIVASF)

E-mail: karladanimac@hotmail.com

Falar da pessoa humana, não compartimentada, mas compreendida de modo uno é, um

grande desafio, especialmente quando toda forma de pensar está marcada pela

fragmentação cartesiana. Junto a esse desafio encontra-se outro, um pouco mais

complexo, falar sobre pessoa humana no texto freudiano a partir de suas contribuições

fenomenológica e teológica. É com o objetivo de refletir sobre o humano complexo e todo

a partir das contribuições da fenomenologia e da teologia presentes no texto de Freud que

esse trabalho será apresentado. Para isso faremos uso de fragmentos da sua obra em que

a condição humana foi abordada com visível proximidade das concepções da

fenomenologia e da teologia (especialmente o judaísmo e o cristianismo, que tanto

marcaram o pai da psicanálise). Ao longo da obra percebemos que o sujeito do desejo,

marcado pelas pulsões, regido pela lógica inconsciente é também um sujeito que faz sua

própria história e Freud vai deixando a metapsicologia aberta a novos dizeres e saberes,

com o objetivo de que aquilo que é intrinsecamente humano se revele, se mostre, se deixe

conhecer. Em nenhum momento Freud reduz o humano a psicanálise, mas deixa a

psicanálise a disposição do desvelar da condição humana. Portanto uma análise mais

minuciosa e apurada de seu texto deixa claro o quão fenomenólogo foi Sigmund Freud.

Palavras-chave: fenomenologia; teologia; Freud.

793
O (DES)APRENDIZADO DO MÉTODO CARTESIANO E A ÉTICA

FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL

Paulo Alexandre Françoso & Anisha Gonçalves Santana (Centro Universitário São

Camilo)

E-mails: paulotecweb@gmail.com, aniyumitian@gmail.com

O pensamento cartesiano foi um divisor de águas na história da produção de

conhecimento ao imprimir a esse processo o rigor metodológico que se integrou no

cotidiano da sociedade capitalista moderna, colaborando para a estruturação de uma

cultura tecnocrática na qual os fenômenos são efeitos e, portanto, possuem uma causa a

ser investigada e intuída. Isso se reflete diretamente no aprendizado e expressão dos

sujeitos, resultando num modo naturalizado de pensar o mundo. Tal concepção de

fenômeno, eternizada na afirmação cogito ergo sum, se encontra também em diversas

teorias psicológicas e filosóficas. O esforço para vencer essa naturalização é um dos

maiores desafios da prática pautada pela ética fenomenológica-existencial, que se vale da

epoché para uma abordagem compreensiva dos fenômenos humanos. Há, no entanto,

outra naturalização inerente à adoção do pensamento cartesiano amplamente presente na

sociedade capitalista moderna: a ética baseada em princípios de eficácia e eficiência,

decorrentes do controle e previsibilidade de causas e efeitos, não sendo exceção a atuação

psicológica. Tendo isto em vista, é possível a coexistência da ética fenomenológica-

existencial e a ética tecnocrática-capitalista?

Palavras-chave: fenomenologia; método cartesiano; psicologia.

794
GRUPO ABERTO DE ESCUTA: QUANDO A COMUNIDADE ACOLHE A SI

PRÓPRIA

Mônica Mendes Gonçalves (USP)

E-mail: monikitamendes@hotmail.com

O presente trabalho relata a criação de um grupo de escuta dentro de uma UBS, conduzido

pela psicóloga da unidade. Situada numa região de extrema vulnerabilidade, a instituição

tinha tradição histórica em atendimentos individuais e especializados, especialmente na

abordagem das questões de saúde mental. Inicialmente recebido com resistência, o grupo

acontecia uma vez por semana, com duração de 2h30 e foi implementado valendo-se de

aspectos metodológicos da terapia comunitária, colocando o usuário como sujeito central

de sua vida, protagonista de seu processo de saúde-doença a partir da possibilidade de

empoderamento e elaboração através da fala-escuta. O objetivo era oferecer acolhimento

coletivo e imediato às pessoas em sofrimento ou que demandassem escuta psicológica,

instaurar uma possibilidade de ‘porta aberta’ ao profissional psicólogo permanente,

ordenar o fluxo de saúde mental, adequar-se diretrizes e prerrogativas da política nacional

de atenção a saúde mental e de atenção básica. Para além desses objetivos, evidenciou-se

o fortalecimento dos laços comunitários, o surgimento de redes de apoio auxiliares, que

se estenderam para além do grupo e do espaço físico da unidade, passando a figurar um

lugar simbólico na relação entre os moradores do bairro.

Palavras-chave: escuta; comunidade; psicologia.

795
A CONTRIBUIÇÃO DA TERAPIA EM GRUPO DO CAPS- AD AO

ESQUIZOFRÊNICO DEPENDENTE QUÍMICO

Douglas Marcel da Silva Buzoni, Sampaio, G.O & Barbosa, A.P. (UNIFRAN)

E-mail: dmarcel25@yahoo.com.br

Este estudo teve por objeto os pacientes do CAPS-ad com esquizofrenia que fazem uso

de substâncias psicoativas. O intuito do projeto foi descobrir e relatar de que maneira a

terapia em grupo oferecida na instituição pode beneficiar a este tipo de paciente. Foi

utilizado o Método Dedutivo. Foi realizado um breve levantamento bibliográfico na

literatura da dependência química, bem como entrevistas mediante questionário

específico com alguns pacientes participantes da terapia em grupo no CAPS-ad e

familiares. Os participantes receberam orientação quanto ao objetivo do estudo, sendo

unânime a opinião dos mesmos quanto à importância da terapia em grupo em contraste

com o tratamento medicamentoso. Percebeu-se que é necessário que haja uma equipe

multidisciplinar (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermagem,

psiquiatra e clínica geral). Ressaltam, ainda, os benefícios que a terapia em grupo traz

para a convivência do doente com seus familiares. Através do estudo realizado nesta

política pública que oferece tratamento psicossocial gratuito à população de Franca – SP

e região pode-se concluir que o tratamento auxilia tanto o paciente quanto seus familiares

no enfrentamento da esquizofrenia e da dependência, e, portanto, contribui para a melhora

de seu quadro proporcionando um tratamento aberto, e, assim sendo, ele continua inserido

na sociedade.

Palavras-chave: terapia em grupo; esquizofrenia; dependência química.

796
O SOFRIMENTO DOS ALUNOS DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP

Maria Gertrudes Vasconcellos Eisenlohr (USP)

E-mail: mge497@gmail.com

O objetivo deste trabalho é apresentar parte da minha experiência com os alunos do

Instituto de Psicologia da USP. Os profissionais envolvidos com a formação de alunos

em Psicologia conhecem a complexidade desse processo, não só pela diversidade de

visões de homem e suas abordagens teórico-práticas, mas pelo envolvimento que o aluno

precisa realizar. Essa condição, própria ao campo da psicologia, tem se estendido ao

relacionamento com os alunos, os quais têm se queixado de como são negligenciados:

não tem interlocução, não são compreendidos nas dificuldades e não são considerados

como pessoas. Muitos têm sofrido crises durante o período de sua formação. Em 2005,

atendendo a um pedido do Centro Acadêmico, o Instituto suspendeu todas as suas

atividades por um dia inteiro para que pudéssemos ouvir os alunos e lidar com a

fragmentação das disciplinas, a falta de ligação entre teoria e prática e, principalmente,

com a pessoa de nossos alunos. Deste encontro surgiu o Espaço de Convivência mensal

e o “Serviço de Cuidado aos χlunos”, sob minha responsabilidade por sete anos e que

possui, como perspectiva, a integralidade da pessoa humana de acordo com Edith Stein.

Palavras-chave: sofrimento; alunos de psicologia; fenomenologia.

797
CONTRIBUIÇÕES DE STEIN PARA COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA

ONTOLÓGICA

Roberta Vasconcelos Leite (UFMG)

E-mail: vasconcelosroberta@yahoo.com.br

Objetivamos identificar contribuições de Stein para compreensão da dinâmica de

elaboração da experiência ontológica. Realizamos pesquisa teórica baseada nas obras

Estrutura da pessoa humana e Ser finito e ser eteno. Concebendo o ser humano como

pessoa, ser de relações, Stein descreve sua abertura para “fora” (mundo-da-vida), e

“dentro” (saber-se vivo que atravessa a vivência). Demonstra como toda pessoa começa

a se conhecer ao posicionar-se no mundo, ainda que não se tome como objeto de reflexão.

Este processo de reconhecer-se possuidor de determinados conteúdos vivenciais carrega

a potencialidade do descobrimento de si como um eu que apreende conteúdos, vive por

meio deles, configura-os como “seus”, sustenta-os e pode se tornar cônscio do próprio

ser. Stein explicita a fragilidade do eu (lançado na existência, não dependendo puramente

de si para se realizar) e sua potencialidade radical (mesmo frágil, é e permanece sendo no

fluxo mutável de vivências). Conclui-se que a análise empreendida por Stein contribui

para o delineamento da dinâmica de elaboração da experiência ontológica ao explicitar

como a pessoa, em sua busca existencial, parte da evidência do próprio ser, ponto

indubitável que se revela num conhecimento originário e imediato: o eu que vive se dá

conta de que vive e é.

Palavras-chave: Edith Stein; experiência ontológica; pessoa.

798
A FORMAÇÃO DA PESSOA EM EDITH STEIN

Adair Aparecida Serga (Colégio Nossa Senhora Auxiliadora)

E-mail: ir.adair@auxiliadora.com.br

O objetivo da comunicação é apresentar o conceito de formação da pessoa concebido por

Edith Stein a partir da sua investigação de base antropológico-filosófica sobre a

constituição da pessoa humana. Seguindo o método fenomenológico Stein descreve a

estrutura do ser humano composta de corpo, psique e espírito, constituída numa totalidade

e apresenta o conceito de formação. Explica que pela análise da origem da matéria,

verifica-se que o corpo humano é preenchido por uma forma interior, que tem a

propriedade de atualizar as potencialidades contidas no ser da matéria. Essa atualização

acontece segundo um processo formativo, que tem a função de plasmar o material até

fazê-lo assumir uma forma, em base a um arquétipo. No caso do ser humano, a forma que

ele deve assumir é a que está inscrita no seu núcleo, no seu centro vital. Por isso, a

atividade formativa tem que penetrar na alma da pessoa, também concebida como núcleo,

em modo que a forme e com ela todo o seu ser. No núcleo está a essência daquilo que a

pessoa deve se tornar e, portanto, a tarefa do psicólogo ou educador é conhecer esses

dinamismos para ajudar a pessoa a se tornar aquilo que nasceu para ser.

Palavras-chave: pessoa; Edith Stein; fenomenologia.

799
A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: CONTRIBUIÇÕES PARA A

PSICOLOGIA HOSPITALAR

Matos, V.C.A.S & Silva Jr, A.F. (Hospital Universitário Presidente Dutra)

E-mail: valcasmatos@gmail.com

A presente pesquisa propõe-se a investigar a compreensão hermenêutico-filosófica do

processo saúde-doença como contraponto a perspectiva biomédica; além de orientações

na perspectiva hermenêutica para a prática do psicólogo hospitalar. A hermenêutica-

filosófica fundada pelo filósofo Hans-Georg Gadamer (2012) estabelece uma

compreensão dos fenômenos humanos distante da racionalidade científica moderna. Em

seu livro intitulado O caráter oculto da saúde, Gadamer(2012) faz uma reflexão sobre o

binômio saúde-doença numa perspectiva humana, histórica, em contraponto a concepção

biomédica com enfoque na perspectiva biológica, e desta forma, reducionista. Entende-

se que a atuação do psicólogo no hospital exige conhecimento de sobre a existencialidade

dos sujeitos, mas por outro lado, uma aproximação dos conceitos de domínio médico,

para uma melhor compreensão do processo de adoecimento dos sujeitos. Para o alcance

dos objetivos estabelecidos pretende-se estabelecer uma análise hermenêutico-

comparativa do conceito de saúde-doença, buscando uma melhor compreensão deste

fenômeno para um direcionamento das ações do psicólogo hospitalar em sua prática

profissional.

Palavras-chave: hermenêutica-filosófica; psicologia hospitalar; saúde-doença.

800
CICLOTURISMO, EDUCAÇÃO AMBIENTAL E LAZER: PROCESSOS

EDUCATIVOS VIVENCIADOS NA SERRA DA CANASTRA

Clayton da Silva Carmo, Luiz Gonçalves Junior; (UFSCAR) & Denise Aparecida

Corrêa (UNESP, Bauru)

E-mail: spina002@gmail.com

O objetivo deste estudo foi identificar e analisar os processos educativos vivenciados por

um grupo de cicloturistas participantes do “Projeto de Educação χmbiental e Lazer”

(PEDAL), durante uma cicloviagem na região da Serra da Canastra, realizada em janeiro

de 2012. A pesquisa de campo envolveu o registro sistemático de notas em diários de

campo, os quais foram submetidos à análise qualitativa inspirada na fenomenologia. A

análise dos dados permitiu identificar processos educativos vivenciados relacionados a

conhecimentos de ordem técnica, quanto ao uso da bicicleta e ao planejamento de

cicloviagens, bem como, de aspectos geográficos e climáticos. Os dados também

desvelaram atitudes empáticas entre os membros do grupo na cicloviagem e entre as

pessoas que habitavam os locais percorridos. As frequentes situações de vulnerabilidade,

em certa medida, provocaram fortes relações de interdependência entre os membros do

grupo, favorecendo atitudes solidárias internas, ao mesmo tempo desencadeava na

comunidade tal sentimento para com o grupo. Além disso, a abertura que expõe o

cicloturista a essa vulnerabilidade possibilita experiência sensível ao ambiente.

Consideramos que a experiência promovida pela utilização da bicicleta pode favorecer

fruição crítica do lazer e da educação ambiental.

Palavras-chave: cicloturismo; educação; lazer.

801
A SALA DE AULA E O “MOMENTO DE BRINCAR”

Tagiane Maria da Rocha Luz (Faculdade de Educação UNICAMP)

E-mail: tagianemaria@yahoo.com.br

Este trabalho versa sobre a dinâmica do subprojeto ‘Pedagogia’ do Programa

Interinstitucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Pibid/Capes. A dinâmica do

referido subprojeto envolve atividades realizadas em uma escola pública do município de

Campinas, do estado de São Paulo, por dez graduandos-bolsistas dos cursos de Pedagogia

e Letras da Unicamp. Nessa escola, os alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental

experimentam, em sala de aula, uma área para ‘o brincar’ cujo objetivo central é o de,

com base no pensamento de D. W. Winnicott, instaurar um espaço potencial entre o

graduando e os alunos. As atividades dos graduandos, na instituição escolar, são

orientadas pela coordenadora do subprojeto ‘Pedagogia’ e pela autora do presente

resumo. Os graduandos são, tanto quanto possível, o ‘outro’ suficientemente bom no

vínculo com os alunos durante ‘o brincar’, e procuram registrar a dinâmica das crianças

na construção e no desenvolvimento desse brincar, com especial ênfase em relação

àquelas crianças que não brincam e que são as mesmas que apresentam maior dificuldade

na aprendizagem de conteúdos escolares e no relacionamento com os pares.

Palavras-chave: pedagogia; brincar; Winnicott.

802
A EMPATIA NA CONSTITUIÇÃO DO CORPO PRÓPRIO EM EDITH STEIN

Rudimar Barea (UFSM)

E-mail:rudi.brs@gmail.com

O objetivo deste trabalho consiste em descrever como Edith Stein concebe a constituição

do corpo próprio, no desenvolver da sua investigação sobre o tema da empatia. Essa

problemática consiste em um entendimento da pessoa humana como indivíduo psicofísico

capaz de relações intersubjetivas e conhecimento empático. Para ela o indivíduo

psicofísico consiste em elementos essenciais: O ‘eu puro’ do qual a sua mesmidade

ressalta frente à alteridade do outro; a ‘alma’ como unidade substancial constituída de

elementos categoriais: causalidade, variabilidade, unidade psíquica e física no fluxo das

vivências. Porém o segredo da leitura steiniana reside na passagem do ‘psíquico ao

psicofísico’, visto que ela apenas o separava como um artifício do método

fenomenológico, sendo que o elemento psíquico é sempre pertencente a um ‘corpo

próprio’ (Leib), capaz de comunicação com o outro e conhecimento através da ‘empatia’.

Com efeito, para cumprir com o nosso objetivo faremos na primeira etapa, apontamentos

fenomenológicos desta discussão sobre corpo próprio, principalmente tratado por Stein;

no segundo momento entra-se no campo da descrição da importância da empatia na

constituição do corpo próprio. Por fim, faremos algumas considerações sobre a abertura

que essa discussão nos oferece.

Palavras-chave: empatia: corpo próprio; Edith Stein.

803
EDMUND HUSSERL E ARON GURWITSHC EM TORNO DA PSICOLOGIA

DA GESTALT

Hernani Pereira dos Santos (UNESP, Assis)

E-mail: hernanops@msn.com

Em seu “Pós-escrito” de 1931, publicado por ocasião da versão inglesa de “Ideias”,

Edmund Husserl dedica um breve comentário à Psicologia da Gestalt. Ali, rejeita a

possibilidade de esta psicologia contribuir para o que entende ser uma “psicologia

descritiva”. Em suas principais obras, χron Gurwitsch, pelo contrário, destaca a

importância da Psicologia da Gestalt para a própria fenomenologia. O autor interpreta a

rejeição da “hipótese de constância”, atitude crítica levada adiante pelos teóricos da

Gestalt, como uma espécie de redução fenomenológica. Este é apenas um dos episódios

sobre os quais Gurwitsch se dedica a enfatizar a aliança entre fenomenologia e ciências.

Temos por objetivo analisar a diferença de atitude com relação à psicologia da Gestalt

por parte de Husserl e Gurwitsch e comentar a possível novidade do que se pode chamar

de “atitude gurwitchiana”.

Palavras-chave: psicologia da Gestalt; Husserl; Aron Gurwitsch.

804
DEUS E O DIABO NA CLÍNICA DO SOFRIMENTO PSÍQUICO GRAVE:

FENÔMENO RELIGIOSO E ESPIRITUALIDADE NAS CRISES DO TIPO

PSICÓTICA

Raquel de Paiva Mano & Ileno Izidio Costa (UNB)

E-mail: raqueldepaivamano@yahoo.com.br

A clínica psicológica na atualidade tem se deparado com variados tipos de sofrimentos

cuja identificação tem se mostrado cada vez mais complexa, ultrapassando questões

emocionais e morais, refletindo a espiritualidade ou a religiosidade na constituição do eu.

O sagrado, mais do que nunca, encontra-se presente na revelação da condição humana. A

clínica do Sofrimento Psíquico Grave (Costa, 2006) nos desafia a entender este fenômeno,

que por mais que sempre tenha existido, se apresenta na contemporaneidade de forma

efetiva. Há quase um século William James (1902/1986) afirmou que “para o psicólogo,

as tendências religiosas do homem hão de ser, pelo menos, tão interessantes quanto

qualquer fator pertencente a sua constituição mental”. Para o psicólogo fenomenólogo,

está o desafio de decifrar o sentido profundo dessas experiências religiosas e como os

seus símbolos, ensinamentos e ritos atuam no campo da subjetividade humana. Holanda

(1991), baseado em Husserl (1859-1938) discorre sobre os aspectos centrais da

Fenomenologia, afirmando que o fenômeno, ou melhor, aquilo que se revela e aparece,

não pode e não deve ser considerado independentemente das experiências concretas de

cada indivíduo. Utilizando o método fenomenológico, objetivamos discutir e refletir

sobre a existência da experiência espiritual nas situações de sofrimento psíquico grave,

especificamente nos casos denominados psicóticos e suas correlações, diferenciando a

experiência psíquica-espiritual da experiência de crise psicótica, buscando a compreensão

do significado que o mundo tem em particular para cada indivíduo. O estudo de caso que

805
ora apresentamos, nos dá uma dimensão da complexidade do sofrimento humano e a

necessidade de refletir e diferenciar a natureza da crise psíquica nos seus aspectos

psicopatológicos, existências e espirituais.

Palavras-chave: fenômeno religioso; psicose; fenomenologia.

806
GRUPO DE INTERVENÇÃO PRECOCE EM PRIMEIRAS CRISES DO TIPO

PSICÓTICA – GIPSI

Ileno Costa & Raquel de Paiva Mano (UNB)

E-mails: ilenoc@gmail.com, raqueldepaivamano@yahoo.com.br

O Grupo de Pesquisa e Intervenção Precoce em Primeira Crise do Tipo Psicótica do

Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília é formado por profissionais,

pesquisadores e estudantes das áreas de saúde, sociais e humanas (psicólogos, psiquiatras,

enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, acompanhantes terapêuticos,

antropólogos, advogados, sociólogos, dentre outros), constituindo uma equipe

multidisciplinar buscando construir uma nova concepção e atuação sobre os sofrimentos

psíquicos graves, tradicionalmente conhecidos como transtornos psicóticos.

Desenvolvemos pesquisas e serviços de avaliação, acompanhamento e intervenção junto

a indivíduos em primeira crise do tipo psicótica, na busca da compreensão do sofrimento

psíquico grave. O trabalho contempla estudos em psicopatologia, psicoterapia e

linguagem. Identificamos e promovemos ajuda imediata a indivíduos que estejam

experenciando sintomas do tipo psicótico, proporcionando intervenções clínicas de

cuidado e acompanhamento, minimizando as morbidades secundárias e os traumas de um

atendimento em serviços psiquiátricos. Temos como posturas básicas iniciais, questionar

conceitos, práticas e pressupostos da área, resgatando o sentido da saúde, mesmo diante

da doença, integrando diferentes saberes e experiências prestando um serviço

interdisciplinar integrado, do indivíduo à comunidade. Além da atuação clínica,

desenvolvemos pesquisas (bacharel, mestrado, doutorado). As metodologias qualitativas

são as primordiais, particularmente os estudos de caso, análises de conteúdo/discurso,

807
pesquisas-ação, hermenêutica da profundidade, análises de atos de fala, pesquisa de base

fenomenológica.

Palavras-chave: transtornos psicóticos; intervenção precoce; fenomenologia.

808
O CUIDADO COMO UMA ÉTICA: UM DIÁLOGO ENTRE EDITH STEIN E

DONALD WINNICOTT

André Luiz de Oliveira & Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, (USP)

E-mail: andol@usp.br

As relações de cuidado nos relacionamentos intersubjetivos humanos é um fator

significativo para promover o crescimento e o desenvolvimento dos seres humanos como

sujeitos éticos. χtravés da análise de um fragmento do livro “Os miseráveis” do escritor

francês Vitor Hugo, fazendo uso dos conceitos de “Devoção” de Winnicott e de

“entropatia” de Edith Stein, articulações são feitas no intuito de mostrar a importância do

cuidado estabelecido na relação entre Monsenhor Benvindo e Jean Valjean, personagens

do referido livro, para a mudança e transformação pessoal deste último, em sua trajetória

após esse encontro. O objetivo é destacar através do fragmento do livro, o quanto o

cuidado tomado como uma ética, ou seja, uma práxis de vida nas relações com o outro,

pode ser determinante e transformador na história pessoal dos indivíduos com a qual se

tem contato. A metodologia usada para realizar as discussões necessárias foi o método

dialógico do linguista russo Mikhail Bakhtin. Por fim, a questão da importância do

cuidado tomado como uma ética é levada para o ambiente clínico da psicologia, e se

conclui que o cuidar está na base do trabalho clínico e sua consideração como uma ética

é fundamental para a restauração do equilíbrio do paciente.

Palavras-chave: cuidado; Edith Stein; Winnicott.

809
A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO ATRAVÉS DA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA

Felipe Stiebler Leite Villela (USP)

E-mail: felipeslv@gmail.com

O presente trabalho visa apresentar importância da experiência literária enquanto

elemento formador do psicólogo. Para isso, buscamos explicitar a leitura de um livro

poético enquanto acontecimento vital, isto é, que não está restrito à apreensão racional,

mas que precisamente é vivido numa relação dialógica e afetiva. O resultado da leitura

será, portanto, o de uma repercussão na totalidade da existência. A partir dessa

configuração do ato da leitura, nos perguntaremos então a respeito do lugar da experiência

literária na formação do profissional psicólogo. Sustentaremos sua importância enquanto

elemento humanizador, na medida em que sensibiliza o leitor para a alteridade e ao

mesmo tempo promove uma ampliação compreensiva da existência. Esses dois fatores

têm profundas consequências tanto na dimensão teórica quanto prática da psicologia e,

portanto, influem de maneira direta na atuação do psicólogo. Em última análise, este

trabalho defende a necessidade de haver um espaço na universidade para a vivência da

literatura.

Palavras-chave: formação do psicólogo; experiência literária; psicologia.

810
A EXPERIÊNCIA DO DESPERTAR DO ESQUECIMENTO DO SER EM

HEIDEGGER

Elton Augusto Pinotti e Souza (USP)

E-mail: eltonpin@gmail.com

O artigo traça uma leitura de textos fundamentais da obra do filósofo Martin Heidegger

orientada pelo estudo do termo Ereignis, com o objetivo de compreender, em sua

filosofia, como se opera a diferença da experiência de velamento e de desvelamento do

ser. Veremos que o pensar mais próprio a respeito da questão e do sentido do ser

dependerá, para Heidegger, essencialmente de uma experiência apropriadora do ser –

denominada pelo termo alemão Ereignis –, uma vez que o problema do esquecimento do

ser só poderá ser pensado a partir do instante em que dele já se tenha despertado. Esse

evento implicaria o homem em uma condição de ultrapassagem do modo de conceber e

pensar metafisicamente a realidade. Assim, a revelação que se espera da Ereignis mostrar-

se-á como uma transformadora viravolta da visão da realidade humana, e de seu modelo

antropológico, em virtude de um “lance de olhos no interior do que é”.

Palavras-chave: despertar; esquecimento; Martin Heidegger.

811
LIBERDADE E NOÇÃO DE PESSOA NO ISLÃ: CATEGORIAS DE

ENTENDIMENTO INTERDISCIPLINAR

Isabel Munhoz Forero &Francirosy Campos Barbosa Ferreira (USP/FFCLRP)

E-mail: isabelmf@usp.br

O objetivo desta comunicação é apresentar a pesquisa em andamento do Departamento

de Psicologia da FFCLRP, que tem como eixo estruturante uma discussão interdisciplinar

entre a Psicologia, a Antropologia e a Filosofia a fim de construir uma análise sobre duas

categorias importantes em contexto islâmico, são elas: liberdade e noção de pessoa.

Consideramos que o desconhecimento da cultura, tradições e maneiras de interpretar estas

duas noções do mundo islâmico acarretam inúmeros preconceitos originando por sua vez

apontamentos, discriminação e agressões, na tentativa de impor a ideia própria de

liberdade sobre o outro, como no caso das mulheres que devem ser “salvas” de sua

"subjugação". A partir de uma leitura de algumas suratas do Alcorão e dos hadices do

Profeta Muhammad pretende-se explorar alguns pontos importantes para este debate. É

fundamental tomar as ferramentas das que dispõe a psicologia, a filosofia e a

antropologia, para ter um horizonte de sentido mais amplo sobre o conflito que nos

permita analisar essas questões porque a pergunta pela liberdade abrange a construção da

pessoa, além de ser um dos seus direitos humanos fundamentais, está configurado pela

interpretação de si próprio e do outro num contexto complexo mediado pelas relações de

poder, os enfrentamentos e os conflitos políticos assim como os religiosos.

Palavras-chave: pessoa; liberdade; islã.

812
CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA KIERKEGAARDIANA PARA A

CONCEPÇÃO DE INDIVÍDUO EM THEODOR ADORNO

Yonara Dantas de Oliveira (USP)

E-mail: yonaradantas@usp.br

A concepção de indivíduo na obra do filósofo Theodor Adorno é fundamental aos estudos

em psicologia que o adotam como referencial teórico. Enfatizamos aqui a concepção

emergente em sua tese de doutorado sobre Kierkegaard. Ao analisar de modo crítico as

concepções do teólogo, os pressupostos de sua concepção de indivíduo se delineiam. Para

Adorno, Kierkegaard se equivoca quando não vê que o indivíduo não é algo absoluto. Por

deixar que o indivíduo permaneça para si, em vez de passar ao seu outro, Kierkegaard

falsificaria o próprio sujeito, encerrando o indivíduo na aparência de seu ser-para-si,

enquanto ele mesmo é um ser social. Mas, de modo dialético, isso que Adorno ressalta

como crítica ao teólogo seria também sua mais contundente contribuição. Kierkegaard

teria sido capaz de farejar algo das mudanças que aconteceram com a experiência humana

no começo do alto capitalismo. As relações entre os homens se objetivaram de tal maneira

na sociedade moderna que o próximo não se relaciona imediatamente com o respectivo

próximo por mais de um instante. Apesar da indignação kierkegaardiana se dirigir menos

às condições estruturais do que aos sujeitos que as refletem, para Adorno, ele contrapõe

o progresso secular da sociedade ao esvaziamento do indivíduo.

Palavras-chave: teologia; Kierkegaard; Theodor Adorno.

813
ALTERIDADE E COMUNIDADE: A ARTE DE DAR A OUTRA FACE

Roberto Rosas Fernandes (USP)

E-mail: betorofer@uol.com.br

Este trabalho, baseado nas psicologias de Heinz Kohut e Carl Jung, procura apontar

padrões arquetípicos das sombras individual e coletiva. Quando inconscientes, atuam

como vetores de violência na família e na comunidade. Entre eles, destaca-se o

dinamismo do bode expiatório que, por ser autônomo e subproduto do narcisismo ferido

em sua onipotência, só pode ser refreado quando é conscientizado num vínculo de

alteridade, como o propiciado pela análise. Antes que isso aconteça, o indivíduo é

inconscientemente identificado com seus complexos e, portanto, sintônico com a fúria

narcísica, quando ela irrompe em seu psiquismo. Uma das maneiras de dar vasão a ela é

tornar o outro seu bode expiatório. Nessa posição, o sujeito permanece distante de sua

identidade ontológica. χtuando na lógica patriarcal do “olho por olho”, é impossibilitado

de “dar a outra face”, que, em termos psicológicos, é assumir o trabalho de crucificar o

ponto de vista do ego, capaz de se identificar com o poder e a destrutividade, e suportar

a tensão entre os opostos em si, para encontrar o símbolo transformador da consciência.

Torna-se, assim, a análise, uma atividade religiosa. Por outro lado, o “dar a outra face”,

literalmente entendido, leva ao recalque e à violência posterior.

Palavras-chave: alteridade; comunidade; sombra.

814
EM DEVOÇÃO: ENCONTROS EM BUSCA DO HUMANO

Klyus Vieira de Freitas & Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (USP)

E-mail: klyusvf@gmail.com

A pesquisa contextualiza, compreende e discute intervenções clínicas analisadas pelo viés

da psicanálise, mais especificamente pela teoria de D. W. Winnicott. O intuito é fomentar

reflexões críticas captadas nos encontros clínicos mediados pelo fenômeno da devoção

winnicottiana entre os terapeutas e pacientes. A partir do relacionamento vivencial

captam-se as falas, os conseqüentes sentidos dos discursos, análises não-verbais e

empáticas que buscaram maximizar a ação terapêutica, principalmente numa intervenção

qualitativa proveniente da devoção do terapeuta. O estudo justifica-se na relevância

clínica em seu aspecto experiencial, como uma proposta no atendimento clínico de acordo

com a compreensão psicanalítica do encontro humano. Para tanto, pesquisei os

referenciais teóricos da psicanálise de D. W. Winnicott, em associação com as vivências

práticas. As experiências têm mostrado que uma intervenção em devoção traz um

reconhecimento da condição humana do paciente, um lugar de expressão de si e,

conseqüentemente, há uma necessidade em compartilhar as vivências, o que resulta numa

ampliação do poder terapêutico no encontro de intersubjetividades.

Palavras-chave: devoção; encontro; Winnicott.

815
A MÍSTICA NA INTERFACE ENTRE O PSÍQUICO E O ONTOLÓGICO

Paulo Henrique Curi Dias (USP/FAPESP)

E-mail: kitodias@gmail.com

Este estudo trata das relações entre a mística e a Psicanálise. No início, se faz uma breve

introdução do tema, buscando-se encontrar uma definição para conceitos centrais, como

“espiritualidade”, “religião” e “mística”. Em seguida, delineia-se a justificativa clínica da

pesquisa no tema, estabelecida tanto para finalidades de diagnóstico diferencial quanto

para questionar as próprias fundações epistemológicas da clínica psicológica. A partir dos

conceitos de “psíquico e ontológico” de Gilberto Safra (2006) e da divisão feita por

William Parsons (1999) entre categorias de compreensão do tema (que destaca três

maneiras pelas quais este foi concebido: a clássica-reducionista, a adaptativa e a

transformacional), se abordará o tratamento da mística na clínica psicanalítica numa

interface essencial: como fruto de dinâmicas psíquicas ou como experiência de alteridade

ontológica. Assim, será traçado o perfil interpretativo de diferentes modos de se abordar

a mística na história da Psicanálise, problema que será referido através da necessidade de

uma revisão das fundações dos modelos antropológicos subjacentes às variadas

perspectivas clínicas.

Palavras-chave: psicanálise; mística; clínica.

816
CAMUS E "A PEDRA QUE CRESCE": CULTURA POPULAR,

RELIGIOSIDADE E COMUNHÃO

Gabriela Balaguer - USP

E-mail: gabibalaguer@usp.br

Esse trabalho traça relações entre a viagem de Albert Camus pelo Brasil, em 1949 e seu

conto “χ pedra que cresce”, publicado no livro O exílio e o reino (1957). Seguindo as

pistas biográficas deixadas em seu Diário de Viagem (1978), serão observadas as

experiências biográficas e sua produção literária a partir das vivências de D´arrast, espécie

de alter ego no conto. D´Arrast vive um verdadeiro encontro com um cozinheiro que

muito lhe ensinará sobre a dominação e seu remédio. D´Arrast é apresentado aos rituais

sagrados seja da cultura afro, seja do catolicismo popular brasileiro, pelas mãos do

cozinheiro. Mestre nos ensinamentos da violência e da opressão supranacionais, e,

portanto, de um sofrimento humano – daquela gravidade de que fala Bosi (2002), para

além dos traços nacionais. O surpreendente final com o gesto de D´Arrast, substituindo

tanto a observação passiva e exterior de D´Arrast (assim como do próprio Camus) pela

participação. Esse processo parece ser mediado por ritos coletivos em que as experiências

corporais e sensíveis permitem a passagem para o transcendente. A dimensão da graça é

alcançada pela saída súbita da condição de espectador da dor e sofrimento alheios para a

profunda participação e comunhão com o outro.

Palavras-chave: Camus; cultura popular; religiosidade.

817
FONTES DE APRENDIZAGEM EM COMUNIDADES BASEADAS EM

EMPREENDEDORISMO SOCIAL

Valentina Medrano (USP)

E-mail: valentinamedranocoley@hotmail.com

As comunidades baseadas em empreendedorismo social apresentam uma nova

configuração e ética de trabalho, com características centrais como a adoção de uma

orientação (ou missão) voltada para a criação e manutenção do valor e capital social

(diferentemente do valor econômico) a identificação e o firme diligenciamento na procura

de novas oportunidades de empreendimentos que viabilizem a consecução da missão da

organização, engajamento no processo de inovação e adaptação e aprendizado contínuo.

Esta aprendizagem traduzida a espaços organizacionais é compreendida como processo

psicossocial que inscreve à pessoa na comunidade facilitando processos de adaptação e

coesão. Com base nesta premissa, a discussão será orientada para a descrição de fontes

que facilitam e inibem este processo no âmbito comunitário.

Palavras-chave: comunidade; empreendedorismo social; aprendizado.

818
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE INÁCIO DE LOYOLA E A PSICANÁLISE:

UM DIÁLOGO POSSÍVEL

Maria Teresa Moreira Rodrigues

E-mail: mteresa.mrodrigues@gmail.com

Os EE (exercícios espirituais) são um instrumento de mudança, e quer passem por uma

eleição de vida ou mesmo por um crescimento espiritual, neles está em jogo uma

conversão, que é a versão teológica da mudança psíquica. Vividos “com grande ânimo e

liberalidade”, levam sempre a experimentar uma humanidade, que implica uma

transformação do ego, numa trama psíquica e espiritual, em diferentes níveis. Aquele que

busca os EE traz, quer queira quer não, uma histórica psíquica que o condiciona,

bloqueando ou libertando; fazer os EE é colocar essa sua história humana dentro desse

itinerário que o transformará, integrando todas suas dimensões pessoais. χquele que “dá

os EE” acompanha aquele que “os faz” com enorme respeito à sua liberdade, oferecendo-

lhe seu senso comum, seu realismo, seus conhecimentos, sua experiência, e contempla a

viabilidade humana, consciente do mistério de Deus. A Psicologia aqui considerada não

é um luxo e nem leva a um individualismo intimista; ela está a serviço da comunidade

humana, pois não se esquece de que o exercitante dos EE é uma pessoa solidária, fruto e

agente de uma história, que a chama a se libertar, mas vinculada a um povo, no

seguimento de Jesus.

Palavras-chave: exercícios espirituais: Inácio de Loyola; psicanálise.

819
O SEM-FUNDO HUMANO E AS FRATURAS DA RACIONALIDADE

Sandro Santos Da Rosa & Andrea Nicaretta (EST)

E-mail: sandromusik@hotmail.com

A complexidade humana, ou o sem-fundo humano, desafia as mais variadas abordagens

que compõem o campo do saber. De maneira geral as ciências visam compreender a

relação entre os seres humanos, desses com o mundo, com o devir, bem como suas

necessidades ante a existência. Com isso, este trabalho objetiva confluir os principais

conceitos que diferenciam – abismalmente – o ser humano dos demais seres vivos. Em

seguida, refletir-se-á acerca da instituição do ser humano, da racionalidade, da ruptura

que o separa do mundo e o faz indivíduo, do reconhecimento da alteridade e suas buscas

para sanar as fendas que fazem de tudo aquilo que lhe é externo algo estranho. Para a

elaboração deste escrito usou-se como metodologia a revisão das obras Antropologia

Filosófica, As encruzilhadas do humanismo e A instituição imaginária da sociedade,

produzidas respectivamente pelos seguintes autores: Ernst Casirer, Castor Ruiz e

Cornelius Castoriadis. Conclui-se, previamente, que os seres humanos, por mais que

façam parte de uma mesma cultura, têm no seu âmago vontades, anseios e causas

peculiares que configuram a subjetividade e a personalidade de cada um que, na relação

com os outros – pelo reconhecimento da alteridade – busca o fechamento de suas fendas

e fraturas existenciais.

Palavras-chave: sem-fundo humano; fraturas da racionalidade; filosofia.

820
ACOMPANHANDO INDIVÍDUOS TORNAREM-SE PESSOAS: EXPERIÊNCIA

ELEMENTAR E A RELACIONALIDADE TRINITÁRIA NO ATENDIMENTO

PSICOLÓGICO

Davi Chang Ribeiro Lin

E-mail: davichangbh@yahoo.com.br

O presente trabalho pretende evidenciar como a visão trinitária de pessoa em relação,

juntamente com o marco teórico da experiência elementar em psicologia tem sido

vivenciado e integrado na prática da psicoterapia fenomenológica. Inicialmente discutir-

se-á os relatos dos clientes a partir de uma escuta fenomenológica, que ao serem

aprofundados para além da queixa inicial, descrevem demandas existenciais legítimas por

relacionamentos eu-tu significativos em meio a emergência de uma geração impessoal.

Em seguida, a apresentação buscará um diálogo entre teologia trinitária, (tendo como

referencial os Pais Capadócios e Santo Agostinho) e a experiência elementar em

psicologia (proposta por Miguel Mahfoud baseado na formulação do teólogo Luigi

Giussani) como norteadores para a intervenção da prática clínica ao reconhecer a

dinâmica propriamente humana e propor posicionamentos que expressam o eu em

abertura relacional. Tanto a visão relacional da teologia trinitária, que diferencia

indivíduo de pessoa, quanto a psicologia da experiência elementar, que reconhece a

unidade da pessoa em sua dinâmica de exigências e evidências constitutivas, oferecem

contribuições significativas para o reemergir da pessoalidade no contexto do

acompanhamento psicológico.

Palavras-chave: Psicologia Clínica, Experiência Elementar, Teologia Trinitária.

821
IDEALIZAÇÃO NEURÓTICA DA IMAGEM E IDENTIDADE PASTORAIS NA

DINÂMICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA

Thomas Heimann (ULBRA)

E-mail: prof.thomasheimann@gmail.com

O conceito de Identidade sempre foi essencial para a psicologia. Na contemporaneidade

a identidade também se tornou um intrigante “problema” sociológico, conforme diz

Bauman (2004). Diante de uma sociedade marcada hoje pela fragmentação, indefinição e

imprevisibilidade, a questão da identidade torna-se um assunto em evidência para as

ciências humanas e sociais, na busca de melhor compreender e intervir sobre o indivíduo.

Nesse contexto, as identidades antes claramente sólidas diluem-se diante da liquidez do

mundo moderno. Até mesmo as identidades sociais, culturalmente construídas, se

tornaram transitórias, voláteis e incertas, dentre as quais a identidade pastoral. Essa crise

identitária foi identificada a partir da escuta terapêutica de pastores ao longo de oito anos,

estando, em grande parte, ligada a processos de idealização neurótica. O crescente

abandono de pastores do ministério ativo, além do aumento do distresse, esgotamento e

burnout entre essa categoria “profissional” também são preocupantes. Em suma, a

pesquisa procura analisar os processos psicológicos, sociais e culturais que contribuem

para a construção de uma imagem e identidade pastorais idealizadas, bem como sinalizar

para o sofrimento advindo dessa idealização, que certamente impacta diretamente sobre

a vida pessoal e profissional dos sacerdotes bem como sobre a vida das comunidades

religiosas atendidas por eles.

Palavras-chave: identidade; idealização neurótica; comunidade.

822
SOFRIMENTO PSÍQUICO NA ADOLESCÊNCIA: AT, UNIVERSIDADE E

COMUNIDADE

Margarida Mamede (Universidade Cruzeiro do Sul)

E-mail: mamede@uol.com.br

Em 2005 o curso de psicologia da Universidade Cruzeiro do Sul-SP, considerando a

necessidade de se estar atento às necessidades do mundo atual, criou na Clínica-escola do

Campus São Miguel Paulista, no extremo leste da cidade de São Paulo, o Projeto de

Acompanhamento Terapêutico visando contemplar o atendimento nessa modalidade

clínica a pacientes vindos da comunidade externa, recebendo, principalmente, além

daqueles com histórico psiquiátrico, crianças e adolescentes com queixas de dificuldades

na escola e na família, destacando-se os comportamentos ditos agressivos, a violência

contra si e contra outros e o desinteresse pela escola. Esses pacientes são atendidos por

alunos da graduação, supervisionados pela professora idealizadora, que usa como

referencial teórico a psicanálise winnicottiana e o pensamento de Gilberto Safra. Em 2008

uma parceria com a Fundação Tide Setúbal ampliou o Projeto de AT que foi estendido às

pessoas e adolescentes encaminhados por essa Fundação. Essa população vive no extremo

de São Miguel, em alta vulnerabilidade social, também com histórico de rompimentos e

queixas como as descritas acima, trazendo intenso sofrimento psíquico entendido por nós,

entre outros motivos, como decorrente da não participação na vida comunitária com

dignidade.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico; Winnicott; comunidade.

823
REFLEXÕES SOBRE O INSTRUMENTO CHAMADO EDUCAÇÃO

Maria da Conceição Aparecida Silva (Faculdade UNIESP)

E-mail: silvacida@hotmail.com

O objetivo desta comunicação é refletir a respeito do humano enquanto ser social a partir

do fecundo diálogo entre a filosofia e a psicanálise. Em Educação após Auschwitz, o

filósofo Theodor Adorno sintetiza de forma clara e direta a questão da educação. Para ele,

quaisquer reflexões acerca da educação devem iniciar-se a partir de uma profunda análise

sobre o que almejamos que um ser humano não pratique – isto é, que não seja conivente

nem concretize atos de crueldade como os testemunhados, por exemplo, nos campos de

concentração de Auschwitz. Adorno salienta, ainda, que os impensáveis horrores ali

praticados demostraram ao mundo o quanto é sério e poderoso o instrumento chamado:

Educação. A esse respeito torna-se relevante destacar a contribuição freudiana sobre a

teoria dos instintos destrutivos e o processo de identificação enquanto aprofundamento

central na temática educativa. Palavras-chave: Auschwitz, Instintos Destrutivos,

Identificação, Educação.

824
O ACONSELHAMENTO PASTORAL COMO FORMA DE CUIDADO JUNTO

A PESSOAS COM DEPRESSÃO

Fernando José Matias (EST)

E-mail: fernandojosematias@hotmail.com

A depressão é um dos transtornos contemporâneos mais frequentes entre as patologias

mentais, tanto assim que foi chamada de “resfriado da psicopatologia”. Essa sua

assiduidade faz com que se imponha como uma das patologias mais desafiadoras na

sociedade atual, revelando assim a necessidade de alternativas que sejam

metodologicamente refletidas e aprofundadas pelas mais variadas áreas do saber,

especialmente as das Ciências Humanas. Se propõe então, a partir de exploração

bibliográfica, o Aconselhamento Pastoral como possibilidade de intervenção e de cuidado

junto a pessoas fragilizadas por depressão. Conclui-se, preeminentemente, que a base

sobre a qual o Aconselhamento Pastoral tem a sua inquietação e interação é o sofrimento

humano, seja ele individual ou coletivo/comunitário. Sofrimento que se manifesta nas

mais diversas realidades em que as pessoas estão inseridas. Nesse sentido, o

Aconselhamento Pastoral busca por libertação e fortalecimento do ser humano em

situação de vulnerabilidade e fragilidade, tendo como base a fé cristã e a comunidade

eclesial como espaço terapêutico de cuidado. Percebe-se no Aconselhamento Pastoral

preciosas ferramentas que, como ação prática e refletida, visam interagir, entender e

intervir também no que se passa com quem está sofrendo por depressão.

Palavras-chave: aconselhamento pastoral; depressão; teologia.

825
REPERCUSSÕES CLÍNICAS DE UMA EXPERIÊNCIA DE MUSICOTERAPIA

COM PESSOAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO

Mariana Puchivailo (UNB) & Adriano Holanda (UFPR)

E-mail: maribrasilcp@yahoo.com.br

O trabalho teve por objetivo investigar as repercussões clínicas apresentadas por sujeitos

em sofrimento psíquico grave, frente uma experiência em grupo de Musicoterapia.

Tratou-se de um estudo qualitativo de orientação fenomenológica com onze sujeitos que

frequentavam um CAPS II de Curitiba. Foram realizadas dezessete sessões de

Musicoterapia em grupo e entrevistas individuais no início e no final do processo da

pesquisa. Utilizamos o método de Giorgi para analisar as entrevistas. Percebemos o

potencial da música no cuidado à Saúde Mental. Através de sua utilização é possível criar

um espaço mais descontraído, que facilita a interação e pode gerar um ambiente que tem

como foco a vida. A musicoterapia não é indicada a toda a população já que pode haver

desconfortos significativos em alguns membros do grupo ao entrar em contato com as

produções musicais feitas em grupo. Houveram indicativos de entrecruzamento entre

duas formas conflitantes de compreender o sofrimento psíquico grave e na forma da

atenção à saúde. Uma, ainda voltada a um enfoque na doença mental e a busca por um

retorno do doente a uma normalidade e, outra, colocando o sujeito como foco do processo

buscando compreender seu contexto e demandas para então modelar as formas de

cuidado.

Palavras-chave: musicoterapia: sofrimento psíquico; CAPs.

826
CONTRIBUIÇÕES DA FENOMENOLOGIA PARA ATUAÇÃO DE

PROFISSIONAIS NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE

Joelma Ana Gutiérrez Espíndula; Silva, C.S.M & Angolo, J.L.G. (UF Roraima)

E-mail: espindulajoelma@gmail.com

O estudo resulta do recorte da dissertação de mestrado em Ciências da Saúde pela UFRR,

no contexto da implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem

(PNAISH) de acordo com Ministério de saúde para faixa etária dos 25 a 59 anos das

equipes de saúde no município de Boa Vista, Roraima. Nesse contexto, o objetivo da

pesquisa fenomenológica foi compreender a atuação do enfermeiro, acerca das suas

experiências que viabilizam o cuidado humanizado para a população masculina na rede

de atenção básica. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa, atendendo

aos critérios da resolução 466/2012 que regulamenta a pesquisa com seres humanos.

Participaram nove (09) enfermeiros das Unidades de Saúde, de acordo com critérios de

inclusão definidos. A coleta de dados efetuou através de entrevistas semi-estruturadas,

que possibilitaram a obtenção dos relatos. Na análise fenomenológica foram apreendidos

dois pontos essenciais para a discussão: Compreensão do Conceito de Saúde e Políticas

Públicas e Compreensão da atuação do Enfermeiro na atenção básica. A ação do cuidado

desenvolvida pelos enfermeiros de modo significativo foi do lugar epistemológico do

humano estão relacionados aos aspectos biológicos, mas biopsicossocial e cultural, desse

olhar fenomenológico.

Palavras-chave: atenção integral à saúde; fenomenologia; enfermagem.

827
A RELAÇÃO ENTRE FENOMENOLOGIA E FILOSOFIA CRISTÃ NA

FENOMENOLOGIA DE EDITH STEIN

Mak Alisson Borges de Moraes & Tommy Akira Goto(UFU)

E-mail: makalisson@hotmail.com

O objetivo deste trabalho é discutir a relação entre a Fenomenologia e a Filosofia Cristã

na Fenomenologia de Edith Stein (1891-1942). Stein é uma filósofa e fenomenóloga,

discípula e assistente de Edmund Husserl. Edith Stein se dedica ao estudo da

Fenomenologia estudando temas como a empatia, a fundamentação filosófica da

Psicologia e das ciências do espírito e antropologia filosófica. No entanto, Stein rompe

com seu mestre, seguindo seu próprio caminho na busca pela verdade. Nesse caminho, a

sua conversão ao catolicismo influencia de forma decisiva seu pensamento. Após sua

conversão, Stein se dedica ao estudo da filosofia Cristã. No entanto, não deixa de ser

fenomenóloga, buscando fazer uma relação entre a Fenomenologia e a Filosofia Cristã.

Segundo Stein, a Fenomenologia contribuiu de forma decisiva para estabelecer uma ponte

entre essas duas correntes filosóficas. Um dos pontos de comunicação entre essas duas

filosofias destacado pela autora é a ideia da Filosofia como ciência estrita. Para discutir

esse tema será utilizado os seguintes textos: “O que é a Fenomenologia?” (Was ist

Phanomenologie?, 1924); “χ Fenomenologia” (Der Phänomenologie, 1932); "χ

Fenomenologia de Husserl e a Filosofia de Sto. Tomas de Aquino (Husserls

Phänomenologie und die Philosophie des hl. Thomas Von Aquin, 1929).

Palavras-chave: fenomenologia; filosofia cristã; Edith Stein.

828
SUBJETIVIDADE TRANSDISCIPLINAR: A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO

EPISTEMOLÓGICO INTEGRADO

Luiz Eduardo Valiengo Berni (Universidade Rose-Croix Internacional)

E-mail: berni@usp.br

χ χbordagem Transdisciplinar, a partir da “Carta da Transdisciplinaridade” (UNESCO,

1994) traz importantes contribuições para a ampliação da compreensão da formação da

subjetividade humana e a percepção da alteridade. Com foco na integralidade do Ser

Humano, pois numa atitude de rigor, abertura e tolerância, sob o lastro da laicidade

possibilita o diálogo entre racionalidades. Essas contribuições, teórico-propositivas,

articuladas numa metodologia participativa-ativa, tem sido aplicada na Psicologia (Social

e Clínica) para ampliar horizontes de pesquisa e atuação profissional, contribuindo para

a construção de um campo epistemológico ou paradigmático (Kuhn, 1969) articulando

áreas de forma intradisciplinar, tais como: as Psicologias Anomalística, Transpessoal,

Cultural e Social; interdisciplinar estabelecendo diálogos, com a Antropologia, História,

entre outras; e transdisciplinar dialogando com Saberes Tradicionais tais como: os

Indígenas e Esotéricos (orientais e ocidentais). Os resultados se materializam em

proposições do Sistema Conselhos de Psicologia, nas deliberações e moções do

Congresso Nacional da Psicologia (VIII CNP); na fundamentação de recursos clínicos

complementares; na publicação de livros tais como: “Psicologia e Povos Indígenas”

(CRPSP, 2010) e “Misticismo e Saúde numa Perspectiva Transdisciplinar” (χMORC,

2014) e em cursos de extensão (USP, URCI, UFPB), bem como em consultorias ao

Ministério da Saúde para implementação de Políticas Públicas no campo da Saúde Mental

Indígena.

Palavras-chave: subjetividade; transdisciplinariedade; psicologia.

829
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DA PRECE NA PRÁTICA CLÍNICA

Stella Maris Souza Marques & Thaíke Augusto Narciso Ribeiro (UFU)

E-mails: stella_msm@hotmail.com, thaike29@hotmail.com

Edmund Husserl (1859-1938), filósofo e fundador da Fenomenologia, foi crítico do

caráter objetivista e relativo da ciência positivista no estudo da subjetividade, buscando

outra ciência de rigor que considera o humano envolvido nos conhecimentos e resultados

produzidos pelo mesmo, ou seja, uma investigação da sua essência integral. Baseando-

nos nessa critica e evidenciando o estudo da vivência religiosa, destacamos o estudo

fenomenológico da fé. Na análise ontológico-fenomenológica de Paul Tillich (1886-

1965) que admite a possibilidade de uma psicologia da fé, esta procede

imprescindivelmente do centro do eu pessoal, sendo o ato mais integral, íntimo e global

do espírito humano, servindo como meio pelo qual percebemos e somos possuídos pelo

incondicional e infinito, transcendendo elementos racionais e não-racionais da vivência

humana. Fundamentada na análise fenomenológica da fé, considerando suas

características e servindo como uma forma de linguagem da mesma, temos a prece como

ato de transcendência, integralidade e experimentação da presença divina que pertence à

condição humana concreta. Portanto, por meio do diálogo entre fenomenologia da

religião e psicologia da prece, fundamentados em autores como Husserl e Tillich, entre

outros, discutimos a possibilidade de integrar o sentido da prece na prática clínica, como

forma fundamental de interiorização e autoconhecimento psicológico e espiritual.

Palavras-chave: prece; fenomenologia da religião; psicologia.

830
O TRATAMENTO E O CUIDADO COM A PESSOA HOSPITALIZADA

Yolanda Forghieri (USP)

E-mail: yolandaforghieri@uol.com.br

Este trabalho tem por objetivo ressaltar a importância do cuidado a ser prestado à pessoa

hospitalizada, pelos profissionais que lidam com ela. A partir de minha longa experiência

como psicóloga e aconselhadora terapêutica e o exame de vários autores pertencentes à

abordagem fenomenológica da psicologia, procurei encontrar motivos que pudessem

justificar o objetivo acima proposto. Nas ideias dos filósofos Merleau-Ponty e Buber e

nos psiquiatras e psicólogos Vandenberg, e Binswanger, encontrei os motivos pretendidos

que passo a descrever sucintamente. O ser humano é um ser-no-mundo, existe sempre em

relação a algo ou a alguém. Entre suas peculiaridades humanas destacam-se: a

temporalidade (ser), a espacialidade (o mundo) e a liberdade. A pessoa hospitalizada,

quase sempre em decorrência de alguma enfermidade grave, encontra-se bastante

restringida na atualização de suas peculiaridades humanas, principalmente em sua

liberdade. Assim sendo, torna-se necessário que esta seja fortalecida pelo cuidado,

manifestado no amor, consideração e respeito dos profissionais que lidam com ela.

Palavras-chave: pessoa hospitalizada; cuidado; psicologia.

831
COMUNICAÇÕES ENTRE FENOMENOLOGIA, PSICOLOGIA E HISTÓRIA

Leandro Penna Ranieri (USP)

E-mail: ranierileandro@gmail.com

Este trabalho tem como objetivo mapear os movimentos de aproximação e

distanciamento entre fenomenologia, psicologia e história, enquanto campos e métodos

de investigação próprios das ciências do espírito. No nascimento da psicologia científica

e da fenomenologia, encontramos a relação de ambas na conjunção entre ciências

humanas e as ciências naturais. Da fenomenologia para a história, o desenvolvimento da

fenomenologia por Edmund Husserl percorre os sentidos da temporalidade da

experiência, levando a discussões sobre a historicidade. Da história à fenomenologia, o

desenvolvimento da historiografia dado pela História Nova permitiu a ampliação do olhar

investigativo debruçando-se compreensivamente sobre os fenômenos social e cultural.

Temos as abordagens voltadas à oralidade, à cultura material e à experiência sensorial

que fazem uma aproximação inclusive com a psicologia. O pensamento fenomenológico

engloba princípios da história (temporalidades) e da psicologia (singularidades

existenciais). Contudo, as outras ciências possuem procedimentos epistemológicos

próprios que seriam fundamentais para uma ciência do espírito. A constituição da

fenomenologia, sobretudo nas reduções (eidética e transcendental), permite uma atenção

dedicada ao fenômeno investigado, num caminho de revelação daquilo que é o próprio

do mesmo. Assim, a relação entre temporalidades e dimensões existenciais é uma

intersecção possível do olhar investigativo entre fenomenologia, psicologia e história.

Palavras-chave: fenomenologia; psicologia; história.

832
O VOLUNTARIADO NA PERSPECTIVA DO TRABALHADOR VOLUNTÁRIO

EM UMA COMUNIDADE LUDOVICENSE

Neiliane Lima da Silva & Borba, J.M.P.

E-mail: neiliane.br@gmail.com

O voluntariado é uma atividade não remunerada que busca convergir a disponibilidade

do voluntario com o interesse social e comunitário. Existem estudos sobre sentido,

significado e representações sociais do voluntariado, contudo este trabalho resulta de uma

investigação fenomenológica onde a intenção foi compreender o que é o trabalho

voluntário para quem exerce o voluntariado. A perspectiva teórico-metodológica foi a

fenomenologia husserliana enquanto caminho de retorno àquilo que fundamenta a

intenção de ser voluntário. Para isso seguiu-se a suspensão de pré-concepções sobre a

temática do voluntariado, sobre o perfil daquele que exerce tal trabalho e/ou motivações

para tal exercício, procurando compreender o modo de ser e estar no mundo do trabalho

na perspectiva daquele que o exerce: o vountário. Neste sentido foram entrevistados

voluntários que atuam nos eixos saúde, educação e formação profissional numa

comunidade periférica ludovicense utilizando entrevistas gravadas cuja análise foi

realizada com base no método fenomenológico a fim de compreender a vivência de

voluntariado. A proposta em questão procurou agregar contribuições de uma

compreensão fenomenológica ao campo da Psicologia do Trabalho. Neste

direcionamento centrou-se no voluntariado enquanto campo que envolve segmento de

trabalhadores cuja vivência tem sido pouco explorada na medida em que as pesquisas da

referida subárea em Psicologia têm se centrado na compreensão do trabalho enquanto

atividade remunerada.

Palavras-chave: voluntariado; trabalho; comunidade.

833
POSICIONAMENTO VOLUNTÁRIO AUTÊNTICO NA OBRA DE EDITH

STEIN

Achilles Gonçalvez Coelho Junior (Faculdades Pitágoras, Montes Claros) e Miguel

Mahfoud (UFMG)

E-mail: achillescoelho@yahoo.com.br

A experiência de liberdade de posicionamento diante da realidade tem sido um tema

recorrente na obra de autores fundamentados na fenomenologia. Discípula de Edmund

Husserl, Edith Stein aprofundou as análises das vivências propriamente humanas,

identificando o posicionamento voluntário diante das reações espontâneas que se

apresentavam decorrentes do encontro com a realidade externa ou das vivências

interiores. Contudo, nem todo posicionamento corresponde a uma vivência que expresse

a marca da pessoalidade. O presente trabalho visa analisar as características do tipo de

posicionamento autêntico na obra de Edith Stein. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica

onde analisamos a obra da autora a partir do método fenomenológico, destacando as

características essenciais da vivência em questão. O posicionamento voluntário implica

aceitação ou rejeição das reações espontâneas motivadas por motivos genuínos,

implícitos ou explícitos, presentes em cada vivência da realidade e/ou das relações

propriamente comunitárias. O posicionamento voluntário autêntico ocorre quando a

pessoa considera os valores pessoais apontados pelo núcleo pessoal, formando assim uma

personalidade autêntica.

Palavras-chave: Edith Stein; posicionamento voluntário; pessoa.

834
EDITH STEIN E A FORMAÇÃO HUMANA: FUNDAMENTOS PARA UMA

EDUCAÇÃO INTEGRAL

Magna Celi Mendes Da Rocha & Antunes, M.A.M (PUC/SP)

E-mail: magmendes123@yahoo.com.br

Esta é uma pesquisa bibliográfica baseada nos escritos pedagógicos de Edith Stein com

os seguintes objetivos: identificar o sentido de formação na obra pedagógica de Edith

Stein; discutir sobre a formação espiritual como componente fundamental na formação

humana; e contribuir, através da visão de pessoa humana e seu itinerário formativo para

o que hoje chamamos de educação integral. A formação humana é central na obra

pedagógica de Stein que, apoiando-se na fenomenologia husserliana, na visão

aristotélico-tomista e na doutrina católica, percorre um caminho filosófico, psicológico,

antropológico, pedagógico e teológico para aclarar essa questão, chegando a conceber o

ser humano como uma unidade indivisível de corpo, psique e espírito, que tem em si um

potencial a desenvolver, podendo chegar à sua plena realização ou não. Stein questiona

uma educação que não leve em consideração o ser humano completo, que se limite a

fornecer um acúmulo de informações, visando apenas o desenvolvimento intelectual. Para

Stein, uma formação humana autêntica forma o homem de modo integral e o conduz à

plena realização de si mesmo, em vista do bem comum, pois cada pessoa que se

desenvolve de maneira harmoniosa contribui para o crescimento e desenvolvimento do

mundo como um todo.

Palavras-chave: educação; Edith Stein; formação humana.

835
TEOLOGIA DO ORI-BARÁ: CONTRIBUIÇÕES DAS RELIGIÕES AFRO-

BRASILEIRAS SOBRE A NOÇÃO DA PESSOA

João Luiz Carneiro - FTU

E-mail: joaocarneiro@ftu.edu.br

A partir das contribuições F. Rivas Neto, médico de formação e sacerdote das religiões

afro-brasileiras, é possível associar o conceito de Ori ao destino e à mente. Adquirir um

Ori é conquistar uma consciência individualizada. Esse destino pode ser modelado pelo

odu – signo que direciona sem solução de continuidade, o caminhar da pessoa. Entender

a pessoa pelo seu Ori e pelo respectivo Odu é admiti-la como livre para se manifestar,

pois o destino não é fechado. As adversidades (doenças sociais, mentais e físicas) seriam

expressões de um distanciamento da pessoa com seu odu-signo. Mesmo nestes casos, o

destino pode ser reescrito, retificado por intermédio de vários rituais de fundamento

preceituados por Orunmilá-Ifá – o Orixá do destino. A presente comunicação visa

apresentar aspectos introdutórios da Teologia do Ori/Bará – Corpo/Cabeça como unidade

indivisível. Busca também discutir relações espirituais com o corpo humano e a pessoa.

Teologicamente falando, o corpo humano pode ter pontos de equivalência do Ori Aiyê

ou Ori Inu, a contra parte do Ori Orun. Compreender estes conceitos teológicos significa

devassar uma perspectiva complexa das religiões afro-brasileiras sobre a pessoa que

destoa das concepções tradicionais ocidentais, notadamente cristãs.

Palavras-chave: teologia; religiões afro-brasileiras; pessoa.

836
A RELAÇÃO ENTRE CRIADOR, CRIATURA E O GRUPO EM J. L. MORENO

Anete Roese (PUC/MG)

E-mail: anete.roese@gmail.com

A primeira obra de J. L. Moreno, intitulada As Palavras do Pai (1922), revela o processo

inicial da criação da teoria socionômica cujo eixo central é o complexo espontaneidade-

criatividade, que inclui a dimensão liberdade-responsabilidade. Curiosamente, esta

primeira, e emblemática, obra tem um caráter profundamente teológico. Nela, Moreno

apresenta os fundamentos de uma teoria do campo da psicologia cujo pressuposto inicial

é a relação da criatura com o Criador; analisa a complexa e íntima relação entre criatura

e Criador; apresenta a noção de Eu-Deus e se refere à escrita da obra como uma

“experiência transcendental”. Conclui que para mudar uma cultura é necessário antes

mudar o conceito de Deus. Em seus escritos posteriores Moreno desenvolve o conceito

de ser humano como um ser de vínculos, um ser espontâneo-criador e um ser cósmico; e

considera o grupo terapêutico como uma micro-sociedade, um ramo da medicina e

também um primeiro passo no cosmo, pois nele o mundo – com seus medos e valores não

está excluído. A obra As Palavras do Pai formula uma ciência sem a exclusão de Deus,

propõe os eixos iniciais da teoria socionômica na qual pensa a subjetividade da Divindade

e da criatura e a crise da relação entre ambas, ainda atuais no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: criador; criatura; J. L. Moreno.

837
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS E A RECAÍDA: ANÁLISE À LUZ DA

EXPERIÊNCIA ELEMENTAR

Dionete Maria Mendes Nogueira & Coelho, Jr, A.G. (Faculdades Pitágoras,

Montes Claros)

E-mail: dionete_mendes@yahoo.com.br

A recaída é considerada, em alguns estudos, como processo que compreende não apenas

o retorno ao uso da substância química, mas também os momentos anteriores marcados

por indícios de que o abstêmio possa recidivar. A experiência elementar é a referência

que permite ao sujeito avaliar criticamente seus atos ao comparar seus anseios genuínos

com aquilo que ele experiencia na realidade. Os Alcoólicos Anônimos (AA) visam à

abstinência do álcool tendo por fundamento evitar o primeiro gole. Trata-se de pesquisa

fenomenológica, na qual foram entrevistados cinco membros de Alcoólicos Anônimos de

três grupos de Montes Claros-MG. Empregou-se a análise fenomenológica,

fundamentada em van der Leeuw, com o objetivo de analisar a expressão da experiência

elementar no processo de recaída vivenciado por membro de AA, a partir da elaboração

da experiência dos sujeitos, a qual possibilitou o agrupamento de quatro categorias

temáticas principais: 1. Pertencimento; 2. Posicionamento pessoal; 3. Exigência de ser;

4. Experiência religiosa. A dinâmica da experiência elementar do alcoolista, expressa no

processo de recaída, é orientadora para seu posicionamento diante de si e do mundo. No

Brasil, estudos sobre a recaída no alcoolismo são escassos, requerendo aprofundamento

em investigações que considerem a elaboração da experiência dos próprios sujeitos.

Palavras-chave: Alcoólicos Anônimos; recaída; experiência elementar; fenomenologia.

838
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOTERAPIA AO ENFRENTAMENTO DO LUTO –

COM A PALAVRA MÃES ENLUTADAS

Freitas, J. & Zomkowski, T. L.(UFPR)

E-mail: thayane.leonardi@hotmail.com

Face à proliferação e popularização de práticas terapêuticas breves que prometem

resolução rápida a problemas existenciais, como o luto, julgamos necessário refletir de

que modo e em que medida o processo psicoterapêutico pode ser eficaz frente a essa

vivência. Para tanto, desde uma perspectiva fenomenológica, procuramos dar voz àqueles

que durante o luto buscaram ajuda psicoterapêutica. Três mães enlutadas participaram de

entrevistas abertas, individuais e de caráter exploratório, respondendo à pergunta

disparadora: “você pode relatar a vivência de seu processo terapêutico durante o luto?”.

O relato delas evidenciou elementos da terapia que contribuíram ao alívio de sua dor,

formando 5 constituintes que seguem os passos metodológicos propostos por Giorgi. São

elas: terapia: uma fala diferenciada; relação terapêutica; vivência de sentir-se

compreendido; terapeuta enquanto ouvinte habilitado e vivência de encontrar

entendimento. Com base em seus depoimentos, aferimos que em detrimento do domínio

técnico ou da abordagem utilizada, a sensibilidade emerge enquanto característica

essencial da qual deve dispor o terapeuta que se propõem a assistir o enlutado.

Acreditamos que os dados desvelados possam enriquecer as reflexões dos psicoterapeutas

sobre seu próprio fazer - sobre as possibilidades e limites da sua atuação diante do Ser

que sofre pela perda.

Palavras-Chave: Fenomenologia, Luto, Psicoterapia

839
NEUROSES ECLESIÁSTICAS E SEU TRATAMENTO NO EVANGELHO

Karl Heinz Kepler (CPPC)

E-mail: karkep@gmail.com

O ambiente da igreja evangélica tradicional e especialmente a sua pregação favorece o

desenvolvimento de determinadas neuroses. Estas acabam sendo instaladas m nome de

Deus, e para seu tratamento será útil manejar muito bem conceitos bíblicos igualmente

apresentados em nome de Deus. O temor de Deus revela-se a principal causa do

adoecimento emocional dentro das igrejas. A boa notícia é que o próprio meio evangélico

dispõe de recursos e conteúdos extremamente restauradores. O psicoterapeuta terá muita

dificuldade em "competir com Deus" se não dominar razoavelmente bem alguns

ensinamentos bíblicos que sirvam a um propósito libertário. Na comunicação pretendo

explicar sucintamente as duas principais neuroses diagnosticadas, e também os principais

conteúdos libertários que poderão servir ao aconselhamento pastoral ou tratamento

psicoterápico.

Palavras-chave: neurose eclesiástica; aconselhamento pastoral; teologia.

840
INTERPESSOALIDADE NA PÓS-MODERNIDADE: UMA MUDANÇA DE

PARADIGMA

Adriano Aparecido Apolonio & Cleiton José Senem (Secretaria da Educação do

Estado de São Paulo)

E-mail:professoradrianojau@gmail.com

Com o advento da globalização o ser humano se encontra, constantemente, diante de

mudanças de paradigmas, onde diversos aspectos de sua identidade passam a ser

submetidos a uma série de construções e desconstruções, respaldadas por uma autonomia

racional e separação do velho homem metafísico. Diante disso, esclarecer de maneira

satisfatória o que o identifica enquanto pessoa, principalmente no contexto em que aponta

prevalecer a impessoalidade e o hiper-individualismo, tornou-se desafiante para as

ciências humanas. Os conflitos subjetivos do homem, principalmente diante dos

questionamentos de ameaças aos seus valores individuais, em que julgam essenciais à sua

existência como um Eu, tornou-se fenômeno imprescindível para o homem moderno. A

contribuição da longa trajetória da tradição teológico-cristã, do mistério trinitário,

constituído na relação Eu-Tu-Ele, amplamente apresentado pelos padres capadócios, se

faz fecundo no entendimento da própria existência da pessoa humana e referência de

modelo orgânico de interpessoalidade. Não é apenas uma perspectiva religiosa, mas

também cultural, onde se apresenta com grande valia para o diálogo filosófico-

psicológico apontando a interpessoalidade com um paradigma fundamental para o

entendimento do ser humano na atualidade.

Palavras-Chaves: Pós-modernidade; Pessoa; Relações interpessoais.

841
A PRESENÇA DA FENOMENOLOGIA DE EDMUND HUSSERL NA

FILOSOFIA JAPONESA DE KITARO NISHIDA

Tommy Akira Goto355 (Universidade Federal de Uberlândia)

E-mail: prof-tommy@hotmail.com

A presença da Fenomenologia de Edmund Husserl na filosofia japonesa de Kitaro Nishida

Tommy Akira Goto1 RESUMO A Fenomenologia Transcendental de Edmund Husserl

(1859-1938) foi introduzida no Japão em torno de 1910 pelo filósofo e budista Kitaro

Nishida (1870-1945). Nishida não é reconhecido apenas por introduzir a Fenomenologia,

mas é também conhecido pela fundação da primeira escola propriamente filosófica no

Japão – no sentido ocidental – que mais tarde foi denominada de “Escola de Kioto” (Kioto

Gaku Ha). O termo “Escola de Kioto” foi cunhado em 1932 por Tosaka Jun em um artigo

intitulado “χ filosofia da Escola de Kioto”, cuja finalidade era apresentar a filosofia de

Nishida e de seu sucessor Hajime Tanabe, considerados assim os primeiros representantes

da filosofia em diálogo com o budismo japonês. Além disso, Nishida foi responsável pela

primeira divulgação sistemática do pensamento fenomenológico no Japão, apesar de não

ter conhecido pessoalmente o filósofo Husserl, tal como os seus alunos que foram à

Alemanha estudar diretamente com o fenomenólogo. O filósofo japonês começou os

estudos decisivos das Investigações Lógicas e das Ideias entre os anos de 1911 e 1916,

tendo continuado nos anos de 1920 e 1940. Entretanto, mesmo sendo um estudioso e

355
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Doutor em Psicologia Clínica
(PUC-Campinas), Mestre em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo), Co-Presidente
da Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAFE), Membro-colaborador do Circulo
Latinoamericano de Fenomenologia (CLAFEN), Membro-assistente da Sociedad Iberoamericana de
Estudios Heideggerianos (SIEH). Pesquisador do Grupo de Pesquisa da UFU – CNPQ/CAPES
“Contribuições da Fenomenologia de Edmund Husserl e Edith Stein à Psicologia: fenômenos psicológicos”
e autor de livros sobre Psicologia Fenomenológica e Fenomenologia da Religião (Editora Paulus).

842
divulgador das ideias da Fenomenologia na época, ainda não é possível dizer que a sua

filosofia se desenvolveu de maneira fenomenológica. Na verdade Nishida teve um

pensamento original e próprio, ainda que tenha sido possível identificar em sua trajetória

a inclusão e a influência de alguns dos conceitos fenomenológicos. Em sua obra

“Indagação do ψem” (Zen no kenyu, 1911) é possível encontrar pontos de contato

importantes entre as duas filosofias como, por exemplo, quando afirma: “o mundo da

fenomenologia é o mundo da experiência pura”. Essa relação e outras tantas se percebem

dissolvidas e comentadas em quase toda a sua obra filosófica, principalmente na ideia da

filosofia ter de assumir o caráter intuitivo e descritivo no pensar filosófico, estando

presente ainda na discussão e na análise crítica de várias questões fenomenológicas, tais

como: consciência, intencionalidade, problema do conhecimento e o próprio método

fenomenológico. Cabe ressaltar, por fim, que assim como comenta Hajime (1924) no seu

artigo “Novo giro na Fenomenologia”, não se podem evitar certas dúvidas a respeito das

críticas que o mestre Nishida fez à Fenomenologia, apesar de ao mesmo tempo ser ele um

grande estudioso e intérprete do pensamento husserliano no Japão.

Palavras-chave: Escola de Kioto; Filosofia japonesa; Experiência pura.

843
O AUMENTO DO CONSUMO DE ÁLCOOL EM MULHERES: UMA

REFLEXÃO HEIDEGGERIANA

Marciana G. Farinha (IPUFO)

E-mail: mgfarinha@hotmail.com

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde o alcoolismo é uma das

principais causas de morte no mundo, independentes da faixa etária, da classe social ou

nível cultural. Objetivo: Refletir sobre o consumo de álcool em mulheres a partir de

Heidegger. A partir dos conceitos heideggerianos contidos na obra de Ser e Tempo refletir

sobre o consumo de álcool. Inicialmente fizemos uma busca de publicações científicas na

base de dados BVS-ULAPSI, com os unitermos: alcoolismo feminino posteriormente

refinando com mulheres e abuso de álcool. Foram selecionados 98 artigos, desses 56

tratavam da problemática do uso abusivo do álcool em mulheres. Os resultados apontam

que o início ou aumento do uso se deu devido a fatores como: separação do cônjuge,

perda e problemas, amizades, condições de trabalho insatisfatórias ou insalubres,

conflitos familiares – famílias disfuncionais, abuso físico, psicológico e / ou sexual,

desemprego, violência doméstica. Percebe-se com esses resultados que o consumo de

álcool se apresenta em indivíduos com movimento distanciado de si mesmos, vivendo de

um modo inautêntico explicitando uma desordem emocional, há ainda um distanciamento

dessas mulheres de vivências mais significativas. |Há a necessidade de oferecer ajuda para

essas mulheres que favoreçam que elas possam melhor cuidar de si mesmas.

Palavras-chaves: álcool; mulheres; Heidegger; adoecimento psíquico.

844
ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: PRÁTICA EFICAZ PARA

REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA?

Marciana G. Farinha (IPUFU)

E-mail: mgfarinha@hotmail.com

Neste trabalho buscou-se refletir sobre a prática do acompanhamento terapêutico como

intervenção aliada no tratamento em saúde mental com pessoas portadoras de sofrimento

psíquico. Essa proposta de intervenção ocorreu em um Programa de Saúde da Família

com pessoas que ali eram acompanhadas e faziam tratamento no CAPS ou Ambulatório

de Saúde Mental. Para este trabalho foram entrevistadas 6 pessoas portadoras de algum

tipo de sofrimento psíquico que eram acompanhadas por 5 agentes comunitárias. Foi

realizado por meio de entrevista com a questão norteadora: “Fale-me como você percebe

a atuação do acompanhante terapêutico no tratamento dos pacientes com sofrimento

psíquico”. Os relatos foram gravados e transcritos na íntegra e analisados sob a

perspectiva da metodologia qualitativa fenomenológica, fundada na Fenomenologia de

Martin Heidegger. Como resultados, tanto as pessoas portadoras de sofrimento psíquico

como as agentes comunitárias puderam notarr um aumento qualitativo nas interações dos

pacientes com os familiares, com a equipe de saúde e com a comunidade, maior adaptação

com o meio ao redor, aderência nas atividades propostas tanto nos dispositivos de saúde

primária como secundária Com este estudo é possível perceber a importância da inserção

do Acompanhamento Terapêutico na equipe de atendimento em saúde mental pública.

Palavras-chave: acompanhamento terapêutico; sofrimento psíquico; atenção primária,

fenomenologia

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ANEXO I – PROGRAMAÇÃO DO CONGRESO

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