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HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE
Gilberto Safra
(Organizadores)
Publicação digital.
ISBN: 978-85-86736-60-5
RC467
2
I CONGRESSO INTERNACIONAL PESSOA E COMUNIDADE:
ORGANIZAÇÃO GERAL
COMISSÃO ORGANIZADORA
COMISSÃO CIENTÍFICA
3
Profa. Dra. Florinda Martins – UCP, Porto
COMISSÃO DE APOIO
4
Isabelle Gayon - Tradutora de francês
APOIO
PARCERIAS
Graduação - ANPEPP
Ressalva: Os textos apresentados são de criação original dos autores, que responderão
individualmente por seus conteúdos ou por eventuais impugnações de direito por parte
de terceiros.
5
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
TRABALHOS COMPLETOS
CONFERÊNCIAS
no Brasil colonial
Marina Massimi...............................................................................................................72
Em que solo se nutre a ciência? Michel Henry: para uma cultura interdisciplinar
Florinda Martins.............................................................................................................93
Jean-Marie Barthélémy.................................................................................................121
6
Maristela Vendramel Ferreira.....................................................................................165
Gilberto Safra................................................................................................................197
MESAS REDONDAS
Clélia Peretti..................................................................................................................222
de pacientes graves
7
Danilo Salles Faizibaioff...............................................................................................330
COMUNICAÇÕES ORAIS
8
Renata Ferreira Munhoz................................................................................................502
étnico-raciais
9
Notas sobre a ontologia freudiana – articulações entre ontologia, ética e estética
PÔSTERES
Thiago de Almeida.........................................................................................................762
RESUMOS
Ileno Costa.....................................................................................................................791
10
Roberta Vasconcelos Leite ............................................................................................798
Canastra
Rudimar Barea………………………………………………………………..........….803
O cuidado como uma ética: um diálogo entre Edith Stein e Donald Winnicott
11
Liberdade e noção de pessoa no Islã: categorias de entendimento interdisciplinar
Adorno
Gabriela Balaguer.........................................................................................................817
contemporânea
12
Sofrimento psíquico na adolescência: AT, universidade e comunidade
psíquico
Yolanda Forghieri..........................................................................................................831
13
Edith Stein e a formação humana: fundamentos para uma educação integral
Marciana G. Farinha....................................................................................................844
primária?
Marciana G. Farinha....................................................................................................845
ANEXO I – Programação do Congresso......................................................................846
14
APRESENTAÇÃO
15
NÚCLEO DE PESQUISA E LABORATÓRIO PROSOPON
Instituto de Psicologia
compreensão da Pessoa Humana, por meio de seu ethos, abordada no vértice ontológico.
trabalho do Prof. Dr. Gilberto Safra1 - acompanhado posteriormente pelo Prof. Dr. Andrés
Eduardo Aguirre Antúnez, que também o acompanhava no LET e com o qual compartilha
Dentre eles destacamos: Profa. Angela Ales Bello e Prof. Lubomir Zak da
Savoie, Chambéry.
1
Iniciado na Pontifícia Universidade Católica com o Laboratório de Estudos da Transicionalidade (LET).
16
Prosopon ou Pessoa
cristianismo na teologia dos capadócios. Nela a pessoa é entendida como ser de liberdade
e relacional, apresentando-se de modo singular, sem que seja possível sua objetificação
sua dignidade, pois como ser de ação constitui sentidos, funda mundos, encontrando sua
complexidade, sem ser reduzida a coisa ou a um conceito, de modo que seu gesto possa
emergir em meio à vida privada e pública como ação pessoal e política. Esta noção torna-
humana é posta em questão por meio da hipertrofia do horizonte tecnológico que ameaça
pacientes que preservem a comunicação do sofrimento vivido por eles, sem reduzi-lo ou
transformá-lo em uma abstração teórica. A partir desse autor e em diálogo com a filosofia
17
consultas terapêuticas do psicanalista inglês Donald Winnicott, se oferece a oportunidade
do litoral de São Paulo em 2012 e foi se desenvolvendo. Em 2013 essa ideia foi
compartilhada com a Profa. Angela Ales Bello, Irmã Jacinta Turolo Garcia, Prof. Márcio
2
O primeiro evento do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon foi o seminário internacional Interface
entre Psicanálise e Literatura: visitando lmre Kertész, organizado pelos Profs. Gilberto Safra e José Alberto
Moreira Cotta, realizado no IPUSP em abril de 2014. Disponível em: http://www.youtube.com
18
Fernandes e Profa. Clelia Peretti em reunião realizada na casa do Prof. Safra em setembro
de 2013. Incluir o Núcleo em primeiro lugar visa mostrar as pesquisas a serem realizadas
e colocadas em prática no Laboratório, por sugestão da Profa. Ales Bello, bem acolhida
interesse das pessoas e a delicada situação que ocorria na universidade devido à greve, os
Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP, por ele coordenado, na Vila Clementino
O Congresso
19
O evento, apoiado pela FAPESP3, CAPES4 e CNPq5, foi um sucesso. Contou com
desse evento. Agradecemos aos colaboradores que enviaram seus textos e esperamos que
interdisciplinar.
Comissão Organizadora
3
Processo FAPESP n.2014/10.498-9
4
Processo CAPES/PAEP n.4949/2014-61
5
Processo CNPq /APV n.453.550/2014-2
20
O INCONDICIONAL DA CONDIÇÃO HUMANA
Florinda Martins
Em 1963 Michel Henry publica uma extensa obra sob o título A Essência da
Manifestação6. Uma obra cuja tese consiste em mostrar que o invisível revela o que o
visível elimina e oculta. Tese essa que se desenvolve como que em antítese7 ao conceito
suposto é ser o visível a revelar o invisível, embora tendo este como fundamento daquele.
necessariamente pela questão do acesso à Vida. Uma Vida que faz prova de si, revelando-
se no processo constitutivo do nosso próprio ser, no qual nos sentimos viver. Um processo
no qual participamos pelo que com a verdade da Vida se dá a verdade de nós próprios:
somos revelados a nós próprios no advir da Vida mesma. Assim a intriga vivo/vida mais
6
Michel Henry, L’Esse e de la Ma ifestatio , Paris, PUF, 1963. [EM].
7
Michel Henry, «Narrer le pathos» in Phénoménologie de la vie, T. III. Paris, PUF, 2004, pp. 310-311.
8
EM, p. 557 «A determinação ontológica positiva da Noite constitui, no seu ser idêntico à vida, a
efetividade originária da fenomenalidade pura e da sua essência».
21
da fenomenologia à teologia9. E isso porque, se em verdade podemos ver na
invisível em cada vivo, aparecer sempre novo como sempre nova é a nossa história
pessoal e comunitária.
enquanto uma cristologia fenomenológica – foi feita em 1998. Nesse ano, M. Henry
sou a Verdade, a primeira das obras de M. Henry a ser traduzida para Português10.
na cultura. Como o texto do convite para o lançamento da obra, a tinha apresentado como
desenvolvesse um pouco mais a ideia expressa no convite. Cabe aqui dizer que por
diálogo ecuménico entendemos não apenas o diálogo inter-religioso, mas o diálogo entre
nesse vínculo com ela, a sua mais originária verdade. Uma verdade que, porquanto
publicadas num artigo sob o título C’est moi la Vérité: Para uma cristologia
9
D. Janicaud, Le tournant théologique de la phénoménologie française, Paris, Combas, 1991.
10
Michel Henry, C’est oi la Vé ité: pou u e philosophie du h istia is e, Paris, ed. Du Seuil, 1996.
Tradução Portuguesa de Florinda Martins Eu sou a Verdade: para uma filosofia do cristinaismo, Lisboa,
Vega, 1998.
11
Flo i daàMa ti s,à«C està oiàlaàV it :àpa aàu aà istologiaàfe o e ol gi a,àin Itinerarium, Ano XLII, nº
155, Maio-Agosto, 1996, pp. 475-480.
22
consideração, de M. Henry, não apenas a obra Eu sou a Verdade, mas ainda o texto Difícil
democracia12. Além disso, à altura, estava ainda bem presente, em todos os participantes,
estes textos, apresentados pelo próprio M. Henry foram alvo de um intenso debate em
especificamente, com o texto Difícil liberdade. Todavia, mais do que o confronto entre
vida invisível, no limite de toda a redução13. Hoje, ainda que diferenciemos ecumenismo
centra-se, a nosso ver, na constituição da fenomenologia da vida poder ser uma cristologia
vivos na Vida. Sendo à luz dessa condição que tanto Democracia como liberdade; tanto
complexidade do debate religião, filosofia e sociedade, orientaremos este texto por uma
questão ainda mais abrangente do que a de 1998, atrás referida. Começaremos por
para de seguida avaliarmos a atualidade das questões, no que à vida social e comunitária
12
Michel Henry, «Difficile Démocratie», in Michel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Seuil, 2001, pp 39-54.
Tive acesso a este texto de MH e a outras obras suas antes da sua publicação.
13
Para a fenomenalidade da prova do limite ver de François-David Sebbah, L’ép eu e de la li ite:
Derrida, Henry, Levina set la phénoménologie, Paris, PUF, 2001.
14
José Borges de Pinho, Ecumenismo: situações e perspectivas, Lisboa, UCP Editora, 2011, p. 18.
15
Rudolf von Sinner, Confiança e convivência: reflexões éticas e ecuménicas, São Leopoldo, Sinodal/EST,
2007, pp. 43-67.
23
dizem respeito. Tal significa que, em vez de optarmos por prosseguir o caminho trilhado,
desde então por M. Henry – caminho que vai de uma cristologia fenomenológica para
completam as teses então enunciadas -, recuaremos ao início do seu debate com a própria
manifestação é o efetivo processo da vida»; ela é «a Palavra em que tudo está contido, o
nome e a apelação, o que designa e o que mostra» (1963)18; «religio é este vínculo interior
do vivo à vida» (1996)19. Uma mesma ideia une estas definições: a manifestação
compreende quer uma cristologia fenomenológica quer uma qualquer outra forma de
expressão religiosa como o mostram também esta outra afirmação: «a religião não
pertence ao homem como uma experiência singular, mas como sua essência. Ela designa
o vínculo interior do vivente à vida, da qual aufere a sua condição de vivente, na qual ela
prova tudo o que ele prova»20. Do animismo e do politeísmo à última sociedade religiosa
16
Michel Henry, Encarnação: uma filosofia da carne, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001.
17
Michel Henry, Palavras de Cristo, Lisboa, Ed. Colibri, 2003.
18
EM, pp. 571 e 351, respetivamente.
19
Michel Henry, «Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 53.
20
«Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 40.
21
Michel Henry, «Difficile démocratie», i Mi hel He : l’ép eu e de la ie, Paris, Cerf, 2001, p. 40.
24
ingénuas de ateísmo22 (1963), as expressões religiosas são inteligíveis apenas à luz do
uma vez por todas, delimitado»; se ela pode encontrar «intuições fundamentais na poesia
nosso viver. Pelo que «Toda a crença, por muito estranho ou absurdo que pareça ser, é
uma crença da vida em si mesma e, no limite, é-lhe idêntica»25. É da crença da vida que
as outras crenças vividas em contextos singulares ou outros procedem ainda que não raro
provamos. Seria assim interessante, neste contexto, ver por que é que a filosofia de M.
Henry se afasta de qualquer tipo de gnose26. Todavia deixamos apenas a referência, para
filosófico, na prática de uma imensa antítese» que ele trabalha. E vejamos agora por que
22
EM, p. 509 e 510.
23
Michel Henry, «Eux en moi: une phénoménologie», in Phénoménologie de la vie, T I, Paris, PUF, 2004,
pp. 208 e 209.
24
CMV, pp. 7-19.
25
Michel Henry, «La question de la vie et de la culture» in Phénoménologie de la vie, T. IV, Paris, PUF,
2004, p. 24.
26
Michel Henry, »La vérité de la gnose» in Phénoménologie de la vie, T.IV, Paris, PUF, 2004, pp. 131-143.
25
é que esta afirmação se adequa na perfeição à fenomenologia, nomeadamente ao conceito
de manifestação.
Num pequeno texto intitulado «O que é uma revelação»27, M. Henry deixa claro
a ela é dado revelar-se. Pelo que o que os fenomenólogos entendem por manifestação
A Essência da Manifestação faz prova do que denuncia. A tarefa não se fica pelas
862 páginas que compõem a obra. Esta é antecedida por uma introdução, publicada depois
sendo ainda seguida de um Apêndice cujo título e extensão poderia bem figurar também
ele como uma obra. O título do Apêndice é Pôr a claro o conceito originário da revelação
27
Mi helàHe ,à«Qu est- eà u u eà e elatio ?»àin Archivio di Filosofia, nº 1-3, vol.LXII, 1994, reeditado
in Michel Henry: vie et revelation, Pu li atio sàdeàL U i e sit àdeà“ai t-Joseph, Beyrouth, 1996, pp. 87-
93.
28
Michel Henry, Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 25. Neste texto Michel Henry chega
mesmo a afirmar a não fenomenalidade do conceito de manifestação e, por conseguinte, uma não
fenomenologia.
29
Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965.
30
EM, pp. 863-906.
31
Para esta questão ver de Marc Herceg «Michel Henry lecteur de Hegel» in Dossier Michel Henry, Paria,
L ágeàd Ho e,à ,àpp. 269-280.
26
caracteriza-os o monismo ontológico – secção I -, isto é caracteriza-os uma forma de
monismo: tudo o que ainda não é visível pode vir a sê-lo. A secção III – A estrutura
central é a de que o invisível revela o que o visível ofusca e elimina32. Tese que se faz eco
«o invisível não é um conceito antitético da fenomenalidade» (EM 550); «por não ser um
determina-a constituindo-a» (EM 553); «toda a vida é por essência invisível; invisível é
Vida invisível, porém absolutamente manifesta, conhecida por nós que nela
vivemos com total confiança. Quem de entre nós duvidou, hoje, ao levantar-se, da
modo como cada um de nós a usufruiu foi certamente diferente: para uns foi um prazer
levantar-se, para outros foi com algum desconforto que o fizeram…Ora o que aqui esteve
em causa, e o que está em causa na secção III da obra EM, é a inteira confiança na
manifestação dos poderes da vida em nós. Poderes que a secção IV desenvolve no sentido
32
EM, 552.
27
Estes são os dois sentidos da imanência da vida: enquanto na secção III a vida
o afeto revela-se como força e poder. Nesta última, o poder do sentimento é vivido como
sentimento de poder: poder exercer os poderes nos quais somos inteiramente constituídos
e assim participar do enredo da vida: o enredo do real. Diz M. Henry: «a relação entre
consideramos estar a verdadeira inversão fenomenológica: todos os nossos atos são atos
sagrados pois todos eles nos vinculam à vida sendo o nosso viver nela julgado e
manifesto. Não explico a minha vida a minha vida explica-me. Vejamos como. Ao ligar
do poder da finitude ser razão ou fundamento de si. «O poder apenas mostra que é um
poder, dado que nos encontramos de imediato em sua posse, na imanência radical do
tradicionais poderes do cogito «sei que sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que
afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que desconhece muitas, que quer e que não
quer, que também imagina e que sente»37, nem depois dos acrescentos do duque de Lynes
- que ama, que odeia – nem mesmo dos acrescentos que hoje, sabiamente, a ciência e a
33
EM, 552.
34
EM, p. 811.
35
Husserl, Meditações Cartesianas, Trad. de Maria Gorete Lopes e Sousa, Lisboa, Rés-Editora, § 44. p
124..
36
Mi helàHe ,à“ig ifi atio àduà o eptàd i o s ie tàpou àlaà o aissa eàdeàl ho e,ài àMi helà
Henry: auto-donation, Paris, Beauschesne, 2004, p.100-101.
37
Descartes (AT VII, 25)
28
arte lhe apõem38. Fenomenologicamente o desespero é um poder tal como o querer39. O
que será mais tarde confirmado por M. Henry ao falar do poder do temor: «o poder está
em relação consigo mesmo, prova-se imediatamente, da mesma forma que o temor está
ele é também prova da nossa originária relação com outrem. O Outro está sempre
presente. Presente até na relação connosco mesmos: o outro dá-se como afeto.
a primordial verdade de nós mesmos. Uma verdade que apenas na relação com outrem
conhecemos.
presente nos encontros tidos com ele em Portugal. Lembramos apenas e para terminar a
sua passagem pela Porto 2001, Capital europeia da cultura. O título da sua conferência
«eles em mim: uma fenomenologia»41 é expressão da leitura que MH fez do tema para o
qual foi convidado a falar, a 14 de Setembro desse ano: «os outros em eu».
pertencem a um corpo canónico dito filosófico nem a ele delimitado uma vez por todas;
38 Não é em uma, nem duas, nem três passagens que esta dimensão do afeto é referida em Descartes. Michel
Henry consagra um capítulo ao afeto da visão, na obra a Genealogia da Psicanálise, a partir da expressão
de Descartes, at certe videre videor (AT, VII, 29) – à e toà ueà eà ejoà e … ueà eàsi toà e …át àpo ueà
essa é a definição de nós mesmos, seres humanos: A questão é que esta definição foi parcialmente
aplicada ao conhecimento dos objetos. O curioso é que isso esteve presente no curso da história da
filosofia de Descartes aos nossos dias. Ora como um pretenso jogo de palavras - Escolho /logo existo
acrescenta Amit Goswami à definição de Descartes38, Diogo Infante, preocupo-me, logo existo, ou então
«jogo, logo existo» in A Filosofia do futebol (2012).
39
EM, p. 852.
40
Michel Henry, Auto-donation, Paris Beauchesne, 2004, p. 217.
41
Michel Henry, «eux en moi: une phénoménologie» in Phénoménologie de la vie, T.I, pp. 208 e 209.
Reedição.
29
pois também se encontram intuições fundamentais algures, na poesia, literatura, textos
nós?
Como restituir à vida o seu poder e a sua felicidade de viver a não ser uns com os
filosofia e sociedade.
42
Michel Henry, «Eux en moi: une phénoménologie» in Phénoménologie de la vie, T.I, pp. 208 e 209.
Reedição.
30
TRABALHOS COMPLETOS
31
CONFERÊNCIAS
32
COMPRENDERE LE PSICOPATOLOGIE
E-mail: alesbello@tiscali.it
Riassunto: Per comprendere un caso clinico e per orientarsi sulla diagnosi e sulla terapia
non basta riferirsi al DSM, cioè al Manuale Diagnostico e Statistico dei Disturbi Mentali,
di cui è stata pubblicata nel 2014 la quinta edizione, perché si tratta della proposta di
schemi che intendono includere tutti i casi e pretendono di dare indicazioni generali. Al
contrario, qui si si vuole mostrare che solo un’indagine sulla singolarità può consentire di
avvicinarsi alla malattia mentale. Ciò non esclude l’utilizzazione di criteri, ma questi
PHENOMENOLOGICAL APPROACH
Abstract: On occasion of the issue of DSM 2014 the author of the paper intends to show
that the schemes contained in it are not sufficient to understand the meaning of the mental
33
diseases. On the contrary only a research about our singularity can make possible a
diagnosis and a therapy. In any case to proceed in understanding we need some criteria
human being. From the philosophical point of view the analyses performed by Husserl
and Edith Stein are very useful and Ludwig ψinswanger’s and ψruno Callieri’s proposals
are very important from a psycho-pathological point of view. Their idea of a global
approach to the human existence and their digging in the human interiority can be threads
for a therapy which must be based on the deep encounter of therapist and suffering person.
conosce tali disturbi e che indica le modalità della loro cura, svolgendo, quindi, una
modo molto ampio, proprio quelle patologie definite “psichiche”, che non appaino
immediatamente legate alla corporeità. Si può subito notare che l’uso del vocabolo “psico
due aspetti dell’essere umano, quello corporeo e quello psichico, che saranno oggetto di
enigmatico territorio, che si definisce “psiche” e che si ritiene che possa essere affetto da
patologie.
A proposito del termine psiche, è interessante risalire alla lingua greca, dalla quale
esso è tratto. Scrive Eraclito (sec. VI a.C.): “I confini (peirata) dell’anima (psyché) per
quanto tu ne vada in cerca non li trovi, anche se percorri tutte le strade, così profondo
34
(bathon) è il senso (logon) che essa ha”43 dove l’aggettivo bathus (profondo) è stato anche
inteso, ad esempio da Edmund Husserl nella Crisi delle scienze europee, alla quale in
seguito farò riferimento, come l’abisso di cui non si conosce il fondo. Ma qual è il
“Psiche” era un termine attribuito nella lingua greca a ciò che nella lingua latina è
indicato con “anima”; entrambe le parole hanno origine nell’antica lingua indoeuropea,
significando “soffio”, “alito”, ma soffio e alito “cosmico”. Infatti, pur derivando da due
radici diverse, anima da “n”, donde “anemos”, vento in greco, e psiche da “apsu”, radice
testimoniata nel sanscrito per indicare ciò che si origina dall’acqua primordiale, mostrano
entrambe che l’essere umano proviene proprio dall’energia vitale primordiale. Come è
noto, nelle culture arcaiche tutto era legato ad una visione metafisico - religiosa della
realtà e l’essere umano era la concretizzazione più esplicita di ciò che dà la vita a tutte le
Nelle due lingue si era ben compreso il senso di questa dimensione insondabile,
eppure presente, intuitivamente colta come presente, accanto ed oltre al corpo. Ma perché
accanto ed oltre? A quale esperienza ci si rifà per costatare questa presenza? Credo che
tale esperienza abbia due fonti: una sulla linea di ciò che Eraclito mostrava con la sua
traumatica visione del cadavere, al quale manca qualcosa, un principio vitale, che non si
43
Eraclito, Frammento 45 nella numerazione di Diels e Kranz, tradotto da me liberamente.
35
Per rimanere nella cultura greca, psiche era intesa come ciò che rende umano
l’umano e che sopravvive ad esso, quindi, come qualcosa di più valido rispetto alla vita
Platone “divina”.
Non è possibile in questa sede ripercorrere le vicende dei due termini: psiche /
nozione di anima, perché troppo legata ad una visione spirituale e metafisica dell’essere
umano, si è tornati all’antico vocabolo “psiche” nella speranza che si fosse dimenticato il
suo significato originario e che si trattasse di un termine neutro, asettico, che potesse
sembrerebbe una novità, ma bisogna ammettere che non c’è alcunché di radicalmente
qualcosa di antico è espresso con parole nuove; alcuni aspetti prima solo accennati sono
scienze le hanno per un verso semplificate, per un altro complicate, ma non eliminate, e
bisogna riconoscere tale situazione se non si vuole rimanere abbagliati da ciò che riluce
etimologia rimanda alla radice indoeuropea “pat”, la quale nel verbo greco pasco, che da
essa deriva, indica essere soggiogati e, quindi, sopportare; il sostantivo pathos si riferisce
alla sofferenza come effetto di ciò che si subisce e questo può essere la malattia. Bisogna
chiarire, perciò, il rapporto fra malattia e sanità, anzi, al fondo, - so di dire qualcosa di
36
impopolare - fra “normalità” e “anormalità”. E tutto ciò è molto più complicato nel caso
delle malattie mentali, nelle quali non sembra implicata direttamente la corporeità.
mentali? Per sanare che cosa? Per ridare equilibrio? Un ritmo di vita “normale”? Normale
dilemma, appare subito che l’obiezione posta dall’altro non sia facilmente superabile.
D’altra parte, non si può rimanere nel dilemma. Come risolvere la cosa? Si inseguono qui
spesso qualcuno chiede aiuto in quanto si rende conto di vivere un disagio. Qual è il
Certamente c’è una differenza fra malattie fisiche e disturbi – e già la parola
psichico possa costituire una modalità dell’esistenza e, in quanto tale, si presenta come
un’impronta fortemente esistenziale, quindi, si può discutere se sia o meno una malattia.
Quali sono, però, i limiti soggettivi ed oggettivi del disagio, che non si possono superare,
si presenta subito una diversità e, forse, una contrapposizione di punti di vista rispetto a
quell’indagine attenta ai disturbi psichici, cioè, usando il termine nel senso tradizionale
37
per indicare la disciplina, alla psico-patologia, proprio perché pathos è sofferenza
prodotta da “qualcosa”. Dove risiede la differenza fra i due approcci? Il punto di vista
dell’universalità sono inevitabilmente messe in crisi nel caso della psicopatologia? E non
iniziare.
delle strutture, ciò non significa che non ci si renda conto della loro insufficienza a
cogliere la singolarità.
viceversa, tra i quali si genera una tensione non facilmente eliminabile, mi sembra
presente fin dalle origini della speculazione greca. Riprendo la lettura di alcuni frammenti
di Eraclito, il pensatore presocratico che, a mio avviso, affronta nel modo più stimolante
le tematiche antropologiche. Come è noto, egli distingue gli esseri umani in desti e
dormienti, perché i primi “pensano” e, quindi, mettono in evidenza che “il mondo è uno
indubbiamente, svalutativa della condizione del dormire, perché indicativa del “non
44
Frammento 89 (Diels –Kranz).
38
pensare”, ma sulla quale ritengo che si debba riflettere: si tratta del ruolo dei dormienti:
“…, ma quando prendono sonno, ciascuno si rivolge al proprio mondo”45 e quando ciò
mondo”46, quindi la loro posizione nel mondo, tutt’altro che evasiva, è, al contrario,
produttiva. Forse non sono “speculativi”, ma sono “attivi” ed operosi, si direbbe, “gente
intellettuale e vita pratica, il ruolo imprescindibile della singolarità. Certo vedere solo il
proprio mondo (idios kosmos, dice Eraclito) può indicare una chiusura egoistica seguita
della difficoltà di una vita in comune (koinos kosmos), in questo senso l’atteggiamento è
vedrà in seguito -, ma ci sono anche le istanze del singolo, che è necessario prendere in
forte da poter assumere corpi diversi, ma rimanere sempre se stessa, essendo immortale.
singolarità e la comunità.
Credo, allora, che la chiave per affrontare le questioni sopra proposte stia nel
chiasmo fra universalità delle strutture/singolarità della persona. I disturbi mentali, nella
45
Ibid. (è sempre il frammento 89)
46
Frammento 75 (Diehls-Kranz).
39
Sono sempre più grata al destino? Alla provvidenza? In ogni caso, a ciò che ha
sarebbe molto lunga, ne nomino uno che non essendo più fra noi, li racchiude tutti – anche
perché, se non tutti si identificano con le sue posizioni, tutti colgono che aveva indicato
una strada che non si può ignorare – mi riferisco a ψruno Callieri. E’ stata proprio la
frequentazione con lui che ha allargato l’orizzonte delle mie riflessioni, non soltanto
perché coltivava una disciplina diversa dalla mia, che mi incuriosiva, ma perché l’oggetto
Sono sempre di più consapevole del fatto che la cultura occidentale, in cui siamo
immersi, permeata della mentalità filosofica greca, tenda all’universalità. Ciò non
costituisce un’assurdità, al contrario, sostengo che sia necessario per orientarci: abbiamo
umano.
linguaggio è universale, perfino il nome proprio, che non si riesce a personalizzare fino
in basso, per tornare poi verso l’alto; utilizzo in questo caso il suggerimento di Husserl,
il quale, però, al contrario di ciò che sto facendo, raccomandava di muovere von unten,
dal basso, per andare in alto (oben), tuttavia si rendeva conto come, qualche volta, fosse
40
processo genetico che ha condotto fin lì. Seguo, allora, una via filosofica, quella che
vantaggio di cogliere l’essere umano movendo da uno scavo interiore; in tal modo, sarà
possibile anche rispondere alle questioni sopra poste: che cosa è la psiche? E che cosa è
che sia capace di riflettere su se stesso; per lo meno questo è il risultato di un’analisi
comparativa condotta dal fenomenologo soprattutto con il mondo animale. Dal secondo
volume delle Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica47 è
primo passo da compiere per avviare una riflessione che colga radicalmente, cioè
interpretazione già data ed anche di ogni posizione d’essere che potrebbe essere messa
in dubbio per far emergere l’esperienza vissuta della cosa con il suo correlato, cioè il
fenomeno della cosa stessa. Ciò consente di entrare nella dimensione dei vissuti
stesso. L’oggetto può non essere immediatamente sottoposto ad’analisi e, quindi, messo
47
E. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica, vol.II, tr. it. di V. Costa,
Einaudi, Torino 2002.
41
tra parentesi. L’attenzione si sposta sulla complessità del mondo interiore, un mondo
non caotico, ma ordinato, in quanto sottoposto a regole, in cui sono presenti momenti e
Husserl sottolineerà negli anni Trenta, quasi alla fine del suo percorso
intellettuale, che la messa fra parentesi, o epoché, che lascia come residuo la
di Eraclito con questa soggettività, varrebbero per essa le sue parole “Qualsiasi strada
tu percorra non arriverai mai a trovare i confini dell’anima, tanto profondo è il suo
qualsiasi orizzonte si dischiuda esso ridesta altri orizzonti; tuttavia il tutto infinito,
nell’infinità del suo movimento fluente, è orientato verso l’unità di un senso, ma non è
Questa è la ragione per cui l’analisi non può essere fatta una volta per tutte; siamo
destinato a fallire, di dare una lettura definitiva. Si tratta, piuttosto, di approcci, che ora
Da ciò sorge anche la difficoltà di comprendere gli stessi risultati a cui giunge Husserl,
perché non è possibile delineare una mappa completa di questo territorio accidentato.
48
E. Husserl, La crisi delle scienze europee e la fenomenologia trascendentale, tr. it. di E. Filippini, Il
Saggiatore, Milano 1961, p. 196. Qui Husserl sta citando il Frammento 45 di Eraclito da me sopra
commentato (cfr.nota 1).
42
Si parla dell’io, dell’io puro, della coscienza, dell’anima, della psiche, dello spirito, ma
χbbiamo iniziato dall’epoché e dalla messa in evidenza degli atti del soggetto, atti
che nella lingua tedesca sono indicati come Erlebnisse, espressione intraducibile nella
lingua italiana se non con una frase: “ciò che è da me vissuto”, ridotta brevemente a
“vissuto”; ma che cosa è da me, da noi vissuto? Ciò che viviamo si scinde nell’atto,
l’atto del percepire, del ricordare, dell’immaginare e del pensare e così via, e nei
contenuti di tali atti, il percepito, il ricordato, e così via che a sua volta rimanda alla
e ciò è sostenuto sia da Husserl sia dalla Stein -, dobbiamo prescindere per il momento
dalla cosa esistente, come si è già indicato, e concentrare l’attenzione sul rapporto
percepire-percepito come presente all’interno del soggetto, quindi, sull’atto vissuto dal
soggetto, ad esempio quello del percepire, come possibilità del percepire stesso.
rimandano l’uno all’altro e che costituiscono la struttura essenziale del soggetto, inteso
come ego, io in quanto soggetto, ma anche degli altri soggetti, scoprendo, in tal modo,
come si è detto sopra, è colui che fa l’analisi, manifestando la propria attività – in altre
parole è colui, ad esempio, che procede nella ricerca filosofica –, ma è anche colui che
Nel tentativo di delineare una mappa relativa all’essere umano preso nella
complessità dei momenti costitutivi, si può iniziare, come fanno i fenomenologi, proprio
dalla coscienza, da intendersi non come un “luogo”, ma come una nuova regione
43
Erlebnisse che sono correlati alla coscienza “pura” “…finora non delimitata nella sua
peculiarità “, allora “l’essere da mostrare – egli continua- “non è altro se non ciò che
per motivi essenziali può essere indicato come ‘puri Erlebnisse’, ‘pura coscienza’ con i
suoi ‘puri correlati’ e d’altra parte il suo ‘puro io’ “ e conclude: ” l’espressione
Sulla scia del maestro, Edith Stein scrive nel suo libro Introduzione alla filosofia:
“la coscienza non è una scatola che raccoglie in sé i vissuti, ma questi stessi vissuti
L’essere cosciente non deve essere inteso solo e immediatamente come un atto della
interiore che illumina il flusso del vivere e nel defluire stesso lo rischiara per l’io vivente
Si può notare che sia per Husserl sia per la Stein fondamentale è la correlazione
fra la coscienza e l’io e a questo proposito è importante indicare che si delineano diversi
aspetti dell’io. In primo luogo, l’io puro, io definito da Husserl come quella capacità di
riportare tutto ciò di cui si ha esperienza ad un punto unitario. Esso è colto nella
correlazione con i suoi atti vissuti, quali il percepire, il ricordare, il giudicare, il sentire,
il volere, è in riferimento agli oggetti in modi diversi secondo gli atti che compie ed è
questo tempo immanente”52 scrive Husserl, intendendo che l’io permane in questo o in
49
E. Husserl, Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica I, cit., p. 75.
50
E. Stein, Introduzione alla filosofia tr. it. di A. M. Pezzella, a cura di A. Ales Bello, Città Nuova Roma
1998, p. 131.
51
Ivi, p. 152.
52
E. Husserl, Idee II, cit., p. 107.
44
quell’atto di coscienza pur non essendo un momento reale o una parte costitutiva di
esso.
da Husserl ed è quella che consente di cogliere l’identità dell’io, la sua non dispersione,
perché, l’io o il soggetto puro non si genera e non trapassa, al contrario allora, l’io puro
entra ed esce di scena, è possibile anche che l’io puro non si ritrovi affatto, quando non
Come si può notare il tema della costituzione reale dell’essere umano non è
trascurato: si può dire che l’io puro e la coscienza sono lo specchio sul quale si riflettono
i vissuti che provengono dalle “realtà” della psiche e dello spirito, perché se l’avvio
della ricerca si ha dalla parte della regione d’essere della coscienza e dell’io puro, in
trascendentale, l’essere umano nella sua struttura reale ha dimensione reali che debbono
Nel suo lavoro di scavo all'interno della soggettività Husserl analizza proprio quel
terreno che già Kant aveva individuato e definito con il termine trascendentale, ma lo
scavo conduce Husserl a risultati diversi da quelli kantiani, individuando, come si è già
detto gli atti che noi viviamo e che caratterizzano la nostra “interiorità”; questa
espressione non è husserliana, ma la utilizzo solo per far comprendere quale sia la sfera
che è presa in esame. I vissuti, o atti, sono elementi strutturali, che noi tutti possediamo,
45
Se analizziamo ciò che accade in noi stessi ci rendiamo conto che non solo è
presente l'atto del percepire, ma anche quelli del ricordare, dell'immaginare, del
atti o vissuti, compito che ha accompagnato Husserl lungo l'arco di tutta la sua ricerca.
La nostra coscienza, inoltre, registra atti relativi agli impulsi, agli istinti, alle tensioni,
quelli cioè propri della sfera psichica, e ancora quelli della decisione, della volontà delle
caratteristica della psiche e dello spirito e la loro distinzione. In tal modo, si può
rispondere a quella domanda che è stata posta all’inizio di queste riflessioni: che cosa è
Il tema dell’entropatia
nella sfera del soggetto, imprescindibile punto di partenza per la comprensione della
realtà. Fra gli atti individuabili all’interno del soggetto ce n'è uno in particolare che è
53
Uso il termine entropatia, presente nella traduzione italiana del termine tedesco Einfühlung nelle opere
diàHusse l,àpe h àesp i eà eglioà i à heàiàfe o e ologiài te do oàdi e.àIlàte i eà e patia à àstato,ài à
verità usato da me nella traduzione delle opere della Stein, perché foneticamente più accettabile, negli
a iàNo a ta,ài àu epo aài à uiàa o aà o àsiàpa la aàdiàe patiaà ell a itoàdellaàpsi ologiaàeà elàse soà
in cui è diventato di moda. Il senso corrente in cuià sià adope aà e patia à is hiaà dià o à fa à api eà heà
l espe ie zaà issutaà dell alt oà pe à ià fe o e ologià o à haà ie teà aà heà ede eà o à laà si patia,à o à laà
i i a za,à o à l i te essa e to,à heà so oà espe ie zeà delà tuttoà di e se,à o eà sià uoleà ost a eà elà
p ese teàtesto.à “iàhaà e patiaà oàe t opatiaàse p eà ua doàsià i o os eà heàl alt oà àu àesse eàu a oà
come siamo noi e che sta vivendo esperienze simili alle nostre.
46
Esaminando, allora, questo peculiare atto nel quale consiste la conoscenza
dell'altro come conoscenza entropatica, Edith Stein si chiede che cosa si colga dell'altro
e attraverso quale strumento ciò sia colto; il risultato dell'analisi rispetto a queste due
quale abbiamo accennato sopra. Se Husserl aveva condotto la sua indagine movendo
dell'entropatia.
coinvolta la corporeità come tramite necessario della conoscenza stessa, d'altro lato, la
tre sfere del corpo, della psiche e dello spirito è reso necessario dal fatto che i rispettivi
atti si manifestano qualitativamente uguali, possono essere posti senza distinzione sullo
stesso piano o rimandano a gradualità diverse, implicanti anche valori diversi come
accade per la psiche e lo spirito, in quanto diversi dal corpo e unificabili sotto il titolo
senso l'essere umano non è riducibile tutto alla corporeità, pur essendo questa la
dimensione indispensabile della vita così come si dà, cioè come la costatiamo.
E' sul terreno dei vissuti, cioè degli atti della coscienza, che si individuano, come
anche se in forme diverse in tutte le culture, indicate, appunto, con i termini “corpo” e
“anima”. Il dolore o la gioia che l'altro vive deve essere colto, in primo luogo, attraverso
47
una percezione legata agli organi della sensibilità, ma ciò che si scorge sul suo volto
rimanda ad una profondità di vita tale che è impossibile assimilarlo a qualsiasi oggetto
fisico, visto e toccato. La dimensione che viene così scoperta è il luogo degli affetti,
delle pulsioni, delle emozioni, è quella che indichiamo con il termine psiche (psiché).
Ci si potrebbe chiedere - e Edith Stein pone tale questione nel secondo decennio
del Novecento - se non si sia trovata finalmente una disciplina, la psicologia, che
alla sua struttura che è di tipo meccanicistico: azione e reazione, associazione e così via,
scienze della natura. Da questa domanda nasce il lungo e articolato saggio - pubblicato
nel 1922 sullo Jahrbuch diretto da Husserl - relativo a Psicologia e scienze dello spirito.
filosofica, ma, piuttosto, di mostrare l'insufficienza del punto di vista della psicologia e
di quello delle nuove scienze umane, costituitesi nella seconda metà dell'Ottocento, sia
riguardo alla comprensione approfondita dell'essere umano sia, anche, riguardo alla
giustificazione della loro stessa costituzione; esse, infatti, hanno bisogno di un'indagine
psicologia non può fare a meno di chiedersi che cosa sia la psiche e deve anche
nella sua interezza, se non sia necessario ammettere anche la dimensione dello spirito e
Attraverso l'analisi dei vissuti si mette in risalto l'esistenza di una sfera psichica
48
sì strutturata secondo una sorta di causalità, in quanto sede di legami che, in una certa
come l'unica fonte di direzione dell'essere umano stesso? Freschezza o stanchezza della
psiche, ad esempio, sono sempre ed esclusivamente alla base delle nostre azioni e,
quindi, delle nostre decisioni oppure le scelte ci rimandano a “motivazioni” che rivelano
che si muove nella vita dell'altro, e non solo relativamente ai suoi sentimenti o alle sue
mondo della sua creatività. Se ci sono le scienze dello “spirito”, esse riguardano,
appunto, ciò che è connesso con questa sfera che è quella della produzione culturale,
umano della dimensione dello spirito consente di affermare che è superata la realtà
materiale; però è, nello stesso tempo, anche un organismo che prende forma e agisce
Il “sentire” la singolarità
49
Tutto ciò che è stato detto riguarda l’essere umano preso nella sua universalità,
Stein a riflettere in modo più diretto e convincente sul tema della duplicità femminile-
maschile e su quello della singolarità. Non è questa la sede per sviluppare il tema
questione dei generi54. Tuttavia, sia l’uomo che la donna presi nella loro universalità
Nessun essere umano è uguale all’altro, neppure i gemelli, perché non si tratta di
differenze esteriori, ma “…ciascuno nella sua essenza più profonda si sente essere
“χ questo proposito dobbiamo dire che per sentimento non intendiamo soltanto un
semplice stato d’animo, che non ha un ulteriore significato. Il sentire di cui stiamo
intellettuale chiara ed evidente; essa ha, piuttosto, in comune con la percezione sensibile
il fatto che si coglie un elemento unico e reale. Tuttavia, i sensi non giocano alcun ruolo,
ogni conoscenza umana. Consiste in un “sentire” la nostra essenza e quella degli altri
54
Pe à loà s iluppoà delà te aà elati oà all a t opologiaà dualeà i a doà alà ioà Sul femminile. Scritti di
antropologia e religione, aà u aàdiàM.D á a,àCitt àápe ta,àT oi aà àEN ,à .
55
E. Stein, Essere finito e Essere eterno – Pe u ’ele azio e al se so dell’esse e, tr. it. di L. Vigone, revisione
e presentazione di A. Ales Bello, Città Nuova, Roma 1999³, p.512.
56
Ivi, p. 513
50
come determinata, unica, e autogiustificantesi. Siamo, allora, ritornati ad una definizione
universale? No, perché rientra nell’essenza di questo percepire che il suo “modo” sia
unico: l’io cosciente comprende la sua specificazione essenziale come “sua particolare”
modo non è concepibile universalmente. In altri termini, si riconosce che c’è un elemento
unico e reale, e tale riconoscimento si muove sul piano dell’universalità, ma tale elemento
non può essere universalizzato. In altri termini se dico “singolarità” o già universalizzato,
affermare che tale singolarità, la propria e l’altrui, sia conosciuta nella sua pienezza.
Pertanto, così come non c’è una piena conoscenza di sé – si può ricordare in proposito il
non c’è neppure una piena conoscenza dell’altro, ma questo non ci esime dal sentire che
della comprensione delle psico - patologie e come possa giocare in tale ambito il rapporto
fra universalità e singolarità. Come si è già sottolineato, in esso più che in altri casi ci si
trova di fronte ad una “singolarità”. Se nei casi non patologici può sembrare più facile
inserire il singolo nella generalità, perché prevalgono alcuni tratti comuni ricorrenti - in
fondo è questo un primo senso che giustifica la nozione di “normalità” – è chiaro che di
51
la singolarità emerge prepotentemente, con manifestazioni di varia intensità che possono
nella paura e, infine, determinare l’isolamento di chi vive quella situazione spesso
tali fenomeni e nella delineazione degli interventi terapeutici, ma questo non esclude che
altre impostazioni, in particolare quelle legate alla psicologia del profondo di origine
fenomenologico.
Binswanger che per primo ha saputo cogliere le potenzialità implicite nella descrizione
chiesto se tali disturbi siano propriamente “disturbi” della psiche e che cosa sia la
“psiche”.
complessa struttura umana, che deve essere considerata nella sua completezza e non
rende conto che solo alcune modalità della soggettività analizzate da Husserl sono
alle esperienze vissute e alle loro combinazioni e organizzazione. Tuttavia, si tratta anche
52
E’ chiaro che ψinswanger dà per scontato che sia necessaria una terapia, quindi,
l’’impostazione positivistica della malattia mentale, intesa come malattia del cervello, ma
anche della stessa psicoanalisi, alla scuola della quale egli proveniva. Ciò che contesta in
questo caso è l’astrattezza che, secondo alcuni, sarebbe garanzia di “scientificità”, il fatto,
cioè, che si parli della psiche come di un campo avulso dall’esistenza presa nella sua
globalità e del terapeuta come colui che sparisce in quanto essere umano dietro la sua
Qui si denuncia, in primo luogo, il venir meno di un rapporto umano, che non può
essere unidirezionale, medico-paziente, ma deve essere reciproco. E tutto ciò non riguarda
produrre “qualcosa di nuovo”, ma, nel caso della medicina si tratta di “isolare,
quello della psicoterapia di dirigere tali forze verso un’azione che coinvolga l’essere-per-
si è visto attraverso l’analisi dell’entropatia che il rapporto intersoggettivo è uno dei centri
Binswanger intende tale rapporto. Queste indagini che sembrano confinate nell’ambito
filosofico, in realtà, non possono essere estranee a chi vuole analizzare il rapporto medico-
paziente.
57
L. Binswanger, Sulla psicoterapia, in Pe u ’a t opologia fe o e ologi a – Saggi e conferenze
psichiatriche, tr. it di E. Filippini, 2007³, p. 126.
58
Ibid.
53
Ci può domandare, in primo luogo, quale antropologia sia alla base della posizione
interventi terapeutici, tale approccio può essere più o meno implicito – certamente nel
umano. Egli riscontra che i risultati delle analisi fenomenologiche sono convincenti per
la chiarificazione proprio di quei “disturbi” di fronte ai quali egli si trova come terapeuta.
Tali risultati gli consentono, da un lato, di allargare la nozione di psiche, di poter parlare
di funzioni vitali di ordine psichico, di non dimenticare il corpo, come si vedrà in seguito,
interpersonale.
parte, l’obiettivo di Husserl e della Stein nei confronti della psicologia era proprio di
offrire un solido terreno per indagini specifiche, in particolare per quelle psicologiche,
come si è già detto – e di averle utilizzate a fini diagnostici e terapeutici in modo originale,
meccanicamente schemi teorici, come è mostrato dal suo allontanamento dalla prassi
psicoanalitica che si ispirava a Freud, ma di esaminare “la storia di vita” dei pazienti e
rischiare anche di andare fuori dagli schemi. Per questo definirei questo approccio
“artistico”59.
59
Ho riflettuto sul contributo di L. Binswanger in alcune occasioni, cito in particolare il mio articolo:
Binswanger erede di Husserl, in Ludwig Binswanger – Esperienza della soggettività e trascendenza
dell’alt o – I a gi i di u ’esplo azio e fe o e ologi o – psichiatrica, a cura di Stefano Besoli, Quolibet
Studio Rom 2006.
54
Particolarmente significativa in questa direzione è la descrizione del caso clinico
di una giovane afflitta da singhiozzo e da afonia, curata con una manovra “di quasi
soffocamento”, che contraddice tutti gli schemi della psicoanalisi, contenuto nel suo noto
saggio Sulla psicoterapia, già citato. Il successo di questa manovra è dovuto, secondo
l’autore, a due fattori che riguardano la qualità del rapporto che si è stabilito con la
paziente: la fiducia che ella aveva nel medico e il desiderio di guarigione che era in lei. Il
terapeuta è stato capace di destare in lei la volontà di vivere e di amare ed ella aveva
trovato le forze per uscire la situazione di grave disagio psicofisico nella quale si trovava.
Questo è un caso straordinario di guarigione che dimostra che il corpo non è estraneo
all’attività psichica, che non si tratta di due parti giustapposte, ma delle due facce del
A proposito del rapporto fra psichico e fisico, che non sono negati nella loro
della costituzione del Leib. Nelle poche righe sopra riportate è condensato tutto il
evidenza sul piano dell’universalità, ma che si calano nella storia di vita, quindi,
nell’esistenza peculiare.
60
Ivi, p.138.
55
D’altra parte, che cosa è il “caso clinico” per chi si occupa della diagnosi e della
terapia? χ livello teorico tutti sono d’accordo che, in ultima istanza, il banco di prova sia
si crede che sia più semplice comprenderli e forse anche più rassicurante rispetto alla
possibilità di errore. In realtà, non esistono tali rapporti, sostengono Binswanger e, sulle
sue orme, Callieri, ma anche tutti coloro che lavorano con un atteggiamento libero e
attento nel campo delle psicopatologie; bisogna, piuttosto, esaminare la storia di vita nella
Scrive Callieri: “Poiché il singolo è inseparabile dal suo mondo di vita (la
vita di quella presenza e del suo perenne farsi “mondano”: essere in situazione. La
la mia concretezza, la mia configurazione, la mia incarnazione (G. Marcel). Qui l’analisi
quella esistenza umana concreta, focalizzando in modo particolare gli ambiti della
In questo testo tutto è declinato al singolare: il mondo – della - vita come nozione
generale diventa il suo mondo della vita, un mondo della vita personale, in cui si manifesta
quella presenza. Husserl e Heidegger, i quali da un punto di vista teoretico e umano, dopo
Heidegger derivi dalla fenomenologia di Husserl – sono qui genialmente riavvicinati per
61
B. Callieri, Esistenza: tra mente e cervello, in Corpo Esistenze Mondi – Per una psicopatologia
antropologica, Presentazione di M. Maj, Saggio critico-introduttivo di G. Di Petta, p.137.
56
quegli aspetti che li rendono compatibili. Inoltre, la concretizzazione corporeo - storica
del singolo è letta attraverso la nozione di “incarnazione”, presente in Marcel, che rivela
l’attenzione deve essere rivolta al singolo, ciò non vuol dire che si sia in balia di una
Ma qual è la qualità di tali teorie? Come sono state elaborate? Con quali metodi e
percorsi?
“Secondo noi (e dobbiamo dirlo qui a gran voce) nessuno ha il permesso epistemologico
“sintomo” sul riconoscimento di modelli combinatori più o meno rigidamente fissati (vien
qui in mente, oltre ai DSM, o agli ICD, la χrs Magna di Raimondo Lullo)”62.
Come sempre, i testi di Callieri ci lasciano stupefatti per gli accostamenti a prima
vista strani o audaci, ma che, ben analizzati, rivelano un profondo legame. Quale può
essere il nesso fra l’χrs Magna di Lullo e il DSM? Quali sono i principi teorici che legano
che, a causa della loro fissità, non riescono ad adattarsi alla duttilità della vita. Si tratta di
ottime elaborazioni teoriche che indicano la grande capacità della mente umana di creare
costrutti, governati da procedimenti logici che si configurano sul piano dell’ universalità.
risiedono nel tentativo di far rientrare tutto in uno schema già pronto che non ammette
62
Ivi, p.637.
57
eccezioni, se queste ci sono, tanto peggio per loro, esse perdono di validità. La
fondamentali della realtà, per cui è possibile procede al calcolo di tutti i discorsi che gli
esseri umani fanno sulla realtà. Se dietro questa teorizzazione si scorge la presenza della
geometria, la scienza greca per eccellenza che continua ad essere valida per tutto il Medio
Evo (Lullo vive fra il XIII e XIV secolo), il DSM è in gran parte il frutto di una mentalità
positivista che si sviluppa a distanza di due secoli sulla scia della cosiddetta Rivoluzione
scientifica, quando, cioè, è elaborata la scienza fisica sulla base di una lettura
combinatoria di Lullo c’è una sua “visione” ricevuta sul Monte Randa, se questa χrs gli
serve per dimostrare anche le verità della fede, la mentalità positivista non è solo
secolarizzata, ma non sa più cogliere alcun suggerimento che superi la riduzione ormai
consumata sul piano di un’assoluta naturalizzazione. Con questo non si vuole sostenere
che bisogna arrivare immediatamente alle questioni ultime di fondo, ma che si è persa la
sensibilità per riconoscere spessori della realtà che non siano classificabili in un modo
E c’è anche una profonda differenza fra l’universalità di tipo quantitativo e quella
di tipo qualitativo. Nel DSM, ad esempio, ciò che prevale è la classificazione dei casi in
caselle che li determinano in astratto, senza tener conto che la situazione esistenziale non
può essere ridotta in schemi, perché è sempre presente l’haecceitas, la singolarità, come
63
Ho trattato questo tema in Edith “tei . Il si golo e il suo olto, in D. Vinci (ed.), Il volto nel pensiero
contemporaneo, Il Pozzo di Giacobbe, Trapani 2010.
58
E’ chiaro che sono necessari criteri orientativi per realizzare tale comprensione,
mania e, poi, li esemplifica attraverso “casi”, ma questi approcci teorici sono di tipo
“adattarli”. Si deve prevedere che la singola storia di vita non rientri perfettamente nello
schema e che abbia bisogno di essere compresa nella sua peculiarità ed eccezionalità,
senza forzature, e rappresenti una sfida per chi voglia scoprire quale sia la particolare
vissuto con gli altri in modo che possano stabilire rapporti equilibrati.
esemplificando in modo certamente riduttivo: quella che sta dietro al DSM e quella di
riguarda alcune tendenze prevalenti nella cultura occidentale, che investono tutti gli
ambiti del sapere. La “resistenza” nei confronti delle proposte cosiddette “scientifiche”,
le quali, spesso, non sono altro che comodi “schemi”, non significa ancoramento a
un ripensamento continuo, condotto con libertà e consapevolezza, che tiene conto delle
59
60
EDITH STEIN – COMUNIDADE E MUNDO DA VIDA
E-mail: irjacinta@gmail.com
Resumo: A relação entre pessoa e comunidade em Edith Stein tem sido objeto de estudo
Husserl e, apesar de não aparecer dessa forma nos escritos de Stein, está em perfeita
harmonia com o pensamento da filósofa: o ser humano não é só objeto no mundo da vida,
mas é também um sujeito desse mundo. Nós o podemos considerar na sua singularidade,
mas ele sempre se encontra numa dimensão intersubjetiva. Husserl e Stein afirmam que
Abstract: The relationship between individual and community in Edith Stein has been
studied in various fields of knowledge. The term life-world was introduced by Husserl
and although this does not appear in the writings of Stein, is in perfect harmony with the
thought of the philosopher: the human being is not only object in the world of life, but is
also a subject of this world. We can consider its singularity, but he always finds an
intersubjective dimension. Husserl and Stein argue that the organization that respects the
61
Nas últimas décadas, a relação entre pessoa e comunidade em Edith Stein, tem
Sociologia, Pedagogia, entre outros. Nas pesquisas interdisciplinares, que tratam desse
assunto, constatamos que a filósofa antecipa os tempos por sua competência, visão ampla,
Stein Dalla Vita di una famiglia ebrea, os organizadores Angela Ales Bello e Mario
Entre esses múltiplos enfoques, podemos vê-la como filósofa capaz de unir
genialidade que a caracteriza, ela ensina não só em sua pesquisa teorética profunda, mas
pessoa.
dimensão espiritual da própria pesquisa. Ao mesmo tempo, este encontro com a verdade
da fé alarga o seu pensamento filosófico em direção a novos horizontes, que lhe abrem
ou indireta, em todas as obras de Edith Stein e se atualiza em sua intensa vida, desde o
nascimento no seio de uma família que traz na própria origem um forte sentimento de
64
Stein, E. (2007). Dalla Vita di una famiglia ebrea e altri scritti autobiografici. Tr. It. di B. Ventura, rev. di
M. D´Ambra , a cura di Ales Bello e Paolinelli, Roma, Citta Nuova – Edizione OCD, p. 14.
62
povo, até a última frase que as Irmãs do Carmelo de Echt ouvem-na dizer para sua irmã
Rosa, no momento em que partiam para o campo de concentração - Vamos, pelo nosso
povo!65
15/10/1921, para Roman Ingarden, escreve: Os meus trabalhos filosóficos são sempre e
somente o resultado daquilo que me faz pensar na vida porque eu sou feita assim, devo
refletir..66
que não só teoricamente, mas também vitalmente, existencialmente lhe era muito
problemáticas, que dela derivam, permitem evidenciar que a sua posição filosófica não
pode ser separada radicalmente dos temas que motivavam os professores e colegas do
a sua discípula, mas também o ter introduzido uma expressão muito importante, do ponto
de vista interpretativo, utilizada nas mais diferentes línguas, isto é, o Mundo da Vida. Nos
escritos de E. Stein não se encontra a expressão como tal, mas ela está em perfeita sintonia
65
Congregatio pro Causis Sanctorum Colonien (1986). Canonizationis Servae Dei Teresiae Benedictae a
Cruce. Roma: Proc. Ord. 25a/7.
66
Stein, E. (2001). Lettere a Roman Ingarden, 1917-1939. (Elio Constantini e Erika Schulze Trad. It., rev.
di A. M. Pezzella). Libreria Editrice Vaticana, p. 188.
63
Universidade Lateranense67, a Profa. Ales Bello apresenta Mundo da Vida como o
culturais direcionadas às operações prático cognitivas dos seres humanos. Nós existimos
no mundo cotidiano que nos circunda e que inclui a nós mesmos como objetos: somos
científica, fisiológica, psicológica, sociológica, etc., assim escreve Husserl na “Crise das
mundo da vida, mas é também um sujeito desse mundo. Nós o podemos considerar na
(...) somos sujeitos para este mundo, sujeitos egológicos que o experienciam, que o
consideram, que o avaliam, que a ele se referem através de uma atividade, conforme
os escopos, sujeitos para os quais o mundo que está ao redor tem o sentido do que
lhe foi atribuído pelas nossas experiências, pelos nossos pensamentos, pelas nossas
avaliações, etc.69
que nos acompanha passivamente. Nós nos damos conta disso através de uma atitude
reflexiva que podemos assumir porque estamos conscientes. É este olhar reflexivo que
nos faz ser sujeitos e não objetos, que nos faz compreender, julgar e avaliar, que nos
permite aquela atitude que ultrapassa todas as formações culturais, isto é, a filosofia.
67
Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita. Società Diritto
Religione. Città del Vaticano: Lateran University Press.
68
Husserl, E. La crisi delle Scienze europee e la fenomenologia trascendentale. Tr. It.Enrico Filippini, Il
Saggiatore, Milano, p. 134. Apud Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – comunità e
mondo della Vita. Società Diritto Religione. Città del Vaticano: Lateran University Press, p. 6.
69
Idem.
64
O mundo dentro do qual estamos se mostra a nós, unitário e múltiplo, numa
A atenção de Edith Stein está sempre voltada para os temas que estamos
brevemente enfocando. Na estrada aberta por Husserl, ela consegue captar que a chave
para interpretar o mundo da vida em sua complexidade estava na análise do sentido das
experiências vividas, isto é, das vivências (Erlebnisse), através das quais se constitui o
mundo para mim, mas também o mundo para nós, naquilo que nos põe em comum e na
tomadas de posições éticas. Entre essas vivencias se destaca uma que é particular, a da
A empatia é a vivência que nos faz sair de nós mesmos e que nos permite captar
Se através das vivências, nós descobrimos que somos corpos viventes, animados
pela psique, mas também possuímos uma atividade espiritual, as associações humanas
70
Nesta parte foi utilizado um resumo de parte do prefácio de Ales Bello da obra Ales Bello, A; Pezzella,
A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita. Società Diritto Religione. Città del
Vaticano: Lateran University Press.-
65
uma Massa. Se as relações se efetuam no nível espiritual, isto é, intelectual e voluntário,
comunidade.
responsabilidades recíprocas. Cada membro mantém a sua própria liberdade, mas aceita
de tal forma que ele seja útil para cada membro para que se tenha verdadeiramente
Comunidade.
O Mundo da Vida, como mundo das associações humanas deveria ser configurado
nos diferentes graus das Comunidades. Nenhum aspecto da vida humana pode prescindir
jurídicas e políticas.
Quando falamos de pessoa humana, que se abre ao mundo humano e natural que
a circunda, nos referimos àquele ou àquela que partindo do núcleo profundo que a
caracteriza e que está incrustado na sua singularidade psicofísica, numa atitude que E.
71
Cf. Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città
Nuova, 1999, seconda parte.
Cf. Husserl, E. (1997). Meditzione Cartesiane. (Costa, F., Trad. It.). Milano: Bompiani.
72
Cf. Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città
Nuova, seconda parte. Em linhas gerais, seguimos aqui as análises de Stein.
66
(...) atitude que nós assumimos sempre, quando vivemos juntos, quando falamos,
meditação e na ação, quando nos referimos uns aos outros, nos discursos e nas
circundam73.
responsabilidade.
em conexão com aquilo que favorece a vida. Como indivíduo é em grau, pelo menos de
uma certa forma, o próprio patrão da sua vida, no sentido de aceitá-la, negá-la, promovê-
compõem abrem-se uns aos outros ou se fecham rompendo os laços que os uniam. Se não
formar uma comunidade está presente então, segundo a convincente definição de Stein,
quando os indivíduos estão abertos uns para com os outros, quando as colocações de um
não são rejeitadas pelo outro, mas fazem parte dele favorecendo completamente a sua
73
Husserl, E. (1965). Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologichen Philosophie, Bd. IV,
§ 51. Trad. It. Enrico Filipini. Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenologica). Torino:
Einaudi, 1965.
74
Stein, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.). Roma: Città Nuova,
seconda parte, p.192.
67
comunidade, mas a sua íntima estrutura, se esta é realmente uma comunidade, - será
para com os outros, mas de admitir, como nos sugere Husserl, a necessidade de um “amor
ético”. Com esta expressão queremos indicar que se assume em si a vida do outro e isto
através da qual não se vive somente ao lado do outro ou com o outro, mas um no outro
cuidados e de afeto, mas a autêntica comunidade de amor é aquela que descobre em cada
alma humana a vocação para o bem, um eu ideal, o verdadeiro eu da pessoa que se realiza
filosófico sobre a natureza humana, a qual nos leva a concluir que é necessário fugir
daquilo que não realiza o próprio ser humano e se não chegamos a tal conclusão, é porque
existe uma gama de “distorção”, de camuflagem que impede de ver o que é o bem.
dois termos devem ser cuidadosamente examinados, porque “conservar” a vida pode
75
Husserl, E. Zur Phänomenologie der Intersubjectivitat. Husserliana. Bd. III, Nr. 9.
68
fundamental impede ou deveria impedir o isolamento e o fechamento, então “promover”
outro. Não posso salvar a minha vida isolando-me, devo perguntar-me se esta
conservação favoreça ou não a vida do outro. Isto vale para a comunidade humana,
são de assunção recíproca de responsabilidade de um para com o outro. Mas como isto
comunidade humana? A indicação nos vem do amor ético do qual nos falava Husserl,
daquela comunidade mais ampla possível, que nasce da dimensão religiosa. Nesta não
existem confins nem limites ao amor, amor no qual se potencializa a própria vocação para
escolha e realização daquilo que serve à sua manutenção numa direção positiva,
acompanhado do grande esforço de isolar e reduzir o negativo. Seja o seu raio de ação
limitado num âmbito restrito ou que se estenda a uma dimensão mais ampla, cada um
deveria sentir a responsabilidade do seu viver, do viver dos outros e da vida da própria
natureza.
necessária uma séria reflexão, a mais ampla possível, que enquadre filosoficamente o
Mas, tudo isto deve ser comunicado através de uma obra de educação recíproca.
aqueles que estão ligados não estejam eticamente atentos, ou que um seja eticamente
atento e ou outro não, ou que ambos sejam atentos. Ser atento significa colocar
69
intencionalmente a si mesmo o eu ideal como “dever infinito” e levar a responsabilidade
recíproca na realização deste dever. Mas, sobretudo, “viver” tal responsabilidade através
comportamentos nos quais se manifeste o amor ético. É esta a fonte primária de uma
Referências
Ales Bello, A; Pezzella, A. M. (edd.) (2008). Edith Stein – Comunità e mondo della Vita.
Congregatio pro Causis Sanctorum Colonien (1986). Canonizationis Servae Dei Teresiae
(edd.) (2008). Edith Stein – comunità e mondo della Vita. Società Diritto Religione.
______ (1997). Meditzione Cartesiane. (Costa, F., Trad. It.). Milano: Bompiani.
Philosophie, Bd. IV, § 51. Trad. It. Enrico Filipini. Idee per una fenomenologia pura
Stein, E. (2007). Dalla Vita di una famiglia ebrea e altri scritti autobiografici. Tr. It. di
B. Ventura, rev. di M. D´Ambra , a cura di Ales Belllo e Paolinelli, Roma, Citta Nuova
70
_____ (2001). Lettere a Roman Ingarden, 1917-1939. (Elio Constantini e Erika Schulze
_____ (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (Pezzella, Anna Maria, Trad. It.).
71
SABERES SOBRE PESSOA E COMUNIDADE TRANSMITIDOS E
Marina Massimi
E-mail: mmassimi3@yahoo.com
O trabalho busca primeiro lugar compreender o perfil do que chamamos médicos da alma
conhecimento.
IN COLONIAL BRAZIL
Abstract: The paper discusses the process of transmission and elaboration of the concepts
of person and community in the context of Brazilian culture from the colonial period.
Actors in this process were primarily preachers who defined themselves as physicians of
72
the soul. Are specifically analyzed the sermons of Antonio Vieira and other preachers.
The work will seek first to understand the profile of what we call the physician of the
soul; and secondly, focus on the ways that notions of person and community were
Keywords: Knowledge about the person and the community; history of Brazilian culture;
transmission.
Introdução
que, na tradição Ocidental, constituíram-se nos alicerces destes dois conceitos. Dentre
eles, destacam-se autores como Platão, Aristóteles, Agostinho, Duns Scoto, Tomas de
76
Vejam-se a respeito os trabalhos de Alfieri, F. La presenza di Duns Scoto nel pensiero di E. Stein (2014);
Massimi, M. Compreender a estrutura da pessoa: diálogo entre fenomenologia e filosofia aristotélico-
tomista por Edith Stein.(2013)
73
(Coelho Junior& Mahfoud, 2006, p. 8). Nestes resultados, Stein encontra coincidências e
no meio de uma população caracterizada em grande parte pela cultura oral, sobretudo pela
atuação dos pregadores. Estes se autodefiniram como médicos da alma, retomando uma
categoria usada por Agostinho de Hipona (397/1988) para indicar o ministério da oratória
sagrada. Por intermédio deles, foram introduzidos no Brasil seja o conceito de pessoa
Agostinho e Tomás (Massimi, 2005a), dentre outros. O elo entre os dois conceitos
trinitário que diz respeito à relação de comunhão entre as pessoas divinas, da qual decorre
pessoa humana. Em nosso percurso de hoje iremos: em primeiro lugar entender o perfil
dos que chamamos de médicos da alma; e em segundo lugar, focar de que modos e em
que termos as noções de pessoa e comunidade foram por esses transmitidos no Brasil
colonial.
Os médicos da alma
74
medieval e renascentista ocidental, visava promover a mudança dos hábitos e da
mentalidade dos indivíduos e dos grupos sociais pela força da palavra e o apelo à razão e
liberdade dos destinatários. Esta capacidade de suscitar mudanças, por analogia com a
primeira Idade Moderna. Esta confiança foi reforçada também pela importância assumida
pela palavra e pelo discurso na tradição cultural dos índios brasileiros, documentada por
diversas fontes.
médicos do corpo: este entrelaçamento tem suas raízes na longa tradição chamada de
longo da Idade Média por Agostinho de Hipona (Massimi, 2005b), sendo retomada e
médica – por tratar-se de doença - e ao mesmo tempo filosófica - sendo a alma o objeto
acometido pela moléstia. Por sua vez, a possibilidade de se estabelecer a analogia entre
seja no corpo seja no espírito, é causa de doença. É assim que, por exemplo, um
75
desequilíbrio no sentido de um excesso ou defeito nos movimentos do apetite sensorial
individuo: sua condição orgânica bem como seus estados psíquicos (Massimi, 2010 a).
Além disto, esta teoria proporciona conhecimentos acerca das relações existentes entre
dentre eles, Sêneca e Cícero (por exemplo em Tusculanas77). Agostinho que se utiliza da
denominação de médico da alma para referir-se a Cristo, como também aos seus
ministros, especialmente aqueles que pela arte da palavra, transmite as verdades da fé.
Foi justamente Agostinho quem iniciara a tradição da oratória sagrada na medida em que
realizou a apropriação da arte retórica clássica em chave cristã, por ele sistematizada no
77
Em outra obra (Tusculanas ,àCí e oàafi aà ueà talà o oàaà o upç oàdaàsa gue,àoàe essoàdeàhu o à
ou de bilis fazem nascer no corpo as doenças e mal-estares: a perturbação que acompanha as opiniões
incorretas e a contradição de opiniões, despojam a alma de sua saúde e a perturbam por meio de
e fe idades .à ,àed.àitalia a,àLi oàIII,ààp. ,àt ad.à ossa .
76
assim que este domínio vem abarcar um conjunto de conhecimentos de vária natureza,
desde as teorias médicas acerca dos cuidados com o corpo até aos conselhos sugeridos
da arte do viver78. O médico espanhol Huarte de San Juan, formado pela Universidade de
Alcalá e autor do Examen de Ingenios para las Sciencias (1574/1989) estabelece estreita
prática social apoia-se na filosofia natural, sendo o corpo social estruturado em analogia
com o microcosmo que é o homem. Assim, a Medicina da Alma passa a cuidar não apenas
Companhia, no texto (Industriae ad curandos animi morbos) Normas para a cura das
78
Entre outros, o humanista dálmata Marculus Marulus escreve o tratado De Bene beateque vivendi e seu
mestre italiano Tideu Acciarini compõe, em 1489, o De Animorum Medicamentis (Massimi, 1983).
79
Por exemplo, em carta escrita ao Padre Antônio Brandão em junho de 1551, Loyola frisa a importância
de que o mestre espiritual conheça o temperamento daquele que se entrega aos seus cuidados,
afi a doàaà e essidadeàdeà a o oda -se à complexão daquele com quem se conversa, a saber, se é
fleumático ou colérico, etc., e isto com moderaçãoLoyola, 1993, vol. 2, p. 89.
77
e patrística. Acquaviva insiste também na prática do exame de consciência, tendo função
religioso deve desvelar integralmente a sua alma para o diretor espiritual. Além disso,
jesuítica. A utilização desse saber em função prática é documentável não apenas no plano
Vieira, definem-se a si mesmos como os médicos da alma e propõem sua pregação como
o verdadeiro remédio não apenas para a salvação das pessoas como também para o bem
discussão, na forma do diálogo – modelo retórico este muito utilizado no século XVI –,
80
Dentre estes, destacam-se os tratados assim chamados de Conimbricences redigidos pelos professores
do Colégio das Artes da Companhia em Coimbra: o comentário ao tratado De Anima (Sobre a Alma, Gois,
1602), o comentário ao tratado Parva Naturalia (Pequenas coisas naturais, Gois, 1593a), o comentário ao
tratado Ética a Nicômaco (Gois, 1593b), o comentário ao De Generatione et Corruptione (Sobre a geração
e a corrupção, Gois, 1607). No âmbito dos referidos textos - todos redigidos em idioma latino -
evidenciaram-se os principais conceitos referentes ao conhecimento antropológico psicológico.
81
O texto encontra-se em Nóbrega, M., (1989). Cartas do Brasil, Belo Horizonte, Editoras Itatiaia-Editora
Universidade de São Paulo (Coleção "Reconquista do Brasil": n. 147) (Original, 1551).
78
entre duas posições difundidas entre os jesuítas em missão no Brasil: uma, afirmando a
convertibilidade dos índios, com base em sua comprovada posse de todos os elementos
próprios da natureza humana, especialmente no que diz respeito à sua vida anímica; outra,
questionando esta certeza a partir das grandes dificuldades e impedimentos opostos pelos
– representam estas duas visões. Num dos pontos altos da conversação, Nogueira
Companhia junto aos índios, a afirmação de que estes são a pleno direito, pessoas
humanas, e afirma: “Estou eu imaginando todas as almas dos homens uma, nos serem
gloria e criadas para ella, e tanto valem diante de Deus por natureza a alma do Papa,
como a alma do vosso escravo Papana”. (Nóbrega, 1989, p. 237). O fato de que os índios
têm alma igual a dos homens europeus é comprovado pela evidência das potências
psíquicas atuantes no índio: “está claro, pois a alma tem três potências, entendimento,
memória e vontade, que todos têm” (idem). Esta definição operativa de alma (a partir de
Trindade82. Ali Agostinho define a pessoa a partir da atuação destas três potências
82
O conceito de pessoa como o núcleo unitário e único do ser humano e a evidência de que a pessoa é
uma substância, são descobertos por Agostinho através da experiência refletida do conhecimento de si
mesmo e são depois tematizados numa linguagem filosófica (que emprega termos técnicos da filosofia
o oà su st ia à estesàte os:à Estasàt sà oisas,à e ia,ài telig ia,à o tade,à o oà oàs oàt sà
vidas, mas apenas uma só, nem três mentes, mas uma só mente, não são, por conseguinte, três
substâncias, mas uma só substância (...) Pois me lembro de que tenho memória e inteligência e vontade,
e entendo, quero e lembro; e quero querer e lembrar e entender; e lembro, ao mesmo tempo, toda minha
e iaàeà i haài telig iaàeà i haà o tade,àtodaài tei a .à ide ,àpp. -332). E finaliza o capítulo
eite a do:à ásàt sàfo a àu aàs àu idade:àu aàs à ida,àu aàs àal aàeàu aàs àsu st ia à p.à .à
Uma vez estabelecida esta unidade trinitária que é a alma humana, Agostinho observa que quando estas
potências se encontram reunidas num único sujeito ueàpodeàdize àdeàsià es o:à essasàt sàfa uldades:à
memória, inteligência e amor são minhas, não pertencem, porém a elas mesmas; pois não operam em
seu próprio favor, mas sim em meu proveito. Sou eu que atuo servindo-me delas. Sou eu que recordo
pela minha memória, compreendo pela minha inteligência e amo pelo meu amor. E quando volto o olhar
do pensamento para a minha memória, e assim digo no meu coração o que sei e é gerado um verbo por
meio do meu conhecimento, ambas as coisas são minhas. Ou seja: o conhecimento e o verbo. Pois sou eu
79
anímicas: “Eu recordo, eu entendo, eu amo, servindo-me destas três faculdades. Eu que
não sou memória, nem inteligência, nem amor, mas que os possuo. Portanto, pode-se
dizer que são de uma só pessoa, que ela possui as três faculdades, mas ela mesma não é
afirmara que “todo índio é homem e, por consequência, é capaz de salvar-se e condenar-
se”. E sendo que “todo homem é pessoa e dono de seu corpo e de suas coisas” deriva que
“por ser pessoa, o índio tem direito ao livre arbítrio e é dono de seus atos”. (1989, p.
117)
para desenvolver neste uma consciência adequada de seu ser e uma conduta condigna.
romanos e outros gentios mais policia, que estes, não lhes veio de terem naturalmente
significativo título - Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685) -, dedicada
a pais e mestres, declara que “nam há condição de minino tam ruim, que nam possa ser
domada pela boa educaçam” (1685, p. 4). Em outra obra (Gusmão, 1720), esse mesmo
que sei, e eu digo em que coração que sei (p. 539-540). Com base nisto, Agostinho formula a definição
filos fi aàdeàpessoa:à Euà e o do,àeuàe te do,àeuàa o,àse i do-me destas três faculdades. Eu que não
sou memória, nem inteligência, nem amor, mas que os possuo. Portanto, pode-se dizer que são de uma
s àpessoa,à ueàelaàpossuiàasàt sàfa uldades,à asàelaà es aà oà àessasàt sàfa uldades .à ,àp.à .
80
autor recomenda a importância do cuidado para com a alma: trata-se de um cuidado que
não é óbvio, pois sendo a alma uma realidade invisível e que nos pede para ir além da
aparência, mesmo quando cremos que as almas existam “como as não vemos, com os
olhos, por isso as não amamos”. (1720, p. 341). Este saber é importante, pois “do
conhecimento que tivermos das nossas almas depende o amor, que lhe devemos, e desse
possibilitar tal conhecimento e remediar o descuido de nós mesmos em que muitas vezes
caímos.
seu modelo num conjunto de Sermões de Antônio Vieira (1993), que irá se constituir num
do conjunto de sermões “As Cinco pedras da funda de Davi em cinco discursos morais”,
conhecimento de si mesmo, pois afirma que “neste mundo racional do homem, o primeiro
móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”. E reitera: “eu digo
que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se concebe, e conhece a si
mesmo. O conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, é uma força
maneira ainda mais especial e perfeita nas substâncias racionais que têm o domínio de
seus atos e não são apenas movidas na ação, como as outras, mas agem por si mesmas.
Ora, as ações estão nos singulares. Por isso, entre as outras substâncias, os indivíduos
83
Alexandre de Gusmão, 1720, p. 341.
81
de natureza racional têm o nome de pessoa. Pessoa significa substância individual de
ao que ele tem de peculiar com relação aos outros seres. No caso do ser humano, a alma
é “o que o distingue e enobrece sobre todas as criaturas da Terra” (Vieira, 1993, vol. V,
p. 607), ao passo de que o corpo humano não especifica o ser do homem, sendo
cada um, que ele é a sua alma85 (idem). A alma corresponde à substância imutável do ser
humano: "rsou alma, porque o fui, porque o hei-de-ser, porque sou”. (Vieira, 1993,
vol.V, p. 607). Por isto, ela é o melhor espelho de si mesmo, o centro de sua vida pessoal:
afirma Vieira: “eu sou a minha alma”. È pela alma que o ser humano pode realizar sua
união amorosa com Deus, como ele afirma na esteira da tradição mística, num sermão
dedicado a Teresa de Ávila: “a união entre Jesus e Teresa foi tão intima que passando de
união a unidade, já Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão um e o mesmo”
(Vieira, 1993, vol. 3, p. 356). O mesmo processo Vieira descreve em sermões dedicados
a outros santos: afirma acerca de São Francisco que era “pela identidade, identificado
com Deus e pela deificação ficando endeusado todo, ou ficando todo um Deus” (vol. 3,
p. 761). Esta divinização da pessoa humana demanda a presença de dois atores: a vontade
divina que escolhe o ser humano e a vontade deste de corresponder a esta escolha. Vieira
retoma uma concepção da tradição mística e monástica e afirma que para esta união das
84
Idem, 2001, I, Q.29, Art.1, p. 523.
85
Ibidem.
82
duas vontades, o homem precisa sair de si mesmo, ou melhor abstrair da corporeidade,
quando sai dele se conhece. Os santos dizem, que para que o homem se conheça, há-de
entrar em si mesmo; e este sair de si é entrar em si; porque é sair do exterior do homem,
que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma”. (idem p. 614).
união com o divino” (1992, p. 81). χ via principal desta união não é tanto a via mística
quanto a via sacramental e a mediação da Igreja, como corpo místico. O fato que Cristo
escolheu doar sua presença ao homem por meio do sacramento da Eucaristia e da Igreja
funda para sempre a possibilidade desta união. É deste lugar que inclusive a palavra do
pregador adquire sua potencia. Pedro é a quarta pessoa da santíssima Trindade enquanto
identificar com ele. Assim sua vida é enxertada na relação trinitária. Em Pedro,
só e a mesma potência” de ação (Vieira, 1993. vol. 3, p. 380). Pedro enquanto feito
institucional da Igreja, tem efeitos também no plano das relações sociais e no plano
político. Nela, funda-se a ligação incindível entre a comunidade como lugar sacramental,
e a constituição da pessoa.
83
jesuíta Eusébio de Mattos: aqui o conhecimento verdadeiro de si mesmo corresponde ao
si mesmo proporcionada por este objeto, de modo que a alma, pela contemplação, se torna
imagem do objeto contemplado, numa “singular troca das potências da alma” (1694, p.
articular o movimento que leva a união de vontade entre Deus e a pessoa bem como a
união das vontades individuais no corpo eclesial e social. Ao atuar para promover a
médicos do corpo por seguir assim o modelo oferecido pelo próprio Criador divino: com
86
O estabelecimento de uma relação precisa entre a arte de pregar e o conhecimento do corpo humano
proporcionado pela medicina e pela ciência moderna, encontra-se nas obras teológicas do pregador
espanhol Luís de Granada. Na obra Del simbolo de la fé, chamado de Prólogo sobre la fábrica y partes
principales del mundo menor, que es el hombre, há uma exposição muito interessante da concepção
a t opol gi aàdoàg a deà est eàdaào at iaàsag ada.ààOàho e à àdefi idoà o oà mundo menor àpo ueà
tudo o que tem no mundo maior, encontra-se ele, es o ue de fo a ais si téti a . Com efeito, no
corpo humano, encontra-se o ser em forma de elementos, a vida vegetal - como nas plantas; a vida dos
sentidos - como nos animais, e o entendimento e o livre arbítrio - o oà osà a jos,à resumindo-se no
homem a natureza e as propriedades de todas as criaturas .à Po à esteà oti o,à at a sà doà ho e à
conhecemos melhor a perfeição de Seu Criador. De alguma forma, então, o corpo constitui-se em modelo
vivente daquela unidade que através da palavra ele pretende recompor nas almas individuais e na
comunidade social e política. Este modelo perfeito, dado ao homem, o pregador pode constantemente
observá-lo em seu próprio corpo, derivando desta observação as regras e os remédios para sua cura e
para o restabelecimento e conservação de sua saúde.
84
No pensamento da Companhia de Jesus, a noção do corpo místico, ou seja, do
corpo social permeado pelo espírito divino, expressa uma profunda analogia entre a ação
da Providência que governa o mundo e a ação voluntária do homem (missão) que escolhe
espirituais, herdadas por esta tradição, evidencia-se nos sermões gratulatórios pela
corpo físico do rei e o corpo social e político, ou o corpo místico de Cristo e da Igreja.
Exemplares são alguns sermões do jesuíta Antônio de Sá (1750). Num sermão pregado
em 1643, em ação de graças pelo restabelecimento do Rei Dom João IV, adoentado,
enfermidade de seu corpo político, o Reino. A doutrina dos dois corpos do rei, o corpo
natural, visível e mortal e o corpo místico, invisível e imortal, humano por natureza e
divino por graça, era difundida no Ocidente, desde a Alta Idade Média (Kantorowicz,
1998), sendo que o soberano, imitador de Cristo, era considerado como mediador entre
céu e terra. Sá expõe no sermão esta doutrina aplicando-a à enfermidade de Dom João.
Segundo o pregador, o rei e seu povo formam um “corpo mystico, do qual são os vassallos
as partes inferiores, e a cabeça El Rey”, de modo que com a lesão desta parte, principal
Providência divina permitiu que através daquela paralisia, “padecesse a cabeça, e o corpo
do Soberano, para que se visse, que no corpo, que são os vassallos, havia o mesmo
sentimento que na cabeça, que he o Príncipe” (Sá, 1750, p. 20). Este padecimento
conjunto do “corpo” e da “cabeça” seria então exemplo para o mundo, de modo que
85
Portugal cumpriria mais uma vez sua função de nação eleita pela divina vontade para uma
político da nação é tal que esta experimenta em si mesma, através do movimento do afeto,
as dores do príncipe.
1663 (Sá, 1750, p. 145), Sá compara a relação entre o rei e o reino à relação da presença
de Cristo entre as partes e o todo, no pão sagrado da Eucaristia: assim como “Cristo
sacramentado não ha parte alguma da Hostia em que não esteja”, o soberano também
“ha de ser pera todos, e ha de assistir a todos”, de modo que “não ha de haver parte
nenhuma no Reino” que não seja acudida pelo seu governo. Neste ponto, o brasileiro
colônias distantes e especialmente o ψrasil: “como pode ser que hum Principe assista a
partes tão distantes como são as que compoem o todo de huma Monarquia?” (p. 145). E
a resposta é a de que existe um “modo político definitivo” – que é o modo em que Cristo
se faz presente no sacramento eucarístico: assim como “Christo está em qualquer parte
no todo de seus estados, e logo assistirá nas mais remotas partes do Reyno”. Em suma,
uma pertença comum a um todo (o reino), que nas suas “remotas partes” contêm a
uma pertença comum a um todo (o reino), que nas suas “remotas partes” contém a
Rei de cuidar com justiça de cada parte dessa comunidade, conforme suas necessidades.
Mais uma vez: a comunidade origina-se na vontade divina, mas se mantém viva na
86
medida em que há posicionamento ativo e passivo do entendimento e da vontade de cada
pessoa.
Conclusão
tomada como o corpo animado e espiritual e a saúde da comunidade tomada como corpo
místico, político e social. Vimos como os pregadores utilizam-se dos conceitos de pessoa
e de comunidade como critérios para orientar as vivências das pessoas como também para
A palavra do pregador vem a ter, nesta perspectiva, uma função terapêutica, no que diz
respeito ao indivíduo e à sociedade: médico das almas, ele ministra remédios para os
espíritos sem descuidar dos corpos, tanto o corpo individual, quanto o corpo social.
Promove assim uma forma de identificação do sujeito, que é propriamente o do ser pessoa
em comunidade.
Neste sentido, levar em conta este substrato cultural que caracteriza a história
cultural brasileira e especialmente a história dos saberes sobre pessoa e comunidade, pode
interesse e as fecundas pesquisas que estão sendo realizadas pela comunidade científica
brasileira quanto às posições de Edith Stein a respeito destes temas, compreendemos que
se inserem num percurso histórico que tornou estes mesmos temas particularmente
87
fenomenologia e da teologia, e em alguns casos suas intersecções, podemos reconhecer
pela leitura histórica, que também no passado, a intersecção entre áreas de conhecimento
brasileira.
Referências
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92
EM QUE SOLO SE NUTRE A CIÊNCIA? MICHEL HENRY: PARA UMA
CULTURA INTERDISCIPLINAR
Florinda Martins
E-mail: flmartins@porto.ucp.pt
Henry, em relação a essa tradição. Mostro que, neste filósofo, a interdisciplinaridade mais
do que uma questão teórica, responde a uma exigência da nossa cultura – exigência de
uma cultura interdisciplinar – pelo que, em Michel Henry esta questão se abre para lá do
também através das questões empíricas aportadas, sobretudo, pelas ciências da saúde.
vida autoafetiva. Será por dentro da fenomenalidade dessa vida absoluta que se recortam
ou se emolduram os saberes próprios de uma cultura. De entre esses saberes, irei dar
atenção aos saberes implicados na práxis clínica: vida afetiva e inconsciente; anonimato
viver, mesmo quando este é dado a sentir como puro sofrer. Um insuportável puro sofrer
que originariamente se revela relacional e livre. É desse puro sofrer que, a partir de Michel
Henry, a barbárie irá cedendo lugar à cultura interdisciplinar. Nesta cabem todos os
93
saberes, pois todos eles brotam do mesmo solo: da incondicional afetividade do ser e da
Abstract: In this article I restore the issue of interdisciplinarity inherited from the biblical
in relation to that tradition. I show that with this philosopher, interdisciplinarity, more
culture - so in Michel Henry this issue is beyond the peer dialogue, art - literature,
painting, music - to the clinic, the economy and politics. Dialogue practiced through texts
- philosophical, biblical, poetic or other - but also through the empirical issues reported
mainly by the health sciences. Issues that require clarification of the phenomenality about
the source from which they feed and that is, to Michel Henry, the self-affective life, and
it will be inside the phenomenality of this life that is cut or framed the specific knowledge
of a culture. Within this knowledge, I will pay attention to the knowledge in clinical
practice: affective and unconscious life; anonymity and selfhood of the future of the
patient's life, transcendental affection and its empirical expressions, which means, I will
focus on the phenomena that affect us unconditionally and make us move. The
enchantment of the unconditional giving of life in us, is rooted in our lives, even when it
is felt as pure suffer. A pure unbearable suffering that is originally revealed as relational
and free. It is starting from this pure suffering that, to Michel Henry, barbarism will open
his way to the interdisciplinary culture. This fits all the knowledge, for they all grow from
the same soil: the unconditional affection of being and life, emerge all forms of culture.
94
Keywords: tradition, phenomenology, health sciences, interdisciplinary culture.
prova que cada um de nós faz dela. Pelo que, neste filósofo, a prova de si - l’épreuve de
soi – é a prova do enredo pelo qual, na vida, nos provamos estruturalmente como advir
em relação. A vida é vivida como afeto que, originariamente, nos (co)move em uma
pelo que a sua fenomenalidade não poderá passar ao lado da fenomenalidade desse solo
que as nutre. Nesse sentido é não apenas possível, mas até desejável retomar, em termos
vida; a filosofia remete, com Descartes, a mesma questão à árvore do saber; com Husserl
Michel Henry, instigado em Portugal pela fenomenalidade da práxis clínica, trata estas
e, em comunidade, os destina.
95
Deste modo, esta investigação prossegue no sentido de ir além da irredutibilidade
modalidades do ser do ego ou da atividade humana da qual a práxis clínica faz parte. E
de Espinosa, com a possibilidade do enredo do humano nessa mesma imanência, tal como
ele vem indiciado em Descartes. Um enredo que me permite repensar a tradição da árvore
do saber: a árvore do saber nutre-se da vida que vivemos. Um enredo que enuncio assim:
a arquipassibilidade da vida é vivida pelo humano como sentir-se sentir, por isso, é
enquanto sentir-se sentir que a vida se potencia, ao mesmo tempo que nos torna partícipes
do seu devir que se confunde com o devir das nossas vidas ou com as nossas histórias. Os
nossos agir e existência, qualquer que seja a sua expressão cultural, procedem do
de se sentir sentir. É nessa moldura relacional da vida que, enquanto moldura comunitária
um de nós, então não é de estranhar o impacto que essa fenomenologia tem tido em vários
domínios da cultura que, de uma forma ou de outra, a todos e a cada um de nós diz
respeito: religião, ética, política, estética, ciência, psicoterapias. E também não será de
87
A questão da irredutibilidade do pensamento aos fenômenos da evidência aparece tratada na primeira
parte da obra Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia,
organizada por Antúnez, A.E.A, Martins, F. & Ferreira M.V., São Paulo: Escuta, 2014.
96
estranhar que o próprio Michel Henry tenha recorrido a essas áreas do saber para
textos de psicologia92; textos de estética93. Mas além do recurso a textos de várias áreas
do saber e da cultura, Michel Henry não dispensou o contato com poetas, médicos,
sacerdotes, bem como com todos os que, ditos ou não intelectuais se interessam pela
Retomo esse diálogo, mostrando como é que a literatura e a clínica estão no centro
Sorte a minha que o solo em que me ergo não seja maior que os meus dois pés
que o cobrem95. Este pensamento de Kafka é recorrentemente citado por Michel Henry,
e no decurso de toda a sua obra, para dar contas da estrutura interna da vida que,
Ajustada a si! Acculée à soi96: chance! Mas que sorte será essa de que falam Kafka
e Michel Henry, quando a prova deste ajustamento a si da vida tanto pode ser uma prova
88
Embora as suas três últimas obras sejam tomadas, pelos seus críticos e estudiosos, como o exemplo
mais incontestável e controverso do que acabo de dizer, a verdade é que, toda a obra de Michel Henry
testemunha a sua liberdade na busca de fontes que elucidem a sua intuição mais profunda: a revelação
da vida pela afetividade.
89
Refiro, a título de exemplo, Mandelstam, E. Brontë, Kafka, Rimbaud, Proust.
90
Marx é o mais conhecido, até pela obra que lhe dedica.
91
O exemplo de G. Tarde é o mais visível, na sua obra.
92
Incontestavelmente Freud, mas também P. Janet.
93
A obra de Kandinsky é a referência mais imediata.
94
O colóquio internacional de Cerisy, em 1996, acolheu participantes de várias áreas do saber. A
passagem de Michel Henry, por Portugal também confirma o que acabo de dizer.
95
Michel Henry, Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 162. [Referência a título de exemplo]
96
Ibid.
97
jubilosa como um fardo, ou até mesmo a prova de um vazio que nos submerge e aniquila?
Ajustada a si, em excesso de si, que identidade é essa que, no ajuste consigo, nos provoca
e inquieta, porquanto tecida em afeto gerado no enredo com os outros - sejam eles este o
solo no qual assentam os meus pés ou o olhar do outro no qual pousa o meu olhar e o dele
sentir-se sentir em júbilo, em dor, em vazio! Uma identidade que se prova como relação
de si com o que em si está implicado: o outro que, pelo afeto, em júbilo, dor, vazio, tédio,
volúpia e incómodo, vivenciamos. E é assim que, quaisquer que sejam os afetos pelos
quais provamos a nossa identidade, sorte a minha que o solo em que me ergo não seja
maior que os meus dois pés que o cobrem, pois ainda quando esse solo me parece fugir
dos pés é, nele, é em relação, que aufiro, em afeto de outrem, a certificação de mim
mesma: em afeto de outrem sou, existo. Afeto de outrem que me permite ser eu própria.
um fluxo incontido de vida que tudo anula em sua passagem! Em afeto se recorta, em
97
Martins F. (2014) A volúpia e o incômodo na configuração da certeza. In Antúnez, A.E.A, Martins, F. &
Ferreira, M. (Orgs.) Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia,
(pp. 47-80), São Paulo: Escuta.
98
Michel Henry, «D atàautou àdeàl oeu eàdeàMi helàHe ,ài àPhénoménologie de la vie, T.IV, Paris,
PUF, 2004, p.224 «não há si numericamente dissociável da vida».
98
Mas a par da literatura, o diálogo de Michel Henry com a clínica é elucidativo do
prática clínica e para o sentido da investigação laboratorial, uma vez que o histórico do
diálogo de Michel Henry com a clínica foi já objeto de um estudo feito por Andrés
objetividade e evidência dos fenômenos que se prendem com o ato médico. Insuficiência
para que chama também a atenção o psiquiatra argentino Carlos Hernandez, com o seu
texto Biologia da ressurreição, apresentado no Congresso da EST, 2014. Texto que tive
chamada de atenção para a presença, no ato médico, de uma realidade que a clínica não
contempla diretamente, mas que nem por isso deixa de a influenciar profundamente.
apenas aos cuidados de enfermagem. Mas quer o médico de família quer o psiquiatra,
99
Antúnez, A. “Histórico das relações entre filosofia e medicina no curso de Michel Henry em Portugal e
as relaçõesà o àaàpsi ologiaà lí i a .àDossi à áàFe o e ologiaàdaàVidaàdeàMi helàHe àeàaàPsi ologiaà
Clí i a .àPsicologia USP (no prelo)
100
Texto elaborado a partir dos seminários de estudos avançados do grupo de investigação Corpo e
Afetividade: Michel Henry e o pensamento lusófono, coordenação científica de Florinda Martins - CEPP,
Porto, em parceria com Andrés Antúnez, USP. Texto publicado in Atas dos encontros, CEPP-Porto, 2014,
edição de grupo.
99
mais do que denunciarem a insuficiência de um método, apelam à compreensão da
realidade em questão no ato terapêutico. Uma questão que se estende muito para lá do
estrito laço intersubjetivo clínico-paciente; uma questão que percorre toda a cadeia do ato
isso que não posso deixar de agradecer, aqui, à investigadora Cátia Teixeira101 o diálogo
paciente e generoso que tem tido não apenas comigo, mas com os outros grupos,
deste, pelo contrário, integra-o em si mesma. Por isso, deter-me-ei, agora nas questões
clínica. Foi na fenomenalidade de uma vida gerada em reciprocidade com a prova que o
humano faz de si que propus a compreensão interdisciplinar das várias molduras culturais,
101
http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=57019&op=all; www.pubmed.com.
100
Destaco agora, o lugar da fenomenologia da vida nas fenomenologias
afirmar que é a vida que, na incondicional prova de si em nós e enquanto nós, torna
possíveis as várias abordagens trazidas a este congresso. Abordagens feitas por aqueles
ciências religiosas; expressões e credos vários). Pois clínica alguma, nenhuma filosofia,
nenhuma religião esgota aquilo que aqui hoje nos reúne: nós mesmos, o nosso tempo, a
vida de todos e de cada um que, com suas sortes e fardos, com seus emolduramentos
específicos, nos convoca ao cuidado do que em excesso vivemos. Da vida, cada um é tão-
finita, os seus contornos apenas realçam o excesso que a habita, em interior comoção de
seus afetos. Afirmamos a moldura, mas compreendemos que o que ela encerra a excede,
reduziria a uma abstração e, no limite, a algo inerte e estéril: na sua nulidade, horrendo
das várias molduras do saber. Para este filósofo, a fenomenologia procura aceder ao modo
constitutivo do ser humano, ou seja, à originaridade do seu ser, pois apenas nesta pode o
humano encontrar saída para as questões que o assolam, e que no nosso caso,
conceitos e das evidências, lhes resiste, aspirando a uma nova emoldura da práxis.
101
conceptual, pois será no próprio processo do seu advir imanente que ela se alicerça, se
na sua imanência, com a prova nela do pensamento da vida nas formas da filosofia,
ciência, política, arte, clínica? Ou, de outro modo: como se dá a passagem da vida que
cada vivo, Michel Henry faz recuar a Descartes a possibilidade de renovação da filosofia.
vivencial em evidência ou em outra forma de cultura que possa ser uma cultura da vida.
do mesmo enquanto uma eventual modalidade de pensar sobre afeto, que iremos
Husserl e Heidegger.
Em Meditações Metafísicas, Descartes diz o seguinte: «por ser evidente que sou
eu quem duvido, escuto, desejo, nada mais é necessário para o explicar». E continua:
102
Permito-me remeter o leitor para os meus trabalhos «La phénoménologie de Michel Henry et les
questions du neurologue Damasio» in Michel Henry,àPa is,àL ágeàd Ho e,àpp.à -431 e «Matter and
material phenomenology», In La vie et les vivantes, Louvain, Press Universitaires, p. 571. Permito-me
ainda dizer que, no primeiro artigo, a introdução de datas nos trabalhos de MH e Damásio, se deveu a
uma iniciativa do revisor do texto em francês. Assim e para que não restassem dúvidas quanto ao que
queria ressaltar de Damasio e de MH, voltei à mesma questão no artigo «Matter and material
phenomenology» acima referido, p. 572.
102
«Mas também estou certo da capacidade de imaginar; e ainda que aconteça que não sejam
verdadeiras as coisas que imagino, todavia essa capacidade de imaginar não deixa de estar
em mim nem de fazer parte do meu pensamento». Para concluir: «Enfim, eu sou o mesmo
quem sente, isto, é que recebo e conheço as coisas como que pelos órgãos dos sentidos,
visto que com efeito vejo a luz, oiço o barulho, sinto o calor. Mas dir-me-ão que estas
aparências são falsas e que durmo. Todavia, ainda que assim seja, pelo menos, é muito
certo que me parece que vejo, que oiço e me aqueço; e é propriamente o que em mim se
chama sentir, e isso, tomado precisamente assim é tão-só pensar. Pelo que começo a
Ainda que esta seja uma citação um pouco longa, não hesitei em transcrevê-la,
pois apenas o seu todo revela que, Descartes, a par de uma ilegítima redutibilidade do
humana, a saber: querer, imaginar, odiar, amar, imaginar, jogar, andar, ver, ouvir, agarrar,
conhecer algumas coisas desconhecer muitas104. E mais ainda todas estas modalidades de
como sentir.
de aporias que convidam a pensar o que nelas é impensado. É o que faz Michel Henry.
Para este fenomenólogo a fenomenalidade do sentir remete à vida autoafetiva. Uma vida
103
AT, VII, 28-29.
104
AT, VII, 34. Descartes não descartaria as possibilidades de outros acrescentos às modalidades do ser
do cogito, desde, na sua fenomenalidade, fossem provadas.
103
que, para se provar, está apenas condicionada à sua própria autoafeção. É no sentimento
dessa afeção que provamos a revelação da vida em nós e não em um qualquer movimento
revelação de si: um poder que se dá a conhecer pela fenomenalidade do afeto que tanto
potencia o nosso desenvolvimento quanto o pode fragilizar106. Daí a sua importância, nas
desenvolvimento humano.
A obra que o grupo de pesquisa O que pode um corpo? acaba de editar e que está
Foi sob o tema o que pode um sentimento108 que essa investigação se iniciou. Sob o tema
o poder do sentimento, mostrei como é que o eu se reconhece no poder que o afeta ou,
105
Jean-Luc Marion in Descartes, Paris, Bayard, 2007, p. 21. «[…]àoà o poàpa ti ula àeàú i oàdeàu àego, o
seuà o poà ueà àele,àaàsuaà a eào deàseàp o aàaàsià es oà[…]àMi helàHe à àa uiàdete i a te»
106
Ainda que M. Henry sublinhe o desejo de acréscimo de si da vida não posso dissociar dele aquilo que
o impede, aniquila: o fracasso. Tema que tratei no artigo «O corpo e o espírito por entre A Essência da
Manifestação, de Michel Henry» in Humanística, Porto, 2014, pp. 163-190.
107
Antúnez, A.E.A., Martins, F. & Ferreira, M. (2014) Fenomenologia da Vida de Michel Henry:
interlocuções entre filosofia e psicologia. São Paulo: Escuta. p. 312.
108
Martins, F. (2014) Fenomenologia da Vida: o que pode um sentimento? In Antúnez, A.E.A., Martins, F.
& Ferreira, M. (2014) Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocuções entre filosofia e psicologia
(pp. 15-31) São Paulo: Escuta.
104
constituído como arquipassibilidade e nessa arquipassibilidade se sente sentir dor,
campo de investigação: provar-se a si mesmo não revela apenas o poder afetivo da vida,
mas revela também o inevitável envolvimento do eu nesse sentir. Michel Henry, em várias
existência, que são tão-só todas elas pensar. Duas das expressões que, a este respeito, ele
mais cita de Descartes são, das Meditações Metafísicas, a expressão at certe videre videor
sentimus nos videre. Isto é aquele se sente ou se prova instalado na vida afetiva, sente-se
a si mesmo na vida instalado e, é enquanto tal, é enquanto sentir-se que ele prova a
interdisciplinar.
Perguntamos então:
interdisciplinaridade?
humana: perguntar, querer, amar, imaginar, certificar-se. Mas relembro ainda que a
105
fenomenalidade do pensar como sentir-se pensar nos implica na atividade em questão. E
tendo em consideração que a raiz da palavra pensar – cogitāre – significa ainda cuidar,
então pensar não me implica apenas em todas as minhas atividades, mas implica-me,
nelas, como uma forma de cuidado. Será então pelo pensar, ou pelo cuidar, que o humano
se efetiva ou realiza. E em Michel Henry não há como recusar esta possibilidade de ser.
Recusar tomar a seu cuidado a vida tal como ela se manifesta será querer fugir da vida
suportar. Tão impossível que, no auge da sua inércia, a angústia acresce de si mesmo e
não tendo como se desfazer de si, faz o que é preciso fazer: agir! Mas age de qualquer
forma; efetiva um qualquer ato que, por isso mesmo, por ser um qualquer ato, e não um
vida para o insuportável de si mesma, para o insuportável do seu modo de ser que a
livremente fazer algo, é que para Michel Henry, «há um prazer na angústia […].pois a
pathos, o poder do sentimento é, assim, vivido por nós como sentimento de poder ou
Liberdade de agir, sentimento de poder ainda que através de um ato que pretende
ressentimento que é um perigo para vida: a vida ressentida pode originar a barbárie. A
vida volta-se contra si própria. Na obra A barbárie, assim como outros artigos110, Michel
Henry desenvolve estas teses, inequivocamente tomadas de Nietzsche, ainda que com o
cunho pessoal. Um cunho cuja multiplicidade de formas Michel Henry vai expressando
109
Michel Henry, Incarnation: une philosophie de la chair, Paris, Seuil, 2000. p. 176.
110
Michel Henry «“u àlaàpa oleàdeàNietzs he:à ousàlesà o s,àlesàheu eu »,àin Phénoménologie de la vie,
T. II, p. 151. E ainda in Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 157.
106
ao longo de toda a sua obra, mas todas elas unidas pela falta de investimento e de cuidado
Por entre a obra de Michel Henry, colho alguns desses exemplos. Nos parágrafos
angústia de duas pessoas uma em presença da outra: no caso dois amantes. Uma angústia
que redobra pois cada uma das pessoas incorpora em si a angústia da outra. Sem atender
a angústia que os assola, mas querendo libertar-se dela, os amantes devoram-se, tendo o
fracasso como resultado de uma tal relação. No romance O Filho do Rei, a tese só na
aparência é oposta a esta. O que em O Filho do Rei «torna os dias penosos e intoleráveis»
união de suas angústias. Em O Filho do Rei é antes a indiferença dos terapeutas perante
a necessidade de investimento de vida dos pacientes que exaspera não a angústia, mas o
tédio. Sem o investimento do terapeuta «o tédio, o verdadeiro tédio fazia nos levantar a
cada instante errando sem fim pelos corredores, como fantasmas»111. E se passarmos das
assassinato político que recorre à media como meio de aparecer aos olhos do público
cultura valida a tese da definição da barbárie como revolta da vida contra si mesma, agora,
desespero são, em Michel Henry, um mal cujo «pior dos males seria não a ter tido»113.
111
Michel Henry, Le fils du roi, Paris, Gallimard, 1981, p. 35.
112
Michel Henry, Le cadavre indiscret, Paris, Albin Michel, 1996. Chamo a atenção para a trágica
atualidade deste romance. Só ela encheria os dias deste Congresso!
113
Michel Henry, L’Esse e de la a ifestatio , Paris, PUF, 1963, p. 857.
107
Mas então só temos possibilidade de viver entre um mal e o pior dos males? Entre uma
A intensificação das formas da barbárie por uma qualquer passagem ao ato, com
o mero intuito de se libertar do peso da vida, merece a nossa atenção. A temática ecoa em
modelo – parataxe – que acabe com o inimigo. O que inquieta o jovem filósofo é a
dependência da razão daquilo que a supera e perturba bem como a ineficácia dos
construtos técnicos perante forças instintivas que tomam conta da razão e da vontade de
cada um. Um mal simbolizado nos ratos que empestavam um navio e cuja tarefa de
erradicação fora atribuída a um jovem oficial, uma vez que, todos os outros
nova técnica – deixar os ratos com fome, mas com força suficiente para abandonarem o
Só que estes voltaram de súbito «num saco de farinha branca e imaculada»114. O romance
não poderia conduzir a outra conclusão já que todo ele põe em causa o paradigma de
racionalidade que toma o dado como um objeto que a razão pode «controlar».
114
Michel Henry, Le jeune officier, Paris, Gallimard, 1954, p. 195.
108
Um tipo de racionalidade cuja ineficácia é claramente denunciada em O cadáver
indiscreto: «Não leste isso na Crítica da Razão pura? Estás a ver, as grandes obras
apresentam lacunas»115.
modelo que inscreva o item da objetividade naquilo que a suporta vai emergindo da obra
de Michel Henry.
Michel Henry busca ainda na arte outra saída para o insuportável do sofrimento e
da angústia. A obra literária de Michel Henry faz prova disso. Através do romance, o
filósofo expressa o modo como se sente afetado na vida e, nela, por tudo o que o circunda
e em excesso o habita. Uma tese que Michel Henry estende a outras formas de arte:
De algum modo, até a ciência se redime, em Michel Henry, pelo critério da arte116.
Mas é em relação às ciências que as ambiguidades inerentes à tese da arte como expressão
vida? 118 Não me parece, pois o jovem oficial tinha já considerado ineficaz as propostas
115
Michel Henry, Le cadavre indiscret, Paris, Albin Michel, 1966, p. 77.
116
Michel Henry, La barbárie, o.c. pp. 43-70.
117
MH. B, p. 40.
118
Paul Audi in “upé io ité de l’éthi ue: de “ hope haue a Wittge stei , Paris, PUF, 1999, faz uma
surpreendente aproximação deste conceito henriano ao conceito wittgensteiniano de «superioridade da
ética» in Tratactus; corroboro essa aproximação no trabalho «O outro e o limite na propriedade de si/
Michel Henry: a fecundação da imanência» in Painomenon, nº 13, Outono, 2006, p. 103.
109
fornecidas pelos modelos de racionalidade em vigor, da qual a ciência faz parte. A
maestria científica que ele investira na erradicação das forças perturbadoras das
Michel Henry proponha uma outra forma de maestria - já não a expulsão das forças
maestria?
A análise da obra mostra que a ciência enquanto tal não chega a ser considerada
com a violência da vida em relação a si mesma, nos processos do adoecer físico, pois
ficamos sem saber como se processa a surdez da vida a si mesma, aí onde ela se torna
violenta, doente? 119 Mas mais ainda: aí onde a vida se não faz ouvir como pode ela voltar-
se contra si? Revoltar-se contra as «superiores» formas de vida que uma cultura ou
civilização ostenta, tal como a apresenta O amor de olhos fechados, não implicará, no
em paradoxos, pois deixa ao abandono o que, nos interstícios de toda a sua obra, ele
pretende compreender: encontrar uma forma de cuidado da vida que não deixe nada fora
do seu cuidado. Todas as críticas à fenomenologia tradicional vão nesse sentido: mostrar
119
Florinda Martins, «O impossível do sofrimento: indecisões fenomenológicas no romance O Filho do Rei,
in Revista da Faculdade de Letras, Universidade do Porto, XIX, serie II, 2002, pp. 141-155.
120
Relembro que a crítica de MH ao inconsciente, em Freud, passa pela fenomenalidade desta tese,
sobretudo nas obras Genealogia da psicanálise e Fenomenologia material.
110
mas mais ainda, mostrar como é que o corpo é um corpo vivo, pois todo ele é atravessado
poder do sentimento.
que nos envolve pessoalmente em si. É nesta passagem da vida absoluta, como sentir,
para o envolvimento pessoal de todos e de cada um de nós na vida absoluta, como sentir-
fenomenológicas.
«superiores formas de vida». Ela direciona-se para a afeção das «inferiores formas de
não acontecem.
111
Michel Henry, na obra Eu sou verdade, parece propor uma solução a esta questão
primeira afeção diz respeito à doação absoluta da vida em nós, vida que Michel Henry
diz estar presente na mais simples sensação – na brisa da tarde, no cansaço da subida, na
ou religiosa. Abordagem essa a que Encarnação e Palavras de Cristo apenas lhe dão um
acabamento sistemático122.
resposta a esta questão vejamos o seguinte texto de Michel Henry Difficile Démocratie123.
Diz ele: «Os ritos, os sacrifícios, o conjunto das práticas religiosas eram vividos por cada
vivente como outras tantas formas de experienciar a sua relação com o absoluto, de a
atualizar e, desse modo, a ela se conformar. A religião era uma ética. E na medida em que
evitar equívocos a partir de identificações fáceis com esta ou com aquela expressão
apresentar-se como detentora desta doação absoluta da afeção da vida em nós, como nós:
Sentimento que ao transitar para a vida comunitária, em Michel Henry, não deixa de
impregnar todas as formas culturais de que a ciência não está, por essência, excluída. Por
121
Michel Henry, C’est oi la é ité: pou u e phé o é ologie du h istia is e, Paris, Seuil, 2996, p. 135.
122
Uma abordagem que, embora de forma menos sistemática, percorre toda a obra de Michel Henry.
123
Michel Henry «Difficile Démocratie» in Mi hel He , l’ép eu e de la ie, o g.àd álai àDa idàetàdeàJea à
Greisch, Paris, Cerf, 2001, pp. 39-54.
124
Ibid, p. 42.
112
isso vejo ainda a possibilidade de referir as «inferiores formas de vida»; as simples
sensações, toda a vida do corpo – biológica ou outra – à vida que as atravessa. Isto é, a
quando, de forma acrítica, é, nos vários saberes, votada ao esquecimento. É neste contexto
que Michel Henry inscreve a sua crítica ao que denomina de fenomenologia tradicional.
Uma crítica que não deve ser abusivamente estendida à práxis científica. Embora não
raro, Michel Henry possa a isso induzir. Todavia, nos interstícios de toda a sua obra,
Michel Henry pretende apenas mostrar que a vida não tem como romper o vínculo que a
une a si mesma, pois a vida não tem como fugir de si; não tem como romper com a sua
ipseidade! E esta é uma questão que é querida à filosofia da medicina que encontra em
Tomo este texto de Merleau- Ponty, como elucidativo desta questão. Ouçamos
anterior a toda a objetivação, denominação, para ser o Operador ou aquele a quem tudo
aquele é a objetivação é o incógnito a quem tudo é dado a ver ou a pensar, a quem tudo
faz apelo, diante de quem…há qualquer coisa. É então a negatividade – inacessível, bem
entendido em pessoa, dado que não é nada (rien). Mas está aí aquele que pensa, raciocina,
fala, argumenta, sofre, frui, etc.? Evidentemente não, visto que não é nada – Aquele que
pensa, percebe etc. é esta negatividade como abertura, pelo corpo ao mundo – é preciso
compreender a reflexividade pelo corpo, pela relação do corpo consigo, da palavra» 125.
Vejamos, por exemplo agora, este texto de Michel Henry: «o conhecimento do corpo é o
125
Merleau-Po t ,àLeà isi leàetàl i isi le,àPa is,àGalli a d,à ,àp.à .
113
afetividade reina sobre todos os seus modos, determinando-os secretamente». E isso de
tal forma que só acede ao conhecimento de uma dor se esta for «sentida como minha
dor»126; e é enquanto tal que a dor é em mim um poder como em mim é um poder o
não está aí onde sofro - e os textos de Michel Henry - em que a fenomenalidade do eu,
sobretudo o eu que sofre, é expressa em termos acuado a si; arrimado a si, como sentido
que não pode ser sentido128 - não ofusque a fenomenalidade do afeto da vida na doação
despropósito129. E ainda que eu esteja em total acordo com a aproximação que Raphaël
Gély faz entre Merleau-Ponty e Michel Henry, irei mostrar, antes, as hesitações no
caminho que Michel Henry percorre, em direção à uma completa oposição em relação ao
citado texto de Merleau-Ponty, pois elas permitem ver os amplos campos de investigação
Michel Henry distinguiu, como já foi visto atrás, de autoafeção em sentido forte e
autoafeção em sentido fraco. Foi na afetividade desse enlaçamento ou enredo da vida que
126
Michel Henry, Généalogie de la psychanalyse», Paris, PUF, 1985, pp. 34; 39 e 38 (respetivamente).
127
Michel Henry, Auto-donation, Paris, Beauchesne, 2004, p.217.
128
Michel Henry, EM, pp. 421, 830, 857; Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, p. 162.
129
Raphaël Gély, Imaginaire, perception, Incarnatio: exercice phénoménologique à partir de Merleau-
Ponty, Henry e Sartre, Bruxelles, Peter Lang, 2012.
114
Michel Henry resolveu a aporia latente à célebre controversa Husserl/Heidegger, no que
diz respeito à presença ou não do eu nas afeções por ele vividas, de que o texto de
Merleau-Ponty se faz eco. E foi pela análise fenomenológica das expressões tomadas de
Descartes, Sentimus nos videre e suas equivalentes - videre videor é a mais conhecida -
que Michel Henry aponta a saída da aporia. Todavia se a partir destas expressões a ética
processa no enredo da fenomenalidade sentir sentir-se, também não é menos verdade que
sofrimento não deixa de nos instigar. Se por um lado, Michel Henry mostra, sem margem
sentimento não pode nunca ser sentido130 - por outro o incômodo que provocam algumas
do seu aparecer. De outro modo não faria qualquer sentido o qualificativo de «secreto»
para essa determinação, pois ele nada acrescenta ao conhecimento imediato da prova em
si da afeção da vida. Então, a fenomenalidade do vínculo do vivo à vida passa por uma
incontornável à vida que em nós se dá como afeto, como é possível que, do interior do
vínculo se admita a possibilidade de fugir dele? Como nos mobilizamos para a fuga? Ou
que nos incomoda ou o que nos envolve, sem a certeza de que algo não está incorporado
130
Reitera Michel Henry desde a obra L’esse e de la a ifestatio , Paris, PUF, 1963, p. 579.
115
fenomenalidade da adesão do humano aos processos arqui-impressivos da vida, que em
adesão à vida não significa que, nela, vivenciamos momentos em que a vida se manifesta
Para isso chamo a atenção para dois termos usados por Michel Henry que se
corpopropriação.
Atravessando assim a obra de Michel Henry, podemos dizer que este conceito é, pelo
menos intuitivamente, estruturante do seu pensamento, ainda que, nele, ocorra como que
antagônico, pelo que a sua elucidação nos vários contextos em que ela aparece, será
fecunda até mesmo para uma compreensão do que, em Michel Henry, nos foi transmitido
131
Michel Henry, La Barbarie, Paris, Grasset, 1987, p. 82.
132
Michel Henry, Philosophie et Phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965, p. 259.
116
acuado a si na aderência perfeita da identidade consigo e, nesta perfeita aderência a si, a
fruição, alegria»133, é legítimo perguntar que sentido tem então uma fruição do desespero
que, por ser desespero, se quer libertar de si mesmo ou dessa sua fruição?134 A
uma vida acuada a si até nos processos da vida em comunidade, processos páticos que
Mas então, e de acordo com Michel Henry, se o sentimento não pode ser sentido,
si, tal como ele admite ser possível?136 Como conciliar a revelação da afetividade
fenomenalidade do cogito, tal como Descartes aí a expõe, que julgamos poder aceder,
Nesse texto, o que define o próprio Descartes e não apenas a sua filosofia - sou eu
mesmo quem sente, diz ele – é o que ele recebe como que pelos órgãos dos sentidos – luz,
barulho, calor. Um receber que é um conhecimento que classifica como muito certo. E é
133
EM, p. 831.
134
EM, pp. 851-854.
135
Michel Henry, Phénoménologie Matérielle, Paris, PUF, 1990, pp.171-177.
136
Michel Henry, Philosophie et Phénoménologie du corps, Paris, PUF, 1965, p. 259 «Deste conteúdo
originário transcendental, podemos dizer que ele é o que faz precisamente a densidade da vida, uma
densidade ontológica primeira e irredutível, que subsiste mesmo quando esta vida se adelgaça no
desespero»
117
esse é muito certo que, essa certeza de uma relação imediata com o que o circunda, que
se lhe revela como sentindo-se ver, sentindo-se ouvir, sentindo-se aquecer: em uma
palavra, sentindo-se pensar. Sendo esse o pensar pelo qual começa a conhecer quem é,
Mas, quem é Descartes? É aquele que de nada mais precisa que duvidar, escutar,
desejar, para se tornar, a si mesmo, evidente - «por ser evidente que sou eu quem duvido,
137
escuto, desejo, nada mais é necessário acrescentar para o explicar» - todavia, para se
certificar de si, precisa sempre da referência ao sentir, inerente a cada uma das suas
sentir e ao sentido do que sente, como se vê pela resposta do próprio Descartes à objeção
que ele mesmo se põe, há um texto de As paixões da alma, também ele muito citado por
Michel Henry, que esclarece algumas dúvidas que podem emanar do primeiro texto
barulho. Diz Descartes: «assim não raro quando se dorme, e mesmo algumas vezes
quando se está acordado, imagina-se tão fortemente certas coisas que se pensa ver diante
de si ou sentir em seu corpo, embora elas não estejam presentes de modo algum; mas
ainda que se esteja dormindo ou sonhando, não se saberia sentir-se triste ou emocionado
com uma qualquer outra paixão sem que fosse muito verdade que a alma tem em si esta
alguém sente uma dor intensa, o conhecimento que tem da dor, é claro para si». Mas
então se sentir é sentir as afeções da vida processadas no corpo não será esse sentir-se
137
AT, VII, 29.
138
AT, XI, 349.
139
AT, IX-2, §46.
118
uma forma de corpopropriação, de que a terapia bem como as investigações laboratoriais
são modalidades?
se estar por dentro do sentir, e que o autor expressa como possibilidade de se sentir sentir:
sentir-se sentir não apela a uma diferença ontológica no sentir, mas antes à mobilidade do
sujeito por dentro do próprio sentir. E isso faz toda a diferença das terapias de inspiração
husserliana, heideggeriano, sartriana pontyana e até mesmo patočkiana, uma vez que a
relação do sujeito consigo mesmo é uma relação não com um objeto (algo exterior ou
dado num horizonte de transcendência), mas com o afeto que, ainda que advindo a si sem
o seu consentimento apela nesse advir à permanência ou à mudança. Sem o que não
haveria como sermos assolados pela angústia, pelo temor, pelo desespero.
d) Questões em aberto
corpo. Este, mais do que um objeto, é uma expressão de vida. É pela sua irredutibilidade
A transposição para a tela, a música, o palco, a escrita, dessa vivência é disso prova.
140
Termos que atravessam a obra de MH, desde do romance Le jeune officier ao ensaio Paroles du Christ.
A título de exemplo ver da EM, p. 853 e da Incarnation §§ 37-40.
119
Quanto à ciência, já em Afeição e filosofia primeira: relações entre fenomenologia
e ciências da vida141 quis mostrar que a ciência é também ela uma forma de transposição
corpo142.
provenha do meio que nos circunda quer da vida que habita cada sensação ou transição
que, da vida, brotam todas as formas do nosso enredo com ela143. Assim, da árvore da
saberes a um solo comum. Em Michel Henry, a vida autoafetiva é esse solo comum que
141
Martins, F. «Afeição e filosofia primeira: relações entre fenomenologia e ciências da vida» in Dossiê A
Fe o e ologiaàdaàVidaàdeàMi helàHe àeàaàPsi ologiaàClí i a .àPsicologia USP (no prelo)
142
Florinda Martins e Maristela Vendramel Ferreira, em diálogo com o trabalho de Cátia Teixeira,
Dopamine and serotonina signaling two sensitive developmental periods differentially impact adult
agressive and affective behaviors in mice, in Molecular Psychiatry (2014) 19, 688-698, iniciaram já o
estudo dessa possibilidade.
143
Posso concluir então, agora, que a barbárie é a recusa do enredo com a vida.
120
LA PSYCHOPATHOLOGIE COMME INDICATEUR DÉCISIF DE LA
Jean-Marie Barthélémy
E-mail: jean-marie.barthelemy@univ-savoie.fr
Résumé - L’abord singulier de la personne vise — à travers des caractéristiques qui lui
sont propres, c’est-à-dire par définition non banales, dont le trouble psychique ne
intérieures ou extérieures de son appartenance humaine, y compris chez celui qui a pour
mission ou vocation d’en définir et suivre les particularités. Il s’avère ainsi indispensable
d’alerter sur les dangers à considérer les troubles psychiques selon des catégories à part
au lieu de les incorporer à des formes plus larges et donc communautaires d’une large
la mise à l’écart qui en découle, mais aussi provoque l’éclatement de toute la famille
d’appartenance et des liens qui rattachent les Hommes les uns aux autres.Ce n’est qu’en
respectant la personne dans ses déclinaisons inédites et non en les stigmatisant par instinct
de sécession ou de sauvegarde égoïste que l’on peut espérer participer non seulement au
121
Mots-clés : Karl Jaspers, Eugène Minkowski, processus, psychopathologie phénoméno-
structurale, situations-limite.
COMMUNITY BELONGING
Abstract -The specificities of a person aim – though their own characteristics, which by
definition are not ordinary, and for which psychiatric disorder only represents a limited
part – to also approach other components, interior or exterior of its human being,
including for those who have the mission or vocation to define and follow its
psychiatric disorders as being apart instead of incorporating them into wider and
individual and collective. A semiological reduction not only represents a danger in the
objectification of a person and the sidelining that may result from it, but also splinters the
relationships and links connecting people to others. It is merely by respecting the person
in its unrivaled declensions and never stigmatizing them under the influence of some
instinct of secession or selfish protection that we may hope to contribute not only to the
preservation of this communautary link but also to the rise of its capacities of evolution
and enrichment. The comprehensive analysis of psychological troubles can be used at the
same time as a model, an indicator, a witness and a symbol for the in-depth study of such
psychopathology, process.
122
« L’homme ne prend conscience de son être que dans les situations limites. C’est
pourquoi, dès ma jeunesse, j’ai cherché à ne pas me dissimuler le pire. Ce fut l’une des
philosophique 144 écrite à la fin de sa carrière et de sa vie. Ailleurs, il assure aussi qu’il
ne serait jamais devenu professeur de philosophie s’il n’avait pas connu la maladie. Plutôt
médicale qui lui « prévoyait » au mieux vingt années d’existence avec sa mucoviscidose
invalidante, ou pour conjurer ce pronostic ténébreux, Jaspers s’en extrait en devenant lui-
même médecin. Par la suite, mieux à l’abri des alarmes antérieures, il éprouvera moins
de cette communauté.
144
Karl Jaspers, Philosophische Autobiographie, in : Schilpp, P. A. : Karl Jaspers, II, 1957 / Werk und
Wirkung, pp. 19-129, Piper München 1963, traduction française, Autobiographie philosophique, Aubier,
Paris, 1963.
123
Psychopathologie Générale comme s’il restait nécessaire à sa propre évolution
intellectuelle et personnelle.
reste, Jaspers, venu de la philosophie à la médecine, ayant été appelé par la suite à la
chaire de philosophie à Heidelberg, devait orienter sa pensée de plus en plus vers les
vivre au contact journalier des malades, poursuivait ses recherches de front dans les deux
sens. 145 »
Husserl est convoqué dans cette perspective, même si ce sera à son corps
psychiatrie. C’est un fait historique indéniable et reconnu par tous que Jaspers a fait œuvre
Jaspers, part de la prise en considération des propos et des éprouvés directs des
patients, tels qu’ils s’énoncent « ici et maintenant », sur un mode synchronique et non pas
Lors de la troisième édition de son premier livre, sans qu’on l’on puisse encore
suspecter que cette attitude précautionneuse serait celle d’un homme qui cherche encore
ses marques pour présenter sa matière, non seulement il ne renie en rien ses positions
145
E. Minkowski : « Phénoménologie et analyse existentielle en psychopathologie », deux leçons au
Collège philosophique, janvier 1948, publiées dans L’É olutio ps hiat i ue, fasc. 4, pp. 137-185.
124
antérieures mais il enfonce plutôt le clou sans complaisance, en affirmant après avoir
caractère méthodologique du livre qui est resté dominant. Dans tout le verbiage
faut savoir comment, dans quel sens et dans quelles limites on sait quelque chose ; il faut
connaître les moyens qui ont permis d’acquérir et de fonder ce savoir. Car la science
n’est pas un ensemble uniforme de données de même mesure et de même valeur, mais
une classification ordonnée de valeurs tout à fait différentes, quant à leur importance et à
nosographie, c’est-à-dire une classification des maladies mentales, Jaspers propose aussi
un classement mais fondé sur un autre ordre prioritaire, celui de la méthode ou plus
mentionner un ensemble de préjugés qui menacent de faire dériver la cette dernière vers
des contresens ou des impasses. Parmi eux, il en distingue une catégorie qui « résulte de
spéciales qui, comme telles, méritent une place » (Introduction de la troisième édition
125
pratiques ayant fourni la preuve de leur efficacité dans un contexte limité et particulier
s’unissent volontiers aux préjugés provenant des sciences naturelles pour affirmer que
des constatations quantitatives seules ont valeur scientifique et que l’examen qualitatif
pur reste toujours subjectivité et arbitraire. Les méthodes statistiques expérimentales, qui
en certains cas donnent des mesures, des chiffres, des courbes deviennent de ce point de
vue le seul moyen de faire une étude scientifique. Là où cette étude directe est
impossible, on travaille avec des concepts quantitatifs lors même qu’ils ne représentent
plus rien du tout » (id. P. 21). Ses avertissements, on le voit, portent sur plusieurs points
ou la courbe ne sont pas qu’une voie parmi d’autres pour effectuer des travaux
indifféremment les mêmes pratiques quelles que soient les circonstances ou les contextes
d’études, quitte à ne plus avoir affaire qu’à des abstractions vides d’implications et
Retournant vers son domaine, Jaspers en arrive à une distinction et même une
opposition, qui nous semblent aujourd’hui plus difficiles à maintenir, entre une sorte d’art
seul travaillerait dans l’univers des concepts et des généralisations. « Le psychiatre, dans
126
son travail, a affaire à des questions tout à fait individuelles ; il cherche comme
psychopathologue des règles et des concepts généraux pour satisfaire aux exigences qui
s’imposent à lui dans les cas particuliers. Pour le psychiatre, homme vivant, compréhensif
et actif, la science n’est qu’un des moyens auxiliaires, pour le psychopathologue elle est
général » (id. p. 1). Par-delà cette différenciation contestable entre des exercices alternés
sur l’individualité ou sur la généralité qui est posée ; elle continue, comme on ne le sait
que trop, d’alimenter bien des conflits et des déchirements au sein de notre discipline plus
divorce, implicite ou explicite, évoqué par Jaspers entre l’action et la réflexion, le vivant
et l’abstrait, la compréhension et l’explication. Aucun doute pour lui dans ses priorités et
que de la seconde dans un effort actif et intense pour s’approcher, à travers une attitude
concrètement vécue et partagée. Toute autre entreprise s’exposerait à des périls ainsi
formel, et finalement dégénérer en un verbiage de concepts. Cet art arithmétique qui reste
connaissance résident toujours dans l’expérience concrète » (id. P. 16). On peut retenir
cette dernière phrase comme une véritable clef, un précepte déterminant pour l’attitude
127
scientifiquement acceptable et validée, puisqu’ils ne trouvent pas leur origine, leur
quoi surprendre que ceux qui la confondraient avec une simple énonciation ou
juxtaposition de faits sans choix ni option, ce à quoi se refuse bien entendu Jaspers. Il
comprendre ce qui compte, c’est-à-dire, pourquoi pas à partir des chiffres mais jamais
attribuée à un phénomène.
seul cas nous permet souvent phénoménologiquement une application générale à des cas
innombrables. Souvent ce qu’on a saisi une fois se retrouve bientôt. Ce qui importe en
Ce que Minkowski reprendra pleinement à son compte plus tard dans son Traité
essentiels, ne dépend nullement du nombre des cas examinés. Par là il se sépare de toute
statistique de même que de la méthode inductive qui, elle, pour faire ressortir le général
et éliminer le contingent, doit passer en revue le plus de cas possibles. Pour la méthode
Cette initiative d’une écoute attentive des propos des malades, qui vient à la
place de l’énumération simple, froide et schématique des symptômes dont ils sont
porteurs, est considérée par Minkowski comme capitale car elle met sur la voie d’une
128
compréhension du trouble et du malade. Elle amènera d’ailleurs de la part de Jaspers à
ensemble ordonné de symptômes, afin d’élargir une description élémentaire qui rend
difficile sinon impossible leur insertion à l’intérieur d’un ensemble plus large où ils
un sens.
Nous sommes ici parvenu à un point de bascule dans l’attitude du praticien, qui
unitaire révélatrice, depuis une position lente, patiente et laborieuse, purement réceptrice
et descriptive de ce que lui apporte son patient, jusqu’à une convergence compréhensive
phénomènes psychiques. C’est ce passage, cette transition qui fera évoluer Minkowski
patient que dans l’effort pour rassembler et circonscrire les lignes de forces qui
une belle homologie avec ce que Jaspers appelle un « processus » durant le cours d’une
psychique tout à fait nouveau, il se peut que l’on ait affaire à une phase. Mais si le
changement est durable, le phénomène est appelé processus. […Ces processus] forment
129
un groupe qui, pour l’observateur impartial, s’oppose par un caractère général aux
élément une foule de relations compréhensibles. Nous ne connaissons pas les causes d’un
semblable processus. Alors que, dans les processus organiques, les phénomènes mentaux
sont au point de vue psychologique dans une confusion complète, ici, au contraire, plus
on approfondit le cas étudié, et plus on trouve de relations conscientes. [...] Dans les
formes les moins graves, l’évolution du sujet se poursuit comme si à un moment donné
contraire, la lignée est régulière, et dans le cas d’un processus organique, on a, non pas
une simple discontinuité, mais une confusion complète. Nous avons appelé ces
prendre ces notions que pour des limites, et non comme définissant des espèces
mot que ces processus nous sont accessibles du point de vue psychologique
seulement 146 ».
« passage » de la nouvelle année me paraît illustrer tout cela via les deux bouts de la
relation transférentielle : alors que, dans un entretien, elle se référait à un moment où elle
avait « trompé » son compagnon, elle me certifiait qu’elle m’en avait déjà parlé dans un
écrit qu’elle m’avait envoyé. Je lui dis que j’ai dû mal lire ou qu’elle a cru m’en parler
dans ce texte, mais qu’en tout cas c’est la première fois que je prends conscience de cet
événement. Je lui promets de retourner au document qu’elle m’avait envoyé et j’y trouve
146
ibid. pp 437-439
130
effectivement un passage où elle dit laconiquement : « je suis allée voir ailleurs ». Je lui
même : « c’est parce que votre expression ‘je suis allée voir ailleurs’ me l’avait rendu
plus banal et moins clair que ce que vous m’avez dit par la suite…Une sorte de pudeur
partagée entre nous en quelque sorte, qui vous a rendue plus allusive qu’explicite et a fait
bien ce passage de cap, (Nψ : elle parle en même temps du changement d’année
Vos compétences en (sic) sont pour beaucoup, je suis persuadée que vous m’avez
aidé (sic) à ne pas me perdre très récemment. Je mets en place d’autres choses
grâce peut-être aussi à une bonne étoile que je veux bien laisser briller, à des
djinns que je veux bien reconnaître quand je les croise, vous êtes toujours le
culturelles d’origine, mais, par « plaisanterie » j’ai souvent mis sur le compte de
l’influence des « bons djinns » tout ce qui commençait à lui arriver de mieux
rencontres ). Il est évident que vous êtes un pro dans votre métier sous ces airs
très décontractés mais au-delà de ça votre aide est bonifiée par votre grande
générosité et le partage de votre temps à mes yeux. C’est important pour moi de
131
Ce à quoi je lui ai répondu par un bref SMS (puisqu’elle arrivait à décliner son
(NB « Saha » est le mot en dialecte algérien pour dire à la fois merci, santé, salut
pour dire seulement « merci »…! Elle est bien sûr capable de saisir toutes ces
Écoutons encore cet autre échange de courrier tout aussi édifiant, et encore plus
ordinaire en apparence, avec une autre patiente qui reprend contact plusieurs années après
« Bonsoir !!
Je me permets de vous écrire car à chaque fois que je réussi (sic) quelque chose
je ne peux m’empêcher de penser que quelque part c’est grâce à vous!!! alors
merci, de m’avoir aider (sic) à remonter la pente , merci de m’avoir aider (sic) à
reprendre un peu confiance en moi, et surtout merci de m’avoir aider (sic) à gérer
mes angoisses, et grâce à tout cela j’ai ENFIN eu mon permis de conduire :) !!!
Je sais pour la plupart des gens ce n’est qu’une formalité mais pour moi ça a été
un long et dur parcours pour réussir a gérer mon stress! je l’ai passé 2 fois et je
perdais tellement mes moyens en me sentant juger (sic) que je ne savais plus rien
faire ! et la 3ème fois fut la bonne !!!! Voilà ...!! Enfin ne vous inquiétez pas je
l’χtarax de temps en temps, je dors pas très bien et je me dis aussi que lorsque
tout se passe bien c’est que ca cache forcément quelque chose de louche !!!
132
En tous cas j’espère que vous allez bien et que tout se passe comme vous le
souhaitez.
- « Chère C... ,
N’hésitez pas à vous permettre. Je suis toujours heureux d’avoir de vos nouvelles
ainsi que la description de ces passages symboliques par lesquels vous passez et
prioritaire ou exclusive d’être jugée par autrui, tout le reste n’est plus que
piment, sinon tout cela restera terne et monotone. Pas facile de s’habituer au
Jean-Marie BARTHELEMY
ces deux contextes particuliers afin d’en mieux dégager la proximité d’orientation. De
l’alliance souterraine entre une singularité d’événement qui, bien que somme toute
Jaspers nomme un « processus », un trajet personnel par son incidence imprévue et ses
effets inattendus. Qu’ils soient douloureusement ou radieusement éprouvés, elle les relie
aux fils ténus et mystérieux d’une destinée partagée car inscrite dans une communauté
133
d’appartenance ou de référence dont le psychologue s’avère à la fois partie prenante,
émane n’est aucunement à enregistrer ni accueillir en tant que simple gratitude à notre
égard mais plutôt comme l’attestation d’une authentique renaissance insolite au sein d’un
sens et par-dessus tout une intentionnalité balbutiante qui se risque enfin à un projet
cours des délires mégalomaniaques, je n’ai jamais entendu aucun de mes patients aspirer
à devenir supérieur aux autres ; par contre ce qu’ils réclament avec plus ou moins de
forces vitales persistantes c’est « d’être comme les autres » ou « comme tout le monde »
comme ils le disent souvent avec des mots simples, c’est-à-dire l’égal d’un autrui reconnu
comme tel qu’ils croient entrevoir autour d’eux et parfois se surprennent à idéaliser ou
honteusement à envier.
transition avec deux autres livres de Jaspers se référant encore à la psychologie, soit dans
147
Karl Jaspers, Strindberg und van Gogh. Versuch einer pathographischen Analyse unter vergleichender
Heranziehung von Swedenborg und Hölderlin. E. Bircher, Leipzig 1922, traduction française Strindberg et
Van Gogh, Swedenborg – Hölderlin, Éditions de Minuit1953, Collection « Arguments », 1970.
134
plus qu’il se présente avec l’ambition extensive et généralisatrice d’envergure d’un
questionnement sur l’Homme, portant sur l’essentiel de l’être à partir de cette notion de
« situation-limite » qui aurait pu s’ouvrir et s’appliquer aux deux contextes dans une
entreprise de nature anthropologique. Dans une étude sur Héraclite, Binswanger écrit à
ce propos : « Cette idée est d’une importance capitale pour toute anthropologie et
psychologie. Non seulement la psychose ne se peut comprendre qu’à partir des mondes
des limites et des normes préalables dans lesquelles vit le malade individuellement et dont
il subit l’atmosphère mais, bien plus encore, tout cela est-il valable pour les rêves, pour
tout ‘sentiment’ et, en somme, pour tout mode d’expérience vécue des malades et des
bien portants148 ». Plus tard, dans ses entretiens radiophoniques publiés ensuite sous le
des enfants et des malades mentaux, déclare : « Un signe admirable du fait que l’être
humain trouve en soi la source de sa réflexion philosophique, ce sont les questions des
enfants. On entend souvent de leur bouche des paroles dont le sens plonge directement
dans les profondeurs philosophiques. En voici quelques exemples : l’un dit avec
étonnement ; ‘j’essaie toujours de penser que je suis un autre, et je suis quand même
toujours moi’. Et encore, par un rapprochement avec les malades psychiatriques : « Une
recherche philosophique jaillie de l’origine ne se manifeste pas seulement chez les petits
mais chez les malades mentaux. Il semble parfois —rarement— que chez eux le bâillon
148
Ludwig Binswanger, « L app he sio àh a lit e eàdeàl ho e » in : Ludwig Binswanger, Introduction
à l’a al se e iste tielle, Paris, Minuit, 2008, pp. 181-182, référence citée par Gábor Tverdota
in : « Existence et normativité. L appo tàdeàlaàDaseinsanalyse pou àl la o atio àd u eà ou elleà iti ueà
sociale », Les Carnets du Centre de Philosophie du Droit, n° 153, 2011, Université Catholique de
Louvain, o sulta leà à l ad esseà e à sui a te : http://sites-
final.uclouvain.be/cpdr/docTravail/153TverdotaG.pdf
135
des révélations métaphysiques saisissantes. Leur forme et leur langage, il est vrai, ne sont
pas tels que, publiées, elles puissent prendre une signification objective, à moins de cas
exceptionnels comme celui du poète Hölderlin ou du peintre Van Gogh. Mais lorsqu’on
assiste à ce processus, on a malgré soi l’impression qu’un voile se déchire, celui sous
est un des premiers sinon le premier a avoir prospecté la voie pathographique : il s’agissait
sémiologique. Cette recherche, menée à partir non pas de patients psychiatriques présents
ou actuels mais de créateurs illustres, quand bien même certains auraient dû recourir à
rapport entre création et altération mentale dans un cadre large intégrant les supports
diversifiés tels que peinture ou production littéraire. À ce titre elle représente un moment-
envisagé et entrepris, car on ne voit pas comment ces créateurs désespérés pourraient être
en désaccord avec cette remarque de Jaspers qui semble issue de leur propre ballottage et
drame d’existence et en parfaite résonance avec leur souffrance mais aussi les
extraordinaires capacités d’expression dans leur œuvre : « Considérons un peu quelle est
notre condition à nous, Hommes. Nous nous trouvons toujours dans des situations
manque, elles ne reviennent plus. Je peux travailler moi-même à changer une situation.
Mais il en est qui subsistent dans leur essence, même si leur apparence momentanée et si
136
leur toute-puissance se dissimule sous un voile : il me faut mourir, il me faut souffrir, il
me faut lutter ; je suis soumis au hasard, je me trouve pris dans les lacets de la
culpabilité. Ces situations fondamentales de notre vie, nous les appelons situations-
limites 149 ».
Minkowski a contribué à dégager une voie originale pour inventer une psychopathologie
indéniable dans une part de l’étude et de l’organisation des désordres psychiques, elle ne
peut en constituer l’essentiel ni prétendre à une approche intégrale pas plus qu’intégrative
norme ou à une moyenne, si l’on veut, au regard de laquelle, après une confrontation avec
rangés de cette manière en bon ordre, en si bon ordre que celui-ci en demeure
151
suspect », observe judicieusement Minkowski, qui préfère revenir toujours à la
149
Karl Jaspers, Introduction à la philosophie, p.18.
150
Eugène Minkowski, « ápe çuàsu àl olutio àdesà otio sàe àps hopathologie », conférence prononcée
à la Société de Neurologie et de Psychiatrie de Toulouse le 16 avril 1961, publiée dans Toulouse
Médical, 63ème année, n° 4, avril 1962, ep iseàda sàl ou age Au-delà du rationalisme morbide (ce titre
estàpasàetà au aitàpasàpuà t eàdeàMi ko ski !), Paris, L Ha atta , 1997, p. 154.
151
ibid.
137
complexité clinique, pour en différencier le fond et aussi respecter sa nature. Ce qui
manquera toujours à cette taxonomie c’est le sens unitaire des symptômes qu’elle
répertorie, la cohérence de leur organisation interne issue du dynamisme vital qui les
la vie, même ordinaire, normale ou saine, comme ou voudra bien la qualifier, « dans son
dynamisme foncier, n’est ni équilibre ni adaptation, elle n’est point une surface lisse sans
aspérités ni failles ; cela l’immobiliserait entièrement et ce n’est point ce que, dans notre
effort, dans notre élan personnel, nous recherchons. Elle est bien davantage équilibre-
de ces deux antithèses apparentes, et c’est à travers elles précisément qu’en peinant, en
butte à des difficultés et des failles, à des déceptions, à des ratés inévitables, que nous
nous efforçons d’avancer et de nous réaliser de notre mieux, comme le veut notre vocation
faire devenir « autre » à lui-même aussi bien qu’à son semblable, se présente à nous avec
la même ambiguïté de présence : étranger à autrui en raison de cette rupture vitale avec
sa propre existence, mais, parce quelle demeure la nôtre tout en résistant à son
que Minkowki résume ainsi : « L’aliéné n’est pas simplement un individu qui s’écarte de
la norme ou d’une moyenne. Il sort du cadre de la vie, rompt ainsi les amarres, ne s’intègre
plus au flux de cette vie et sans que nous ayons à le confronter avec d’autres individus
dits plus ou moins normaux, à le mesurer à une moyenne établie par ailleurs, se présente
notre entendement au premier abord […] Et c’est à partir de cette donnée première
152
ibid. p. 155.
138
que, mus par ce besoin irrésistible de comprendre chacun de nos semblables, nous nous
efforcerons de pénétrer de notre mieux dans ces mondes fermés à première vue. C’est le
de celui qui les étudie par une discrimination préalable et fondamentale entre une
personne affectée par ces phénomènes inhabituels et une autre qui les envisagerait depuis
à ce que nous avons pu dire dans nos écrits antérieurs, nous conservons aujourd’hui le
pathos en le prenant seulement au sens large du terme, la maladie n’en étant qu’une des
variétés. C’est que les différentes formes de ce ‘ être autrement ’ se placent, d’une manière
intrinsèque, comme nous avons vu, sous le signe de ‘ en souffrance ’, dans la mesure
même où elle se présentent comme atteinte profonde portée à la destinée humaine. Par là
nous revenons à ce que nous disions dans le chapitre précédent, à savoir que la
psychopathologie est par endroits davantage une psychologie du pathologique ou, dans
l’ordinaire ’ 154 ».
153
ibid.
154
Eugène Minkowski, Traité de Psychopathologie, Paris, P.U.F. 1966, pp. 41-42.
139
l’ordinaire : une source de bien des malentendus, voulus ou pas, et de dérives plus ou
lorsqu’il viendra affecter non plus un seul mais une tendance générale, révélatrice du
renfermement sur elle-même d’une société, d’une époque ou des deux à la fois. L’Histoire
a montré aussi les monstrueux dégâts d’un collectivisme ou d’un communisme qui, au
prétexte louable et bien intentionné d’une mise en commun solidaire des ressources
d’un soi-disant « bien commun » censé les transcender. Des formes atténuées, mais
impasse.
sont propres, c’est-à-dire par définition non banales, dont le trouble psychique ne
intérieures ou extérieures de son appartenance humaine, y compris chez celui qui a pour
mission ou vocation d’en définir et suivre les particularités. Il s’avère ainsi indispensable
d’alerter sur les dangers à considérer les troubles psychiques selon des catégories à part
au lieu de les incorporer à des formes plus larges et donc communautaires d’une large
140
la mise à l’écart qui en découle, mais aussi provoque l’éclatement de toute la famille
d’appartenance et des liens qui rattachent les Hommes les uns aux autres. Ce n’est qu’en
respectant la personne dans ses déclinaisons inédites et non en les stigmatisant par instinct
spécifiques donc, que l’on peut espérer participer non seulement au maintien de ce lien
exclusion d’autrui et du mépris délétère qu’il est toujours partie prenante du plus intime
141
CONFIANÇA E CONVIVÊNCIA: PESSOA E COMUNIDADE NA
E-mail: r.vonsinner@est.edu.br
Procura responder à pergunta em que uma teologia trinitária poderia ajudar rumo a tal
sobre a relação tão fundamental quanto ameaçada entre confiança e convivência (1). Num
inspirados pela teologia trinitária anteriormente desenvolvida (3). Para a teologia cristã,
Deus não está alheio a este mundo, afastado e intocável, mas ele interage de forma
apaixonada com este mundo. Apesar de ser um mundo que, em muito, se afastou daquilo
que Deus pretendeu para ele, o amor do Deus trino não o abandona.
Boff.
*
De origem suíça, doutor e livre-docente em Teologia, é professor de Teologia Sistemática, Ecumenismo
e Diálogo Inter-religioso na Faculdades EST, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. É, ainda, professor
extraordinário na Universidade de Stellenbosch, África do Sul, pesquisador experiente CAPES/Humboldt
e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
142
TRUST AND CONVIVIALITY: PERSON AND COMMUNITY IN THE
by human dignity and freedom, in the perspective of a public theology. It seeks to answer
the question as to what extent a Trinitarian theology could help fostering such conviviality
and trust. The argument is developed in three steps: first, reflecting on the equally
fundamental and threatened relationship between trust and conviviality (1). In a second
step, it focuses on the doctrine of the Trinity, in relation to the concept of person and
community (2). Finally, four fundamental aspects are presented – alterity, participation,
trust and coherence – for conviviality in today’s public sphere, inspired by the Trinitarian
theology developed earlier (3). For Christian theology, God is not alien to this world,
remote and untouchable, but God interacts with this world in a passionate manner. Despite
being a world that has gone afar from what God had in mind for it, the love of the triune
veem-se (plural) arder as fogueiras com os chamados “hereges”, que seriam os inimigos
da verdadeira fé. Neste inferno de chamas, Jesus volta à terra e anda entre o povo. Todo
mortos, chega o grande inquisidor. Imediatamente, manda prender Jesus. À noite, visita-
anuncia que, no próximo dia, Jesus iria morrer na fogueira como um dos piores hereges.
155
Aproveito-me, ao longo do texto, livremente de elementos já apresentados em SINNER, Rudolf von.
Confiança e convivência. Reflexões éticas e ecumênicas. São Leopoldo: Sinodal, 2007, capítulos 1 e 2.
143
Num grande sermão, o inquisidor explica, essencialmente, o fracasso da mensagem
evangélica. Jesus teria proclamado a liberdade, mas o povo não soube lidar com ela. Era
preciso que a Igreja o conduzisse. O povo queria a paz, a segurança, a felicidade, mesmo
que submisso à autoridade da Igreja. Não queria nem suportaria a liberdade, pois esta traz
insegurança e risco. “Por que vieste agora nos estorvar?” – Jesus não diz nada. Fica calado
até o fim. Percebe que já não era Deus que habitava no coração do inquisidor, mesmo que
queimado, deixa-o ir embora. “Vai-Te e não voltes... não voltes nunca mais!”156
Esta narrativa nos conta o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), em seu
clássico Os Irmãos Karamazov. É uma narrativa muito rica, tocando nos aspectos mais
profundos da vida humana e da fé. Assim é o livro todo, do qual este conto é tirado. Das
suas muitas facetas, destaco apenas uma: a liberdade, a característica mais profunda do
ser humano, implica risco, implica assumir-se e não seguir simplesmente a autoridade.
No conto, Jesus mostra que confia nesta qualidade humana, mais ainda: faz dela um
aspecto central de sua proclamação do Reino de Deus. Enquanto isso, a igreja do grande
pessoas como se fossem infantes que precisam de tutela. Como outrora o imperador
circenses – pão e jogos. Mas não confia na sua capacidade de usar a liberdade. Jesus, ao
contrário, confia nos seres humanos e sua liberdade, conforme bem mostra Dostoievski.
ambiguidades da atuação humana – esta que também fez com que Jesus fosse crucificado.
Lembremos também que grandes figuras de exemplo da Bíblia, como os reis David e
Salomão, foram nada perfeitos. Meteram-se nos abusos de poder como quase todo regente
156
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Trad. Boris Solomov. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.
252-270.
144
da história. E, no entanto, o Messias viria da linhagem deles. Na mensagem do Evangelho,
os seres humanos, ainda que falhos, são considerados seres livres, capazes, e dignos.
Voltemos ao século XXI. O que pretendo apresentar no que segue, são reflexões
na perspectiva de uma teologia pública. Vale, inicialmente, esclarecer o que seria uma
teologia pública. A reflexão e a literatura sobre tal teologia estão crescentes no Brasil e
em outros países.157 Aqui posso dar apenas uma rápida visão desta teologia que procura
analisar a presença das religiões, em especial das igrejas cristãs, na esfera pública
abordagens, de outras áreas do saber. Por outro lado, a teologia contribui com aquilo que
lhe é próprio neste diálogo interdisciplinar: uma reflexiva fala de Deus pertinente à
igreja, e à sociedade.158 Não lhe é possível entrincheirar-se numa igreja, numa sala de
da realidade. São diferentes linguagens e necessidades, mas não se pode fugir desta
teóloga. A esfera pública, por sua vez, mudou neste país, de uma situação autoritária para
157
Como exemplo veja a seguinte série: CAVALCANTE, Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia
pública em debate. Teologia pública vol. 1. São Leopoldo: Sinodal, 2011; JACOBSEN, Eneida; SINNER,
Rudolf von; ZWETSCH, Roberto E. (Orgs.). Teologia pública: desafios sociais e culturais. Teologia pública
vol. 2. São Leopoldo: Sinodal, 2012; JACOBSEN, Eneida; SINNER, Rudolf von; ZWETSCH, Roberto E. (Orgs.).
Teologia pública: desafios éticos e teológicos. Teologia pública vol. 3. São Leopoldo: Sinodal, 2012;
BUTTELLI, Felipe G. K.; LE BRUYNS, Clint; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia pública no Brasil e na África
do Sul: Cidadania, interculturalidade, HIV/AIDS. Teologia pública vol. 4. São Leopoldo: Sinodal, 2014.
158
Cf. TRACY, David. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo [1981]. Trad.
Nélio Schneider. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
145
uma democracia em consolidação que conta com uma sociedade civil viva e atuante. Nela,
público não é novidade no cristianismo, mas está presente desde seus primórdios. Afinal,
Jesus Cristo, sua principal referência, foi crucificado publicamente como ameaça à ordem
pública.
Após esta mui breve introdução, levanto a pergunta: neste contexto de uma esfera
pública democrática, em que uma teologia trinitária poderia ajudar rumo a uma
convivência (1). Num segundo passo, enfocarei uma das doutrinas mais centrais e
desenvolvida (3).
Confiança e convivência
procedimentos, sem nos darmos conta disto. Não seria possível viver nossa vida se não
pudéssemos confiar sem nos preocupar, sempre e especificamente, com cada aspecto
dela. Sem confiança não existe vida. No entanto, pesquisas parecem sugerir que não existe
confiança entre pessoas neste país. Dentre 18 países da América Latina, periodicamente
último lugar. Indagadas sobre "falando em geral, você diria que se pode confiar na maioria
159
Cf. a articulação de um coletivo inter-religioso em relação ao novo marco regulatório das organizações
da sociedade civil: http://www.conic.org.br/cms/noticias/858-coletivo-inter-religioso-promove-o-3o-
seminario-relacao-estado-e-sociedade, acesso em 24 set. 2014.
146
das pessoas ou que nunca se é suficientemente cuidadoso no trato dos demais", apenas
10% dos entrevistados no Brasil (2010) afirmaram que pode, sim, confiar. A média no
alta de confiança (31%).160 Noto que isto já significa um aumento, dado que na publicação
de 2003, a taxa no Brasil foi de apenas 4%.161 Nos países escandinavos, estes números
estão por volta de 75%. O relatório de Latinobarómetro vislumbra uma possível razão
pelos números constantemente baixos: “confiar em algo [ou alguém] que não se conhece
não está de acordo com essa estrutura social parcializada que têm nossas sociedades”.162
Não é que, simplesmente, não existe confiança alguma, mas não se confia em
de reconhecida habilidade - nos bombeiros (64% em toda a América Latina), nos colegas
desconhecidas.163
A falta de confiança nas pessoas que não representam o próprio grupo é, a meu
ver, um dos fatores mais importantes que impede a convivência mais ampla, mais
democrática. No Brasil, uma raiz do problema parece-me estar bem identificado nas
pessoa enquanto pertence a uma “família” encabeçada por um patrão, seja este o pai, o
160
CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Informe 2010. Santiago de Chile: Latinobarómetro, 2010. p. 72.
Disponível em http://www.latinobarometro.org. Acesso em 27 jan. 2015.
161
LATINOBARÓMETRO. Informe – Resumen. La Democracia y la Economía. Santiago de Chile :
Latinobarómetro 2003, p. 26. Disponível em: http://www.latinobarometro.org. Acesso em 27 jan. 2015.
162
Confiar en algo que no se conoce no está de acuerdo con esta estructura social parcializada que tienen
uest asàso iedades ;àLáTINOBá‘OMET‘Oà ,àp.à .
163
LATINOBAROMETRO 200 ,à p.à .à E iste à o fia zasà alà i te io à deà losà g upos,à seg e tosà deà laà
so iedadà ie t asà ueà oàe isteà o fia zaàe t eàlosàg upos,àseg e tosà/à edes ,ài id.,àp.à .
164
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 187-248; A Casa e a Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 65-95.
147
igualdade de todas e todos. Por sinal, ao pesquisar o que mais importa para ter confiança
nas instituições, surge com clareza nas respostas: “que tratem todos por igual” (50%).165
Para DaMatta, esses sujeitos da lei não seriam culturalmente pessoas, mas indivíduos,
definidos não a partir de suas relações com um patrão e demais membros da “família”,
mas a partir dos seus direitos e deveres diante da lei - portanto, como cidadãs e cidadãos.
As pessoas, por sua vez, vão dizer como Getúlio Vargas: “χos meus amigos, tudo; aos
meus inimigos, a lei!”. Aplicando esta distinção de DaMatta para nosso tema, podemos
concluir que confiança existiria apenas dentro da “família de pessoas” e não fora dela,
onde o ser humano seria abandonado à frieza da letra jurídica. O patrão é chefe numa
hierarquia, ele manda e pode dar e retirar privilégios como quiser. Mas ele também é o
pai que cuida e protege, portanto, é merecedor de confiança. Aqui, a confiança tem um
objeto claro, muito mais nítido do que quando é preciso confiar numa massa de
concidadãos que não se conhece pessoalmente, como ocorre numa democracia. Onde não
há confiança, falta o fio para costurar a sociedade e dar coesão a ela. Mas o que é, afinal,
a confiança?
Confiança é uma atitude que se mostra na própria ação. Apenas ao atuarmos com
confiança quando posso esperar, com certa probabilidade, que o outro irá honrá-la. Ao
como posso confiar em pessoas que não conheço? Confiança sempre implica um risco.
Minha experiência e meu saber podem ajudar-me a julgar se uma pessoa desconhecida é
165
LATINOBARÓMETRO 2003, p. 27.
148
confiável ou não. Mais complicada ainda é a confiança em pessoas que nunca encontrarei.
pessoas que não sabem mais uma da outra do que serem cidadãs do mesmo Estado. Neste
caso, muito depende da confiança que tenho no sistema político e jurídico do país para
fazer minha aposta. Confiar sempre significa apostar no outro, pois nunca posso ter
reação e o resultado. Com isto, torno-me vulnerável. Porém, confiança pode gerar
uma obrigação moral no outro para honrá-la, pois decepcionar a confiança que alguém
investe em mim é a pior decepção imaginável. Faz parte da confiança nos valores aceitos
na sociedade poder contar, sempre e com rapidez, com o primeiro socorro prestado por
outras situações que implicam certo perigo, adianta-se confiança. A expectativa é que
alguém me socorra caso eu precisar, e não me deixe sofrer ou até morrer sem fazer tudo
do bom samaritano, no Evangelho de Lucas, que isto nem sempre acontece, e que quem
presta socorro pode ser a pessoa de quem menos se espera esta reação (Lc 10.30-35). Por
outro lado, é um velho truque fingir um acidente para aproveitar-se do impulso humano
do passante que corre para ajudar, e roubá-lo. Quando isto acontece com frequência,
diminui drasticamente a disposição das pessoas em ajudar. Desta forma, os ladrões que
perigo. Isto, por sua vez, reduz a vontade das pessoas em investirem confiança nas outras.
149
O exemplo do pronto socorro em caso de perigo mostra que as expectativas que
temos das ações de outras pessoas dependem de princípios éticos e regras morais
amplamente aceitos. Invisto confiança porque pressuponho que o outro partilhe comigo
“regra de ouro”, que diz, na sua formulação bíblica no Evangelho de Mateus: “Tudo
quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque
esta é a Lei e os Profetas.” (Mt 7.12). Este princípio achou respaldo no imperativo
“ética mínima”, temos exigências maiores, como indica o próprio Sermão da Montanha
do qual extraí a citação da regra de ouro. Aqui temos uma ética maior a ser seguida. Este
é um terceiro aspecto da confiança, específico para quem adere a uma crença ou ideologia
que contenha exigências éticas. Ao encontrar uma pessoa que segue uma ética maior, essa
tem direito a maior confiança, mas também é sujeita a maior cobrança. Pessoas exercendo
de alta confiança pela sua função e proposta de vida que implica uma ética profissional
obrigação. Por isso mesmo, pode ser dada apenas por pessoas que o fazem com
convicção. Leva muito tempo para estabelecer um clima de confiança, mas pode ser
destruído num instante. Uma vez destruído, é muito difícil para ser restabelecido.
Permitam-me citar um exemplo de outro contexto que pode elucidar bem este aspecto. A
166
Uma forma do imperativo kantiano lê-seàassi :à ajaàsegu doàu aà áxima [regra ou preceito] tal que
possasà ue e à aoà es oà te poà ueà elaà seà to eà u aà leià u i e sal ,à oà o igi al:à Ha dle u a h
derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, daß sie ein allgemeines Gesetz werde .àKANT,
Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [1785]. Werke. v. IV, p. 51, trad. minha; cf. KÜNG, Hans.
Uma ética global para a política e a economia mundiais. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 178s.
150
Comissão de Verdade e Reconciliação, instalada na África do Sul após o fim do
apartheid, tentou começar este processo de volta à confiança. Ela o fez tornando pública
pessoas negras. Enquanto conseguiu, em muitos casos, revelar a verdade, não teve o
conseguir a anistia prevista para quem revelasse a verdade sobre crimes políticos. Mas
verdade, mas não pôde obrigá-los a reconhecer sua culpa e arrepender-se. No entanto,
esta postura é imprescindível para a reconciliação. Do mesmo modo não se pode obrigar
Pode ser restabelecida apenas se, pelo menos, um dos atores, por livre vontade, resolver
Por fim, não é aconselhável confiar de modo ingênuo. A confiança procura ser
consequências desastrosas. Portanto, é preciso ler os sinais que possam indicar um perigo.
Obviamente, nem sempre é possível detectar a má intenção da pessoa que requer nossa
confiança. É com experiência e um olho atento à realidade que nos cerca que aprendemos
a lidar, até certo ponto, com este problema, mas não é possível evitá-lo por completo.
Confiança permanece como risco, investimento unilateral, dádiva livre. Concedamos que
drogas e outros criminosos. Muito provavelmente, esta confiança é regida mais pela lei
ferrenha que o crime impôs do que pela livre vontade dos participantes, mas ainda assim
Evidentemente, visto numa perspectiva mais ampla, esta confiança serve para um fim que
destrói em vez de construir sociedade. Portanto, repito, não basta a confiança em si, mas
151
esta confiança precisa ser inserida num sistema maior de valores e princípios éticos que
reconhecidos pela sociedade para que se possa garantir a confiabilidade das pessoas. Na
medida em que posso esperar os outros honrarem minha confiança, estou mais disposto a
sozinho com todo prejuízo. No entanto, se posso pressupor que, a princípio, todos irão
cumprir o necessário para honrar a confiança, tenho boas razões para confiar nos outros.
Convém encerrar esta parte com uma breve reflexão sobre convivência. Num nível
primário, ela significa simplesmente o fato de que, como seres humanos, não vivemos
sozinhos. Faz parte do nosso ser coexistirmos com outros homens e outras mulheres. É
inclusive, um dos aspectos mais prazerosos da condição humana: viver relações. Portanto,
além do simples fato de coexistir, é preciso buscar moldar e orientar esta coexistência
que prosperam, especialmente nas periferias das cidades, não fomentam, via de regra, a
é de sair da restrição da confiança para com meus familiares, amigos e irmãos de igreja
para ser estendida a todas e todos com quem coexisto em determinado contexto, visando
à convivência. Na medida em que esta confiança possa estar baseada em regras e valores
aceitos por todos, sejam estes escritos - na constituição e nas leis - ou de costume geral,
torna-se mais seguro confiar. Mas se a lei é vista como a-pessoal, cabendo apenas aos
indivíduos perdidos, como nos apresenta Roberto DaMatta, então não é possível criar esta
confiança sistêmica. É claro que tal desconfiança também está baseada em experiências
152
ruins de gerações para com o poder público ausente ou, ele mesmo, repressor e
desconfia sempre do ser humano. Apesar de justificado pelo Cristo diante de Deus, ele
continua pecador, na famosa fórmula simul iustus et peccator, ao mesmo tempo justo e
pecador. São perspectivas diferentes: o ser humano é justo in spe, na esperança, olhando
para Deus, e é pecador in re, de fato, na realidade, olhando para a humanidade. Esta
postura fez com que muitos acusassem o luteranismo como sendo pessimista. Contudo,
antes de pessimista, é realista: vivemos numa situação onde não há como afastar o mal, o
ambiguidade. “Ninguém aqui é puro, anjo ou demônio” canta Sandra de Sá em “ψye, bye,
tristeza”. Há igrejas que tentam fugir disto dizendo que apenas a volta do Cristo trará
algum benefício para este mundo, e que até lá tudo estaria perdido. Outras igrejas fazem
luterana vai num outro caminho. Reconhece a existência do sofrimento e quer cuidar das
pessoas que sofrem. Com toda desconfiança diante dos seres humanos pecadores, baseia-
palavra que conhecemos de cada culto cristão: “χmém!” “Firme!”. O verbo significa
“estar firme, confiar, ter fé, crer”.167 Portanto, a confiança e os conceitos afins têm
destaque muito grande na Bíblia, sendo ligadas à própria fé. Sobre ela, Martinho Lutero
diz no seu Catecismo Maior, ao explicar o primeiro mandamento “não terás outros
167
WILDBERGER, Hans. 'mn, in: JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theologisches Handwörterbuch zum
Alten Testament. 4. ed. München, Zürich: Chr. Kaiser, Theologischer Verlag, 1984. v. 1, p. 178. Nesta
família de palavras também se encontram a emuna (fidelidade, sinceridade) e a emet (verdade).
153
Deus designa aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos
refugiar-nos em toda apertura. Portanto, ter um Deus outra coisa não é senão
confiar e crer nele de coração. [...] Fé e Deus não se podem divorciar. Aquilo,
pois, a que prendes o coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus.168
resposta humana é a fé-confiança. Assim, a criação do mundo, na visão cristã, não é uma
criação apenas abstrata, de longa data, genérica. Faz crer o crente que Deus o criou,
Apostólico:
Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra. Que significa isto?
Creio que Deus me criou junto com todas as criaturas, e me deu corpo e alma,
conserva; além disto, me dá roupa, calçado, comida e bebida, casa e lar, família,
terra, trabalho e todos os bens. Concede cada dia tudo de que preciso para o corpo
isso unicamente por ser meu Deus e Pai bondoso e misericordioso, sem que eu
mereça ou seja digno. Por tudo isso devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e
A fé insere a pessoa humana na comunhão com Deus, e a partir dela, com outros
seres humanos. Ela ultrapassa fronteiras religiosas, sociais e de gênero: “Não há mais
nem judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o
homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 3.28). Portanto, a
168
LUTERO, Martinho. Catecismo Maior. In: Livro de Concórdia. Trad. e notas de Arnaldo Schüler. 5. ed.
São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997, p. 394s.
169
http://www.luteranos.com.br/textos/catecismo-menor-martim-lutero, acesso em 23 set. 2014.
154
desigualdades, criando uma nova convivência entre iguais. É notório que as igrejas, ao
superá-las. Isto ficou evidente no conto do grande inquisidor. Mas, pelo menos, elas
convivem com o desafio constante de Deus que chama a uma ética da confiança mútua
(...) vivei a vossa vida de acordo com o chamamento que recebestes; em toda
que reina sobre todos, age por meio de todos e permanece em todos. (Ef 4.1-4)
Além de esboçar virtudes éticas dignas de nota, o autor desta carta menciona,
Cristo, e um só Deus e Pai de todos. Aproveito para passar, assim, para meu segundo
ponto.
uma das mais ricas. Como toda teologia, é uma tentativa de dizer o não dizível, o divino,
e outras menos. Há, inclusive, imagens que se autodeclaram como tal, apontando para o
170
Refiro-me ao quadro de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606- :à áàsag adaàfa íliaàat sàdaà
o ti a à ueàseàe o t aà asàStaatliche Kunstsammlungen em Kassel/Alemanha; cf. BAHR, Petra. Von der
Befreiung der Bilder. In; CAMPI, Emidio; OPITZ, Peter; SCHMID, Konrad (Hg.). Johannes Calvin und die
kulturelle Prägekraft des Protestantismus, Zürich 2012, 45-55, às p. 52-54.
155
É conhecida a chamada analogia psicológica de Aurélio Agostinho: como o ser
humano é criado à imagem e semelhança do trino Deus, ele refletiria em si esta trindade
compatível com a posterior definição de Boécio (ca. 480-524): persona est individua
franciscano Ricardo de São Vítor que utiliza como analogia da Trindade a relação entre
quem ama, quem é amado e o próprio amor entre eles. Surge aqui uma analogia social,
argumentação na teologia da Trindade elaborada por Leonardo Boff. Ele é herdeiro, entre
pensamento, Boff se opõe claramente a uma imagem de Deus que denota um monarca
Império, Um só Rei. Esta oposição provém das experiências negativas que ele teve com
Retoma Erik Peterson, que concluiu que a implementação plena da teologia trinitária
pelos padres capadócios, no século IV, teria rompido radicalmente com qualquer
sistema político. Não há, segundo Peterson, quaisquer vestigia trinitatis (traços ou
171
Cf. HILBERATH, 60.
172
FEODOROV, Nikolai F. The Restoration of Kinship Among Mankind. In: SCHMEMANN, Alexander (ed.).
Ultimate Questions: An Anthology of Modern Russian Religious Thought. London and Oxford, 1977, p.
175-223; cf. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000.
156
reflexos da Trindade) na sociedade humana. Embora tenha sido formulada como uma tese
1935, Peterson de fato quis atingir a “teologia política” de suporte ao Terceiro Reich,
promovida entre outros por Carl Schmitt. Importa acrescentar que aquilo para o qual tanto
Peterson quanto seus seguidores apontam é, de fato, menos uma crítica ao “monoteísmo”
do que de uma imagem “monárquica” de Deus, na medida em que uma crítica teológica
das constantes críticas dos profetas contra seus reis. O que eles querem enfatizar é que
identifica uma “religião só do Pai” centralizada no patrão que detém poder absoluto. Em
plano, onde Jesus seria visto como “nosso irmão” ou “nosso chefe e mestre”, constituindo
sublinha que todos os três aspectos são importantes, sendo vistos como referências para
conjunto.
só Bispo, Uma só Igreja Local está, pois, errada. A igreja, como sacramento da Santíssima
173
BOFF, 1986, 26-29.
157
Trindade, deve ser vista como communio (comunhão) e não como potestas sacra (poder
Peterson, Boff afirma que há, sim, vestigia trinitatis que se encontram neste mundo. A
possível que os seres humanos possam (e, de fato, deveriam) refletir a comunhão triúna
entre si, numa comunhão que respeite diferenças e promova relações comunitárias: “χ
humana sonhada pelos que querem melhorar a sociedade e assim construí-la para que seja
descreve como as três pessoas da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, ao mesmo tempo
estão unidos em seu amor recíproco e são diferentes em sua “individualidade”. É claro
que isso imediatamente abre o acalorado debate sobre o significado concreto de “pessoa”
Os próprios termos e suas conotações divergentes indicam que não podemos deduzir
facilmente a forma da sociedade humana descrevendo Deus como sociedade, nem induzir
o ser de Deus a partir da sociedade humana. Pessoas humanas estão em relação, mas são
pessoas claramente separadas entre si, são indivíduos em sua singularidade. Já as pessoas
divinas não estão separadas, apenas diferenciadas entre si, assumindo diferentes
174
Cf. BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: as Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja. Petrópolis:
Vozes, 1977; E a Igreja se fez povo: eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo. Petrópolis: Vozes,
1986; Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas: Verus, 2004.
175
BOFF, 1986, p. 17.
158
qualidades e, por assim dizer, tarefas, mas sempre como um só Deus, sem
– se é que o termo é adequado para denotar a comunidade humana – não são unívocas,
mas analógicas. É necessário enfatizar isso para os dois lados, para preservar Deus como
Deus e os seres humanos como seres humanos. Portanto, se, como Peterson e seus
seguidores afirmam, Deus não deve ser usado para legitimar um governo monárquico, ele
tampouco pode conceder caráter divino aos três poderes da democracia representativa,
como foi sugerido por alguns autores na década de 1950, na base dos arquétipos da
enquanto executivo, legislativo e judiciário. Outro exemplo, bem mais velho, mostra a
Constantino IV co-imperadores.177
Deus. “O mundo possui uma destinação eterna: ele é que será o corpo da Trindade, em
é, portanto, não somente uma relação analógica, no sentido de que o Deus trinitário seja
um modelo para a sociedade humana e para a igreja, mas também uma relação ontológica.
176
A ponte teórica para essa interpretação foi a teoria dos arquétipos de Carl Gustav Jung, que Boff
também usa com frequência; veja MARTI, Hans. Urbild und Verfassung: Eine Studie zum hintergründigen
Gehalt einer Verfassung. Bern/Stuttgart, 1958; IMBODEN, Max. Die Staatsformen: Versuch einer
psychologischen Deutung staatsrechtlicher Dogmen. Basel, 1959.
177
Tradução própria: A die D eiei igkeit glau e i , d ei Kaise k ö e i , citado em GRESHAKE,
Gisbert. Der dreieine Gott: Eine trinitarische Theologie. Freiburg: Herder, 1997, p. 470, nota 95.
178
BOFF, Leonardo. Nova evangelização: perspectiva dos oprimidos [1990]. 4. ed. Fortaleza: Vozes, 1991.
p. 63.
159
Filho o universo chega, finalmente, ao Pai”.179 Já na criação, podemos acrescentar, a
Trindade assume um caráter público: tudo que existe é visto como feito por ela. 180 No
Espírito Santo está presente nos momentos públicos da igreja: “19 E, quando vos
entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora, vos será
concedido o que haveis de dizer, 20 visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de
vosso Pai é quem fala em vós” (Mt 10.19-20). Em perspectiva escatológica, tudo virá a
público: “Portanto, nada julgueis antes do tempo (kairos), até que venha o Senhor, o qual
não somente trará à plena luz (photizo) as coisas ocultas das trevas, mas também
sua pertença a ele em público (homologeo, confessar, assumir), e que “nada há encoberto
que não venha a ser revelado (apokalypto); e oculto que não venha a ser conhecido
(ginosko)” (Lc 12.2). χfirma a biblista Luise Schottroff: “Da publicidade do juízo de
Vamos agora ver o que isto pode significar para uma esfera pública contemporânea.
para a contribuição das igrejas para a democracia, motivados pela fé: alteridade,
179
BOFF, 1986, p. 278.
180
Cf. WELKER, Michael. O Espírito de Deus: Teologia do Espírito Santo [1992]. Trad. Uwe Wegner. São
Leopoldo: Sinodal, 2010. p. 232- à áàpessoaàpú li aàdoàEspí ito:àDeusàe à eioà à iaç o .
181
„Aus de Öffe tli hkeit des Gottesge i htes e gi t si h au h die Not e digkeit, jetzt it de Glau e
i die Öffe tli hkeit zu gehe ; SCHOTTROFF, Luise. Unsichtbarer Alltag und Gottes Offenbarung. In:
Jahrbuch für Biblische Theologie, vol. 11, p. 123-133, 1996, à p. 131.
160
Um primeiro aspecto central é a alteridade. A pluralidade implica diversidade, e a
cada pessoa e seu direito à diferença, incluindo a diferença religiosa. Ela preserva o
mesmo tempo, respeitar o mistério de Deus como triúno, unidade na diferença. Desde os
ausente. Não revela seu nome, para que ninguém possa ter poder sobre ele. Revela-se, na
sarça ardente diante de Moisés, como verbo: “Eu sou aquele que será”, ou “Eu sou aquele
enquanto qual me revelarei” (Ex 3.14). É um Deus que se mostra presente na história, o
Deus que libertou seu povo do Egito, mas que não se esgota em sua revelação. Como diria
revelatus, do Deus revelado. Para nossa confiança, importa o Deus revelado, Deus que se
revelação. Mas Deus é muito mais, não se deixa aprisionar em nossos conceitos, em
nossas palavras. Do mesmo jeito, a pessoa humana não deve ser objeto de posse de
outrem, nem que seja por parte dos pais, do parceiro, da parceira, da ou do terapeuta. E
por mais que busquemos compreender a pessoa humana, ela sempre permanece como
sociedade civil. No Brasil, ele está implícito na luta por cidadania. Cidadania é, em
161
primeiro lugar, o “direito de ter direitos” em uma situação de “apartheid social”.182 Em
um sentido mais amplo, como a maioria dos autores o usam, este conceito inclui a real
atitude diante do Estado constitucional como tal, bem como a constante configuração e
extensão da participação dos cidadãos na vida social e política de seu país. Aspectos da
participação efetiva do cidadão estão, pois, se tornando centrais, assim como a cultura
inclusive com um número de membros e uma efetiva participação muito maiores do que
qualquer outro tipo de organização voluntária. Em termos ideais, elas funcionam como
escolas para a democracia, pois formam pessoas dentro de suas próprias estruturas. É aqui
que a pessoa humana pode, além de encontrar ouvidos atentos, afeto e cuidado, também
ser incluída na comunidade com seus dons e desenvolvê-los, aprimorando sua autoestima
transformação aqui.
desta conferência. As disfunções da democracia brasileira não são somente uma questão
pensam. Trata-se, também, de uma séria falta de confiança na democracia como sistema,
bem como nas pessoas que são portadoras dela, a saber, o conjunto da sociedade. É claro
que a experiência histórica não contribuiu muito para dar a impressão de que as coisas
182
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: (ed.).
Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, 1994, p. 108, 105.
162
confiança. A confiança, porém, é algo que tem que ser investido antes de se saber qual
será o resultado. Em uma sociedade democrática, torna-se necessário confiar nas pessoas
de uma forma bastante abstrata, pois jamais conhecerei a maioria de meus concidadãos.
Para que a democracia funcione, tenho que pressupor que as outras pessoas tenham um
interesse semelhante no seu funcionamento. Se este interesse comum não puder ser
detêm mais poder do que eu, não se mostram dignos de confiança, faz-se necessária uma
razão mais profunda para ainda estar disposto a investir confiança. Esta razão pode ser
dada pela fé, que essencialmente significa confiança – não em si mesmo, mas em Deus.
Deus visto como triúno pode dar boas razões para investir confiança na democracia,
mesmo onde ela for ameaçada: Deus mesmo preserva a continuidade em meio a situações
históricas diferentes, altamente ambíguas onde ele se manifesta da forma mais central na
cruz de Gólgota, e empodera pessoas para viver suas vidas procurando ser justas, embora
Por fim, um quarto elemento necessário é a coerência: ter um projeto para o todo
da sociedade e não apenas para si ou o grupo de seus pares ou inclusive a sua igreja. O
Espírito Santo e não também Filho, encarnado em Jesus Cristo, e Pai, como criador. Este
183
Cf. TILLARD, Jean-Marie R. Koinonia. In: LOSSKY, Nicholas et al. (eds.). Dicionário do movimento
ecumênico. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 691-695.
163
e diversidade poderia, se bem-sucedida, representar uma importante contribuição das
igrejas para uma sociedade pluralista. Isto pressupõe que os cristãos e as igrejas não
primordialmente obter vantagens para suas respectivas igrejas, mas vejam sua missão
metáfora da perichoresis, que aponta para um Deus amoroso, dinâmico e coerente, pode
É essa a dimensão pública da fé trinitária: para a teologia cristã, Deus não está alheio
a este mundo, afastado e intocável, mas ele interage de forma apaixonada com este
mundo. Apesar de ser um mundo que, em muito, se afastou daquilo que Deus pretendeu
para ele, o amor do Deus trino não o abandona. Para tanto, enviou seu filho, Jesus o Cristo,
para revelar este seu amor, torná-lo público. O próprio Cristo “esvaziou-se” do seu ser
obediente até a morte na cruz. χssim, ele revela o amor de Deus: “χ kenosis de Deus na
cruz do Cristo revela Deus [...] como evento trinitário, cuja essência consiste no amor que
184
Apud DABNEY, Lyle. Die Kenosis des Geistes: Kontinutät zwischen Schöpfung und Erlösung im Werk
des Heiligen Geistes. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1997. p. 61: „Die Ke osis Gottes a K euz Ch isti
offe a t Gott […] als t i ita is hes Ges hehe , desse Wese i de leide de Lie e esteht.
164
CORPOPROPRIAÇÃO EM MICHEL HENRY: O TRABALHO CLÍNICO
Laboratório Prosopon
E-mail: maristelavf@hotmail.com
referir-se ao corpo próprio que, em uma relação encarnada e sensível com a natureza e o
Abstract: The french philosopher Michel Henry has created the concept of
relationship with the nature and with the world transform them and, in this process, in
action, appropriates and transforms himself. The objective of this work is to discuss the
185
Pós- doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da USP (CAPES/PNPD).
186
The original term, created by Michel Henry in french, is o psp op iatio or corps-propriation
(Henry, 1987).
165
that happens to the therapist who develops his clinical work in the therapeutical
Introdução
como gesto pessoal deliberado, poder de se exercer e de criar, na relação encarnada com
com o próprio Henry (2002, p. 9), em prefácio ao livro de Florinda Martins Recuperar o
nova concepção de alteridade”, sendo muito mais que “um simples desenvolvimento da
rede internacional O que pode um corpo?, entre 2011 e 2013, e Corpo e afetividade:
166
Psicologia USP187. Desse modo, este trabalho, do ponto de vista filosófico, alinha-se
criado por Florinda Martins, nas investigações acima mencionadas e em suas inúmeras
publicações.
sua obra em diálogo com Winnicott e autores russos, como Dostoiévsky, Berdayev e
(2006), posiciona que o atendimento ao paciente, para ser efetivo - preservar ou resgatar
Tomar essa posição e abordar a pessoa em sua condição originária e não apenas como
subjetividade, pois é inegável sua relevância para clínica, tanto no que se refere à
187
Agradeço a supervisão de pós-doutorado do Prof. Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, que possibilitou
a pesquisa em trabalho conjunto com a Profa. Dra. Florinda Martins.
167
Portanto, o objetivo desse trabalho é discutir o conceito de corpopropiração em
Corpo
1985)188.
cartesiano – em releituras realizadas por Michel Henry e Jean Luc Marion - o anúncio de
Descartes, investigada por Jean Luc Marion: “estarei eu de tal forma unido a um corpo
dotado de sentidos que não possa existir sem ele?” (p. 25).
188
Afetaram e limitaram a obra de Freud a influência dos pressupostos do paradigma hegemônico na
modernidade – a cisão entre corpo e psique, a redução do psiquismo à racionalidade e o corpo concebido
metaforicamente como máquina. Embora nos textos da virada ele traga o Id como enraizado no corpo e
reconheça o afeto como central à constituição psíquica, estes conceitos foram pouco articulados com o
restante do corpo teórico, que permaneceu enraizado na perspectiva hegemônica moderna. (Plastino,
2007, citado em Ferreira & Antúnez, 2014).
168
Christophe Dejours, em entrevista realizada por Benoît Kanabus (no prelo), como
parte das atividades do nosso grupo de investigação coordenado por Florinda Martins a
que quanto mais graves as patologias psíquicas, mais a questão do corpo torna-se
indispensável. Bebendo da fonte do filósofo Michel Henry, afirma que nas neuroses mais
graves e nas psicoses189, o fato de sermos um corpo, de termos um corpo que se prova a
A partir de inúmeros casos clínicos, Cotta (2010), em sua tese de doutorado, discute
Donald Winnicott, da perspectiva teórica desenvolvida por Gilberto Safra, e de sua grande
o corpo, o filósofo Michel Henry traz contribuições fundamentais. Elas têm possibilitado
Gilberto Safra (no prelo), discute essa contribuição de Henry para a prática clínica na
189
A esse respeito ver Dejours, C. (2014).O corpo entre psicanálise e fenomenologia da vida. In: Antúnez,
Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs) Fenomenologia da Vida
de Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia, pp. 197-224. São Paulo: Escuta.
190
Neste congresso apresentei em mesa redonda parte de minha pesquisa de pós-doutorado no trabalho
intitulado O corpo em Michel Henry: passagem da afecção para corpopropriação, no qual discuto o
processo de passagem da autoafecção para a corpopropriação. Todos os trabalhos apresentados nesta
mesa sobre Michel Henry serão publicados em conjunto posteriormente.
169
fenomenologia da vida de Michel Henry e a psicologia clínica. Afirma a relevância de
considerarmos a questão do corpo nesta perspectiva, tanto para compreensão dos quadros
denomina-o carne. A carne que é sempre carne de alguém. Lida com o corpo da
poderíamos considerar, de certo modo, neutro do ponto de vista espiritual, ela se oferece
Desse modo a corporeidade para Michel Henry não diz respeito à uma imagem
corporal projetada, nem é uma ideia para ser pensada. O corpo não é sua representação,
sentimento e da ação de si. Nas palavras de Maine de Biran, um corpo subjetivo e que é
o ego (Henry, 2012, p.21). Ego que se desenvolve a partir do Eu, ipseidade originária
doada na Vida (Henry, 1963). A partir de Biran, Michel Henry nos mostra que a revelação
170
totalmente interior, do meu corpo próprio. O sentimento de esforço acontece quando
realizamos os movimentos subjetivos em nossa carne, sendo que estes podem ou não
corps, 1965, Michel Henry postula que somos seres do movimento subjetivo e em
corpopropriados.
da vida: nossa essência se manifesta como afetividade em nosso corpo. Nas afecções e
que atravessa os processos bioquímicos constitutivos do nosso viver. A autora tece uma
referente aos processos bioquímicos, ficando suas leis sujeitas ao domínio das ciências
Corpopropriação
apropriação que o corpo, por meio do trabalho vivo, faz do mundo, transformando-o.
mas a si mesmo.
171
Nesse sentido, o saber-fazer (tekhne), “a possibilidade, em princípio, da ação, e
desse modo, de toda ação concebível, reside na práxis, encontrando sua essência na vida
práxis terapêutica que se efetiva na relação entre terapeuta e paciente - funda-se na vida
e realiza-se por intermédio de uma relação corpopropriada com o outro e com a natureza.
mutuamente.
Michel Henry, assumindo um papel cada vez mais determinante. Ele responde à
aparecer no mundo” (p. 101). χ partir do pensamento de Henry e fiel a ele, Christophe
trabalho.
Dejours (2012a), afirma que este corpo subjetivo, constituído a partir do biológico,
no qual está engajada também a relação com o outro: gestos, mímicas, suores,
sensibilidade do outro [...] E é bem este mesmo corpo da experiência a mais íntima
do mundo e da ação sobre ele, da técnica, envolve “a subjetividade como um todo” e que
172
“a partir do instante em que ela se dissocia aparece o espectro da doença mental”. χ
dificuldade reside no fato de que, para haver corpopropriação, é necessário que a pessoa
possa “ser habitada pelo sofrimento do trabalhar, da resistência e das evasões do mundo
ao seu poder e ao seu domínio”. Longe de simplesmente ser limitado ao tempo dispensado
trazer realização. Ela ocorre por meio do corpo, do sentir, em todos os tipos de trabalho,
desde o funcionário da fábrica, que desenvolve intimidade com a máquina que opera e a
por intermédio da corpopriação, ocorre no labor desse profissional. Ela diz respeito à uma
mas quando se acolhe as afecções que ocorrem em seu próprio corpo no encontro com
deficiência auditiva profunda, sem o uso de linguagem oral ou de sinais – o paciente não
191
No contexto desse artigo terepeuta refere-se ao profissional que faz atendimento clínico, ou seja, o
psicólogo, psicanalista ou psicoterapeuta.
173
um vínculo e o estabelecimento de um ambiente terapêutico suficientemente bom para
relacionava-se melhor com as outras crianças e com a família (Ferreira e Antúnez, 2014a).
movendo-me com ele, dar sustentação e condições para a modalização de seus afetos, de
sofrimento pudesse ser modalizado em fruição de si. Neste processo, difícil, vivido na
e Antúnez, 2014a).
A atitude terapêutica de ser presença real para o paciente, como discute em seu
trabalho Vera Marinho Carvalho (2001), só é possível de ser colocada em prática de forma
pertence-me porque me aproprio de mim no trabalho que faço; o que no trabalho lhe é
implica-me nele!”
174
Portanto, o terapeuta que trabalha de modo sensível o faz por meio de seu corpo
acolher os sentimentos e as sensações em seu corpo e pode agir e criar a partir deles na
relação terapêutica. O paciente, por sua vez, apresenta suas paixões, seu sofrimento e sua
alegria também em seu corpo, um corpo com poder de sentir, de se exercer e de criar, ou
corpo, que é subjetivo, carne, que eu sou, e na relação intercorpórea com a alteridade e
2013).
seguidas por Dejours (2012), poderíamos dizer que o trabalho realizado pelo terapeuta,
na relação com seu paciente, pode ser considerado como uma práxis corpopropriada, que
trabalho” (p.27).
produção de conhecimento.
corpo” e diz respeito às condições e maneiras como nos apropriamos do mundo como
“experiência afetiva do corpo e não como representação cognitiva”, como uma forma
175
particular de comunicação que “não passa pelas palavras, nem por discursos constituídos,
mas por uma simbiose com o mundo e com a resistência que este último opõe aos poderes
que passa primeiro por uma “corpopropriação” do mundo – é a condição sine qua
Decartes e prevalece até os dias de hoje. Florinda Martins (2014a) reitera que o resultado
da racionalidade científica, mas ainda da sua instituição em ideologia. Isto é, ela não
apenas exclui o sensível da racionalidade científica, com ainda a institui como única
científica nas áreas da psicologia e psicanálise. Vamos tomar, como exemplo, o trabalho
de Gilberto Safra, que embasa este artigo. Safra parte de Winnicott - mantendo
176
vida, no sofrimento e fruição, nas vivências clínicas coms seus pacientes, na sensibilidade
Gilberto Safra, a partir de seu trabalho clínico e científico, demonstra que a ciência
Portanto, não é mera reprodução mas criação, um saber fazer e um saber como fazer que
constituídas no afeto193.
relação com o mundo, a natureza, o trabalho. Não é somente controle e poder. Diz respeito
Para finalizar, ressalto a relevância das noções de corpo postuladas por Michel Henry
para a clínica psicológica, pois nelas são estabelecida: a relação direta e indissociável
sentidos como esforço, e que nos possibilitam a percepção de nossa existência em nosso
Referências
192
Como podemos verificar em seus livros A po-ética na clínica contemporânea, A face estética do self e
A hermenêutica na situação clínica (Safra, 2004; 2005 e 2006).
193
Termo cunhado por Florinda Martins e discutido no Colóquio Internacional Michel Henry na
Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, 2012.
177
Carvalho, Vera Lúcia C. Marinho (2001). Atitude terapêutica: a pessoa real do analista
Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs)
sentimento como os outros? In: Antúnez, Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda &
Ferreira, M.V. & Antúnez, A.E.A. (2013). Intersubjetividade em Michel Henry: relação
terapêutica. Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies, XIX(1), 92-
96.
Ferreira, M.V. & Antúnez, A.E.A. (2014). O corpo na clínica da modalização do afeto.
178
Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs) Fenomenologia da
Vida de Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia. São Paulo: Escuta,
pp.273-290.
Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa: Círculo da Leitores.
Henry, M. (2002). Prefácio. In. Florinda Martins, Recuperar o humanismo – para uma
Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs)
Andrés Eduardo Aguirre; Martins, Florinda & Ferreira, Maristela Vendramel (Orgs)
179
Fenomenologia da Vida de Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia. São
Plastino, C.A. (2007). Winnicott a fidelidade da heteredoxia. In: Bezerra, Jr., Ortega, F.
& Plastino, C.A. (orgs) Winnicott e seus interlocutores. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras.
Safra, G. (2005). A face estética do self: teoria e clínica. Aparecida, SP: Ideias & Letras:
Safra, G. (no prelo). A Contribuição de Michel Henry para a prática clínica na atualidade.
Psicologia da USP.
180
PSICANÁLISE E LITERATURA: VISITANDO IMRE KERTÉSZ
E-mail: josecotta@usp.br
Mia Couto
Resumo - Neste trabalho abordarei uma questão que identifico estar presente
(por desterro humano refiro-me, não ao exílio provocado por situações políticas, nem por
Prêmio Nobel de Literatura de 2002. Mencionarei que a questão do desterro humano está
diretamente relacionada à busca sem fim pela identidade, e irei expor minha hipótese de
194
Pós-Doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Clínica da USP, sob
supervisão do Prof. Titular Gilberto Safra. Doutor em Psicologia Clínica – USP, é Bolsista da FAPESP e
membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon do Departamento de Psicologia Clinica do
Instituto de Psicologia da USP, coordenado pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Tem artigos publicados em
livros e revistas nacionais e estrangeiras, é conferencista em seminários e congressos no Brasil e no
exterior.
181
que o desterro humano não é da ordem da psicopatológica, mas, isto sim, uma questão
Abstract: In this work, I shall bring up a question that I identify to be massively present
at our contemporary clinical experience: the human exile (as human exile I am referring
not to the exile provoked by political situations, nor to migrations derived from wars or
individual, originated by sensations of not belonging to the human race as well as not
being bounded to: oneself, his body, his family, his community, his country and to
the word in general), through a dialog between the clinical experience and the literature
of Imre Kertész, a Hungarian author and the 2002 Literature Nobel Prize. I shall mention
that the issue of the human exile is directly related to the endless quest for identity, and I
shall expose my hypothesis that the human exile does not belong to the psychopathology
field, but is inherent to the human nature, to the human condition as well as to the ontology
Introdução
mencionar a relação entre a literatura e a psicanálise, bem como dizer algumas palavras
182
Literatura e Psicanálise
Psicanálise. Haveria muito o que se dizer sobre esse tema, mas restringindo-me aos
objetivos desse trabalho, ressalto o fato de que Freud se utilizou de diversos textos
literários para desenvolver e, mesmo, legitimar muitos dos conceitos que criou, inclusive
a parte metafísica de sua obra, como nos demonstram Pontalis & Mango (2012/2013, p.
Freud reconheceu que muito dos fenômenos que observava na clínica já tinham
sido anteriormente descritos por escritores. Em alguns casos, décadas e mesmo séculos
parricídio,196 teve seu desenvolvimento também apoiado em uma obra literária, Os irmãos
Karamazov, de Dostoievski. Nesse texto de 1928, ele, inclusive, aborda as diferenças que
entende existir sobre a noção do parricídio nessas três citadas obras desses autores.
Fica evidente o grande valor que Freud (1976 b) dava aos escritores quando
formula
E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas
entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.
nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (p. 20).
195
Cf. Freud, 1976 a; 1987.
196
Cf. Freud, 1961.
183
O que é a Literatura? Qual sua função?
Caberia, agora, perguntar: mas, o que é a literatura, qual sua função? Para
Zaffari & Bourbon de Literatura de 2009; o segundo, José Castello, laureado com o
Prêmio Jabuti de 2011, pelo seu livro Ribamar, uma espécie de Carta ao pai, de Kafka,
do século XXI. Professor de literatura, crítico literário e articulista do caderno Prosa &
Verso do jornal O Globo, dele, citarei excertos retirados de algumas de suas colunas
Nasci no exílio, e por isso sou assim, sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida,
áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra – mas, afinal, quem sou
Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco. Insisto
quando caminha em outra. Tateia [...] em busca de algo que não consegue pegar.
184
A partir dessa ignorância de si, o escritor [...] segue em busca de uma identidade
que teima em lhe escapar e, por fim, se dá conta de que é um dândi – um “lorde”-
uma prosa que o preencha. Tudo o que lhe resta é seguir em frente. A criação se
torna assim um destino, e não um ponto de partida. Uma meta, e não uma escolha.
(p.5).
O que é a poesia? Como defini-la? De onde, afinal, ela vem? “O verso é um doido
cantando sozinho./ Seu assunto é o caminho. E nada mais!/ O caminho que ele
O poeta arremeda [...] a sina de Arthur Bispo do Rosário, o artista que se sentia
obrigado a colecionar uma peça de cada coisa existente para que elas
memória em farelos, com mais coisas trancadas do que abertas. (p. 5).
de Eliane Brum, Castello (2014) destaca a seguinte frase da autora: “χ palavra escrita me
encaixou em um corpo onde eu podia viver. O corpo-letra”. Sobre essa obra, comenta:
Toda história contada é um corpo que pode existir. É uma apropriação de si pela
remendar aquilo que não tem conserto. {...] funciona como uma cola que vem
185
Em outro artigo em que reflete sobre a poesia, Castello (2013 a) nos diz:
um deserto imenso – que ele, enfim, [...] torna-se dono de si, mesmo sabendo que
este “si”, na verdade, não lhe pertence. Ele é só uma pequena rolha com a qual ele
partimos para construir um sentido. Ergue-se sobre nada. Não tem fundamentos.
agasalha. Mas é preciso não esquecer: por mais vasta que seja a rede, ela é sempre feita
de furos.
Nos furos, o vazio. Nos furos, o lugar em que o poeta se posta e se apresenta [...]
O vazio, o poeta nos diz, é só uma construção que nos agarramos. É só uma
186
O desterro na clínica
[...] é comunicado pelos pacientes das mais variadas formas: em suas vivências
de não terem uma identidade própria, nas sensações de viverem fora do corpo,
de se perceberem como que falando de fora do corpo - como uma outra pessoa
-, bem como quando diante de situações em que se sentem ameaçados, nos dizem
Ainda nesse trabalho, digo que é como se me deparasse com casas vazias, onde
o morador evadiu-se. Sumiu e ninguém sabe para onde. De vez em quando, ele volta,
habita a casa e depois se vai, de novo. São como corpos sem alma, sem mente, sem
psique.
o corpo que se esvai, se vai. Só há o morador de uma casa inexistente, que perambula
por ruas vazias, algumas vezes sombrias e fétidas, outras vezes, ele nos surpreende com
está sempre a se viver como um homeless. Não tem para onde ir, não tem para onde
voltar. “Estou à deriva”, conta-me um paciente. O que está à deriva é a identidade pessoal,
o sentido e o destino da existência, assim como bem o explicitou uma paciente: “Não sei
197
A questão do desterro humano e sua relação com a corporeidade na clínica contemporânea foi por
mim desenvolvida extensamente em minha tese de doutorado. Cf. Cotta, 2010.
187
quem eu sou, não sei o que fazer, não sei para onde vou”.
qualquer quadro nosográfico, é minha convicção que a questão do desterro humano não
literatura especializada que abordam esse tema, ainda que assim não o denominem, como
é Gilberto Safra, com quem compartilho o entendimento de que o desterro humano não é
uma questão da ordem da psicopatologia, mas, sim, inerente mesmo à condição humana,
198
Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas apresentaram, respectivamente, os trabalhos Immigration to the
United States: Experiences of Survivors of State-Sponsored Torture e Immigration Psychology: Anti-
immigrant Attitudes in the United States and the Impact on Latino/a Families, em Abril passado, no
Seminário Psicanálise e Literatura: Visitando Imre Kertész, realizado no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo – USP, organizado por mim e pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Seus trabalhos,
bem como os demais apresentados no referido seminário, estão sendo por nós organizados, visando sua
publicação em e-book.
199
Cf. Lacadée, 2011.
188
incessante pela identidade e da importância fundamental do outro para a constituição do
si-mesmo, questões essas que não encontro ou pouco encontro descritas e pensadas na
literatura psicanalítica.
humano está poeticamente explicitada, com o objetivo de poder demonstrar que a leitura
humano e a busca sem fim pela identidade, questões tão presentes na clínica
Heureca é o título que Imre Kertész deu a seu pronunciamento por ocasião do
recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 2002, publicado em seu livro que tem o
sugestivo título de A língua exilada (Kertész, 2004). Ele, assim, inicia seu discurso:
Devo começar com uma confissão, talvez estranha, mas sincera. Desde que
minhas costas; e mesmo neste momento solene, quando me vejo como foco das
atenções, eu me sinto mais próximo desse observador frio que do escritor cujo
trabalho, de súbito, é lido em todo o mundo. Só posso esperar que a fala que terei
Em suma, eu morri uma vez, para que pudesse viver – e talvez seja essa a minha
verdadeira história. Se assim for, dedico meu trabalho, nascido da morte de uma
criança, aos milhões que morreram e a todos os que ainda se lembram deles.
189
entender da Academia, é também testemunho, ela ainda pode ter utilidade no
futuro, e – e este é meu desejo – poderá mesmo servir ao futuro. Porque sinto que,
Kertész dedica seu ofício a desvelar a condição humana. Esse escritor Húngaro
faz de sua obra uma reflexão sobre a existência, a morte, a identidade e a escrita. Diz ele
(Kertész, 1979/2007):
Embora tenha me criado no nada e tenha aprendido desde pequeno com a pura
razão, ou antes, com o meu senso comum a adaptar-me ao nada, mover-me e achar
meu caminho dentro dele, pois ele representava para mim a vida, na qual eu
deveria saber me virar, coisa que, sendo um menino, não foi mais difícil do que
Birkenau, Buchenwald e Zeitz, para onde fora deportado aos quinze anos; no pós-Guerra,
novamente a experiência de ser tratado como coisa, desta feita, sob a ditadura comunista
da Hungria; no âmbito das relações objetais, viveu sob o domínio de um pai autoritário e
de uma família cínica. Em Liquidação (Kertész, 2005), outro título também muito
190
Vivemos na era das catástrofes, todo homem é portador da catástrofe, e para a
tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O
meio social terrível – o Estado, a ditadura, chame-o como quiser – o seduz com a
força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e
nele exploda o caos como um gêiser fervente – e a partir de então o caos se torna
sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma
É notável a semelhança entre tudo isso e a resposta que Silenos foi obrigado a dar
ao rei Midas: ‘... χ melhor coisa para você seria não ter nascido, não ser nada. χ
segunda melhor coisa, porém, seria morrer o quanto antes. (p. 139).
Em Kaddish, por uma criança não nascida (Kertész, 1990/2002), ele começa o
livro com um retumbante “Não!”. Nessa obra, ele explica suas razões para negar-se a ser
pai, ainda que ao preço da enorme dor de separar-se de A., sua mulher amada. Nesse
texto, ele expõe sua visão de que Auschwitz, a ditadura comunista húngara e sua família
de judeus ortodoxos se igualam no que diz respeito a tratar o outro como nada, como
ninguém. Daí se compreende a contradição do título - Kaddish, por uma criança não
191
Já em Eu, um outro (Kertész, 1979/2007),200 uma espécie de autobiografia em que
relata suas muitas viagens, mas não como um mero turista, e, sim, num certo sentido,
como um pesquisador da condição humana, diz ser um eterno exilado, more onde morar,
esteja onde estiver. Fala-nos que não tem ninho; que tem pátria, mas não a tem:
É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde
justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um novo lar. (p.88)
Vivo como um exilado. Nesse único aspecto vivo corretamente: sou um exilado.
(p. 75)
Kertész sabe que tem língua materna, mas sua língua é estrangeira:
A língua – sim, ela é a única coisa que me mantém ligado a ele. Como é estranho.
Essa língua estrangeira, minha língua materna. Minha língua materna, que me
Ele se pergunta “quem sou eu?”, mas sabe que não é possível responder tal
pergunta:
Que tipo de judeu sou afinal? Nenhum. Há muito tempo não estou mais à procura
de minha pátria, nem de minha identidade. Sou diferente deles, sou diferente dos
200
A respeito desse livro, há uma excelente critica elaborada por Tatiana Salem Leví. Cf. Leví, 2008.
192
Às vezes, quase tenho que me arrancar do refúgio sossegado do meu anonimato,
quando ouço falar ou vejo escrito o nome I. K., mas sei que nunca vou me
Vocês não vão querer de mim que declare claramente minha nacionalidade,
religião e raça? Vocês não vão querer de mim que eu tenha uma identidade?
Então, vou contar para vocês: tenho uma única identidade, a identidade do
Ele termina seu anteriormente citado livro Eu, um outro, assim explicitando o
alguém que perdeu seu caminho e, entre passado e futuro, escapuliu do tempo.
Mais tarde, vou me reerguer penosamente dessa queda e seguir a voz persistente,
a palavra que, por detrás dessa neblina cinzenta que me circunda agora, me chama
para viver de novo. Neste momento, porém, não sei de nada, não entendo nada,
estou, por assim dizer, no limiar da vida e da morte, com o corpo inclinado para a
frente, em direção à morte, com a cabeça ainda voltada para trás, em direção à
vida, com o pé que se levanta, hesitante, para dar um passo. Em que direção irá?
Não importa, porque aquele que dará o passo, não será mais eu, será um outro...”.
(p. 173)
193
Conclusão
principais hipóteses:
Safra (2014);201
desenraizamento humano.
um dos maiores compositores do século XX, cuja trajetória de vida tem semelhanças com
a de Kertész: filho de uma família judia, sua mãe escapou de Auschwitz, mas nem seu
pai, nem seu irmão tiveram a mesma sorte. Perseguido e proibido de executar suas
intitulado Luz eterna, cantada a 16 vozes, por A Capella Amsterdam, Daniel Reuss e
201
Informação verbal fornecida por Safra, em São Paulo, em 2014.
194
Referências
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Penguin Books.
complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., Vol. XXI, pp. 177-
196). London: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Trabalho original
publicado em 1928).
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brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol.
IX, pp. 19-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1907).
195
______. (1987). A interpretação dos sonhos (Parte I). In S. Freud, Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol.
IV, pp. 15- 363). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).
Kertész, I. (1979/2007). Eu, um outro. (Raquel Abi-Sâmara, trad.). São Paulo: Planeta.
______. (1990/2002). Kaddish, por uma criança não nascida. (Paulo Schiller, trad.). Rio
de Janeiro: Imago.
______. (2001/2004). Liquidação. (Paulo Schiller, trad.). São Paulo: Companhia das
Letras.
______. (1975/2003). Sem destino. (Paulo Schiller, trad.). São Paulo: Planeta.
_______. (2003/2004). A língua exilada. (Paulo Schiller, trad.). São Paulo: Companhia
das Letras.
Pontalis, J.-B. & Mango, E. G. (2012/2013). Freud com os escritores. (André Telles,
196
A CONTRIBUIÇÃO DE PAVEL FLORENSKY PARA A SITUAÇÃO CLÍNICA.
Gilberto Safra
E:mail: iamsafra@usp.br
fenomenológico, que busca colher as experiencias que aparecem no espaço clínico sem o
antropológico utilizado é o do homem que tem o seu fundamento no gesto criativo, que
enraizado na liberdade que acontece como desamparo diante de sua existencia. O texto
197
PAVEL FLORENSKY CONTRIBUITION TO THE CLINIC SITUATION
Abstract: This work approaches the clinical situation, without using metapsychology as
seeks to collect the experiences that appear in the clinical situation without excessive
theorizing, with the aim of assisting the establishment of the patient´s sense of self. The
anthropological model used is the conception where man has its foundation in the creative
gesture that opens the possibilities of being and existence. Man is rooted in the freedom
that happens as helplessness in the face of his existence. The text discusses the
Florensky´s contribution presented in his book entitled The Reverse Perspective, using it
unveiling of different aspects of reality, giving access to depths that are not always the
linear perspective allows observing. As regarding the reverse perspective in the clinical
situation, the paper presents the following aspects: the existence of multiple centers,
coexistences of different plans, and the organization of the composition organized to the
O setting é compreendido como espaço no qual o cuidado torna-se elemento que orienta
o trabalho a ser realizado, para que experiências constitutivas possam acontecer. Claro
202
Winnicott, W. D. Playing and Reality. London, Tavistock, 1971.
198
está que, nesse vértice, não se está privilegiando o insight, mas sim o acontecimento que
A fim de que esse trabalho possa ser realizado, temos um modo de abordar a
paciente.
criativo, que ao abrir possibilidades existencias para a pessoa, também forma a sua
possibilidade de ser. Homem enraizado na liberdade que se oferta a ele como desamparo
diante de seu existir e de seu destino. A pessoa é aqui habitante da fronteira entre mundos,
meio de seu gesto criativo, que o coloca em direção ao futuro. A pessoa tem suas raizes
no passado e busca alcançar o futuro, onde situa o sonho último que acalenta a sua morte.
O nosso modo de ser se caracteriza por um contínuo devir. Somos seres que
aspiram o absoluto e que ao longo do caminho sonham com a realização do que dormita
no fundo de nós mesmos. Vivemos atravessados pelo pressentimento de si, pela memória
cada pessoa existem as facetas de si mesma que se constituíram por meio do encontro
199
e a evolução das facetas de seu modo de ser, que não chegaram a acontecer por meio de
um encontro com outro ser humano, condição necessária para que se coloque em marcha
A cada vez que um determinado aspecto emerge e que, potencialmente poderia vir
a ser constituído na relação com o outro, a pessoa como que experimenta, novamente,
só de seu estilo de ser, mas fundamentalmente da vocação que o constitui. A sua vocação
nasce dos atravessamentos que foram vividos pela pessoa, que aconteceram como aflição
do self se aloja o gesto e reconhecer a sua vocação fundamental. Ao falar de vocação não
que singulariza o paciente e que lhe dá o saber singular sobre a condição humana. Pavel
Pavel Florensky foi físico, matemático, poeta, pintor, teólogo. Para ele, haveria
viviente. As diferentes ciencias seriam para ele diferentes linguagens para abordar a
203
Florensky, P. A perspectiva inversa, São Paulo, Editora 34, 2012.
200
Nesse texto, quero abordar a contribuição que Florensky apresentou como a
situação clínica. Para apresentar e discutir essa modalidade de perspectiva, ele se utiliza
da iconografia cristã ortodoxa, a qual é composta por meio da perspectiva inversa, que é
naquela modalidade de arte sacra não pode ser atribuído ao desconhecimento dos
princípios do desenho. Para esse autor a perspectiva linear e a perspectiva inversa são
sobre uma superficie plana. Toda arte não pode, para ele, ser considerada naturalista, ela
é sempre simbólica. Isso significa que sendo a arte um símbolo aponta para um mais além.
Para ele, a tarefa da pintura não seria duplicar a realidade, mas desvelar um significado.
Florensky afirma que a perspectiva linear cria, de fato, uma obra ilusionista, que
cria um cenário sem que um significado transcendente pudesse se mostrar através dela.
Segundo esse autor, a obra de arte tem a possibilidade de nos unir com realidades que são
inacessíveis aos nossos sentidos. Florensky acredita que a persperctiva inversa permite o
diferentes planos, a organização do desenho que converge para o olhar das pessoas que
contemplam a obra.
converge para o olhar do observador. Isso ocorre, pelo fato de que a realidade é vista
201
fundamental será necessário abrir o espaço para a perspectiva dialógica. Essa faceta da
realidade, é fundamental para a situação clínica, pois tudo o que acontece no espaço
inversa, implica que todos os elementos presentes na obra são revelações completas do
ser implicitos nos entes representados. Na perspectiva inversa cada um desses elementos
são como que vistos em todas as suas dimensões, por todos os lados. Esse modo de
cosmovisão.
Claro que esse modo de olhar a obra ou uma sessão nos oferta possibilidades de
atentos ao discurso, ao conjunto da sessão como evento apresentativo, mas cada pequeno
gesto, evento, ou coisa abre dimensões do ser do paciente que, uma vez acolhidos permite
por meio dela percebemos diferentes facetas, que compõe a realidade. Ao longo de meus
evento. No entanto, Florensky nos alerta que cada registro de realidade tem subjacente
202
outros registros de realidade diferentes do primeiro, de modo tal, que cada registro mais
profundo de realidade, acolhe o registro anterior e ao mesmo tempo o supera. Esse aspecto
realizar abstrações, mas também o posicionar-se diante do self potencial do paciente que
Essas discussões são também abordadas por Florensky ao lado de Cantor, com a
de alguém. Esse último aspecto tenho abordado em meus textos quando afirmo que cada
singularidade.
A escrita de um ícone compreende esses diferentes principios, pois por meio deles,
o iconógrafo busca por meio de seu trabalho assinalar o ser daquele que ele procura
representar. Por essa razão, o ícone nunca é um retrato, mas sim desvelamento do mistério
que é a pessoa. O trabalho clínico procura realizar a mesma tarefa, ou seja, acompanhar
o paciente, com a esperança de que o seu ser possa se atualizar, no seu caminho pela
existência.
pessoa!
203
PAVEL FLORENSKIJ: O PENSAMENTO COMPLEXO E A PSICOLOGIA
E-mail: marciovisconde@yahoo.com.br
tornam-se ocasião para que ele pudesse refletir pela última vez sobre aquelas intuições
originais que estavam na base do seu projeto sobre o “pensamento integral”. O artigo
carcerária. O objetivo principal será apresentar as cartas do gulag como uma obra que
PSYCHOLOGY
204
Professor Adjunto no Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCPR.
204
Abstract: P. A. Florensky (1882-1937), Russian scientist and thinker, recognized for his
multifaceted interest in the field of knowledge, was one of the defenders of the need for
a thinking able to approach and describe reality in its multiform complexity. The eloquent
decides to arrest Florensky and take him to a concentration camp, the letters written to
his relatives become an occasion when he could reflect for the last time about those
original intuitions that were at the basis of its project on "integral thought". The article
aims to show how this particular intention is present in the prison correspondence. The
main objective will be to present the letters of the Gulag as a work that manages to achieve
the ambitious and always current Florensky's project in a lucid and exemplary manner,
demonstrating its functionality even in dramatic and prohibitive conditions of life and
work.
Introdução
da tradição ortodoxa russa e, por outro, a uma determinada sensibilidade científica que
205
S. N. Bulgakov; N. A. Berdjaev; L. P. Karsavin; P. A. Florenskij, Frank e V. Losskij
procuraram uma fundamentação ontológica para pensar a experiência humana. Para eles
fundamental para a interpretação não só de todo o sistema teológico, mas é uma categoria
repensadas. Para aqueles que elaboravam uma teologia e filosofia dentro da tradição
eslavófila os motivos de tal interesse devem ser procurados na tendência destes autores
‘alma russa’.
econômica e ecológica. Para Safra o estudo das intuições destes autores – principalmente
os russos – fornece os elementos para a realização de uma clínica na qual o analista possa
vida, de vazio existencial, de morte em vida” (SχFRχ, 2005, p. 13). χ reflexão sobre o
206
1. A originalidade de Pavel Florenskij: o modelo de um pensamento
complexo
pensamento de Florenskij como parte de um projeto de pesquisa que vem sendo realizado
tais como a antropologia, a teologia, a filosofia, para que o clínico investigador possa
abarcar a complexidade do fenômeno” (SχFRχ, 2012, p. 289). Desse modo, Safra tem
Nos textos desses autores são discutidas essas questões não só da Rússia do início do
século vinte, como também, em tom profético, os problemas de nosso tempo, em que
humana, explicitando o ethos. Para realizar esta tarefa criam uma obra resistente à
vértices literário, filosófico, político e religioso. (...) Esses autores escreveram obras
207
em que o ethos humano se explicita em seu registro ontológico. (SAFRA, 2004, p.
33).
maiores pensadores russos do século XX, chamado de Pascal ou Leonardo da Vinci russo
(ZAK, 2002; 1998). O pensamento e a obra deste matemático, filósofo, critico de arte e
teólogo é ainda pouco conhecido no ambiente acadêmico brasileiro. A sua obra reflete
tanto a experiência feita como cientista quanto teólogo ao buscar a verdade e a beleza a
partir das fontes, sobretudo no tesouro de sabedoria da Sagrada Escritura e dos padres da
Igreja. De fato, para Florenskij nenhuma fórmula, definição racional ou sistema fruto da
1998, p. 67). Logo depois de terminar com grande sucesso seus estudos na prestigiosa
mãe dizendo que ele e seus amigos queriam se empenhar em encontrar as bases para
realizar o diálogo entre a fé e a razão, entre a teologia e a ciência: “Vou chegar à síntese
entre a cultura eclesial e a cultura leiga e estar plenamente unido a Igreja, eis um dos mais
ambiente intelectual da russa da época. Uma figura que, por sua vez, mostra-se aberto à
208
Se uma das finalidades da concepção filosófico-científica do mundo é a contabilidade
cada uma das suas partes, então o objetivo da experiência científica (entendendo esta
realidade, de colocá-los em destaque e delimitar os seus confins. Mas para fazer este
trabalho de separação, a consciência deve poder dispor de algo sobre o qual poder
operar e este algo é que já está presente no espírito. Este algo não é dado
que tenham maior ressonância, um material que possivelmente não tenha estado
teológica radicada no terreno da gnosiologia. Para ele a amizade – no sentido cristão mais
indispensável da vida”:
recíproca, vital das pessoas que se amam. A comunhão da amizade é a fonte de sua
cristãos recebem da vida comum, escrevia aos Efésios: ‘estejam atentos a se reunir
209
mais frequentemente para agradecer e louvar a Deus porque quando vocês estão
Aqui ele nos está dizendo que a comunidade do amor não deve limitar-se a uma ideia
Pode-se, portanto, dizer que a concepção que tem o pensador russo sobre a
científicas estão permeadas pela sensação do mistério presente na realidade que, por sua
vez, e, portanto, nos fazem pensar na experiência de correspondência vivenciada pelo ser
humano entre ele e a natureza porque “natureza e homem podem ser partes de si mesmos
percepção do real deve ser compreendida à luz da teoria do símbolo que Florenskij (2007;
2003) elabora e considera fundamental para o seu pensamento. Segundo nos diz o
estudioso Zak (2014, p. 27) tal teoria diz que tudo o que aparece, isto é, o fenômeno, não
é outra coisa senão a porta na direção de algo ainda maior, que está além, o noumeno.
Algo que é realmente presente no fenômeno, fundando o seu ser (enquanto fenômeno) e
dando-se a conhecer por meio dele. Tal teoria vê no real um conjunto de inumeráveis
níveis ou estratos – semelhante a uma cebola feita de tantos “véus” – que são
tem o seu fundamento naquele “escondido” que está além deste e do qual aquele mais “na
210
concepção que exige a atenção no exame da realidade. Em outros termos, é necessária
uma atitude de empatia gnosiológica para saber escutar os “sons da profundidade” de tudo
o que existe. Assim, para Florenskij ter a capacidade de aproximar-se do “ritmo” da vida
relação vital.
2. As cartas da prisão
À luz das recentes pesquisas em arquivos aparece evidente que o elenco dos
Pavel A. Florenskij205, fuzilado pelo regime em 1937 com a acusação injusta de ser um
foi já traduzido em lingua espanhola206 e, antes ainda, apareceu na Itália207, onde encontra
um enorme sucesso editorial e está sendo buscado por leitores de todas as idades, credos
síntese de toda obra de Florenskij. Trata-se de uma espécie de “canto do cisne”, nas quais
são resumidas e explicadas as mais profundas intuições do sábio cientista que, quase de
205
As cartas foram publicadas em P.A. FLORENSKIJ, Soči e ija čet e h to a h (Obra em quatro volumes),
M sľ,àMosk aà .à
206
P.A. FLORENSKIJ, Cartas de la prision y de los campos, EUNSA, Navarra 2005.
207
A tradução italiana de uma parte das cartas encontra-se em P.A. FLORENSKIJ, «Non dimenticatemi». Le
lettere dal gulag del grande matematico, filosofo e sacerdote russo, publicada por Oscar Mondadori,
Milano, e em 2013 chegou a sétima edição.
211
da primeira metade do século XX, empenhando-se na busca por um remédio para a força
manter-se fiel aos laços mais originais das relações afetivas com os seus amados
do homem moderno que estava como que entregue ao seu próprio sentir e querer, enfim,
Faz tanto tempo que não tenho tuas notícias...Aqui, ainda que possa parecer
estranho, tenho uma série de imagens impressas ligadas ao Caucaso: aquelas dos
rostos, das linguas e da natureza (...). A minha memória visiva, ainda que débil
com relação a infância, é ainda muito forte, de forma que vejo claramente dentro
de mim o teu rosto. (...) somente por meio de vocês passa o fio que me liga à vida,
tudo o resto me interessa somente com relação a vocês. E isto pode parecer
poder estar com vocês. (....) Talvez eu erre, mas eu faço este trabalho sempre em
referência aos filhos, na esperança que o meu material possa ser instrutivo para
enquanto aquilo que é recolhido por outros com uma certa perspectiva,
normalmente é pouco utilizado. Mas é a vida!!! nós nos damos conta da vaidade
dos esforços mas se espera sempre... Talvez o sentido deste trabalho é só aquele
de fazer saber aos filhos que penso sempre neles e que procuro ajudar-lhes como
212
Pode-se dizer que as cartas constituem uma herança humana e cultural de grande
humano provocado pelas ideologias totalitárias que se apresentam com “novos rótulos”
olhar para o sofrimento contemporâneo sob uma nova luz. Basta pensar, por exemplo,
para a clínica psicológica. Nas cartas Florenskij insiste em mostrar tal abertura a
totalidade dos fatores, tal como se vê nas linhas da missiva à sua filha Olga:
De fato, todo conhecimento não deve ser uma espécie de coágulo autossuficiente
na alma, mas uma linha auxiliar da nossa relação vital com o mundo, do nosso
contato com o mundo. Isto que eu disso do conhecimento tem um significado geral
e se refere seja à arte, seja à filosofia, seja à vida cotidiana. (FLORENSKIJ, 2006,
p. 325).
Certo é que, nos escritos da prisão, Florenskij reflete sobre a pessoa humana a
principal também desta comunicação, pois se deseja oferecer uma pequena introdução
daquilo que o autor conseguiu nos transmitir nas difíceis condições do gulag das ilhas
Solovki. Convém, todavia, ter presente que, embora a palavra Gulag já tenha se
ilhas Solovki foi transformado pelos bolchevistas “no lugar dos maiores sofrimentos para
213
No epistolário, escrito desde esta ilha do martírio, não aparecem as elaboradas
caracterizavam grande parte das obras de Florenskij antes de sua prisão. Convém ter
presente que ele foi obrigado a viver em um ambiente infernal e, assim, o tempo para a
tempo, em razão desta penosa situação, Florenskij conseguiu propor reflexões com tons
são os diversos relatos que Florenskij faz a respeito dos sonhos com seus familiares e,
além disso, os relatos das recordações de infância a respeito dos seus pais: (em carta a sua
Me recordo muito frequentemente da morte de meu pai. Ele tinha alguns sonhos
(ou também eram visões) de viagens, ou de migrações nomades nos espaços sem
normalmente se pensa que a humanidade vai morrer pela carência de algo. Para
mim, ao contrário, é claro que irá morrer pela abundância’. Também para mim o
muito causa sempre medo, desde a minha infância, porque com a abundância
parece que irrompe o caos sem forma, que você não está em condições de governar
e que sai do controle. Onde não existe uma composição, não pode existir nem
(FLORENSKIJ, 2006).
214
Mas, enquanto o regime totalitário procurava meios para censurar qualquer
mistério que habita o mundo, por meio de cartas que testemunham o valor da memória e
humana. São cartas escritas nos raros fragmentos de tempo livre, depois de vencido o
cansaço de dias massacrantes de trabalhos forçados. Estas missivas são, portanto, uma
apaixonada confissão de quem consegue ser fiel às próprias convicções nas condições
mais dramáticas, de quem sabe colher a verdade profunda de tal vivência e mantêm a
maior parte das cartas são endereçadas à sua mãe Olga, à mulher Anna e aos cinco filhos.
A filha menor, por exemplo, Maria-Tinatin tinha apenas nove anos quando o pai foi preso
pelo regime. O nosso autor preocupou-se em numerá-las para, desse modo, poder ter um
mínimo de controle da trajetória e destino uma vez que elas eram submetidas à severa
inoportunas para expedir ao “mundo externo”. Em tantas ocasiões aparece nas cartas a
recordação das fadigas encontradas pelos prisioneiros para redigí-las porque era
extremamente dificil encontrar o papel e a tinta para escrever. Em geral, cada texto era
partes distintas e, em seguida, cada parte era destinada a um membro da família: à mãe,
à mulher, aos filhos e filhas. Cada membro da família podia ler separadamente a sua carta
pessoal na qual, todavia, não faltava uma referência e uma saudação a todos os outros
ambiente de intercâmbio entre todos aqueles aos quais se dirigia. Desse modo, ao escrever
à filha menor Maria pede no final para que ela deixe uma saudação para a mãe e que cuide
215
do irmão e, do mesmo modo, faz apelo aos outros filhos para compartilharem as
descobertas realizadas. Com efeito, o que está presente aqui, sublinhe-se de novo, é a
Ele desejava introduzí-los nos segredos tanto da compreensão das obras de arte
colocada sobre o fato de que tudo o que existe contêm em si uma “estrutura interna”. E
esta, mesmo na diversidade dos fenômenos – sejam eles naturais, conectados com a vida
e a existência enquanto tal, sejam eles de tipo cultural -, tem características universais. É
esta estrutura interna que deve ser buscada quando se observa a natureza, como também
esta estrutura que Florenskij se detêm na carta escrita a Olga em 22 de fevereiro de 1935.
Ele deseja ensiná-la a reconhecer o que é típico da estrutura das melhoras obras literárias
que, por sua vez, porém, trazem as marcas características da “estrutura interna” de cada
fenômeno do mundo real. Ou seja: elas possuem uma constituição marcada pelas
Quando você lê uma obra, procure entender como ela foi construída do ponto de
216
certo tema da trama, mas por qual razão, por qual motivo ele foi mantido pelo
se examina bem, vê-se que tal contradição serve para intensificar o efeito estético
da obra. De tal forma que a contradição aguça a atenção do leitor. Pode-se dizer
que quanto mais grandiosa é uma obra, tanto maior são as contradições que
da “estrutura interna” dos fenômenos do real e de tudo aquilo que existe. Ela não é senão
uma prova do fato de que a interioridade dos fenômenos é de uma grande complexidade.
secreta” que ressoa do interior deles. De fato, quanto mais se penetra no microcosmo de
qualquer um dos particulares fenômenos, percebe-se ainda com maior clareza neles a
todas estas coisas em uma carta endereçada ao filho Kirill, no período em que este já
filho para prestar atenção e dar-se conta de que quando na pesquisa temos a impressão de
saber que tal impressão não corresponde quase nunca à realidade. Entretanto, ela acontece
2006, p. 358, Carta de 23-24 de dezembro de 1936). Contudo, a impressão é uma coisa e
a verdade outra e esta última começa a emergir quando a pesquisa científica renuncia a
que nasce e se desenvolve a partir de uma experiência concreta. Por sua vez, as
experiências cotidianas demonstram que “a complexidade não diminui com a redução das
217
dimensões e de certas complicações”, porque no lugar delas aparecem outros
componentes inusitados.
Conclusão
conectado com o mundo externo. Até o fim da vida a correspondência foi capaz de
infundir no prisioneiro a esperança, novo vigor e razões para viver e pensar. É isto que se
conclui das palavras escritas a poucos meses antes do fuzilamento que nem sequer havia
sido anunciado: “Tenho a sensação que a este ponto não existe nada que por si mesmo
aprender a arte de viver que, segundo relata, consiste em preencher cada instante da vida
com um conteúdo substancial. Em julho de 1936 escreve a Annulja recordando que a luta
de sua vida era com o desejo ilimitado de sua alma, mas reconhecia que a sabedoria
provém da capacidade de saber delimitar: “Onde não existe uma composição, não poderá
existir uma verdadeira compreensão, mas qualquer composição artística, por exemplo,
As cartas, portanto, segundo nos afirma Zak contêm a doutrina de Florenskij sobre o
pensar. Trata-se de um verdadeiro e próprio testamento que o pensador russo deixa aos
familiares e, por meio deles, para toda a humanidade. Assim, as cartas da prisão são um
218
complexo. A sua atualidade é, sem dúvida a mesma, senão maior, com relação ao tempo
na qual foram elaboradas. São cartas redigidas com as mãos algemadas pelo sofrimento
últimos anos da vida em um dos mais cruéis e infernais gulag do século XX.
Referências
Mondadori, 2006.
Mondadori, 2000.
SAFRA, G. A po-ética na clínica contemporânea. 3ª ed., São Paulo: Idéias & Letras,
2004.
_________. A face estética do self – teoria e clínica. São Paulo: Unimarco, 2005.
219
_________.A questão da depressão: horizontes antropológicos In: REBLIN, I. A.; VON
ZAK, L. Pavel A. Florenskij: invito alla lettura. Torino: San Paolo, 2002.
Nuova, 1998.
Márcio Luiz Fernandes e Valdinei de Jesus Ribeiro; São Paulo: Ave-Maria, 2012.
Editora, 2014.
220
MESAS REDONDAS
221
PESSOA-COMUNIDADE E INTER-RELAÇÕES NA OBRA DE EDITH STEIN
Clélia Peretti208
E-mails:cpkperetti@gmail.com
Resumo: O presente artigo toma como texto base o capítulo oitavo da obra a Estrutura
della persona umana. Corso de antropologia filosofica de Edith Stein intitulado O ser
humana e suas relações sociais o que possui relações diretas com a empatia e com a ética.
A sociabilidade humana é discutida a partir dos quatro aspectos apresentados por Edtih
Stein: atos sociais, relações sociais, formações sociais e tipos sociais. Com o objetivo de
apresentar as contribuições de Edith Stein a análise do texto consiste nos seguintes passos:
Abstract: This article is based on the eighth chapter of Edith Stein’s text “The structure of
the human person: lectures on philosophical anthropology”, entitled “The social being of
the person”. We choose to focus this particular chapter because it puts emphasis on
theconcept of human person and his social relations, which directly concerns a reflection
208
Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, RS. Membro da Academia
Internacional de Teologia Prática (IAPT). Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação e
Bacharelado em Teologia da PUCPR. E-mail: clelia.peretti@pucpr.br.
222
on empathy and ethics. The human sociability is discussed based on four aspects,
according to Edith Stein: social acts, social relations, social formations and
social types. In order to present the contributions of Edith Stein, our analysis of her
text follows these steps: introduction of the contents; analysis of the person as a social
Introdução
Edith Stein, ainda jovem estudante, se interessa pelo tema da pessoa humana e,
produção intelectual. A compreensão da empatia, qual é a essência desse ato, como ele é
possível e o que nele está implícito, leva a uma profunda análise antropológica, fazendo
interdependentes.
223
essencialmente uma relação de interdependência constitutiva, onde os aspectos - ativo e
mesmas, o que só pode acontecer a partir de uma abertura recíproca (STEIN, 1996).
comunidade é observada no seu aspecto objetivo como forma social, mas é olhada por
dentro a partir dos seus aspectos constitutivos formados pelas experiências dos seus
membros. Edith Stein sustenta que a fundamento de todas as comunidades, da mais ampla
até a mais restrita, existe uma comunidade universal por ela denominada de humanidade.
Suas contribuições são valiosas ferramentas para discutir os aspectos essenciais do ser
sociais e tipos sociais. Ninguém nega que, do ponto de vista biológico, todos os seres
se possa admitir que exista um gênero ou um tipo natural que definimos humano. Mas,
afirmar que existe uma comunidade humana é problemático porque essa implica
necessariamente uma particular relação entre os seres humanos. Contudo, sabemos que
direitos humanos que giram ao redor das questões dos direitos inalienáveis, da violência,
uma comunidade humana como também a inviolabilidade das pessoas humanas. Num
224
mundo globalizado marcado pela lógica do individualismo e da indiferença qual é o
sentido do “nós”, da comunidade humana? Quem é o outro? Quais são os critérios para
existir como o meu, “é um ato que funda o agir solidário, educa para os valores éticos e
2014, p. 11).
performatividade dos atos sociais. Edith Stein inicia o capítulo de forma dramática com
a seguinte afirmação:
relações exteriores que se dão a um ser existente em si mesmo e para si; o estar
225
inserido como membro em uma totalidade mais ampla já faz parte da estrutura do
de suas obras filosóficas. Desde o início de sua investigação a pessoa humana possui uma
que faz progredir as ciências, tanto para aprender a se conhecer quanto para aprender a
conhecer a realidade em que vive. Edith Stein nos fornece neste capítulo uma “imagem”
do ser social do humano como um ser que realiza atos sociais; vive relações sociais; é
reflexão de Edith Stein. Neste capítulo Edith Stein apresenta a ideia embrionária de
comunidade não se encontra, nem no seu tratado sobre a empatia, nem nos escritos de
mais amplo de comunidade encontram-se na obra Una ricerca sullo Stato (1993), onde a
filósofa afirma que o estado é um tipo de comunidade que se coloca entre as formas mais
Münster, um conceito que Edith Stein desenvolverá na sua obra magna, Ser finito e Ser
eterno (1988).
2013, p. 185-199).
226
Edith Stein, entende por atos sociais, os atos do eu, ou seja, os atos que se
entrelaçam com a competência performativa do humano. Trata-se dos atos pelos quais
uma pessoa se dirige a outra pessoa por meio de perguntas, pedidos e ordens. Todos esses
atos são ditados pela vontade de motivar a outra pessoa a assumir um determinado
axiológico, que inclui o amor, o respeito e a admiração. Edith Stein considera que no caso
dos atos de valorização pessoal, embora os valores não possam ser compartilhados e
reconhecidos, é possível ainda reconhecer estes atos como sociais, porque envolvem mais
de uma pessoa, embora esta última possa não estar envolvida diretamente na ação. De
acordo com Edith Stein existe uma terceira categoria de atos sociais constituída por
aqueles que possuem a força de produzir ou anular uma determinada realidade objetiva
no mundo social:
(...) assim, uma promessa produz o direito de exigir sua realização: este direito
renúncia a sua satisfação pela pessoa a quem a compromisso foi realizado. . Todo
existente um consenso acerca dos acordos entre as pessoas (STEIN, 2013, p. 187).
Para as relações sociais, Edith Stein sustenta que essas pressupõem um contexto
do eu-tu: as relações sociais não são somente ações de, mas ações entre pessoas. Trata-
Até que eu vivo sentimentos de amizade em relação a alguém sem que o outro
tenha consciência e lhes retribua, não existe ainda amizade entre nós. Somente
227
quando dois seres humanos expressam reciprocamente seus sentimentos, apenas
amizade. As pessoas nesta relação, são amigas. A partir desse momento, esta
relação faz parte do seu ser pessoal e contribui para determinar sua vida [/136].
solidariedade que caracteriza as relações sociais pode ser alcançada somente quando as
na experiência do outro.
A pessoa é membro da estrutura social. Edith Stein ressalta neste terceiro aspecto
que a comunidade é a mais alta forma de sociabilidade e revela uma estrutura unitária
onde convergem tanto as relações quanto os atos. Enfatiza a relação entre as partes e o
são pessoas, mas são semelhantes a estas. Edith Stein diz que “é possível falar de
comunidade num sentido mais amplo não somente onde existem relações recíprocas
entre as pessoas, mas onde as pessoas se apresentam também como unidades, no interior
das quais essas se ligam a um nós” (STEIN, 2013, p. 188). Os temas que emergem aqui
são aqueles de história, espírito e valores relacionados com a ideia de humanitas: “na
base de cada comunidade humana, tanto daquelas efêmeras como daquelas “de natureza
o homem é desde sempre um ser social inserido numa comunidade, mesmo que não esteja
instância, é o fato de ela ser partícipe da vida do “homem-Deus”, ou seja, sua unidade
228
Mas qual é a relação entre a constituição essencial do ser humano e os laços
Comunidade e Sociedade (1887). Stein também fez referência a esta última no ensaio de
1922, Psicologia e ciências do espírito. Contribuições para uma base filosófica, mais
para Edith Stein fundado teologicamente; e, em nota, faz referência ao Corpus Christi
Mysticum. Lê-se:
como unidade, dentro da qual estão ligadas a um nós. Essas estruturas podem ser
transitórias e temporárias; podem, contudo, ter uma consistência que vai além do
quando há uma comunidade de vida permanente entre pessoas, que atinge até as
profundezas, e lhe atribui uma marca duradoura; uma comunidade que não se
funda somente sobre relações passageiras ligadas ao presente, mas também sobre
laços objetivos supraindividuais, que possui sua própria lei de formação segundo
ser humano compreendido como membro de uma comunidade é também um tipo. Edith
Stein observa que um indivíduo pode possuir no seu ser algo em comum com os outros
no interior de uma comunidade, mas existem também diferenças que o distingue dos
outros. Ela exemplifica com dois distintos tipos de alemães: Suábia e Bavarian. Uma
229
pessoa pode pertencer a diferentes comunidades e podem existir numerosos tipos que
convivem em uma comunidade particular. Edith Stein quer mostrar, dessa forma que
existem diversos tipos de seres humanos e que são pessoas. Todos pertencem a
Analisa a etimologia grega da palavra tipo, fazendo notar que nos encontramos
diante de um território ontológico, porque typos significa “aquilo que é formado como
um todo configurado”:
Typos em grego significa, em primeiro lugar, golpe, colisão, e depois aquilo que
quanto em referência ao caráter [...]. Não é possível designar o ser humano como
o que é indicado pelo significado da palavra de acordo com o uso linguístico atual
transformação do que já é formado: pode assim surgir um elemento que não se sobrepõe
nem se justapõe, mas gera o novo. Mas, na formação da pessoa é necessário considerar
algo para além do contexto social em que está inserido e do qual assume inúmeras
características. Se, na fé, assume-se Deus enquanto o criador, e deste crê-se na alma,
Comunidade povo
230
Quanto ao conceito de Povo, Stein (2013, p. 199-218) aponta que este é formado
por indivíduos, tem uma história e um local geográfico, e suas ações são determinadas
pelos seus membros, dos quais há aqueles que possuem a mentalidade ou consciência do
todo e se dedicam a ele. Também o povo tem relações internas e externas, a segunda se
linguagem, ou seja, em sua cultura. Assim, um povo possui laços de sangue (mas não
Para Stein, nascer em um povo, mais do que receber dimensões deste e assumi-las
povo está afinado a sua cultura e ao seu sentido, que mesmo que o povo desapareça pode
permanecer, com isso se encontra uma realidade para além do tempo. E a grande
importância para toda a humanidade por ser o redentor, o qual fez parte de um
determinado povo e a partir dele agiu para a humanidade (STEIN, 2013, p. 207-210).
Contudo, a relevância da vida está para além da ação para o povo, ela está dada
por ser vida humana e relacional e, portanto, amorosa, uma vez que o amor embasa a
existência da comunidade, assim a vida é movida por um valor e com isso está
participando do eterno. Pois, “amar uma pessoa implica dar uma resposta ao seu valor
pessoal e participar deste valor; ainda mais: é preciso protegê-lo e conservá-lo” (Stein,
2013, p. 212). Assim, o valor de uma comunidade se mede pela densidade de seus valores.
Do bom e do belo que circundam o humano provém a noção de um ser supremo o qual o
homem quer servir, pois nele se encontra no eterno, e a vida valiosa possui sentido. E aí,
para a perdição, um novo povo pode surgir. E todo aquele que está consciente de pertencer
231
a um povo possui responsabilidades para com ele, o que pressupõe uma determinada
estatura espiritual. Enfim, a formação do ser humano tem muito a ver com seu povo, mas
se deve, em última instância a Deus, a quem deve seu ser diretamente e indiretamente –
por meio de seu povo e da humanidade. Assim, Deus é quem determina a importância das
comunidades e as funções do homem dentro delas, e o cumprimento das mesmas está sob
a sua transitoriedade e que responde somente a Deus. Deste modo, o valor do homem está
Edith Stein demonstra que tanto a pessoa humana quanto o povo possuem
relações sociais, as quais em última análise sempre ocorrem entre indivíduos, contudo são
indivíduos culturalmente marcados por determinado povo, e com isso sempre as relações
são entre representantes de povos. Além disso, é marcante a iniciativa de fundar tanto a
pessoa humana quanto o povo em algo para além das pessoas, do tempo, e da história –
percebe que também o povo possui uma esfera espiritual e que a história do mesmo é feita
fundamento e sentido último de toda e qualquer relação social, seja ela do indivíduo ou
do povo. Dessa forma, Stein fala de um sentido que ultrapassa as últimas realidades da
existência, assegurando que o ponto de partida para a compreensão do ser humano não se
finde nele mesmo enquanto finito, mas abre-o ao infinito. O que, automaticamente, gera
uma implicação ética, a de reconhecer o infinito no outro, seja o outro indivíduo ou povo.
209
A esta formulação fica o interesse de relacionar a concepção de corpo-anímico de Stein ao conceito de
soma-pneumatikon de Paulo. Teria ela se baseado no autor da Carta aos Coríntios?
232
e em relação com o infinito do eu, traça por si só um caminho comunitário em que o eu e
o outro se encontram no outro fundante que é eterno. Assim, o ser social da pessoa é
um determinado povo para agir de forma redentora. Ao dizer isso, acende a possibilidade
de uma outra questão ética, abrindo o ser humano ao referencial último da existência.
Sabendo de sua conversão ao catolicismo se pode afirmar que este “homem-Deus” é Jesus
Cristo, o qual serve de referencial ético de duas formas – totalmente homem e totalmente
Deus. Assim, além de fundar a vida, Deus é também aquele que a realiza e a vive
humanamente, podendo mover todos os seres por meio da relação com Ele. Apesar de
não estar explícito neste texto, também é necessário lembrar que o Deus cristão é
Considerações finais
de Edith Stein possui conotações éticas, uma vez que se entende a ética como base da
tratar do ser humano e dessas relações, faz com que se pense na perspectiva não somente
meio desta síntese filosófico-teológica que reconhece a dignidade humana a partir de sua
humanidade, sendo que sua humanidade já é em si digna por estar fundada em Deus.
Embora não se tenha tratado deste tópico especificamente no texto analisado sabe-se da
grande importância dada por Edith Stein a empatia. Com a empatia conhecemos nós
233
mesmos e re-conhecemos os outros como semelhantes a nós, outros eus, em reciproca
doação de sentido. A empatia nos leva a reconhecer que o outro não é o diferente. O ato
empático cura qualquer tipo de indiferença. As relações sociais devem se dar a partir da
empatia, pois este é o mecanismo que permite uma relação social ética. A empatia,
elemento basilar para se pensar e fazer ética. Assim, empatia e mística são duas dimensões
das relações éticas do homem, pois dizem respeito ao relacionamento com o outro e com
Deus. Para Edith Stein empatia diz relação intra e interpessoal, manifesta a relação entre
o próprio e o estranho, entre aquilo que me envolve em primeira pessoa e aquilo que se
ética enquanto relação mística seria aniquilada, e a pessoa humana estaria condenada a
não desenvolver sua vida e suas relações ao nível mais alto da existência humana, que é
a relação com Deus. Não importa se somos chamados a agir numa comunidade mais
restrita ou mais ampla, mas sim, importa a consciência de que o nosso agir numa
de Edith Stein e tendo em consideração o conjunto de suas obras, podemos dizer que a
234
personalidade de ordem superior, que não elimina a singularidade, mas a potencializa ao
multiplicá-la. Não a relativiza, não absolutiza, mas a compreende num conjunto, num
Referências
STEIN, E. Essere finito e Essere eterno. Per una elevazione al senso dell’essere. Roma:
STEIN, E. Psicologia e scienze dello spirito. Contributi per una fondazione filosofica.
235
EDITH STEIN E O CONCEITO DE PESSOA
E-mail: jsfilho@usp.br
Resumo: Este artigo interroga por que Edith Stein, numa primeira fase de sua obra,
associa o conceito de pessoa apenas ao caráter espiritual do ser humano e, numa segunda
elementos da releitura steiniana da definição dada por Boécio e termina pela análise do
mistério cristão da Trindade: em vez de falar do ser trinitário divino com base em tríades
observadas no ser humano, Edith Stein descreve o ser humano uno com base nos dados
Abstract: This paper asks why Edith Stein, in the first phase of her work, associates the
concept of person only to the spiritual nature of human beings and, subsequently, based
and ends by examining how the philosopher reverses the traditional relation between the
concept of person and Christian mystery of Trinity: instead of relying on human triads to
*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.
236
speak about God, Edith Stein is based on Trinity’s biblical revelation to describe the
human being.
Edith Stein emprega o termo pessoa, ao longo de sua obra, para referir-se ao
indivíduo humano como ser que se destaca no conjunto da Natureza por sua capacidade
espiritualidade.
em geral, à dimensão da vida que não se reduz ao conjunto dos eventos físicos
causalmente condicionados e aos quais estão sujeitos os indivíduos por seus corpos, o
fenômeno que se doa à sua consciência, o que faz Edith Stein dizer: “a consciência como
correlato do mundo objetivo não é Natureza, mas espírito”211. Essa concepção será
humana e será sintetizada em Ser finito e ser eterno pela definição tomada de Boécio de
210
Cf. O problema da empatia IV, 7, a (p. 131). Indicaremos aqui, entre parênteses, a página
correspondente nos respectivos volumes da edição crítica (ver bibliografia).
211
Ibidem IV, 1 (p. 108).
237
Roma: pessoa é a essência individual de natureza racional (Einzelwesen von vernünftiger
Natur)212.
Entre o primeiro uso de pessoa e a definição boeciana retomada por Edith Stein na
fase madura de seu pensamento não há diferenças radicais, mas apenas esta: a noção de
mente o que realizaria em Ser finito e ser eterno, ou seja, um projeto filosófico de
Santo Agostinho, Santo Tomás e Duns Escoto. Por isso, enfatizar a individualidade não
era uma preocupação central da primeira fase de seu trabalho, como será no meio e no
fim dele (por exemplo, na Estrutura da pessoa humana e no Ser finito e ser eterno ou na
Ciência da cruz). Entender sua definição de pessoa, ou ainda, investigar o sentido de ela
ter assumido a definição boeciana de pessoa requer, portanto, entender sua necessidade
de enfatizar a individualidade.
Uma primeira resposta, aliás óbvia, consiste em dizer que Edith enfatizará a
individualidade porque assim o fizeram os autores que ela toma como referências na
metade e no final de sua vida. Porém, dizer apenas isso não significa explicitar o sentido
de seu trabalho intelectual. É preciso manter a pergunta pelo porquê de sua ênfase na
conceitual construída por Edith Stein; mas, é preciso reconhecer que ela mesma se
conecta com uma tradição que remonta a diferentes filosofias da Antiguidade e da Idade
212
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).
238
Média, de modo que recuperar os elementos centrais dessa tradição pode oferecer
Há, todavia, uma dificuldade metodológica nessa tarefa: é preciso encontrar o que
justifica uma conexão entre o uso que faz Edith Stein do termo pessoa com a história
desse termo. Isso quer dizer que é preciso localizar, no próprio texto steiniano, referências
que mostrem o quanto Edith Stein tinha consciência dessa história. Do contrário, corre-
se o risco de reconstruir arbitrariamente um percurso histórico sem que nada garanta que
ele pode iluminar o sentido do uso do termo em Edith Stein. Agrava essa dificuldade o
fato de que Edith Stein, na única ocasião em que dá uma definição direta de pessoa, cita
afirmar com segurança que Edith Stein dedicou-se ao estudo detalhado da história do uso
do termo pessoa, mas, ao mesmo tempo, garante que ao menos um “momento” dessa
história foi por ela investigado, qual seja, o da interpretação do termo feita por Tomás de
Aquino. Esse momento, porém, remete necessária e explicitamente a outros dois, de modo
que se pode pretender que Edith Stein os conheceu. São eles a definição de pessoa dada
por Boécio e a redefinição elaborada por Ricardo de São Vítor, fundamentais para Tomás
de Aquino, que as analisa no conjunto das questões 27-29 da Prima Pars da Suma de
teologia, tomada por sua vez como base por Edith Stein.
213
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).
239
No presente texto, não percorreremos a linha conceitual que certamente Edith Stein
reconstruiu e que remonta de Tomás a Boécio, passando por Ricardo de São Vítor214.
Ater-nos-emos ao que nos parecem ser duas “fases” em continuidade direta no emprego
Edith Stein não dá uma definição direta do termo; aliás, é algo notável que, ao longo das
conhecidas como ciências humanas), Person aparece amplamente. Isso confirma que, na
humano psicofísico e espiritual, quer dizer, ao ente que, em meio à Natureza, destaca-se
por ter, “além” de um corpo e uma alma, também um espírito. Estas são as características
que constarão do conceito de pessoa com que lida Edith Stein em sua tese de doutorado215:
Essas notas são confirmadas pela obra Introdução à filosofia, em que Edith fala
claramente de pessoa como ser vivente dotado de uma vida de consciência216. Nessa obra,
entretanto, há, por assim dizer, uma evolução com respeito ao conceito de pessoa presente
214
Esse caminho conceitual e a sua exploração por Edith Stein são por nós apresentados em detalhe no
artigo O conceito de pessoa e sua história em Edith Stein, que será publicado em 2015 na coletânea
organizada pelo Prof. Dr. Tommy A. Goto, da Universidade Federal de Uberlândia.
215
Cf., por exemplo, ibidem, IV, 3 (pp. 116-126). É curioso notar que esses dados são explorados numa
passagem em que Edith Stein se vale de uma obra de Wilhelm Dilthey, para criticá-la, intitulada
Contribuição para o estudo da individualidade (Beiträge zum Studium der Individualität), mas, em vez de
falar de individualidade, Edith Stein prefere falar de personalidade. Não há dúvida de que, nesse uso, ela
sofreu influências não só de seu orientador, Edmund Husserl, mas também e sobretudo de Max Scheler,
a cujas conferências Edith assistiu em Gotinga e que foram depois publicadas na forma de livro, com o
título O formalismo na ética e a ética material (Der formalismus in der Ethik und die materiale Wortethik).
Edith, aliás, toma essa obra como base de sua investigação do sentimento, da emoção e do valor.
216
Cf. Introdução à filosofia II, II, 4 (p. 142).
240
em O problema da empatia, pois Edith Stein explora dois elementos que só apareciam
irradiação de onde brota o modo de o indivíduo realizar aquilo que tem de comum com
sua espécie.
elaborada por Edith graças a uma experiência inegável: embora as sensações possuam
algo de inteiramente subjetivo, elas também possuem algo de objetivo, observável pela
coincidência do conteúdo percebido por diferentes sujeitos. Em outras palavras, ainda que
a sensação se realize em primeira pessoa, seu conteúdo mostra ser o mesmo percebido
por outros indivíduos, o que mostra haver uma independência da coisa percebida em
existência individual mesma haveria uma orientação para a alteridade, sem a qual cada
incompartilhável.
Essa será a base para Edith Stein exprimir a experiência individual como
experiência nascida de uma fonte de irradiação ou núcleo próprio de cada sujeito. Ela
observa que cada indivíduo não reproduz simplesmente aquilo que tem de comum com
sua espécie, quer dizer, seus condicionamentos, mas imprime-lhes sempre uma feição
217
Cf. ibidem, Introdução, 7 (pp. 93-98).
241
essência da pessoa218. Deve-se cuidar, aqui, para não associar tal cerne com um ponto,
Isso é bastante visível na análise do caráter, pois, como diz Edith Stein, “pode-se estar de
acordo com os outros sobre as qualidades de caráter de alguém e de seus valores, e pode-
se mesmo exigir de mim ‘atenção’ a seus valores, mas que eu deva amar esse alguém em
função desses valores, isso não se pode requerer de mim; afinal, se e como amo alguém
é algo que se funda sobre o modo como as suas peculiaridades vêm ao encontro das
minhas; é algo absolutamente único, assim como são únicas tais peculiaridades”219.
Raciocinando pelo absurdo, podemos dizer que, se cada indivíduo não vivesse de modo
inteiramente próprio e singular aquilo que tem de comum com outros indivíduos, então a
obrigaria a todos os que têm essa apercepção a amar esse alguém. Quer dizer, para todo
indivíduo cujas qualidades fossem percebidas por um grupo de sujeitos, haveria um amor
automático da parte desse mesmo grupo. Ora, o absurdo dessa proposição confirma que,
amá-lo dependerá do modo individual de esse alguém viver a apercepção. A esse modo
individual, essência da pessoa, centro e fonte de irradiação, Edith Stein também chama
Pode-se dizer, portanto, que o conceito de pessoa com que Edith Stein opera já na
relacional. É curioso, porém, que ela não ofereça uma definição direta de pessoa. Ela não
218
O uso da palavra essência, aqui, não remete ao sentido metafísico ou como se entendia no pensamento
antigo, medieval ou neoescolástico. O leitor é convidado a pensar na noção de essência tal usada
especificamente pela fenomenologia de matriz husserliana. Ver nota 15, adiante.
219
Ibidem, II, II, B, 3, c, a (p. 158).
220
Cf. idem, ibidem.
242
o faz nem em sua maior obra de antropologia, a Estrutura da pessoa humana, mas apenas
descreve o que é ser pessoa ou o que é a pessoalidade. Nessa última obra, Edith fala
de sua análise. Num desses momentos, ela esclarece com termos eloquentes o que
pessoa:
(...) o ser humano pode e deve formar-se a si mesmo; (...) ele é um ser que diz
‘eu’; nenhum animal pode fazê-lo; olho nos olhos de um animal e vejo algo
que me olha; vejo um interior na sua alma, uma alma que dá atenção ao meu
mesma e unir-se a mim; olho nos olhos de um ser humano e o seu olhar me
meu existir e do meu viver; e tudo isso em um único ato; (...) a vida espiritual
é também um saber originário a respeito do outro, é ser nas outras coisas, ver
221
Estrutura da pessoa humana VI, II, 1 (p. 106).
243
era Patrística. Mas Edith Stein desenvolve virtualidades nelas contidas, explorando a
que põe em primeiro plano a singularidade de cada indivíduo, sem concebê-lo apenas em
função do que é comum à espécie humana). Podemos dizer que esses dois elementos,
compreensão steiniana da noção de pessoa. Esse termo não mais designa simplesmente a
espiritualidade de cada ser humano (tal como fazia Edith em O problema da empatia),
mas agora articula tal espiritualidade com a radical individualidade de cada ser humano
à Filosofia).
O ápice da segunda fase talvez seja obtido em seu final, não por ser “final”, mas
por lançar mão de recurso que traz clareza sem igual à compreensão da noção de pessoa.
A preparação desse clímax faz-se desde a A estrutura da pessoa humana, mas eclode em
Ser finito e ser eterno, quando Edith Stein toma o modelo teológico cristão da Trindade
Tomás de Aquino e Duns Escoto oferecerão a Edith Stein, na fase madura de seu
222
O leitor sem intimidade com a fenomenologia de Husserl poderá introduzir-se nessa filosofia pela
leitura da Introdução à filosofia, de Edith Stein, e pela leitura do próprio Husserl (os textos talvez mais
acessíveis são as Meditações cartesianas e A crise das ciências europeias e a fenomenologia
244
com o conceito de pessoa, pois Ser finito e ser eterno será a única obra em que Edith o
Edith tem o cuidado de, ao traduzir em alemão, não utilizar o termo Substanz, mas
transcendental). Enquanto não adentra na obra mesma dos dois filósofos, pode ser-lhe útil a leitura do
apítuloà Fe o e ologiaà et di a:àEd u dàHusse l , no livro A filosofia contemporânea, de Wolfgang
Stegmüller (Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Vol. 1. São Paulo: EPU, 2002, pp. 58-91), do livro
Husserl, de Jean-Michel Salanskis (Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Estação Liberdade,
2006), e do livro Pessoa humana e singularidade em Edith Stein, de Francesco Alfieri (Org. e trad. Clio
Francesca Tricarico. São Paulo: Perspectiva, 2014). Sem pretender definir em poucas linhas o sentido da
fenomenologia, damos aqui um breve exemplo, tomado de Edith Stein. Em sua tese de doutorado, sobre
O problema da empatia, ela pretende descrever o que são os atos empáticos e explica que eles são atos
nos quais uma pessoa pode entender o que outra pessoa vivencia. Todo um campo de questões desenha-
se em torno dessa explicação. Por exemplo, como sei que o que eu vejo no outro corresponde realmente
ao que ele vivencia? Se a vivência é do outro, como posso dizer que tenho a mesma vivência ou que capto
exatamente o sentido da vivência alheia? Ao tratar dessas questões, Edith Stein diz que uma
fenomenologia da empatia descreve o que a empatia é; identifica a essência da empatia. Isso não significa
explicar como surge a empatia; explicar como surge é o trabalho da psicologia. A psicologia, por sua vez,
não pergunta pelo que é o ato empático, mas já lida com uma definição dele e procura explicar sua origem
em cada indivíduo. Cabe à fenomenologia clarear a essência disso que é pressuposto pela psicologia. Esse
exemplo permite entender um pouco melhor a concepção da fenomenologia como ciência das essências.
Ela clareia as essências que são pressupostas por todos os tipos de saber e mesmo da experiência
cotidiana. Com efeito, a fenomenologia não considera nada como pressuposto (não só os objetos dos
saberes, mas também o próprio mundo, as experiências psíquicas, o senso comum, tudo enfim); ela busca
cavar o sentido desses pressupostos, as essências de tudo aquilo que parece natural em nossos atos de
consciência. O leitor não pode, porém, ter em mente uma concepção de consciência ao modo moderno
do empirismo ou do idealismo (a consciência como tabula rasa na qual se inscrevem dados vindos da
sensação ou como instância habitada por ideias que seriam projetadas na sensação, a fim de iluminá-la).
Na fenomenologia, a consciência é o modo de ser do ser humano, é sua relação com o mundo e com si
mesmo, donde Husserl falar de fluxo de atos em que a atenção está sempre voltada para algum objeto
(consciência é consciência de alguma coisa). Ao investigar a consciência, Husserl se dá conta de que a
atividade consciente opera com formas universais (essências) reveladas pelo modo como as coisas
aparecem (fenômeno) para a consciência. Desse modo de aparição ou fenômeno vem o termo
fenomenologia. Não se trata, porém, do fenômeno em sentido kantiano, como se por trás da aparição
das coisas houvesse aquilo que as coisas são em si mesmas. Para Husserl, não há coisa em si diferente de
fenômeno, pois o que as coisas são é o que elas mostram de si. Esse mostrar-se ou doar-se das coisas
mesmas revela a essência delas, o que elas são. Por exemplo, uma cor é sempre ligada a uma superfície;
um triângulo é sempre convexo etc. Estar ligada a uma superfície é uma característica da essência da cor;
ser convexo é da essência do triângulo; e assim por diante. As formas universais ou essências não são,
portanto, formas unidas a matérias, como se fossem partes de um todo. O leitor deve ficar atento para
não associar a palavra essência, da fenomenologia, com a maneira geral de as pessoas falarem de essência
em sentido escolástico ou platônico-aristotélico. Mesmo Platão, Aristóteles e os Escolásticos não viam as
ess iasà o oà oisas à ueàe t a à aà o posiç oàdeà adaàe te.àáà espeitoàdeàTo sàdeàá ui o,àauto à
caro a Edith Stein, vale a leitura do capítulo sobre sua filosofia no livro A filosofia na Idade Média, de
Étienne Gilson (Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996). Na continuação deste artigo, o
termo essência adquirirá caráter central, de modo que o leitor é convidado a redobrar sua atenção, a fim
de não o confundir com o que as vulgatas filosóficas dizem a respeito desse termo.
223
Cf. Ser finito e ser eterno VII, 1 (p. 304).
245
quando lança mão de elaborações medievais ou escolásticas. Mas o sentido é o mesmo:
essência (Wesen) indica uma unidade de sentido tanto quanto substância (Substanz). Sua
tira o foco de atenção da existência como suporte (substância) e transfere-o para a unidade
de sentido (essência). No entanto, ao citar a definição em latim, ela explica que se fala de
substância individual porque a pessoa contém em seu quê (isto é, em sua identidade) algo
feito por Edith Stein na Introdução à filosofia e na Estrutura da pessoa humana, pois
indivíduo não seja concebido apenas em função do que tem em comum com outros
indivíduos. Poder-se-ia, por exemplo, dizer que o que uma pessoa tem de incomunicável
outra pessoa. Por essa razão, Edith Stein, algumas páginas adiante, enfrenta
explicitamente a tarefa de elucidar o que entende por pessoa e sua estratégia será
pessoa humana.
No seu dizer, só se chama de pessoa aquilo que manifesta uma essência espiritual;
e espiritual é “aquilo que é não espacial e não material, que possui uma interioridade em
224
Cf. idem, ibidem.
246
sentido obviamente não espacial e que permanece em si, saindo de si mesmo”225. Na
e saída de si. O desafio é entender o que Edith Stein entendia por “permanecer em si,
saindo de si”.
Sua base é a constatação de que todo ser que diz “eu” é um ser consciente de seu
existir. Ora, sendo consciente de seu existir, este ser “permanece em si”, mas não apenas
permanece, como também vê que sua vida brota de seu interior. Vendo que sua vida brota
de seu interior, dá-se conta de que pode compreender sua vida e informá-la com
pessoa o ser que é capaz de ter consciência em geral e consciência de si e que é orientado,
liberdade.
de si) é o núcleo da alma. Edith consagrará várias páginas ao tema em Ser finito e ser
225
Ibidem VII, 2 (pp. 307-308).
226
Aqui não se deve pensar em liberdade como liberdade de escolha de arbítrio, pois escolher entre x, y
ou z é só um modo – e o menos intenso – de praticar a liberdade. Por outro lado, a liberdade não é uma
indeterminação pela qual se poderia fazer o que se quer, pois essa possibilidade não é dada a nenhum
ser humano e, mesmo que fosse dada, seria autodestrutiva. Ao contrário, a liberdade consistirá na
possibilidade de cada indivíduo jogar com as determinações às quais está submetido (físicas e psíquicas)
e produzir o seu modo singular e consciente de viver. Dessa perspectiva, a materialidade e o psiquismo
são espiritualizados, quer dizer, são assumidos pela dimensão consciente, numa experiência unitária, e
deixam de ser vistos como meros condicionamentos. É nessa experiência unitária que, como diz Edith
Stein em várias obras, mas principalmente na Ciência da cruz, a pessoa pode perceber a presença divina
em si e praticar o seu maior gesto de liberdade: não sendo constrangida a crer em Deus por nenhum
ele e toà físi oà ouà psí ui o,à aà pessoaà podeà dize à si à aà eleà u aà afi aç oà adi alà deà sua própria
autonomia.
227
Cf. ibidem VII, 2 (p. 309).
247
eterno, esclarecendo que esse núcleo deve ser entendido ao modo de forma vazia228. Ela
chega a dizer que todo ser vivo tem um núcleo, que é sua própria alma e de onde brota o
modo de ser de cada indivíduo de uma espécie229; no caso do ser humano, porém, esse
núcleo não é apenas psíquico, mas espiritual, pois não se reduz à dimensão vegetativa,
irrepetível pelo qual cada pessoa vive sua existência, efetivando tudo o que tem de comum
do trabalho filosófico realizado por Edith Stein em Ser finito e ser eterno. A novidade
inegável está no método adotado por Edith Stein para aprofundar a compreensão de
detalhes ainda não explorados; na realidade, ela sequer parte do uso que se faz da noção
de pessoa no mundo natural. Ao contrário, Edith Stein parte do modelo teológico cristão
da Trindade divina para iluminar a compreensão da pessoa humana. Ela não assume a
definição boeciana para falar diretamente do ser humano. Ela a assume ao falar das
explícito do § 2 da parte VII de Ser finito e ser eterno, que Edith inicia dizendo:
por pessoa, a fim de obter uma nova compreensão do ser finito partindo do
primeiro Ser. Mas o ser pessoal como tal e, por conseguinte, o Ser primeiro
228
Pa aàoàse tidoàp op ia e teàditoàdaàe p ess oà fo aà azia à Leerform), ver: ibidem, IV, 3, 17-18.
229
Cf. ibidem, VII, 3, 2 (pp. 314-315).
230
A análise steiniana do ser, que conduz ao Ser primeiro, bem como sua interpretação da revelação
bíblica do nome de Deus como Aquele que é ou Eu Sou, encontram-se precisamente na parte VI e no § 1
da mesma parte VII.
248
mesmo permanecem muito obscuros para nós se não conseguimos esclarecer
Isso quer dizer que Edith partiu da concepção de pessoa como suporte (substância)
de uma natureza racional e deu-se conta de que, sendo o primeiro Ser uma natureza
racional, então há algo como uma pessoalidade do primeiro Ser; na verdade, por ser ele
quem é, ou seja, o ser primeiro, absoluto, ele é o Ser em pessoa. Assim, se a noção de
pessoa em seu uso adequado ao ser humano permitiu chegar a dizer que o Ser primeiro é
pessoalidade do Ser primeiro elementos que clareiem a pessoalidade do ser humano. Isso
equivale a reconhecer que certos dados só podem ser conhecidos quando a reflexão
debruça-se sobre o Ser primeiro, mas, uma vez conhecidos, eles podem iluminar a
compreensão do ser criado. Trata-se de tomar o Ser primeiro como arquétipo do ser
criado.
memória–vontade uma base para falar da Trindade, Edith Stein tomará a Trindade (tal
que, segundo Edith Stein, é possível ver que, assim como o Pai é aquele de quem
procedem todas as coisas, mas que não procede ele mesmo de nada, assim é a alma
231
Ser finito e ser eterno VII, 2 (p. 307).
232
Desenvolvemos mais longamente o trabalho trinitário-antropológico de Edith Stein no artigo
mencionado na nota 5.
249
humana; por outro lado, assim como o Filho é gerado ou forma essencial nascida do Pai,
assim é o corpo humano; por fim, assim como o Espírito Santo é o que circula de modo
livre e gratuito entre o Pai e o Filho, assim é o espírito233. Por conseguinte, se Pai, Filho
e Espírito Santo são três substâncias ou pessoas unidas pela singularidade da essência,
sem produzir três deuses, assim também alma, corpo e espírito são três dimensões unidas
pela singularidade da pessoa, sem produzir um aglomerado de três partes, mas um ser
cada indivíduo recebe de fora de si; a alma é imagem do Pai, porque é a fonte interior de
onde brota a vida de cada indivíduo; e o espírito é imagem do Espírito Santo, pois
As notas da pessoalidade aparecerão, então, nos três âmbitos: o corpo não pode ser
visto como matéria inerte animada por uma alma, pois isso não respeitaria a inhabitação
entre corpo, alma e espírito. O único corpo inerte no cosmo é o mineral; e mesmo ele,
possuindo uma forma, não deixa de ser enformado pelo espírito do criador de todas as
coisas. Quanto ao corpo de uma pessoa (portanto, corpo humano) ele é já, de certa forma,
alma e espírito, assim como a alma é já, de certa forma, corpo e espírito, e assim como
espírito é já, de certa forma, corpo e alma. Por essa razão, o corpo é já dotado, a seu modo,
233
Cf. ibidem (p. 308). Aqui é preciso ter em vista que a posição relativa das pessoas divinas no interior da
Trindade não termina numa afirmação de cada pessoa divina como dotada de uma especificidade ou
exclusividade. Quando Tomás de Aquino fala do princípio eterno (Pai) e dos principiados eternos (Filho e
Espírito Santo), pretende, em continuidade com Agostinho, apontar para o fato de que a única diferença
entre as pessoas divinas está nas relações eternas de origem, não na essência ou natureza. Então,
comparar as dimensões da trindade humana com as pessoas da Trindade, como faz Edith Stein, requer
que não se isolem nem as pessoas divinas nem as dimensões humanas, mas que elas sejam todas vistas
em sua recíproca inhabitação, como procuraremos mostrar na sequência. Ver a nota 22 do presente
estudo.
250
conjunto de características físicas e é capaz de racionalidade e sentimento), assim como
O modelo da Trindade impede que entendamos o corpo humano como mera parte
física animada por uma alma e movida por um espírito, pois isso não respeitaria a unidade
trinitária ou o modelo da inhabitação das três pessoas divinas. Isso quer dizer que, na
pessoa humana, o corpo também não é uma simples dimensão animal, mas uma
Em outras palavras, nosso corpo é corpo de seres espirituais, corpo humano, ao mesmo
tempo em que nosso espírito é espírito de seres corporais, espírito humano. O modelo da
Trindade, assim, ilumina nossa autocompreensão por exigir que não falemos de nós
mesmos como junções de partes, mas como seres unitários em que os componentes
distintos estão implicados radicalmente entre si. Dessa perspectiva, nem o corpo será um
mero aglomerado, pois ele é estruturado por uma alma. Se o modelo da Trindade é o da
por suas relações de origem; nenhum deles tem alguma característica específica que
reserva para si e não partilha com os outros. Pensar o contrário significaria romper a
unidade de essência dos três. Do mesmo modo, a pessoa humana, trinitária por essência,
Trindade, Edith Stein não se restringe ao campo espiritual (falando apenas, por exemplo,
de inteligência, memória e vontade, como fez Santo Agostinho), mas inclui o corpo na
analogia. Além disso, a inhabitação das pessoas trinitárias (o que os teólogos, a partir do
251
século VI, chamarão tecnicamente de pericorese) torna-se modelo para a compreensão
como modelo do ser humano, Edith Stein exige que se abandone toda concepção tripartite
que tome o corpo, a alma e o espírito como realidades independentes ou marcadas por
pericorético. Não é à toa que Franz Brentano e Edmund Husserl, quando definiram aquilo
que faz a especificidade do mental ou do psíquico em distinção com o físico (quer dizer,
sequer uma expressão tão usada como “indivíduo psicofísico” é suficiente para indicar a
circumincessão entre corpo e alma, pois psicofísico conserva ainda uma conotação de
aglomerado. Mesmo quando dirá que a “energia vital espiritual” consome a “energia vital
física”, Edith não pretenderá que isso deva ser entendido como duas energias vitais. São
duas da perspectiva de nosso discurso, assim como corpo e alma são dois do ponto de
vista de nossa análise e expressão, mas, em si mesmas, essas realidades, embora distintas,
compõem uma unidade. Esse parece ser o esforço que Edith Stein exige do leitor de Ser
finito e ser eterno: não se trata de projetar na divindade a tripartição que vemos nas
252
A EMPATIA NO CORPO A CORPO DE COMUNIDADES DE COMBATE: O
ABERTURA CLÍNICA
E-mail: crisroba@gmail.com
daquilo que pode ser chamado propriamente arte marcial. Os fins práticos de uma arte
arte marcial um adágio chinês milenar, segundo o qual é necessário conhecer ao oponente
engendrar uma cumplicidade capaz de partilhar e antecipar os atos alheios graças a uma
artes marciais cultivam técnicas corporais pelo exercício recíproco da luta. Este exercício
materializa o sentido comunitário, evocado por Stein, pelo qual “um sujeito aceita o outro
234
Psicólogo, Doutor em Psicologia é Professor Associado da Universidade de São Paulo na Escola de
Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto.
253
como sujeito e não lhe tem adiante, mas vive com ele e se determina por seus motivos
Abstract: A phenomenology of the combat shows how, due to its intentional structure,
when the systematic fighting practices cannot be reduced to strictly pragmatic purposes
of self-defense or sporting victory, there is the development of what can properly be called
martial art. The practical purpose of a martial art do not end in themselves. Assuming the
be applied an ancient Chinese martial art adage, whereby it is necessary to know the
opponent and yourself. Since it is not primarily a discursive and reflective knowledge of
themselves and the other, is in the body to body of fighting that the coming and going of
intentional disposals and efetivations wins efficacy and reveals the development of an
development depends on a silencing of will and memory that favors the present time. This
is engendering a complicity able to share and anticipate the actions of others through a
254
cultivate body techniques by mutual exercise of the fight. This exercise embodies the
sense of community, evoked by Stein, in which "a subject accepts the other as subject and
you have him no in front of, but lives with him and is determined by its vital reasons" .In
parallel with the clinical thinking of Gilberto Safra, the encounter that is potentially
a strictly practical purposes - self-defense and sport - the development in a martial art
becomes dependent of opening and careful about other intimately linked to the aesthetic
mestre que é celebrado como o pai do karate moderno, abre um livro sobre sua arte
marcial com um devaneio:A imagem que eu conservava na mente enquanto escrevia (...)
ambiente acolhedor, a deferência dos mais jovens à sabedoria. Mais de duas décadas
haviam se passado desde que Funakoshi deixara sua cidade na pequena Okinawa, onde
fora professor, migrando para Tóquio decidido a enfrentar o desafio de difundir uma arte
que apenas há pouco tempo vinha deixando de ser praticada restrita e secretamente,
sempre às escondidas. É por sua autobiografia que sabemos que seu objetivo era
1868, a era Meiji impunha a um país que se abria à modernização e, portanto, ao Ocidente.
255
Passos bem mais largos já vinham sendo dados há tempos por um mestre de outra
Efetivando um dos dois princípios de sua arte suave, a ideia debem-estar mútuo, em
japonês jita kyoei, Jigoro Kano tivera formação universitária ocidentalizada e dominava
difundir o Judô pela Europa e Estados Unidos. Diz ele:O Japão já aprendeu muitas coisas
com outras nações do mundo. Em troca, ele deve ensinar algo ao mundo. No futuro, se o
Japão ensinar o judô que eu apoio, (...) contribuirá pela primeira vez para a cultura
comparação aos feitos de Kano, se dilui quando se consideram suas origens. Para difundir
sua arte e torná-la aceita no restante do Japão, a exemplo do inglês dominado por Kano,
o mestre de karate precisava dominar uma segunda língua, o japonês e não apenas o
empreitadas, mais uma vez a suposta modéstia dos feitos de Funakoshi se dilui em relação
abrindo espaço ao interesse público por diferentes artes marciais de variados países do
mundo, da Coréia à Tailândia, da Europa ao Brasil, para não dizer do apelo estético que
256
Para a temática ora abordada, interessa bem menos umacaracterização histórica e
sistemática,que especifique e diferencie estas e outras artes marciais, do que frisar alguns
pontos comuns que, nesta pequena introdução, se sobressaem junto à intenção destes dois
práticas de combate. Situando seu valor num momento histórico significativo para o
guerras do século XX, para aqueles mestres, o Judô e o Karate têm contribuições a dar à
formação das novas gerações e à cultura mundial. Os mestres parecem ver em suas artes
ver essa vocação em práticas de combate, tantas vezes associadas a sectarismos familiares
livro. Ali se imprimem elementos culturais já indicados. É notório que, de certo modo, a
lado, desfazer mitos e exageros sobre a arte, por outro, apresentá-la sob o vigor sereno
que, segundo a tradição defendida pelo mestre, rege a atitude do praticante, se faz melhor,
sem dúvida, quando se tem diante de si não meras palavras, mas a própria modulação
afetiva da atitude que acompanha o autor de uma narrativa. Isso é tanto mais válido por
257
O combate ocorre corpo a corpo. É em relações intersubjetivas corporalmente
direcionamento não pode ser arbitrário sob o risco de se esfacelar. Escavar sob as muitas
formas culturais que as comunidades de combate assumem como artes marciais, não sem
fontes vivenciais para o projeto educativo de ordem universal a que não apenas Kano e
culturais de combate acorrem para atualizar seu sentido. Por isso, daqui em diante,
que uma dupla de praticantes realiza intersubjetivamente. Para tanto, não é pouco o que
precisa ser posto em suspenso a fim de dar evidência à estrutura essencial dos fenômenos
em questão.
Nas pegadas destas pistas somos favorecidos pelo caminho anteriormente aberto
por alguns fenomenólogos. No que tange ao face a face, isto é, no que diz respeito ao
reconhecimento do outro, é o estudo da empatia, finamente realizado por Edith Stein, que
das culturas, desenvolvida por Angela Ales Bello com fidelidade à fenomenologia
258
Se em A bela adormecida e outras vinhetas (Barreira, 2014), publicado no livro
que se confrontam fisicamente. Assim, perguntar-nos sobre a redução a algumas das mais
são os contornos da empatia vividos nas práticas de combate. Para fazê-lo é necessário
Mestre Funakoshi dizia que a “prática verdadeira é feita não com palavras, mas
com o corpo todo” (1994, p. 114), enquanto mestre Kano alertava que “as lições de moral
que podem ser aprendidas em [uma prática](...) de judô são baseadas em fatos e
instrutivas](Kano, 2008, p. 90).É a experiência própria que faz Tanaka, um dos mestres
músculo que aprende depois vem cabeça”(ψarreira, 2013, p. 179). Outra assertiva de
Funakoshi – “Treine com o coração e com a alma, sem se preocupar com a teoria” (1994,
p.114) – encontrará, numa ampla análise que apresentamos em O sentido karate-do: faces
resposta corporal que faz do karate uma prática existencial é ocupada por gestos pouco
a espessura ética da corporeidade que ainda não comparece a uma experiência que cobra
anos de dedicação para elevar-se a caminho, tradição existencial. O que nestes relatos e
259
citações pode soar um dualismo com os valores às avessas, o corpo priorizado em relação
à mente, é mais fiel ao que eles expressam se vistos, antes, como uma ênfase na
experiência vivida com base na intuição perceptiva, cujo ancoramento na carne é o ponto
χinda é Funakoshi que adverte: “O que você aprender ouvindo as palavras dos outros
será esquecido rapidamente; o que você aprender com seu corpo todo será lembrado pelo
então há poucas atividades que sejam mais “práticas” que o boxe. De fato, as
trocas estratégicas, em que os erros são pagos no próprio ato, em que a força e a
260
contextos próprios a cada prática. Filosofia de vida, inclusão social, cidadania, formação
resistência, tradições dos ancestrais: estas são algumas representações que diferentes
praticantes de capoeira entrevistados por nós dão à sua arte235. Há muita história impressa
vem ensinando através das cantigas, das experiências de mestres antigos, como se portar
na própria vida. Como saber entrar e sair de qualquer lugar. É no olhar do parceiro, nos
trejeitos do parceiro, no jogo de corpo do parceiro que vou vivenciar essa filosofia”. Seja
mora um aspecto decisivo do aprimoramento nas artes marciais. Trata-se de uma sensível
É uma professora de Capoeira que nos dirá que “se você não tiver respeito, você
acaba machucando, (...) deixando um parceiro pra lá, que poderia estar junto. Então
235
As entrevistas com capoeiristas aqui citadas foram concedidas a Thiago Ono da Silva, membro do
Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Práticas Corporais.
261
Ecoando o milenar Sun Tzu, Funakoshi recomenda: “conheça ao inimigo e
conheça a si próprio; em cem batalhas você nunca estará em perigo” (idem, p. 248).
mas também o próprio caráter que deve ser polido, sem enrijecer-se no orgulho.
enaltecido pela própria experiência da confiança ali promovida. Às vezes esta lealdade se
encadeia entre diferentes gerações de uma escola ou estilo, ao modo de uma reverência
trabalhar hoje para quebrar a resistência com relação à cultura negra é, ao seu modo,
manter vivo aquilo em que os mestres de antigamente acreditaram e pelo que lutaram.A
luta física contra a opressão se atualiza como luta pela cidadania, como luta contra a
caracteriza como luta corporal propriamente dita (Barreira, 2013a, 2013b). Não é fácil
descrever a própria experiência de lutar. Muito rapidamente o relato cede o passo para o
critério moral que o reveste. Mas também é possível extrair a percepção que modula o
senso moral. Um jovem de 18 anos, faixa preta de karate, nos diz236: “ali eu coloco acima
de tudo o respeito com o meu adversário, (...) ele não é meu inimigo (...), ele é meu
adversário e merece respeito. Durante a luta (...) eu percebo (...) se o cara é uma pessoa
que (...) pede uma luta (...) mais forte [ou] uma luta mais fraca. (...) Eu não tento impor a
ele o jeito que eu quero lutar”. De maneira muito semelhante, um jovem professor de
Capoeira nos informa que ao “compartilhar (...) o jogo (...), a capoeira em si, na forma
236
As entrevistas com caratecas aqui citadas foram concedidas a Mário Lúcio da Silva Júnior, membro do
Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Práticas Corporais.
262
tradicional, (...) o respeito entra (...)na questão de eu esperar, (...) de saber onde o outro é
capaz de chegar (...) e respeitar isso dele, não impedi-lo de realizar o que (...) é capaz”. É
adversário. Trata-se aqui da mais plena expressão da empatia nas práticas de combate: a
luta é o desafio recíproco do combate pelo combate, isto é, do combate que não encontra
sua motivação essencial n’outro lugar que não em si mesmo (ψarreira, 2013a, 2013b).
entrevistado tem 30 anos e conta a situação mais desnorteanteque viveu num treino de
karate:
“eu não sabia lutar direito, era faixa vermelha, (...) começando a aprender, tinha
13 anos. Ele já era um cara experiente, já tinha seus 20 (...) anos, faixa preta. E
durante esse treino (...) ele me dava um tapa, (...) segurava a minha mão, foi me
provocando. Eu tava tranquilo lutando, ele me dava tapa na cara, eu tentava manter
o controle, (...) cada tapa que ele me dava ia me irritando (...). Ao invés dele me
dar um soco, ao invés dele me falar, dele me ensinar, ele ameaçava e, antes que
eu pudesse defender, dava tapa na minha cara… χquilo foi metirando o controle,
ele, [dei um golpe baixo] (...)e ele já caiu no chão.O sensei já parou o treino ali na
hora e me advertiu. (...) Mas eu me senti ofendido, (...) por ele estar me batendo,
263
de forma voluntária, (...) ele tava me provocando, não sei porque. (...) Então foi
aquela em que a relação intersubjetiva, em certo momento, cede lugar a uma relação de
sujeito a coisa. É certo que não deixa de haver um grau mínimo de empatia, aquela que
obscurecida por uma hostilidade que vai da raiva ao ódio, subtraindo qualquer valor do
oponente, tendo-o, ao contrário, como uma motivação ameaçadora que deve ser
eliminada. Constituída numa vivência unilateral e hostil esta forma de viver o combate é
Como nos conta um mestre de capoeira: “Se você usa a técnica em mim, eu vou
usar a técnica. Se você usar a maldade, eu vou usar a perversidade.” Para ele, trata-se de
estar atento ao fato de que “...todos somos iguais, o homem é um bicho igual, só que é o
“Eu estava (...) lutando com um rapaz e (...) estava difícil encaixar um golpe nele
(...). Ele começou a esnobar, abaixar a guarda de propósito, fazer cara de cínico
(...). Fiquei meio jururu com ele. Foi uma única vez até hoje que eu dei um golpe
mesmo com intenção de acertar mais forte. (...)Eu fiquei pronto (...) para o contra-
ataque e, na hora que ele veio, acertei de propósito a boca dele. (...) Vi ele
264
colocando a língua assim… que ele sentiu. E eu me senti bem com aquilo. (...)
Não foi uma coisa boa que eu fiz, mas teve aquela sensação de satisfação, de ter
acertado ele do jeito que queria ali, para descontar o esnobe (...) que ele estava
sendo”.
Num caso como esse, constata-se que o desafio, ao modo do duelo, torna-se uma
imposição ostensiva.
A briga, como um descontrole que coisifica o outro; o duelo como um desafio que
obedece a exigência de não ser rebaixado, de não ser tratado como mera coisa, querendo
das formas de combate e, como tal, como a empatia participa do desafio visceral que as
numa cultura comunitária que quer emular o auto-controle: a luta é o desafio ético de se
técnicas corporais pelo exercício recíproco da luta. Este exercício materializa o sentido
comunitário, evocado por Stein, pelo qual “um sujeito aceita o outro como sujeito e não
lhe tem adiante, mas vive com ele e se determina por seus motivos vitais” (Stein, 1999,
p.159).
É a clareza existencial dessa experiência, em sua espessura mais estrita, que fez
com que, após décadas de prática, brigas e desafios ao longo da vida, um mestre como
265
A essência da arte é a mútua cooperação. Esta é a finalidade do karate-do. (...)
realidade, meios para buscar e explorar a essência do ser humano. (...) Conhecer
estar aqui e agora é não ter à consciência mais do que retenção e protensão. Na situação
constitutivo da empatia.
266
A possibilidade de acompanhar a expressão descritiva plástica ou o modo como a
corporeidade do outro aparece permite que realizemos com o nosso próprio corpo
As insuspeitas relações entre clínica e luta fazem-se ver num processo dialógico,
luta coloca em destaque a face estética da experiência empática. Pode-se pensar que a
mais sua interpretação vem à tona, o que arrisca a objetivá-lo enquanto sujeito da
experiência. Por outro lado, as expectativas de que a prática clínica seja uma abordagem
técnico-instrumental, que intervém e transforma seu usuário naquilo que lhe faz sofrer,
na clínica, com suas várias formas de desencontro, como a reificação teórica do paciente
combativa, não possuída pela hostilidade, faz da luta a experiência ética por excelência
de qualquer arte marcial. É a modulação inter-afetiva que torna lutar e clinicar uma
caminhada sobre o fio da navalha em que, para um lado ou outro, deslizar é fechar ou ser
267
Referências
des arts martiaux et sports de combat dans as dimension éthique. In: HEUSER,
F., TOUBOUL, A., TERRISSE, A. (Org.). Éthique, Sport de Combat & Arts
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publicado em 1973).
FUNAKOSHI, G. (1994). Karate-Do: o meu modo de vida. (E. L. Calloni, Trad.). São
268
KANO, J. (2008). Energia Mental e Física: escritos do fundador do judô. (W. Bull,
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STEIN, E. (1999). Psicologia e Scienze dello Spirito. (A.M. Pezzela, Trad.).2. ed. Roma:
STEVENS, J. (1997). Les trois maitres du budo. (P. Reymond, V Melin, T. Plée, Trad).
TZU, S. (1997). A arte da guerra: adaptação e prefácio de James Cavell. (J. Sanz, Trad.).
269
O QUE PODE O CORPO DE UMA CRIANÇA AUTISTA?
E-mail: izabeltafuri@gmail.com
Resumo: A clínica psicanalítica com crianças autistas, revisitada por uma análise crítica
Henry nos permite questionar a interpretação verbal como ferramenta indispensável para
ethics of meeting, which occurred in one setting. Taking into consideration, Michel
indispensable tool for the creation of the transference relationship in the psychoanalytic
270
clinic with the autistic child. According to M. Henry, the principles and guarantors of
intentionality while reassuring donors sense that protect the subject in relation to another.
Introdução
O encontro com uma criança que não estabelece contato afetivo com o outro, que
não brinca e que não representa simbolicamente a realidade foi retratada pela primeira
vez, na clínica psicanalítica, por Melanie Klein (1930), com o caso do Pequeno Dick.
Segundo a autora, o psicanalista necessita fazer interpretações verbais, mesmo que sejam
pode ser revelado pela criança inibida por detalhes do seu comportamento permitindo
que o analista faça uma interpretação para, nesse caso, criar a relação transferencial que
freudiano com uma criança ensimesmada foi esboçada no meio psicanalítico. A ação de
interpretar ganhou uma nova vertente, extrair e conferir sentido aos comportamentos e
sons emitidos por uma criança que não cria fantasias. Dessa forma, Klein promoveu uma
271
A palavra germânica utilizada por Freud (1900/1980) ─ deutung ─ foi traduzida por
sentido oculto dos sonhos a partir dos símbolos e associações livres. Segundo Mezan
(1986), deuten é tornar nítido o que parece confuso ou embaraçado e, ao mesmo tempo,
revelar a lógica, mostrar as conexões daquilo que se está interpretando como o conjunto
a um detetive.
associações livres) trazido pelo paciente. Como Dick não desenvolvia qualquer tipo de
Dick eram relativamente vagas, Klein passou a escutar a si mesma e interpretar a partir
representativo do paciente.
pelo paciente, como também ser aquele que extrai sentido de comportamentos não
simbólicos de uma criança. Uma proposição que fere a ética do encontro por trazer uma
272
significação oriunda de um saber apriorístico.
interpretação do jogo (Klein, 1932), interpretação das figuras e objetos autistas (Tustin,
1972; Meltzer, 1975; Haag, 1985; Ogden, 1989), interpretação ou tradução dos
nos permite concluir a presença de princípios oriundos de uma clínica em que o paciente
seria essa técnica, um princípio assegurador de um encontro marcado pelo não saber?
A clínica lacaniana atual determina o lugar do psicanalista como aquele que junto à
criança autista, “antecipa um sujeito a advir” por meio de uma “aposta de interpretação”
(...) o trabalho psicanalítico com uma criança autista se faz ao avesso da cura analítica
advir, ou seja, ser falante. Esse recorte se faz indispensável para repensar a ética do
encontro com uma criança que não fala. Colocada no lugar de um sujeito a advir, toda a
273
clínica está centralizada em fazer falar. Nesse cenário, o sujeito nasce, pelo menos, duas
vezes: uma vez como organismo vivo e, outra vez, como sujeito falante. O humano é
pensado como qualquer coisa pré-ontológica, que precisa encontrar a sua finitude
Partindo da noção de Michel Henry (1985, 1990, 2001, 2003) sobre os princípios
mesma crítica dirigida às ciências naturais pode ser também refletida no campo
possível abertura ao outro. E o primeiro momento de uma relação de mim para o outro
não é de intenção doadora de sentido, asseguradora de meus próprios medos, mas exige
Michel Henry, pode ser reconhecida na clínica psicanalítica com uma criança autista, a
sentido de uma atenuação do rigor técnico habitual” (p. 70). Da mesma forma, para tratar
274
Segundo Ferenczi, é essencial que o analista funcione de forma plástica e se
que iniciam o sujeito na experiência de ser, para então poder existir como ser humano.
Repetir o perfil sonoro que ele emitia era ecoar a singularidade de sua existência. O
terrível é emitir um som sem que ele jamais seja ecoado por outro ser humano, o que
podem existir para além dos princípios asseguradores de uma interpretação verbal,
doadora de sentido. Vivenciar o caos do nonsense com um paciente por meio da ação do
terapeuta de ecoar os sons de uma criança que não representa a realidade seria, na
afeto pode aparecer e anunciar-se. Nessa mesma abordagem, o caso de Maria foi
apresentado por Tafuri (2003) na Tese de Doutorado denominada “Dos sons à palavra:
explorações sobre o tratamento psicanalítico com a criança autista”. Foi um caso clínico
275
Revisitando o caso de Maria
O primeiro encontro com Maria, uma criança autista de três anos, foi marcado por
um fenômeno sensível: a criança emitia sons fortes e estridentes que tinham uma
criança começava a girar as mãos em frente ao seu rosto com muita velocidade e leveza,
parecia hipnotizada consigo mesma. Nesses momentos, sua voz era mais melodiosa e
acompanhava o ritmo do seu corpo: sentada no chão, balançava o corpo para frente e para
invisível. O estado de prazer demonstrado por Maria era visível e atraente. Havia ritmo,
Em outros momentos, Maria corria na ponta dos pés, de um lado para outro, sem
nenhuma exploração dos objetos da sala de consulta. Essas corridas, sem olhar para os
objetos e nem tão pouco para a terapeuta, eram acompanhadas de sons metalizados e
forma repentina, entrava em um estado de agonia, se mordia, batia a cabeça nas paredes
e não aceitava consolo por parte de qualquer outro, até mesmo dos pais que lá estavam.
flor. Ela pulava na ponta dos pés de forma ágil e muito rápida, em um mesmo lugar, na
estridentes e, de vez em quando, encostava as pontas dos dedos, de forma rápida e fugaz,
no objeto fitado por ela. Maria não encostava o corpo dela em nenhum objeto. Parecia
276
um beija-flor que toca a flor apenas com o bico, mantendo o seu corpo suspenso no ar
naquele primeiro encontro. Não havia, na verdade, um isolamento radical em relação aos
objetos da realidade. Ela tocava os objetos com a ponta dos dedos, de forma fugaz e,
objetos. A maneira dela de entrar em contato com a realidade foi trazida à mente da
analista por meio de uma imagem, a do beija-flor criada de forma totalmente inesperada.
Uma imagem bela e determinante para a analista repensar o lugar ocupado por ela na
Portanto, não seria necessário antecipar por meio de apostas interpretativas um sujeito a
advir. Maria estava presente enquanto sons, maneirismos e toques sensíveis nos objetos.
Uma presença de ser não passível de ser nomeada, porém, acolhida terapeuticamente por
meio da ação do psicanalista de ecoar os sons produzidos pela criança, por mais
relação ao outro. Uma abertura ao outro, qualquer que seja esse outro, falante ou não
277
falante. Nesse sentido, a clínica psicanalítica nos remete à natureza de um encontro para
algumas questões se fazem necessárias: o que pode o corpo de uma criança autista para
À luz das noções de Michel Henry, trazidas por Florinda Martins (2010, 2014) é
para mim mesma, as reações de Maria, eu entrava em contato com um saber que
Desde o primeiro encontro, a analista passou a ecoar os sons de Maria, sem olhar
diretamente para ela, como se não a estivesse procurando. Ela se fazia existir nos sons
(1999), nos sons de Maria estava a criatividade primária de uma criança ensimesmada
278
materialidade do fenômeno, os sons ecoados pela analista, que o afeto pôde enunciar-se.
Ao longo das sessões, Maria passou a encostar as costas das mãos na boca da terapeuta.
E, aos poucos, passou a olhar e a colocar o dedo indicador dentro da boca da analista. Era
como se procurasse os sons na boca do outro. Para a terapeuta, a criança parecia tão frágil
e sensível ao outro, que mesmo as palavras poderiam ser invasivas e duras demais para
ela. Falar com ela seria o mesmo que tocá-la com palavras. E ela era frágil demais para
ser tocada. O que Maria precisava era encontrar o outro sem ser invadida por uma
presença excessiva desse outro. Ou seja, o terapeuta precisaria estar lá para ser encontrado
O jogo dos sons foi se tronando cada vez mais elaborado, o sofrimento relacionado à
espera foi sendo substituído por um brincar sensível. Ou seja, a pequena passou a brincar
de se esconder para esperar a imitação dos sons por parte da terapeuta. Ela se escondia
Maria a terapeuta emitia os sons procurando por ela em lugares distintos da sala, atrás da
porta, no banheiro, etc. Em seguida, olhava debaixo da mesa e demonstrava imenso prazer
279
Nesse contexto do jogo dos sons, Maria passou a olhar para a analista, a se deixar ser
22 anos.
Considerações Finais
O corpo de uma criança autista pode permitir a abertura ao outro se for vivenciado
como fenomenalidade pura do afeto. Por outro lado, a criança examinada, interpretada ou
se em relação ao outro, qualquer que seja esse outro, é escapar do domínio das intenções,
como foi visto nos casos de Ricardo (Safra, 1999) e Maria (Tafuri, 2003). À medida que
o corpo de uma criança autista só pode ser lido como cifra efetuada pela criança e ser
engajada pelo analista numa rede significante, cuja consistência é dada pelo imaginário,
o psicanalista se fecha em uma rede de significados. Nesse caso, nada mais faz do que se
linguagem. O psicanalista que aposta uma interpretação insere a criança em redes diversas
Tanto Ricardo como Maria se apresentaram como seres sonoros não passíveis de
“estar lá para ser encontrado” (Tafuri e Safra, 2012). Maria, desde o primeiro encontro,
mostrava-se presente por meio de gestos e sons que expressavam a ‘criatividade primária’
280
(Winnicott, 1951). Cabe ao terapeuta seguir a ética de um encontro sensível, o de
a ser encontrado.
Referências
Obras Completas. Psicanálise III. Tradução de Álvaro Cabral. SP: Martins Fontes,
1992, p. 109-25.
Completas, Psicanálise III. Tradução de Álvaro Cabral. SP: Martins Fontes, 1992,
p.25-36.
281
Klein, M. (1930/1996). A importância da formação do símbolo no desenvolvimento do
RJ:Imago, 249-264.
Laznik-Penot, M.-C. (1995) Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. Trad.
Martins, F. (2010) O que pode um corpo? In F.Martins & A. Pereira (Orgs) Michel
Meltzer, D. (1975) Org. Explorations dans le monde de l’autisme. Trad. G. Haag et al.,
Paris:Payot, 1980.
Safra, G. (1999) A face estética do self: teoria e clínica. Tese (Livre Docência). Instituto
de Psicologia. USP.
282
Tafuri, M.I e Safra, G. (2012) O lugar do psicanalista com uma criança autista: estar lá
Camargos Viana (Org) e cols., Brasília: Liber Livro Editora Ltda, 323-340.
283
PSICOLOGIA, TEOLOGIA E FENOMENOLOGIA: EM BUSCA DE MÚTUO
(RE)CONHECIMENTO
E-mail: karinkw@gmail.com
relações encontradas entre as diferentes áreas nos 30 anos de clínica e docência. Parte-se
da escala de atitudes de Wulff para com a religião, e analisa-se o impacto das mesmas
clínica.
Begining with Wulff's scale of attitudes toward religion, we analyse their impact on
237
Psicanalista com atividade em Porto Alegre; coordenadora do Grupo de Pesquisa em Fenomenologia
da Vida, Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Corpo de
Psicólogos e Psiquiatras Cristãos.
284
patients and therapists. In a second moment we bring the need for mutual recognition of
Winnicott), in the relational paradigm for interdisciplinary dialogue (James Loder), and
complementarity and offers us a paradigm for the clinic of the unapparent (Carlos
Hernández), which favors the clinical work that considers the different dimensions of
practice.
(Michel Henry) e meu começo como terapeuta também se dá no acolhimento do que está
vivo no paciente e ressoa em mim. Logo, atender a esse convite é fazê-lo a partir do
próprio percurso na clínica, iniciada em 1982. Por isso, essa fala apenas se torna possível
se for testemunhal, e a partir disso contar dos encontros, dos autores e dos estudos que
humano. Nesse sentido, sou muito grata aos professores Gilberto Safra e Andrés Eduardo
A. Antúnez que acolheram essas questões nesse ambiente universitário tão seleto, e que
através dos seus percursos têm convidado a psicologia brasileira a se tornar mais aberta
qual a religiosidade permeava todos os aspectos da vida. Foi traumático ouvir docentes
285
espiritualidade, apresentando-os como “a verdade”. Tentei falar com um dos professores
e contar da minha experiência positiva na minha pequena comunidade, e ouvi dele que
em breve eu teria de optar entre a psicologia e a religião, que não seria possível manter
nessa questão. Muitas vezes, desde pequena, os livros foram refúgio, consolo e abertura.
Algo que também minha educação cristã me ensinou a buscar, nas leituras diárias daquele
Naquela hora os livros não foram de muita ajuda, apenas me mostraram que eu
não abriria mão tão facilmente de nenhuma das dimensões, pois amava a psicologia e
continuava amando a espiritualidade. Mais tarde aprendi num livro, organizado a partir
dos Congressos de Psicologia e Senso Religioso da ANPEPP, que aprendi com Marilia
Ancona-Lopez (1999) que esse professor, como muitos outros nos cursos de psicologia,
adotara uma atitude reducionista do fenômeno religioso, na qual a chave é a palavra “ou”:
cientificamente correta.
Mas somente livros não bastam! – É preciso que a teoria seja encarnada nos
de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – CPPC –um fórum de pesquisas que desde 1976
286
investiga a relação entre psicoterapias e espiritualidade.238 Nesse ambiente conheci
restringindo em muito a relação ciência-fé. Lá aprendi que em outros países esse diálogo
acontecia e de forma muito fecunda, que era possível conversar, investigar, sem excluir
nenhuma das dimensões, mostrando que a pessoa não se define apenas por um dos
“SEPTT”239 que inclusive mantém uma formação psicanalítica e uma parceria para
em relação à religião. Seu quadro de atitudes perante o religioso nos auxilia a perceber as
238
O Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – www.cppc.org.br - mostra em sua história esse percurso
apoiado por terapeutas e pensadores de vários continentes e formações
http://www.cppc.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=27
239
Society for exploration of psychoanalytical therapies and theology – SEPTT. Do site www.septt.org :
As academics and clinicians, we are committed to the dialogue of Christian theology and the
psychoanalytic therapies. We believe that such a conversation is both consonant with historic Christianity
and supportive of its redemptive telos. As a community united by shared psychoanalytic interests and
faith, we seek to enact the relationality that is intrinsic to both, through the collegial and scholarly bonds
nurtured in this forum. Moreover, we believe that the synergistic effect of our interdisciplinary dialogue
combined with a rich sense of community, will engender scholarly writing that will be generative to both
psychoanalysis and Christianity. It is our hope that applications of theologically grounded psychoanalytic
theo à illàulti atel àse eàtoàe lighte àtheà oade à ultu alàho izo . Acesso em 31 out. 2014.
240
Nossa primeira abordagem desse modelo foi no texto preparado para a discussão da religiosidade do
psicólogo, no XVIII Congresso Nacional do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, em Florianópolis,
2013. Publicado na Revista Teologia – Wondracek, 2013.
287
sentimentos religiosos dos pacientes como as posturas de profissionais psi. Nesses
últimos, inclui a análise do conteúdo acadêmico acerca da religião. Os dois eixos de Wulff
(horizontal), e formam quatro quadrantes, a partir dos quais o indivíduo se relaciona com
p. 78)
formação dos psicólogos para lidar com a religiosidade: “o psicólogo clínico enfrenta é a
religiosas quando elas aparecem na clínica psicológica” (1999, p. 77). A autora expressa
que nem todas as linhas de psicoterapia incluem a religiosidade no seu escopo, o que
deixa o clínico “perdido” (1999, p. 79), necessitando buscar referentes em outras áreas
288
ou em sua própria experiência. Pelos depoimentos de colegas, expresso que as vivências
foram em grande parte traumáticas e reducionistas, e por isso não favorecem a abordagem
empática.
trabalho clínico:
com afirmação literal): estas pessoas “assumem que a linguagem religiosa deve ser
entendida de forma literal, mas rejeitam por princípio tudo o que é nela apresentado. Elas
pior efeito recai sobre aqueles que defendem a negação literal, pois bloqueiam a si
religiosos, que apenas aceitam as contribuições das ciências quando estas estão em total
Características dos profissionais psi que habitam este quadrante: Agem a partir da
289
idealizadas e regras de comportamento. O comportamento profissional que aparece como
o mais adequado para aqueles psicólogos clínicos que se sentem numa posição próxima
à da afirmação literal é o de procurar apoio em teorias que não entrem em choque com
que defendem, de modo a possibilitar a seus clientes a escolha, ou não, pela orientação
espaço do consultório. Tudo deve ser enquadrado no esquema referencial defendido pelo
terapeuta.
sentem que seus valores mais sublimes são sistematicamente reduzidos ao infantil, e com
isso a clínica não permite que sejam retrabalhados além desse âmbito. Isto é, a
290
Freud, deixa de contemplar algumas dimensões essenciais da vida e com isso reduz a
Características dos profissionais psi: Seus trabalhos têm cunho explicativo, buscando
reduzindo-o a outras áreas” (1999, p. 80). Ancona-Lopez agrega que grande parte dos
com que uma pessoa religiosa vivencia sua fé, o que obstaculiza o diálogo e o avanço nos
pontos de vista debatidos; tenta achatar a vida para apenas um plano, excluindo a riqueza
2007). Voltando à linguagem testemunhal e a meu diálogo com meu professor, penso que
a restaurar a ligação com a realidade transcendente para a qual apontam. Eles não são
sentimentos, valores e esperanças que organizam e regulam o fluxo das interações dos
sujeitos.
241
A mesma preocupação é explicitada em Faria, 2003; Safra, G. 2006; Rizzuto, 2006; bem como nosso
capítulo F eud,àPfiste àeàsuasàilusões:àQueà i ia?àQueà eligi o?àWo d a ek,à .
291
a idolatria e ilusão e ao mesmo tempo restaurar e retomar os símbolos, para que se tornem
novamente “uma fonte de significados e de fé”. (1999, p. 81) Esta dupla tarefa permeia a
atividade clínica e acadêmica dos profissionais psi abertos aos conteúdos religiosos.
Esta busca por integrar as diferentes dimensões também se apresentava nos meus
sonhos: Durante uma de minhas análises, sonhei que habitava uma casa de dois andares,
sendo um térreo e outro porão: no andar térreo, de cima, estava a sala com pessoas
espiritualidade, num ambiente mais íntimo, mais obscurecido, com menos presenças, mas
igualmente significativo. Analisei que sou uma pessoa que habita dois andares, e meu
à vida, como aprendi com Michel Henry na elaboração da tese de doutorado (2010).
292
Esse sonho representa o modo como me sentia “na vida” – habitada por diversas
dimensões, que convidam a vivê-las simultaneamente, tal qual uma casa da vários
diferentes âmbitos que me compõe. Afinal, sou uma pessoa habitada por no mínimo dois
andares!
Dentro dessa atitude de abertura do quarto quadrante de Wulff, uma das tarefas
epistemológica decorrente do paradigma moderno e fisicalista que ela obteve por nascer
no século XIX. O esquecimento do religioso já fora afirmado pelo próprio Freud a seu
242
Ma ti e osà e t eà à eà ,à ju toà o à oà psi a alistaà “ gioà deà Gou aà F a o,à oà G upoà
I depe de teàdeàEstudosàdeàPsi a liseàeà‘eligi o .àátual e teà oo de a osàoàG upoàdeàPes uisaàe à
Aconselhamento e Psicologia Pastoral e o Grupo de Pesquisa de Fenomenologia da Vida, na Faculdades
EST, registrados no Diretório de Grupos do CNPQ.
243
O psiquiatra argentino Carlos Hernández nos presenteou em 1998 um guia de leitura bíblica para o
desenvolvimento da alma, Leamos la Bíblia, que tem ajudado muitos profissionais da área psi a
vivenciarem as riquezas do cristianismo. Essa incursão está auxiliando um grupo de psicólogos e
psi uiat asà i uladosàaoàCPPCààaà edigi e à o e t iosàdaà Bí liaàdeàEstudoàCo selhei a à ,à“BB ,à
editada pelo psicólogo e teólogo Karl Kepler. Em 2015 seu Novo Testamento será lançado em inglês e
espanhol.
244
Mestre Eckhart, Hildegard von Bingen, Teresa de Ávila, São João da Cruz, Nicolau de Cusa, Inácio de
Loyola, Jacob Boeme, Tersteegen, Edith Stein, Henry Nouwen, além dos poemas de Adélia Prado, Armindo
Trevisan, Roberto Zwetsch, entre outros.
293
amigo Oskar Pfister245 e depois trabalhado pelo psicanalista-pastor (Wondracek, 2003,
2005). A participação na tradução das Cartas entre Freud e Pfister (Freud & Meng, 1998)
termo, mas constitui o eixo da intersubjetividade, uma das bases hegelianas da postura
clínica de Jessica Benjamin assumida por Hoffman(2011). Se cada vez mais se reconhece
o paradigma relacional nas teorias do conhecimento (Polany, 1964, Loder & Neidhardt,
1992, Hernández, 2008), este tema se torna relevante para a clínica, especialmente para a
curiosamente são acompanhadas pelos avanços das neurociências, que apontam para a
que cristianismo e psicanálise não são apenas separadamente guardiãs desse mistério, mas
conservam entre si alguns aspectos que as aparentam, e essas raízes comuns devem ser
trazidas à luz.
245
F eud,à a taà deà . . :à Estouà uitoàad i adoàdeà ueà es oà ão tenha me lembrado de quão
grande auxílio o método psicanalítico pode fornecer à cura de almas, porém isto deve ter acontecido
porqueàu à auàhe egeà o oàeuàest àdista teàdessaàesfe aàdeàideias à ,àp.à
294
Para começar, falemos de Freud...
em 1935, quando inseriu a seguinte frase na sua autobiografia: “Meu profundo interesse
pela história da Bíblia (quase logo depois de ter aprendido a arte da leitura) teve, conforme
reconheci muito mais tarde, efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse.” (1925,
p. 18)
A Bíblia também é o segundo livro mais citado por Freud – entre Goethe e
Shakespeare... Ele próprio escreveu várias obras sobre personagens e temas religiosos.
por isso perdem a riqueza desse tesouro simbólico para a vida consciente e inconsciente
1. A história do povo hebreu é marcada pelo exílio, pelo deserto, pelo nomadismo
e pelo contato pemanente com o estrangeiro. Isso faz com que em todo tempo se
do psiquismo.
estranheza e por isso presença de angústia. “YHVH não pode exercer a função de
(2000, p. 108)
295
3. A escrita hebraica comporta uma polissemia de interpretações, sem que uma
sempre diferente do já sabido, tal como seu Deus. “Quando se imprime alma às
letras, como diziam os antigos escribas, o sentido de uma palavra pode revelar
imagem e semelhança desse Deus que não admite imagem. A partir disso, Fuks
recobrem, seja com figuras, seja com definições, este conceito, cujos
dos conceitos psicanalíticos, torna-os alicerçados em uma tradição milenar, fonte na qual
296
concede à pulsão a errância, tal qual a do seu povo – que vagueou por desertos e segue
de Freud com sua herança. Aproximou Freud dos antigos profetas hebreus, e via na
psicanálise “Um novo acesso ao velho Evangelho”, título de um de seus livros. (Pfister,
1918) Numa carta a Freud comenta que prática analítica se assemelha à acolhida graciosa
perdido (Lucas 15), acontece evidentemente uma regressão para aquela fase
infantil na qual a criança ainda não é tratada segundo a medida do bem ou do mal,
mas simplesmente é servida com amor e bondade. [...] por acaso não reside em
toda graça e perdão uma prática analítica? (Pfister, carta de 31.7.1930, 1998, p.
273)
Evangelho quer dizer com “graça e verdade”. Nesse sentido, as terapias preservam para
nossos dias o que é genuíno no modo cristão de considerar o ser humano. E, como já
lamentava Pfister, o ambiente analítico reflete mais esse amor do que os próprios espaços
297
Mútuo reconhecimento nos pioneiros: raízes cristãs em Klein e Winnicott
Hoffman (2010, 2011) pode ser considerada ousada ao expressar que assim como
reconhecimento do “bom” que é recebido da mãe, sem merecê-lo. Melanie Klein foi
criada na tradição católica, e seu conceito de gratidão recebe essa influência: gratidão é a
resposta aos atos graciosos ofertados pela mãe, depois do bebê expressar as pulsões
agressivas a ela.
cristã, que aos poucos começa a ser conhecida (Hoffman, 2011; Parker, 2012, Wondracek,
2012). Winnicott nasceu num lar metodista, e acompanhava o pai à igreja todos os
domingos para estudar a Bíblia desde sua tenra infância. Segundo Hoffman, o psicanalista
importância da mãe sobreviver ao ataque do bebê, sem retaliá-lo. “Os dons dados por
ambos os pais e pelo analista evolvem para algo muito além de justiça, e requerem e
grega para o latim “gratus” é “charis”, que significa “graça” e forma a base da
298
sobrevivência. Estes conceitos permeiam a compreensão da relação mãe-bebê e da
relação analista-paciente.
e semelhança” de um outro, no caso, de Deus (Gen. 1.26). A riqueza desse texto fundante
começa a ser explorada: escritos conjuntos entre psicanalistas e exegetas bíblicos (Lebrun
Bíblia (Balmary, 1993, 1997, 1999, Wondracek, 2014) Apenas uma menção: Balmary
(1993) chama a atenção que o Gênesis traz o verbo plural quando o divino cria o humano:
primeira pessoa do singular: “Eu vos dou todo alimento”. Se iniciamos a vida nutridos
pela nossa mãe, também aqui é do Deus pessoal que os humanos recebem o alimento. A
primeira pessoa não é usada para se enaltecer (por exemplo “Eu faço a luz”) mas para
se doar. Um critério pode ser criado aqui, para distinguir religiões amorosas de religiões
mágicas e alienantes.246
246
Este comentário foi preparado para constar na Bíblia de Estudo Conselheira, cujo livro de Gênesis está
sendo lançado no ambiente virtual da Sociedade Bíblica do Brasil. www.sbb.org.br
299
James Loder247, teólogo do Seminário de Princeton, expressa que o Gênesis nos
aponta que somos exocêntricos, nosso centro está na relação com um outro. O ser humano
inicia a sua vida se apoiando numa imagem de alguém fora dele mesmo, conceito bíblico
que será trabalhado por Freud, Lacan e Winnicott. Loder expressa que esta relação Eu-
“mistura” dos diferentes saberes. Curiosamente, é a própria teologia que traz um modelo
e ao mesmo tempo propiciar a sua participação. Para Loder (1998), o grande debate
natureza de Jesus Cristo, não apenas conceitua uma verdade a respeito da natureza de
campos diferentes de saberes, e para nosso estudo, sobre como relacionar o fato de ser
psicólogo e cristão.
247
JAMES E. LODER (1931-2002) foi professor no Seminário de Princeton, com formação teológica,
filosófica, psicanalítica, educacional e em física. Foi um dos pioneiros na abordagem interdisciplinar dos
fenômenos humanos, tendo participado de grupos de investigação já na década de 60.
300
Loder (1998) explicita que esta unidade aparece na epistemologia, como a
Na física, esta mesma estrutura embasa a teoria quântica de Niels Bohr para explicar a
validade.
Aos poucos o Brasil toma contato com a nova filosofia francesa, na qual há um
fenomenologia da Vida, com Michel Henry, Jean-Luc Marion e Jean Louis Chrétien
conhecimento do humano.
Michel Henry em seu livro Eu sou a verdade (1998) bebe em fontes profundas:
nos místicos como Meister Eckhart e no Evangelho de João: no logos joanino está o
afetividade como condição fundante e encarnada desafia nossa clínica para acolher o
248
Para maior aprofundamento consultar o capítulo 3 da nossa tese (2010), bem como o Glossário ao final
da mesma.
301
(1987) e Françoise Dolto (1997), que expressam que o Ocidente precisa reconhecer de
Somos filhos nascidos na Vida absoluta, essa é nossa condição. Florinda Martins
a esse reconhecimento:
vivos, agir!
tomar o pensamento como ato primeiro, indicando que é necessário religar a capacidade
de pensar com sua doação na vida. Reconectando o pensamento com sua doação
verbo se torna carne (João 1.1). Essa conexão reordena, entre outros, a relação entre
corpo, pensamento e linguagem: essa última é conectada com corpo e carne. Aqui se
302
efetua para ele a subordinação dos fenômenos da linguagem à fenomenalidade pura, mas
isso não apaga as especificidades dos fenômenos da linguagem, antes conecta-os com sua
No seu último livro Palavras de Cristo (2004)250 Henry desenvolve este tema,
como única realidade (p. 73). Assim oculta uma palavra mais original, a Palavra da Vida,
capaz de criar o que enuncia, que diz respeito à relação que a vida faz com os seres vivos.
Essa é a palavra “cuja possibilidade é a própria Vida e na qual a vida fala de si, revelando-
se a si mesma – na qual a nossa própria vida se nos diz e constantemente”. (p. 74),
dessa outra Palavra. Desta forma, muitas experiências críticas se tornam fonte de
aguçada para compreender a pessoa humana, tema desse Congresso, de uma forma muito
mais complexa e profunda. Segundo Loder (1998), o ser humano está igualmente
249
Para aprofundamento cf. o capítulo 4 de nossa tese (2010).
250
Para maior compreensão cf. capítulo 5 da nossa tese (2010).
251
Além desse artigo, a psicanalista Marina Lúcia Tambelli Bangel está concluindo sua dissertação na
Faculdades EST a respeito do sofrimento infantil que se apresenta na contemporaneidade, e que na
interlocução entre teologia, fenomenologia da Vida e psicanálise pode ser trabalhado auxiliando a criança
a sentir-se. Estará disponível em 2015 no site www.est.edu.br
303
Michel Henry, no paradigma do duplo aparecer temos acesso às verdades do mundo e às
Diante desse fenômeno, temos um processo pelo qual o self da pessoa como que se
profundamente amorosa.
inconsciente e acolher o mistério, e este remete à outra palavra, não interpretável, mas
passível de ser testemunhada (Safra, 2006). É necessária uma postura de respeito e espera
presentes por sonhos, atos falhos, associações livres, transferência. Tento acolhê-los e
discernir o que deve ser interpretado e o que deve ser testemunhado. Aos poucos, ganham
confiança para contar suas experiências com o sagrado através de sonhos, visões, orações,
leituras, falar em línguas, encontros nos quais, tal como aos discípulos de Emaús, “ardia
Nesse ponto, a pessoa se apropria dos princípios que compõe sua utopia, seu sonho
direção à maneira como realiza a sua concepção pessoal sobre o absoluto ou sobre
o divino. Quando ela se apercebe desse processo e se apropria dele, tem acesso à
304
sua espiritualidade: a maneira peculiar como ela se abre para o mais além, para
(2008, p. 142).
Voltando a meu sonho, se espera que ambos os andares revelem seus habitantes,
suas luzes e suas sombras. Nem sempre estas devem ser escancaradas com a luz da
interpretação, mas apenas contempladas com a luz de uma pequena lâmpada, de uma
No paradigma do duplo aparecer, ou dos dois andares, podemos ampliar a questão que
pergunta é acrescida da questão “Que poder doa a vida?” (Wondracek, 2010) Henry
expressa que temos duplo nascimento – dos nossos pais, com nossa biografia ancorada
na relação com nossa família. Mas também temos nosso nascimento na vida absoluta,
doadora de toda a vida, inclusive da dos nossos pais. Esse processo pode ser reconhecido
especialmente para aqueles que não foram afortunados na relação com os pais visíveis.
305
Elogio
Minha mãe:
poeta algum
o caminho do coração,
carruagens reais
Só me resta extrair
da memória
Depois falar-te,
com a limpidez
da água
306
que veio de um Seio
Será que nossa clínica se abre para essas questões de duplo nascimento, sem
quarta atitude de Wulff, não devemos reduzir nossa vida a uma só dimensão, mas senti-
... todo ser humano busca a Vida, antes que a Morte, mas a vida não precisa ser
podemos ser na Vida, somos Vida, estamos nela, seja com amor ou ódio, alegria
nós mesmos.
complexidade humana.
abraçam e o abarcam.
307
Com Loder - considerar simultaneamente os diferentes saberes reunidos na lógica da
nem substitui-los.
que, tal como expressa o Evangelho, nos traz “coisas novas e velhas” (Mt 13.44). χs
sabedoria contida nos textos sagrados e no reconhecimento de sua presença nas teorias
psicológicas.
Com Henry – considerar a vida doada na imanência, que nos abre à clínica do
em mim.
trabalho desenvolvido no IPUSP e neste Congresso indica que já temos esses espaços de
308
formação em constituição. Que se continue a trabalhar integrando as diferentes
dimensões!
Referências
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WONDRACEK, K.; HEIMANN, T.; HOCH, L. (org.) Um olhar nos espelhos da culpa.
313
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERDÃO E O NÃO-PERDÃO NA
CLÍNICA DO ENVELHECIMENTO.
E-mail: fernando.genaro@gmail.com
pacientes idosos atendidos num Centro de Referência do Idoso ligado ao Sistema Único
de Saúde o SUS. Há algum tempo (Genaro Junior, 2012; 2013) tenho me detido na
identificado que uma das várias necessidades próprias do processo de envelhecer esta
facetas do perdão, como oportunidade de abrir novos espaços a fim de sonhar um fim
último possível e destinar a continuidade da vida para as futuras gerações. Assim como,
recorro a própria prática clínica por meio de vinhetas e teço algumas compreensões sobre
314
Abstract -This work is part of a clinic-institutional experience with elderly patients
treated at a Reference Elderly connected to Sistema Único de Saúde - SUS. Some time
ago (Genaro Junior, 2012, 2013a, 2013b) have held me in investigating the specificity of
clinical practice with this population, identified a number of specific needs of aging is
linked to the urgency of reviewing the meanings of life process. Soon, the need to live the
many facets of forgiveness, as opening up new spaces to dream a final end possible and
allocate the continuity of life for future generations. Just as, in some clinical situations,
the need to live without the non-forgiveness and resentment that means stoppage of
becoming. However, such considerations to weave, turn to their own clinical practice
through vignettes and weave some insights about forgiveness and no forgiveness as a
Introdução
2005), o Brasil será o sexto país com o maior número de pessoas idosas no mundo até
2025.
realizado em 2010, apontou que 7,4% da população têm mais de 65 anos, contra apenas
315
o Brasil terá aproximadamente 216 milhões de habitantes em 2025, dos quais 31,3
milhões, isto é, 14% dessa população serão idosos. Em 2040, quando a expectativa de
sistemas de saúde atuais não estão preparados para atender tal demanda, havendo pouco
investimento nessa área, incluindo aqui a própria atuação da Psicologia (Genaro Junior,
de Conselhos Nacionais dos Direitos dos Idosos e suas delegacias regionais e municipais
e a criação de centros de referência do idoso por região, como o da Zona Norte de São
Paulo, local em que idealizei e implantei o serviço de psicologia clínica para pacientes
idosos252.
Universidade São Paulo no ano de 2013, nela discorreu-se a partir da minha experiência
psicologia clínica a pacientes idosos no Sistema Único de Saúde, o SUS, sobre o processo
eixos clínicos dessa prática (Genaro Junior, 2013a). Dentre os vários eixos um deles se
refere a necessidade de se viver diferentes facetas do perdão. Outro, surgido após a defesa
perdão e o não-perdão numa tentativa reflexiva clínica e teórica sob a perspectiva ética
252 Para maiores informações e desenvolvimentos sobre o assunto favor consultar: Genaro Junior, F.
(2013b). Clínica do envelhecimento: concepções e casos clínicos. São Bernardo do Campo-SP: Editora
Todas as Musas.
316
proposta por Safra (2004), considerando a importância do ambiente humano como
ressentimento. A fim de discutir tais aspectos utilizo-me de duas vinhetas clínicas como
ponto de partida para tecer algumas considerações sobre o tema em destaque nesse
trabalho.
Vinheta clínica 1
O sr. Rafael253, 78 anos, cardíaco, viúvo, pai de cinco filhos, vive sozinho. Chegou
relatou:
Dureza de vida! Fiz muita coisa errada. . . (silêncio). Trabalhei muito, não
deixava faltar nada em casa, mas judiei muito da patroa e dos filhos!
Bebia, ficava nervoso, cego e quebrava tudo! Bati muito nos meus filhos,
na minha falecida, era de ir pro hospital! Meus filhos me querem bem hoje,
tentam ficar perto, mas eu não me perdoo!!! Já fui na igreja, falei com
Nesse breve contato, o sr. Rafael já nos anunciava o que lhe era necessário: a
necessidade de perdão parecia ser a única saída. No entanto, para isso era necessário
253Nome fictício a fim de preservar a identidade do atendido, cabe salientar que houve consentimento
para fins de pesquisa conforme as prerrogativas éticas em voga.
317
desvencilhar-se de si mesmo, aspecto complexo e difícil durante toda a sua vida. A
Vinheta clínica 2
A sra. Teresa foi encaminhada ao serviço por sua médica geriatra, tendo em vista seu
quadro depressivo, que não respondia aos antidepressivos. Já na triagem nos deparamos
com uma senhora corporalmente oprimida, com significativas rugas por todo seu corpo,
aparentando ser muito mais velha e logo de início nos comunica: “. . . Sabe que é? Eu
nunca tive amor de mãe, só maus tratos, tento ser calma, mas muitas vezes nem consigo
dormir!. . .” [sic]. A sra. Teresa começou então a me relatar o quanto havia sido torturada
por sua mãe ao longo de toda vida, a começar do seu nascimento; era a filha caçula de
uma prole de quatro mulheres, sua mãe esperava um filho homem. Eis sua primeira
experiência de violência: ao nascer, sua mãe constatando ser mais uma menina, colocou-
a num formigueiro. Uma tia que acompanhava o parto na casa, pois vivia na “roça”, foi
quem a retirou do formigueiro e cuidou dela nos seus primeiros dias; suas irmãs mais
velhas contam que a mãe não deixou nenhuma delas se aproximar para ajudar.
meu pai, antes de morrer, eu era menina, pediu que eu cuidasse da minha
apanhava muito até sua adolescência (sem motivos). Sua mãe lhe rogava
254
Nome fictício a fim de preservar a identidade do atendido, cabe salientar que houve consentimento
para fins de pesquisa conforme as prerrogativas éticas em voga.
318
pragas do tipo “você vai ter doença ruim. . . marido ruim. . . não vai servir
A sra. Teresa havia se casado com um homem que reproduzia a violência vivida
com sua mãe (ele a agredia fisicamente e a controlava pelo medo); a profecia da sua mãe
parecia se cumprir, teve três abortos naturais e, há cinco anos atrás, um câncer de mama.
Sra. Teresa não se mostrava ressentida pelo vivido, mas perdoar sua mãe não lhe era
continuamente, a cada sessão que se inicia e termina como o movimento natural da vida.
Entretanto, com a chegada da velhice, tal necessidade surge de maneira mais urgente. A
partir de um balanço existencial como nos aponta Safra (2006a) e Genaro Junior (2013b),
além dos aspectos físicos e psíquicos, a pessoa idosa vive inevitavelmente, consciente ou
inconscientemente, um balanço da sua vida em seu sentido maior, para assim poder vir a
formular um fim possível ao qual possa destinar a sua existência – experiência fecunda
desenvolvido por Safra (2006b) como teleologia – referente ao Telos. Para Safra (2006b),
consciência dela do que em outras etapas da vida. Para Safra (2007), o gesto humano
sempre se origina e caminha em direção a um fim e “essa situação o faz um ente sempre
255 Safra recorre à Filosofia para contemplar aspectos essenciais da existência humana e seus
desdobramentos na clínica atual. Assim, ao se referir a Arché, o autor define como sendo uma faceta da
existência aonde tudo se inicia: a origem do gesto, o originário. O mesmo acontece com o termo Telos, o
qual se refere ao fim, finalidade, conclusão do gesto humano, assim como o findar do próprio ser humano.
319
ser humano que se relaciona ao anseio do fim” (p. 84). Sendo assim, todo gesto humano
busca, por meio de uma ação, um fim em si, bem como realiza concepções sobre ele a
partir da sua própria biografia e ontologia. Cabe reconhecer que esses movimentos entre
Arché e Telos acontecem o tempo todo, mas na velhice isso ganha maior dimensão, com
observamos, por exemplo, que é comum na clínica com idosos a presença de certa
preocupação para que a morte não ocorra no momento que estejam a sós. Como nos
que o Outro esteja presente em todo o seu percurso de vida. (p. 90-91)
interlocução e testemunho, a despeito de que a pessoa esteja só. A questão é que se não
há a presença do “outro”, a solidão é vivida como absoluta, sem rosto humano (Safra,
2006b).
Nesse tempo legítimo de balanço sobre o sentido da vida, vivida ou não como
realização, é que Safra (2006a) assinala uma das necessidades fundamentais na velhice:
mesmo, os outros, planos/sonhos que não aconteceram, ou outros que não saíram como
previsto, em outras palavras, perdoar a própria vida. Contudo, é importante ressaltar que
o perdão surge como uma necessidade humana, sem qualquer relação externa, religiosa,
abrir um novo espaço para se viver o não vivido, assim como recolocar aquilo que não
320
pôde acontecer e/ou aquilo que ficou impedido por diversos motivos. Isto é necessário
para que o idoso possa destinar-se a algo e não perder de vista o horizonte de futuro, ainda
que esse seja a própria morte. Assim conjugado, obtém-se a preservação da memória, da
história– gesto reparador a toda uma vida, como podemos observar na situação clínica da
vinheta 1, sr. Rafael anseia tal reparação, sente-se impedido para prosseguir.
(1958/2011) sobre a condição humana nos auxilia para uma compreensão mais apurado
sobre o assunto. A autora reitera e acrescenta as concepções descritas por Safra (2006b)
Arendt (1958/2011) em sua célebre obra A condição humana, aponta que o poder
de perdoar não está posto num nível superior, mas sim na potencialidade do próprio gesto
público. A redenção apresentada por ela só seria viável pela via do perdão. Assim, sob a
perspectiva da ação, somente o perdão poderia desfazer os atos passados, ainda que
e promessa enfatiza:
ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se sentir obrigado por uma
como presença humana que outorga a ação como gesto. Sem essa possibilidade de
alteridade pública, aquilo que seria genuíno e libertador torna-se sem abertura ontológica
de self, ao contrário, pura paralisação. Sob essa dialética, a do perdão e promessa, ela
321
enfatiza a dialética simbólica do desligar-ligar – no registro humano, um que nos ligaria
(memória) e desligaria do passado (via perdão) e a outra que nos ligaria a um futuro (via
promessa). A autora aborda tais necessidades em razão daquilo que, em sua obra,
perspectiva que se tornar impossível institucionalizar o perdão, cuja relação com o amor
Sendo assim, observamos que o perdão traz consigo uma qualidade temporal, de
como resposta à vida, bem como à sua finitude marcada pela morte.
impedido de acontecer como experiência legítima. Ademais, torna-se uma falácia externa
(1958/2011) torna-se cada vez mais onipotente, sem perspectiva para o novo. Dito de
velhice ele alcança uma maior noção – é na velhice que se necessita perdoar um percurso,
não raras vezes, todo o percurso (Safra, 2006b). Nesse sentido, percebemos que o perdão,
do self. Assim, podemos pensar: o que dificultaria o perdão? Observamos que as situações
2013b; Khel, 2004) sendo esta uma problemática da esfera narcísica, impossível de
esquecer – pois tal posição é sentida como danosa a si mesmo. Verificamos que a pessoa
322
consciente ou inconscientemente, ficando detida numa experiência passada, seja por
culpa ou por necessidade de vingança, como, por exemplo, a dificuldade do Sr. Rafael
poder vir a se perdoar, conforme a vinheta clínica 1. Portanto, não podendo ser
responsável por seu gesto e por seu próprio destino – o perdão ficaria impedido.
ressentida, mas ainda assim o mal se fazia presente: perdoar parecia não ser possível...
Aqui verificamos uma situação clínica em que o não-perdão surge como necessidade
sobre o além, com aquilo que a informação pode significar na vida do homem. O autor
destaca:
as faltas do homem em relação a outro não lhe são perdoadas pelo Dia do
Perdão, a menos que, antes de mais nada, ele tenha apaziguado o outro
Maimônides, que tudo o que se diz de Deus no judaísmo significa, pela práxis, humano!
Assim, Deus qualquer que seja o significado final e, de todo modo, sem disfarces –
assinalando que perdoar é o mesmo que liberar o outro (ofensor) da sua responsabilidade
323
– sem que isso seja um ressentimento como comumente a psicanálise e a psicologia
preconizam. Eis algumas das dificuldades para se perdoar que ele nos aponta: Como saber
e contar com as boas intenções do ofendido? O ofensor pode medir por si só a extensão
dos seus erros/falhas? Sabemos até que ponto vai a nossa má vontade? Temos
seus pensamentos mais profundos, não pode pedir perdão? (Levinas, 1968/2003).
na rota das ofensas, entramos talvez, numa via sem saída. Enfatizando há duas condições
Diante das ideias do autor, observamos que ele não parte de uma perspectiva
ontológica do perdão, mas sim, de uma visão a partir do registro filosófico, e, sobretudo,
ético.
Nesse ponto da sua aula Levinas (1968/2003) apresenta uma dimensão radical a
partir do Talmud, enfatizando suas discussões no registro ético, já não mais filofófico: a
experiência religiosa não pode – pelo menos para o Talmud, deixar de ser antes uma
experiência moral. Dito de outra forma, não é possível avistar o rosto divino, senão antes
ter podido se haver com as questões morais do rosto puramente humano. Nesse sentido,
Levinas apresenta o judaísmo como uma religião de adultos, em que o teológico recebe
perdão: e se o outro se recusar a perdoar? Acrescenta que além do outro poder recusar e
324
O autor discorre sobre a distinção das faltas com relação a Deus e daquelas faltas
que dizem respeito aos homens. Refere que toda ofensa verbal ou que não cause prejuízo
moral ou material ao próximo, constituem faltas. Com relação a Deus, toda transgressão
faltas cometidas em relação ao Eterno, a Deus. Levinas (1968/2003) sublinha que tais
faltas destroem do Dia do Perdão (data judaica), vivenciado como mera contrição e
por um ritual num calendário vivido em comunidade em meios aos outros homens. Assim,
mais do que um mero auto perdão seguro de si (onipotente) ou um perdão divido, mágico,
o judaísmo como religião de adultos, ele esta nos mostrando que o perdão é no fundo um
assumir a responsabilidade pela ofensa, uma espécie de se apropriar dela na maioria das
vezes, pois não há o que se resolver.... O mal, como doença da alma, carece de uma
paradoxalmente coletiva. Como vimos com a vinheta clínica do Sr. Rafael em que
buscava apaziguar seus ofendidos digamos assim. Sra. Teresa não se tornou ressentida,
mas carecia se apropriar da possibilidade de não perdoar sua mãe diante das suas faltas,
de si mesmo. Levinas (1968/2003) nos diz que para que a consciência moral “danificada”
possa atingir a sua intimidade e reconquistar a integridade ninguém pode reconquistar por
325
si mesmo. Em outras palavras, um trabalho que equivale ao perdão de Deus. Eis aqui a
necessidade de uma data no calendário para o Dia do Perdão, como data que se origina
(Safra, 2004).
Considerações finais
viver o perdão e o não-perdão. Assim, percebemos que as noções sobre velhice, perdão e
de vida, podem fazer com que a velhice seja mais bem acolhida, assim como também
pode auxiliar a pessoa idosa na revisão do sentido da vida vivida (passado); a partir dessa
que o ser humano, em seu ciclo vital, é um ser de passagem, carente de outrem; do nascer
humano, em que se possa favorecer o sonho do fim último, como também ser espaço de
interlocução aos balanços existenciais, a atualização daquilo que não foi, para que se
possa vir a ser (Safra, 2006a). Retomando Safra (2004), o ser humano, como ser de
326
passagem, está assentado entre a origem (Arché) e o fim (Telos). Tal condição existencial
de início e fim evidencia que somos seres precários, mesmo porque sabemos que não há
nenhuma garantia da permanência daquilo que criamos. Nesse âmbito, o ser humano é
um ente peregrino, num constante vir a ser, que deve realizar-se no seu dia-a-dia, que é
demanda, o idoso em sua revisão do sentido da vida, como experiência fundamental para
envelhecer e morrer, necessita viver várias facetas do perdão, bem como o não-perdão,
sendo este apresentado como uma das necessidades elementares nesse momento da vida,
na premissa de que todo fim é uma oportunidade para recomeçar. Desta forma, penso ser
processo de desconstrução e de vários lutos. Seja pela via do perdão, quanto do não-
perdão a vida carece ser recomeçada, sonhada e findada. Desta forma, tal clínica visa
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329
CONTRIBUIÇÕES DE EUGÈNE MINKOWSKI NO CAMPO DO
Prosopon
E-mail: danilo.faizibaioff@usp.br
outras abordagens que não a psicanálise clássica têm se mostrado imprescindíveis, tal
330
EUGÈNE MINKOWSKI'S CONTRIBUTIONS TO THE THERAPEUTIC
despite was born as a complementary device at the Mental Health field, presently has
of others approaches than classical psychoanalysis have proved essential, such as the
three aspects: nosological, philosophical and clinical. Clinical vignettes of cases attended
presented here. In conclusion, we found that these have non-negligible relevance to the
Introdução
256
Ao longo deste projeto, adotaremos a abreviatura proposta por Barretto (2012a): “AT” para
Acompanhamento Terapêutico e “at” para acompanhante terapêutico(a).
331
Estes profissionais começaram a acompanhar pacientes com graves questões
ontológica sobre a qual possa assentar-se eticamente (Safra, 2006, 2008), isto é, acolher
atuais (Safra, 2009, 2014). Afinal, como afirma Cruz (2012), a despeito da revolução
nas representações sociais do fenômeno da loucura, "a dimensão política estrita não
Safra (Barretto, 2012b) e de autores do campo da Fenomenologia, tais quais Edith Stein
(Possani, 2012), Michel Henry (Antúnez, 2014; Antúnez & Martins, 2013) e Eugène
Minkowski (Antúnez, Barretto, & Safra, 2011; Faizibaioff & Antúnez, 2014; Faizibaioff,
(Antúnez, Barretto, & Safra, 2011) bastante similares aos quais, 40 anos depois, fundar-
332
Objetivo e Método
Para o tal, foram recortados três âmbitos de sua obra: o caráter terapêutico da
com vinhetas clínicas de casos de AT atendidos, em sua maioria, pelo presente autor257.
partiu para Munique concluir seu curso de medicina, finalizando-o em 1908. Em 1911,
clínica de Bleuler, por onde passaram, também, nomes como Jung, Lacan e Rorschach
(Antúnez, 2012).
257
Todos os nomes dos pacientes referidos são fictícios.
258
Neste movimento, a psicopatologia tanto de Minkowski como de Bleuer, "diferentemente da ênfase
descritiva e classificatória de Kraepelin, fundava-se na busca da delimitação precisa do 'transtorno
gerador' do distúrbio mental" (Pereira, 2004, p. 126). Contudo, Minkowski diferenciou-se de Bleuler ao
considerar a essência da afecção esquizofrênica na perda do contato vital com a realidade, e não na
clivagem da personalidade (esquize do eu), como este propusera através do conceito de Spaltung
333
então, com a loucura maníaco-depressiva, tidas como as duas grandes entidades
(Minkowski, 1927/2000).
demência: uma vez que ela implica a ideia de uma "perda irreparável das funções
psíquicas, está feita para paralisar toda tentativa de tratamento" (p. 216, tradução
essência de dita afecção reside na perda do contato vital do sujeito com a realidade. Ele
concebeu esta realidade como um ambiente comunitário, coabitado por clínico, paciente
pensar nesta perda do contato vital com a realidade implica considerar que, na patologia,
demência, também "implica a ideia da possibilidade de restabelecer dito contato, seja por
pela noção de Esquizofrenia, já que "o fato mesmo de abordar o paciente como indivíduo
que pode se curar260 influi, sem que nos demos conta, em toda nossa atitude frente a ele",
(Barthélémy, 2012). Ademais, assim como Binswanger, Minkowski utilizava-se do método husserliano na
abordagem dos fenômenos psicopatológicos (Minkowski, 2000).
259
Todas as citações do referido autor foram por mim traduzidas nesta apresentação. Assim, dispensarei
o termo "tradução nossa" nas próximas.
260
Ressaltando que, como pontua o próprio autor, esta "cura" compreende os avanços parciais, o que
implica, sobretudo no campo do AT, pequenos progressos que tendem a ser vividos como grandes
334
isto é, tão somente deixando de considerarmos nossos pacientes incuráveis, argumenta o
autor, diminui-se o peso desta "força hostil que é para o enfermo a realidade, da qual ele
gravemente adoecidos261, uma vez que lhes vale mais um "laço frágil e pouco profundo"
do que "o vazio absoluto" (Minkowski, 1927/2000, p. 193). Ele cita o exemplo de uma
paciente de Bleuler em cujo repertório comportamental não constava nada mais do que
perguntas bem formuladas, sequer entravam por um ouvido e saíam pelo outro; antes,
elas nem chegavam a penetrar no psiquismo da paciente. Houve um dia, contudo, em que
rompeu-se o seu mutismo autístico, conseguindo a paciente com ele travar uma precária,
apresentados por Minkowski (1927/2000) nos traz Barretto (2012a), em uma vinheta
estado autístico. Era comum a ecolalia, aquela repetição de frases e palavras. Para
335
ele, esta se transformou em um jogo. Ele sempre emitia sons, os quais o analista
tinha de repetir. Após alguns anos de trabalho, o analista se deu conta de que o
analista foi capaz de repetir exatamente a melodia proposta pelo paciente, este
entrou em estado de júbilo. Ele (paciente) viveu uma experiência estética na qual
pôde ser compreendido por um outro, houve uma comunicação verdadeira, ao ter
sido encontrado onde seu ser se ancora: a musicalidade. A partir desta experiência,
p.12).
uma persistente alteração na maneira como o sujeito experimenta o tempo: de uma forma
devir em aberto (Tatossian, 2012), sem excesso de sensorialização psíquica (Safra, 2013).
temporal restrita ao agora, com uma importante dificuldade de suportar e lidar com
336
conteúdos ideacionais e afetivos de seu passado, os quais insistem em penetrar no
2006). "Eu estou sempre nascendo", afirma-me em determinado encontro, após (mais)
uma recaída de álcool, cocaína e crack, a qual a deixara desaparecida por 4 dias. Quanto
calculado, descortinando-lhe o devir apenas até aonde chega um pensamento abstrato com
própria fenomenalidade da vida, o que leva o at, por exemplo, a tentar resgatar, ainda que
uma ligação de Aline em pleno estado de agonia, fui-lhe buscar no trabalho sem aviso
que estava eu fazendo ali. "Surpresa, Aline! Vim te buscar", afirmei em tom sintônico.
Ela entrou no carro um tanto sem graça e, no caminho de volta para sua casa, desdobrou-
agradeceu.
fenômeno temporal em sua totalidade, e, assim, supera a mera consideração de sua faceta
337
que em suas modernas teorias da relatividade), da avaliação médica a respeito da
grandioso e poderoso que vejo em torno de mim, em mim, em todas as partes, em uma
palavra, quando medito sobre o tempo. É o devir", que implica a marcha existencial
22).
mensurável (∆t). No primeiro caso, trata-se de fenômenos que penetram no fluxo vivente
é experimentado como "uma série de instantes que se sucedem" (p. 28), como "pontos
fluxo temporal.
espécie alguma, e apenas consegue sair de casa com seu relógio de pulso. Atravessado
por uma história marcada por violentas fraturas éticas, vive num estado de sofrimento e
todos os encontros interpela-me com sua inquietação essencial: "Quanto tempo vai
Neste caso, nota-se que a estrutura vivencial temporal de Marcos está restrita à
338
acontecimentos de sua vida, a qualidade da duração vivida que, segundo Barthelémy
eventos vitais. Cada episódio da vida de Marcos, inclusive nossos encontros, é por ele
frente a estes, mostrando-lhe, como diz Minkowski (1933/1973), que "ir rapidamente não
esvaziamento de si quando do encontro com o outro, de tal forma que, assim como quando
convidamos alguém a entrar e ficar à vontade em nossas casas, esta pessoa que passa a
nos habitar tende a perturbar a organização de nosso lar em maior ou menor grau262.
262
Pensemos num convidado que, ao adentrar nossa casa, não repara que seus sapatos estão cheios de
barro e suja nosso chão; que, eventualmente, acende um cigarro, sendo que não gostamos muito da
fumaça por ele produzida, ou mesmo quebra, sem querer, nossa taça de cristal favorita. Suportar e
conviver com estes desarranjos que o outro provoca em nosso lar - em maior ou menor grau - é a metáfora
que Safra (2009) utiliza para pensar a Hospitalidade no encontro clínico. A convivência prolongada, fora
do consultório, com pacientes extremamente adoecidos, tende a provocar desorganizações,
perturbações e rupturas dilacerantes no psiquismo do at, frente às quais este deve buscar seus espaços
339
Minkowski (1927/2000), "em perfeita comunhão de ideias com Binswanger" (p.
82), tocou neste ponto ao retomar a relevância do "diagnóstico por compenetração" (p.
do outro em sua totalidade como tal e que a percebe, em um só ato, por sentimento, em
tudo o que há de morto e vivo nela" (p. 82). Ao mesmo nível do diagnóstico por razão -
das funções psíquicas -, o autor eleva o da compenetração, afirmando, inclusive, que esta
faceta diagnóstica é ainda mais importante do que aquela num grande número de casos.
pacientes graves, na forma de vivências estéticas, não-verbais (Safra, 1999). Não é uma
paciente está sentindo; antes, em harmonia com o princípio da Sintonia - cuja uma das
durante quase 2 meses, 24h por dia, em seu ambiente cotidiano, Minkowski (1923/1970)
descreve os "inconvenientes que pode apresentar uma simbiose deste tipo" (p. 15):
340
outorgada uma mortal punição, não mais consegue dormir; sente-se extremamente
época o visitaram e acabaram por conhecer o enfermo, em seu delírio persecutório, nesta
"maquinação tão desumana" que o constituía (p. 22). O fato de poder observar, in loco, a
quantidade de dinheiro que o paciente gastava atuando seu delírio, deixa-o espantado,
uma vez que, na época, Minkowski passava por importantes dificuldades financeiras
(Antúnez, 2012). O clima entre ele e seu paciente tornava-se, muitas vezes,
adoecidas, sintetiza:
Não podemos conservar uma atitude médica 24 horas por dia; terminamos por
cada instante, sua vida psíquica sobre nosso próprio psiquismo. É como se duas
isso nos permite adentrar um pouco mais que o habitual no psiquismo do enfermo.
(p. 17-18)
desenraizamento das relações interpessoais era tamanho que todo o nosso trabalho de AT
341
atender às suas necessidades mais primitivas. Os impactos vivenciais que experimentei
atenção para a questão da compenetração, tão cara a Minkowski. Sobre um dia em que
de trabalho. Subo correndo para averiguar o que acontece com Raul. Encontra-se
destrutivo. Sua voz se altera, pronuncia palavras num misterioso idioma, sua
como seria útil contratarmos John Constantine para nossa equipe. Acompanhante
(FAIZIBAIOFF, 2013, p. 4)
lo, sem necessidade de procedimentos extremos, tal qual a remoção psiquiátrica. No dia
seguinte, fui a uma viagem pré-agendada à praia com uma turma de amigos, mas algo
daquela experiência de contato íntimo com os demônios de Raul não cansava de não se
acolhimento radical de sua alteridade, enlouqueci: coloquei-me, sem dar-me muita conta,
342
a "apanhar" das ondas do mar, às quais me expunha sem qualquer reação, levando vários
caldos e rasteiras na areia grossa (eu me encontrava numa praia de tombo, num dia de
do preciso termo de que Cauchick (2001) lança mão em seu trabalho sobre AT e Esquizo-
situação, vieram imediatamente a meu socorro, talvez só não mais assustados do que eu
horripilantes fenômenos subjetivos, os quais haviam tomado total conta do meu ser desde
aquela última noite com Raul. Para o tal, utilizei-me intensamente dos meus espaços de
o quanto aquela experiência havia sido disruptiva para mim, e que eu começava a entender
que o seu sofrimento era de uma ordem tal que em muito ultrapassava a questão do abuso
fundantes, as quais antecediam, em muitos anos, seu primeiro trago num cachimbo de
crack.
264
A autora o faz, por exemplo, retomando o conceito do corpo sem órgãos (CsO), que vai ao encontro da
questão da hospitalidade e da compenetração no sentido do esvaziamento de si frente ao outro,
respeitadas, naturalmente, as devidas ressalvas epistemológicas entre esquizo-análise e psicopatologia
fenômeno-estrutural.
343
destas vivências demoníacas em prol do paciente, que pude compreender mais
profundamente sua agonia e, então, reposicionar minha conduta interventiva. De tal forma
ainda que aos trancos e barrancos, uma virada diagnóstica e terapêutica no referido caso,
o qual acompanho no enquadre do AT até hoje, com importantes evoluções desde então.
Considerações finais
âmbito das manifestações mórbidas mais desafiadoras à época. Devemos, enquanto ats,
acompanhados que, ao se apresentarem num encontro inicial de AT, nos digam, antes de
265
Bem como questionar a própria estrutura de concepção psicopatológica que voltou a ganhar força
global a partir dos anos 1980, quando, cada vez mais, as (des)considerações dos fenômenos mórbidos
passam a ser descritas em termos eminentemente fenomênicos, sem qualquer preocupação com uma
compreensão fenomenológica e antropológica dos mesmos. A este respeito, Cf. Faizibaioff e Antúnez,
2014.
344
E, em se falando de esperança, compreendida por Minkowski (1933/1973) como
(Faizibaioff, Antúnez, & González, no prelo). Isto amplia nossa compreensão clínica nos
(Dartigues, 1973).
Hospitalidade no encontro com nossos acompanhados. Finalizo, assim, com uma frase de
John Rickman, citada por seu amigo Winnicott (1961/1989, p. 102): "Insanidade é não
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349
O HOMEM DO SUBSOLO ENCONTRA A CLÍNICA
Email: renan002@gmail.com
contemporâneo. Não se trata de leva-lo ao divã, mas colocá-lo ao lado do aparato teórico
feito por meio dos autores Gilberto Safra e Jimmy Cabral. O primeiro nos auxilia a
autor.
contemporâneo.
Abstract - This communication aims to investigate how the character in the novel Notes
clinic. It is not take him to the couch, but put it next to the theoretical apparatus of the
analyst as an auxiliary detector in the phenomena of modernity. This path will be made
350
by the authors Gilberto Safra and Jimmy Cabral. The first helps us to approach the
character of the clinic with his book The po-ethics in contemporary clinical practice,
while the second shows us the contributions of theological reflections that Dostoevsky
gives to modernity through his doctoral thesis Dostoevsky - Tragic Consciousness and
We verified so, how the Russian novelist is still current and how can have a linkage
Introdução
O livro foi escrito em 1864, período em que a Rússia vivia um debate intenso entre quais
os caminhos deveria tomar para progredir nas mudanças que estavam acontecendo, e é
divido em duas partes. Na primeira, a qual foi mais utilizada neste trabalho, o autor
polarização de posições na Rússia do século XIX era que uns acreditavam que a decisão
cotidiano russo. Outros, como Dostoiévski, acreditavam que a mudança devia ser
paulatina e, devido a um forte sentimento nacionalista, defendiam que não era necessária
a importação destes princípios. É neste contexto que nasce a obra. Antes de seu início, o
autor alerta que a personagem é fictícia, mas homens como ele poderão ser facilmente
tinha como característica propor modos de vida ideais para os seres humanos em sistemas
351
baseados na razão. Pensadores como Tchernichévski defendiam uma destas teorias, a qual
homem é um ser utilitarista e que busca cada vez mais o melhor para si. E assim, cada um
buscando o melhor para si, culminaria-se em uma sociedade melhor (Frank, 2013).
Concordavam que a Rússia estava num momento de mudança e que era necessário
valorizar este momento, mas discordavam em como implementá-las. Além disso, frisava
“não posso acreditar que o homem seja somente um tubo de ensaio” (Dostoiévski apud
Frank, 2013, p. 153), ou seja, ele não negava certo racionalismo, mas não podia deixar
que somente ele justificasse uma série de atitudes. E aí, surge o homem do subsolo. Uma
personagem que emerge das contradições humanas para gritar que não cederá aos cálculos
da razão. Não porque os negue, mas porque acredita que se o homem agir conforme uma
primeira parte, proclama que todas as páginas anteriores não passaram de divagações e
que talvez o melhor seja não fazer nada (Dostoiévski, 2000). Nesta dissonância, entre
aquilo que ele busca e aquilo que pode ser, e desiludido ao final com o mar de dúvidas
em que se mergulhou, a personagem exprime seu caráter trágico notado por Cabral
(2012).
Em seu estudo, Cabral (2012) mostra como a obra de Dostoiévski é marcada por
questões como Deus, o sofrimento e o mal. Para nenhum destes três tópicos há respostas
352
definitivas e a partir daí que se constitui o caráter trágico do pensamento de Dostoiévski.
como aquilo que define o homem é, justamente, sua fuga constante às tentativas de
coisificação por meio de definições. Quando ele pensa ser algo ou alguém o diz, no
instante seguinte, ele já está se questionando sobre aquilo que no segundo anterior ele
acreditou “ser”.
atuais na clínica psicológica e quem nos auxilia nesta tarefa é Safra (2004). Por meio de
sua obra A po-ética na clínica contemporânea verificaremos como uma clínica com estes
traços do pensamento de Dostoiévski pode ser pensada para nossos tempos. Evidenciando
ainda que mais de cem anos nos separem do período em questão, alguns temas mostram-
se relevantes ainda hoje. Como, por exemplo, a discussão sobre a finalidade da arte. Para
além do fato da arte ser um artificio de grande valia na clínica, discutir sobre sua
353
vida, como um morador da cidade que faz poemas para o campo e ao mudar-se para o
rejeita esta ideia de que a arte serve unicamente como compensador de frustrações
(...) a arte é para o homem como uma necessidade tanto quanto a de comer e de
do homem e sem ela é possível que o homem não tenha vontade de viver. O
homem tem sede de [beleza...] e é nisso talvez que reside o maior mistério da
Portanto, a arte seria um ato que toca os traços irracionais do homem, uma vez
que aquilo que sai de suas mãos não cabe em qualquer categorização ou noção
irracionalidade aqui presente não se apresenta como um “elogio a loucura”, mas, sinaliza
vive mais intensamente quando está em desarmonia com a realidade. Nestes casos, é onde
a necessidade de beleza se mostra mais intensamente, pois ela traz serenidade e harmonia
354
concordam que a arte surge de desarmonia com a realidade. Podemos chamar de uma
ausência ou privação de algo. Entretanto, a partir deste ponto, cada um segue por um
caminho diferente.
Tchernichévski acredita que uma satisfação plena do homem seja possível e arte
seria um escape enquanto não se conquista esta plenitude material possível ao homem na
melancolia a si mesmo; [...] não só deixava de dar valor ao que desfrutava, mas
satisfação completa dos desejos, se possível, atingiria ao homem como uma forma de
tédio que levaria a buscar os desejos mais levianos para livrar-se desta sensação. Nas
escravas como o fez Cleópatra266 (Dostoiévski, 2000). Estas ideias de Dostoiévski vão
culminar numa crítica a uma estética utilitarista que prescrevia a ideia de que a arte deve
266
Dize à ueàCle pat aà des ulpai-me este exemplo da história romana) gostava de cravar alfinetes de
ouro nos seios de suas cativas, deleitando-seà o àseusàg itosàeà o ulsões. à Dostoi ski,à ,àp.à
267
Pode osàhoje,àlo aliza àestaàposiç oà aàe p ess oà a teàe gajadaàso ial e te .
355
Apesar destas querelas conceituais, Dostoiévski, tal como Tchernichévski,
Kátkov, o qual escrevia para a revista de Dostoiévski chamada O Tempo e era um grande
Kátkov escreve que quem vê o homem como apenas “sais, ácidos e álcalis químicos, com
o mesmo sentido e força que esses compostos têm para nós num tubo de ensaio, não tem
direito de falar dos direitos do homem, de seu bem-estar e da melhoria de sua condição.”
apontando que sua perspectiva sobre o homem defende sua impossibilidade em resumi-
Posso assegurar-lhe que eu que escrevo estas linhas não acho nem acredito que
entanto, mesmo que eu tivesse essa convicção, por que isso me impediria de falar
O romancista descreve que não pode acreditar que o homem provenha somente de
um tubo de ensaio. Entretanto, aquele que assim encara a gênese do homem, não deve ser
privado de dizer sobre sua situação. Esta impossibilidade que Dostoiévski encontra ao
afirmar a origem do homem a partir de bases estritamente racionais pode estar relacionada
ao cristianismo ortodoxo dos camponeses com quem conviveu durante o período em que
356
esteve na prisão na Sibéria. Esta sua apologia ao cristianismo é melhor exemplificada
Sejam quais forem suas convicções, os homens devem permanecer homens, não
imutável neles, e além disso, o homem, pelo fato de ser homem, sentiria a
ser destruído. O homem teria então de odiar o que constitui a sua própria natureza.
Para Frank (2013), esse ódio contra sua própria natureza é descrito no homem do
subsolo, que se conflita por buscar anular de toda forma sua consciência moral.
Entretanto, o efeito parece ser inverso, quanto mais ele se esforça para anular qualquer
sentimento amigável ou de simpatia que ele tenha por alguém, mais ele sofre para manter
resposta a um livro lançado por Tchernichévski denominado Que Fazer?. Este último é
necessidades por meio da realização da utopia socialista. E era esta completa satisfação
prometida por um projeto utópico que Dostoiévski não aceitava e que irá desfiá-la e fazê-
a esta satisfação completa dos desejos humanos. Todo este contexto em que a obra foi
357
pensada culmina em um esgarçamento do homem moderno que se debate contra sua
própria condição, buscando absolutizar a razão para que ela o liberte de qualquer
emergir a dissonância entre o homem e a realidade, entre ele e sua própria condição,
Na obra, esta situação é expressa pelo “muro de pedra” que a personagem diversas
vezes se refere na parte I. Para ele: “O impossível quer dizer um muro de pedra? Mas que
naturais, a matemática.” (Dostoiévski, 2000, p. 24). Este muro que tranquiliza os homens
de ação, como citado no livro, é o conforto encontrado nos sistemas racionais e que
buscam apaziguar qualquer tipo de desconforto que possa advir com estas respostas.
descende do macaco e nada se pode fazer contra este fato. Assim como se convencerem
racionalmente de que uma gotícula de gordura valer mais do que cem mil seres humanos,
nada se pode fazer contra isto. É neste ritmo que o homem do subsolo argumenta mais
um parágrafo, até que afirma: “χté parece que semelhante muro de pedra é realmente um
tranquilizador e que de fato contém alguma palavra para o mundo, só porque constitui o
dois e dois são quatro. Oh, absurdo os absurdos” (Dostoiévski, 2000, p. 25). Neste trecho,
Dostoiévski mostra como este muro muitas vezes não é algo que nos traz tranquilidade e
que justamente a existência dele, por mais aceitável e racional que seja, pode muito nos
atormentar.
É este tormento que ele vê que não pode cessar, pois anulá-lo levaria a corrupção
moral já citada anteriormente. Também a religião pode ser capaz de levar a essa
tranquilidade “em demasia” e fazer-nos crer que se dois e dois são quatro, como o homem
do subsolo diz, então tudo está resolvido. Dentro desta crítica à harmonia, a proposta do
358
pensamento de Dostoiévski é não escamotear ou tentar negar esta angústia com artifícios,
sejam religiosos, ou racionais, mas fazer expurgar este desalinhamento que existe entre o
desejo humano e aquilo que se oferece a ele. Com isso, o intuito é extrair do cristianismo
Este cristianismo trágico esteve distante em sua acepção europeia. Como nota
experiência trágica.” (Cabral, 2012, p. 37). Para Camus, o modo de vida cristão endossado
humana e a ordem sagrada, resumida na passagem do monte Gólgota em: “meu Deus,
É este trecho “meu Deus, porque me abandonaste?” que indica o caminho para a
intepretação feita por Cabral (2012), pois, ela mostra que a ordem divina não está
humana que para Dostoiévski é impossível de ser vencida, e se caso for, levará a
solução. Assim como afirmado em uma carta a Appolon Maikov, Dostoiévski afirma que
a principal questão de sua vida foi a existência ou não de Deus (Dostoiévski apud Cabral,
2012). Ainda que ele mesmo sustente a existência após os anos de sua prisão na Sibéria
(Cabral, 2012)268.
268
Sabemos que Dostoiévski opta pela religião, mas deixa claro em suas anotações que foi após debater-
se contra os nós da razão e sua fé atravessar o crisol da dúvida. (Dostoiévski apud Frank, 2010) Ou seja,
359
Portanto, esta tentativa de anular o que nos é desconhecido e esta inquietação
ocorrido que se passa na modernidade: “Neste sentido, toda a síntese moderna apresenta-
(Cabral, 2012, p. 31) Esta síntese é justamente esta empreitada tanto feita pela religião
quanto pela razão em minar este viés trágico que pudesse aparecer na modernidade.
Esta absolutização da vida pela razão foi chamada por Lev Chestov, filósofo russo
apud Cabral, 2012, p. 37). É a este império, que pode também ser representado pela
medicina ou mesmo pela psicologia, que o homem do subsolo resiste. No início ele diz
ser supersticioso o suficiente para acreditar na medicina após a digressão: “Creio que
sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que
estou sofrendo.” (Dostoiévski, 2000, p.15). χpesar de dizer que acredita sofrer no fígado,
no instante seguinte, diz que não entende sobre sua doença e depois, não sabe o que está
sofrendo. Este é um ritmo presente muitas vezes nesta primeira parte do livro. A
personagem apresenta uma afirmação, em seguida, a questiona e depois acaba por negar
linguagem e da razão pode ser chamada de “subjetividade inquieta” (Chipraz apud Cabral,
2012).
Somemos aqui as contribuições de Bahktin, utilizadas por Cabral (2012), que frisa
não se trata de uma opção religiosa para apaziguamento dos desafios da racionalidade, mas uma fé que
se construiu em meio a estes desafios.
360
dissolução subjetiva dos personagens de Dostoiévski que Bahktin argumenta em sua obra
fato de que nenhum saber é capaz de dizer ao humano que ele, realmente, é. Pondé (2013)
Como bem salientado por ele, esta característica percebida incialmente por
Bahktin tem sua origem na teologia ortodoxa. Pondé (2013) afirma que para Dostoiévski
o ser humano aspira uma condição absoluta, mas mantém-se apenas na condição
relativista. Ou seja, aspira um saber absoluto, mas depara-se o tempo inteiro com a dúvida
e com seus questionamentos sobre sua própria condição. Esta ansiedade em saber quem
se é choca-se com a liberdade de não se sentir contemplado por as definições que a ele
coisificação, ele irrompe com sua liberdade a cada vez que não se satisfaz com uma
definição.
Quem ilustra muito bem esta crítica a razão aliada à defesa da liberdade radical
do ser humano é o crítico Joseph Frank. Vejamos como ele contribui diretamente para
Está claro que é muito atraente viver em bases puramente racionais, mesmo que
não seja de fraternidade, quer dizer é bom quando garantem a você tudo, exigindo
fato apenas uma partícula, uma insignificante partícula. Mas não, o homem não
quer viver segundo estes cálculos, dói-lhe ceder mesmo esta partícula.
361
Neste trecho, a crítica à racionalidade apresenta-se acompanhado da defesa da
liberdade humana que, para Frank (2013), é um dos motes principais de Memórias do
Subsolo. Liberdade esta que luta constantemente para não ser submetida a nenhuma
ordem estrita, seja ela a prisão, o trabalho, ou a razão. Se fosse necessário encontrar um
(ainda que isto seria irmos contra nossos próprios argumentos), seria de que o homem é
aquele que luta até o último segundo por um grão de liberdade, pela possibilidade mínima
de escapar a qualquer momento de uma ordem exterior que busque sistematizar seus atos.
O homem ainda hoje se debate com a absolutização da razão, talvez ainda mais
intensamente nos tempos atuais. Com o avanço do racionalismo, ele se debate hoje com
trechos deste trabalho. Vejamos como eles se unem a alguns fragmentos clínicos e
Dostoiévski em seu debate com Tchernichévski mostra que apesar deste tomar a
posição de que o homem tem sua origem apenas por bases estritamente racionais, isso
realizados pela psiquiatria. Alguns psicólogos tomam a posição de Kátkov e optam por
perspectiva defendida por Dostoiévski, a psicopatologia deve ter o direito de opinar sobre
como buscar melhorias para o ser humano, mas, não poderia estagnar nesta posição, já
que o homem não pode ser somente isso. E, neste momento, a clínica se abre para este
362
homem que não cabe em um tubo de ensaio. Notamos afirmação semelhante no trecho
de Memórias do Subsolo:
Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão
querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com
É sobre este coçar-se que a clínica se debruça, sobre este ato que às vezes caminha
para distante da razão e atravessa um sem fim de contradições. Esta coceira expressada
na fala de um paciente que diz “devia seguir mais a razão que o coração, né?”. Ela constata
que a vida é formada pela razão e pelo coração, mas que titubeia entre essas duas posições.
Podemos pensar aqui “o coração” como esse coçar-se já que ela o opõe ao ato racional,
outros”? São não só diagnósticos, mas também adjetivos sobre quem acreditam ser.
Encontram o “muro” citado pelo homem do subsolo em todas as direções que tentam
apontado por Safra (2004). Esta imersão em um mundo de definições que não encontra
lugar para este processo de rompimento com a coisificação. Não será uma possibilidade
de ação da clínica inquietá-los diante deste muro? Como um lugar que esta coisificação
se dissolva?
363
A discussão sobre a finalidade da arte contribui para pensarmos a utopia da
felicidade atual. Esta que é expressada em frases no consultório como “quero ter paz
interior” e outras declarações que revelam uma busca por um cessar de conflitos.
realidade para que assim possa viver mais intensamente. Ora, a clínica nos propõe este
desafio de acolher este pedido de “paz interior”, mas, é seu objetivo também uma ausência
de conflitos?
Já na citação de Dostoiévski em que ele descreve que um homem que não ama,
está lutando contra sua própria natureza coaduna com a perspectiva de Safra (2004). Ele
afirma que uma pessoa pode estar em um estado de sofrimento tamanho que não se
encontra capaz de “viver”. Estas pessoas sofreram tanto, que vivem em um estado de
congelamento, refreando constantemente qualquer sentimento amistoso que possa ter, por
Contribui para essa reflexão sobre o amor, a intepretação de Joseph Frank (2013)
sobre Memórias do Subsolo. Ele nos traz a interpretação do homem do subsolo por meio
fenômeno atual das selfies sem maquiagem segue o mesmo tom, em um fingimento que
teórico poderia ter, ou diante de qualquer teoria que poderia aplacar seu sofrimento.
Deixam-se de lado os dizeres dos psicólogos para se construir algo novo. Em um relato
de paciente, ela diversas vezes diz que uma psicóloga havia dito a ela que ela não lidava
bem com perdas. A paciente volta nesta característica que acredita defini-la, um sem
364
número de vezes. Ou seja, cristaliza-se na posição de saber este lugar de que uma razão
moderna, um psicólogo ou médico, sabe me dizer quem eu sou. Mas, ela “se coça” diante
disso, ou seja, inúmeras vezes volta a esta afirmação e busco provocar esta retomada.
A isso se refere também Safra (2004) quando fala do idioma pessoal do paciente.
Não se pode provocar a coceira na razão sem antes conhecer como este muro foi
construído. Adentrar aos poucos no universo singular de uma pessoa, é ir aprendendo seu
idioma, como ela se define, seus trejeitos ao falar, um termo diferente que pode usar para
definir algo usual, adjetivos e apelidos que se vale para falar de alguém.
perguntam sobre o sentido de suas vidas, mas querem falar de seus sofrimentos. Tal qual
o homem do subsolo, o que move a vida não é o seu sentido, mas sim, o sofrimento de
letrados em seus livros e é o que o homem do subsolo não faz em seu discurso. A obra
não versa sobre a vida e seu sentido, mas sobre um homem que sofre na relação com
aqueles que o circundam. Como salienta Safra (2004), a clínica se dá sobre os eventos do
cotidiano, sobre a narração dos fatos que acometem aqueles que decidem ir a um
consultório.
Por fim, defender uma clínica para além deste humano que cabe em um tubo de
ensaio é afirmar sua liberdade e criatividade. Ou seja, “a pessoa humana seria, a seu ver,
não uma substância ou um conjunto de traços, mas um ato, um ato criativo!” (ψerdiaev
apud Safra, 2004, p. 59). Esta perspectiva de liberdade radical está aliada ao que o autor
defende sobre o ser humano como “inédito, como misterioso, como ser criativo” (Safra,
2004, p. 58). Ora, não é propriamente a liberdade a grande aliada da criatividade? Trata-
se do fato de que uma é imensurável justamente pela existência da outra. Safra (2004)
365
salienta que a liberdade, juntamente com a necessidade são as duas contrapartidas para
Conclusão
Nossas questões atuais, não são tão novas assim. Os temas são os mesmos com
escrita de Memórias do Subsolo, pode ser facilmente transferido para nosso tempo com
Perguntas como essas são feitas o tempo inteiro na obra de Dostoiévski e é por
meio delas que ele traça sua teologia trágica. Deixar-se de perguntar sobre elas pode ser
um grande perigo e uma estagnação que a modernidade tentou, mas até agora, não
tentativa de dar conta da frustração moderna de “o médico disse que tenho isso, mas...”,
experiência clínica abre-se como uma oportunidade para falar sobre isso. Resta-nos este
papel de provocadores, de alguém que desconfia não só dos diagnósticos, mas também
Bibliografia
366
de Doutorado, Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Frank. J. (2010) Dostoevsky: a writer in his time. Princeton: Princeton University Press.
Editora Leya.
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A LITERATURA NA CLÍNICA FENOMENOLÓGICA: PESSOA, VIVÊNCIAS
E LEITURA
E-mail: jean.marlos@ufma.br
Afinal, nossa vida é, para nós, transparente, mas o que é transparente é o mais difícil
Resumo: Este artigo tem como objetivo descrever e apresentar a vivência de associação
prática do psicólogo atuante tanto na clínica como na área social permite ver e
atendidas têm relação direta com o mundo-da-vida, assim como com as interações, as
deve atuar de modo a (des)velar os sentidos encobertos nas vivências das pessoas
y Gasset são trazidos, brevemente, ao diálogo neste trabalho, que tem como a intenção de
seja, como “recurso” facilitador do acesso as vivências das pessoas atendidas. Tendo
como base a atitude fenomenológica são apresentados breves exemplos de três pessoas
368
atendidas na clínica que fizeram a leitura dos livros A metamorfose de Franz Kafka e
Imanuel Kant. Por fim, apresento os “resultados” que ratificam a viabilidade que a
literatura oferece ao psicólogo como uma possibilidade de estender a terapia para além
Abstract: This article aims to describe and present the experience of association between
the practice of both clinical psychologist and the social area allows you to see and
understand very clearly how the phenomenon presented by the people attending are
directly related to the lifeworld, as well as the interactions, fantasies and what mobilized
or paralyzed. In the clinical space, the psychologist must act in order to unveil the hidden
detach world and consciousness, nor the place of intersubjectivity. Husserl, Sartre and
Ortega y Gasset are brought into the dialogue in this work, which aims to exemplify and
freedom, and other literature. The literature is presented as an extended clinic, that is, as
"resource" facilitator of the acess of experiences of the people assisted. Based on the
phenomenological attitude are presented brief examples of three people attending the
clinic who read the books A metamorfose de Franz Kafka e Solidão and Liberdade de
Jadir Machado Lessa and the trial O que é o Esclarecimento de Imanuel Kant. Finally, I
369
present the "results" that confirm the viability that literature offers the psychologist as a
possibility to extend the therapy beyond the walls of the therapeutic space.
Introdução
dos pontos de encontro percebidos são tematizadas brevemente sem a intenção de fechar
fenomenologia e clínica.
Edmund Husserl e as filosofias de Jean-Paul Sartre e José Ortega y Gasset, mas sim
prática clínica com pessoas de baixa renda em uma comunidade da periferia de São Luís.
permitir a ampliação da consciência via acesso às vivências por elas recordadas. Tanto
269
Ver Sartre (2003)
370
para Wilhelm Dilthey (1984/2008) quanto para Edmund Husserl o ato de compreender o
sentido e o significado das vivências para aquele que as vivencia é o que permite acessar
o mundo vivido. Nesse período, por meio dos relatos das vivencias recordadas e
anos, estas pessoas em questão optaram por mentir para si mesmas (agindo de má-fé),
suas vivências e, a partir disso, exerça a reflexão sobre seu mundo vivido. Tomar
las em sua mostração imediata é uma das características do modo como o psicólogo que
atua com base nos fundamentos husserlianos e/ou sartreanos atua. Consciência é sempre
projeta para si mesma. Como nos lembra à máxima husserliana “Toda consciência é
consciência de algo”, contudo ter consciência de algo não é suficiente, é preciso que esse
possibilita a antes de qualquer outra atitude, a reflexão com atenção sobre o que é objeto
contato com o sentido que deram a estas vivências, principalmente quando as vivências
são encobertas pela ingenuidade e com o auxílio do terapeuta são (des) cobertas.
tentem explicar os modos de ser e estar no mundo, para adotar a atitude de compreensão
371
fenomenológica. Assim como afirmou Dilthey (1894/2008): “Explicamos a natureza,
compreensiva, ponto que considero ser comum entre o olhar fenomenológico e o olhar
diltheyano.
Para promover esta reflexão o artigo está estruturado da seguinte forma: após
A atuação clínica não foi sua preocupação, pois esta não era sua formação, todavia o seu
lógico, deixaram inúmeras contribuições para que hoje os psicólogos das abordagens
terapia e centrada na pessoa possam ampliar o alcance de suas intervenções, por fim
pensar a clínica como método e não apenas como um espaço. Apesar de conhecer o que
ocorria no espaço clínico as contribuições do mestre são importantes para a Ciência e para
372
Sua crítica ao psicologismo é imprescindível para aqueles que pretendem
foi seguida por seus predecessores tais como: Martin Heidegger, Maurice Mearleau-
Ponty e Jean- Paul Sartre, principalmente, bem como por outros grandes nomes da
1900/2014; 1911/1965)
(2013) apresenta o manifesto escrito pelos filósofos alemães em 1913 contra a ocupação
trouxe como mais relevante o caráter pragmático e prático, bem característicos do método
editorial.
b) o método fenomenológico;
objeto; e,
373
É no próprio Husserl (1907/2008, p. 44) que está a definição: “Fenomenologia´ -
designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmpo tempo e
porque exige uma mudança de postura diante do modo como nos dirigimos aos mundos
O que se chama de clínica merece ser (des) coberto. De acordo com Agras
(1986) o uso do termo clínica deriva da psicopatologia médica e está diretamente ligado
aos cuidados que o médico tinha com o doente que estava acamado, logo a psicologia
e terapia de quem está em situação de doença, precisamos usar o termo com muito
cuidado, pois conforme lembra a autora a própria psicanálise teve dominância durante
anos no discurso da patologização do psíquico e isso é uma herança não agradável que
associa quem busca apoio do psicólogo estar doente, estar acometido de alguma
psicopatologia.
Todas essas ideias corroboram para que uma nomenclatura não seja superior
2006).
374
Nesta discussão foram escolhidas as contribuições de Holanda (1997), Pereira
Junior (2011), Aviz (2013), Gomes e de Castro (2010), Franco (2012) e Rodrigues (2008)
fenomenológica.
concreto que, na cama ou no cadeirão do consultório, põe a questão do seu ser. Não uma
questionamento sobre o si mesmo. (...) Fenomenologia clínica não deve, pois ser
premissas.
vista e contribuições que, podem, se necessário for, ser utilizado no trabalho do psicólogo
em atividade clínica.
Psicólogo passa a ser, diante dos fenômenos apresentados pela pessoa atendida, o auxilio
para que esta possa acessar de forma mais clara e objetiva os fenômenos vivenciados, mas
que por algum motivo não consegue perceber as intenções e pré-conceitos que tem em
relação a eles mesmos. É muito comum nos casos que serão aqui discutidos que o
que vê de modo racional. Não sabe ele muitas vezes que usa da razão de modo irracional,
270
A perspectiva clínica de base husserliana é resultado de reflexões nas obras de Husserl e em seus
comentadores, assim como também com as reflexões e contribuições de Gomes e de Castro (2010),
Moreira (2010), Pereira Junior (2011), Aviz (2013) sobre a fenomenologia na clínica.
375
ou seja, cria intencionalmente argumentos para não entrar em contato puro com os
atendido entre em contato com as questões que ele mesmo apresenta, mais ainda não
consegue, pode utilizar a literatura como um “recurso” para facilitar o encontro consigo
mesmo.
Nesse sentido o Psicólogo não abre mão do vínculo, nem da emoção que está
psicologia então se opta pelo diálogo com as contribuições de Husserl e Sartre, ele tem
frequentemente aparecem nos relatos das pessoas atendidas, tais como: o medo, a
é vergonha de si diante do outro; essas duas estruturas são inseparáveis. Mas, ao mesmo
tempo necessita do outro para captar plenamente todas as estruturas do meu ser; o Para-
si remete ao Para-outro”.
encontro da consciência com o mundo mediada pelo outro. Reconheço que sou como o
Se o homem em situação de terapia ainda não tem clareza das suas próprias
intenções ele nega a si mesmo, nega a constituição da sua história de vida, da trajetória
que o fez chegar até onde ele se encontra no presente, e foca sua justificativa no objeto
376
que entende ser a “causa” da sua angústia. Este é o uso da racionalidade para tentar
coisas;
acima, não será colocado acento sobre elas, mas sim nos pontos de convergência. Destaco
Por literatura utilizada em situação clínica designo todo livro ou parte de uma
obra, que não seja livro de “autoajuda”, capaz de promover uma reflexão à pessoa
atendida. E para poder sugerir a leitura o psicólogo deve ter o conhecimento da obra, dos
recursos cognitivos e afetivos da pessoa atendida, para que diante desta avaliação
continuar a sugestão. É bom lembrar que o caráter não é de diretividade como pode
377
parecer, mas de sugestão. Caso a pessoa atendida aceita ela deverá ler a obra e se assim
desejar relatar como foi o contato com a obra e o que ela lhe possibilitou. É preciso desde
“recurso” auxiliar da intervenção clínica. Este uso dependerá daquilo que a pessoa em
para entrar em contato com o tipo de leitura sugerida. O Psicólogo precisa conhecer
previamente o autor e o enredo do livro que possa vir a sugerir, assim como as
“características” da pessoa atendida para avaliar com muita clareza se ela tem condições
de se apropriar da leitura no momento sugerido. Caso aceite, ela recebe cópia do material
ou tem a indicação para aquisição e posterior leitura. Em geral são obras de domínio
textos fossem lidos, o atendido poderia ter o contato com um texto que tivesse um enredo
si mesmas um conteúdo existencial e levam à reflexão quase que imediata daquele que a
lê.
Com 3 (três) pessoas atendidas foram sugeridas a leitura das seguintes obras:
Chamarei aqui por questões de sigilo as pessoas atendidas por pa1, pa2 e pa3. São os
de suas características. Tratarei então de situações por ela vivenciadas e, a partir disso,
378
PA1 Homem Leu parcialmente Solidão e Liberdade (parou por 3
Kant
atendida 3
disponível gratuitamente em sites de domínio público. E porquê esta leitura foi sugerida?
Os casos atendidos são semelhantes quanto ao modo como Pa1, Pa2 e Pa3 conduziam sua
existência e suas escolhas. Eles se referiam a si mesmos e evidenciavam sua a estima por
É importante destacar que duas das três pessoas, afirmam sem “pestanejar”
logo no encontro subseqüente a indicação da leitura, a seguinte frase: “_ Esse livro foi
escrito para mim?” E, a partir daí começavam a fazer referência ao modo como elas
mesmas estavam encobrindo suas responsabilidades e fazendo uso da sua relação consigo
mesmo e com o outro, ou seja, seu modo de ser e estar no mundo. Coube ao psicólogo
379
instigar a reflexão e o retorno ao mundo vivido, como forma de compreender o significado
Como acessar o mundo vivido? Como fazer com que o mundo da vida não
seja apenas tematizado, mas seja percebido pelo atendido como o centro onde suas
homem, não sendo possível desligá-lo de sua relação coma própria vida. O mundo para a
fenomenologia não pode ser separado, pois ele é movimento, é fluxo de vividos estando
psicologia clínica e confirma ser ela uma alternativa para compreender as formas que o
investigação do vivido.
que tomou ao longo de anos. Ter consciência da sua circunstância de certo modo causa
possibilita encontro do homem com ele mesmo, num primeiro momento pela
380
identificação, num segundo pela reflexão sobre a aproximação da estória escrita com a
de nada serve se não tiver conexão com a vida mais precisamente com o
sentido que cada um atribui a sua vida, o que já é um ato de liberdade (p. 89).
liberdade e entrar em contato com a liberdade é viver a própria vida em sua mais pura
manifestação. Disso o atendido não pode se desviar, pois a vida é sua, quer queira ou não.
com seu modo de ser e existir e, nesse sentido o psicólogo clínico vai se “utilizar” do
aparecimento dela como “estratégia” para promover o acesso às vivências. Nesse sentido,
Feijoo (2008) argumenta: “Para atuar clinicamente, o psicólogo deve ater-se ao estudo da
condição própria do existir humano: a angústia, através da qual o homem pode emergir
Considerações finais
mesma o conteúdo necessário para a sua compreensão e análise, por isso em clínica
fenomenológica não se faz uso de qualquer que seja o a priori ou de teorias, elas ficam
temporariamente suspensas para que a análise transcorra apenas com a aquilo que a
381
Utilizar literatura na situação de terapia não é algo comum, o relato deste
trabalho tem como objetivo compartilhar a síntese de algumas situações percebidas, assim
suas vivências de leitura. As três pessoas têm em comum uma certa identificação com as
Referências
382
PEREIRA, D. Q (2008). Sartre Fenomenólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia,
<http://www.revispsi.uerj.br/v8n2/artigos/pdf/v8n2a12.pdf>.
SARTRE, J-P (2006). Esboço para uma teoria das emoções. São Paulo: LP&M.
RJ: Vozes.
http://www.polbr.med.br/ano09/pcl0809.php.
383
LINGUAGEM E FENOMENOLOGIA: ESTUDOS SOBRE A PALAVRA NO
ACONTECER DA PSICOTERAPIA
sentido originário, como caminho possível para a aparição do que está oculto, ou seja, um
processo de se revelar a si mesmo para sua compreensão. Nesse modo não se opera um
caminho definitivo a ser seguido como na técnica, nem tampouco um objetivo a ser
conquistado. Baseia-se antes num método e ética. Propomos pôr em relevo a palavra
– e a conversa - para a aproximação de cada si mesmo com seu próprio modo de ser, e de
sua história. Nesse trabalho será trazido principalmente as contribuições de Paul Ricoeur
Linguagem; Metáfora.
its original meaning, as a possible way for the emergence of what is hidden, that is a
271
Bolsista CAPES.
384
process of revealing itself to its own understanding. In this mode, one does not operate a
- and conversation - for approaching each itself with its own way of being, and with their
history. This work has mainly brought the contributions of Paul Ricoeur for the
Language; Metaphor.
385
Introdução
psicoterapia272. A experiência clínica nos mostra, sob uma ótica privilegiada, um leque
exclusivamente por cada pessoa. É de comum acordo entre os psicólogos que cada pessoa
possa investir num processo psicoterápico ela mesma, e viver essa experiência da forma
autoral e única, fazendo do seu processo tão singular quanto si mesma, quanto suas
que explicam a dinâmica metapsicológica. Talvez esse trabalho nos fosse facilitado se
inconsciente – um método científico com heranças das ciências empíricas, e que sem
de um exercício fenomenológico.
uma grande complicação se o nosso intuito fosse tentar provar sua eficácia, ou chegar a
fenomenologia não é, afinal, ela surge justamente como uma inquietação, como um
272
Ao falarmos de psicoterapia ou processo psicoterápico estaremos nos referindo especificamente ao
modelo tradicional inaugurado por Freud (e não à teoria psicanalítica), sendo um processo caracterizado
pela fala e a conversa, embora tenhamos conhecimento de outras terapias que se utilizam de diferentes
recursos centrais tais como o corpo, ou a música etc.
386
questionamento da dissolução da filosofia no modo científico de pensar, como crítica à
conhecimento tudo aquilo que não possa estar subordinado à estrita noção de verdade
estrutura encerrada e rígida, de uma perspectiva que o captura num ‘modo de ser
universal’, como ocorre numa teoria definitiva donde se observam processos de causa e
efeito. Ao contrário, a fenomenologia, conforme Ales Bello (2004), considera que não só
não podemos nos ater à premissa de verdade como devemos questioná-la. Assim, invoca-
metafísica - pois isso incorreria em cometer aquilo que se critica - mas de mostrar o quão
como um meio para atingir um fim, e assim considerá-la como algo definitivo,
estabelece com o mundo, ele, cientista, acaba por esquecer-se da essência das coisas
esperados”, uma vez que se defende que cada ser não é se não uma possibilidade na sua
387
abertura e imprevisibilidade. Não se pode controlar nem tampouco prever o que cada
pessoa se tornará. Com isso queremos dizer que não há o que defina o ser do ser humano,
existência. Ou seja, o ser-aí ek-siste, que significa estar originalmente aberto e lançado
para fora de si, num mundo conjuntural situado numa época e numa cultura vigente.
O procedimento da psicoterapia
fenomenológica?
responder a essa pergunta tendo em vista um objetivo claro e definido, algo que pudesse
trazer um referencial específico como meta a ser alcançada. Dessa forma, privilegiaria-se
este modelo atende aos procedimentos da técnica, necessário para algumas ciências
específicas que se efetuam na rigidez de procedimentos que assegurem o estado das coisas
controlado e bem definidos. É o campo das ciências que atuam, por exemplo, na
segurança das edificações de construções, e proteger o bem estar social enquanto espaço
físico.
388
O conceito da técnica é trazida pela autora em seu artigo A psicologia clínica:
construções civis trabalham com concreto, areia, pedra, a psicologia se dedica a questões
ocasionando a sobreposição do olhar às coisas ao olhar o humano. É sobre isso que Feijoo
se ocupa em seu texto ao expor que a técnica tem um significado característico dos modos
Safra (2005, p. 124) aponta que uma grave dificuldade do homem contemporâneo
é não abrir espaço para o mistério, para o incerto (que é a própria condição ontológica do
homem), sendo o psicólogo também capturado e obturado por esta tendência no momento
algum conhecimento sobre a situação humana, vemos muitas vezes que a teoria do
analista lhe rouba a possibilidade de viver o mistério com o seu paciente. Isto é trágico!”.
389
(…) implica que o homem nasce de um gesto, de uma ação que acontece na
instabilidade, entre o ser e o não-ser. O ser humano jamais está encerrado no mundo,
por isso não pode ser nomeado, nem capturado por nenhum esquema. Viver é
caminhar para o mais além, em que cada passo é uma ação que dá ou não
“Esta é a época em que tudo pode ser produzido, em que tudo é factível, de maneira cada
vez melhor e mais rápida” (Pompéia & Sapienza, 2011, p. 124). É a técnica que permite
técnica é como se tudo pudesse ser dominado e reproduzido. Sua eficiência é medida a
inesperados. “O perigo está na perda da liberdade frente aos dispositivos técnicos, criação
do próprio homem, cuja essência pode se sobrepor à essência do homem, e deste modo,
tornar esse homem escravo de sua própria criatura.” (Feijoo, 2004, p. 90). Vê-se aí o
da técnica. Ou como diria Galimerti (citado por Safra, 2006, p. 32) “assistimos uma
reviravolta pela qual o sujeito da história não é mais o homem, e sim a técnica que,
390
ainda que, através de seus cálculos, pode prever e controlar tudo a sua volta. Quando
esta forma de pensar predomina, dão-se as objeções com relação ao meditar, que
que, além disso, não tem nenhuma utilidade de caráter prático. Acredita o homem
da ciência que, por se tratar de uma meditação, este modo de pensar faz-se pequeno
onde se exercia, não sem esforços, o pensar dedicado sobre algo que podia ser trazido à
luz depois de empenhar-se na reflexão sobre a coisa. Segundo Pompéia (2011) a téchne é
o procedimento que permite que “alguma coisa que ainda não era passava a ser.” A isso
aquilo que está encoberto, ao seu modo, respeitando seus limites e possibilidades. Ela
O acontecer da psicoterapia
terapêutico, de inicio e na maioria das vezes relatam estar vivendo momentos de muita
angústia. Muitas delas chegam com uma problemática existencial que gera sofrimento, e
que tem a necessidade de ser resolvida. Mas há também aquelas que chegam à terapia
391
sem nenhuma queixa específica, senão com uma sofrível sensação de estranheza de si
mesmas e de suas vidas. Ou ainda, as que não conseguem dizer exatamente o que está
lhes passando porque elas mesmas não entendem o próprio incômodo. Algumas pessoas
dizem estar observando suas vidas lhes escapando das mãos, como se estivessem
percorrendo um caminho desconhecido e alheio, sem mais saber o porquê e nem se esse
trilhar no qual estão (ainda) faz algum sentido. Como se precisassem resgatar o
significado da própria experiência e os elos de sentido que lhe trouxeram até ali.
tempo. Sabemos que os seus problemas estão ancorados em tantos outros aspectos ainda
não esclarecidos, acumulados durante anos. Nesse caso, o terapeuta auxilia o processo
oferecendo o
aproximarão da história vivida por ele, dos seus modos de ser consigo mesmo e
com os outros, dos seus planos de futuro, do que tem constituído a sua vida,
incluindo aí aquilo pelo que ele procurou a terapia. (Pompéia & Sapienza, 2011, p.
131)
modo da téchne, “permitindo que o ser venha à presença tal como se constitui no seu
deixando apreender por nenhum sistema e teoria, vai atuar pela téchne, deixando
392
caminho para tal homem: é este que, no seu desvelar, vai deixando-se vir à presença,
cliente uma parceria para se meditar sobre a verdade de sua história. Essa disposição da
modo de ser, e de como se dão suas relações com os outros e com o mundo. Não importa
os resultados a que se chegarão, uma vez que a aposta está no processo de desvelamento
O que permite que isso aconteça, defende Pompéia (2011, p. 138) “é o fato de, como
pode morar.” Ele refere à palavra como o caminho possível para o aparecer do homem, e
A palavra e a linguagem
coisas que lhe aconteceram durante a semana, conta alguma situação complicada e
desagradável que teve no trabalho, descreve sonhos que o inquietaram de alguma maneira
sem saber seu significado, retoma a reflexão de algum ponto específico das conversas de
393
A partir da minha própria experiência na psicoterapia como paciente pude273
queria comunicar. Não sabia se o repertório que tinha era suficiente para me fazer
entender naquilo que é da ordem do incompreensível para nós mesmos. Não raro, parecia-
me faltar palavras para me sentir representada em minha própria fala, em referência a uma
também à escrita. Pude observar, ao longo da minha experiência como psicóloga clínica
conseguir localizar aonde exatamente ela diz aquilo que nos diz. Com maestria
serem absorvidas pelos poros, ou por um processo de osmose, como se algumas coisas só
pudesse ser ditas por metáforas. Tal era o impacto de sua leitura que a compreensão de
seus livros me parecia ser vivida no corpo. Não à toa, Clarice Lispector dedicou boa parte
pensamento àquilo que se intencionava revelar. A linguagem era vista como algo exterior,
que era utilizada como mera expressão e às vezes até “entendida como barreira à
manifestação das ideias.” (Carmo, 2004, p. 95). Nesse sentido, as palavras eram signos
que designavam alguma outra coisa, como se um valor ou significado lhes fosse atribuído.
Então, seria como dizer que as palavras eram pensadas como recurso ou ferramenta para
273
A primeira autora do trabalho
394
exprimir uma experiência interna, supondo-se assim, uma distinção marcada entre
língua, mesmo essa organização estrutural não passando pela reflexão da consciência274.
O filósofo Paul Ricoeur se ocupou dessas questões, e fez um percurso que passa
faz uma descrição compreensiva da linguagem tanto em termos estruturais (no resgate às
ideia dos linguistas) quando do seu significado. A sua leitura de Saussure é uma retomada
conceitual dessa ideia primeira na proposta de superar tal sistema binário (objetivo-
subjetivo). O ponto de início desta obra é marcar a distinção trazida por Saussure entre a
linguagem como langue e como parole. Segundo Ricoeur (2006, p. 14) “se o discurso
respeito à língua enquanto estrutura e sistema e não enquanto usada. A nossa tarefa será,
274
Nesta pesquisa compreendemos consciência diferentemente da psicanálise. Conforme Ales Bello
,àpà à aà o s i iaà oà um lugar físico, nem um lugar específico, nem é de caráter espiritual ou
psíquico. É como um ponto de convergência das operações humanas, que nos permite dizer o que
esta osà dize doà ouà faze à oà ueà faze osà o oà se esà hu a os .à Pa aà aisà detalhesà e à Introdução à
Fenomenologia (2006): Bauru, EDUSC.
395
Ricoeur vai oferecer uma novo modo de pensar a diferença dicotômica da
linguagem, trazida por Saussure. O autor propõe abandonar a oposição daquilo que seria
objeto de uma única ciência, “a descrição dos sistemas sincrônicos da linguagem”. Ela é
por alguém” e por isso localizada no contexto e no tempo (tanto no momento da própria
Por outro lado, "o código é anônimo e não intentado”, colocando-se como teoria geral dos
signos, a semiótica. "Em tais sistemas finitos” diz ele, “todas as relações são imanentes
leitura fenomenológica essa última frase parece nos tão estranha quanto a suposta
Nosso esforço será no sentido de não fixarmos nessa estrutura objetiva, pois, assim
ser, pois é através dela que se poderá elucidar uma semântica do conceito de
momento da compreensão de si, por isso, ele defende que o elemento comum a toda
396
sentido, que tem como função, de uma maneira geral, mostrar escondendo. (Paula,
2012, p. 243).
também o evento do discurso, contribuição essa que nos ajudará na investigação deste
propriamente dito, há uma lacuna entre o que foi dito, e o que o leitor lê. Nos texto e em
outros tipos de compreensão indireta, que tem o caráter do evento impessoal ou indireto
do autor, nesse caso, fica aquém do alcance. Na conversa entre duas pessoas o discurso
84). Nesse cenário entre locutor e ouvinte, diz ele que o que é dito é um tipo "imediato de
expressão”, onde se localiza o sujeito que fala, e o sujeito que escuta, sendo ambos
do setting terapêutico que, como nas palavras de Ricoeur, são veiculadas experiências de
outras mentes” (diferente dos texto e outros tipos de compreensão indireta, que tem o
397
Conforme manifestamos, o principal elemento da contribuição de Ricoeur para este
principais de sua obra citada que nos auxiliará no entendimento da palavra como
metáfora como pedra angular para a compreensão daquilo que se fala como discurso
de termos usuais, sendo imprescindível que ela seja compreendida numa e por uma
interpretação literal que se autodestrói numa contradição significante” (p. 62). Sua
particulares. Para que se mantenha esse status, é necessário preserva-la como metáfora
viva (Ricoeur, 1976, p. 64), livre dos vícios de linguagem cujos significados tangenciaram
275
Segundo Heidegger, o falatório é um dos modos do ser-aí cair na impropriedade, ou seja, um modo
pelo qual o ser foge de si mes o,àeàadotaàaàfo aàdosàout os,àouàoàdoà todoà u do àpa aà uida àdeàsià
es o.à Éà oà dize à otidia oà ueà todoà u do à diz,à à e aliza à aà i pessoalidadeà da uiloà ueà seà est à
a ostu ado .àEssaàideiaà à e àes iuçadaàe àsuaào aàSer e Tempo.
398
Sobre isso, ilustramos com uma passagem de Safra (2006, p. 32) que nos diz algo
A fala do ser humano tanto pode ser tamponamento como pode ser acolhimento
daquilo que se revela. A fala pode estar a serviço de uma tentativa de construir um
humano, ou ela pode ser acolhimento do que existe, do que se revela. Nesse sentido,
Ou seja, o autor refere que a fala tanto pode se dar enquanto voz própria a convocar
a sonoridade que reverbera de si, quanto a fala da palavra pode ser o retirar-se ou aquilo
denominação não esgota o poder e nem o sentido da palavra. A metáfora viva é uma
expressão clara de tornar os sentidos das palavras em invenção própria para o significado
Sobre as metáforas, Ricoeur traz duas conclusões finais: a primeira é que “as
metáforas genuínas não se podem traduzir. (…). χs metáforas de tensão não são
traduzíveis, porque criam o seu sentido (…) e que sua paráfrase é infinita, incapaz de
exaurir o sentido inovador.”. (Ricoeur, 1976, p. 64). χ segunda conclusão do autor é que
uma metáfora não é um ornamento no discurso pois está além do seu valor emotivo, ela
Sobre os símbolos
399
Ricoeur descreve o símbolo como "elemento polissêmico, jamais preso a uma única
significação que nos “dá a pensar”, ou seja, o símbolo apresenta um sentido direto,
primário que nos encaminha para um sentido doravante, onde só é possível chegar no
p. 67):
literal e outra simbólica, mas antes um único movimento que o traslada de um nível
significação literal.
psicanálise), isso seria o pobre símbolo. Já para Florensky, o símbolo é evento poético
outro. O símbolo é sempre a membrana com a dimensão infinita.” (G. Safra, comunicação
pessoal, outubro, 2014)277. Da mesma forma Ricoeur (1976, p. 68) nos diz que "o símbolo
não é passível de ser tratado pela linguagem conceptual por existir muito mais num
276
Relato pessoal do Seminário Internacional e Disciplina de pós-graduação PSC5902 "A Psicopatologia
Fenômeno-Estrutural: Aproximação Teórica, Clínica, Psicopatológica e Terapêutica", oferecida pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 25 e 26 de setembro de 2014.
277 Relato pessoal em aula da disciplina PSC5963-1 Diálogos Clínicos: a Contribuição de Pavel Florensky,
oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 22 e 29 de outubro de
2014.
400
Para o filósofo, o símbolo é a consistência da imagem, há uma relação de
sensível, como a árvore, o céu e muitas vezes nos apresenta sua dimensão com o sagrado
(ex. o céu abre um sentido que ultrapassa o homem). “É nesse sentido que os símbolos
Isso marca toda a diferença do símbolo com a metáfora está é uma criação livre do
1976, p. 73). Todo o símbolo depende de sua narração a partir do discurso, caso contrário,
os mitos que narram como as coisas chegaram ao mundo permaneceriam não reveladas,
Conclusão
A situação clínica pode ser um espaço privilegiado que acontece através das
apreender o infinito do ser humano, e ao entender a palavra como evento do ser humano
que cria o homem e a aparição do seu mundo, então compreende-se que a palavra, na
401
palavra não é um instrumento, ou um símbolo opaco desprovido de autenticidade (embora
possa ser, a depender de seu “uso”), embora estejamos, conforme diz Safra (2004, p. 46),
e a palavra, que como vimos, aponta a infinitude da experiência. (G. Safra, comunicação
pessoal, outubro, 2014)278. Entendemos que a palavra e a linguagem devem ser superada
Compreendemos haver o discurso objetificado que distancia o locutor daquilo que fala,
mas em oposição a isso, a palavra também carrega sua dimensão criativa, capaz de trazer
deveria ser aquele que permite a abertura de um espaço em si para caber e acolher
278 Relato pessoal em aula da disciplina PSC5963-1 Diálogos Clínicos: a Contribuição de Pavel Florensky,
oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do IPUSP. Data: 22 e 29 de outubro de
2014.
402
abismo, a contemplar o próprio mistério para suportar o aparecer do mistério do existir e
o mistério do outro.
(...) a história das palavras e da cultura parece indicar que, se a linguagem nunca
um nível linguístico e literário, uma vez que as metáforas mais insistentes se pegam
Referências
SP: EDUSC.
Editora Planeta.
403
FEIJOO, A. M. L. C. de. (2011). A crise da subjetividade e o despontar das psicologias
jul./set.
São Francisco.
1999.
POMPÉIA, J. A. & SAPIENZA B. T. (2011). Terapia e a era da técnica. In: Pompéia J.A.
SAFRA, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. São Paulo: Ideias & Letras.
404
VIVÊNCIAS PSÍQUICAS FACE À VIOLÊNCIA NA PERSPECTIVA DA
E-mail: sf.carneiro@uol.com.br
fenomenologia de Edith Stein. Refletimos aqui sobre a vivência de dois estrangeiros face
investigações de Stein a respeito das dimensões psíquica e espiritual do ser humano nos
ajudam a compreender a vivência descrita não apenas no âmbito restrito de uma reação
consciência
Abstract: This work is part of a doctoral research whose goal is to understand the lived
experiences of people who live in the outskirts of the city of Salvador in light of Edith
279
Bolsista doutorado FAPESP.
405
Stein’s phenomenology. Here we reflect on the experience lived by two foreigners facing
investigations of Stein about the psychological and spiritual dimensions of the human
being help us to understand the experience described not only in the narrow context of an
involuntary reaction of a "victim subject", but also as part of an adaptation process that
violence; consciousness
Introdução
hospedou no local por 10 dias e realizou entrevistas com 7 moradores idosos (3 homens
vivências no bairro. No presente trabalho descreveremos duas situações relatadas que nos
406
Contexto de pesquisa
região sudoeste da cidade de Salvador, na área denominada “cidade baixa”. Nos anos 50,
esta região, onde se encontra a Península de Itapagipe, foi nomeada polo industrial de
atraiu famílias vindas principalmente do interior da Bahia, que se mudaram para a região
outras regiões da cidade. Posteriormente, parte da região foi aterrada com auxílio do
governo local280.
Em 1980, o Papa João Paulo II visitou o bairro e inaugurou a Igreja Nossa Senhora
dos Alagados, construída em função de sua visita. De acordo com os moradores, o bairro
se desenvolveu muito nesta época por interesse do governo que sabia que a visita de João
Paulo II “atrairia os olhos do mundo para eles”. A Igreja foi construída no alto de uma
colina que, por ser uma região geográfica estratégica, era cobiçada pelas duas facções do
tráfico presentes no bairro. A mesma colina também era conhecida como local onde a
contra os jovens envolvidos ou não com o tráfico. Por este motivo, o bairro do Uruguai
280
Informações colhidas de relatos dos moradores.
407
A presença da Igreja Nossa Senhora dos Alagados atraiu a vinda de missionários,
que morou no Uruguai como pároco da Igreja Nossa Senhora dos Alagados durante 9
anos. O segundo relato é de uma jovem francesa com a qual a pesquisadora conversou
após um ano em que ela estava no local. Apresentaremos a seguir os relatos de Daniel e
Joana, nomes fictícios com os quais nos referiremos a estes dois participantes da pesquisa.
Daniel
Em 1994 foi morar no bairro do Uruguai, passando a ser pároco da Igreja Nossa Senhora
dos Alagados. Assumiu esta função a pedido do então Arcebispo de Salvador, D. Lucas
Moreira Neves devido à situação difícil em que a Igreja se encontrava. Como vimos, por
ser a colina onde a Igreja se encontra, um local cobiçado pelo tráfico de drogas, os padres
que ali se instalavam sofriam ataques frequentes como roubos e ameaças de morte. Com
isto, nos primeiros anos, já haviam passado 6 padres, que após algum tempo enfrentando
esta situação, acabavam indo embora. Ao assumir a paróquia, Daniel passou a oferecer
atividades de cunho social para os moradores com o apoio de um jovem casal francês que
281
O contrato Fidei Donum é um contrato de cooperação estabelecido entre duas Dioceses. Através dele,
o sacerdote de uma das Dioceses é enviado por seu Bispo para servir à Diocese parceira por um período
determinado. Este modelo de colaboração foi proposto pelo Papa PioàXIIà aàCa taàE í li aà FideiàDo u à
de 1957 em que se tratou da necessidade de ajudar sobretudo as missões da África (Carta Encíclia Fidei
Donum - Retirado do site em 21/09/2014
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_21041957_fidei-
donum_po.html).
408
De acordo com depoimento de Daniel, após algum tempo de projeto, “fomos
descobrindo o inferno da realidade”. Isto porque muitas meninas que vinham participar
eram “meninas dos chefões do tráfico” e tinham uma postura bastante arrogante em
relação ao padre, aos colaboradores e às outras jovens. Com o tempo, Daniel percebeu
que elas não estavam interessada no que eles ofereciam (formação humana, curso
Conta que chegaram a ser assaltados no projeto por cumplicidade de algumas alunas.
Além disso, houve casos em que algumas jovens pararam de frequentar o projeto sem
lhes dar satisfação. Posteriormente, descobriram que o motivo do sumiço havia sido o
Ao relatar esta situação Daniel afirma: “Tivemos uma Graça de cegueira que nos
das dificuldades não desencorajaram Daniel e sua equipe. Daniel se deu conta de que o
projeto era “muito idealista” e que havia sido concebido por “três cabeças francesas”, ou
prepararem melhor para esta missão e por isso, decidiram interromper o projeto por um
ano para se formarem. Cada um dos colaboradores buscou uma formação: uma na área
Joana
Reforço Escolar que funciona no salão da Igreja Nossa Senhora dos Alagados e atende
crianças de 7 a 10 anos no contra turno escolar. Em seu país ela havia trabalhado com
moradores de rua e também com crianças com deficiência mental. Além disso, tinha
409
vivido por alguns meses na África em uma missão com “Irmã Emmanuelle do Cairo”282.
Joana afirmou que durante os primeiros meses no Uruguai, achou que o local não fosse
tão pobre e violento como as pessoas haviam dito. Comparava a pobreza material ao que
tinha visto na África e achava as pessoas ricas ali, pois tinham geladeira e até mesmo
televisão.
De acordo com Joana, esta visão inicial do bairro mudou radicalmente após alguns
meses e o divisor de águas para esta mudança foi um sonho. Contou que uma noite sonhou
com tudo o que tinha vivido nos primeiros meses no Uruguai. Disse que as cenas
passavam como um filme em que ela viu tudo o que não queria ver. Afirmou que era
“como se o meu consciente não visse a violência, mas tudo estava sendo guardado no
inconsciente”.
Contou por exemplo, que na noite em que chegou em Salvador havia uma festa
na sua rua e ela não conseguiu chegar em casa. “Havia muitas pessoas bêbadas e drogadas,
algumas caídas no chão.” Disse que este foi o primeiro choque e que naquele momento
compreendeu o que devia esperar do local. Joana afirmou que foi o primeiro quadro que
viu e que, como em uma exposição, este quadro apontava para os próximos que ela veria.
Viu uma mulher na rua carregando um bebê de colo, que por estar bêbada deixava o bebê
cair no chão a todo momento. Viu muitas outras coisas das quais ela realmente se deu
De fato, de acordo com Joana, os três primeiros meses no bairro foram muito
intensos e ela afirma que teve que descobrir quase tudo sozinha. Fazia visita às casas
282
Irmã Emmanuelle de Cairo era uma religiosa de origem belga. Pertencia à Congregação de Nossa
Senhora do Sion e trabalhou durante muitos anos na favela de Ezbet-Nakhl no Cairo (Egito), motivo pelo
qual ficou conhecida co oà aà i zi haà dosà e digos .à Mo euà e à à aà F a ça,à aosà à a osà
(informações retiradas do web site no dia 21/9/2014
http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/vaticano/faleceu-em-franca-a-irmazinha-dos-mendigos/).
410
acompanhada pelas crianças do reforço escolar e se esforçava muito para aprender o
português. Afirma que esteve tão ocupada neste início, que não teve tempo de refletir a
respeito de tudo o que estava vivendo e fazendo. Foi neste contexto que Joana sonhou.
Descreve o sonho como um filme onde ela reconhecia cada imagem: a festa na
sua rua no dia da chegada, o movimento do tráfico, a mulher bêbada com o bebê. Os
sentimentos que associa ao sonho são de angústia, medo, vontade de ir embora, de fugir.
Conta que após esta experiência, ficou com uma sensação de estar paralisada. Disse que
antes do sonho não percebia nada. Via o movimento de carros, mas não percebia que eram
traficantes. Fazia visitas na “invasão” (parte menos urbanizada do bairro e dominada por
uma das facções do tráfico) e não achava perigoso. Mas afirma que depois do sonho toda
essa visão mudou. χfirma que seus olhos se abriram e ela viu “uma pobreza tão profunda
como nunca tinha visto”. Disse ter se dado conta da pobreza em relação à violência, à
protegidos, inclusive contra a polícia. Para Joana, o sonho foi, portanto, um divisor de
águas que mudou sua visão e também os sentimentos. Após esta experiência, ficou muito
tempo sem sair de casa porque tinha medo. Só queria ficar em seu quarto lendo.
Ao ser questionada sobre o que ela lia, Joana conta que leu livros sobre a vida de
Dom Bosco, irmã Emmanuelle do Cairo, padre Guy Gilbert, Abbé Pierre, Charles de
Foucauld, entre outros. Disse que hoje percebe que “lia a vida de pessoas que acreditavam
no amor”, que buscou livros que contavam a história de “pessoas que ajudaram outras
pessoas em dificuldade”. Joana afirmou que estas leituras foram importantes porque
começou a encontrar semelhanças entre a vida daquelas pessoas e a sua, e com isso
411
começou a “achar forças” para continuar a missão sem medo. Conta que tinha fé, mas que
os livros lhe deram esperança. Relata que “precisava” deste tipo de leitura.
Após dois meses Joana conseguiu retomar suas atividades sem medo. Disse que
com o tempo encontrou um modo de se colocar, uma postura que tem funcionado: quando
percebe algum perigo, olha as pessoas com amor e ao mesmo tempo com um olhar muito
firme. No momento do perigo, sente seu estômago contrair e diz para si mesma: “- Nada
Joana afirma que essa experiência mudou sua vida. Hoje se sente forte, como se
pudesse enfrentar qualquer coisa. Sente também que aumentou a sua compaixão em
relação às pessoas. Quando vê uma criança na rua ou uma pessoa deitada na calçada tem
vontade de ajoelhar diante dela. Contou que sempre fez trabalho voluntário, sempre quis
ajudar o próximo, mas há uma diferença agora, pois nunca tinha tido este desejo de se
ajoelhar diante da pessoa. Conta que agora “vê Deus através destas pessoas”.
Ao ser questionada a respeito do que havia feito com que ela continuasse a missão
mesmo com todas essas dificuldades, Joana respondeu que havia sido o amor dela pelas
crianças e o amor que recebe das crianças. Contou que o amor das crianças pouco a pouco
a abriu para algumas pessoas adultas, principalmente para as mulheres. Algo muito difícil
para ela nesta missão foi o fato de se deparar com “homens terríveis no bairro: bêbados,
traficantes, homens que abusam das mulheres e crianças, e que não cuidam de ninguém”.
Disse que isto a ajudou a pensar que a mulher precisa de ajuda. Contou que antes de vir
para o Brasil tinha em mente um projeto de abrir uma casa de acolhida para mulheres e
que após esta experiência no bairro, a vontade de colocar este projeto em prática
aumentou. Está decidida a trabalhar com isto quando sua missão no Brasil acabar. Em
relação à continuidade da missão no Uruguai, Joana afirma que quer morar na “invasão”
412
e este seu desejo se expressa pela seguinte afirmação: “- Quero mostrar o meu amor pelo
semelhante vivida pela pesquisadora na sua primeira estadia no Uruguai para coleta de
varanda que fica no segundo andar de um sobrado de 3 andares. A varanda é cercada por
um muro baixo, o que permitiu o contato com um vizinho que trabalhava ao lado.
gravador ligado em cima da mesa e Ester foi relatando sua vida no Uruguai. A certa altura,
ouvimos um barulho muito forte e percebi que Ester ficou assustada. Ela colocou a mão
no peito e disse: “- Meu Deus o que é isso?” Em seguida gritou com uma voz nervosa ao
vizinho para saber do que se tratava. Sem resposta, me disse que eram fogos e
continuamos a entrevista.
assustado com o barulho, mas de ter continuado a entrevista sem prestar mais atenção a
este fato após ter sido assegurada por Ester de que eram fogos. Passados alguns meses,
primeira vez que o estivesse ouvindo. Desta vez me dei conta de que era barulho de arma
de fogo e senti medo por ter estado tão próxima de tiros. Foi como se a força da realidade
283
Nome fictício escolhido para esta senhora que morou durante 34 anos no bairro do Uruguai. Ester
faleceu 8 meses após a entrevista.
413
violenta que eu tentava amenizar deixando-me assegurar pela fala de Ester de que eram
fogos, tivesse rompido um véu protetor que me havia permitido caminhar pelo bairro “em
“cegueira protetora”.
É interessante notar que as três pessoas são estrangeiras (dois franceses e uma
Stein (2000), que apesar das diferenças culturais, sociais, circunstanciais, estas pessoas
tiveram vivências semelhantes no contato com o bairro. Tal semelhança se faz possível
pela estrutura comum que as irmana enquanto membros da grande comunidade humana.
semelhantes a sua nos relatos de outros pela capacidade empática. De fato, Edith Stein
termos uma estrutura comum. Ales Bello (1998) escreve a respeito da empatia:
que se ocupam da empatia, não é uma sensação nem um sentimento; nem um ato
modo não originário uma vivência alheia (Ales Bello, 1998, p. 50).
pessoas estrangeiras no contato com o bairro do Uruguai. Neste sentido, a empatia nos
414
auxiliou no processo de redução fenomenológica onde selecionamos do material
vivência comum aponta para sua relevância no estudo e nos motiva ao esforço de
dimensões e também do entrelaçamento entre elas. Stein (1999) deixa claro que não há
uma relação causal linear entre as vivências, não sendo possível, portanto, identificar um
elemento particular ou uma vivência particular que cause outra, como poderíamos ser
tentados a buscar.
identifica como a causa que media a passagem de uma qualidade psíquica a outra. Trata-
O processo causal desencadeado pela força vital pode ser melhor compreendido se
Segundo a autora (Stein, 1999) toda vivência é composta por três componentes: o
qual a consciência se volta, o conteúdo que ela recebe e que pode ser externo (como um
dado de cor) ou interno à pessoa (um estado de bem estar, por exemplo) (Stein, 1999). O
viver o conteúdo refere-se ao modo como ele é apreendido pela consciência. Diz respeito
415
O viver por sua vez influenciará o terceiro componente citado por Stein (1999)
que é a consciência deste viver. Tal consciência pode ser traduzida como o “dar-se conta”
do que se está vivendo e não deve ser confundida com a consciência que é fruto da
vivencia espiritual da reflexão. Edith Stein (1999) ilustra a influência que o viver tem
sobre a consciência deste viver (o dar-se conta dele) ao afirmar que quanto mais intenso
respeito das vivências e da relação entre elas, passaremos à análise dos relatos de Daniel
primeiro diz respeito a uma visão aberta e ampla que busca captar o que é comum aos
psíquicas individuais. O percurso comum será o fio condutor de nossa análise e inserido
ouvir falar sobre a violência do bairro; 2) o contato direto com o bairro onde prevalece a
O primeiro contato com o bairro do Uruguai tanto para Joana como para Daniel
foi a partir de relatos de terceiros, o que significa na visão de Edith Stein (1998), que seu
acesso ao bairro se deu primeiramente por vivências não originárias, ou seja, pela escuta
das vivências de terceiros em relação ao Uruguai e não pelo seu contato direto com o
local (Stein, 1998, p.73). Não podemos afirmar com segurança, mas provavelmente tais
416
relatos permitiram a Daniel e Joana formular, pela vivência da imaginação, uma visão
Embora este primeiro momento – ouvir falar sobre a violência do bairro – não
apareça no relato de Daniel, este contou-nos que o Uruguai “tinha uma fama terrível” no
bairro onde morava e que isto o deixava temeroso. Também Joana havia escutado falar
do Uruguai como um local onde a pobreza e a violência eram grandes, o que pode ser
ilustrado pela afirmação de que no início “não achava o bairro assim tão pobre e violento
Esta afirmação de Joana nos remete ao segundo momento descrito como o contato
direto com o bairro e a “cegueira protetora”. χpesar de ter presenciado cenas difíceis
como a festa em frente a sua casa no dia da chegada, Joana relata que não percebia a
violência, que via por exemplo o movimento de carros, mas não enxergava que esta
Presenciava, mas não se dava conta da realidade. É a esta vivência que chamamos de
“cegueira protetora” e cuja natureza χles ψello (2006) nos ajuda a compreender ao
identificamos nesta análise a “cegueira protetora” como uma vivência psíquica reativa de
Esta análise da “cegueira protetora” como uma vivência psíquica é comum a Joana
e Daniel. Entretanto, a forma como cada um descreveu esta vivência e o sentido pessoal
417
conferido a ela nos permite adentrar nas suas singularidades. Joana, por exemplo,
descreve a vivência dizendo: “ – Era como se o meu consciente não visse a violência, mas
tudo estava sendo guardado no inconsciente”. Joana não nega o contato com a violência,
la de modo consciente e de refletir a respeito desta realidade. Esta possibilidade pode ser
As vivências não acontecem de forma linear uma após a outra como se fossem
formando o que Stein chama de “fluxo de vivências” (Stein, 1999). χ autora compara
este fluxo a um rio284 que flui de modo contínuo. A cada momento novas vivências vão
sendo agregadas de modo que haja uma sucessão, mas também uma coexistência de
vivências que se organizam por camadas neste fluxo. Nesta dinâmica, podemos pensar
que a percepção da violência ocorreu, mas pode ter sido registrada em uma camada mais
profunda do fluxo onde ela permaneceu viva, embora não consciente. Stein considera
uma vivência “viva”, aquela que atua na pessoa no sentido de “produzir novas fases no
fluxo”, novas vivências, como por exemplo, o sonho (Stein, 1999, p. 46).
Outro aspecto do relato de Joana que nos chama a atenção e permite compreender
a vivência da “cegueira protetora”, foi o fato dela expressar que isto aconteceu nos três
primeiros meses após sua chegada. Joana é francesa, vem de outra cultura e estava
284
A imagem do fluxo como um rio foi trazida pela Profa. Dra. Angela Ales Bello em referência a Edith
Stein, durante Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro
de 2014, intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aà P“C 1).
Conteúdo retirado das anotações pessoais da pesquisadora.
418
dispêndio de força vital e toda a atenção voltada para este processo. De fato, de acordo
com Stein (1999), “a capacidade de receber os dados sensíveis e a intensidade com que
eles se apresentam depende do estado de nossa força vital naquele determinado momento”
(Stein, 1999, p.66). Portanto, a diminuição da quantidade de força vital provocada pelo
Pelo seu relato, percebemos que Joana esteve concentrada no processo adaptativo
e suas famílias. Estava, como ela afirma, em um esforço tão grande que não tinha tempo
de refletir sobre tudo o que vivia. A força vital de Joana era utilizada na realização das
crianças. A falta de tempo neste caso associa-se ao grande esforço que tomava todo o seu
dia, inclusive as noites onde ela refletia sim, mas a respeito do trabalho no reforço escolar
e das expressões que ouvia as crianças falar e que procurava compreender. Joana estava
imersa em uma atividade adaptativa bastante exigente e a “cegueira protetora” neste caso,
pode ser compreendida como uma impossibilidade psíquica de dar conta de certos
aspectos da realidade pela falta de força vital, pela falta de disponibilidade interior e pela
relação à “cegueira protetora”, que pode ser compreendido a partir da afirmação que fez
ao relatar a descoberta de que as jovens que participavam dos projetos sociais podiam ser
ameaçadas de morte: “- Isso para nós foi mais um passo na descoberta do inferno da
realidade que descobrimos só gradativamente, com uma Graça de cegueira que nos
libertou de um medo maior”. Daniel viveu a “cegueira protetora” como uma ação da
419
Providência Divina que os poupou de um medo que poderia tê-los paralisado ou
atividades implicadas com a missão assumida por cada um: o trabalho com as crianças e
com as adolescentes.
Por outro lado, diferentemente de Joana, Daniel não negou o medo, ou seja, a
amenizou uma forte reação psíquica pela qual poderia ter sido tomado caso a violência
demonstra certa anestesia, ou seja, não sentia medo, tinha uma reação psíquica de recusa
(não aceitação) dos aspectos negativos da realidade, que buscava justificar pela
racionalização cujo discurso pautava-se em uma comparação com o que havia vivido na
África.
humano, descrita por Ales Bello como referente às vivências da reflexão, avaliação,
compreensão, pensamento e decisão (Ales Bello, 2006, p. 39). De acordo com Ales
encontra justificativas teóricas para afirmar esta recusa. Inserida nesta dinâmica,
discurso racional espiritual que justifica a ausência da violência, negada nos primeiros
285
Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro de 2014,
intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aàP“C 1). Conteúdo
retirado das anotações pessoais da pesquisadora.
420
Passado este momento inicial, entramos na vivência relacionada ao dar-se conta
da realidade e à reação que esta consciência causou: o recolhimento. Como vimos, para
aconteceu de forma gradual a partir da sua experiência nos projetos sociais, que
o acesso à pessoas e realidades menos evidentes, ligadas por exemplo ao tráfico de drogas.
Foi, portanto, um desvelar-se gradual da violência pelo contato com as pessoas, a partir
do projeto.
fez com que Daniel e sua equipe decidissem fazer uma pausa neste serviço, daí o
recolhimento. Houve a reação de medo, mas ela não foi paralisante. Ao contrário, a
Perceberam que eram muito “idealistas” e que “o projeto não poderia funcionar porque
tinha sido pensado por três cabeças francesas”. Diante desta tomada de consciência e
reflexão a respeito do vivido, Daniel e sua equipe recolheram-se por um período e cada
de um sonho. Joana relatou que viu no sonho cenas familiares, reconhecendo que já as
havia presenciado. Realmente Joana já tinha entrado em contato com a violência, mas a
demonstra que aquelas não eram vivências inconscientes, mas sim, vivências para as
quais ela procurava não se voltar. Com o sonho, entretanto, Joana foi colocada frente a
421
frente com estas vivências, que emergiram de uma camada mais profunda do fluxo,
despontando na consciência.
Sobre este aspecto, afirma Stein: “χquilo que passou, mas que ainda vive, se une
no viver com algo que nasce naquele momento, formando as unidades do fluxo” (Stein,
1999, p. 46). Neste sentido, há uma sucessão, mas também uma coexistência de vivências.
Por esta descrição, podemos compreender que as cenas vividas no sonho de Joana diziam
respeito a vivências passadas ainda ativas no fluxo, que surgiram novamente no sonho
fluxo de vivências, a autora (Stein, 1999) afirma que a unidade do fluxo é dada pelo eu,
que é uno e que une em si passado, presente e futuro; que “sente sair de si vida nova a
cada momento e leva consigo todo o traço (rastro) do passado” (Stein, 1999, p.49).
profundamente. Joana ficou paralisada. Conta que foi invadida por sentimentos de
angustia e medo, e que por algum tempo não conseguia sair de casa. Assim como Daniel,
se impunha.
Joana recolheu-se. Mas o recolhimento de Joana não foi um fechamento total, pois
ela permaneceu em diálogo com pessoas que intuía que pudessem lhe ajudar. Pessoas
286
Oàte oà p ese tifi aç o à à itadoàpo àEdithà“tei àaoàt ata àdaàdife e çaàe t eà atosào igi ios àeà
oào igi ios .àNosàatosà oào igi iosà o oàaà e o daç o,àpo àe e plo,àoào jetoà e o dadoà oàest à
p ese teàe à a eàeàosso ,à asàseàto aàp ese teàpelaàp ese tifi aç o.àáàp ese tifi aç o,àpo ta to,à o
está ligada ao objeto, mas é própria do ato, no caso, o ato da recordação (Stein, 1998, p. 74).
422
cujo exemplo de vida lhe serviam de alimento espiritual, iluminando sua experiência e
dando sentido ao sofrimento vivido. Tal diálogo se deu justamente pela leitura sobre a
vida de pessoas identificadas por ela como “pessoas que acreditavam no amor”, que
de serem religiosos franceses ou europeus: Dom Bosco, irmã Emmanuelle do Cairo, padre
Joana relatou que encontrava semelhanças entre a vida destas pessoas e a sua, e
que com isto começou a “achar forças” para continuar a missão sem medo. Conta que os
livros lhe deram esperança. Podemos compreender esta vivência pela descrição de Stein
a respeito das fontes de força vital. De acordo com a autora (Stein, 1999) nossa força vital
pode ser acrescida a partir do contato com outras pessoas ou com objetos que são fonte
de valor para nós. No caso de Joana, houve uma atração pelos livros que tratavam da
foram uma fonte de força vital para Joana, pois lhe trouxeram novo vigor para continuar
a missão.
vivencias difíceis ligada a violência, ambos retornaram à atividade com uma nova visão
formação de seus colaboradores e pela abertura e escuta da realidade das jovens com as
do inicial, onde ele buscou responder de forma consciente e não mais reativa ao apelo da
realidade.
423
No caso de Joana, o recolhimento e a leitura a fortaleceram e ela encontrou sentido
para sua missão, dando um “sim” pessoal à continuidade da mesma. Este sim é descrito
por Edith Stein como o “fiat” que ela caracteriza como o início de um ato voluntário, de
uma tomada de posição que brota do eu. Trata-se não do ato em si, mas da “passagem de
Se no início Joana negava a violência e não tinha tempo para refletir a respeito de
tudo o que vivia, agora ela se coloca de modo bastante consciente e atenta. O discurso
Eu vi uma pobreza tão profunda como nunca tinha visto”. O novo olhar também diz
experiência religiosa que trouxe novo sentido ao seu trabalho. De acordo com Ales
Bello287, a vivência religiosa não se coloca ao lado das vivências de outras naturezas como
uma vivência a mais, mas é uma vivência de fundo que dá sentido a todas as outras,
perpassando o dia a dia da pessoa. Joana conta que passou a sentir compaixão pelas
Além disso, Joana descobriu um modo próprio de lidar com as situações de perigo,
em que ela busca integrar amor e firmeza. Relata: “- No momento do perigo, sinto meu
estômago contrair e digo para mim mesma que nada pode ser pior do que eu já vivi”.
Então, olha a pessoa nos olhos com amor e firmeza. Esta descrição de Joana demonstra a
seu ser, incluindo a percepção do corpo vivido: “sinto meu estômago contrair”. Percebe
287
Seminário aberto no Instituto de Psicologia da USP/SP entre os dias 15 a 18 de setembro de 2014,
intitulado “A Experiência Religiosa entre Psicologia e Fenomenologia à Dis ipli aàP“C 1). Conteúdo
retirado das anotações pessoais da pesquisadora.
424
não apenas a contração involuntária, mas também utiliza o corpo de forma consciente,
ao mesmo tempo. Esta vivência ilustra a afirmação de Stein (2000) de que a percepção
do nosso corpo não acontece de fora para dentro, mas pela percepção interior,
corpo vivente e me sinto nele. Isto implica que eu seja consciente do meu eu, não
não apenas da violência externa, mas de si mesma. Um percurso em que ela conseguiu
Considerações finais
cruzamento intencional visa tomar o conjunto dos relatos como variações da experiência
425
vivida a fim de identificar os elementos comuns que determinam o sentido próprio do
filosófica de Edith Stein, em que ela individua e ao mesmo tempo demonstra a unidade
entre as três dimensões constitutivas do ser humano: corpo, psique (impulsos, tendências,
contato direto com o bairro onde prevalece a “cegueira protetora” em relação à violência;
olhar e de um modo novo. Pela análise realizada, estes momentos podem ser traduzidos
como um percurso pessoal que parte de um contato indireto com o bairro, ou seja, de uma
abrupto no caso de Joana); uma fase de distanciamento da realidade e o retorno com uma
nova postura, onde prevalece não mais um “sujeito vítima”, e sim um “sujeito
consciente”.
Por este novo modo de ver e se posicionar diante dos desafios da realidade do
integrar as diversas facetas da realidade. O amor das crianças e a dignidade das meninas
426
responder de modo livre e consciente ao apelo pessoal que os havia levado até o Uruguai.
primeiro contato com mar. Atraída pela beleza e pelo movimento que convida à interação,
a pessoa se atira na água sem medo. Sente-se segura e confiante até ser pega desprevenida
por uma onda que lhe dá um grande caldo e lhe leva para areia. Assustada, sai da água
para se recompor. Contempla novamente o mar e o vê não apenas lúdico, mas também
traiçoeiro. Volta a entrar na água, agora com mais atenção e cautela. O mar já não é
desconhecido. Também já não é conhecido apenas pelos livros, mas pela experiência
vivida. Esta experiência trouxe à pessoa um novo olhar e um novo modo de se relacionar.
cada vez que nos posicionamos diante da realidade que nos toca.
Referências
acesso às vivências. In Mahfoud, M., & Massimi, M. (orgs.). Edith Stein e a Psicologia:
427
Stein, E. (1998). Il problema dell’empatia. Roma: Edizioni Studium.
Stein, E. (1999). Psicologia e scienze dello spirito: contributi per una fondazione
428
COMUNICAÇÕES ORAIS
429
PLANTÃO PSICOLÓGICO DE GESTANTES HIPERTENSAS ATENDIDAS NO
cérebro.
Arendt, H.
Resumo: Este trabalho objetivou discutir como os aspectos psicológicos são vividos na
430
compreensão psicológica acerca das vivências das pacientes nas suas relações com
Abstract - This study aimed to discuss how psychological aspects are experienced in the
psychological duty service in the Hypertension Clinic and Kidney Diseases in Pregnancy
EPM - UNIFESP. Data were collected from the narrative of 19 hypertensive pregnant
interview. The text of the narrative was divided into meaning units, allowing the
Introdução
no conhecimento sobre plantão psicológico, que surgiu pela primeira vez no Brasil na
431
como o “Serviço de χconselhamento Psicológico”, interessados em discutir e aprofundar
(Rosemberg, RL, 1987). Nessa época a Dra Rosemberg propõe a criação do Plantão
Psicológico inspirado nas walk-in clinics, surgidas nos Estados Unidos, para prestar um
que necessita de ajuda psicológica e nem sempre conta com ela no momento da
permitindo uma clarificação do seu pedido de ajuda, no sentido de facilitar uma visão
sofrimento.
eficiente em um curto espaço de tempo, em uma instituição pública com população com
história de hipertensão arterial e doença renal crônica. Esse serviço não pretende substituir
432
a psicoterapia, nem tem a finalidade de triagem, embora ainda que seja possível realizar
encaminhamentos.
Morato (1999) relata que nessa atividade de campo duas atitudes constituem-se
fundamentais: ver e ouvir. Porém, sublinha que essas atitudes não se expressam em juízos,
nos conflitos gerados pela situação de risco enfrentada pelas gestantes hipertensas como
433
insuficiência de múltiplos órgãos, tais como alterações cardiocirculatórias, pulmonares,
Daher, Mattar & Sass (2006) revelam que a pré-eclâmpsia incide em cerca de 5 a
proteinúria. Ela costuma instalar-se após a 20ª semana de gestação, podendo evoluir para
que aceita outros parâmetros para orientar o seu desenvolvimento, estando o psicólogo
Nefropatias na Gestação, Dr. Nelson Sass, para fazer a pesquisa com essas pacientes, ele
Objetivo
434
Método
forma descritiva e não numérica. É uma pesquisa que depende do rigor da intuição e
habilidade do pesquisador para manusear técnicas e recursos para tratar o fenômeno, pois
investigar o ser e os modos desse ser expressar a sua verdade. A perspectiva em que se
coloca a fenomenologia está em aceitar que a verdade é relativa e tem caráter provisório
específico para abordar a consciência e a experiência humana imediata. Pode ser definido
de um grupo de mães, esses grupos acontecem todas as terças-feiras, das 9hs às 10hs. As
gestantes são orientadas sobre a doença hipertensiva na gestação e aquelas que necessitam
exceção de uma que foi encaminhada pela assistente social. O número de atendimentos
procedimento apresenta alguns problemas pelo fato de não ser possível transcrevê-los
435
literalmente. Optamos por não gravar as entrevistas, devido ao receio da população sobre
5 vezes. Foram utilizados como critério para escolha dos relatos, os relativos aos aspectos
gestação do quarto filho. Na primeira gravidez teve aborto espontâneo com 11 semanas
de gestação, na segunda gravidez teve a segunda filha que tem atualmente quatro anos de
idade. Perdeu o terceiro filho devido a um “surto psiquiátrico do marido que foi
esse “terceiro bebê” e a partir daí desenvolveu “depressão reativa”. Afirma que teve
dois afastamentos do trabalho por causa da depressão e foi medicada com fluoxetina.
Como ficou grávida pela quarta vez, sem que desejasse, precisou parar de tomar a
436
irritação com a filha” e não ter “paciência” com ela. Outra preocupação apresentada era
qual estava passando, nas perdas dos bebês anteriores e na falta de apoio do marido, que
apresentou surto psiquiátrico, no momento em que ela precisava de uma figura forte ao
seu lado. Além disso, tinha conhecimento de que a ansiedade e preocupação com a
hipertensão arterial na gravidez eram fatores de risco para a gestante. E, por fim, a
que exigia atenção constante. De forma que a paciente sentia uma sobrecarga psíquica,
que afetava a compreensão do momento vivido. Tivemos cinco encontros durante o pré-
A cada encontro era perguntado como estava se sentindo, e, ela dizia que se sentia
melhor e que sabia que podia tirar suas dúvidas e dividir suas ansiedades no plantão
psicológico. Afirmou: “...é bom a gente poder tirar as dúvidas e falar com alguém que
explica as coisas para gente” (sic). Orientamos também que buscasse ajuda com algum
familiar ou parente próximo que pudesse apoia-la nesse momento mais frágil e auxiliasse
automóveis, 44 anos, desde os quinze apresentava hipertensão arterial crônica. Teve cinco
abortos e fez tratamento antes de engravidar por sete anos antes do primeiro filho, que
naquele momento estava com 20 anos. Após esta gestação não tomou nenhum
437
pois estava angustiada porque há um mês o filho mais velho foi preso. Ele envolveu-se
com colegas vizinhos do bairro onde mora, que fizeram um assalto. Deu carona
(“ingenuamente”) para os colegas, que foram abordados pela polícia que fez o flagrante.
A mãe afirmava que o filho era inocente, que trabalhava na mesma concessionária de
automóveis que ela e tinha bons antecedentes, “sempre foi trabalhador, nunca me deu
problemas” (sic). Suelen visitava o filho na prisão junto com o marido toda semana e
somando-se a isso, passavam por crise financeira e dificuldades “para pagar um bom
advogado” (sic). Preocupava-se com a saúde do rapaz e sua condição física na prisão.
este filho, que parecia ser o foco de sua atenção. O jovem acabou sendo condenado a seis
anos e meio de prisão em regime fechado. Ela sentia que o filho preso estava sendo
injustiçado, pois “não tinha cometido crime algum” (sic). Sentia-se culpada e impotente
por não conseguir provar a inocência do filho. Outra preocupação apresentada pela
gestante era com a idade avançada para engravidar. Essa gravidez não era esperada, “veio
sem a gente planejar e eu já sou de idade para engravidar.....tenho pressão alta” (sic).
Pedia para ser atendida pela psicóloga todas as vezes que vinha para a consulta do pré-
questionar sua realidade e a necessidade de procurar ajuda para o filho, sem esquecer o
bebê que estava para nascer e tomar os devidos cuidados para controlar a pressão arterial.
feitos, que mostravam que o bebê estava bem. O plantão mostrou-se um lugar de escuta
mostrando a necessidade de abrir um espaço psíquico para o novo bebê que ia nascer.
438
O terceiro relato narra a história de Helena, 27 anos, trabalhava em empresa de
ônibus, grávida de 35 semanas de gestação do segundo filho. O primeiro filho tem sete
ele bebia e ameaçava espancá-la. Procurou o plantão psicológico com queixa de muito
medo de problemas de parto e má-formação do bebê. Conta que aos treze anos ela e a
irmã mais velha sofreram abuso sexual do padrasto. A mãe pediu que a irmã fosse morar
com uma tia. Tinha muito medo de contar à mãe que ela também sofrera abuso, e, que a
mãe poderia não acreditar, além do medo de sofrer represálias do padrasto. Nesta época
a genitora de Helena descobriu que estava com a Doença de Chagas ao mesmo tempo em
que engravidou do marido (padrasto). A partir daí a paciente decidiu não contar para a
mãe do abuso que sofrera do padrasto e, ao mesmo tempo, a descoberta da pressão arterial
elevada. Quando engravidou desse bebê (do segundo marido), começou a apresentar
controlada com medicação e não apresentava outros problemas de saúde. Apoiada pelo
plantão, refletimos sobre sua história de vida e ela concluiu que sua gravidez a fazia
mãe. Percebeu que ‘associava sua gravidez à gravidez da mãe e ao abuso sexual sofrido
relação à mãe e da culpa que tinha por sua irmã ter saído de casa e ela não. Até aquela
data nenhuma das três, paciente, irmã e mãe tinham conversado sobre o ocorrido.
Resultados
439
O plantão psicológico mostrou-se um espaço de cuidado para um momento de
criação de novos sentidos. Além disso, propiciou à pessoa uma abertura de si mesma e
arterial na gestação
anteriores à gestação
(padrasto)
Total 19 100%
440
Tivemos por objetivo identificar e discutir como os aspectos psicológicos são
de hipertensão arterial da Unifesp e destacar o plantão psicológico como mais uma opção
O primeiro relato traz a história de Lara que viveu perdas gestacionais anteriores
impactantes para ela. Faz uma associação da perda do terceiro filho com o desencadear
de um surto psiquiátrico no marido e nela depressão, tendo que ser medicada com
fluoxetina. A gravidez do quarto filho, não desejada, o luto pelas perdas anteriores, o surto
do marido, tornaram-na frágil e com pouca disponibilidade psíquica para cuidar da filha
de quatro anos. A solidão sentida estava sendo vivida como absoluta e seria preciso a
experiência do encontro com alguém para dividir suas angústias e sofrimentos (Safra,
2006). Além do atendimento em plantão foi feito um trabalho de apoio com exercícios de
No segundo relato, Suelen uma mulher mais velha, traz uma gravidez indesejada
com maiores riscos na gestação, agravada pela hipertensão arterial crônica. Adicionando-
se a isso o fato de que o filho mais velho é preso, vítima de uma “cilada dos amigos”.
Suelen vive a experiência de agonia impensável, ou seja, uma aflição sem fim, vivida do
ocorre uma experiência sem devir ou construção de sentido (Safra, 2006, p. 93). Na visão
não planejada, a idade avançada (44 anos) e a dor de imaginar o sofrimento do filho preso,
441
ameaças físicas do ex-marido. Durante a entrevista conta do abuso-sexual sofrido por ela
e a irmã mais velha pelo padrasto. A mãe que deveria ser uma figura de proteção e
confiança não a protege, nem a ela, nem a irmã. Agravado pelo fato da notícia da doença
de Chagas da mãe e pela gravidez do padrasto, ela perde a coragem de contar para a mãe
o abuso a que foi submetida. Sente-se culpada pela saída da irmã de casa. Conscientizou-
por não ter defendido as filhas e culpada pelo “abandono” da irmã e pelo abuso sofrido
pelo padrasto.
Em suma, no primeiro relato observamos que os lutos não elaborados pelas perdas
de desenvolver uma depressão. Sem ter plena consciência desses conflitos engravida
O segundo relato traz a história de uma mulher com vida conjugal estável e um casamento
de vinte anos. De repente sua vida é “sacudida” por uma gravidez não planejada, com 44
anos de idade e hipertensão arterial, somado ao fato do filho mais velho ser preso
primeiro marido há três anos. A separação ocorreu por agressões psíquicas e ameaças
físicas desse marido. Narra também o abuso sexual sofrido por ela e a irmã mais velha
pelo padrasto quando ainda era adolescente. Casada pela segunda vez e grávida do
segundo filho chega ao Ambulatório com queixa de pesadelos e medo da morte. Através
hostilidades que sentia em relação à mãe, que não a protegeu e sentimentos de culpa em
relação à irmã.
442
atual gestação, abuso sexual na adolescência e a busca de novas perspectivas de vida
Considerações finais
de hipertensão arterial da Unifesp e destacar o plantão psicológico como mais uma opção
2006, p.30).
443
O plantão psicológico destacou-se como mais uma opção de prática no
e suas famílias.
Referências
Paulo, SP.
Plantão psicológico: Novos horizontes (pp. 120-135). São Paulo, SP: Companhia
Ilimitada.
Histórico de sua Criação e Mudanças Ocorridas na Década de 90. In: Morato HTP (org).
444
Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa: Novos Desafios – São Paulo: Casa do
Psicólogo, p.136-143.
Mahfoud, M. (org) (1999). Plantão Psicológico: novos horizontes. São Paulo: C.I.
Oliveira L.G, Silva F. & Mesquita MRS (2006). Fisiopatologia da Doença Hipertensiva
na Gravidez: Aspectos Gerais. In: Camano L, Moron AF, Sass N. Hipertensão Arterial e
445
EDITH STEIN LÊ HANS ULRICH GUMBRECHT: UMA ANÁLISE DO
SÉCULO XX
E-mail: danilosf1901@hotmail.com
Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz) para a definição sobre o papel intelectual,
própria autora um exemplo desta definição como podemos analisar através da sua
biografia, que foi demonstrado por João Paulo II: “A fé e a razão são como duas asas que
fenomenologia.
Abstract: The paper analyzes the contribution of the philosopher, Carmelite and martyr
of Nazism, Edith Stein (St. Teresa Benedicta of the Cross) for the definition of the
intellectual role, present in her communication Intellect and Intellectuals written in 1930,
with the author herself being an example of this definition, as we can see in her biography,
which was demonstrated by John Paul II: "Faith and reason are like two wings that lift to
phenomenology.
288
Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP .
446
A pós-modernidade e o conceito de Observador de Segunda Ordem
O século XX pode ser definido como um período de grandes traumas, entre eles
pergunta de Alice A.R.Eckahrdt: “Como se pode falar daquilo que é indizível ? ” E, ainda
segundo Hayden White, esta experiência apresenta um peso ético extraordinário, o qual
em geral a dificuldade para tematizá-la, para descrevê-la . Este momento de crise permitiu
sentimento de que o sujeito é estranho ao mundo que o cerca, sendo necessário ao homem
observar o mundo e ao mesmo tempo se perceber como agente neste mesmo mundo. A
“observação de segunda ordem”, e isto porque a autora teve o cuidado de evidenciar sua
447
chegando mesmo a escrever uma carta ao papa Pio XI a fim de denunciar esta ideologia.
aliás, como definiu o papa João Paulo II na encíclica de 1 de maio de 1985, “Edith Stein
, apresenta como tese central o que legitimou a sua posição ao presente foi segundo as
(…) sino tambiem porque Ella misma se identifico com El discurrir de los eventos
vivida desde dentro por una alemana , y que no siempre aparece em los libros
alemã. Infelizmente este artigo assim como a compreensão de uma biografia uma forma
de análise não consegue descrever a totalidade, de uma experiência vivida como nos
autobiografia. Esse ato narrativo seria, na visão do autor uma ilusão retórica ,como
289
ROJO, Ezequiel Garcia. El Siglo XX a luz de Edith Stein, 1991. P. 1.
448
razão e fora de propósito, é imprevisto e cheio de razões justapostas.(BOURDIEU,
1996, p. 185).
figura steniana como uma mulher que possui um espírito para descrever e aprender o real.
Este espírito é caracterizado pelo autor, por sua habilidade de descrever aquilo que
experimentava a vida, mas também, as relações políticos e sociais que estavam inseridas
nestes espaços.
Neste sentido, podemos perceber que ao buscar esta verdade como dita
anteriormente, é a meta da jovem Edith Stein, em 28 de abril de 1911, inicia a sua carreira
do mundo, e pela primeira vez uma possibilidade de diálogo que possibilita a maior
reflexão de sua verdade interior, o que ela descreverá como o momento mais feliz de sua
vida.
No campo da história, Edith Stein teve como professor o historiador Max Lehann
na universidade de Gottingen, onde este apresentava a sua turma uma visão positivista,
políticas européias, sobre este conhecimento a autora descreve: “χ este amor por La
449
estrechamente a uma participação apaixonada em los sucessos políticos Del presente,
Esta comunicação tem como objetivo, apresentar a filósofa Carmelita Edith Stein
por Edith Stein, e através desta reconstituição, descrever o papel do intelectual e como
esta categoria social se manifesta sobre o real destacando a dimensão ética deste grupo e
experiência religiosa através de uma analise para se vivenciar a crise do século XX.
transcritas na obra Estrelas Amarillas291, escritas por Edith Stein a Emil Vierneisel e
através delas, pensar os motivos da conferência não como um pensamento isolado, mas
que nasce de uma busca em pensar o presente da própria autora e como Edith Stein se
relaciona com a sociedade que a cerca, do que a própria Stein chamará de “χ busca pela
verdade” 292.
ligada com a realidade ou a apreensão sobre o real que o cerca durante os eventos
segundo Hans Ulrich Gumbrech uma nova forma do homem se relacionar com o tempo
290
GUMBRECHT, Has Ul i h.àDepoisàdeà Depoisàdeàap e de à àaàhist ia ,àoà ueàfaze à o àoàpasadoà
agora?. p. 33.
291
STEIN, Edith Estrellas Amarillas. 2 edição. Madri: Editorial de Espiritualidad, 1992.
292
TERUEL, Pedro Jesús. El camino de Edith Stein. Universidad Católica de Murcia, 2006.
450
Tal movimento denominado no texto “Cascatas de modernidade” como a
neste mesmo mundo, a descrição desta experiência de tempo, e denominada por Hans
a filosofa da fenomenologia uma maior reflexão que se atuará não apenas no âmbito
intelectual mais também no campo social, como podemos citar como exemplo uma carta
Carta em que Edith Stein, escreve para Korand Haenisch ministro de Ciência, arte
Emmy Noether, doutora em Matemática pela Universidade de Gotingan, em que esta não
Como resposta de Edith para esta situação tem: “La senora em cueston estaria ‘por
encima de La media de los professores ordinários’; de ahi que El caso no podriá servir de
ministro respondia através de uma carta , que compartilhava do mesmo ponto de vista da
filosofa no qual o pertencimento do sexo feminino não poderia ser visto como
impedimento para assumir uma cátedra, e se propôs a corrigir a injustiça cometida contra
451
Roman Ingarden escreveu que Edith Stein, nunca tinha escrito uma só palavra que
não acreditasse este ato de crer se torna uma importante chave para entender a trajetória
Algumas contribuições de Edith Stein para uma justa Hermenêutica do Humano, nos
apresenta como uma conseqüência de sua razão rigorosa sendo esta aprendida com
Edmund Hurssel sendo a fenomenologia descrita pela autora de sua pátria filosófica na
obra Ser finito e Ser Eterno e de uma fé radical e lúcida temperada por uma mística
profunda.
decisão de pedir o batismo foi descrita por Elisabetth de Miribel em seu livro Edith Stein:
No dia primeiro de janeiro do ano do senhor de 1922, foi batizada Edith Stein,
nomes de Teresa, Hedwige. Sua madrinha foi à senhora Hedwige Corand (de
A partir do primeiro dia Edith Stein descrevera a sua vivencia espiritual para
primeiro satisfazer o seu desejo por encontrar a verdade e poder significar a sua
experiência e através desta analise dialogar com o próximo e mesmo se deixar ser afetado
por ele como o seu estudo sobre a empatia onde pretende compreender o outro.
294
Bá‘CELO“,à D á tag a à deà ál eida.à áLGUMá“à CONT‘IBUIÇÕE“à DEà EDITHà “TEINà Pá‘áà UMáà JU“Táà
HERMENÊUTICA DO HUMANO, 2011.
295
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição. Aparecida, SP: Santuário,
2006. P. 67.
452
Para confirmar esta hipótese analisaremos a conferencia feita a pedido do
Stein,através de uma carta escrita no dia 30 de setembro de 1930, que ela ministrasse uma
palestra , sendo que Stein propõe como tema de sua palestra o Intelecto e os intelectuais
onde pretendia demonstrar a importância do papel dos intelectual com a sociedade , tendo
como modelo principal São Tomas de Aquino, sendo esta realizada em 02 de dezembro
porque como dito anteriormente Edith Stein deve outras conferências internacionais como
formação da mulher”.
Pode disser, por favor, ao professor Lossen que falei com a Madre do internado e
que esta disposta a cumprir seu desejo, se bem esta Páscoa dificilmente será
296
Pax !Muy estimado senordoctorVierneisel :Mucho me alegro de que santo Tomás haya despertado
tanta satisfacción em usted. Regresamosmuy contentas a casa, y depués de media hora desembarcamos
delante de La puerta Del convento. Gracias, de corazón, también a su querida esposa, por todas
amabilidades y cuidados? Quieresdecirle, por favor, al professor Lossen que hehablado com laPrefectadel
internado y que está dispuesta a cumplirsudeseo, si bien esta Pascuadifícilmente será posible? La respueta
453
Infelizmente o manuscrito original da conferência não foi conservado apenas uma
folha com o índice, como nos aponta a biógrafa Elizabeth de Miribel em seu trabalho
sobre Edith Stein. A maioria das cartas escritas pela filósofa carmelita foram destruídas
daqueles que conviveram com Edith, da perseguição anti-semita:“χs poucas cartas que
Biberstein – deixam transparecer uma humanidade tão rica, uma inteligência tão rara que
Fazendo uma análise do índice desta conferência podemos perceber que a maior
preocupação de Edith Stein não é o papel do intelectual, mas sim o ser humano, tal como
pode ser vista em toda a sua obra, por exemplo, em Sobre o Problema da Empatia, no
qual a preocupação de Stein é a relação do indivíduo com o outro e como este é afetado
através do diálogo, tese defendida em 1916, e A Pesquisa sobre o Estado escrita em 1925
onde a preocupação de Stein é sobre como os seres humanos são afetados em seu diálogo
com o outro:
pessoa está acima de todos os valores objetivos. Toda verdade precisa ser
reconhecida. Toda verdade precisa ser reconhecida por pessoas, toda beleza
precisa ser vista e avaliada por pessoas, Nesse sentido, todos os valores objetivos
estão ai para as pessoas. Atrás de tudo o que há de valioso no mundo está a pessoa
excede. Entre as criaturas, o mais elevado é aquele que foi criado á sua imagem
definitiva La dará cuandohayahablado com La reverenda Madre, que em estos momentos está de
viaje.(STEIN ,1930,p 885-886).
297
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição. Aparecida, SP: Santuário,
2006. P. 27.
454
exatamente na personalidade, ou seja, no âmbito de nossa experiência – o ser
Edith Stein possui uma grande reflexão sobre o seu tempo, vendo o presente como
uma experiência que possibilita uma visão histórica. Através de uma análise do seu tempo
onde esta começa com um alerta sobre o papel dos intelectuais quando estes se vêem
enquanto guias.
liberdade dos indivíduos que vivem nesta sociedade. Em geral este líder não se sente
afetado pelo outro porque se considera maior que a sociedade, portanto o líder intelectual
não se deixa afetar pelo mesmo, que afeta os homens de vontade, pois não vivencia os
seus reais problemas, sendo o campo do intelectual apenas uma vivência dos problemas
no âmbito Teórico.
Sob tal perspectiva Edith Stein faz uma crítica contundente aos próprios lideres
Isso explica a influência dos lideres Socialistas que “vieram de baixo”. χquele
que, com mãos suaves e bem cuidadas, com movimentos ligeiros e flexíveis, se
revela como alguém que não conhece o trabalho corporal duro, aquele que fala ao
as duras realidades da luta diária pela vida, e de antemão suspeito. (Stein, 1930, p
11)
Para a autora o que definiria o papel de guia seriam os homens de vontade e ação,
que, apesar de eles não serem intelectuais, porque as suas inquietações não apresentam
455
um caráter apenas teórico, mas sim a sua aplicabilidade no mundo material, conseguiriam
cuja maior preocupação não é o campo material, mas sim o campo teórico: os intelectuais.
está presente através da ação da graça divina e por isso deve ser revelado ao homem, para
Stein nos esclarece que existem diferentes tipos te intelectuais, como o intelecto
agens, sendo estes aqueles que, por dom da graça, criam invenções para um maior auxílio
feitas pelo que Edith Stein denomina como espíritos sintéticos, para maior compreensão
destaque dois tipos de pensadores que trabalham de maneira diferente daqueles descritos
sensibilidade.
intelectuais aos qual este conhecimento se torna revelado são o Místico e o Profeta,
porque têm acesso as emoções, as quais aqueles que possuem a inteligência natural não
456
O papel da Comunidade na obra O Intelecto e os Intelectuais por Edith Stein
carmelita, todos estes apresentam como objetivo de maior formação e vivência o serviço
à pessoa humana, como um artesão, com suas reflexões sobre o real, devem ajudar na
construção da comunidade:
Devemos ter claro que essa atitude nos aparta da grande massa. Fora da
Basta sairmos das nossas atividades reflexivas para nos depararmos com elas,
nelas nos encontramos situados entre pessoas a quem devemos ajuda. Portanto,
não devemos nos sentir como seres estranhos que vivem em um mundo inacessível
Edith Stein percebe que o serviço ao outro é a missão dos intelectuais, mas
A escolha que Stein faz para representar a comunidade, o deixar-se afetar pelo outro,
primeira uma fabula escrita por Menênio Agripa298, chamada Os membros e do estômago,
Nas duas representações, a sociedade é vista como hierarquizada, mas cada grupo
depende da organização das outras classes; o que Stein propõe é uma analise não apenas
superficial, mas sim uma análise da essência desta sociedade, na qual cada ser humano
298
MenênioAgripa ( AgrippaMeneniusLanatus ) cônsul Romano , morto em 493 a.C.
457
possui a mesma capacidade, mas a utiliza de maneira diferente o que justifica a sua
299
As três dimensões do ser humano (corpo, alma e espírito) , que para a filósofa
microcosmo no qual ela demonstra que somos formados primeiramente por uma
dimensão física, pela qual nos permitimos ações e processos mecânicos, uma dimensão
espiritual, que forma o ser humano e que nos permite a experiência com o sagrado, esta
terceira dimensão era a sensibilidade que nos permite ser afetado pelo outro e onde se
A inteligência e a vontade permitem que sejamos a auxiliados por aquilo que nos
é revelado: o outro, a partir do momento em que somos afetados por ele e, por outro lado,
299
KUSANO, Marina Bar. A Antropologia de Edith Stein: Entre Deus e a Filosofia. 2009.
458
Para Edith Stein o intelectual, não pode ser visto como guia mais sim como um
artesão que com as suas reflexões sobre o real, deve ajudar na construção de uma
sociedade. Sendo que para tanto de reconhecer os seus limites como definiu a autora:
Devemos ter claro que essa atitude nos aparta da grande massa. Fora da
Basta sairmos das nossas atividades reflexivas para nos depararmos com elas,
nelas, nos encontramos situados entre pessoas a quem devemos ajuda. Portanto,
não devemos nos sentir como seres estranhos que vivem em um mundo inacessível
a eles (...). Vê que o intelecto humano não pode desvelar as verdades supremas e
vida, um homem simples com uma luz de origem superior pode superar o maior
Referências
Sentidos,1988.
2009.
459
MIRIBEL, Elisabeth de. Edith Stein:como ouro purificado pelo fogo. 3ª edição.
STEIN, Edith. Ser finito y ser eterno: Ensayo de una ascensión al sentido del ser. México:
Carmelo, 2003.
TERUEL, Pedro Jesús. El camino de Edith Stein. Universidad Católica de Murcia, 2006.
http://www.everyoneweb.es/WA/DataFilesholocaust/EdithSteinBriefPiusXI.pdf
460
A PESSOA ESPIRITUAL E SUA CONSCIÊNCIA MORAL
E-mail: mfilo09@gmail.com
do ser humano na consciência moral tendo como aporte teórico Viktor Frankl. O vienense
concebe a pessoa como integralidade articulada, passando a vê-la como ser bio-psico-
espiritual. Esta última dimensão, também chamada de noética, agrupa as outras duas e se
dimensão do ser humano, que se encontra em parte imersa no inconsciente, tem a tarefa
espiritual busca não o ser que é, mas um ser que ainda não é, ou que deveria ser. Ela busca
essencial no pensamento frankliano, pois a vida questiona a cada um sobre o seu sentido,
portanto, é necessária uma resposta pessoal, que se concretiza com o desvelamento dos
sentidos escondidos nas situações. O ser humano não é onisciente ao ponto de saber todas
as verdades, muito menos portador de poder para fazer tudo que lhe apraz. Por outro lado,
é capacitado pela consciência moral a se lançar singularmente na busca das verdades que
lhe conferem sentido. Por essa razão, a consciência dirige-se para algo pessoal,
apresentando um “deveria-ser” individual. Não é um ditame abarcado pela “lei geral” que
a consciência provê, mas uma prescrição da “lei individual”. É o que Frankl define como
um “instinto ético” que se contraporá à razão prática. Desta forma, viver uma vida
300
Mestrando no departamento de Ciência da Religião
461
conscienciosa é, de fato, estar intimamente ligado, ainda que inconscientemente, à
espiritualidade.
Viktor Frankl.
Abstract: This article proposes to discuss the manifestation of deep-spiritual person the
human being into moral consciousness having as the theoretical Viktor Frankl. The
Viennese sees the person as a articulated integrity, going see her as being bio-psycho-
spiritual. This last dimension, also called noetical, the other two groups together and
manifests itself through them, as in the case of the moral conscience (Gewissen). Such
dimension the human being into, which is immersed into the unconscious part, has the
task of bringing the anticipation of deep-spiritual person. In another terms, the spiritual
dimension search not the be which is, but a being who is not yet, or should that be. She
seeks the chances of achieving a genuine and ethical person. Such a manifestation is
essential in frankliano thought, for life to each one question about your meaning, therefore
a personal answer, which is concretized with the unveiling of the hidden meanings in the
situations is required. The human being is not omniscient to the point of knowing all
truths, much less the bearer of power to do everything he pleases. On the other hand, is
trained pela moral consciousness to throw the singularly search of truths that give it
meaning . For this reason, consciousness heads off to something personal, with a "should-
be" individual. It is not a dictate encompassed by the "general law" that provides
instinct" that contrasting practical reason. In this way, live a conscientious life is, in fact,
462
Keywords: moral consciousness; spiritual dimension; seep-spiritual person; Viktor
Frankl.
Introdução
moral, baseia-se na obra A presença ignorada de Deus de Viktor Frankl. Este nasceu em
Califórnia, Harvard, Stanford, Dallas e Pittsburgh. Filho de uma família judia, em 1942,
foi deportado, com sua esposa e pais para os campos de concentração. Em 1944, Frankl
vai para Auschwitz e somente em 1945 é libertado do holocausto pelo exército norte-
americano, porém sua esposa, pais e irmãos morreram nos campos de concentração.
estimula a uma vivência própria de si. Noutro termos, seu empenho filosófico se
caracteriza, pelo esforço de compilar e transmitir uma visão mais digna e integral do ser
humano com todas as suas dimensões. O ser humano passa a ser concebido como pessoa
que transcende o nível psicofísico e puramente imanente e alça voo para a dimensão
301
A logoterapia ou terceira via de psicoterapia de Viena busca uma análise existencial, e por sua vez, uma
abordagem antropológica centrada no princípio motivacional da vontade de sentido. É um método
te ap uti oàespe ífi oàpa aàoàt ata e toàdoà azioàe iste ial àeàdasàneuroses noogênicas.
463
espiritual, encontrando na sua dimensão existencial, que é profunda e autêntica, o seu
elementar do ser humano pelo sentido da vida. Sentido este, que tem caráter motivacional
para lançar o ser humano em uma busca que o torne singular. Para Frankl, os sentidos
estão presentes nas situações concretas e cotidianas da vida. O ser humano está colocado
diante delas e deve decidir pessoalmente sobre eles. Tal decisão implica num modo
outros mandam escolher - autoritarismo, mas sim uma escolha de caráter singular, pois o
sentido é único e exclusivo a cada pessoa, sendo ela capaz de desvelar o sentido oculto
em cada situação, ou seja, suas características muito pessoais, em maior ou menor grau,
revelam grande capacidade de perscrutar sentido profundo nas mais variadas situações.
espiritual. Tais realidades presentes no ser humano podem ser compreendidas em esfera
primazia da dimensão espiritual. Para desvelar os sentidos ocultos nas situações, o ser
humano deve estar em sintonia com sua dimensão espiritual. Esta dimensão de
espiritual não é o lugar de um ser que é, mas de um ser que não é, ou seja, é o lugar de
464
Ao conceber o conceito de inconsciente espiritual, Viktor Frankl está superando
uma tradição vigente no século XX, advinda de um avanço científico que preconiza a
pessoa dentro dos moldes positivistas e materialistas, sendo esta concebida impulsionada
e determinada pelo seu aparelho psíquico. Tal visão objetiva, tira da pessoa seus aspectos
mente, cuja realidade inconsciente é pertencente aos instintos e repressões, sendo a pessoa
inconsciente não é apenas o lugar de uma profundeza instintiva, mas de uma real
ser humano a sua singularidade e autonomia de decidir sobre si e sobre as coisas, “é daí
Ser responsável é responder à pergunta que a vida lhe faz sobre a existência e que
carece ser com sentido. O ser humano responde, pois não é ele que inquire sobre o sentido
da vida, mas é o próprio interrogado e quem deve responder. Resposta esta que não tem
característica retórica, mas de concretude. O ser humano através dos atos responde sobre
possibilidades, mas único a cada pessoa, apenas ela própria pode assumir uma atitude
302
Entendido como condição de possibilidade, fundamento de possibilitação.
465
perante algo ou alguém. As respostas são as atitudes dadas, isto é, a responsabilidade
tem a si, ele é si mesmo. O psicofísico é parte de sua constituição, mas não de sua
determinação; o que define o ser humano como pessoa é uma vivência calcada na
isoladamente não são capazes de auxiliar na escolha das atitudes a serem assumidas, pois
possuem relação com o fato e não com a existência propriamente. Isso faz com que se
possa concluir que as atitudes responsáveis brotam do espiritual, pois a verdadeira pessoa,
a profunda-espiritual, não é apenas a que decide, mas ser pessoa significa também
Como tal, porém, está sempre centrado, centrado em torno do meio, em torno de
seu próprio centro. O que, porém, se encontra neste centro? O que preenche este
Sendo, porém, a pessoa aquela da qual se originam os atos espirituais, ela também
p. 20).
Tal centro por ser uma realidade de possibilidades e que ainda não se concretizou
é uma ‘realidade de execução’, pois só pode ser adimplida como resposta às necessidades
da vida, sendo também irracional por sua característica inconsciente e pré-lógica, pois só
466
posteriormente a intendemos. Tal realidade de execução manifesta-se através da
existencial. Realidades que sempre estiveram contidas no ser humano, mas que
O ser humano tem a tarefa de desvelar o sentido presente nas situações, pois a
Sentido só precisa, mas também pode ser encontrado, e na busca pelo mesmo é a
Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o sentido único
consciência moral304. Não é a consideração de duas consciências, mas uma única com
é consciente.
303
Bewusstsein – E àale oàsig ifi aà o he i e toàdoà ueàseàpassaàe à s .à Notaàdeà odap àp ese teà
em Frankl, 1997, p.23).
304
Gewissen – Em alemão sig ifi aàaà fa uldadeàdeàesta ele e àjulga e tosàdosàatosà o aisà ealizados .à
(Nota de rodapé presente em Frankl, 1997, p.23).
467
existência humana ocorrem sempre de maneira irrefletida e, portanto inconsciente.
existencial, a moral, lhe é antecipado um ser que deveria ser, ou seja, a possibilidade de
concretude deste ser moral. Aqui é necessário realçar a distinção entre pessoa espiritual e
contido neste núcleo pessoal, possibilitando uma vivencia espiritual pela pessoa.
A consciência moral
consciência moral (Gewessin), ao contrário, não um ser que é, mas ser que ainda
468
não é, ou seja, um ser que deveria ser (Sein-sollendes). Este ser que deveria ser
não é, portanto, real, mas algo que ainda precisa tornar-se real; não é real, mas
indica à uma necessidade de realização para que a vida seja vivida com sentido, é
pois o ser humano é incondicionalmente um ser que decide e cuja força de decisão
acontecer se primeiramente não for antecipado pelo espiritual, que é inconsciente por
conter um projeto, a possibilidade do existir, que pode se tornar real pela atitude assumida,
mas que anteriormente lhe é antecipada pela consciência moral. Tal antecipação no
A autêntica consciência, a que Frankl apresenta, não é a que se herda dos pais, da
469
É por estar imersa no espiritual que tal consciência apresenta-se como a voz da
profundeza que diz à singularidade. Como num ato de visão, a consciência percebe na
realidade em que a pessoa está inserida o sentido existencial que necessita ser desvelado
posteriormente racionalizável.
percebe um ser que não é, mas que poderia ser onde com isso se descobre valores na
pessoa que se ama. “Somente o amor, somente ele, é capaz de ver a pessoa na sua
singularidade, como indivíduo absoluto que é. Neste sentido, o amor possui importante
percebido pela consciência moral como um ser possível, o qual anseia sua
considerada por Frankl como irracional, por não ser completamente racionalizável em sua
compreensão do ser e pré-moral por ser anterior a qualquer moral explícita, sendo a
consciência moral, portanto, inescrutável e apenas exequível. Destarte, a moral não é algo
externo ao ser humano, mas intrínseco a ele, sendo a consciência moral responsável por
intuir este modo de ser, estando ela inserida nesta realidade inconsciente.
A vivência espiritual
470
A consciência Gewessin conduz o ser humano a uma vivência existencialmente
moral. Tal vivência surge por meio da antecipação espiritual da pessoa profunda-
responsável escolha. O ser humano é livre para trabalhar a favor ou contra suas intuições
compreensão pré-moral dos valores humanos, anterior à conduta e ao ato moral que será
experienciado.
A moral não é uma exigência externa que ressoa sobre o homem e o constitui
como um ser moral, mas exatamente o oposto: uma exigência proveniente de sua
interioridade espiritual orientada para fora, para além de sua existência, para uma
espiritual, que segundo Frankl, levando-a as últimas consequências, culminará com o que
ele define como transcendência da consciência. Esta não tem uma voz que diz na
Segundo Frankl, a voz da transcendência que é a consciência moral, não provém do ser
humano, pois a consciência como um fato psicológico imanente remete por si mesma a
consciência moral se dirige, mas é possível afirmar que é de caráter pessoal levando cada
471
É justamente tarefa da consciência revelar ao ser humano “aquele único
pode ser abarcado por nenhuma ‘lei geral’ (Frankl, 1997, p. 27).
qual Frankl (1992) diz ter origem no inconsciente. A moral está entretecida a uma
profundeza espiritual e se expressa como resposta – atitude diante das situações. É uma
moral que não deve ser entendida no molde pragmático kantiano, pois como já dito, não
uma lei universal que rege em caráter genérico e esquemático como nos animais, por meio
do seu instinto vital, o ser humano é guiado por um instinto ético, cuja eficácia deste é
garantida por dirigir o ser humano na singularidade que lhe é própria e concreta.
Assim uma vida a partir da consciência é sempre uma vida absolutamente pessoal
O ser humano para Frankl não é um ser condicionado pela cultura, sociedade ou
pelo seu aparelho psíquico, ao contrário, é um ser incondicionado e por isso é um ser
ético, pois suas atitudes não estão pautadas em obrigações externas, mas em uma
necessidade que lhe é interna. A transcendência faz parte da constituição do ser pessoa e
desta forma o ser humano está sempre se orientando para qualquer coisa diversa dele
próprio, seja um sentido que se possa realizar, seja outro ser humano que venha a
472
encontrar e amar, seja ainda uma causa à qual se consagre ou, finalmente, um Totalmente
sendo esta, não um fim em si mesmo, mas orientada à vivência alteritária, pois “o homem
Conclusão
fala ao ser humano em vista de realizar uma vivência singular no mundo. Na sua função
forma, uma vivência moral é uma vivência espiritual, não um impulso determinista da
A dimensão distintiva do ser humano aponta para uma direção que ultrapassa o
existir pessoal em vista de uma alteridade. Não sendo um ditame genérico o que a
consciência provê, mas uma prescrição da lei individual. Logo, a moral não é algo externo
ao ser humano, mas intrínseco a ele, mais ainda, é uma capacidade que lhe possibilita
tornar-se autêntico.
existência. Ao aceitar as intuições, o ser humano pode elaborar com sua consciência um
473
diálogo, podendo atribuir a este diálogo uma característica de experiência religiosa. Não
procuramos desenvolver este ponto nesta comunicação, mas fazemos questão de apontar
ser humano perceber, aceitar e viver essa dimensão, como uma manifestação espontânea,
que faz no amor ou na dor, a consciência encontrar novas formas de ser, criar e conviver
Referências
Zahar.
Petrópolis: Vozes.
Idéias e Letras.
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
65642001000200006&lng=pt&nrm=iso>.
474
MEIRELES, M. V. C. (2011) A existência autêntica: uma busca na dimensão espiritual
PETER, R. (2005) Viktor Frankl: A antropologia como terapia. 2. ed. São Paulo: Paulus.
475
EMOÇÃO EM CONTEXTO DA PSICOTERAPIA FENOMENOLÓGICA
EXISTENCIAL
E-mail: joseto.ossa@gmail.com
Resumo: Este estudo teve como objetivo fazer uma reflexão sobre as emoções em
contexto psicoterapêutico. Começando por uma breve compreensão histórica, para logo
passar ao entendimento das emoções nas ciências naturais e diferentes modelos teóricos
forma de entender como funcionam as emoções nos distintos modelos científicos. A partir
daqui, foi trabalhado com maior minúcia a visão fenomenológica existencial das emoções
específica com o mundo, influenciando a nossa forma de estar com nos próprios e com
determinado momento. Além disso, foi explorada a ideia da intencionalidade dos atos da
consciência, entendendo-se como sendo o fato de que cada emoção possui um significado
CONTEXT
476
Abstract:This study aimed to make a reflection on the emotions in psychotherapeutic
context. It starts with a brief historical understanding, and then move to the understanding
understanding. At this point we found strong similarities in the way of how emotions are
understood in different models. From here, it was studied with more detail´s the
influencing our way of being with ourselves and others, the choices we make and the
bodily sensations that we feel at any time. Moreover, it explored the idea of intentionality
of acts of consciousness, understood as being the fact that every emotion has a meaning
Introdução
psicologia, tais como a psicologia cognitiva, com o seu principal autor sendo Greenberg
bastante bibliografia neste tema. Nas neurociências podemos destacar Damásio que vem
há alguns anos. Devido a esta diversidade de abordagens que estudam a mesma temática,
recentemente têm surgido discussões para definir a natureza e o papel das emoções, a
da emoção e como as emoções diferem de outros tipos de estados mentais, tais como
estado de humor e sentimento. Neste sentido, o objetivo deste estudo será apresentar
477
diferentes autores que têm investido na compreensão das emoções nos seus respetivos
modelos e abordagens teóricas, para assim chegar a uma visão global da temática.
Por outra parte, em psicoterapias a exploração das emoções foi inicialmente exposta
por Frank (1963) no texto sobre a persuasão e cura. Desde então, ficou claro para muitos
teórica, como sendo fulcral para a mudança terapêutica em várias modelos terapêuticos
(Greenberg, 2003, p.1). Vai ser no contexto psicoterapêutico, e com base no modelo
fenomenológico existencial, que será explorado de forma mais exaustiva a função das
(2008, p.1) diz que hoje em dia assume-se que as experiências de estados corporais são
são estados intencionais que não têm o corpo como sendo seu objeto primário. Desta
forma, este estudo procurará explicar os temas até agora apresentados, tentando ser o mais
claro e conciso, para assim levantar dúvidas e discussões sobre esta rica e pertinente
Na metáfora expressada no master and slave da teoria aristotélica, ele refere que as
controlo e os impulsos perigosos devem ser suprimidos. Esta noção de emoções perigosas
478
tem tido uma influência resistente na civilização ocidental (Strasser, 2005, p.23). Durante
a idade média, a filosofia cristã estava preocupada com a noção de pecado causada pelas
emoções. David Hume foi um dos primeiros filósofos a confrontar o lugar inferior das
emoções, ao dizer “a razão está longe de ser escrava da paixão”, em última instância, até
ele voltou ao modelo Aristotélico do master and slave (Solomon, 1993, p.3). Mais tarde,
surge o nascimento da ciência afetiva com Charles Darwin (1998) no século XIX, na obra
intitulada The Expression of Emotions in Man and Animals, sendo a sua primeira edição
científica da época. Apenas no século XX as emoções têm sido consideradas como uma
vivência holística da existência humana. Mas antes, William James em 1884 apresenta
um entendimento bastante diferente do que era comum para a sua época. Para Damásio
Deixava de haver um estado mental chamado emoção que dava origem aos efeitos do
corpo. Agora havia, isso sim, a perceção de um estímulo que causava certos efeitos no
Para Greenberg (2008, p.49), que é psicólogo cognitivo, as emoções são um recurso
pessoas sobre o significado dos eventos para o seu bem-estar, e também organiza as
pessoas para uma rápida ação adaptada a situação. Segundo Fitzpatrick e Stalikas (2008,
p.158) existe uma falta de curiosidade sobre as emoções positivas em psicoterapias que
uma limpa identificação com a moral de deus, dos seus desejos e saúde. Devido a isto
Fitzpatrick e Stalikas (2008, p.158) argumentam que em razão deste contexto histórico
vê-se refletido como está influenciada a experimentação de emoções positiva nas teorias
479
clássicas da psicologia humanista. Neste trabalho não será feita a diferenciação entre
Diferentes perspetivas
emoções sendo explicado por diferentes modelos científicos. Será de total pertinência
identificar no que difere o entendimento das emoções, como também, as semelhanças que
possam existir entre as diferentes explicações que as diversas perspetivas encontram para
composta por diferentes dimensões (Mennin e Farach, 2007, Sloan e Kring, 2007, Suveg,
Adrian, 2007, citado em Burum e Goldfried, 2007, p.407). Uma das elaborações mais
citado em Burum e Goldfried, 2007, p.407), sendo uma estrutura holística que consiste
área de neurobiologia têm demonstrado que é possível para o nosso cérebro, registar o
significado emocional de um estímulo antes que ele seja totalmente processado pelo
sistema percetivo. Ele sugere que existem dois tipos de caminhos para a produção de
emoções. Aquilo que ele chamou de low road, que é por exemplo, quando a amígdala
outro tipo de manifestação da emoção é o high road, que é quando a mesma informação
é transportada desde o tálamo até o neocórtex. LeDoux´s notou que a perceção emocional
480
precognitiva, que é processada pela low road, fundamentalmente é adaptativa, já que ela
permite que a pessoa responda rapidamente a um acontecimento antes que outros tipos de
Tranel e Cacioppo (2007, p.123) ficou em evidência que, quando o sujeito era exposto a
fotos, contexto ou estados de perceção com conteúdo emocional existia uma ativação da
amígdala, sendo esta medida pelo método funcional de imagens cerebrais. Nos resultados,
concluem que a amígdala é acionada durante uma emoção, mas não é necessária para a
da consciência. Magnativa (2006, p.517) refere que a maioria das doenças mentais
inevitavelmente inclui respostas emocionais mal adaptadas, que são em parte o resultado
totalmente metabolizadas. As emoções são a força central para manter padrões antigos
(Magnativa, 2006, p.520). Por sua vez, Barish (2009, p.8) refere que as emoções não são
imaginação, surgimento de memórias e preparação para a ação. Ainda diz que, toda
emoção serve uma função adaptativa desenvolvida através da evolução humana. Desta
influenciam a reflexão e a ação. Em seu estudo, Leahy (2007, p.353) descreve como as
481
teorias de aprendizagem, modelos de processamento emocional, tratamentos expostos e
cognição numa terapia de esquema emocional. Leahy (2007, p.356) conclui o estudo
comportamental. No entanto, ele diz que, a cognição pode ter um papel essencial na ajuda
forma, existe um veredicto nas diferentes formas de trabalhar as emoções neste modelo
psicoterapêutico que é a melhoria do cliente, mas que se chega a este destino através de
diferentes significados.
funcionamento, podendo afetar a cognição. Desta forma Greenberg explica que existem
as emoções primárias, que são entendidas como as emoções mais fundamentais, reações
imediatas para uma situação. Posteriormente surgem as emoções secundárias, que são
respostas emocionais que a pessoa tem sobre a sua própria resposta emocional sobre o
estímulo, em vez de ser uma resposta apenas à própria situação. Greenberg e Pascuale-
Leone (2006, p.612) dizem que para trabalhar com as emoções primeiramente tem que se
emoções que são primárias e secundárias. As primárias têm de ser acedidas de forma
482
cria-se um novo significado. As emoções secundárias precisam de ser ultrapassadas para
Para Gross e Rottenberg (2007, p.324) emoção é um caso especial de afeto, sendo
relativamente breve, mas mantendo a forma referencial do afeto. Isto é, a emoção surge
quando um evento externo ou interno sinaliza ao indivíduo, que algo importante pode
estar prestes a acontecer. Para Gross e Rottenberg (2007, p.324) a forma como as
começando a ser entendido, mas esta ideia tem importantes implicações para as pesquisas
sua experiência com os seus clientes tem-lhe demonstrado que as emoções expressam-se
surpreso, pré-reflexivo, como uma expressão primária. Isto deveria ser seguido por uma
emoção. A primeira destas experiências emocionais Strasser vai chama-la como pré-
terminologia derivando a Jean-Paul Sartre (1972, p.79), quem define as emoções pelo seu
estado pré-reflexivo. Sartre acredita que as emoções pré-reflexivas só podem ser ditas
emoções como tal, quando elas acontecem no momento imediato em que acontecem. Em
sequência disto, logo que contemplamos e avaliamos este sentimento interno, ele deixa
de ser uma emoção. Mas Sartre (1972, p.96) vai além disso, já que diz que as emoções
483
transformam o mundo num lugar mágico. O exemplo que ele descreve é de uma situação
um tipo de feitiço sobre a minha pessoa que vai perder o controlo e acabar por desmaiar.
através da mágica num lugar seguro. Para Strasser (2005, p.25) este argumento trabalha
bem para as emoções negativas como o medo, a raiva, a repugnai, entre outros, mas
estado pré-reflexivo espontâneo. Por exemplo, a alegria iria aparecer para conotar um
das emoções no cérebro, ou como o modelo cognitivo fala das emoções primárias e
fenómeno, revela duas fases ou etapas. Assim sendo, a identificação destas etapas, será
Durante a leitura desta temática muitas vezes fica pouco claro quando se está falando
das emoções ou dos sentimentos, por está razão vou procurar desenvolver esta
diferenciação. Assim sendo, para Damásio (2010, p.142) as emoções são programas
484
ações são completadas por um programa cognitivo que inclui certos conceitos e modos
de cognição, mas o mundo das emoções é, sobretudo, um mundo de ações levadas a cabo
no nosso corpo, desde as expressões faciais e posições do corpo até às mudanças nas
vísceras e meio interno. Os sentimentos da emoção, por outro lado, são perceções
Greenberg e Paivio (2003, p.7) referem que o afeto é uma resposta biológica não
sentimentos são produtos conscientes deste processo afetivo não consciente. Para o
sentimento eles dizem que envolvem uma consciencialização das sensações básicas de
afetos. Isto envolve experiências de sensações corporais, como por exemplo, sentir-se
envolvem significado, como sentir-se decaído ou desanimado, sentir que alguma coisa
não está bem, ou sentir que alguém não se interessa por nós, eles chamam de sentimentos
complexos, envolvendo afetos para a forma como os vemos. Para as emoções eles
explicam que são experiências que surgem quando as tendências de ação e estados de
sentimentos são unidos com situações que evocam o self. As emoções são experiências
emocionais são sobretudo perceções daquilo que o nosso corpo faz durante a emoção, a
parte das perceções do estado da nossa mente durante o mesmo período de tempo. Em
processo mental, também existem emoções, mas não lhes seguem, necessariamente,
485
estados de sentimento emocional. As emoções funcionam quando as imagens processadas
no cérebro colocam em ação uma série de regiões incitadoras de emoções, como, por
pelo menos no caso dos seres humanos, é também o de virem à mente certas ideias e
as ações, as ideias, o estilo com que as ideias fluem – lenta ou rápida, fixa numa imagem,
ou trocando rapidamente uma imagem por outra (Damásio, 2010, p.144). Fica claro que
não é possível, do todo, separarmos emoções de sentimentos, nem seria este o propósito
deste estudo, mas pelo contrário, será nesta estreita relação entre estes dois fenómenos
contexto psicoterapêutico. Assim, Strasser (2005, p.24) refere que o papel das emoções
em contexto terapêutico não pode ser desvalorizado. Toda emoção está conectada com o
que se dá, que ilumina o nosso worldview. Assim, cada emoção é uma manifestação de
um aspeto do nosso worldview. De facto, pode-se dizer que as emoções são a melhor
aspetos do seu worldview e com a ambivalência que os trouxe à terapia num primeiro
lugar. Greenberg (2003, p.4) diz que o aspeto crucial do desenvolvimento da terapia é
um entendimento de quais emoções nos indicam qual a forma que estamos a conduzir as
486
nossas vidas. Greenberg e Paivio (2003, p.4) sugerem que é somente através do acesso às
Em terapia alguns tipos de emoções são vistos como curativos em si mesmo. As respostas
nos organizem para a ação e constroem novas estruturas adaptativas, elas também estão
normal. Ao sustentar uma sintonia empática com as emoções dos clientes, como das suas
experiências, converte-se numa tarefa terapêutica crucial para ajudar as pessoas a tornar-
Segundo Burum e Goldfried (2007, p.408) determinar a estrutura exata das emoções
é essencial não apenas para interpretar medidas contraditórias, mas também para aceder
à consciencialização emocional que, como vai ser discutido, é tão central para muitos
indivíduos não são capazes de refletir e responder ativamente os seus estados emotivos,
como medimos e definimos as emoções depende do nosso propósito. Por outro lado,
falhar no reconhecimento das emoções não só vai minar o seu potencial produtivo, mas
487
limitações na consciencialização emocional pode levar a patologia. O estudo de Sloan e
Kring (2007, p.318) demonstra que uma melhor consciencialização das emoções prediz
melhores resultados no tratamento, mas por outra parte, uma menor consciencialização
temas emocionais que estão nas entrelinhas, como também à assimilação de nova
psicoterapêutico. Para Strasser (2005, p.8), a consciência humana está sempre direcionada
para o mundo que lhe dá significado. Isto quer dizer, que se eu tomo consciência sobre a
raiva que estou sentindo, então a minha atenção estará direcionado para alguma coisa ou
alguém. Isto também quer dizer que estou atribuindo significado à esta coisa ou alguém
(Husserl, 1975, p.10). Merleau-Ponty propõe que a fenomenologia é uma filosofia, onde
todo o seu esforço está em descobrir o contacto naïve com o mundo (1962, p.226). Isto é
alcançado pela tentativa de colocar a um lado, ou por fazer aquilo que é chamado de
investigador está a dar um passo atrás, para observar o fenómeno tal como ele é.
488
fenomenológico de investigação é mais efetivo para examinar os fenómenos humanos do
que o método científico. Então, fazer a quebra fenomenológica entende-se como sendo a
suspensão das nossas expectativas que nos prejudicam em focar-nos na perceção imediata
são a sensação de mudança corporal, que são ativadas durante a perceção e contribuem
emoções não são percebidas como sendo separadas da cognição, mas como constituidoras
dela. Tendo o papel de estruturar o mundo experiencial, que forma o plano de fundo para
as nossas diferentes escolhas. Desta forma, o ponto não é que possamos ou devamos ir
simplesmente com as nossas emoções e escolher em que acreditar ou como agir apesar
das evidências. Os sentimentos relevantes aparecem somente em relação com aquilo que
entre aquilo que acreditamos e as nossas ações, que já estão intelectualmente julgadas,
para aquilo que já estamos predispostos a fazer. Portanto as emoções não são a única base
para as escolhas. Muitas das sensações que regulam as crenças e as atividades não são
Abertura ao worldview
Para Strasser (2005, p.10) criamos a nossa construção de self para existir num
mundo cheio de facticidades e limitações. Isto manifesta-se de infinitas formas, como nas
nossas relações interpessoais, nas nossas escolhas, nas aspirações e emoções. A soma de
489
todas estas facticidades expressa a nossa construção de self. A nossa autoestima depende
facticidades universais, sendo o facto de estarmos vivos, que nascemos e que a nossa
existência é finita, estas condições da existência por si só impõe a estrutura do ser. Esta
ambiente onde os clientes possam explorar e revelar o seu worldview. Os clientes serão
são revelações estrondosas, são meramente revelações sobre algo que eles já sabiam. Este
reconhecimento, pode produzir insights que, pela sua vez, produzem ainda mais insights,
clientes e para ser terapeutas em vez de estar a fazer terapia. É nesse processo que as
emoções jogam um papel vital, já que as emoções estão presentes em todas as nossas
ações e elas divulgam o worldview do cliente. Estes aspetos emocionais causam, nos
A relação terapêutica
490
É somente através do desenvolvimento de uma relação bem estabelecida entre o
facilitar a vontade de processar emoções pelo cliente. Várias pesquisas têm indicado que
a aliança terapêutica está relacionada com resultados positivos no cliente (Stringer, J.,
Levitt, H., Berman, J., & Mathews S., 2010, p.496) e crucial para um processamento
de confiança pode reduzir a resistência do cliente com o terapeuta e com as suas próprias
em Bennett, 2009, p.245) relacionar-se, significa que meus sentimentos não podem ser
simplesmente explicados através de mim, mas através da minha relação com outros onde
o contexto da nossa interação também é significativo. Isto quer dizer entrar num aspeto
que os clientes são encorajados a encontrar sua unicidade na forma de ser, e também,
existe uma forte ênfase na construção duma relação de igual para igual entre o terapeuta
e o cliente. Mas o terapeuta tem que estar consciente da sua abertura ao outro, sendo isto
apreensão da presença do outro tal como ele se manifesta diante de nós. Assim, é
relação terapêutica é um encontro, encontro enquanto tal: uma relação existencial cujo
491
significado essencial é o estar-com. Antes de mais, a relação terapeuta-paciente é um
encontro entre uma existência e outra existência implicando: a presença (de estar-por-si),
sua esfera vital) e, ainda, o laço emocional entre um Eu e um Tu que criam um Nós numa
encontro terapêutico na medida em que acontece uma relação de ajuda que tem um devir
no encontro consigo mesmo, com o seu projeto. Desta forma pode-se conjugar com o que
Spinelli (2006a, p.180) diz sobre o modelo fenomenológico existencial, sendo que este
argumentado que tudo o que somos, ou podemos ser, conhecimento de tudo o que é
Aqui o propósito é, não apenas entrar no mundo do cliente através das suas
fundamental nesta entrada ao mundo do cliente, já que, como diz Strasser (2005, p.31) as
experienciamos e reagimos a elas. Spinelli (2006b, p.5) explica que esta exploração não
tenta alterar ou prevenir a decisão do cliente, ou impor a moral do terapeuta sobre ele, ou
para expor os pontos de vista atuais destes outros do mundo do cliente, em vez disso, este
492
enfoque sobre as dimensões do mundo focalizado (world-focused dimensions) servem
para implicar a sua decisão, as suas novas escolhas de forma de ser, de tal maneira a que
inclua as suas experiências vivenciais do mundo e os outros que existem nela, com toda
fundo da sua mente e muitas vezes emergem na terapia. Por exemplo com a raiva, na
maioria das vezes não estamos conscientes da raiva em si. Apenas sentimo-nos
contrariados com algo ou alguém, mas no momento em que apreciamos e avaliamos estas
emoções, conseguimos falar sobre elas e explorar como foi a experiência (Strasser, 2005,
p.24).
regular com clientes que pedem para ser ajudados com as suas explosões de raiva, culpa
ou emoções semelhantes a estas. O que estes clientes aparentemente estão pedindo é que
capacidade não apenas de avalia-las, mas também de parar de rumina-las uma vez que
estejamos cientes dela. Em outras palavras, as emoções reflexivas são emoções que
dizer que, enquanto os clientes ficam cientes das suas emoções elas já estão num modo
493
reflexivo, claramente não podemos explorar algo do qual não sejamos cientes de. O
emoções reflexivas. O que realmente interessa é como levamos os clientes, da forma mais
consciencialização das emoções pré-reflexivas através das quais eles possam explorar o
seu worldview.
Strasser (2005, p.28) nos diz que as emoções estão sempre presentes em todas as
engajadas na consciência humana. Desde o ponto de vista teórico, para Sartre (1972,
exemplo, Carroll Izard (1991, p.80) que é um cientista da biologia evolutiva, chegou a
conclusão desde um ponto de vista teórico diferente. A sua tese é que as emoções estão
constantemente connosco, sendo que elas jogam um papel muito significativo em como
alguém. Segundo Strasser (2005, p.30) quando o cliente expressa emoção, ela está sempre
direcionada para alguma coisa. Além disso, as emoções sempre revelam a autoestima do
as suas emoções, vão poder ajudar os clientes a revelar alguns aspetos do seu worldview
e desafia-los, desta forma podendo trabalhar em conjunto aquilo que surgir, estando com
494
a pessoa neste momento que muitas vezes suscita sofrimento devido a experiências do
passado.
na nossa consciência e que elas sempre têm algum significado. Sartre agarrou a última
noção de Husserl, quem avançou com a noção de intencionalidade, referindo que a nossa
desenvolveu a doutrina em que as emoções, como todo ato mental, estão direcionadas
que significa diretamente em frente. Husserl (1997, p. 217) diz que a consciência é sempre
Não podemos separar as emoções dos sentimentos corporais que elas carregam,
para Ratcliffe (2008, p.36) os sentimentos corporais não são nem estados isolados de
intencionalidade nem estados que podem ter somente o corpo ou uma parte dele como
precisa ser, primeiro e principalmente, uma experiência de alguma parte do corpo onde
tenha acontecido. O sentimento pode ser a forma como algo diferente do corpo é
Ratcliffe (2008, p.37) explica que os sentimentos não são experiências somente do
corpo ou somente da relação com o mundo. Em vez disso, os dois aspetos da experiência
experienciar o self, o mundo e também a relação self-mundo, sendo que os três aspetos
495
são inseparáveis. Eles são orientações existenciais, pensamento e atividade. Desta forma
encontramos no mundo, também é utilizado para descrever como é estar em uma dada
situação. Mas Ratcliffe (2008, p.38) sugere que certas formas de usar o termo
para um objeto ou situação específica, mas são no fundo, orientações através das quais as
experiências como um todo são estruturadas. Assim, elas são sentimentos corporais.
sustentar sobre as coisas funcionando como um contexto com pressupostos para todas as
sendo os sentimentos existenciais. Heidegger (1984, p.151) refere que aquilo que
apenas diz que o ser-aí é em cada caso, sempre num estado de espírito.
Discussão
Não existimos nem estamos em quanto seres vivos sem emoções, é através e com
elas que nos relacionamos com todo o nosso mundo. Ter consciência sobre o significado
não apenas no contexto psicoterapêutico, mas para ser capazes de tomar as melhores
decisões sobre determinados momentos das nossas vidas. Assim, o papel das emoções é
496
entregar e divulgar muitos aspetos sobre o sistema de valores e comportamentos de um
estado emocional, divulgamo-nos através das emoções. Warnock (1962, p.25) refere-se
sobre aquilo que Heidegger escreveu “para as emoções… podemos redescobrir o todo da
emoção um ato dela, estamos constantemente a revelar-nos, sendo que esta forma
determinada opções de vida. Para Heidegger (2001), o sentido que desvela o através do
desvela no seu horizonte histórico. Isto, porque o que caracteriza o modelo de ser do
homem, a existência, é precisamente o fator de que seu sentido está sempre em jogo,
somente podendo ser compreendido a partir das suas próprias vivências ligadas ao seu
contexto histórico-cultural.
existencial, podemos sugerir que, o fenómeno da emoção quando surge durante uma
a exploração destas emoções, através da descrição das sensações corporais e das vivências
497
respeito e cuidado sobre a compreensão do outro, acompanhando a pessoa nessa
experiência, estando junto dela em tudo o que possa surgir, tentando clarear o caminho
em vez de obstaculiza-lo com conteúdos que não respeitem àquela pessoa. Este momento
worldview do cliente. Assim, abre-se um caminho de reflexão sobre estes fenómenos que
Referências
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501
O REBAIXAMENTO COMO FATOR DE PRESTÍGIO SOCIAL NO
E-mail: renatamunhoz2000@yahoo.com.br
Paulo, no período de 1765 a 1775, por meio de seu discurso oficial. São analisados
sujeito em seu meio social. A análise do discurso veiculado no corpus será embasada na
conceberem as marcas textuais que exemplificam a ideologia coeva, bem como as esferas
repercussão atual.
Avaliatividade.
502
THE DOWNGRADE AS A SOCIAL PRESTIGE FACTOR IN THE
Abstract: This paper is based on the thesis, provisionally called "The Appraisal speech
in the official correspondence from the government of the Morgado of Mateus". It intends
to analyse the construction and maintenance of the ethos of the Morgado of Mateus, who
was the governor and captain general of São Paulo, in the period of 1765-1775. Textual
fragments from the public letters sent to the Conde of Oeiras (better known as the Marquis
of Pombal) in Portugal, the main ruler of the captaincy of São Paulo. Among several
features of the discourse of the period, the aspect of the "allegiance" will be studied. The
author used to reduce himself in order to extol his reader. This practice was used in the
monarchical system and, on the other hand, to build their ethos. The discourse analysis of
the letters will be based on the Appraisal System Theory, by Martin and White (2005), in
order to better understand the coeval ideology as well as the social prestige. Therefore,
this paper intends to check how the intersubjectivity legitimized the monarchical power
Appraisal.
Introdução
503
pelo Morgado de Mateus (Dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão) em seu período
seu discurso para exercer uma influência em seu interlocutor. Em análise do discurso,
esse termo emprestado da retórica antiga foi retomado por Kerbrat-Orecchioni (1980)
período contenha marcas pessoais do escriba e seja mantida de forma genuína pela edição
trechos citados.
504
A título de ilustração, será apresentada a carta III como modelo em sua imagem fac-
texto, uma vez que apresenta, por exemplo, o desenvolvimento das abreviaturas.
com base na estrutura formal da espécie textual. Apesar disso, o aspecto da submissão
As cartas
catalogados em Arruda (2000), para comporem a análise deste estudo. Todos são datados
dos dez anos que compõem o período de governo do Morgado de Mateus (de 1765 a
1775), têm os mesmos interlocutores e a mesma data tópica, a capitania de São Paulo,
com exceção da carta I, produzida na Vila de Santos, onde o governador iniciou sua
estadia no Brasil, antes de tomar posse efetivamente em São Paulo. As quatro cartas foram
Melo.
Convém retomar que a carta é uma espécie documental não-diplomática, uma vez
que não conta com uma fórmula padronizada de redação. No entanto, pode ser estudada
505
como um diploma, devido aos padrões formais do período e ao objetivo que atende de
atualizada, e se dará entre aspas simples ‘’, seguida da menção do número da carta de
onde o trecho foi retirado. Por exemplo (C. I), quando se tratar da carta I. Por não serem
I. Datada de 28 de maio de 1765, informa ao rei Dom José I das primeiras ideias do
que tem sido alvo por meio de cartazes anônimos, expostos à porta das igrejas, nos quais
vila de Paranaguá, fato a que se referiu em carta de 16 de janeiro de 1767. Expõe a forma
honesta como executa sempre as reais ordens, e pede que lhe faça justiça no caso dos seus
inimigos conseguirem que chegue ao Reino as calúnias com que pretendem depô-lo.
IV. Datada de 18 de junho de 1774, afirma a sua amizade e informa ter entregue ao
Bispo de São Paulo, Dom Frei Manuel da Ressurreição, o colégio onde estava morando.
Pede que lhe envie o que achar mais justo sobre as questões de seu governo, a fim de
506
Metodologia de análise
Parte-se do conceito de que “uma teoria deve ser geral, no sentido em que ela deve
pôr à nossa disposição um instrumental que nos permita reconhecer não apenas um dado
Essa teoria define que a valoração pela linguagem cumpre três funções principais:
que o cerca. Essa função é subdividida em afeto (que expressa estados emocionais), em
A partir das funções elencadas, a análise será construída com base no escopo das
três questões básicas postuladas pela própria Teoria da χvaliatividade: “a) como os
507
autores constroem sua identidade para si mesmos; b) como os autores posicionam-se
diante dos potenciais destinatários; c) como os autores constroem a audiência ideal para
discurso político (Charaudeau, 2013, 2014) e à manutenção do poder (Dijk, 2012), a fim
mediação reflexiva sobre a posição imediata do sujeito, tal qual se exprime na primeira
pessoa do singular: ‘eu penso’, ‘eu sou’” (Charaudeau e Maingueneau, 2008), entendido
ou implícita. Por meio do detalhamento do sistema com o aporte das ferramentas teóricas
manuscritos setecentistas.
Esfera do laudatório
produção escrita era associada ao que se entendia por ‘poder oficial’, aquele diretamente
ligado ao Rei e aos ocupantes dos demais cargos por ele instituídos.
508
homens, a quem Morgado de Mateus espera ‘poder ter a satisfação e o gosto de aparecer
todas as vezes que lhe for possível aos pés de Vossa Excelência’ (C. I). O rebaixamento
Vossa Excelência muitos anos de vida para amparo de nós todos, pois só em Vossa
Excelência esperamos todo o nosso bem e toda a nossa felicidade.’ (C. IV). Eleva-se ainda
mais o ethos do interlocutor ao se atribuir a dependência de seu amparo para que se tenha
seu governo: ‘foram pregar na porta [da igreja] uma vergonhosa sátira’ (C. II). χ
traz em si também a marca do afeto negativo. Descreve com detalhes os seus planos
destruidor do povo’ (C. II). χo ser considerado ‘destruidor do povo’, pelo fato de impor
o alistamento militar dos moradores da capitania de São Paulo à formação das tropas, usa
instituindo como base de seu governo e criticam as a criação das ‘vilas, chamando-me
fidalgo da aldeia, e de meia tigela, e outros vários impropérios indignos de pôr na presença
509
de Vossa Excelência’ (C. II). Todas as ofensas remetem às suas medidas de governo e,
por isso, ofendem seu ethos público, colocada por ele acima da esfera pessoal. Mas o que
mais o preocupa é o fato de terem concluído a sátira ‘com muitas ameaças de darem de
mim conta a Vossa Excelência para que me desse carreira e me pusesse não menos que
Por se tratar de algo que o incomodou demais, a carta narra com detalhes o ocorrido:
‘tirou logo o vigário capitular a dita sátira e a consumiu, de sorte que se não soube nada
nesse dia e nos seguintes. Porém, não contentes com este excesso, passaram a fazer outro
maior, pondo-me a mesma sátira dentro de uma carta fechada diante do bofete em que eu
costumo despachar, e então é que a vi, e pouco depois me disseram o que já tinha sucedido
de aparecer outra pregada na porta da Igreja do Recolhimento de Santa Tereza.’ (C. II).
Dos muitos detalhes, destacam-se os de ordem religiosa, pois a igreja era o lugar público
onde se afixara a sátira e, sobretudo, revela-se a atitude de proteção do vigário, que retirou
a sátira antes que outros a vissem, evitando aborrecimentos no dia festivo. Além disso, a
esfera da gradação permite que a passagem narrativa ganhe cores, com a intensificação
‘não contentes com este excesso, passaram a fazer outro maior’, o que tangencia a
afetividade.
forma velada: ‘tenho dissimulado até agora e vou fazendo toda a diligência para descobrir
os cúmplices desta obra, o que até agora não tem sido possível. Se eu os puder conhecer,
lhes darei o castigo merecido’ (C. II). Para descobrir os responsáveis, empenha ‘toda a
diligência’, em que a gradação de força indica sua resolução em resolver o caso pessoal,
elevado à esfera do público. Com isso, o princípio da justiça entra em voga por meio do
‘merecido castigo’, em que o culpado seria punido de acordo com o julgamento de sanção
510
social em voga, em que uma sátira seria (como posteriormente de fato o foi) considerada
um crime grave.
O poder de mando dos interlocutores deve-se ao fato de serem pessoas com poderes
delegados pelo soberano pelo critério do ‘merecimento’. O Conde de Oeiras ganhou esse
título nobilitário por sua eficiente atuação na reconstrução de Lisboa após o terremoto de
1755. Já Morgado de Mateus tem o seu cargo de governado por conta de sua experiência
militar de vitória no episódio “Defesa da Passagem do Rio Tua” (ψellotto, 1979, p. 14),
evitar dissabores à Coroa Portuguesa: ‘eu me opunha para coibir os seus efeitos, e
pública.’ (C. II). χlém das medidas em si, seu empenho é comprovado pelas afirmativas
reiteradas de que ‘eu sirvo com zelo e amor a Sua Majestade’ (C. II) e, sobretudo da
demonstração do grau de dificuldade de sua missão: ‘Eu os acho muito decadentes, sem
rendas, sem cultura e sem sujeitos de que me possam ajudar. Quase tudo me é necessário
formar de novo’ (C. I). χo se referir à capitania de São Paulo, sempre apresenta os
inúmeros problemas a serem vencidos, o que faz com que suas execuções ganhem aura
511
As relações de poder
podem gerar a produção de outros documentos, formando um processo: “uns são sempre
ascendentes, como as cartas, outros, sempre descendentes, como a carta régia.” (ψellotto,
2014, p. 398). Ao se observar que as cartas são trocadas entre as mais altas esferas do
pública, dos quais transmite apenas o necessário: ‘por me parecer desnecessário cansar
‘Desculpe-me Vossa Excelência ter lhe embaraçado tanto tempo’ (C. II). Retoma-se, com
(Dijk, 2012, p. 9). Em termos sociológicos, pode-se definir o poder como um conceito
normativo que, segundo Duverger (1983, p. 152) define a situação daqueles que têm o
direito de exigir que os outros se verguem às suas diretivas numa relação social, porque
estabelece este direito. O poder por excelência é pertencente ao Rei, por ser o “portador
de uma voz cuja onipotência resulta de ela não se encontrar aqui, mas em um além
qualidades pessoais.
poder social é geralmente indireto e age por meio da ‘mente’ das pessoas, por exemplo,
512
ações.” (Dijk, 2012, p. 42). Daí a extrema necessidade de relatar todas as ações de seu
ocasião que me permite a frota e a obrigação de dar conta a Sua Majestade, que Deus
guarde, das primeiras ideias do meu governo’ (C. I). O princípio de reportar ações ao
superior reforça a tenção constante de demonstração de poderes, em que aquele que detém
menos serve-se de estratagemas que sirvam de ponto de contato e validem a relação com
o outro. Daí a atribuição de seu bom relacionamento com o Conde de Oeiras, desejando
‘a continuação de uma saúde muito feliz, com que nos seguremos /mediante o vigilante
consolação e amparo dos que, como eu, têm em Vossa Excelência sua fortuna e toda a
sua esperança’ (C. III), de modo a personificar nele suas realizações. Na mesma diretriz,
de modo muito mais amplo, atribui a ele a manutenção do próprio sistema monárquico.
Charaudeau (2013, p. 10) estabelece que o espaço público seja o lugar propício para
forma de confissão o desejo de acertar: ‘Confesso, Senhor, que desejara ter presa a meu
arbítrio a fortuna: para poder ter préstimo e adquirir os maiores acertos neste meu
emprego’ (C. I). Esse desejo, no entanto, está restrito a uma hipótese, o que o invalida e,
é sempre repleta de significado, o que pode ser ainda mais representativo se as entrelinhas
forem consideradas. Por exemplo, a afirmação de ‘que em toda a parte possa eu ter o
513
meu cuidado e da minha grande saudade e desempenho dos meus votos e dos meus
importância que se atribui ao recebimento de ‘notícias’ pode ser entendida como a busca
do poder. Uma vez que a comunicação com o Reino ocorria unicamente por via das
intermédio dos papéis. χfinal, “o poder é tanto exercido quanto reproduzido no e pelo
discurso. Sem comunicação escrita (e falada), o poder na sociedade não pode ser exercido
oficiais, o reconhecimento social, que seria dado à distância, por meio das
268).
suas ações. Por exemplo ao agir sem a validação prévia, justifica-se: ‘em muitas coisas
me tenho visto duvidoso do que será mais conforme as intenções de Vossa Excelência e
me resolvi segundo o que eu quisera que se me fizesse a mim em semelhante caso’ (C. I).
O fato de agir de acordo com o que queria receber retoma os preceitos cristãos, detentores
de prestígio social, o que justificaria o fato de porventura não ter agido de acordo com as
Acima do que se pode ser feito contra a pessoa, está a preocupação do que pode ser
feito com seu ethos: ‘Mas eu não temo o que cá me podem fazer, temo que na presença
de Vossa Excelência representem de mim algumas queixas com que Vossa Excelência
venha a pôr em dúvida o meu procedimento, por isso quero prevenir a Vossa Excelência
dando-lhe esta notícia para que Vossa Excelência me faça a justiça de me ouvir, sendo
514
servido, sobre as culpas que quiserem acumular-me os meus inimigos’ (C. II) Pode-se
afirmar, diante dessa asserção, que o ethos enquanto sua representação social é mais
Linguagem formulaica
Embora tenham sido selecionadas apenas cartas, cuja espécie textual é de cunho
não diplomático, as cartas contam com um padrão estabelecido pela “redação mais ou
endereçamento, com ‘Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor’ (C. I, II, III e IV). Essa
fórmula é retomada ao final das cartas, antes do fecho de cortesia, a anteceder o título do
pronomes de tratamento, abreviados nas epístolas contém em si, além do padrão da mais
destinatário da mensagem. Inclui-se a esta a menção ‘e casa de Vossa Excelência’ (C. I),
Mateus), grafada como ‘Dom Luís χntónio de Sousa’, recebe o acréscimo, na carta I do
termo ‘Meu Senhor’, situando à altura a persona do Conde de Oeiras. A escolha dos
515
o comportamento do autor. Apesar da semântica de rebaixamento que acarretam, geram
como a gradação de força, que visa (mesmo que paradoxalmente) a intensificar o escopo
pronome de tratamento ‘Vossa Excelência’. Embora o teor quantitativo não seja o escopo
deste artigo, vale mencionar que o emprego dessa fórmula para se manter o contato com
longo das três páginas da carta I, tanto como pronome de tratamento quanto como
possessivo ‘de Vossa Excelência’. Do mesmo modo, aparece 16 vezes na carta II; 11, na
carta IV; e 6 vezes na carta III, que está redigida em apenas uma página, diferente das
ser “difícil separar o brasileiro do católico: o catolicismo foi realmente o cimento de nossa
unidade” (Freyre, 2007: 92). χ mesma formulação é usada quando se menciona o Rei:
‘Sua Majestade, que Deus guarde’ (C. II). De tão usual, essa colocação de termos
516
discurso político, pois “fornecem uma analogia condensada e um julgamento de valor
introjetadas no imaginário católico, o que lhes confere ainda mais força e destaque: ‘Sabe
Vossa Excelência também que aos tiros da inveja, da calúnia e da arrogância, nem a
inocência de Cristo, nem a iminência do respeito pode ser isenta.’ (C. II). χs investidas
dos que se opõem a seus planos de governo são nomeadas ‘tiros’, como elementos
direcionados contra alguém na intenção de ferir ou matar. Contra tais investidas, nem
idealizada do ‘Espírito Santo’, para comparar à acertada medida proposta pelo conde de
se criarem tropas na capitania de São Paulo. ‘He sem dúvida que só o Espírito Santo e a
(C. II)
“designação de um objeto pelo nome de outro, [por conta de semelhanças], seja sua
existência, seja sua maneira de ser” (Charaudeau e Maingueneau, 2008, p. 332) e promove
o conteúdo semântico do enunciado. Por exemplo, a expressão ‘Vou juntamente aos pés
de Vossa Excelência’ (C. III) que apresenta a esfera do físico. χ imagem do ato de
submissão ao outro ganha a imagem do ato físico, de baixar-se aos pés do outro. Conta,
portanto, com a escala da gradação, em que o ato de rebaixamento do outro frente a seu
517
A imagem dos pés é recorrente, como a única parte do corpo em que se pode
merecer o acesso, por ser a mais rente ao chão: ‘ψeijo reverente os pés de Vossa
Excelência’ (C. III); ‘ψusco os pés de Vossa Excelência’ (C. IV). χ construção discursiva
de reverenciar-se aos pés do outro e levar os lábios a esses pés para lhes beijar pressuporia
constitui um recurso discursivo, e (se possível fosse) até mesmo atitudinal, para elevar a
Além dos pés, como a imagem do mais baixo na estrutura do corpo humano,
apresenta-se a metonímia das mãos, como a parte que representaria a pessoa do Conde de
Oeiras na execução de suas ações. Com isso, observam-se as seguintes ocorrências: ‘Na
mesmo, a meus filhos e a toda a minha casa’ (C. I); ‘Por isso me valho da poderosa mão
de Vossa Excelência’ (C. II). O epíteto ‘poderosa mão’ contém a carga semântica do afeto
social, por se tratar da mão daquele que pode cuidar da família e das propriedades,
ascenciona-se à esfera da sanção social. Diante disso, o Conde seria, a exemplo do Rei, o
(Des)construção do ethos
adote a atitude oposta: a de exaltar as qualidades negadas por esse autor. Nessa medida,
518
superior. O fragmento ‘o grande dito com que o mesmo Senhor e Vossa Excelência me
honraram em se fiar de mim, sem eu ter merecimentos’ (C. I) aponta essa estratégia, uma
vez que o autor nega o seu merecimento. Essa negativa contradiz o universo da verdade,
haja vista os méritos pessoais que conduziram a sua nomeação, na tentativa de manipular
a reação do interlocutor.
servido dar nestas matérias as providências que lhe parecem mais justas, ilustrando com
as suas sábias instruções o meu entendimento’ (C. IV), em que sua inteligência é
negação anterior.
Morgado de Mateus afirma que ‘ninguém melhor do que Vossa Excelência sabe, que eu,
que me posso enganar com as paixões e com o amor próprio’ (C. II). χo se preocupar
com o fato de poder exaltar suas qualidades, reitera a ideia de que sua postura de
sem realmente afirmá-las e, portanto, com pouca chance de serem questionadas.” (Dijk,
2012, p. 123)
Deliberadamente, coloca o bem do seu governo acima de sua própria pessoa: ‘Não
desejo outra ventura, nem outro despacho mais do que alcançar que os meus cuidados, as
minhas diligências, e os meus desvelos em que não descanso, possam vir a servir de algum
aumento a estes Estados.’ (C. I). Mostra-se sempre desinteressado do que possa lhe ser
519
desacertado; porque asseguro muito muito a Vossa Excelência que me parece não terá
sido nem com dolo, nem por interesse.’ (C. I). O fato de poder errar fica diluído pela
justificativa de não se ter errado por querer prejudicar, nem por interesses pessoais. A
humildade é usada como recurso para justificar e, sobretudo, para redimir os erros. De
bastante para serem perdoados, especialmente quando se comprova que não houve
intenção de errar.
conclua por si a falta de consistência da assertiva, afirma que tem vícios: ‘atacando não
os meus vícios /que era o que deveriam fazer/ mas as disposições principais do meu
governo, em que executo as reais ordens de Sua Majestade’ (C. II). χssegura, dessa
maneira, que se sentiria menos ofendido se suas falhas de conduta fossem criticadas ao
‘‘nem a reta administração da justiça se pode praticar, sem levantar o ódio dos maus: estes
são os que ofendem, que os bons não obram desta sorte, senão o bem e a caridade’ (C.
II). Por meio desse postulado, implicitamente situa a si mesmo no grupo dos ‘bons’ e, por
conseguinte, divulga a proposta de que seus atos estariam ligados ao ‘bem’ e à ‘caridade’.
indefectível clemência de Sua Majestade, que Deus guarde, para que me não falte a graça
do mesmo Senhor porque sem ela nem as grandezas, quanto mais a minha humildade,
pode conservar-se, e melhor me fora não viver.’ (C. II). χpresenta a hipótese de que nem
520
Verbaliza, em acréscimo, deter a característica da humildade, como um julgamento de
com direitos e obrigações dos vassalos em relação a seus senhorios no período feudal e
estendeu-se ao longo dos séculos aos moradores de algumas colônias. Mesmo sem a
ordens reais, responsáveis por sua nomeação, baseada nos critérios pessoais de confiança
constante realce de seu ethos: ‘e do modo possível rendo a Vossa Excelência as graças
continuamente comigo, e com a minha casa’ (C. IV). Os benefícios recebidos são
considerados o bastante para o emprego vocabular de itens como ‘criados’, ‘súditos’, que
Senhor, a grandeza de Vossa Excelência que a um criado tão afetivo, e tão infinitamente
obrigado a Vossa Excelência como eu sou’ (C. I), ou até mesmo de maneira implícita,
por meio da prática do enaltecimento pessoal: ‘Desejo muito que a preciosíssima saúde
de Vossa Excelência se conserve sempre feliz para meu amparo. Que a amabilíssima
521
O reconhecimento da valoração social do conde ganha instância máxima no
seguinte trecho: ‘a todos Vossa Excelência como pai e autor que é de tudo o que somos,
nos ampare e sustente e favoreça como pode’ (C. I). χ construção do imaginário de
χ postura para se ‘protestar a minha fiel obediência e reverente escravidão’ (C. III)
mãos juntas dentro das mãos do senhor como forma de simbolizar a submissão ao controle
meio das cartas: ‘o meu reverente obséquio, a suma veneração com que de toda a parte
adoto o respeito de Vossa Excelência e a viva memória que sempre tenho das
mercês com que Vossa Excelência me tem engrandecido’ (C. I). Sentindo-se agraciado
deseja que ‘Deus, Nosso Senhor, guarde a Vossa Excelência para meu amparo’ (C. II),
Considerações finais
pelo governador Morgado de Mateus em cartas enviadas a Portugal, no que diz respeito
522
produção de imagens construídas pelo universo ideológico da vassalagem. Em acréscimo,
“vassalagem”.
No conjunto das quatro cartas apresentadas por meio de fragmentos, dessa maneira,
fim de que o outro, de forma solidária, fizesse o mesmo. Ao ter ações e comportamento
elogiados pelo interlocutor, sobretudo por se tratar do grande detentor de poder, o Conde
metade do século XVIII, nota-se que o discurso setecentista grafado nas cartas ultrapassa
discurso pressupunha o cuidado com a manutenção de seu ethos por parte do autor e, em
Brasil colonial. Observa-se, com isso, que o poder social não apenas aparece ‘nos’ ou
‘por meio dos’ discursos, mas também que é relevante como força societal ‘por detrás’
discursivamente” (Dijk, 2012, p. 33), objetivou-se analisar o discurso veiculado nas cartas
visou, portanto, retratar, mesmo que sucintamente, como se davam a construção das
523
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525
Anexo – Carta III
526
Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor
DomLuis AntoniodeSouza
527
AS EXIGÊNCIAS E PRESSÕES DA VIDA CONTEMPORÂNEA
patologias mentais, tanto assim que foi chamada de “resfriado da psicopatologia”. Essa
sua assiduidade faz com que se imponha como uma das situações mais desafiadoras na
em que o ser humano está inserido e que irão nele se refletir. Conclui-se,
dar através da leitura teológica que faz da realidade; bem como propondo caminhos de
*
Mestrando – Pós-graduado – Bacharel em teologia – Faculdades EST – São Leopoldo, RS, Brasil. Bolsista
CAPES.
**
Mestranda e Bacharel em Teologia – Faculdades EST – São Leopoldo, RS, Brasil. Bolsista Cnpq.
528
Palavras-chave: Depressão, exigências, pressões, aconselhamento pastoral.
Abstract: Depression is one of the most frequent contemporary disorders among mental
imposes itself as one of the most challenging situations in today's society, thus revealing
the need for alternatives that are methodologically reflected and deepened by most diverse
bibliographical exploration, to pointing out some hypotheses regarding the demands and
pressures of contemporary life that contribute to this process of social and community
disease in which the human being is inserted and that will be reflected on him.
Preeminently, it’s concluded that the basis on which the Pastoral Counseling has its
community. Thus, the Pastoral Counseling has its contribution to offer through the
theological reading from the reality; well as proposing ways of liberation and
empowerment of those who feel overwhelmed by the demands and pressures of the
current model of life. The Christian faith is the basis of Pastoral Counseling, whose
Considerações iniciais
em relação ao ser humano e as suas mais diversas formas relacionamentos com o mundo
que está em sua volta. (Malta, 2010, p. 100). Esse novo quadro complexo em que o ser
humano contemporâneo está inserido pode ser ou tornar-se doentio e adoecedor. Afinal
529
de contas, a saúde e o bem-estar não dependem exclusivamente do bom funcionamento
dos órgãos, mas de muitas outras variáveis em que o indivíduo está inserido em sua
O peso que o ser humano, nosso contemporâneo, tenta carregar sobre os ombros
é impressionantemente maior do que as forças que ele tem a disposição. Anda encurvado,
cabisbaixo. Enfrenta uma situação parecida com aquela descrita na mitologia grega, ao
tratar sobre o castigo de Atlas. O ser humano tenta, e às vezes acha que conseguirá,
carregar e sustentar o peso do mundo e do firmamento sobre suas costas, o que se torna
desumano e tem sido a causa do adoecimento de muitas pessoas. Ninguém de nós “deveria
sentir-se isoladamente responsável por carregar todo o peso do mundo ou sobre si. Seria
Competição desmedida
vida. Vivemos uma espécie de “darwinismo social” onde reina uma espécie de competição
sendo assim devoradas por um sistema cruelmente capitalista. (Brakemeier, 2002, p. 12).
Segundo Kehl (2009, p. 22), um povo que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo
que se limite à lógica do mercado capital, não é capaz de amar e cuidar de seus deprimidos,
530
pois, a título do discurso capitalista, ela mesma é responsável pelo desenvolvimento e
o/a melhor, de estar sempre em evidência, em primeiro plano, é um modelo social adoecido.
Segundo Solomon (2010, p. 575), “Em sociedades animais, o tema essencial do sucesso é ‘eu
sou mais forte que você’, enquanto que nas sociedades humanas é, num grau muito maior,
‘eu sou incrivelmente bom’”, melhor que você. Frente a essa realidade se revela o seguinte
fato, assim como um animal pode ficar deprimido por ser espancado pelo seu grupo, o ser
humano pode ficar doente e deprimido por não estar em alto conceito ou por não ser digno
de admiração diante de seus semelhantes, por não ter atingido aquele nível de
superexpectativas irreais e irrealizáveis que foram projetados sobre si ou que ele mesmo
projetou sobre si (Solomon, 2010, p. 577). É necessário atentar ao seguinte fato, como
vivemos num mundo que é falho e vulnerável, pessoas perfeccionistas tendem ser deprimidas
e, ao mesmo tempo, pessoas das quais se exige constante perfeição tornam-se mais
descartadas, para o bem do ser humano. Aquelas coisas que se enquadram na categoria do
dever, do ter que fazer. O livre prazer deveria ocupar o lugar do patológico e irrealizável
dever. Tenho que ser o mais rápido, o melhor e realizar tudo com perfeição e sem erros.
Tenho que ser uma boa mãe e um bom pai, sempre disponível; tenho que ser um bom filho,
uma boa filha. Tenho que alcançar a perfeição em tudo. “χ quebra das minhas ilusões
também rompe a couraça que eu construí à minha volta. E assim sou aberto ao meu verdadeiro
Eu, para a imagem original e verdadeira que Deus fez de mim.” (Grün, 2011, p. 55).
sobre o ser, além de irrealizáveis, são mutáveis e flutuantes. Conforme Brakemeier (2002,
531
p. 17), os modelos sociais contemporâneos são extremamente líquidos, metamórficos e
inconstantes. Querer estar sempre em alto e admirável conceito parece ser algo irreal, e
doentio. Sendo assim, para a humanidade a lei da selva se mostra como mortal. Além do
mais, lembra-nos bem Solomon (2010), os animais selvagens estão livres de alguns fardos
que pesam sobre o ser humano. Animais selvagens, por exemplo, não precisam assumir
empregos dos quais não gostam ou vão se arrepender; “não se forçam a interagir
calmamente, ano após ano, com aqueles de quem não gostam; não brigam pela custódia
Não há dúvida que o modelo de vida atual em que estamos inseridos é complexo
pelo espaço do exercício profissional exige cada vez mais conhecimentos técnicos e
específicos das pessoas que querem se candidatar a tal vaga. Há pouco mais de uma década
atrás, século XX, ter um diploma de datilografia era uma vantagem para ingressar no
mercado de trabalho, era motivo de orgulho, tanto assim que o diploma ia parar numa
moldura da parede da casa. Poderíamos nos perguntar o que vale hoje um diploma de
para instrumentalizar o ser humano para que assim se torne uma boa ferramenta no atual
mercado de trabalho. Entretanto, não se percebe, nem de longe na mesma proporção, uma
procura e oferta no mercado de trabalho de cursos que ofereçam formação ligada, por
exemplo, à poesia, à filosofia e a tudo aquilo que envolve métodos de profunda reflexão
humana. Para o nosso modelo de mercado atual, isso parece desperdício e perda de tempo.
532
O que se quer é uma formação técnica, instrumental que, apesar de limitada, não deixa a
máquina capital parar. Mas justamente aí reside uma grande armadilha, pois as técnicas
transformam, pois as exigências do mercado são flutuantes. Novos níveis de qualidade são
exigidos a cada novo dia. O que faz com que novas técnicas e invenções logo, logo se
dominava tão logo também é descartado, pois não atende mais a demanda e as exigências
inventos tecnológicos, o cérebro humano parece evoluir de forma mais lenta. Não
humano está cercado de uma parafernália tecnológica da qual não domina e não sabe bem
como usar, e isso se reflete em todas as áreas. Até mesmo na área da saúde tem-se a
uma criança podia caminhar por sua aldeia e ver os adultos trabalhando. Escolhia
(onde a escolha era possível) seu próprio trabalho com base em uma compreensão
bastante completa do que acarretava cada uma das ocupações disponíveis – o que
era ser um ferreiro, um moleiro ou um padeiro. [...] isso não é verdade em nossa
533
exatamente um gerente de fundos ou um administrador de cuidados de saúde ou
Isso gera insegurança, medo e instabilidade, pois muitas pessoas não sabem ao
adoeçam. Algumas categorias de profissões sobrecarregam a pessoa e isso faz com que a
sua vida psíquica fique vulnerável. Uma pesquisa realizada pelo King’s College de
Londres revelou que “profissões que exigem atenção constante e respostas velozes
durante muitas horas por dia provocam depressão (e ‘estresse’) entre os que se dedicam
a elas”. (Kehl, 2009, p. 148). Os sintomas depressivos mais relatados entre o grupo de
de inutilidade.
que o sujeito se torne objeto desfigurado, sem identidade e fique, paulatinamente, sem
dignidade a ser considerada. Esse processo degradador culmina na ideia de que a pessoa
somente tem um valor sob o aspecto dos valores comerciais. Ou seja, importa o que ela
tem não o que ela é. Se não tem nada a oferecer, é objeto de manobra e de exploração,
mercadoria “que se compra ou se despreza, força que se impõe ou sucumbe, máquina que
vira sucata tão logo deixa de funcionar” ou assim que não tenha nada a oferecer.
534
As pessoas são destituídas de seus nomes e passam a ser conhecidas por números
estatisticamente, contadas como animais, sendo tido em menor apreço do que esses” (Henry
e disputas desumanas por poder (Brakemeier, 2002, p. 12, 13). Com isso, constitui-se não
apenas um modelo de vida injusto e doentio, mas especialmente desumano, pois o ser
desumanização está relacionado à cegueira causada pela ganância capital. Nessa cegueira,
Há algo nos seres humanos que não se encontra nas máquinas, [...] o sentimento,
Para Boff (2008), o sentimento e atitude que pode mudar esse quadro, é o
cuidado. O ser humano que não sente mais, não se deixa tocar pela dor do outro, que não
se emociona, não se envolve, que é frio e calculista, está mais para máquina, que para
humano. Boff segue a sua reflexão e relata que o cuidado essencial é capaz de transformar
em sujeitos aquilo que a fria razão coisificou e tornou objeto de descuido, de uso e de
exploração. O cuidado é o sentimento e atitude que torna pessoas, coisas, situações e toda
535
a criação divina, em algo extremamente importante; e aquilo que é importante para nós
se torna alvo do cuidado mais profundo e indelével que está na essência do ser humano.
O cuidado está mais para a emoção e para o coração do que para a fria e calculista razão
do uso utilitário das coisas, criaturas e pessoas. Essa parece ser a forma de resgatar
humanidade mais essencial, fontal e ontológica do ser humano. (Boff, 2008, p. 100-103).
na esfera das relações. As pessoas, com poucas exceções, nasciam, cresciam, casavam e
pessoas conhecem centenas e milhares de outras pessoas que são de muitos lugares
baseiam na lógica do descartável. Tudo se tornou descartável, inclusive o ser humano foi
coisificado e também se tornou descartável. (Malta, 2010, p. 101, 102). Esse fator revela
que a vida humana e os laços relacionais já não possuem muito valor, pois a pessoa que
foi coisificada pode ser usada, manobrada, manipulada, explorada e desprezada, assim
como se faz com os objetos descartáveis, que começou com um simples guardanapo de
As figuras que assumiam papel central no processo de cuidado e condução familiar vivem
atualmente sem tempo para exercer a sua vocação específica no seio familiar.
Não existe lugar para o diálogo entre pais e filhos; as pessoas estão sempre
filhos, que vêm experienciando cada vez mais vivências de abandono; afinal, seus
536
pais não brincam mais com eles, não os põem para dormir. Outro ponto a refletir
decidir entre o amor da mãe e o amor do pai, ou é acoplado a uma família que não
Kehl (2009) chama a atenção para o perigo dessa falta de tempo, das correrias
tempo em que o tempo seja menos importante. Um tempo onde as coisas podiam ser
vividas e saboreadas na lentidão e sem as amarras do tempo atual, que parece encurtar a
cada dia.
mundo contemporâneo relata que o modelo de vida atual não reflete mais a medida
humana e que inúmeras formas de sofrimento psíquico são decorrentes das fraturas da
decorrida da exclusão social e do sentimento de ser visto pelas outras pessoas como
elementos sensoriais e culturais que conectam as pessoas com à memória de sua origem
corpo irreal, falta de descanso e falta de sensibilidade com os ritmos do próprio corpo) e
vivemos); c) no caso da invisibilidade a pessoa é ignorada, deixou de ser vista como ser
537
agenda semanal superlotada das mais variadas atividades, dentro de uma abundância de
para fora desse mundo desumano em que vivem, por carecerem de gestos simples
Cortella (2013, p. 93) relata que uma pesquisa realizada em nos centros econômicos
mundiais revela que o convívio entre pais executivos junto a seus filhos e filhas não passava
de cinco minutos diários, inclusive no Brasil. Encontro entre pais e filhos se tornou coisa rara
em nossos dias, mesmo para aqueles e aquelas que moram sobre o mesmo teto. Segundo o
autor, somos a primeira geração em que os pais saem de casa, quando lá estão, mais tarde que
os filhos.
Por muitos e muitos anos, séculos até, os adultos acordamos as crianças (filho,
vai para a escola, toma café, toma...); hoje o filho levanta sozinho e sai às 6h30 ou
6h45 na van ou no ônibus, e o pai e a mãe, acordando mais tarde, saem para
trabalhar às 07h30, 8h... Assim, essa família quase não se encontra, filhos são
nomadismo. O século XXI tornou-se um desterrador de raízes. As bases que nos eram
tornaram-se inconsistentes, fluidas, líquidas. O que era inteiro, o que era uma unidade, se
538
família se mudou pelo menos cinco vezes num curto período e que se enforcou em um
grande carvalho no quintal de sua última casa. Esse rapaz deixou na árvore um bilhete
espetado que dizia o seguinte: “isto é a única coisa por aqui que tem raízes.” (Solomon,
2010, p. 580).
fluida, que é radicalmente o oposto daquilo que anteriormente ele denomina de modernidade
sólida:
da ação, a modernidade “fluida” não tem a função para a duração eterna. O “curto
na hereditariedade e na tradição, ficaram abaladas. As coisas não são mais tão previsíveis ou
duradouras. A imagem de algo sólido que, aos poucos, vai derretendo é compatível com o
desenvolvimento da história das relações, da tradição, das estruturas, dos valores, dos
costumes, em todos os seus níveis entre o ser humano, nosso contemporâneo. É o mundo da
2001, p. 184).
Faltam referenciais, não há no que se agarrar para não afundar ou então há coisas
demais que confundem e puxam para baixo. Muitas das certezas básicas e sólidas se foram
e muitas pessoas não sabem mais bem o que fazer, o que querer ou o que ser.
539
A nossa época é marcada pelo seu caráter ‘fast’ e pelo vazio utópico. Tudo precisa
ser realizado com pressa, com rapidez. Cortella fala da tacocracia para nomear a supremacia
velocidade é o principal critério de qualidade para avaliarmos uma coisa como positiva ou
negativa. “Vai demorar para ficar pronto? Vou demorar para aprender isso? χ conexão é
demorado? Aprender a tocar este instrumento é demorado? Demora para fazer essa comida?
Então, não posso querer.” (Cortella, 2013, p. 20). χ pergunta crucial a se fazer é, se tudo
precisa ser feito com tanta rapidez para que eu ganhe mais tempo, o que faço com o tempo
que ganho?
O que regula e rege a nossa atual temporalidade urgente são os relógios de máxima
precisão, aqueles que contam os décimos de segundos, afinal temos pressa e tempo é
instantânea. A pulsação própria do corpo, que rege o ritmo do nosso jeito de ser, é
violentamente apressada pelos milésimos de segundos que aprendemos a contar. Ora, isso
não é natural do ser humano e não há medicação que possam nos ajudar a estar regulados
É importante destacar que apenas no fim do século XIII, nas torres das igrejas da
Europa, os relógios mecânicos começaram a marcar uma nova temporalidade para o ser
humano. Antes disso, a passagem do tempo era regulada pelos ciclos da natureza,
fundamental para o trabalho no campo bem como pelos horários dos ritos religiosos. O
tempo do trabalho era definido pelo percurso do sol. O tempo social, do ócio, meditação
e partilha era indicado pela Igreja, através de seus sinos que convidavam o povo para
540
orações em diferentes horas do dia e para as celebrações que aconteciam no templo,
seguiam uma linha de produção diferente da realidade agrária, marcada pela produção e
nova relação do ser humano com o tempo. O tempo não seria mais regido pela ordem
natural e pelos ritmos naturais. Não é mais o sol que dita o horário de começar e de parar
de trabalhar, produzir. Não são os ciclos da natureza e estações do ano que conduzem o
ritmo de vida das pessoas, mas o tempo passa a ser contado de hora em hora. No século
XIV e XV, sem ainda existir os ponteiros dos minutos (que são maiores que o das horas),
surgem novos relógios para serem instalados nas prefeituras das cidades e não mais nas
torres da Igreja, onde se queria dizer, entre outras coisas, que o tempo também pertence a
Igreja. “De lá para cá, o tempo humano nunca mais deixaria de ser contado em dinheiro”,
Para Fédida (2009, p. 15), a aceleração em que vivemos atualmente faz com que
É frente a essa realidade que a pessoa depressiva “resiste com sua lentidão, seu
mergulho angustiado e angustiante. Ainda que eles não saibam disso, a inadaptação dos
541
tempo não contava’.” (Kehl, 2009, p. 122, 123). Foi-se o tempo do ócio e sobrou apenas
Tudo exige pressa, agilidade, domínio. É necessário saber muitas coisas em menos tempo
e as pessoas parecem não estar preparadas para isso. (Malta, 2010, p. 101).
As tecnologias invadiram a nossa casa e a nossa vida e não sabemos bem como
funciona a maioria delas. Não sabemos até que ponto são boas ou prejudiciais. Há
contato, e às vezes de intimidade, entre mães que trabalham e seus filhos é outra.
Levar uma vida de trabalho que não inclui nenhuma atividade física ou exercício
é outra. Viver sob uma luz artificial é outra. A perda do conforto da religião é
outra. A lista pode ser expandida quase indefinidamente. Como podem os nossos
cérebros estar preparados para processar e tolerar tudo isso? Por que isso não seria
nossa era, lembra-nos: “Nossos grandes problemas não resultam da falta de conhecimento,
e, sim, de orientação; não somos ignorantes, estamos confusos.” É fato, hoje temos acesso
a informações sobre o ser humano e o meio em que vive que outras gerações jamais
enxurrada de informações não garante acesso seguro do saber, antes, podem confundir e
trazer o sentimento de abandono e insegurança. Nosso modelo de vida atual parece não
estar saudável.
542
Diante de um estilo de vida fragilizado, muitos citam a influência de se ter um
sentido maior para a vida. Temos acesso a tantas coisas atualmente, muito mais que aqueles
e aquelas que nos antecederam, mas parece faltar um sentido maior, uma razão de estar aí no
mundo. Uma geração desmotivada, apática, tediosa e com medo do futuro, é uma geração
adoecida, fragilizada. A vida precisa ser vivida como algo que vale a pena, como algo com
um sentido de ser. Uma vida com sentido é uma vida dinâmica, ativa, produtiva. (Brakemeier,
2014, p. 8-10) “Um universo privado de sentido, inanimado, isto é, sem alma, mata também
a nobreza do ser humano e o rebaixa a um organismo que já não vive, e sim funciona.”
Viktor Frankl (2008) percebeu que pessoas que tem ou encontram uma razão
para viver se tornam mais resistentes frente às intempéries da vida, pois são capazes de
encontrar um sentido até mesmo do sofrimento e na dor extrema. O referido autor chama
mostraram que 89% das pessoas consultadas admitiram que o indivíduo precisa de
“algo” em função do qual viver. E 61% admitiram haver algo ou alguém em suas
próprias vidas pelo qual estariam dispostas até prontas a morrer. [...] Outra pesquisa
o que consideravam “muito importante” para eles naquele momento, 16% dos
estudantes responderam “ganhar muito dinheiro”, 78% afirmaram que seu principal
543
objetivo era “encontrar um propósito e sentido para minha vida”. (Frankl, 2008, p.
125).
usurpa, exauri e mina as forças e energias vitais do ser humano. É necessário que se
p. 97, 98). Segundo Malta (2010, p. 99), consultórios terapêuticos estão lotados de pessoas
que buscam um sentido para a sua vida e que buscam entender as suas angústias.
Mesmo com toda a ciência e tecnologia ao nosso dispor, o ser humano sente-se
vazio e repleto de questões não respondidas, não resolvidas. O fato de ter um sentido na
vida pode se tornar uma força vital e propulsora para um existir e estar aí no mundo de
forma dinâmica, interativa e viva (Malta, 2010, p. 113). É justamente isso que parece
pessoa para pessoa em diversos momentos de sua existência, mas que jamais deveriam
determinada causa ou objeto, esportes, música, arte, literatura, botânica, etc. que motivem
necessária a busca por um sentido duradouro, eterno, pois somente um sentindo eterno e
544
transitórios. Também é verdade que um sentido duradouro é capaz de evitar a ruína da
vida quando os primeiros sumirem ou não fizerem mais sentido. Sendo assim, é
passageiro; por outro lado “sem um sentido maior, inerente à vida humana em especial e
13).
nossa confusa sociedade – funcionava como uma base sólida e como um princípio
unificador do ser humano à sua essência e elemento central da vida (Malta, 2010, p. 102).
correria cotidiana que lhe traz a falta de tempo (Malta em Gomes, 2010, p. 102) e a
saudade do tempo em que o tempo não importava (Kehl, 2009, p. 122, 123).
Segundo Frankl (2008) faz-se necessário estar atento a esse sentido maior e
unificador que está ligado à essência e fonte da vida, ou então no lugar onde antes existia
consigo danos em tempos de tanta instabilidade e inseguranças, como os que nos são
545
Aconselhamento Pastoral
ideia de dar conselhos e gerar dependência. Não se trata de uma relação de poder, mas de
uma relação dialogal entre parceiros. Essa relação tem como objetivo descobrir junto às
e pecadoras que são aceitos pela graça de Deus, para que, assim, possam restabelecer uma
relação saudável e libertadora com o Deus de sua fé, consigo mesmas e com o próximo
e o falar, pois estes dão voz ao sofrimento para articular o protesto e partir para a ação. O
p. 97).
Psicologia, podemos citar: Jung, Rogers, Frankl, Skiner, Perls, entre outros. No Brasil, em
546
Brasileira de Aconselhamento. (Schneider-Harpprecht, 1998, p. 79). Iniciativas
e reforçam a proximidade entre os dois saberes que prezam pelo cuidado do ser humano em
Assim sendo, é possível dizer que o Aconselhamento Pastoral é uma vocação pela
qual a Igreja como um todo foi e é chamada para cuidar das pessoas, através das pessoas e
do convívio fraterno e solidário entre as diferentes pessoas como fruto da fé. Sendo uma
Ward (2001) ressalta que apesar de essa tarefa ser função da Igreja, e não apenas de
ministros e ministras, é impossível negar que o ministro e ministra são símbolos que apontam
representam o Deus da vida e também uma comunidade de fé que está na base de sua ação
de fé”. (Ward, 2011, p. 334-344). A referida autora chama atenção e enfatiza a importância
paciente que está sozinho no hospital. Por meio das visitas do visitador pastoral o
parte.
547
Quando surge uma crise na vida de um indivíduo, a pessoa do visitador pastoral pode
mais uma vez representar um corpo de pessoas que está oferecendo orações, apoio,
conceito de cura d’almas, ao qual se entende que a salvação da alma imortal é mediada
pela figura pastoral, mediante a confissão e a absolvição. Uma vez que esse dualismo foi
superado e o ser humano voltou a ser compreendido como um ser integral, podemos ir
Hoch (2003, p. 98) chama atenção para o fato de que a prática do Aconselhamento
culto, mas também. Ela vai um pouco além e extrapola os limites da vida cúltica e
realidade das pessoas. A comunidade cristã como um todo, como agente do cuidado
548
fragilizadas não se limitam ao discurso verbal, a verdades dogmáticas ou a ensinamentos
prontos e fechados em si. Para Ward, a presença, o estar junto em silêncio, o escutar com
ativa e profunda, vai além do racional, do ouvir as palavras ditas pela pessoa que sofre. Este
ouvir inteiramente leva em consideração as expressões não verbais como, por exemplo, o
tom da sua voz, a expressões faciais, os gestos, a postura e a linguagem corporal. Ou seja,
a palavra aconselhamento que aqui usamos vai muito além da concepção de dar conselhos,
próprio Jesus Cristo diante do ser humano fragilizado. A sua vida foi marcada por
seu ministério foi constituído e vivido numa rica, dinâmica e complexa interação com o
próximo que estava diante de si. Esta é a boa nova do Evangelho: Deus, na pessoa de
Jesus Cristo, vem para se relacionar “com seu povo em meio ao sofrimento e o faz de
mais humilde das pessoas seja capaz de entendê-la. E, mais do que entendê-la,
292). Com isso, exerce formas de cuidado e de recomposição quando a vida e as relações
549
humanas estão ofuscadas, comprometidas ou quebrantadas por situações de crise.
Aconselhamento Pastoral pode propor iniciativas que funcionam como contraponto das
e motivar as pessoas a falarem sobre suas dores); Cultos simbólicos e meditativos como,
por exemplo, o Culto de Tomé; Grupos de visitação (a Igreja indo ao encontro das pessoas
feridas e não apenas esperando elas virem ao seu encontro); Grupo de estudos temáticos;
Encontros e palestras com profissionais da área da saúde que compreendem o ser humano
de anuncio da graça e do perdão incondicional de Deus; etc. Essas seriam algumas das
individualismo. É um corpo com muitas partes (1Co 12. 12ss; Rm 12.4-5) que não exclui
Conclusões
generalizado, ou, nas palavras de Kehl (2009, p. 32), sintoma de uma sociedade adoecida.
Para Kehl (2009, p. 103), “a depressão como sintoma social, é aquilo que resiste – ao
550
imperativo do gozo, à fé na felicidade consumista, à própria oferta de possibilidades de traição
da via desejante.” Com isso é possível dizer que os próprios sintomas depressivos são, em
última análise, a possibilidade de sobrevivência através de uma espécie neurose glacial que
tenta proteger a vida contra o que ela tem de vivo, como se atuasse através de “um sono de
hibernação”; ou ainda como uma tentativa de cura, frente a uma realidade humanamente
insuportável (FÉDIDA, 2009, p. 34). Para Grün (2011, p. 8), a depressão é um grito de
socorro da alma contra o desarraigamento e a sobrecarga decorrentes das mudanças cada vez
mais rápidas.
descrita aqui, parece se mostrar de fato incompatível com as limitações humanas e isso
causa estresses crônicos, fragilizando e adoecendo o ser humano em vários níveis de sua
físicos, emocionais, relacionais e existenciais que, por sua vez, podem causar transtornos
vulnerável, não se pode poupar tempo de escutar. Justamente aqui reside o grande
fracasso da medicina em nossos dias. A psiquiatria, por exemplo, “não tem mais tempo
para se dedicar à observação e escuta dos doentes.” (Fédida, 2009, p. 10). Os médicos se
conta os dramas e dilemas da vida psíquica e das dores da alma. Na psiquiatria houve um
aniquilamento da concepção de vida psíquica, o que sugere que a depressão seria uma
551
ser tratada e corrigida apenas com recursos medicamentosos, alcançados através do uso
Quando não se abre possibilidades para o diálogo interior e exterior, para a catarse, para
uma fala anamnética, onde não se sabe ouvir, acontece um esmagamento e achatamento
de Fédida (2009, p. 15), quando se trata de vida psíquica, não se pode poupar tempo de
e não como espaço do espetáculo mercadológico. A Igreja é, nas suas origens, lugar da
espiritualidade na qual nossas emoções sejam reconhecidas como mais do que paixões
privadas que devem ser silenciadas por remédios particulares.” (Whitehead e Whitehead,
1997, p. 58).
Referências
Boff, L. (2008). Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ:
Vozes.
552
Brakemeier, G. (2002). O ser humano em busca de identidade: contribuições para uma
Brakemeier, G. (2014). Sabedorias da fé: num mundo confuso. São Leopoldo: Sinodal.
Vozes.
Fédida, P. (2009). Dos benefícios da depressão: elogia da psicoterapia. São Paulo: Escuta.
primária à saúde (APS). In.: RODRIGUES, Margaret (Org.). Cuidado integral: ações
Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo.
553
Malta, D. C. de A. (2010). Angústia, fé e sentido da vida na pós-modernidade. In.: Gomes,
14.
ASTE. p. 79-86.
554
CICLOTURISMO, CORPO, SAÚDE E QUALIDADE DE VIDA
E-mail: leandro_dri@hotmail.com
é uma ação que pode ser incorporada como hábito para a promoção da saúde, visualizada
a partir dos aspectos físicos, psicológicos e sociais que são fatores envolvidos nesta
ter participado de, pelo menos uma vez, a viagem ‘Jacarezinho-χparecida de bike’. Para
análise de conteúdo temático. Emergiram três categorias para discussão: aspectos físicos
e de estilo de vida, motivação pessoal e interação social, sendo que o tema qualidade de
vida permeou os discursos das três categorias. As informações obtidas colaboraram para
amplo.
555
Abstract: Pedaling, movement technique inserted into the daily lives of many people, it
is an action that can be incorporated into a habit for health promotion, viewed from the
physical, psychological and social aspects that are factors involved in this activity.
Focusing on expanding the possibilities of living in a social environment, the aim of this
work was to study and record the relationship between cycling and quality of life, from
the perspective of practitioners. Choosing the study subjects was intentional way,
approaching 32 people, 30 men and 2 women, aged between 20 and 60 years. As inclusion
criteria, necessary and vital to the wealth of information linked to the theme, all persons
should have attended at least once, a trip 'Jacarézinho Aparecida-bike'. The techniques of
participant observation and semi-structured interviews were used to collect data. For the
treatment and interpretation of the data, we used the technique of content analysis. Three
categories emerged for discussion: physical aspects and lifestyle, personal motivation and
social interaction, and the quality of life theme permeated the speeches of the three
1. Introdução
o objetivo deste trabalho é conhecer e registrar a interface das relações entre cicloturismo
sociedade, a proposta do estudo será de contribuir para uma reflexão sobre o “corpo que
556
pedala” no contexto da motricidade humana, compreendendo o ciclista como membro
O ato de pedalar faz parte do cotidiano de muitas pessoas e pode ser incorporado
como hábito para a promoção da saúde e, até mesmo, de lazer, considerando os aspectos
físicos, psicológicos e sociais envolvidos nesta atividade. Isto faz com que andar de
destreza que exige do ciclista interação corpo-bicicleta, o que se dá por meio de uma
agradável. Trata-se de uma técnica corporal, isto é, uma maneira pela qual os indivíduos
utilizam seus corpos, cuja habilidade é apreendida conforme os padrões culturais de cada
Percebe-se que o homem (ser humano) faz uso da bicicleta para diversas
finalidades. Pode ser utilizada como transporte no espaço urbano; para fins desportivos
“Spinning” e, entre outras modalidades, além do simples pedalar no domingo, pode servir
com o intuito de realizar viagens entre cidades, estados ou países, atividade denominada
cicloturismo.
Para Roldan (2000) o cicloturismo é uma prática de exercício físico onde a questão
idade podendo ser praticado sozinho ou em grupo, pedalar no meio urbano ou rural, em
305
Há duas modalidades de cicloturismo: de forma autônoma e com suporte. Viajar com autonomia, o
cicloturista leva consigo tudo o que precisa na viagem, normalmente nas bolsas específicas para bicicleta
chamadas alforjes. Na modalidade com suporte, geralmente é contratado o serviço de apoio motorizado
para levar as bagagens, fazendo com que não seja necessário leva-las na bicicleta (ROLDAN, 2000).
557
objetivo da atividade é de conhecer lugares utilizando a bicicleta como meio de
relativamente novo e, por isso, são encontradas poucas informações sobre a temática,
porém, tem ocorrido um aumento no número de informações nos últimos anos. A guisa
Física na UEL com o estudo das AFAN (Atividades Físicas de Aventura na Natureza),
atividade. Foi nesse contexto que realizei a primeira viagem de bicicleta. Saí de Londrina
– PR no dia 18 de dezembro de 2008, com um amigo, mas como ele teve de parar no
primeiro dia, cheguei sozinho à Piracicaba - SP cinco dias depois. Perpassando as cidades
dos dois estados, fiquei três dias pedalando durante a noite, um dia de descanso e, no
último dia, pedalando com a luz do sol cheguei ao destino dando-se por concluído o meu
pneu furou duas vezes ao longo da viagem, mas tive a absoluta certeza de que outras
Utilizo como retrato o interesse na época pelo cicloturismo que foi quando realizei
Salto do Rio do Tigre na cidade de São Jerônimo da Serra - PR. O curioso desta viagem
se deu na volta quando nos deparamos com um ciclista pedalando numa bicicleta toda
colorida. Tratava-se de Lavoisier Richard, que, naquele momento treinava para seu
558
desafio e nos contou sobre o Break on Through Project - Hard Bike Tour306. No mesmo
ano, ao finalizar a graduação retornei novamente para Piracicaba de bicicleta, mas agora,
diferença em relação ao meu corpo, pois enquanto na primeira vez foi um sofrimento
pedalar, desta vez percebi melhor os lugares por onde passei, creio eu, por estar melhor
preparado dado o tempo disponível para percorrer distâncias maiores com maior
frequência.
os Ciclistas de Maria a qual se seguiu outra viagem no ano seguinte, em 2013. Foi
discussão sobre a condição do ciclista relativa aos aspectos físicos e estilo de vida,
motivação pessoal e interação social. Para a área de Educação Física, tal interesse se
justifica pelo ciclismo ser uma atividade que pode ser incorporada como prática de
atividade física e, ao mesmo tempo, como estilo de vida para o praticante, tamanho o
potencial desta prática corporal como alternativa às atividades físicas habituais. Para
306
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Break onThrough Project: Relato de Experiência sobre a Viagem
Hard Bike Tour no Contexto do Cicloturismo. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Argentina,
Año 16, Nº 162, Noviembre de 2011.
307
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Sentidos da Aderência ao Mountain Bike na Relação Ser-Humano-
Natureza. Revista ALESDE, Curitiba-PR; v. 2, n. 1, 2012.
559
descrição sobre os Ciclistas de Maria, grupo ao qual foram coletadas as informações da
Qualidade de Vida e o Corpo que Pedala” são discutidos os termos chave do estudo e, no
2. Ciclistas de maria
O grupo Ciclistas de Maria reúne ciclistas que praticam cicloturismo nas rodovias
na região do Vale do Rio Paranapanema, divisor natural dos territórios dos Estados de São
Paulo e Paraná. O grupo tem sede na cidade de Jacarezinho, no estado do Paraná mais
um dos membros líder do grupo Claudio Henrique Cavazzani que, com mais dois amigos,
no ano de 2001, decidiram pedalar da cidade até a Estância Turística de Aparecida - SP,
(Figura 15).
560
Com um percurso de aproximadamente 680 quilômetros, o evento ocorre há treze
anos sempre durante o feriado de Corpus Christi. Até a nona edição da viagem, devido
ao menor número de pessoas e maior experiência dos envolvidos, a viagem era realizada
em três dias, porém, com o aumento no número de novos praticantes, o trajeto começou
a ser realizado em quatro dias. No trajeto, os ciclistas pedalam por rodovias asfaltadas
daí, cruzam o território do estado de São Paulo no sentido oeste-leste. Saindo desta
rodovia, pedalam sentido a rodovia Orlando Quagliato (SP-327) até a cidade de Santa
Cruz do Rio Pardo, para chegar até a Castelo Branco (SP-280), parando, no primeiro dia,
tarde, pedalam sentido rodovia do Açúcar (SP-308) e rodovia Santos Dummond (SP-75),
561
Figura 17: mapa da trajetória do segundo dia de viagem
Campinas, o grupo passa rapidamente pela rodovia Anhanguera (SP-330) e atravessa uma
rotatória, seguindo pela rodovia Dom Pedro (SP-65) até a cidade de Jacareí, onde param.
No segundo ano que viajei a parada se deu 20 quilômetros antes, na cidade de Igaratá, em
No quarto e último dia, depois de pedalar certa distância pela rodovia Carvalho
Pinto (SP-070), o grupo passa a percorrer a última e mais perigosa rodovia do trajeto, a
Dutra (BR-116), na cidade de Taubaté (Figura 19). Antes de pedalar o trecho final, o
562
grupo faz uma parada ao lado da “tradicional placa” (Figura 20) que indica a distância de
563
Figura 21: momento de oração no encontro de recepção com os familiares
entrega, cada um tem o seu momento para discursar sobre a trajetória percorrida. No
domingo pela manhã, o grupo assiste a missa de Corpus Christi na basílica; logo após
cruzavam a Marginal do Tietê na cidade de São Paulo, mas devido ao risco de acidentes
com veículos motorizados, o trajeto foi modificado passando agora pelo interior do
estado. O segundo detalhe é derivado desta mudança. Quando a viagem era realizada em
três dias, os ciclistas não paravam no santuário da Mãe e Rainha Schoenstatt na cidade de
santuários espalhados pelo mundo, sendo 22 no Brasil e, dentre estes, está o de Atibaia,
564
Figura 22: missa de agradecimento no Santuário Mãe Rainha Schoenstatt
dessas viagens. Até a oitava edição do evento, o número de ciclistas não passava de dez,
porém, em 2010 subiu para treze e, em 2011, vinte e dois ciclistas participaram da viagem.
(Figura 23).
Após esta alteração, em 2012, o número saltou para vinte e nove ciclistas e, em
2013, trinta e quatro pessoas participaram da viagem. Para cada vez que o ciclista
participou da viagem, ganha uma camiseta personalizada com o logo dos Ciclistas de
565
Figura 24: uniforme dos Ciclistas de Maria
Um membro líder do grupo comenta sobre o aumento na procura pela viagem quando
para adquirir seu equipamento, recomendação ou até mesmo uma orientação vinda
Nas primeiras viagens, a organização era limitada ao ponto dos ciclistas terem de
levar seus pertences no bagageiro da bicicleta durante a viagem e não terem pontos
lugar para discussão sobre a viagem e, percebendo a demanda, o líder do grupo e dono da
bicicletaria começou a pensar numa logística apropriada para a viagem. A partir disso, é
566
ofertado para cada ciclista um pacote de serviços que, dentre os custos, consta de hotel,
das bicicletas. Este formato fez com que a pessoa se preocupe apenas em pedalar, detalhe
que na visão dele, mudou a forma da viagem trazendo mais segurança para o grupo:
Nesses doze anos mudou muito. Por exemplo, saíamos daqui e não sabia onde ia
parar, pedalava 230 km a 280 km, variando o ano e local de parada, até chegar à
próxima cidade, que a gente prezava em não andar a noite, como prezamos hoje
em relação à segurança, não tinha local definido para parar e com isso, criaram-se
diversas situações que a gente chegava à cidade e não tinha lugar para dormir, não
achava hotel, encontrava local tarde da noite, não achava lugar para jantar e a
viagem, nesses doze anos foi cada vez mais se organizando. Começamos em três
ciclistas e nessa última viagem em 2013, estávamos com trinta e quatro ciclistas,
reserva de hotéis, o meio de locomoção no retorno como o ônibus ser locado para
o retorno nosso, a reserva de restaurantes, tudo isso teve de ser criado, como
também o carro e moto de apoio. Teve de ser criada esta segurança porque se
percebia que o grupo não era mais homogêneo que era no começo, que eram
pessoas bem treinadas com o objetivo de fazer toda a viagem juntos no mesmo
ritmo, do primeiro ao último integrante que chegava. Hoje, percebe no grupo que
destino chega muitas vezes duas a quatro horas antes do último ciclista chegar. Só
que para isso, o aparato de segurança tem de ser feito do primeiro ao último
ciclista, então por isso contamos com carro e moto de apoio, reservas pré-
definidas. Vimos que nesses doze anos, muita coisa mudou, ou se torna um grupo
567
mais organizado com os equipamentos de segurança melhor, todo mundo
Com o aumento no número de adeptos, a viagem não é mais feita apenas por um
grupo homogêneo como era antes, mas foi desmembrada em vários pequenos grupos e,
para garantir que todos estarão sendo acompanhados foi implantado o apoio motorizado
apoio é escolhido um dos integrantes do grupo que participava da viagem quando era
realizada sem o carro de apoio. Um desses apoios comenta sobre a diferença entre ir
Pela experiência de eu já ter ido, uma pessoa no apoio que nunca foi pedalando,
talvez não tenha a mesma visão que eu tenho, eu consigo visualizar o estado físico
durante a viagem, eu sei os pontos onde as pessoas irão precisar do apoio, consigo
saber a quilometragem que vão precisar do apoio, consigo pela fisionomia dos
ciclistas saber como eles estão se vai precisar já ou daqui a pouco. Por exemplo,
quando estou atrás, paro e vejo o último, pela fisionomia dele, eu sei se posso
porque daqui a pouco ele vai precisar de mim e os pontos da viagem, o trecho que
força mais e exige do atleta e daí vem o lado da experiência de estrada e do cuidado
com o transito.
precisar, foi uma medida primordial para que aumentasse o número de adeptos. Isto
porque deste modo ninguém fica para trás, pois todos devem chegar ao final do dia no
destino proposto.
568
Em relação às atividades, como o feriado geralmente ocorre no mês do junho, três
meses antes o grupo começa a se reunir duas vezes durante a semana para pedalar, com
saída próxima das 17h30min em frente à mesma igreja de partida da viagem. A distância
dos trajetos varia em aproximadamente 60 quilômetros com duração de três horas, o que
facilita a inserção dos iniciantes que almejam um dia chegar a Aparecida de bicicleta. Aos
finais de semana são realizados os pedais longos, que variam de 100 a 150 quilômetros
de distância com duração média de sete horas, conforme o trajeto escolhido. Com saída
pedaladas são, geralmente, praticadas pelos mais experientes, mas algumas vezes, os
preparado para fazer a viagem. Na maioria das vezes, o destino das pedaladas são as
estradas de asfalto, porém, algumas vezes, saem para pedalar por caminhos de terra. Esta
característica se deve muito pela viagem ser percorrida na estrada de asfalto, mas também
o grupo começa a se encontrar para pedalar, uma vez por mês eles se reúnem para assistir
Às vezes, alguns dos integrantes do grupo também realizam encontros, com churrasco,
em suas próprias casas para conversarem mais e se conhecerem melhor, depois do “pedal
longo”.
3. Procedimentos metodológicos
569
crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos
pensam. A escolha pelos sujeitos fez-se de maneira intencional, porém, de acordo com o
trinta homens e duas mulheres, na faixa etária entre vinte e sessenta anos. O critério de
inclusão foi ter realizado, pelo menos uma vez, a viagem “Jacarezinho-Aparecida de
bike”.
Na volta da segunda viagem que participei no ano de 2013, por estar praticamente
todo o grupo reunido, decidi como momento oportuno para conscientizá-los sobre a
investigação e que, necessitava fazer uma entrevista gravada com aqueles que estivessem
participantes das entrevistas foram os ciclistas que o pesquisador teve contato nas duas
Sports”, foi solicitado para cada sujeito assinar o TCLE – Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido, aprovado pelo CEP - Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos, do
IB - Instituto de Biociências, da UNESP campus Rio Claro. Aos que moravam nas cidades
questão, mas sem se prender à indagação formulada. Este tipo de abordagem permite
maior liberdade aos entrevistados para seguirem a linha de seus próprios pensamentos e
experiências, orientados por questões-chave, tendo por objetivo captar informações sobre
570
atrelado à prática (MYNAIO, 2010). Nesse tipo de pesquisa, segundo Triviños (2007), o
uma conversação com um propósito definido, ou seja, deve-se tornar a conversa como
uma forma de interação social mais próxima da realidade valorizando o uso da palavra,
símbolo ou signo por meio da qual os atores sociais constroem procurando dar sentido a
viagem que participei, seja no espaço de encontros dos ciclistas na ‘Vidativa Sports’,
como também pedalando todo final de semana e, rotineiramente, uma vez durante a
contato com o grupo foi o cicloturismo pelo “Caminho da Fé”, que resultou em um relato
de experiência308.
análise dos dados obtidos, utilizamos a Análise de Conteúdo, definida como um conjunto
Dentre as modalidades dessa análise, o estudo optou pela temática, por ser segundo
Emergiram três categorias para análise: aspectos físicos e estilo de vida, motivação
308
MANFIOLETE, L. D.; AGUIAR, C. M. Os Ciclistas de Maria e o Caminho da Fé. EFDeportes.com, Revista
Digital. Buenos Aires, Argentina - Año 18, Nº 181, Junio de 2013.
571
4. A qualidade de vida e o corpo que pedala
partir dos discursos, a fim de aprofundar o conhecimento sobre o tema. Porém, antes de
contextualização sobre a “qualidade de vida” e o “corpo que pedala”, visto que estes dois
De acordo com Minayo et. al. (2000), qualidade de vida é uma noção
amorosa, social e ambiental, que pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural
forma pela qual cada pessoa vive seu dia-a-dia. Para Nahas (2001) qualidade de vida é a
caracterizam a forma como vive o ser humano. Não existe um único conceito sobre
qualidade de vida, mas se podem estabelecer elementos para pensar nessa noção enquanto
filosófico, refere-se a um caráter do objeto, que a princípio nada diz sobre ele, suas
propriedades ou possibilidades sendo que caracterizar algo pela sua qualidade é estipular
um nível bom ou ruim a ele, porém, essa atribuição é subjetiva, de acordo com o
suas necessidades fundamentais, ou seja, uma boa ou má percepção sobre a vida é relativa
572
à qualidade do ambiente em que se encontra o sujeito, ao oferecimento de condições de
realização e de satisfação das necessidades básicas que a própria sociedade estipula como
essenciais, e que o interessado toma e deseja, ou não, como verdade para sua própria vida
campo se dão em alterações e melhorias do estilo de vida das pessoas (MINAYO et. al.,
2000). O esporte ligado à qualidade de vida é considerado um dos grandes desafios atuais
dos programas de promoção à saúde, cabendo ao educador físico o encargo de que essa
proposição alcance sua finalidade (KREBS, 2002). Para Czeresnia e Freitas (2009), o que
da vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos e um estilo de vida
pedalar como promoção da saúde é uma forma de movimento do corpo que gera
Muito se tem vinculado na mídia sobre a relação da bicicleta com a saúde. O tema
é tão importante que o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban
Ki-moon, considerado o advogado da bicicleta, espera que esta cultura continue crescendo
nas cidades. A entidade entende que a mobilidade é uma questão central da agenda atual
e que, já traçou o uso da bicicleta como promoção à saúde no mundo, tanto pela
573
motorização, como também pela redução de indivíduos portadores de doenças crônico-
degenerativas que a sua utilização como meio de transporte pode representar a médio e
A qualidade de vida está ligada a noção de corpo. Por isso, no campo da educação
física dá-se certa ênfase a esta discussão. Acompanhando este substantivo, imprime-se
uma série de adjetivos como saudável, natural, holístico, moderno, consciente, inteiro,
prazeroso, gordo, magro, entre outros (GREINER, 2005). Para aqueles que trabalham
com o corpo humano no contexto do exercício físico e lidam com os adjetivos incutidos
designava o corpo morto, o cadáver, em oposição à alma ou anima. Assim, nasceu uma
divisão que atravessou séculos e culturas, separando o material do mental, o corpo morto
do corpo vivo. Nesse caso, a noção de corpo teria a ver com o que é sólido, tangível,
sensível e, sobretudo banhado pela luz, portanto visível e com forma. Como o corpo
abrangeria muitos elementos acabou designando, ainda, tudo que está reunido, uma
“corporação”. χssim, o corpo poderia ser entendido também como corpo de uma doutrina
ou corpo da lógica. Já a carne ou o carnal (em grego sarx e em latim caro) implicaria em
keiro, da palavra grega que significa cortar, destacar (GREINER, 2005, p. 17).
Idade Média para a Moderna e que, ainda influência a atuação do profissional de educação
cartesiano, cuja premissa é a separação entre corpo e alma. Este pensador que viveu no
574
Esta dualidade histórica reflete na relação corpo/bicicleta, no campo da Educação
parte de uma cultura de movimento. Para Velozo (2010) grande parte das pesquisas sobre
ciclista. Segundo Kunz e Trebels (2006), as pesquisas na área, geralmente estão baseadas
situação: a relação do “corpo que pedala”. O ‘corpo da bicicleta’ se unifica com o corpo
caso, o ciclista se põe a prova a uma série de competências práticas e perceptivas que o
permitem pedalar com segurança, dispondo no momento que está em cima da bicicleta,
do clima, o som ambiente que se torna importante recurso para o indivíduo conduzir a
bicicleta, como alguns que pedalam ouvindo música e outros o utilizam como espelho
aquele lado, e, para recuperar o equilíbrio, novo passo é dado com a outra perna e assim
sucessivamente, andar de bicicleta parece o oposto disto, pois enquanto a pessoa está em
575
cima da bicicleta e seu corpo desequilibra para um lado, o movimento necessário para
quando a pessoa começa a perder o equilíbrio, é preciso acelerar as pedaladas para obter
mais velocidade e buscar novamente o equilíbrio. Parece até uma ação antinatural virar a
bicicleta para o lado que está inclinado ou para recuperar o equilíbrio ao aumentar a
mas o fato é que o ato parece fácil tanto que, a maioria das pessoas começa a andar de
Com a exposição cada vez maior na mídia sobre os usos da bicicleta pela
sociedade nos momentos de lazer, no âmbito esportivo ou, até mesmo, no contexto da
309
Sobre o movimento giroscópico, este é caracterizado pelo equilíbrio do condutor em cima da bicicleta
quando a velocidade de movimento mantém uma relação linear do guidão com as rodas, ou seja, quando
o ciclista aumenta a cadência da pedalada, ele se movimenta numa direção retilínea ao passo que se ele
quiser realizar uma curva, ele precisa diminuir a velocidade para depois realiza-la, haja vista os
velódromos serem inclinados para que os ciclistas não precisarem diminuir a velocidade. Como exemplo,
podemos observar que, em boa parte das quedas de um ciclista iniciante, se dão no instante de frear e
mudar a trajetória, tamanha a adaptação do corpo que pedala para adequar a este movimento.
576
corpo, incluindo os seus significados biológicos e culturais, é desencadeadora de
histórico, relacionada aos receios e sonhos de cada época, cultura e grupo social
decorrer dos últimos quarenta anos do século XX que elas ganharam uma importância
inusitada. Após os movimentos sociais da década de 60, o corpo foi redescoberto na arte,
moradias de milhares de pessoas que não eram atletas profissionais. Havia, enfim, a
prega a autonomia como norma e a conquista de novos recordes como meta. Para a autora,
nos anos 90 novas redescobertas e críticas são formuladas. Nos grandes centros urbanos,
saúde, sendo assim redescobrir o corpo começava a soar muito menos como moda ou um
signo da modernidade, e muito mais como necessidade básica e opção para garantia de
577
trabalho, como meio de locomoção das grandes metrópoles às pequenas vilas ou como
esporte praticado por um grande número de adeptos amadores, andar de bicicleta evoluiu
versatilidade na qual a bicicleta pode se encaixar na vida das pessoas, até mesmo como
lazer para viajar. O cicloturismo no Brasil se apresenta como um fenômeno com enorme
potencial de crescimento seja para as localidades que ganham com mais turistas como
5. Considerações finais
trabalho, possibilitou que fossem elencadas três categorias de análise, que, apesar de
perspectiva dos praticantes. χs principais contribuições para uma reflexão sobre o “corpo
Maria” possibilitou que aspectos físicos e estilo de vida, motivação pessoal e interação
social fossem discutidos. Apesar das pessoas falarem sobre consciência ambiental em
andar de bicicleta, nos discursos não foi notado este fator. Um fato que contribuiu para
essa discussão foi que o grupo é interessante do ponto de vista sociocultural, por fazer um
nosso país e, além disso, ao longo dos anos o número de praticantes aumentou de forma
significativa.
578
Com relação aos aspectos físicos e estilo de vida, a prática do cicloturismo esteve
ligada, entre outras coisas, à saúde e lazer. A educação para um estilo de vida ativo é uma
das tarefas fundamentais que o profissional de Educação Física deve cumprir, pois se o
objetivo é fazer com que o indivíduo venha a incluir o hábito de atividade física em sua
vida, é fundamental fazer com que estas pessoas sintam prazer em se movimentar e que,
ao longo do tempo, desenvolvam certo grau de habilidade motora, o que lhes dará a
emoções distintas, que pode gerar um significado para aqueles que pedalam e se reúnem
grupo por meio de ideais, atitudes e comportamentos distintos criados a partir de uma
série de códigos e valores que os caracterizam enquanto grupo. Esses aspectos aparecem
de distanciamento dos problemas cotidianos, pois ele tem que se concentrar naquele
momento no ato de pedalar e no trânsito da via. É notório que esse gesto é um tipo de
nosso país. O primeiro passo para uma possível mudança é a inclusão da disciplina de
para os municípios com alta densidade populacional, o que acarretará mais pessoas
579
Em relação à intervenção profissional, o cicloturismo se estende para uma gama
de turismo que promovam viagens de bicicleta, ou até mesmo, nas escolas, a promoção
A bicicleta chega ao século XXI como uma resposta aos pedidos de mudança, pois
atende ao chamado de uma vida mais saudável porque antes de tudo, ela nos ensina a
que talvez possa reconciliar a sociedade consigo mesma (AUGÉ, 2009). A bicicleta se
tornou um significante cultural que começa a unir pessoas de diferentes estratos, pois
sinaliza uma sensibilidade que representa uma interação mais humana e um ambiente
essa, fazendo com isso nos faz questionar sobre o mundo em que vivemos. Portanto, a
e dos discursos dos sujeitos, o objetivo foi entrelaçar estas três formas de conhecimento,
580
Referências
Prefácio do professor Luiz Gonzaga Godoi Trigo. – São Paulo: Escola de Artes, Ciências
AUGÉ, M. Elogio de la Bicicleta. Tradução: Alcira Bixio. Editorial Gedisa S.A. Primeiro
http://www.detran.rs.gov.br/uploads/1402062951Ciclistas_2013__atualizado.pdf.
581
GONÇALVES, A. Em busca do diálogo do controle social sobre o estilo de vida. In:
debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 5, n.1, p. 7-18, 2000.
582
SχNT’χNNχ, D. ψ. As Infinitas Descobertas do Corpo. Cadernos Pagu (14) pp.235-
249, 2000.
século XIX para o século XX. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
583
THOMAS BERNHARD: LUCIDEZ E TESTEMUNHO EM TEMPOS
PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
E-mail: danielfrancaostanchi@hotmail.com
Bernhard (1931-1989), importante escritor e poeta austríaco que viveu no século XX.
experiências pessoais que o autor viveu na Áustria do pós-guerra como também são
humana na sua dimensão ética e política. Neste sentido, a leitura atenta das palavras de
Bernhard muito nos ensina sobre as condições de vida e as relações humanas que são
debruçamos sobre o fazer clínico, este que, assim como a leitura da obra de um artista,
relava os impasses vividos pela pessoa em seu percurso e ao mesmo tempo deflagram as
310
Daniel Franção Stanchi é Psicólogo e Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de
São Paulo. Professor do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Paulista – UNIP. Coordenador,
em São Paulo, do Espaço Ethos e Polifonia: Arte, Literatura e Psicanálise.
584
possibilita também uma reflexão sobre a literatura, a escrita e a leitura como
Abstract: This paper intends to establish a conversation with Thomas Bernhard (1931-
1989)’s autobiographical work, an important writer and poet of χustria, who lived in the
XX century. We do have in mind the understanding that his texts reveal not only his
personal experiences in the Austria of the post-war but also gives a very lucid witness
about the degradation of human relations and life conditions in the modern and
contemporary world, an aspect which puts in risk the preservation of the ethic and
political dimension of human condition. In this sense, reading with attention what
Bernhard taught us about the life conditions and the breaking of the relations by
the ways of suffering people have nowadays, in special when we focus the clinical
situation which show us, as the reading of artist’s books also does, that the difficulties a
person lives in his or her way through life is a window to the life condition of the historical
moment he or she is in too. ψernhard’s works give the chance to think about the literature,
writing and reading as a possibility of ethical recover of the human condition in dark
times.
585
Thomas Bernhard em 1988.311
Paulo fazendo parecer que estou no verão embora eu saiba que é a primavera que
começará em poucos dias, ouso pela primeira vez dizer algo sobre Thomas Bernhard. É
a primeira vez que ouso tentar traduzir em palavras o que venho sentindo e descobrindo
nas leituras de seus textos. Meu encontro com a obra deste artista e poeta austríaco que
viveu no pedaço de tempo que separa os anos de 1931 e 1989 se deu a partir de meu
apreço pela boa literatura e pela procura por escritores que narram de modo encarnado
tanto as experiências que chegaram até eles no lugar e no momento histórico onde
estavam e onde nasceram como também as experiências mais intimas que brotam da
311
Fonte: http://miltonribeiro.sul21.com.br/wp-content/uploads/2012/10/Thomas-Bernhard-1988.jpg
Consultado em 30 de agosto de 2013.
586
Mais do que um autor de seu tempo, a Áustria do século XX, atravessada no
coração pelas farpas ensanguentadas das Guerras Mundiais, Bernhard é um artista que se
manteve lúcido em seu tempo e por meio dessa lucidez luminosa (e por vezes impiedosa)
ele nos presenteia com uma obra que desvela aspectos da vida humana que estão para
além de seu tempo e que de meu ponto de vista chegam até nós na atualidade. É
considerando que este autor pode nos ajudar na compreensão da realidade e da clínica
desenrolar da História com seus eventos deslizando no eixo temporal de Chronos, mas,
mais do que isso, Bernhard nos oferta o testemunho de seu sofrimento em um mundo que
já vinha sendo congelado século após século pelo projeto moderno enraizado na frieza
lógica e no racionalismo como verdade suprema sobre o humano, questão que desemboca
nas diversas formas totalitárias e chega até nós dos modos mais irreconhecíveis, inclusive
nas Ciências Humanas. Talvez seja possível dizer que um dos aspectos do que Bernhard
O Mal é um problema ético, uma experiência que põe em risco a condição humana, como
nos mostrou Paul Ricoeur (1998) no seu estudo sobre O Mal312. E surge, na atualidade,
uma “violência silenciosa ou não reconhecida” que permeia a vida humana fraturando-a,
Tenho lido e relido os textos de Bernhard como alguém que aceita ser guiado pelo
autor a uma espécie de passeio que tem me permitido uma experiência contundente,
312
RICOEUR, P. (1998) O Mal. Um desafio à filosofia e à teologia. São Paulo: Papirus.
587
literatura e vida não se separarem é levada às últimas consequências, não como uma
questão de mais um “falar bem” entre os tantos disponíveis na atualidade, mas como uma
apuradamente a condição em que vivemos hoje. Para mim, a leitura dos textos de Thomas
Bernhard tem sido curativa, possibilitando uma compreensão mais apurada e mais
aprofundada do meu próprio viver e das experiências dos pacientes que têm me dado
textos foram publicados separadamente, em cinco volumes, entre os anos de 1975 e 1982.
Neles, encontramos os relatos de Bernhard de sua infância até a fase adulta quando esteve
tecerei algumas reflexões tendo como foco alguns aspectos que tenho observado no fazer
clínico com pacientes de diferentes idades. Tenho encontrado sintonia entre o que
Bernhard nos mostra por meio de sua arte e aquilo que alguns pacientes têm relatado na
de Psicanálise (Middle Group), entre eles estão Donald Winnicott, Marion Milner, Masud
referencial teórico e poético que tem permitido minha construção como psicanalista de
um modo pessoal e rigoroso. Neste tipo de perspectiva, o diálogo com artistas e poetas é
bastante valorizado não tanto no sentido de tentar “colocar as obras dos artistas no divã”,
da biografia dos seus autores, mas de nos deixarmos ser afetados pelo texto e pela
sabedoria que transpira nas e entre as palavras do texto. Trata-se de uma compreensão,
588
de um “caminhar junto” em que um poema ou uma obra de arte nos ensina
exemplo, em seu poema intitulado “Biografia da dor” ψernhard (2000, p. 119) nos diz o
seguinte: “Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta/ estão
empilhadas as cadeiras e nenhuma pessoa a quem/ Pergunto por mim me viu”. Este é um
tipo de fala que por vezes ouvimos na atualidade de alguns pacientes que relatam suas
pacientes apresentam-se na situação clínica com um tipo de fala que não mais faz
referência a um outro humano. São falas que apresentam um viver por vezes esvaziado
de sentidos e de presenças. A situação clínica nesse sentido, afinada com o que nos mostra
Safra (2005), pode vir a ser a possibilidade do encontro com um outro humano que guarde
Não se trata, portanto, de uma clínica voltada especificamente para a promoção do insight,
mas de uma clínica da experiência e do encontro que abre e funda possibilidades de ser
Bernhard, quando menino, teve a sorte de ter encontrado uma presença humana
viva que, segundo seu relato, foi fundamental em todo seu percurso de vida: seu avô.
Pelos relatos que acompanhamos, este parecia também reconhecer as fraturas presentes
acreditando que a formação humana vem desta sabedoria encarnada e não do saber
589
por discursos religiosos dogmáticos e valorizava o viver simples e as pessoas simples.
escancaram as cortinas que os outros vivem fechando. Quando estamos com eles,
vemos o que é real, não vemos apenas a plateia, mas o palco também, e vemos
tudo que se passa nos bastidores. Há milênios, os avós criam o demônio onde, sem
eles, só haveria o bom Deus. Graças a eles, ficamos conhecendo o drama por
inteiro, e não apenas a farsa de um fragmento miserável e mentiroso. (...) Meu avô
simples e para a não aceitação passiva da realidade. Esta relação ofertou ao escritor
sustentação e rosto, fundando no jovem poeta um olhar crítico e sensível sobre o mundo
ao redor, aspecto que ele foi apurando ao longo da vida. Podemos ir reconhecendo, ao
longo de seus textos, como essa relação com o avô parece ter sido fundamental para ele,
não apenas na infância, mas ao longo de toda sua vida. Em outro trecho, ele nos conta:
Ouvir uma pessoa simples falar é um prazer. Ela fala, em vez de tagarelar. Quanto
mais instruídas as pessoas ficam, mais insuportável se torna sua tagarelice. Também
pedreiro ou lenhador, mas não a uma pessoa instruída, ou dita instruída, porque
sempre a tagarelice dos tagarelas, os outros se calam, porque sabem bem que não
590
É possível encontramos inúmeros trechos nos escritos de Bernhard onde ele
afetando e por vezes destruindo o ambiente e as relações dentro das famílias, na educação
e na cultura. Ele nos chama a atenção para a perda da poesia que nos visita no cotidiano
e no encontro com o outro, quando o surpreendente vai sendo substituído pelo repetitivo.
A natureza e a cultura, por exemplo, deixam de ser usadas pelo humano a fim de que um
caminhar pela vida seja possível com sentidos que vão se renovando e que contemplem
o vir a ser da pessoa humana em sua complexidade, sem reduzi-la a modelos abstratos.
Neste tipo de perspectiva, tanto a natureza e o trabalho assim como o outro humano vão
que se desdobra ao longo do tempo e que comparece com grande frequência na clínica na
barbárie era mais do que evidente. Este aspecto visceral de sua obra pode soar um tanto
O percurso de vida de Bernhard não foi nada fácil. Ainda muito jovem, um amigo
especial morre e ele se depara, pela primeira vez, com a dura experiência de perder
alguém. A morte será para o então jovem menino uma companheira de viagem. Em uma
313
O breve trecho da entrevista de Thomas Bernhard, realizada por Krista Freischmann em 1978, está
disponível no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=PrHVNNCpvVs
591
A morte foi-me colocada no berço e persegue-me, não tenho nada contra a morte,
simplesmente levo-a comigo e ando com a morte através da vida, por assim dizer.
(...) Nunca tive medo, sempre me defendi disso, pelo contrário a morte me tornou
mais forte, é verdade que pode enfraquecer as pessoas, especialmente quando não
não quero fazer. Eu sempre me revoltei contra a morte, mas não a rejeito porque
seria uma estupidez, não se pode rejeitar a morte porque ela virá, na verdade está
sempre aqui e só se pode: ir com ela ou defender-se dela e por isso preciso dela
Ainda menino, Bernhard vai morar com a mãe e o tutor em uma casa que pertencia
a uma velha senhora, sendo que no andar térreo funcionava nada menos que uma
funerária. O tutor e a mãe encontram uma casa para o avô morar no campo. Neste lugar,
o avô, que apreciava profundamente os livros, organiza um espaço para sua biblioteca e
apresenta algo de Hegel, Kant, Schopenhauer e Shakespeare para o jovem neto que ouvia
aqueles nomes com respeito e sensação de mistério, transmitidos pelo seu verdadeiro
professor. Neste período, Bernhard passa a frequentar a escola, onde encontra graves
Para mim, a felicidade suprema era poder pernoitar na montanha sagrada. Tinha
sequer pronunciar a palavra Áustria. Havia tempo que as pessoas não mais se
592
cumprimentavam com um Grüssgott, e sim com um Heil Hitler, e aos domingos
Traustein exibia não apenas os fiéis de preto, mas também as massas ruidosas de
Aos treze anos de idade, o avô envia Bernhard para um internato em Salzburgo,
onde ele passa a viver e a estudar, lugar em que, segundo ele, tudo contrariava a
a cidade e, por vezes, o único recurso dos que tinham sorte era se esconder em túneis onde
nem uma única pessoa, ninguém se deu conta de que se tratava de um estado
doentio, de uma doença fatal, contra o qual e contra a qual nada foi feito. (Idem,
p. 155)
desaparece.
Donald Winnicott (1971) assinalava que, em seu ponto de vista, a pessoa mais adoecida
funcionamento, mas a pessoa mais adoecida seria aquela que teria perdido a esperança,
ou seja, o sentido de si mesmo. Esperança é sinal de saúde para este autor, que considera
o viver mesmo importante como um campo dinâmico onde o ser humano, a partir de sua
593
criatividade primária e da experiência compartilhada, cria o mundo e a si mesmo com
sentidos.
Neste tipo de condição que Bernhard nos dá notícia, estamos diante de uma
observava este fenômeno ocorrendo a sua volta e inclusive nele mesmo, o que por vezes
lhe dava vontade de desistir de tudo e da própria vida. Trata-se de um tipo de adoecimento
que atinge o ethos humano, como nos mostra Safra (2004), ou seja, são organizações de
mundo que ferem os aspectos que possibilitam o viver e o acontecer da vida humana. É
muito interessante como Bernhard parece manter-se lúcido e esperançoso em meio aos
escombros de sua cultura. A esperança, em Bernhard, parece manter-se viva pelo avesso!
Quando tudo parece destruído e não mais contemplar a medida humana, eis que algo
surge que desvela e que preserva algum caminho. No sofrimento, às avessas, o contorno
de um rosto se desvela.
traços humanos, de tal modo que só por essa época, nem antes nem depois,
consegui amar de fato minha cidade natal, e amei de todo o coração. (Bernhard,
2006, p. 161)
mas passa a frequentar outra escola, de orientação católica. Sobre elas, ele observa que a
visão de homem que impera nos dois lugares era a mesma que devastava espíritos e
personalidades, somente os hinos e o discurso dos colégios eram diferentes, mas a lógica
594
era a mesma. Imperava neste ambiente a simulação, a dissimulação e a imbecilização das
(...) de início (na escola básica), eu havia sido submetido a uma história mentirosa
nazista, dominado, pois pela mentira nazista, agora (no ginásio) era a vez da visão
católica. (...) Não fui infectado por nenhuma das duas porque a precaução do meu
avô me imunizara, mas sofri com elas, como só uma criança na minha idade podia
Mais uma vez, vemos a presença do avô como alguém que oferta sustentação,
experiência de Bernhard com o avô nos lembra dos dizeres de Dostoiévski (1821-1881)
Fala-se muito sobre educação, mas alguma memória sagrada e bela, preservada
memórias consigo, elas o salvam para o resto de seus dias. Mesmo se somente
uma boa memória vive em nosso coração, ela será o instrumento de nossa salvação
quando caminhavam juntos durante horas. Bernhard assinala também que o avô possuía
um saber dos costumes e condições de vida do povo. Temos aqui bastante sublinhada a
aspecto fundamental na atualidade, quando por vezes encontramos pessoas que perderam,
595
Pensando a situação clínica tendo em vista alguém que perdeu ou que nunca
encontrou a experiência de conviver com um outro humano, considero que o modo como
o analista ou terapeuta trabalha precisa ser revisto. Sobre essas questões, encontrei
diálogo com alguns autores que discutem essa necessidade de o analista rever seus
pressupostos técnicos e teóricos (ver, por exemplo, Khan (1971), Milner (1969),
Winnicott (1954) e Safra (2005, 2004 e 2006a). São autores que, cada qual com seu estilo
clínica e de o clínico poder tornar elástica a sua técnica, algo já apontado há tempos por
Ferenczi (1928), o que implica em reorganizar a situação clínica tendo em vista qual a
falatório. É interessante este tipo de fala, pois desvela o encontro clínico também como
aparece aqui não como um evento que possibilita recordar o passado ou tornar o
Lembro neste momento de um paciente, rapaz de uns 40 anos que em uma sessão
na sessão, parecia sempre muito agitado e mexia o corpo sem parar na poltrona. Fomos
trabalhando essas questões e, em uma sessão, ele narrou que havia viajado e que durante
a viagem teve vontade de acordar cedo para ver o nascer do sol pela primeira vez. Dizia-
experiência, para ele muito encantadora, ele dizia que havia sonhado acordado, e que
tinha se sentido quieto pela primeira vez na vida. Disse ainda que tinha pensado em talvez
596
deitar no divã e simplesmente estar quieto, do mesmo modo que experimentava diante do
convivência se inaugurava!
Por meio da singularidade de sua obra, Bernhard nos aponta essas rupturas que se
regido pelo totalitarismo e pela hegemonia da técnica crescente. Sobre este momento
assumida como o evento que marca o ato de nascimento da idade da técnica. Não
foi, então, como hoje pode parecer, um evento errante ou atípico para a nossa
época e para o nosso modo de sentir; antes, foi um evento paradigmático, capas
ainda hoje de assinalar que, se não formos capazes de nos colocar à altura do agir
técnico generalizado, com dimensão global e sem lacunas, cada um de nós cairá
Foi neste ambiente que aos quinze anos de idade, em um dos dias de aula, sem
avisar nada aos familiares, ao invés de rumar para o colégio, Bernhard rumou para a
alimentícios, chamado Podlaha. Neste trabalho, Bernhard passaria três anos. A este lugar
597
χo ir para o porão, ψernhard nos conta que se sentia indo para “o aprendizado
ginásio. De repente, senti: minha existência é de novo uma existência útil. Tinha
Scherzhauserfeld. Era um lugar onde as pessoas não só iam para comprar coisas, mas se
Thomas. Ele nos conta que se com o avô tinha aprendido a arte de observar as pessoas,
com os seres humanos, aliás, com muitos deles e dos mais variados tipos. Com
meu avô, eu frequentara a escola filosófica – de maneira ideal, porque desde cedo
Ter frequentado logo cedo essas duas escolas, uma complementando a outra, foi
comercio de alimentos que era um porão e aquele mesmo porão que abrigava o
Indo com Bernhard ao porão, podemos reconhecer que ele nos fala de um aspecto
fundamental da vida humana: o convívio. E ao mesmo tempo, ele faz uma denúncia de
aspecto que ele experimentou em sua própria pele tanto nas relações familiares como nos
esquemas educacionais nos quais foi inserido. É interessante o escritor sublinhar que o
598
lugar era para ele o seu alimento primordial. Bernhard dá um estatuto profundo e valioso
atualidade vemos a enxurrada de livros e manuais que são comercializados com a suposta
consigo mesmo, aspecto que funda o gênero da autoajuda. Este tipo de lógica é
denunciado por Bernhard, perspectiva onde a vida é secundária a um script de como viver
convivência.
Bernhard assinala que no porão ele podia encontrar um tipo de convívio com as
pessoas que lhe trazia o sentimento de que a sua vida tinha sentidos. “Se antes acreditara
não ter futuro nenhum, agora eu o tinha, sim, e cada momento possuía de repente aquilo
que desaparecera de minha vida fazia tempo: fascinação.” (Idem, p. 226). ψernhard
momento histórico onde sonhar um futuro possível é algo muito complexo diante da
devastação e da desesperança que estava presente nas pessoas e no campo social, algo
racionalidade iluminista que vinha sendo aclamando ao longo dos séculos como um modo
Há ainda dois aspectos muito importantes que Bernhard encontra no porão. Ele
nos diz que lá podia surpreender-se com seu fazer e com as pessoas que encontrava. Na
599
atualidade, em um mundo globalizado, onde impera a hegemonia do Mesmo, a
fenômeno quando recebemos pacientes que chegam já com um suposto diagnóstico sobre
si mesmo. Eles chegam já afirmando que são depressivos ou que são hiper-ativos, etc, o
experiência faz com que a pessoa por vezes se confunda com um nome ou com um tipo
convivia. Indo ao porão, Bernhard nos diz que sentia estar indo cada dia mais ao seu
próprio encontro, e enquanto ia ao ginásio se sentia cada vez mais indo embora de si.
Em seu trabalho, Bernhard mantinha-se lúcido, o que lhe permitia perceber que
vida. As mulheres, diz ele, vinham ao porão para fugir do terrível cotidiano doméstico.
Como haviam voltado para casa após o término da guerra – e que houvessem
voltado – disso falavam sem cessar, provavelmente sonhavam com isso quando
não tinham ninguém com quem conversar sobre o assunto. A guerra só tinha
acabado na superfície; nas cabeças das pessoas ela seguia enfurecida. Todos
sabiam como a derrota poderia ter sido evitada e todos tinham previsto o
600
exceções eram os silentes já sem um braço, com uma placa de metal na cabeça ou
sem as pernas. Esses não se prestavam a debater a guerra, e na maioria iam embora
guerra era sempre o assunto número um das conversas. Ela é a poesia do homem,
a obra pela qual ele demanda atenção e consolo vitalícios. Cada um à sua maneira,
apatia total, indigna do ser humano. Tinham aprendido desde cedo a odiar, e
tudo e contra todos. Ódio gera ódio, odiavam-se uns aos outros como a tudo o
Como nos mostra Bernhard no trecho acima, esses homens viviam o que Simone
demais destituindo a condição humana em suas raízes, como quando o escritor nos diz
que o ódio gerava ódio. Há também a importância deste lugar que Bernhard reconhecia
como um espaço de convívio onde algumas pessoas podiam, quando tinham condições,
narrar o vivido, como no caso dos homens que recontavam a experiência horrível que
viveram na guerra, sendo esta narrativa a sua única poesia possível. Narrar experiências
implica em alcançar algum domínio diante do que foi vivido, aspecto também abordado
por Walter Benjamin315 quando ele discute a importância do narrar na vida humana em
seu belíssimo texto O Narrador, escrito na década de 1930. Benjamin e também Bernhard
pessoa perder a possibilidades de narrar experiências de onde alguma poesia ainda possa
314
WEIL, S. (1943). O Enraizamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001
315
BENJAMIN, W. (1936). “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras
Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
601
brotar. É importante ressaltarmos que Bernhard está nos apresentando um mundo onde o
adoecimento humano surge como perda da poesia, ou seja, como perda do sentido de
Outro aspecto que quero ressaltar ao lado de Bernhard no porão é o fato de ele
muito a importância do prazer, mas quase não se fala da alegria, não é dado à experiência
de alegria o lugar que ela merece. Encontrar e viver alegria é fundamental para a vida
humana no cotidiano. Bernhard assinala que era necessário que o ambiente do porão
contemplasse a ordem e a limpeza, aspecto que, também como nos mostra Weil são
necessidades da alma humana. É o que nos mostra Bernhard neste belíssimo trecho:
o caixa tinha de bater. Para meu espanto, o de meus colegas e para espanto
supremo do meu próprio patrão, eu me adaptei com rapidez e não tinha dificuldade
alguma em fazer as coisas de modo correto ou em fazer tudo que era exigido de
mim. Além disso, estava sempre aberto a todos, e a alegria que levava comigo
para o porão era contagiante; de onde vinha aquela súbita capacidade de ser alegre
e de contagiar os outros com minha alegria, não sei, sempre estivera em mim e
agora voltava a ter vazão, não havia sido sufocada. Muitas pessoas iam à
602
Lembro-me aqui do belíssimo verso do poeta inglês William Blake316 que diz:
Em toda essa apresentação que Bernhard faz do porão onde trabalhou podemos
reconhecer aspectos que são fundantes da condição humana. Segundo ele nos conta, lá
era possível encontrar um lugar onde viver em um ambiente humano. No porão, Bernhard
ele chamava o seu chefe, e onde as suas qualidades também podiam encontrar lugar no
encontro com os outros. Era possível um intercambio de experiências humanas que dava
linguagem de Winnicott. No campo da Psicanálise, este foi um autor que muito valorizou
o lugar do ambiente humano na constituição do self. Para ele, não é possível abordarmos
significativas que esta pessoas encontrou ou não e o ambiente cultural onde ela nasceu e
onde vive. Em sua obra, Winnicott destaca o momento primordial da relação da mãe com
316
Marion Milner, poeta e psicanalista importante do Grupo Independente de Psicanálise (Middle Group)
citava esse e outros versos de Blake com frequência. Milner foi uma das poucas ou talvez a única que deu
um estatuto digno e profundo à experiência de alegria na condição humana.
603
o bebê que chega ao mundo e que é recebido pelos cuidados maternos, familiares e
culturais. Ao lermos os textos de Bernhard podemos reconhecer alguns dos aspectos que
Winnicott ressaltou em suas discussões teóricas e clínicas (com grande ênfase na relação
apresenta-se como uma experiência curativa em seu processo de vida. Lá, ele nos conta,
foi possível a ele fazer-se aprendiz e seguir um novo caminho. É neste ambiente, no
convívio com o chefe e com os outro, que Bernhard também descobre um dos gostos que
Passei a ir à mercearia ainda com mais gosto do que antes. Meu amor pela música,
que sempre foi e permaneceu o amor da minha vida, logo se ancorava também
num estudo formal (...). o que nunca me fora possível no meu tempo de ginásio
os fundamentos com base nos quais podia avançar em minha formação musica.
(Idem, p. 298-299)
de Thomas Bernhard. Dentro do propósito deste artigo, não caberia seguirmos com a
necessária atenção todos os eventos que ele nos apresenta ao longo das 500 páginas que
compõem seu relato autobiográfico. Porém, há ainda algumas palavras que eu gostaria de
Ainda no porão, Bernhard adoece. Um resfriado que ele ignorava acabou por
transformar-se em um derrame pleural grave, evento que fez com que ele fosse internado
experiências contundentes, entre elas, ele acompanha pela primeira vez uma pessoa
604
morrer diante dele. Na longa temporada na clínica, Bernhard reconhece a mesma
impessoalidade e distanciamento que ele vinha nos apresentando, por exemplo, na família
e na escola. Vemos, então, que aqueles mesmos aspectos presentes em sua cultura e que
também que Bernhard perde o tão querido avô, que não pode ser enterrado em nenhum
dos cemitérios do bairro, embora a família houvesse tentado durante dez dias, pois o padre
local não autorizava pelo fato de o avô não ter se casado com a avó de Bernhard na Igreja.
A escola do meu avô, que, posso dizer, frequentei desde o meu nascimento, se
fechara com sua morte. Com sua morte repentina, ele me dispensara de suas aulas.
Tinha sido uma escola primária e, por fim, também uma escola superior. Agora,
minha impressão era de que eu tinha uma base sobre a qual construir meu futuro.
(Idem, p. 379)
por contrair tuberculose, passando antes pela clínica de Grossgmain, gostaria de destacar
ψernhard nos conta que “foi ali em Grossgmain, como bem me lembro, que me
nos conta a importância que a leitura exerceu em sua vida, em especial neste momento.
Ele nos conta que pediu aos familiares que lhe trouxessem livros. Leu Shakespeare,
Bernhard a dialogar com um companheiro seu de quarto. Bernhard lutava contra a doença
605
e, por meio da leitura, foi possível reunir forças. Além disso, ele nos conta que nesse
momento a presença da mãe foi fundamental para ele. Entre as leituras, eles conversavam
e sua mãe lhe contava momentos de sua própria infância. As visitas mais deliciosas,
segundo ele, foram aquelas nas quais a mãe lia para ele e eles conversavam. Depois de
algum tempo, a mãe de Bernhard morre e seus parentes deixam de escrever para ele. É
– um livro tão instigante e radical eu nunca tinha lido antes na vida, assim como
nunca tinha lido um livro tão grosso: anestesiei-me, dissolvi-me por algum tempo
nos Demônios. Quando voltei, não quis ler mais nada por algum tempo, porque
certo: para fora. Tinha sido afetado por uma literatura selvagem e grande, e dela
emergi eu próprio como herói. Poucas vezes na minha vida posterior a literatura
quem escreve um poema salva um afogado! Um bom encontro com um texto pode auxiliar
este aspecto fica bem presente. A literatura surge aí como um lugar que sustenta e
606
possibilita a continuidade de si e o diálogo com os outros humanos, tanto aqueles que
estão presentes ao redor da pessoa, como também com a Humanidade que permanecesse
viva nas obras. A obra de arte oferta rosto e presença e nela a humanidade se
desaparecem.
Surge neste tipo de experiência que Bernhard nos conta a possibilidade de se abrir
ter surgindo fundamentalmente entre317 Bernhard e sua mãe. Este interessante aspecto da
de risco social e de sofrimento, tem sido estudado com profunda maestria e sensibilidade
pela antropóloga francesa Michèle Petit (ver Petit (2009 e 2013). Em seus textos, Petit
nos mostra como o encontro com um texto pode ser de grande ajuda na superação de
com a obra de Thomas Bernhard tem sido para mim um encontro curativo também, ao
fundamental na atualidade, tanto na vida cotidiana como também no trabalho clínico com
auxílio em nossa formação como pessoas, ao apontar alguns desses importantes aspectos
317
Winnicott (1971) nos ensina que é no que ele denomina de a terceira área da experiência, que não se
encontra nem no campo subjetivo nem no objetivo, que surge o que ele denomina de área transicional. É
nesta área que o intercambio de experiências humanas se funda na relação com o outro, com as coisas e
com a cultura.
607
que procurei explicitar neste artigo, entre outros. Por vezes, uma das características da
arte é que ela preserva! Trata-se, em meu ponto de vista, de um encontro que pode ser
necessário em um mundo onde a formação está cada vez mais deformada, reduzida às
questões tecnicistas e mercadológicas. Para finalizar, deixo ao leitor com alguns trechos
deste que foi um modo bastante contundente de Bernhard fazer um discurso a propósito
de um prêmio que ele havia recebido. É possível reconhecermos nele alguns dos aspectos
centrais do testemunho que o autor nos dá a partir de sua viva lucidez em tempos
sombrios.
de Bremen
Não posso me apoiar na lenda dos senhores sobre os músicos de Bremen; não
quero contar história nenhuma; não quero cantar; não quero fazer nenhuma
filosóficas; o mundo dos espíritos já não existe, e o próprio universo não é mais
uma lenda; Europa, a mais bela de todas, está morta; essa é a verdade e a realidade.
Assim como a verdade, a realidade não é uma lenda, e a verdade nunca foi lenda
nenhuma.
Há apenas cinquenta anos, a Europa ainda era só uma lenda, o mundo todo era um
mundo lendário. Hoje, são muitos os que vivem neste mundo lendário, mas o
mundo em que vivem está morto, e mortos eles também. Quem não está morto
608
Eu próprio também não sou lenda nenhuma, não venho de um mundo lendário;
seguirem adiante, por cima dos mortos; na realidade, tudo seguiu em frente; na
verdade, tudo se modificou; ao longo de cinco décadas, nas quais tudo foi revolta,
tudo mudou, nas quais, de uma lenda milenar, fizeram-se a realidade e a verdade,
tendo sentido um frio cada vez maior, enquanto um mundo novo surgia do velho,
Viver sem lendas é mais difícil, e é por isso que é tão difícil viver no século XX;
seguimos existindo apenas; não vivemos, ninguém mais vive; mas é bom existir
no século XX; seguir adiante; para onde? Sei que não saí de nenhuma lenda e que
não vou entrar em lenda nenhuma, o que já é um progresso, uma diferença entre
antes e hoje.
Nós nos encontramos agora num território que é o mais terrível de toda a história.
natureza; no último meio século, temos sido, todos nós, juntos, nada mais que uma
única dor; é essa dor que somos nós hoje; essa dor é agora nosso estado de espírito.
do mundo, assim como temos uma moral inteiramente nova, e ciências e artes
609
Tudo mudou porque nós mudamos tudo, a geografia exterior modificou-se tanto
quanto a interior.
Agora, exigimos muito, não nos cansamos de exigir cada vez mais; nenhuma outra
como sabemos que não podemos cair nem congelar, ousamos fazer o que fazemos.
A vida tornou-se ciência apenas, ciência das ciências. Agora, de repente, nos
natureza, não vemos mais fantasmas. Escrevemos o capítulo mais ousado no livro
morte, não em consonância com sua própria vontade ou com se próprio gosto, mas
segundo a lei da natureza, e escrevemos esse capitulo pelas costas de nossos pais
mundo científico; congelamos nessa claridade; mas quisemos tê-la, fomos nós que
a evocamos e, portanto, não nos é lícito reclamar do frio que agora impera. Com
a claridade intensifica-se o frio. Essa claridade e esse frio é que vão imperar de
agora em diante. A ciência da natureza vai nos proporcionar uma claridade maior
610
Tudo se tornará claro, de uma claridade cada vez maior e mais profunda, e tudo
se tornará gélido, de uma frieza cada vez mais pavorosa. No futuro, teremos a
Agradeço aos senhores pela atenção. E agradeço também pela honra que hoje me
Referências
In: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história
das Letras.
611
HONEGGER, G. (2001). Thomas Bernhard: the making of an Australian. Yale
University, USA.
Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Tradução de Glória Vaz. Rio de Janeiro, F.
Alvs, 1977.
MILNER, M. (1969). The hands of the living God. Londres, Hogarth, New York: Int.
Press.
SAFRA, G. (2005). A Face Estética do Self: teoria e clínica. 4 ed. Aparecida, Ideias e
Letras.
612
WINNICOTT, D. W. (1954). “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressao no
Masud Khan. Tradução de Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.
613
A RELAÇÃO SUBJETIVA COMO LUGAR DE MEMÓRIA: ENCONTRO EM
CLÍNICA ANALÍTICO-EXISTENCIAL
Soren Kierkegaard.
Kierkegaard.
Abstract: This study aims to show how the relationship between psychotherapist and
client constitute itself as a singular event of each subjectivity and its place of memory
when they meet each other at the psychology clinic. For that, we present the fundamentals
318
Psicóloga. Mestranda do programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), bolsista da CAPES, integrante do grupo de pesquisa
Memória, Subjetividade e Subjetivação no pensamento contemporâneo.
319
Professor titular do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (DFCH--UESB). Professor permanente do programa de Pós-graduação (doutorado e
mestrado) em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB. Professor convidado do Programa de Pós-
graduação em Linguística da UESB.
614
demonstrate the contributions of Paul Ricoeur on memory understanding and the
Kierkegaard;
relação entre psicoterapeuta-cliente, uma vez que, sendo apenas técnica, não realiza o
encontro e nem considera o ser humano como presença. O aspecto relacional tão caro
para o fazer da psicoterapia sinaliza que o acontecer humano está ancorado na existência
Kierkegaard (1974) ao estabelecer que o homem é uma relação que se relaciona consigo
mesmo e que reduplica a relação com o outro que ele denomina como próximo.
pois do contrário, nos mostra Gilberto Safra (2004, p.27), “joga o paciente em direção ao
novos sentidos sociais, um lugar que as pessoas buscam para narrar-se, encontrar um
lugar em que faça sentido para a subjetividade em situação. Especialmente num contexto
como o moderno, marcado pela superficialidade, pela descartabilidade e pelo tédio, que
615
Neste trabalho, pretendemos evidenciar numa perspectiva existencial
psicológica. Para fundamentar este trabalho estaremos dialogando com os teóricos Paul
Luis Cláudio Figueiredo (2004) considera que a ética é o que define a clínica
psicológica como clínica, uma vez que está comprometida com a escuta atenta e
sustentação dos conflitos e tensões da pessoa ali presente. χssim, “clinicar é inclinar-se
diante de, dispor-se a aprender com” (p.166), estar aberto ao outro, cuidar, estar
disponível. Para o autor, o clínico seria a escuta de que nosso tempo necessita para ouvir
perspectiva desenvolvida por Lèvinas, Kierkegaard e Hans Jonas, denominada como ética
a ação ética.
realidade existencial que se constrói como relação, pois o ser singular implica a existência
616
que a singularidade se manifeste nas nossas lembranças e na memória, é uma urgência
para a clínica atual. É também urgente compreender que este outro, ainda que singular e
individual, por existir em comunidade, se apresenta na clínica com tudo que ele é, carrega
trabalhada considera a vivência social e cultural deste outro como fundamental para a
clínica que se propõe a compreender a existência. Como afirma Safra (2004, p. 25), “a
travessia pela vida é feita por uma linha estreita somente possível pela presença do outro
Existencialismo, o qual segundo Rollo May (1988), foi fortemente marcado pelo protesto
até então existentes sobre o homem não eram suficientes para compreender as crises e o
processo de deslocamento de deixar de ser para tornar-se e não explicá-lo apenas, pois
seria definir o homem e engessá-lo num determinado conceito. O tornar-se, não como
conceito, mas como movimento existencial, pois afirma Kierkegaard (2010), em sua obra
e, como tal, ao mesmo tempo ele mesmo e todo o gênero humano, de maneira que a
617
humanidade participa toda inteira do indivíduo, e o indivíduo participa de todo gênero
sem reserva dos dramas e mistérios que constituem a existência, pois para Kierkegaard
totalidade”.
análise psicológica cujo objetivo segundo Villegas (citado por Teixeira 2006, p. 289) “é
suficiente para que ele possa assumir livremente a sua existência”. ψusca ainda,
compreender o modo como cada pessoa se relaciona como o mundo, como se percebe em
suas relações com o mundo, com as pessoas e possibilitar por meio do processo
um”.
responsável pelas escolhas e caminhos a trilhar nas esferas individuais, coletivas e sociais.
618
O psicólogo como psicoterapeuta pode ser denominado ainda, na clínica
existencial com bases Kierkegaardianas, segundo Feijoo et al. (2013) como ajudante.
Aquele que de forma comprometida ajuda o outro a encontrar-se em sua solidão, que pela
Um nível é aquele das pessoas reais: alegro-me de ver meu paciente (minha reação
que dormi na noite anterior). Nosso encontro suaviza a solidão física, da qual
erótico320 – que deve ser aceito pelo terapeuta se ele pretende ouvir
Emprega-se “erótico” aqui no sentido geral, em que todos os tipos de relacionamento e coisas possuem
320
uma tônica sexual – cinema, livros, e assim por diante. Naturalmente, não tem efeito na terapia, mas é
mantido como parte da transferência. (nota do autor da obra citada)
619
May (1976) enfatiza que o encontro é permeado pela integralidade da relação entre
cliente se apresenta, expressa seus sentidos e significados, narra sua história, mas a
somente é possibilidade no presente. Deste modo, a relação por ser viva, sustenta
para o encontro, para o apropriar-se de si mesmo e para o cuidado. Onde a dor, a alegria,
lugares que a ancorem, transcendam valores limitados, e “permitam” o afeto, tão caro
A memória
620
Estabelecendo relação com os estudos da Filosofia, destacamos o filósofo Paul
compreende a memória como “função específica de acesso ao passado”, dessa forma, ela
Memória, na qual sua relação com a imaginação e sua existência no tempo são pontos
voltada para a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca temporal por
fragmentária, e por isso seu estudo não pode eximir-se de perguntar: ‘o que’, ‘quem’ e ‘o
como’ se lembra. Mas para manter certa coerência sobre a polissemia que o termo
objetal da memória: lembramo-nos de alguma coisa” (p. 41). χtenta para a questão da
também situar sua relação com as lembranças, em seu traço mais relevante: “ele diz
‘coisas’ de que nos lembramos” (p. 41). Para o filósofo, os acontecimentos que
lembramos não apenas aparecem, mas reaparecem dentre uma infinidade de coisas
621
Os encontros memoráveis prestam-se a ser rememorados, menos de acordo com
sua singularidade não repetível do que conforme sua semelhança típica, até
condição de re-apresentação é que “o objeto temporal reproduzido não tenha mais, por
das matrizes da história e está intrinsecamente relacionada com a narrativa como forma
conhecimento do passado tem por alvo não só a si mesmo, numa pretensa objetividade
desinteressada, mas muito mais uma relação de intensidade ao passado que possibilite
uma atitude e uma ação mais justas no presente” (p.156). χssim, a memória apresenta-se
como um trabalho que envolve questões subjetivas, políticas que dizem da forma como
622
este passado perdura em nosso presente, em nossas ações em relação à memória e a
pela experiência do ter vivido, ou seja, de um passado que ocorreu e que por isto, deixa
recordações e pode evidenciar uma presença, algo que perdura de si no tempo. A tais
recordações,
por meio dela podemos afirmar a presença no tempo do passado, do presente e do futuro
como localizador existencial. “Não temos nada melhor que a memória para significar que
algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (Ricoeur,
2007, p. 40).
ao outro. Numa perspectiva clínica, Safra (2002) afirma que a memória é possibilidade
mundo com outros, numa dinâmica relacional pessoal e coletiva. Logo, afirma, “há uma
busca no fundo de cada ser humano que o leva a buscar em um outro, o encontro que lhe
dê acesso à memória que desconhece. Esse acesso lhe garantiria a participação no mundo
623
χfirma Ricoeur (2007, p. 57), “mas o pequeno milagre do reconhecimento é de
memória corporal não está no passado, mas apresenta-se no presente, nos modos, nos
relação que se estabelece entre o psicoterapeuta e cliente. Como nos mostra Ricoeur
decorrido pode ser percebida, sentida, na forma da saudade, da nostalgia” (Ricoeur, 2007,
aqui em relação ao qual todos os outros lugares são de lá” (Ricoeur, 2007, p. 59). Vimos
mais uma vez, que o lembrar-se de alguma coisa é lembrar de si, não apenas enquanto
624
Subjetividade e memória
retomada que ocorre no presente, mediante à repetição. Mas a repetição para o filósofo,
A memória em Kierkegaard como repetição ainda precisa ser melhor investigada, mas
está claro desde as primeiras páginas da obra A Repetição (2009), a distinção que ele
estabelece entre a recordação para os gregos e a nova categoria a ser descoberta pela
filosofia moderna.
recuperar esse si mesmo e, na retomada de si, tornar-se si mesmo, “lá onde a cada instante
mesmo, uma recuperação no sentido de escolher a determinação existencial pela qual vale
a pena viver e morrer e que lhe permite tornar-se um homem novo. Poder-se-ia entender
indivíduo singular da preocupação para que ele possa ousar inventar-se a si mesmo,
decisão por aquilo que é realizado na temporalidade, mas que tem efeito por toda a
625
indivíduo singular em si mesmo e o esquadrinha até o limite para que a educação
edificante seja capaz de propiciar a escolha do decisivo. É por isso que podemos afirmar
(...) não se esquece, nem por um instante, que o sujeito é existente, e que o existir
um anseio de criação, não porque a verdade não seja uma identidade, mas porque
aquele que conhece é um existente, e, então, a verdade não pode ser uma
agindo, ele se reelabore a si mesmo em seu pensar sobre sua própria existência, e,
Conclusão:
humana, encontramos na leitura de Paul Ricoeur elementos que contribuem para pensar
com bases existenciais como foco de estudo, pois estabelece como fundamental para o
626
processo psicoterapêutico a relação entre psicoterapeuta e cliente. Vislumbramos numa
leitura filosófica existencial como a memória se constitui como elemento primordial para
“como elemento que permite que a pessoa possa organizar uma identidade”, ou seja,
elemento que possibilita que o sujeito se reconheça situado num contexto, numa história
com outros, contribuindo para a constituição do sentido de si. Podemos compreender que
este sentido de si é construído por meio das relações consigo mesmo e com os outros, nas
relações sociais e culturais, então é permeado pela criação do singular em muitos, nós
Referências
Feijoo, A.M.L.C., Mattar, C. M., Feijoo, E. L., Lessa, M. B.M.F, Protasio, M. M. (2013).
Gabnebin de Bons, J-M. (2011). A memória, a história, o esquecimento. In: Paula, A. &
627
Kierkegaard, S. (2009). A Repetição. Lisboa: Relógio D’Água.
Kierkegaard, S. (2013). Pós- escrito às Migalhas Filosóficas (A. Valls. & M. Almeida
Janeiro: Rocco.
Ricoeur, P. (2006). Percurso do reconhecimento (N. Nyimi, Trad.). São Paulo: Loyola.
628
BARBÁRIE NA PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA. UMA INTERSECÇÃO
CONCEITUAL
E-mail: masilveira@sinos.net
barbárie em relação à cultura remete ao sujeito desta cultura sendo este transformado por
aquela e a transformando.
CONCEPTUAL INTERSECTION
Abstract: The ideologies of barbarism and the relationship with the sciences and the
considering the findings on the dramatic destruction of human culture and knowledge.
Annihilation is an act resulting from a process developed when the life energy remains
321
Psicóloga. Psicanalista e Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Porto Alegre,
Brasil). Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra, Portugal.
629
unused in human. The destructive drive is opposed to the civilizing process. Fighting
between the drive of life and the death drive triggers the evolution of culture considering
the Freudian theory. Existing aggressiveness in humans provides the need to set limits,
laws or the targeting for production in culture. Barbarism in relation to culture refers to
the subject of this culture, being transformed by this one and transforming it.
Introdução
Psicologia, despertou o interesse em abrir espaço para escrever sobre a barbárie fazendo
a relação com pulsão de vida e de morte são investigadas em textos de Sigmund Freud de
1920 e 1930. A barbárie, enquanto uma ação que é premedita da mente destrutiva, ocorreu
Internacional da Faculdades EST, Carla Canullo (2014) faz uma assinalamento sobre a
“barbaros”desde a Grécia que assinalava aqueles que não falavam grego; eram os
balbuciavam, pois não conheciam ou não dominavam a lingua (grego e latim) que
deveriam falar para que pudessem ser compreendidos. A palavra não tinha, portanto, o
630
A autora fazendo a ligação com os escritos do filósofo Michel Henry assinala que
que o filósofo nunca escondeu sua crítica frente à ideia de verdade e manifestação,
ou a estigmatização da barbárie na cultura moderna feita por Michel Henry, e este viés
Lima (2005) escreve sobre o tema barbárie e assinala que a primeira e segunda
política imperialista de massacre e de agressão em uma escala imensa no século XX, teve,
crianças e idosos são eliminados, com o menor contato pessoal possível entre quem toma
O autor assinala ainda que Auschwitz representa a modernidade não somente pela
Como toda outra ação conduzida de maneira moderna, o Holocausto, por exemplo, deixou
631
Henry (2012) abrindo espaço para a compreensão das ideologias da barbárie,
galileana entende que os humanos estão separados da natureza, pois apesar de toda a
possível observação e visão, por exemplo, dos rios, das pedras, das cores, da luz que
brilha, dos verdes e azuis, ela está separada do humano. Esta separação, de acordo com o
possibilidade de ser afetado pela natureza não ocorre. Os efeitos da natureza são reduzidos
Decorre que os métodos precisos das ciências são na verdade restritivos, pois
próprio objeto é definido à priori para que dele possa ser retido o dado a ser pesquisado
(Henry, 2012).
pulsional que é um processo dinâmico, uma carga energética oriunda das excitações
desfusão do componente das pulsões de vida e de morte e neste processo psíquico todas
632
se da própria pessoa, a pulsão de morte que é psíquica, dirige-se para o mundo exterior
transformando-se em atos.
Laplanche e Pontalis (2001). Os autores afirmam que ela é utilizada para designar as
caracteriza a pulsão de morte, por causa disto que ela é reconhecida nas manifestações e
forma pode-se entender que a angústia sempre está presente em algum espaço psíquico e
por trás dos sintomas manifestados. Entende-se que sentimentos, afetos são energias
que é um afeto, circula pelos diferentes espaços psíquicos. Existe, portanto uma
A violência e a relação com a civilização levou Endo (2005) a opinar que no texto
distendidos na cultura é que certos processos subjetivos podem ser observados...” (p.201)
633
e acrescenta que na cultura é onde a pulsão de morte assume formas devastadoras e onde
também é regulada.
Observa-se que muitas das culpas nos sujeitos se apresentam de forma secundária,
também se desloca de forma a boicotar os disfarces da libido, num jogo contínuo e eterno.
evidenciando a ambivalência.
χssim Freud destacou “χqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado
ação é programada e executada nos atos de barbárie que se tem constatado. Encontramos
população, pois esta é uma forma de conter os impulsos destrutivos naturais do ser
humano. Não haveria necessidade de leis caso houvesse rejeição natural ao incesto, ao
e a relação com o superego, pois sendo este um poder externo, uma autoridade parental
que entra no circuito psíquico da perda de amor, castigo e renúncia. Para entrar no mundo
634
da cultura e no convívio com os demais é necessário aceitar que nem tudo é possível e
ao longo dos milênios preservam o que existe e esperam ocasião para no saber adquirido
A vida segundo a qual Henry apoia sua tese, não se confunde com um saber
mundo, mas ter consciência da consciência do mundo. A cultura é quando não intervém
o saber da consciência nem o da ciência, ela é a vida. Para o filósofo é a essência humana
emana, é um saber de si mesmo. Desta forma, a ideologia da ciência não leva em conta o
ser humano como tal, o humano não é valorizado enquanto um ser que tem vida. A vida
é a capacidade de se sentir, ser afetado em si próprio e ser percebido nesta afetação. Esta
635
barbárie. O autor escreve sobre o progresso selvagem da ciência quando não há vínculos
que possam remeter ao que ele chama de vida, pois esta não é a realidade objetiva e
apresenta hoje com finalidades abstratas, como um estranho destino no qual é produzida
econômico resultante da aplicação da ciência que pode ser traduzida por barbárie (Henry,
2012).
complexo trabalho sobre a afetividade e tem suas próprias leis. Estas, entretanto, não são
redutíveis às leis racionalistas das ciências naturais da cultura ocidental cujo pensamento
Considerações Finais
constatar nestas investigações freudianas quando ele afirma que o sentimento de culpa é
uma variedade topográfica da angústia. Desta forma pode-se entender que a angústia
sempre está presente em algum espaço psíquico e por trás dos sintomas manifestados.
revelação da vida e a forma de expressão desta vida. Sentir que tem sentimento, ter
apontam como forma de não aderir aos atos de barbárie. Antúnez (2014), ao referir-se à
636
humanas passarem pela via afetiva. Sendo somente desta forma que os seres humanos
A barbárie afeta o ser humano, pois destrói sua dimensão ética e estética. Mas a
de espetáculo na mídia. Assim, os assassinatos dos moradores de rua de São Paulo são
considerados atos de barbárie, a matança de crianças são igualmente atos de barbárie, ou,
até mesmo, podem ser tipificados como genocídio. A barbárie é contrária ao viver e
preservar.
tem em sua essência uma organização com leis que tornam possíveis a existência e
sobrevivência do grupo. As atividades humanas desde a vida mais remota na terra, como
homem construiu a partir de si. A constatação é que na atualidade o homem tem sido
barbárie, Henry (2012) entende que a ciência se move inteira e exclusivamente no interior
da relação com o mundo e, portanto, com seus objetos. O mundo é apenas exterioridade
e coisas com um surgimento a cada momento de novas faces sem perceber ou se importar
com aquilo que o ser humano é. Enquanto filósofo da Fenomenologia da Vida acredita
que a cultura repousa sobre o saber da própria vida que consiste no autoconhecimento das
interessante assinalar que para o autor, a arte, a ética e a religião são relativas à essência
da vida humana e fazem parte de sua raiz. A crítica mais contundente que Henry (2012)
637
faz em relação às ciências é que o ser humano não é reconhecido em seu saber essencial,
o saber não é mais próprio do homem, este perdeu a essência de seu saber-fazer.
A ciência surgiu pela necessidade do ser humano. O que se constata é que a ciência
utilizada para fins destrutivos denota o uso perverso daqueles que não suportam o
ideias, movimentos ou qualquer coisa que possa ser diferente. Atos de barbárie objetivam
aniquilar aquele que pensa e age diferente ou que se diferencia culturalmente. Desta
ações humanas praticadas e exercidas com fins destrutivos de si e/ou de outro semelhante.
A barbárie pode ser entendida como pulsão de morte em sua mais pura
humano e a cultura. Conte (2014) deixa em seu texto sobre as questões de violência de
estado que através da escuta dos psicanalistas abrem-se espaços que possibilitam a
Referências
638
Brígido, M. A. S. (2014) A passibilidade do corpo decorrente do sofrimento psíquico. .
Heinmann; & L. C. Hoch (Org.) Um olhar nos espelhos da culpa. São Leopoldo:
Sinodal/EST.
Escuta/Fapesp, 2005.
Freud, S. ([1912-13]1913) Totem e tabu. In: J. Strachey (Ed. & Trad.) Edição Standard
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 13, pp.17-193). Rio
Freud, S. (1920) Além do Princípio do Prazer. In: J. Strachey (Ed. & Trad.), Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. 18,
Freud, S. ([1929]1930) O Mal- estar da civilização. In: J. Strachey (Ed. & Trad.)
Fontes.
639
Lima, R. (2005) É ‘barbárie’, ‘genocídio’, ‘holocausto’, ou “massacre”? (60 depois de
640
SAÚDE E VIDA DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR:
PERCEPÇÕES DISCENTES
de uma Escola Estadual localizada na cidade de São Carlos cujo conteúdo prático-teórico
das aulas foi saúde, qualidade de vida e vida de qualidade. Como procedimentos
em Diários de Campo, realizados após cada encontro após autorização expressa dos
322
Licencianda em Educação Física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista de
Iniciação Científica PIBIC/CNPq. Membro do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física
(NEFEF/UFSCar).
323
Professor Associado do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana e do Programa de
Pós-Graduação em Educação (DEFMH-PPGE/UFSCar). Membro da Diretoria da Sociedade de Pesquisa
Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH). Coordenador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em
Educação Física (NEFEF/UFSCar). Coordenador Adjunto da Cátedra Joel Martins.
641
após a apresentação dos riscos relacionados ao consumo exacerbado, citando que
de Qualidade. Saúde.
Abstract: This study aimed to understand the processes arising from educational
intervention done together with students of the 5th year of elementary school a Public
School located in the city of São Carlos whose practical and theoretical content of the
lessons was health, quality of life and life quality . The methodological procedures of
systematic data collection of field observations in diaries, performed after each meeting
after permission from parents / guardians in the Instrument of Consent records were used.
A total of 19 diaries were analyzed, covering the period from August 2013 to June 2014
Knowing and embracing healthy habits; B - Living and respecting each other; C -
consider that the contents worked led students to reflect on the proposed issues, especially
the issues related to sedentary lifestyle, overconsumption of processed foods, sugar, salt
and fat, for example, after the presentation of the risks related to excessive consumption,
642
Introdução
A Educação Física, como área de conhecimento das Ciências da Saúde, pode ser
compreendida por meio de sua história. Nesta, observa-se tendências e concepções que
esportiva.
presentes até a atualidade, porém, em que medida o enfoque trabalhado nas aulas avança
a uma concepção de saúde abrangente, que não se limita ao caráter higienista, que trata o
Tais informações eram correntes nas aulas e nas leituras complementares que ia
questionamentos sobre a educação para a saúde voltada para as aulas de Educação Física
escolar. Pois, para além da formação em curso na Educação Física, minha experiência
anterior, como aluna da educação básica, tive aulas voltadas a conteúdos prático-
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) ao indicar tal como um dos temas transversais
(BRASIL, 1997).
1997, p.31).
643
Os PCN – temas transversais ainda reforçam que é um tema que pode e deve ser
tratado por todas as áreas, ocorrendo também de forma indisciplinar, ou seja, cada
componente curricular aborda esse tema, assumindo uma perspectiva própria de seus
conteúdos:
razão, a educação para a Saúde será tratada como tema transversal, permeando
Paulo, inicialmente denominada como Cadernos do Estado (SÃO PAULO, 2009a; 2009b;
2009c; 2009d), reforçam o conteúdo saúde nas aulas de Educação Física, incluindo-o
junto a diversos temas, tais como: “corpo, saúde e beleza: fatores de risco à saúde e
movimento e saúde” (5a. série do ensino fundamental – vol. 2); corpo, saúde e beleza (1a.
série do ensino médio - vol. 1); exercícios resistidos (musculação): benefícios e riscos à
saúde nas várias faixas etárias (2a. série do ensino médio – vol. 2).
644
tem reforçado esse interesse e tem me proporcionado experiências significativas que
podem ser levadas ao ambiente escolar, bem como, trazido significantes descobertas
acerca dos temas saúde, qualidade de vida e vida de qualidade, por meio de estudos e
Estadual Coronel Paulino Carlos localizada na cidade de São Carlos cujo conteúdo
vida e vida de qualidade e as concepções de educação popular e saúde. Após tal revisão
pedagógica e a esportiva.
645
Para Ghiraldelli (1997):
qual interfere diretamente no objeto de estudo em pauta, além de exercer forte influência
Para Ghiraldelli Junior (1997) entre fins do século XIX e início do século XX,
especialmente até 1930, perdurou a tendência da Educação Física por ele denominada
higienista. Nesta o enfoque central era em relação à saúde, do ponto de vista biológico,
sadios, fortes, com padrões de conduta higiênicos, visando supostamente formar uma
sociedade livre de doenças infecciosas e dos vícios que poderiam deteriorar a saúde, tal
b) Compreensão de Saúde
646
χ Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como: “estado de
completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença” (OMS,
1948). Assumindo tal conceito, nenhum ser humano será totalmente saudável ou
totalmente doente.
Tem saúde quem tem condições de optar na vida. A saúde está diretamente
próximos, mas também conseguir viver dignamente com base em valores que não
saúde que não é só física, mental ou emocional. É tudo junto, ao mesmo tempo!
profissional.
de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual asumimos nesse estudo. Tal
Nacional de Saúde de 1986, a qual incorpora o saber popular além do acadêmico. Desta
(BRASIL,1986).
647
Percebemos que tal compreensão considera o ser humano de modo integral e
situado no mundo, não restringindo saúde à ausência de doença entendida esta de modo
exclusivamente biológico.
é possível perceber que os autores, ao tentar realizar tal tarefa, assemelham a conceituação
indivíduo (p.247).
648
variadas épocas, espaços e histórias diferentes, sendo, portanto, uma construção
valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e
preocupações”.
qualidade. “[...] essa qualidade reside no crescendo das interações de dons naturais,
se ‘vive’ e de uma vida que se ‘é’”, pois num momento onde consumir bens é associado
a qualidade e felicidade na vida se faz necessário dar um significado mais humano como
dos objetos de posse para o círculo dos dons de troca e de partilha. E, por esse
capital, impõe a tudo e a todos os seus termos incluindo também o mundo do lazer, do
esporte, dos exercícios e da saúde, que são reduzidos aos padrões de compra e venda que
são determinados pelos interesses dos que ocupam posições sociais que permitem
649
manipular pessoas e desejos como mais um produto controlável. Pois, de acordo com
Brandão (2005):
nos sugerir grandes vôos “de mentira”, ao mesmo tempo em que nos puxa sempre
pode ser comprado, em vez da ousadia de criarmos por conta própria o que deve
encontraremos padrões humanos de qualidade de vida. Já que, para que poucas pessoas
tenham suas vidas de qualidade, outras, fora deste rol, permanecem em condições de vida
desqualificada. Vidas cada vez mais medidas, como sugerido pelo autor, por tabelas de
ranking, onde uns são classificados acima e outros abaixo. A qualidade de vida aparece
condomínios e prédios fechados nos jornais, ou separam o mundo exterior, com a falsa
propaganda de “melhora” na qualidade de vida. Seguindo esta linha, para se sentir alguém
de “qualidade” deve-se “vencer na vida”. Por isso, “a insistência com que os verbos
que sugerem os mais desejados sonhos da vida de todos nós [...]” (p.35).
Este mesmo autor ainda aponta que qualidade de vida não é uma conquista
“aprender e apreender com; viver através do com-saber experiências cada vez mais densas
e mais fecundas de diálogo consigo mesmo, com o outro e com a vida”. Com o aprender
650
Brandão (2005) sugere que devemos nos descobrir, seres do espírito aberto ao
de conexão do mistério da Vida. Dessa forma, ela torna-se o primeiro critério de valor de
qualidade, envolvendo outros como segurança, paz e conforto, indicando uma vida de
qualidade.
mundo no processo educativo e juntos vão dando forma e conteúdo crítico a um mundo
mais justo. A autora nos alerta também que educação, se faz na práxis, na reflexão e na
ação.
do subalterno. É neste sentido, também, que a cultura popular deve ser pensada
651
de diversos conceitos, como por exemplo, na questão de qualidade de vida versus a vida
Metodologia
a) Procedimentos da Intervenção
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa com Seres
escolar em uma escola estadual de ensino da cidade de São Carlos. As aulas ministradas
na intervenção ocorreram uma vez por semana durante as aulas de educação física de um
quinto ano. A turma escolhida foi sugerida pelo professor de educação física da escola
9h30min.
e os alunos são residentes em diferentes bairros. A área física da escola compreende, além
de 11 salas de aulas, também possui sala de vídeo, sala de informática, cantina, refeitório,
uma quadra descoberta e um pátio coberto. Principalmente nestes dois últimos espaços
652
de Educação Física: bolas, cones, jogos de tabuleiro, bastões, colchonetes, cordas,
necessários não mencionando os alunos que não tiveram a participação não autorizada
nos diários de campo. Registra-se ainda que durante o período da realização desta
sistemático de notas em Diários de Campo (DC), tanto das observações diretas como das
quais foram transcritas e incorporadas aos DC, mantendo-se a escrita original dos
participantes mesmo quando com eventuais erros do ponto de vista da língua portuguesa
padrão.
educadoras foram mantidos, a partir de autorização. Contudo, os nomes dos alunos foram
alterados, sendo que os mesmos foram convidados a sugerir nomes fictícios, com total
liberdade de escolha.
retratos dos sujeitos (incluindo sua aparência, roupas, falas, ações); reconstruções do
diálogo (as conversas e os gestos, expressões faciais); descrição do espaço físico (através
653
de desenhos ou mesmo descrições das mobílias, piso, paredes, pintura); relatos de
se a si próprio, suas atitudes, suas suposições e tudo que possa afetar a coleta dos dados).
Já a parte reflexiva envolve: reflexões sobre o método; reflexões sobre conflitos e dilemas
Significado (US) colhidas diretamente dos relatos registrados após cada aula, utilizando
divergentes (d).
apresentadas por letras maiúsculas (A, B, C,...), além de nomeadas com título que
identificados em ordem cronológica crescente por algarismos romanos (I, II, III...).
Assim, na análise de dados a seguir, quando surgir a sigla DC-II-1, por exemplo, refere-
a análise nomotética pautada nos registros dos diários de campo. Tal análise foi “[...] feita
654
com base na observação das divergências e convergências expressas pelas unidades de
Diários de
Campo
DC-I 1, 2d
DC-II 1
DC-III 1, 2
DC-IV 1, 2
DC-V 1, 2 3
DC-VI 1
DC-VII 1d
DC-VIII 1, 2
DC-IX 1d, 2, 3
DC-X 1, 2, 3d, 4d
DC-XI 1, 2d,
DC-XII 2, 3, 4, 5, 6d, 7, 1d 9
655
DC-XIII 1, 2, 3, 4, 5, 6, 16 8, 9, 10, 11, 14,
29, 30
11, 13d,
15
10, 11d,
DC-XVIII 1d, 2d, 3d, 4d, 6, 10, 11, 14, 15, 16, 17
5, 7, 8, 9, 12, 13
DC-XIX 2, 3, 6, 1, 5d, 8 4, 7
fala de Giga, ao comentar: “alimentação saudável é comer frutas, verduras e legumes, não
tomar refrigerantes e não comer muita batata frita. Perguntei se os alunos concordaram
com ele e todos concordaram” (DC XIII; 1). Também é possível perceber criticidade
diante de informações transmitidas pela mídia: “Helo disse que sua mãe sempre faz suco
de laranja e que ela já havia percebido que o sabor do suco de caixinha era muito diferente
656
do que o que sua mãe fazia, se eles eram iguais como mostra na TV, porque o gosto era
praticamente metade dela é açúcar e que ele também contribui para obesidade. Ao
SosôLelê disse que já que tem tanto açúcar era melhor tomarmos suco. Perguntei
qual tipo de suco era melhor, o natural da fruta ou o de caixinha, ela disse que eles
eram a mesma coisa, pois ela sempre vê os comerciais na TV mostrando que eles
também são feitos da fruta. Então eu lhes disse que eles não eram 100% suco de
fruta, que metade de uma caixinha era água com açúcar e outra metade era o suco
da fruta em si. Giga então ressaltou que na TV eles não mostram isso, e falam que
é saudável. SosôLelê disse que ia falar isso para os pais dela e pedir que no lugar
desses sucos eles próprios fizessem o suco com frutas (DC XIII; 4).
Aprendi que os alimentos são necessários para nosa saude, alguns alimentos são
gostozos e faz bem, e outros são gostozos e não faz bem. Os doces são gostozos
mas pode trazes mal a saude. E as frutas são alimentos que nos faz bem e são
saudaveis. Tem alimentos que agente quer muito mas não sabemos o que tem por
compreensão de hábitos alimentares e consideravam não ser uma tarefa fácil de cumprir:
“GaGames ressaltou que muitas vezes ele e sua família consomem esses tipos de
alimentos, pois todos trabalham e esses alimentos facilitam a vida das pessoas, mas que
657
A prática de exercícios também apareceu nas anotações do caderno de Educação
Física dos participantes GaGames como um hábito saudável: “Eu entendi que não vale a
pena ficar na frente da teve jogando, porque poderemos ficar obeso igual o monstro. O
melhor é não ficar jogando muito, mais sim ter um limite e fazer mais atividades físicas”
(DC XVI; 18). “Eu entendi que deis de ficar centado jogando vídeo game podemos fazer
Na fala de Giga também é possível observar que ter lazer é considerado como
um hábito saudável “Giga respondeu que lazer era um momento para relaxar e fazer algo
que gosta no seu tempo livre e ressaltou que se você tem tempo para relaxar você tem
mais saúde, pois não vive tão cansado” (DC XIX; 3).
tópicos que foram muito importantes para o direcionamento das aulas, tais respostas
Na coluna Qualidade de Vida os alunos falaram: Vida boa, vida suave, vida com
escola, ser solidário, ter mansão e ter carro. Já na coluna Vida de qualidade
que vida de qualidade se tratava de uma alimentação balanceada (DC XII; 4).
esta trabalhando sobre qualidade de vida é ter e vida de qualidade é ser...” (DC XIII; 17).
E em uma atitude em sala de aula: Imagens como carros e mansões também apareceram
658
Na fala de Minnie também foi possível identificar que vida de qualidade pode
para hidratação dos cabelos. Perguntei quem havia colocado essas duas imagens,
e elas haviam sido colocadas pela mesma pessoa (Minnie), então perguntei por
que ela considerava que tais imagens representavam vida de qualidade e ela
respondeu que para ela vida de qualidade era andar com roupas limpas e cabelos
assuntos tratados: Pirulita disse que bulimia era uma doença que fazia com que as pessoas
ficassem “loucas por exercício” para emagrecer e Helo concordou com as duas e
acrescentou que na anorexia além das pessoas vomitarem o ingeriram elas comiam pouco
para não engordar (XVIII; 2d). “χo perguntar sobre a vigorexia Juju perguntou se tinha
a ver com marca de iogurte e Kaká respondeu que achava que sim e que devia se tratar
Kaká perguntou se bulimia tinha alguma coisa a ver com bullying, nesse primeiro
momento não respondi nada e disse que queria que eles me respondessem, pois
trataria dos três assuntos na sala de vídeo. AzGames concordou com Kaká e disse
dos sujeitos com a educadora destacamos o trecho a seguir “Cuca me deu um abraço e
659
comentou que gostava muito das minhas aulas e pediu para carregar os materiais, pois
Um pouco antes do início da aula, Helo veio correndo em minha direção e me deu
Kaká perguntou se seria possível fazermos mais aulas assim, então respondi que
infelizmente essa era a última aula que eu teria com eles, Kaká fez uma cara de
chateado e disse que tinha gostado muito das minhas aulas e perguntou se eu
todos nas minhas aulas e disse que tinha sido uma grande oportunidade ministrar
aulas para eles, pois eu havia aprendido muito. Então todas as meninas se
meninos vieram se despedir de mim e foram para a sala (DC XIX; 8).
a eventuais conflitos em alguma atividade, conforme segue: “Os alunos discutiram entre
si e chegaram à conclusão de que se seria interessante que todos jogassem sentados, pois
seria mais justo para todos” (DC VI; 1). Momentos de respeito e honestidade para com o
Nessa fase eles deveriam passar por cima do banco de costas com os olhos
fechados. Felícia ficou com medo de andar de costas com os olhos fechados e não
realizou a etapa de forma efetiva, então eles foram para a próxima etapa e eu havia
660
EvilGame disse que era pra ele ficar quieto, ele respondeu que não era certo ficar
quieto, pois seria desonesto comigo e com o jogo (DC XVI; 2).
Juju relatou que um aluno da equipe adversaria tinha acertado a bola em seu rosto
e estava mandando todos os alunos fazerem a mesma coisa, ressaltou que estava
cansada dizendo que participava de um projeto social com ele aos finais de semana
levantar sugestões para que ela retornasse ao jogo, como por exemplo, manter os
dois na mesma equipe ou 10 minutos de jogo para cada um. A aluna disse que não
voltaria para a aula de jeito nenhum e que estava muito chateada com a atitude de
muitas, pois segundo elas os meninos não passavam a bola. Uma delas
(Mansônica) se dirigiu ao Edson chorando e disse que não queria mais participar
da aula, pois ninguém deixava ela participar. Pouco tempo depois uma outra veio
chorando também dizendo que os meninos ficavam zombando da cara dela pelo
661
Neymar umas três vezes. Após alguns minutos consegui acalmá-los para poder
Nos dirigimos para a sala de Educação Física, onde gravei um vídeo dos alunos
que já entregaram o TCLE deles falando o nome deles, a idade e o nome fictício
que eles gostariam que fosse utilizado no estudo. Tal estratégia foi utilizada para
facilitar a confecção dos diários de campo e para que caso eu esqueça do rosto de
Neymar: “Fui até a sala buscar os alunos e logo fui surpreendida por Neymar que me
perguntou se poderíamos jogar futevôlei. Disse a ele que não seria possível, pois
infelizmente essa atividade não estava no planejamento de aulas” (DC XVII; 1).
A princípio a aula seria realizada na sala de vídeo, porém estava chovendo e uma
outra professora já estava realizando suas atividades lá. Educador Edson disse que
poderíamos trocar com ela, mas isso faria com que perdêssemos um certo tempo,
então optei por não passar o vídeo e ficar na sala da Educação Física (DC XII;
1d).
662
A ideia inicial era que os alunos trouxessem figuras de pessoas que achassem
bonitas, porém por uma falha minha e por mudança repentina na data da aula não
consegui avisá-los sobre tal tarefa. Para não prejudicar o que eu havia planejado
para a aula deste dia, cheguei mais cedo na escola e com a ajuda de duas alunas
do 5ºC recortei figuras de pessoas das mais variadas idades, sexo, raça etc. (DC
XV; 1d).
das aulas, algumas atividades não puderam ser realizadas, mas nessas ocasiões foi
possível reorganizar os planejamentos dos respectivos dias sem trazer qualquer prejuízo
anotações dos alunos no que diz respeito a manifestações de alegria e prazer destes no
momento da realização das atividades, como na fala de Tatá que aponta ter aprendido
coisas que não sabia “Qualidade de vida e vida de qualidade foi o primeiro assunto das
aulas com a Suzana foi muito legal, coisas que eu não sabia eu aprendi. E as crianças
poderam dar as suas opiniões sobre conversa” (DC XII; 9); “Cacau respondeu que gostou
muito, pois adora brincar de pega-pega, que podíamos jogar esse jogo mais vezes, pois
ela gostou de um pega-pega com personagens” (DC XIII; 11). Na frase escrita no caderno
de Juju também foi possível observar tal elemento: “Eu amei por que é divertido passar
aula os alunos ficaram muito eufóricos, começaram a gritar “eba!” (DC XVII; 2).
663
Diversos alunos escreveram em seus cadernos terem gostado das atividades (DC
DC XIV – 11; DC XIV – 14) outros destacaram que “adoraram” (DC XIII-23; DC XIV
– 7) e alguns destacaram que a aula foi “legal” (DC XIII-29; DC XIII-30; DC XIV – 7;).
Cacau disse que ficou chateada por não ter participado. Comentei que infelizmente
o tempo de aula era curto e não deu para todos participarem. Cuca reclamou que
que tiravam notas altas na sala de aula. Comentei com eles que o critério que eles
usaram para escolher os colegas não serviu nessa atividade, pois as respostas eram
algum conteúdo trabalhado, como no caso de Loira do ψanheiro: “Não gostei muito da
aula porque fiquei parada” (DC XV; 17d). Algumas falas durante as aulas também foram
identificadas: Felícia disse que não gostou da atividade porque foi muito desorganizada
(XVII; 7d).
Considerações
conteúdo prático-teórico das aulas foi saúde, qualidade de vida e vida de qualidade.
664
Os contratempos encontrados apontavam o possuir, ter e consumir, como podem
ser vistos nos Diários de Campo (Apêndice 2). A tarefa de desconstrução desta ideia que
é apresentada/imposta pelos meios de comunicação não foi fácil, e foi possível observar
que tal visão consumista estava presente nos colaboradores, a fala de FunkBlackKate
representa tal visão: “FunkBlackKate pegou uma imagem de um vídeo game e disse que
ter qualidade de vida era ter esse objeto, pois era de qualidade e trazia muita felicidade
sujeitos que levam as compreensões sobre uma vida de qualidade e preocupação com seus
O sinal tocou e os alunos foram para a sala, logo em seguida Helo voltou com um
pacote de salgadinho e disse que esse era o lanche que havia trazido, mas que
depois da aula de hoje ela ia procurar evitar comer essas coisas, pois fazem muito
mal à saúde e ela não queria ficar obesa (DC XIII; 13).
realidade que os cercam: “χpós a apresentação da inversão dos termos Giga comentou
que a mídia impõe o que devemos fazer, comprar e gostar através dos comerciais (DC
XIII; 5).
gosto pelo que foi trabalhado em aula citado por ψaixinha: “Eu adorei essa brincadeira
porque é divertida e eu adorei esse tema que a Suzana escolheu eu adoro ela” (DC XIII;
23)
665
Durante a intervenção foi identificada a realização de um trabalho colaborativo,
compartilhado, realizado com os alunos e não para os alunos. Sendo o diálogo princípio
a uma apropriação crítica das crianças participantes sobre saúde, hábitos alimentares,
estéticos falseados como saúde e qualidade de vida veiculados pela mídia, conforme
Todo mundo juga as pessoas bonitas. Só se for magra, loira, olhos azuis. E uma
A anos pessoas gordas eram bonitas, e as magras feias. E a gente ve que isso foi
Tudo isso porque a mídia foi colocando na nossa cabeça que esta pessoa bonita, e
a outra feia.
Acho que isso e crime apesar de não existir lei canto mas e um caso de
666
Fig. 1: Desenho realizado por Tatá no caderno de Educação Física
Referências
Paulo: UNIMEP.
In:______. A canção das sete cores: educando para a paz. São Paulo: Contexto. p. 27-
72.
SEF.
667
FREIRE, P. (2003) Pedagogia do oprimido. 36ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
122.
Loyola.
JUNIOR, Luiz (org.). Interfaces do lazer: educação, trabalho e urbanização. São Paulo:
Universidade/UFRGS/Sulinas, p. 61-93.
Educação Física, ensino fundamental – 5a. série, vol. 2. São Paulo: SEE.
Educação Física, ensino médio – 1a. série, vol. 1. São Paulo: SEE.
Educação Física, ensino médio – 2a. série, vol. 2. São Paulo: SEE.
668
SÃO PAULO (ESTADO). (2009). Secretaria da Educação. Caderno do Professor:
Educação Física, ensino médio – 2a. série, vol. 3. São Paulo: SEE.
Associados.
669
INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR:
Humana.
E-mail: luanazanotto@yahoo.com.br
fenomenológica. A partir da intervenção foram tomadas notas nos diários de classe. Para
análise dos dados foram realizadas fases de identificação das unidades de significado e
Com base nas compreensões aos estudos da temática, consideramos que as práticas
posturas, com vistas a favorecer a formação positiva de uma identidade negra, bem como
670
Palavras-chaves: Processos Educativos, Educação das relações étnico-raciais, Educação
Abstract: Faced with such huge social inequalities in Brazil, especially in the intramural
school, we decided to study the existing racial discrimination at school, as a place to re-
think some practices and attitudes towards the folklorization of African culture and
teaching practices. Thus, we present some proposals for interventions with children and
3ᵒ 4ᵒ year a public school. As the study methodology appropriated from the perspective
notes were taken daily in class. For data analysis phases of identifying units of meaning
and organization categories were performed. Dialogued with the prospects of Philosophy
of Africa and some possibilities for their recognition and appreciation in educational
affairs. Based on the understandings of thematic studies, we consider the practical to the
postures, in order to favor the formation of a positive black identity, as well as collaborate
671
Introdução
colonial, levado a cabo especialmente a partir do século XVI, quando foram iniciadas as
invasões territoriais pelos povos europeus, tal qual foi submetido o território brasileiro.
Sobre esse período, Boff (2003) aponta a ruptura de um processo autônomo dos
dominação política fez uso do poder da violência física sobre a população que aqui vivia,
Nossa história pátria vem marcada por uma herança de exclusão que estruturou
qual:
tal modo que, nesta última, já não fica da cultura superior nada a não ser, talvez,
672
discriminados e o medo da liberdade. Trata-se de uma contestação do mundo real, de
A imposição opressiva de que eram sujeitos sem direitos deu origem ao que
brasileiro, assim como os outros territórios colonizados, tenha lutado pela emancipação
Desta forma, todos os povos de origem não europeia foram classificados como
seres animalescos, inferiores, como objetos, não protagonistas de sua história e até não
humanos que, por isso, não precisam ser reconhecidos, tão pouco respeitados.
história e tomá-la em suas mãos, para que possa re- produzir-se, produzindo seu mundo
crucial para a transformação da realidade, pois somos e nos conhecemos seres capazes de
fazer isso.
Contudo, é lamentável ter de reconhecer que entre nós, no Brasil, este pensamento
deparamo-nos com frases do tipo: “há uma nuvem negra em minha vida” ou “isto poderá
denegrir a minha imagem”, quando se quer expressar que determinado sujeito vivencia
673
As questões referentes ao reconhecimento da sociedade intercultural estão na
Brasileira e Africana, via o projeto de Lei nᵒ 10.639/2003 que altera o texto da Lei as
ψrasileira e χfricana” a serem observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos
674
o que em muito corrobora para os modelos de aulas pautadas em práticas
segregacionistas.
deve:
[...] tratar da cultura do corpo que se expressa de diversas formas, variado pelo
Para além das aulas de Educação Física, almejamos uma escola pautada no
modelo de interculturalidade, para tanto se faz necessário desfazer alguns equívocos, tal
aquela cultura que aceitem e compreendam a alteridade. Essa circunstância não permite
defender que uma cultura seja melhor que a outra, mas sim ensinar a pesquisar ou procurar
das produções do sul-africano Desmont Tutu (2012), da etíope Elleni Tedla (1995) e do
moçambicano José P. Castiano (2010) que muito colaboraram para a discussão dos
675
Objetivo
adoção de uma filosofia que corrobore para uma construção identitária negra positiva em
Percurso metodológico
324
“uste tadoà u aà pe spe ti aà f ei ea a,àoàte oà sulea à ueà oà o staàdosàdi io iosàdaà lí guaà
portuguesa, é utilizado neste estudo para chamar atenção dos(as) leitores(as) para a conotação ideológica
dasà e p essõesà o teado as ,à o tea -se. Norte é primeiro mundo. Norte está em cima, na parte
superior dos mapas alocados nas paredes de diversas salas de aula de escolas do Brasil, assim Norte
transmite os conhecimentos que nós do hemisfério Sul adotamos sem reflexão ao contexto local (FREIRE,
1992, p. 48).
676
professoras faziam uso dos recursos disponíveis na caixa de africanidades325 da escola.
Sobretudo, algumas atividades eram ofertadas via uma pedagogia descontextualizada dos
nas aulas de Educação Física, no período de agosto e setembro de 2013, junto as turmas
Os recursos materiais utilizados foram os mesmos utilizados nas aulas que já estão
previstas no início do semestre, por exemplo: bolas, arcos, cordas, livros, aparelho de
som, entre outros. Visando a emersão no objetivo proposto, adicionamos outros materiais,
segundo Bogdan e Biklen (1994), são como um relato escrito daquilo que o investigador
325
Proposta pela Secretária Municipal de Educação da cidade de São Carlos-SP que busca realizar algumas
ações para a implementação das Diretrizes Curriculares Municipais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(SÃO CARLOS, 2009). Nesta caixa contém material pedagógico para o ensino das relações étnico-raciais nas
escolas, composta por 64 livros de literatura infantil, instrumentos musicais, vídeos e CDs
326
As intervenções corresponderam à adoção de novos procedimentos, permeados pelas perspectivas da
filosofia africana, em atividades previstas para o bimestre, bem como a proposições de novas atividades
que buscassem construir saberes sobre África.
677
Com uma perspectiva de pesquisa qualitativa, ancoramo-nos em metodologia de
inspirações fenomenológica. Desta forma, após cuidadoso trabalho de leitura dos diários
de classe e rememoração das experiências vivências no momento das aulas, foi realizada
pedagógicos.
678
Não há como negar que a colonização impôs paradigmas educacionais que sempre
negaram, aos conquistados, conhecimentos úteis sobre o seu mundo e sobre sua origem.
A história que nos foi contada traz o ponto de vista do narrador, desta forma, o colonizado
é o condenado. Assim, é comum negar o que somos e tentarmos buscar o que não somos.
lançamos o nosso olhar para os livros didáticos. Estes materiais tendem a omitir a história
crianças manifestassem como elas se viam entre seus pares, na família, e nos distintos
espaços sociais. Observamos, no entanto, que a maior parte delas construiu autoimagens
negativas, expressas em falas como “meus olhos são estranhos” ou “eu não sou tão
inferioridade e segregação.
Sankofa. O termo representa por um pássaro africano, um adinkra, que está voltado com
a cabeça para trás. Nesse movimento ele se alimenta das sementes distribuídas em suas
asas; essa representação tem como significado a volta ao passado para atribuir
significações das ações do presente. A palavra, ainda, é entendida por “voltar para a fonte
e buscar” (TEDLχ, 1995, p. 46). Fazíamos referência sobre o poder que cada sujeito
679
possui perante a própria trajetória de vida, construído junto ao convívio e ancestralidade
de sua comunidade.
verifica a negação do outro, tão pouco a injustiça e desrespeito aos sujeitos humanos e
animais. O modelo de compreensão de mundo africano nos apresenta outro sentido sobre
reconhecer o outro como outro, dotados de potencialidades latentes para o seu vir-a-ser.
(TEDLA, 1995).
Nesta obra, a autora revela do pensamento africano sobre a vida não ter sentido se
for vivida fora de uma comunidade, pois o elo humano é cultivado e preservado na
diálogo com Desmond Tutu (2012) tem-se um dos grandes prestígios da cultura africana,
cultura africana, a harmonia com a comunidade. Para o autor, o povo africano é Ubuntu.
ubuntu [...]. “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas”.
680
Precisamos de outros seres para aprendermos a ser humanos, pois ninguém vem
como seres humanos a não ser que aprendêssemos como fazer essas coisas com
Nesse sentido, entendemos que ter Ubuntu é saber viver em união um com os(as)
estarem juntos, por formarem uma família, implicados por uma condição de ser se
somente o semelhante também for. Esse conceito ainda expressa “[...] de como as pessoas
são mais importantes que os objetos, os lucros, as posses materiais. Ele fala sobre o valor
intrínseco das pessoas como não dependentes de coisas alheias, como condição social,
afazeres pedagógicos
Os resultados e reflexões obtidos com as intervenções foram positivos, uma vez que
681
questionamentos sobre “o quê vem na cabeça das crianças” quando pensam sobre o
continente africano, somada aos saberes que elas possuem sobre localização geográfica.
Para emergir à luz esses conhecimentos, elaboramos um jogo no qual cada criança
história do Brasil, duas práticas culturais de África e, por fim três nomes de países
intrínseco ao ser humano, os quais assumem formas e modos concretos de existência num
confortável que as crianças expressavam por saber que elas serão quando todos forem
327
Abayomi é uma boneca de pele negra e estética afro, feita com materiais reaproveitados, retalhos de
pano e malhas. Em sua confecção são se usa cola ou costura, ou qualquer suporte interno (madeira,
arame, grampos, etc) somente retalhos superpostos e nós. Fitas, bordados, miçangas e miudezas definem
o acabamento.
682
africana Eu sou porque tu és, que sublinha que a nossa existência como indivíduos só se
Sob essa ótica, torna-se possível compartilhar diferentes saberes com e entre as
crianças, descontruindo formas preconceituosas e de negação dos modos de ser dos afro-
ter contato com outras matrizes participe na formação de nossa cultura, para além da
europeia.
entendimentos sobre África, como por exemplo, imaginá-la como território de pura
pobreza, cheio de doenças, que pode oferecer pouco ou quase nada ao mundo. Se
Considerações
683
sociais existentes em nosso meio e, especialmente, perceber o quão esta filosofa diverge
discriminatórias, são oriundas de omissões seculares na história que ainda hoje refletem
silenciar diante delas, exige desconstruir distorções e construir novos significados. Exige
humanizadora.
brasileira como 52% da população nacional e destacar que esse dado torna o Brasil um
684
modificar as identidades dos/as participantes no curto período, apenas corroboramos para
pedagógicas diárias, pois, como afirma Tutu (2012) o que é positivo em África é também
positivo à humanidade.
Referências
BOFF, L. (2003). Depois de 500 anos: que Brasil queremos? (3ᵃ ed., pp. 273). Petrópolis:
Vozes.
Brasiliense.
685
BRASIL, Ministério da Educação. (2003). Diretrizes Curriculares Nacionais para a
protesto de rua a proposta e políticas. Educação e Pesquisa. (Vol. 29 (1), pp. 109-123)
em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1517-
e brincadeiras africanos nas aulas de educação física: construindo uma identidade cultural
686
negra positivas em crianças negras e não negras. Anais da XV Jornada de Jóvenes
TEDLA, E. (1999). Sankofa: African thought and education. New York: Peter Lang.
TUTU, D. (2012). Deus não é cristão e outras provocações. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson Brasil.
687
O MUNDO DA VIDA NA PERSPECTIVA DO USUÁRIO DE DROGAS
Resumo: este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica cujo objetivo foi refletir
drogas, a cientificidade acaba por encobrir o fenômeno tal como este se mostra, reduzindo
Abstract: this work is the result of a bibliographic research which sought to reflect on
the lifeworld (Lesbenwelt) of drug user from the reference of Husserl's phenomenology.
German philosopher Edmund Husserl (1859-1938). To understand the life world of the
*
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão -
UFMA
**
Doutor em Psicologia Social.
688
drug users is necessary a rescue of human subjectivity in a return to original experience.
The Husserl's critique of scientism part of this distance with the issues related to the life
world, to their daily lives, resulting in the modern scientific rationality as a parameter for
analysis of all issues pertaining to life, to man. In relation to the drug phenomenon, the
Introdução
o tráfico de drogas causam graves danos ao país, gerando custos na esfera social e
econômica que afetam diversas pessoas de modo direto e indireto (ψrasil, 2009).
entre 2001 e 2005. χ partir deste último ano, sobretudo, observou-se um crescimento
identificou-se que quase a metade dos pesquisados (48.7%) afirmou ter feito uso de algum
689
tipo de droga na vida. Entre estes, a maior parte afirmou abusado de álcool (86.2%),
ecstasy (7.5%).
brasileiro, não corresponde aos resultados das pesquisas mais recentes realizadas. O que
familiar, social, bem como contribuindo para as mortes no trânsito, homicídios, dentre
outras consequências graves a sociedade. Mas, por ser se tratar de uma droga
mundial, que acarreta impacto na esfera econômica dos países, profundos danos sociais,
reduzem as drogas a números, fazendo com que os sujeitos que vêem estes dados
690
substâncias psicoativas, as repercursões no mundo da vida do dependente químico. Há
O tema das drogas tem sido discutido por especialistas (ψaistrocchi & Yaría, 2014;
Frankl, 2005) que relacionam esta problemática a questões relativas aos modos de
qual se caracteriza por tédio, ausência de projetos existenciais e a própria falta de sentido
na vida.
χlém destes estudos, o interesse pelo tema foi também despertado pela
proximidade profissional com dependentes químicos, que se iniciou no ano 2004, quando
se integrou uma das equipes dos ambulatórios de álcool e drogas da Secretaria de Saúde
Centro de χtenção Psicossocial Álcool e Drogas (CχPS χD), já em 2009. O objetivo das
pacientes.
o mundo, além dos anseios e dificuldades em relação ao seu projeto existencial. χlgumas
situações foram marcantes e recorrentes nas nossas observações e escuta dos pacientes: o
planificação para o futuro, com uma perspectiva voltada para o momento presente.
691
Era perceptível, em nossos contatos com os usuários de drogas em tratamento, a
ambivalência vivenciada por estes em relação à sedução pelo mundo das drogas, do
tráfico, bem como as diferentes sensações adquiridas com o uso de substâncias, a fuga da
realidade e a vontade de retomar projetos existenciais, tais como trabalhar, constituir uma
favoreceu vivências que nos aproximaram ao mundo vivido dos dependentes de drogas.
Uma delas, para nós também angustiante, referiu-se às recaídas dos pacientes. Em
diversos momentos, pacientes que estavam em abstinência do uso de drogas por meses e
trabalho, tinham recaídas que os levavam novamente ao mundo das drogas. Nesses
questionamento nos era recorrente: como pensar sobre o mundo da vida do usuário de
drogas?
mundo vivido do usuário de substâncias psicoativas, o ponto de partida deste trabalho foi
fenomenológica husserliana.
Marco teórico
692
No mundo atual, tem-se falado em modificações nas diversas esferas da
sociedade, seja numa perspectiva ética, moral e dos valores, o que reflete na concepção
cenário de crise no contexto europeu, na primeira metade do século XX. Nesta época,
Husserl (1839-1938) inquietou-se diante da busca por fundamentos para a ciência. Nesse
os que defendiam a articulação das leis da natureza com a razão; do outro lado, os que
distinguiam as leis da natureza das leis do espírito, e afirmavam que o fato psicológico, a
Mais do que uma escolha entre matrizes divergentes, a questão que se apresentava
no contexto europeo era bem mais complexa. Tratava-se de entender o sentido do mundo
como por exemplo, o sentido na vida, na história, na liberdade; ou como ele melhor
693
definiu o impacto do racionalismo científico sobre a subjetividade humana ao afirmar que
a filosofia (1936) que ele destaca a origem da crise da ciência. Para o filósofo, o
bem como no que se refere às questões relativas ao seu cotidiano, aos seus modos de viver
dependentes químicos, o modo como estão estruturados em sua maioria, vale evidenciar
694
A preocupação de Husserl com a tematização sobre o mundo da vida era de buscar
uma fundamentação para a fenomenologia, para uma ética da ciência, dando fim aos
anseios do mundo científico por um saber universal, apodítico (Silva, 2012). Ou, como
Para Husserl (2009, p.8), a ciência trata do ser, ou do valor da verdade, que tem a
pretensão de ser supratemporal. Além disso, estas verdades devem ser válidas para todos
questiona sobre o modo de funcionamento do mundo da vida, ou, como ele destaca, "todas
essas ciências são, enquanto produções do conhecimento para o mundo, uma pretensão
incompreensível”.
tem sido relacionado a uma falta de sentido na vida, de planificação do futuro, de valores
Husserl (2012) iniciou uma forte discussão sobre o tema do mundo da vida, propondo
695
Em termos de mundo da vida, somos nele objetos entre objetos, como estando
sejam elas fisiológicas, psicológicas, sociológicas etc. Somos por outro lado, sujeitos para
este mundo, a saber, como os eus-sujeitos a ele referidos de modo teológicamente ativo,
que o experenciam, consideram, valorizam, para quem este mundo circundante tem
valorizações etc., em cada caso lhe conferiram… (Husserl, 2012, [1936], p.84).
temas como o sentido da vida individual e coletiva, os valores, a cultura, seriam abordados
subjetividade, e, sendo assim, tem quase nada ou pouco a dizer sobre as necessidades
reais do homem.
realidade. Um movimento pretencioso, uma vez que ela coloca em segundo plano os
696
Seguindo este entendimento, o resgate do mundo da vida não se restringiria
conceito de mundo da vida se contrapõe ao de mundo da ciência, uma vez que se trata de
uma crise ética e de sentido, questão central na crise da ciência moderna. O mundo da
Para Silva (2012) a solução para a crise vivida pela ciência moderna em relação a
mundo da vida enquanto esfera de onde a ciência advém; além disso, situando a relação
entre mundo da vida e ciência, em que se estabelece o devido valor e alcance da ciência.
com nosso mundo privado, com sentimentos primitivos, originários, que surgem de nossa
experiência imediata, e são reveladas pela intuição. Toda esta dinâmica passa pela
697
É nessa perspectiva que se compreende que o sujeito que vivencia o mundo da
carácter prioritário do mundo da vida se situa nas múltiplas relações em que os objetos se
Restrepo, 2012).
Ao falar sobre as experiências cotidianas, Pizzi (2010) ressalta que estas são
importantes para se desvelar o sentido das práticas concretas, e mesmo que seja num
pequeno contexto, existe uma relevância dos fenômenos para aqueles que os vivenciam.
Percebe-se que, para o dependente químico em tratamento, essa relação com o cotidiano
é bem marcada, pois a rotina de abuso de drogas acarreta uma modificação brusca na vida
diária, fazendo com que hábitos adquiridos no decorrer da vida de cada sujeito, sejam
os inúmeros sentidos que estes atribuem à vida, ao mundo vivido, às suas experiências
698
Pizzi (2010) enfatiza que é preciso identificar um conhecimento pré-teórico, e que
projetos pessoais dão lugar a uma busca incessante pelo abuso de drogas. É como se
ocorresse uma modificação dos projetos anteriormente estabelecidos, tais como constituir
família, investir numa carreira profissional, adquirir a casa própria, dentre outros. Todos
estes planos são abandonados e que o resta é o abuso de drogas, passando a ser este vivido
Desta forma, o usuário de drogas, uma vez que abandona seus projetos de vida,
atribuído à vida por ele mesmo. Este afastamento das questões subjetivas é que dá lugar
a uma crise de sentido. É muito importante para o dependente de drogas resgatar o mundo
da vida como um espaço de atuação das diversas experiências humanas, do contato com
cada indivíduo tem uma capacidade de percepção para descobrir novos horizontes na
possibilidades que o mundo possui, atribuir-lhe sentido e ordená-lo de acordo com estes
699
Para o psiquiatra e doutor em filosofía Viktor Frankl (1932-2002), vários de seus
estudos indicam uma relação entre o abuso de substâncias e questões relativas ao projeto
de vida. Uma pesquisa realizada por este (Frankl, 2005) identificou, entre os usuários de
maior dependência entre os estudantes com uma vida sem sentido, vazia, em comparação
realizado com estudantes de ensino médio no ano de 2007, identificou-se que as baixas
expectativas para o futuro e para desenvolver projetos pessoais têm relação com o
consumo de drogas e que o projeto de vida se consolida como um fator protetor contra o
entendidos como estímulos que, quando presentes na vida do sujeito, reduzem sua
vulnerabilidade
processo, uma construção, uma vez que o homem não nasce fabricado, mas se constitue
ao longo de sua existência, fazendo uso de sua capacidade de escolha, de sua liberdade.
relação do homem com o mundo, colocando no sujeito a responsabilidade por seu projeto
existencial. Na compreensão sartreana, “toda ação que não se apóia numa experiência
comprovada está destinada ao fracasso” (Sartre, 2009, p.3). Ou seja, o projeto existencial
700
se faz na prática, no contato com o mundo da vida. Não se trata de vontade ou aspiração
humana.
Sartre (2009) ainda ressalta que o homem não é somente o que ele mostra em
determinado momento, mas o que ele concebe depois de sua existência, o que projeta ser.
Porque queremos dizer que o homem começa por existir, o que quer dizer que
começa por ser algo que se lança a um porvir, e que é consciente de projetar-se a um
porvir. O homem é ante tudo um projeto que se vive subjetivamente (Sartre, 2009, p.29-
tradução nossa).
Considerando-se que "o homem não é nada mais que seu projeto" (Sartre, 2009,
p.53), não há nada para além de suas ações, de suas realizações, de sua vida. O projeto
não define o homem de modo definitivo, podendo ser reencontrado, redefinido. Este é um
então, fica o projeto existencial de cada dependente químico? Que subjetividades são
o que se revela na experiência de cada sujeito, no que este faz e não em suas aspirações e
projeto existencial.
Nesse contexto, não se deve esquecer da liberdade de cada sujeito diante das
questões de sua existência, de suas relações no contexto do mundo da vida, liberdade esta
que se estende ao uso de substâncias psicoativas, da escolha de cada sujeito diante de cada
dose, de cada tragada. Embora, não se trata de minimizar a complexidade deste fenômeno,
planificado, e, além disso, sua vida universal, representada por sua consciência. Este
701
último tem infinitas possibilidades, mas também um mundo de indeterminações (Husserl,
2009).
Todo propósito, toda ação, dirigidos a este mundo circundante é um agir até-o-
sem dúvida, uma vez mais, indeterminado, da espera e das possibilidades ‘reais’. O
alcance segundo as motivações prefiguradas na trama de vida vivida até esse momento
isso vai estabelecendo uma insegurança geral sobre a vida, sentida como expectativa e
relacionamentos são questões apontadas por usuários como motivadoras para o abuso de
drogas.
processo dinâmico que se dá no decorrer da vida de uma pessoa e que expressa o sentido
da vivência do individuo.
O sentido se constrói a partir de uma estreita relação com as demais pessoas, com
as organizações e contextos em que se vai forjando uma concepção sobre quem somos,
702
como é o mundo que habitamos e qual pode ser nosso lugar e papel nele (Jáuregui, 2009,
p.39-tradução nossa).
No contexto dos usuários de drogas, pode-se identificar uma estreita relação entre
abandono dos projetos de vida, ou estes são modificados? Nesse sentido, o modo como
cada sujeito dependente de drogas se relaciona consigo mesmo e com o mundo revela o
indivíduo.
Considerações finais
com reflexos profundos sobre a relação dos sujeitos consigo mesmos, com o mundo e
as questões relativas a subjetividade humana ficam esquecidas, uma vez que o método
método experimental aplicado no contexto de saúde: “χ vida, não é, portanto, para o ser
vivo uma dedução monótona, um movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica,
703
ela é debate ou explicação com um meio em que há fugas, vazios, esquivamentos e
resistências inesperadas”.
Referências
Brasil (2009). Relatório brasileiro sobre drogas. Secretaria Nacional de Políticas sobre
Idéias e Letras.
Petrópolis: Vozes.
704
Husserl, E. (2008). Crise da humanidade européia e a filosofia. Covilhã: Universidade
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821_Husserl(Valor-de-la-vida).pdf
Centauro.
Perez, A.I.R.; Lafuente, M.E.R. (2008). Proyectos de vida, calidad de vida y bienestar
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S18098672007000200009&script=sci_arttext
707
INSTITUCIONALIZAÇÃO, À LUZ DA TEORIA BOWLBYANA DO APEGO
E-mail: mauroposest@yahoo.com.br
uma criança desfrutar de saúde psíquica sem manter proximidade com sua mãe ou com
alguém que desempenhe a função materna, isto é, uma mãe substituta? Quais as
necessidades primárias de vínculo apresentadas por crianças até os oito anos de idade?
Como o comportamento desses indivíduos poderia ser afetado na própria infância e nas
demais fases da vida? Quais os efeitos da não vinculação, nos casos de crianças
inglês, John Bowlby. Apesar de sua longa e pormenorizada investigação, aqui serão
destacados tão só os principais argumentos de sua teoria, evoluindo-se para o modo como
materna.
THEORY
708
Abstract: Hundreds of children held in institutions throughout Brazil... A serious social
phenomenon, which requires a sensitive and grounded look. One of these basics is
child enjoy mental health without maintaining proximity with their mother or someone
who holds a maternal function, ie, a surrogate mother? What are the primary needs of
bonding of children up to the age of eight? How could the behavior of these individuals
be affected in childhood itself and in the other stages of life? What are the effects of non-
binding, in the case of institutionalized children? To guide this analysis of the child
psyche, we will make use of the Attachment Theory, enunciated by the noted psychiatrist,
psychologist and British psychoanalyst John Bowlby. Despite his long and detailed
research, only the main arguments of his theory will be highlighted here, progressing to
how the child itself perceives the attachment. Following we will treat the equivalence
between natural and substitute attachments, and conclude with six consequences of
institutionalization.
attachment.
Considerações Iniciais
oitenta, intitulada “Punk, a Levada da ψreca”328, conta a história de uma garota traquinas
e carismática, de oito anos de idade. A menina, abandonada por sua mãe num shopping
center em Chicago, passa a viver num apartamento vazio, e é encontrada pelo síndico do
328
Punky encontra uma lar (parte 1 / 6) Punky a levada da breca 1º episódio. [sic]. (2011). Recuperado de:
http://www.youtube.com/watch?v=P3qq37IG_vo. Os episódios de Punk, a levada da breca podem ser
encontrados em sites da internet.
709
edifício. Ambos se apegam, e o velho e viúvo Artur Bicudo, aos sessenta anos, vai lutar
separados pelo juizado de menores, que acaba colocando Punk num orfanato, Artur e a
garotinha constituem tal vínculo que, no terceiro dia, diante do juiz de família declaram
um ao outro, com grande emoção, enquanto se abraçam: “eu te amo”. χ impressão que
se tem, diante de uma cena tão sensível, é a de que os autores da série querem afirmar
que, mesmo o lar mais simples ou inusitado é capaz de fazer uma criança feliz de um
modo que qualquer instituição jamais poderá. Uma garotinha e seu velhote podem formar
uma díade saudável, um par melhor que uma garotinha e sua instituição.
adoção; um grave fenômeno social vivido por centenas de crianças Brasil afora, que exige
primárias de vínculo apresentadas por crianças até os oito anos de idade? Quais danos a
falta de vínculo poderia causar ao seu psiquismo? Quais os efeitos da não vinculação, nos
casos de crianças institucionalizadas? Pode uma criança desfrutar de saúde psíquica sem
manter proximidade com sua mãe ou com alguém que desempenhe a função materna, isto
é, uma mãe substituta? Como o comportamento desses indivíduos poderia ser afetado na
enunciada pelo notável psiquiatra, psicólogo e psicanalista inglês, John Bowlby. Apesar
de sua longa e pormenorizada investigação, aqui serão destacados apenas alguns de seus
compreensão dos principais argumentos de sua teoria, evoluindo para o modo como a
710
própria criança percebe o apego. Em seguida, trataremos da equivalência entre apegos
corações humanos: “você tem uma coisa que eu não tenho: uma família”. De algum modo,
Pede-se vênia para uma citação biográfica que, apesar de “cirurgicamente” reduzida,
Cambridge. No terceiro ano da sua licenciatura, interessou-se pelo que mais tarde
das relações de “apego”. O contacto com uma obra de Konrad Lorenz desperta em
Bowlby o interesse pela etologia, onde vai procurar novas pistas e explicações para
711
Humanas de Tavistock, onde trabalhou a tempo inteiro como clínico, professor e
clínicos, Bowlby em 1980 desenvolveu uma teoria sobre perda e luto, sendo
considerada uma das mais compreensivas sobre a resposta à perda. (Oliveira &
Marques, n.d., p. 2)
Bowlby nos conta que, em 1950, fora convidado pela Organização Mundial de Saúde
para assessorá-la “na área de saúde mental de crianças sem lar” (ψowlby, 1990, p. IX).
psiquiatria infantil e puericultura de seu tempo; uma de suas principais impressões foi o
alto grau de concordância dos estudos, quanto aos princípios que regem a saúde mental
das crianças, bem como quanto aos modos de salvaguardá-la. Em seu relatório à OMS,
Bowlby formulou sua tese nos seguintes termos: “O que se acredita ser essencial para a
carinhoso, íntimo e contínuo com a mãe (ou mãe substituta permanente), no qual ambos
Além disso, nesse mesmo relatório foi ainda mais específico ao descrever as medidas
para a proteção da “saúde mental de crianças separadas de suas famílias” (Bowlby, 1990,
aspectos que nos cabe analisar resumidamente são, doravante, no que consiste o apego à
figura materna, e o conjunto dos males psíquicos causados pela privação desta.
Quando da elaboração de seu estudo, John Bowlby constatou que seu colega James
712
prospectivo a partir de crianças. Robertson fizera “uma investigação sistemática do
problema dos efeitos da separação da mãe nos primeiros anos da infância sobre o
estudo sobre esta e as demais relações comuns do lar329, e sobre a complexidade dos
efeitos de todas essas privações, é certo que a psicopatologia considera “a perda da figura
se referência mundial sobre “como crianças pequenas reagem à perda... da mãe” (ψowlby,
1990, p. XI).
como, sobretudo, suas paixões, isto é, para que se delineie uma espécie de etologia330
humana, tem-se como cerne o estudo dos vínculos. À luz da Teoria do Apego, diz-nos
formam entre si e com o 'mundo das coisas' de modo geral, é, sem dúvida nenhuma, o
329
Chamaram-se “relações comuns do lar” àquelas que o senso comum julga ocorrerem mais
frequentemente, a saber: fraternal, filial-paterna e filial-materna, conjugal.
330
O uso do termo Etologia, emprestado da zoologia, onde é amplamente utilizado, deve-se a que inúmeros
estudos analisem o comportamento humano tomando como uma das ferramentas de análise o
comportamento de aves, mamíferos e primatas. E a Teoria do Apego é um desses estudos. Para mais
detalhes, sugere-se a leitura de: Bowlby, John. Ontogênese do comportamento instintivo. In: Bowlby, 1990,
157-188.
713
χ constituição dos elos afetivos é essencial ao ser humano, particularmente “nos
primeiros anos de vida” (ψerthoud, 1997, p. 27), pois é a partir deles, sobretudo, que o
vínculos sociais íntimos, faz-se necessário o ambiente propício. Tal ambiente não é
e interação social da mãe. Quanto aos bebês, tão precoce é o desvelar de seu impulso de
típico de apego332 (Berthoud, 1997, p. 29), pelo qual buscam manter a proximidade com
perceptível desde a gestação, pode ser rechaçado, gerando afastamento constante, mesmo
aversão a seus bebês, o que seria, segundo ψerthoud, uma anomalia resultante “de
É preciso uma ressalva: ainda que somente na segunda metade do primeiro ano de
surgem as percepções fundantes vitais do vínculo. John Bowlby nos conta, por exemplo,
“que, no terceiro dia de vida, o bebê já é capaz de discriminar a voz da mãe” (ψowlby,
1990, p. 292). A psicóloga e pesquisadora Ana Celina Albornoz cita uma percepção ainda
(...) através da sensorialidade fetal, o bebê já conhece a mãe através do sabor único
331
χ noção de pessoa aqui corresponde a: “o homem em suas relações com o mundo ou consigo
mesmo” (χbbagnano, 2007, p. 761). Isto é, sendo a “pessoa” o humano “em relações”, sem a integral
constituição dessas relações não há “pessoa humana”, mas um ser despersonalizado, brutalizado.
332
Discorrer-se-á mais satisfatoriamente sobre comportamento de apego em Autoadaptabilidade do
Comportamento de Apego.
714
pela mãe logo após o nascimento, o bebê sofre uma perda súbita de todas as suas
30).
Para Bowlby, essa tendência à formação de uma ligação social íntima é necessidade
espécie. Deste modo, poderíamos afirmar que somos, ou tendemos a ser, em considerável
medida, resultantes (vital e psiquicamente) de nosso primeiro vínculo. Esta não é outra
de que o vínculo inicial possui grande poder psíquico. Referindo-se a esses primeiros
715
através dessa relação cria estruturas internas que emergem do caos e o capacitam a atender
orientado à ordem: o impulso vital para constituição de vínculo afetivo com uma figura
O bebê vai sendo gerado por meio do vínculo gestacional; formado para o vínculo,
afirmado a si mesmo como humano, em seus primeiros meses de nascido, sob o vínculo.
O ato de nascer é uma batalha entre vida e morte, uma experiência profunda na
por uma decisão do próprio feto, que determina a hora, não em que será dado à luz, e sim
quando virá à luz. Segundo Renato Santana, obstetra da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), “é ele (o feto) quem decide se está pronto ou não para nascer”
De qualquer modo, mesmo nos casos em que se desconheça o elemento que dá início
ao trabalho de parto,
333
Segundo a pesquisadora Sonia Nunes, “χpesar da existência de várias teorias explicativas sobre o
que dá início ao trabalho de parto, nenhuma delas foi comprovada cientificamente” (Nunes, 2012, p. 17).
716
“tempo bom” no ventre materno. χo nascer, de uma forma primitiva, a criança vive
uma ameaça de não-ser, que segundo o psicanalista René Spitz, se mostra como uma
Freud afirmou que o instinto de morte tem seu primeiro registro nesse momento
ao bebê, pode mantê-lo vivo, infere-se que aquele instante seja norteador para o recém-
nascido, no sentido de provê-lo, ao longo de toda a infância, e para além desta, de uma
O bebê não só é naturalmente dotado do impulso vital para o vínculo, mas ele assim
entende a experiência de vinculação: é ela que a tudo dá sentido, sentida e percebida vital.
afirmar-se que, para ele, desde sempre viver satisfatoriamente é e será ter as necessidades
continuamente supridas, o que consiste primariamente em ser mantido próximo de, e ser
estimado por outro vivo. Para Bowlby, são justamente esses os componentes da díade
saudável mãe-filho:
(...) é essencial para a saúde mental que o bebê e a criança pequena experimentem
um relacionamento afetuoso, íntimo e contínuo com sua mãe (ou mãe substituta), no
qual ambos encontrem satisfação e prazer. Uma criança precisa sentir que é objeto
parto como o grande sustentador da vida, estão entre as mais urgentes necessidades dos
334
O hipotálamo consiste em pequena região encefálica, e “está relacionado com a expressão de raiva,
comportamento sexual, prazer e medo” (Kay & Tasman, 2002, p. 102).
717
bebês, bem como das crianças até oito anos de idade. A falta de cuidados maternos sujeita
(...) o risco ainda é sério entre os três e cinco anos de idade.... Após os cinco anos, o
risco diminui ainda mais, embora não se possa duvidar de que um bom número de
pseudônimo é “C”:
C. foi colocada para adoção ainda recém-nascida pela mãe biológica no próprio
hospital onde nasceu com sua irmã gêmea. Ambas foram adotadas pelo mesmo casal,
mas aos 28 dias de idade, ainda hospitalizadas, C. perde a irmã. Apesar de ser menor
Apesar da falta de qualquer registro oficial sobre a sua vida pré-natal, pelas
condições do nascimento pode-se inferir que a gestação não foi saudável. As crianças
traumático. Quem o relatou foi aquela que se tornou mãe adotiva do bebê:
Eu tentava ajudar! Toda vez que ia até lá, tentava ajudar! Levava roupas, mas
eram consideradas descartáveis, porque a mãe usava no bebê e jogava fora, não
lavava. A casa era um lixo! No meio da cama tinha de tudo e ainda um cachorro
335
Eis o motivo pelo qual enfocamos em nossa pesquisa crianças até oito anos de idade.
718
em cima da criança... Quando ele saiu de lá, ficou a marca dele na parede! A
marcazinha de suor na parede, porque o neném ficou ali 6 meses, sem sair, sem
nada..
Eu acho que ele sofreu maus-tratos, porque umas pessoas que bebem, podem tratar
bem uma criança?... Os vizinhos diziam que a criança berrava de fome. Uma vez
para ele encher de leite. O bebê mamou na hora e continuou a chorar, e aí a mãe
disse: 'Não' Pode ficar quieto, porque agora você vai mamar só de noite!
em especial na história de “χ”. Segundo ψowlby, para que a relação mãe-filho seja
saudável, a mãe precisa “sentir que pertence a seu filho” (ψowlby, 1988, p. 73); isto é: há
Nos relatos de ψerthoud, “C” e “χ” tiveram suas histórias de vida transmudadas pela
experiência da adoção. Quanto a “C”, diz-se que, em sua família adotiva, “O ambiente
familiar é sempre relatado como muito carinhoso e harmonioso” (ψerthoud, 1997, p. 113).
A., com dois anos e meio, é uma criança extremamente risonha, alegre e bem
humorada... desde o início da vida na família adotiva, A. foi muito bem aceito pelos
irmãos adolescentes que, como diz a mãe, 'se sentem um pouco seus paizinhos
719
tivessem sido remetidas ao ambiente institucional? Além das crises comuns às crianças
acolhidas em suas famílias, naturais ou adotivas, que outras mais as crianças em casas de
a essas perguntas, cremos seja preciso averiguar a equivalência entre vínculo adotivo e
institucionalização.
adotivo?
O apego do bebê à sua mãe não se constitui apenas mediante estímulos não
720
desenvolvimento do apego: sucção, agarramento, acompanhar o outro com os olhos,
apego fundamenta-se em que, nesse período “o bebê não diferencia a mãe de outras
pessoas, mas responde amistosamente a qualquer pessoa que interaja com ele” (ψerthoud,
1997, p. 32). Essa não determinação da figura de apego parece subentendida em Loder,
correspondência ao sorriso:
para outro corpo carente.... Se lhe é mostrado (ao bebê) uma figura com a face
humana, ele tende a acompanhar com os olhos e sorri. Se for uma face real que sorri
para o bebê, ele responderá com um sorriso (Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012,
p. 52 [itálico nosso]).
Um corpo, uma figura e uma face não se referem a qualquer indivíduo em particular.
O impulso do bebê para formação de vínculo é inato, porém aberto, a saber, não
quem seja sua mãe. Mãe “é aquela que se comporta como tal” (Berthoud, 1997, p. 72).
parecem uma busca, uma tentativa, uma investigação que, por si só, deixa clara a não
presença de sua mãe biológica, procura uma figura à qual se apegar, evidencia-se que as
questões existenciais (O que sou? Para “onde”337 vou? Etc.) não lhe vêm completamente
336
“Tão regular é esse fenômeno que ele foi chamado... de imprinting [gravação] do que significa ser
humano. Imprinting é o processo pelo qual filhotes, logo que nascem, têm a prontidão para seguir a mãe ou
até uma falsa mãe, identificando-se como membros daquela espécie” (Wondracek, Rehbein, & Cartell,
2012, p. 53).
337
Esse “onde” não corresponde a uma localização geográfica, mas a um “lugar” de afeto, um “quem”.
721
respondidas de antemão; certas respostas lhe serão dadas por quem o “adotar” como filho
capaz de forçar uma espécie de determinismo relacional. O apego é “um ‘encontro’ que
pode ou não acontecer entre uma mãe biológica e seu filho, pois não é determinado na
citando-se as palavras do cientista alemão Volkmar Weiss, diz-se que “χs influências
psicologia e desenvolvimento. Não são diretas, nem irreversíveis, nem inescapáveis, nem
e a qualidade de seu vínculo. Para isto contam as fantasias e atitudes profundas dos
pais, e nos primeiros tempos sobretudo as da mãe, o que se verifica em todos os casos,
722
adotivos ou não. Como em qualquer relação entre pais e filhos, se os pais adotivos
Tanto quanto é infundado o temor que ronda o imaginário de pais adotivos, de que a
afetivo, ou apego.
dinamarqueses, conduziram em 1977 estudo que revelou que, no caso de homens adultos
adotados na década de 50, quando ainda eram crianças, comparando-se suas fichas
policiais com as de seus pais adotivos, e com as dos pais biológicos, a maior taxa de
o eram, contra 12% quando os pais violentos eram os adotivos. Isto é, 78% dos filhos de
pais biológicos violentos não seguiram o histórico policial de seus pais, e 88% dos filhos
de pais adotivos violentos não o fizeram. Isto revela ser a herança genética contribuinte
indivíduo construída nos meandros de seu psiquismo, tudo isto tem seu lugar de influência
na vida de filhos adotados. Contudo, dos fatores mencionados, a decisão individual parece
723
Uma questão primária quanto à averiguação da equivalência entre apegos natural e
adotivo: tanto mais cedo se estabeleça o vínculo com a mãe adotiva, tanto menos se darão
(...) todos aqueles que têm experiências concordam com o fato de que um bebê deve
um bebê, que ele seja adotado logo após o nascimento. (Bowlby, 1988, p. 116
[itálico nosso])
Esses distúrbios, como veremos, podem-se originar muito prematuramente, o que poderia
fazer o bebê parecer inadequado para adoção, por parte de alguns, isto é: em tais
serão seus efeitos”, pode-se inferir que, quanto mais cedo se apresentar ao bebê a figura
à qual ele possa se apegar satisfatoriamente, tanto mais estável será seu psiquismo.
Apesar dos dilemas implicados na adoção prematura, ela ainda é, para bebês e pais
adotivos, uma via melhor que a institucionalização. Ambos os grupos terão maior
338
Em seu relatório à OMS, ψowlby polemiza ao afirmar que “as crianças se desenvolvem melhor em maus
lares do que em boas instituições.... Os responsáveis por instituições às vezes não querem reconhecer que
as crianças estariam muito melhor mesmo em lares desfavoráveis, quando esta é a conclusão dos assistentes
sociais mais experientes, com treinamento em saúde mental, e fato já comprovado pelas evidências.”. O
724
porém, ao se falar de institucionalização, esta equivalência desce, como veremos, ao nível
da privação radical.
Consequências da Institucionalização
modo pessoal, e com quem se sinta segura. Essa privação, especialmente danosa nos
primeiros oito anos da vida, equivale, segundo Bowlby, a um tipo de privação quase total
(Bowlby, 1988, p. 14). Apesar de haver outros diferentes tipos de privação materna339,
(...) entre as várias formas de distúrbio estão, por um lado, a tendência para
quando tais exigências não são satisfeitas, como se verifica nas personalidades
mais sintomas, em diferentes graus e associações, podem se manifestar. À luz dos escritos
conceito de lar desfavorável, para aquele pesquisador, consistia num tal em que, mesmo os pais
negligenciando seus filhos, ainda assim lhes proporcionariam precariamente: alimentação (talvez péssima),
abrigo, conforto na angústia, ensino de pequenas coisas. (Bowlby, 1988, p. 74)
339
Mesmo ciente da gama muito ampla de situações em que a criança possa viver sob privação
materna, Bowlby cita três grandes grupos: privação parcial suave, quando, mesmo vivendo em casa com
sua mãe, esta não lhe proporciona os cuidados amorosos suficientes ao seu bem-estar, ou quando, não
vivendo com sua mãe, a criança é cuidada por uma mãe substituta na qual confia; privação parcial
acentuada, quando a mãe substituta é estranha para a criança; e privação quase total, quando, em creches,
hospitais, instituições, a criança não dispõe de uma pessoa determinada, que dela cuide de modo pessoal, e
com quem se sinta segura. (Bowlby, 1988, p. 14)
725
de Bowlby, este pesquisador percebeu a recorrência de seis deles, isto é, os que mais
avultaram durante a pesquisa, e que atingem ora bebês, ora crianças a partir dos dois anos,
desenvolvimento de qualquer deles nos primeiros oito anos da vida, período em que o
Incapacidade de Reação
renome,
desde a mais tenra idade... o bebê que sofre privação pode deixar de sorrir para um
rosto humano ou deixar de reagir quando alguém brinca com ele, pode ficar
fenômeno de autoidentificação por meio da face do outro, (neste caso, da figura de apego)
encontra no abraço e no olhar de sua mãe “a própria ordem cósmica, na qual ele se sente
inserido e tem sua identificação confirmada” (Wondracek, Rehbein, & Cartell, 2012, p.
53).
726
Se, como visto anteriormente, para o bebê é o vínculo que o mantém vivo, a não
vinculação se faria perceber como antecipação da morte, uma negação do seu próprio ser.
querer comer, tem sido tratada como um tipo de linguagem exclusiva dos humanos.
humano.
(...) do choro e do balbucio dos bebês mostrou que os que se achavam num orfanato,
desde o nascimento até os seis meses de idade, vocalizavam sempre menos do que os
que viviam com famílias, podendo-se notar claramente a diferença já antes dos dois
tanto em nível motor quanto em nível lógico. A pesquisadora portuguesa Ana Manuela
727
combinação de palavras e um menor nível de linguagem espontânea, em comparação com
com sessenta e cinco crianças com cinco anos de idade, “crianças seguramente apegadas
capacidade de comunicação (neste caso, a fala), e sua capacidade de aprender (QI) sejam
prejudicados.
peculiares, como, por exemplo, pouco contato com o mundo vasto e externo à casa de
abrigo “e, quando lhes é permitido, tal acontece, geralmente, sob supervisão e com várias
limitações à sua liberdade de interação e contactos com outras pessoas” (Pinheiro, 2011,
p. 11).
É notável que, quando a criança, bebê ou não, deixa a instituição para ser inserida
materna por parte de bebês: “O bebê imediatamente fica mais animado e ativo; se
728
apresentava febre..., esta desaparece num período de vinte e quatro a setenta e duas horas;
Apesar de, no caso a seguir, Bowlby referir-se a um bebê que se encontrava, não em
uma casa de abrigo, mas num hospital, creio seja adequado mencioná-lo; o problema-
Sua aparência era a de um velho, pálido e enrugado. Tinha a respiração tão fraca e
superficial.... Quando foi examinado, vinte e quatro horas após voltar para casa,
estava vocalizando e sorrindo. Embora sua dieta não tivesse sido alterada, começou
imediatamente a engordar, e, no final do primeiro ano, seu peso estava bem dentro
impulso para o apego ser motivado pela necessidade de satisfação de uma pulsão
libidinosa, ou, ainda, pela necessidade de nutrição, como o diriam certas correntes
mal-estar existencial.
340
No artigo “Psicanálise e teoria da vinculação”, os pesquisadores portugueses Ferreira e Pinho, referindo-
se a uma das divergências entre a Teoria do Apego e certas correntes psicanalíticas, citam Charman:
“Contrariamente à TV [teoria da vinculação, ou apego], que apresenta a vinculação como a necessidade
fundamental dos humanos, a base fundamental da teoria psicanalítica é o determinismo psíquico que
acredita que a génese de todos os problemas psíquicos é determinada por processos inconscientes. Para esta
teoria a criança se vincula com a mãe para que esta o alimente. No entanto, para a TV, uma criança bem
nutrida que seja privada do afecto dos cuidadores não tem sucesso no seu desenvolvimento e pode mesmo
morrer” (Charman. In Ferreira & Pinho, 2009, p. 9).
729
É vital o sentimento de pertença mútua entre mãe e filho(a), para que a criança se
sinta dirigindo-se a alguém que de igual modo a deseja. A criança institucionalizada, por
mais que procure a figura específica que lhe proporcione atenção e proximidade pessoais
e constantes, não a encontra, permanecendo sem um “lugar” (a figura de apego) aonde ir;
Os efeitos dessa não alocação, esse “Não ser tomado como filho” (χlbornoz,
A criança desapegada, vivendo sem a relação prazerosa constante com uma figura
não lhe ter sido dado o suporte de segurança para que ela se lançasse à descoberta do
mundo à sua volta, nem apenas porque não houve ação participativa da figura de apego à
continuamente por não ter onde se aconchegar, e em sua vulnerável existência sobrevive
afirmar que “o não aprender pode ser um processo ativo de contra-inteligência, em que a
730
criança busca não ser inteligente, evita pensar, para não conhecer conteúdos dolorosos e
pensar sua própria história não estará aberta a “investigar as verdades da vida” (χlbornoz,
2006, p. 36).
que a criança institucionalizada frequentemente terá, de não ser bom pai ou boa mãe.
como se sente um garoto de seis anos que fica confinado num hospital por três anos.
deslocado e intruso. “No final, este vazio afastou-me de casa novamente... mas
nenhuma segunda figura materna cruzou o meu caminho e, de fato, eu não era, então,
731
fato de tornar-me excessivamente intolerante diante de minhas próprias falhas em
outras pessoas, e é, portanto, uma ameaça à minha relação com meus próprios filhos”
“Um garoto de seis anos que fica confinado num hospital por três anos”, ao entrar
na fase adulta ainda percebe que sua vida está sob constante ameaça: a interdição de sua
comportamento de apego, não se pode “menosprezar o papel vital que ele desempenha na
Considerações Finais
institucionalização, elas tenderiam a assumir com erro: “Se eu estou aqui, sem mãe, é
Se, como visto, por exemplo, no efeito ora elencado, três anos de
satisfatório, seja ele natural ou substituto? A questão da infância abrigada merece lugar
732
No dizer de Bowlby, toda criança precisaria ser recebida, sentir que é desejada por
sua mãe natural ou substituta. Será pouco viável, a um pequeno e desvinculado ser
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734
NOTAS SOBRE A ONTOLOGIA FREUDIANA
E-mail. ligiadurski@usp.br
quais seriam as características básicas que tornam possível dizer que algo, alguém ou
evento, é. Também, considerando que uma ontologia do ser humano designa uma
concepção daquilo que é comum a todos os homens, que define o ser do homem,
hipóteses deveriam demonstrar concordância com seus achados clínicos e, pela profunda
coerência dessas hipóteses, ainda hoje a ontologia do homem contida na obra freudiana
não foi refutada. Assim, este trabalho pretende apontar algumas referências que auxiliem
341Psicóloga, bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Psicanálise pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutoranda em Psicanálise pela Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Prof. Dr. Gilberto Safra.
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da especificidade de alguns apontamentos acerca das dimensões ética e estética contidas
nesta obra.
Abstract: Considering that, in short, an ontology is the attempt to answer what are the
basic features that make possible say something, someone or event is. Also, considering
that an ontology of the human being means a conception of what is common to all men,
that defines the being of man, throwing him to certain outcomes destination. Then
subtended to the constructions, deductions, inferences and assertions about the Freudian
sought resolutely avoid hypotheses and assumptions, clearly pursuing the recognition of
reality. However, inevitably, Freud also had to establish hypotheses concerning the man`s
peculiar characteristics that justified the evidences of man`s mental organization. Such
assumptions should demonstrate compliance with the clinical findings and, for the
inherent consistency of these hypotheses, still the ontology of man contained in Freud's
work was not refuted. Therefore, this paper intends to point out some references that help
us to limit the ontology of man subtended in Freud's work, especially from the specificity
of some notes about the ethical and aesthetic dimensions contained in this work.
736
Introdução
teorizações acerca do fazer clínico. Freud será, pois, um dos interlocutores de minhas
etapa.
Para situar o leitor, vale uma breve descrição de meu percurso. Ao longo de minha
trajetória clínica e acadêmica, ficou claro para mim que a direção do tratamento subtende
um posicionamento ético do analista, quer ele tenha ou não clareza desse fato. Neste
sentido, a busca da clareza sobre meu próprio posicionamento ético na clínica tornou-se
progressivamente premente, pois notei que isso significava a base que sustentava minha
prática. Até o presente, posso dividir meu percurso em três momentos: o que é a
exemplo, mais material de articulação surgia para pensar a prática. Quanto mais eu me
debruçava sobre dado caso clínico, mais associações com a teoria se abriam e assim
342
Para saber mais, ver em: DURSKI, L. M. (2011) Entre o Psíquico e o Somático – Um estudo, a partir
das obras de Freud e Winnicott, sobre os limites e as possibilidades da clínica psicanalítica.
Dissertação de Mestrado, orientada pela Prof. Dra. Nadja Nara Barbosa Pinheiro. Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
737
hospital geral, eu indagara, na época, especificamente acerca das relações entre corpo
orgânico e aparelho psíquico. Tal seleção de indagação, por assim dizer, se impusera a
mim pela especificidade dos casos que eu atendia e também pelo fato de que para avançar
conseguia organizar minha compreensão das relações entre tópica, dinâmica e economia
psíquica.
clínica, que inevitavelmente eu supunha uma ideia de saúde psíquica que não me era clara,
de não pertencerem à própria vida, de serem como que expectadores e não autores da
própria existência, de viverem uma vida sem sentido, mortificada, por assim dizer.
Ficava a cada atendimento cada vez mais evidente para mim uma dor existencial
especifica que aponta, numa perspectiva mais ampliada, para fatores que prejudicam o
devir humano e que pode ser descrita de uma forma mais ou menos organizada da seguinte
Parecia que a clínica começava a deixar mais evidente para mim um tipo de sofrimento
subjetivo que pode assolar o humano na sua possibilidade de experiênciar a própria vida,
738
de sentir-se existindo, de sentir que se é. Tal sofrimento marcava uma confusão e um
dilema entre, por um lado, existir significar pertencer e, por outro, significar diferenciar-
se.
Mas, afinal, o que é esse “ser” do humano que o circunscreve numa comunidade
de destino comum a todos os humanos? Ora, essa é uma pergunta sobre a ontologia do
a prática pressupõe uma concepção de saúde que, por sua vez, pressupõe uma ética que,
por sua vez, pressupõe uma ontologia. E, para complicar um pouco mais esse quadro, esse
“o que”-fazer contido num posicionamento ético traz outra dimensão daí inseparável, a
o analista ter clareza sobre a direção do tratamento se ele não tem a sensibilidade
necessária do como organizar essa direção no caso a caso. Seria o mesmo que o analista
fazer uma interpretação correta, na hora errada ou fazer uma interpretação errada e não
denunciavam a partir da sensação de não sentir que viviam a própria vida, estava algum
trata-se, pois, de uma questão crucial no sentido de refletir sobre alguns determinantes
que prejudicam (ou mesmo impedem) o devir humano. Assim corroborando com alguns
ditos de Winnicott, da sua concepção de saúde estar sustentada no que ele refere sobre a
relações entre criatividade e ontologia do devir humano, uma vez que a clínica e os
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autores/interlocutores aos quais me referencio – a saber, Freud, Ferenczi e Winnicott –
de processos criativos?
Pois bem, com tais indagações em mente, um percurso de estudo entre estes
quais seriam as características básicas que tornam possível dizer que algo, alguém ou
evento, é. Uma ontologia do ser humano designa, neste sentido, uma concepção daquilo
que é comum a todos os homens, que define o ser do homem, lançando-o a determinados
desfechos de destino.
740
com seus achados clínicos e, pela notável coerência dessas hipóteses, ainda hoje a
pelo autor. Ou seja, priorizarei a articulação desenvolvida por Freud acerca da teoria
pulsional por acreditar que esta evidencia algumas importantes peculiaridades de sua
Pois bem, Freud realiza ao longo de sua obra o exercício árduo de identificar em
quais categorias gerais poderíamos localizar as forças que subjazem ao organismo vivo.
No início de sua clínica com pacientes histéricos, fazendo uso da técnica de hipnose e
poderia ser nomeado de economia psíquica, que tinha por base buscar prazer e evitar o
desprazer. Assim, Freud notou uma tendência do ser humano, desde tenra idade, a
diferenciar estas premências entre “internas” e “externas”. Com relação às forças internas,
trabalho [feita] ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo” (Freud, 2004a,
no que tange à questão da economia psíquica, Freud demonstra claramente em seu texto
a base de reações à pressão pulsional. Ou seja, isso indicaria que a formação do aparelho
741
para Freud o devir humano, subtendido na constituição psíquica do homem, sustenta-se
É por volta de 1915 que a primeira teoria pulsional freudiana fica estabelecida.
Neste momento da obra, podemos ver Freud concluir que as forças não mais divisíveis
que impelem a existência são Fome e Amor, Ananke e Eros. Freud caracteriza assim a
diferença basal entre pulsões do Eu e pulsões sexuais, sendo que as primeiras pulsões
No entanto, Freud ponderou que o próprio Eu pode ser também objeto de investimento
clínica, Freud começou a verificar uma dualidade ainda mais original das forças operantes
Em 1920, Freud então escreve que “(...) há duas espécies de processos opostos
dupla tendência entre destruição e construção, entre unir e separar, levou Freud a propor
sua segunda teoria pulsional: a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. Deste
modo, fica estabelecida na obra freudiana o fato de que subjaz a toda manifestação
humana uma dupla tendência entre pulsão de vida e de morte, estando estas fusionadas
343
Em suma: “χ psicanálise, que não tinha como trabalhar sem formular alguma hipótese inicial sobre as pulsões,
ateve-se inicialmente à popular diferenciação das pulsões que responde pela fórmula emblemática de “fome e amor”.
Ao fazê-lo, estávamos ao menos evitando enveredar por mais uma definição arbitrária qualquer; ademais, esta distinção
teve fôlego para nos servir por um bom tempo e permitiu um avanço significativo na análise das psiconeuroses. Claro
que o conceito de “sexualidade” e, por consequência, o de pulsão precisaram ser ampliados e acabaram incluindo
muitos aspectos que não se limitam à função de reprodução. (...) Ademais, nossa concepção desde o início sempre foi
dualista, e hoje, quando os termos opostos não são mais designados como pulsões do Eu e pulsões sexuais, mas como
pulsões de vida e pulsões de morte, ela é ainda mais rigorosamente dualista do que antes”. (Freud, 2006a, p. 174).
742
(...) no âmbito psicanalítico, temos de supor que, de algum modo, os dois tipos de
Especialmente entre 1920 e 1924, quando da escrita dos textos “χlém do Princípio
de morte.
tensão, Freud demonstra certa dúvida sobre situar o princípio de prazer às pulsões de vida
ou às pulsões de morte. Além disso, outro ponto que deixava a contextualização freudiana
ainda mais contraditória era o fato de haver aumentos de tensão sentidos como prazerosos
e reduções de tensão sentidas como desprazerosas. Pois bem, com estas contrariedades
em mente, em 1924, Freud nos oferece o seguinte resumo sobre esta perspectiva
outro do poder. Aliás, em geral, eles sabem conviver bem uns com os outros,
qualquer modo, penso que fica claro que o princípio de prazer indubitavelmente é
o guardião não só da vida psíquica, mas da vida como um todo. (Freud, 2007,
p.107).
743
Freud então diferencia princípio de Nirvana e princípio de prazer pela diferença
necessariamente havendo aí uma relação direta entre prazer ser sinônimo de redução
tensional. A pulsão de morte, com sua tendência a separar, destruir e buscar a inércia,
estaria então expressa no princípio de Nirvana, enquanto que a pulsão de vida, com sua
prazer.
(...) tivemos de nos dar conta de que, no curso do desenvolvimento dos seres vivos,
retorno à morte, morte muitas vezes igualada, por Freud, a um estado inorgânico ou a um
estado de inércia. Aí está uma clara hipótese de Freud - diferente de uma dedução ou
inferência, note-se - pois suposições sobre o que ocorre antes do nascimento e após a
morte é justamente o estado “entre enigmas” no qual todo ser humano está fadado.
744
A questão central aqui é a suposição de uma ontologia do ser humano baseada
num funcionamento reativo que evidencia uma constante luta e anseio de fuga do próprio
constante e ao mesmo tempo objetivar a cessação dessa pressão, Freud declara algo como:
freudiana, uma pergunta específica desponta: subentender o homem como um ser de ação,
um ser de reação ou de ambos ao mesmo tempo tem quais consequências? Uma hipótese
construção, desconstrução e/ou manutenção das bases que sustentam o ser do homem.
Ora, se uma hipótese ontológica repercute no campo da ética é preciso avaliar, pois, no
na direção do tratamento.
relaciona com “modos de ser” ou “caráter”. Tal palavra significava para os gregos a
morada do homem, a especificidade de sua natureza. Ora, se a ética diz sobre os modos
que deflagram o ser, tais campos fazem intersecções. Hipotetizar uma ontologia do
homem é incidir no campo da ética na medida em que se cria a partir de tal hipótese um
ideal e uma visada que perpassa a distinção do normal e o patológico e do bem e do mal,
745
na existência humana. Desta forma, uma ontologia significa a base que sustenta um
posicionamento ético.
ressaltar que enquanto o campo da moral é composto pela estipulação das regras vigentes
pressupostos morais. Assim, é possível ser ético e moral ao mesmo tempo, embora não
necessariamente, pois ambos não são sinônimos. Poderíamos dizer que o campo da ética
observar que importantes reviravoltas são passíveis de destaque a respeito daquilo Freud
definia como a visada da clínica psicanalítica. Com isso, buscando clareza na exposição
da questão, podemos destacar duas proposições freudianas que circunscrevem o que visa
Eu advir. Vejamos então alguns apontamentos sobre esse objetivo clínico do “tornar
através de suas palavras e seus atos conscientes. (...) Ao serem identificadas suas
746
Contudo, nesta data, sete anos após a publicação da Interpretação dos Sonhos, a
clínica de Freud começava a indicar de uma maneira mais clara e consistente que o
método psicanalítico não poderia se limitar a apenas trazer à luz os conteúdos recalcados
perspectivas seus dilemas e conflitos psíquicos e, assim, galgar alguma abertura um pouco
mais livre de seu circuito sintomático para estabelecer o desfecho, novo ou não, que daria
Portanto, no mesmo texto acima citado, Freud avança e pondera que “[O método
psicanalítico] não se limita a esses dois aspectos – tornar consciente o que foi reprimido
Sabemos que seus atuais sintomas e inibições são consequências de repressões desse
tipo; que constituem um substituto para aquelas coisas que [o paciente] esqueceu.
Que tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para
si mesmos, mas via de regra seriamente deformados por todos os fatores relacionados
à formação dos sonhos. Se ele se entrega à associação livre, produz ainda ideias em
afetivos recalcados, bem como das reações contra eles. (...) Nossa experiência
747
É dessa matéria-prima – se assim podemos descrevê-la - que temos de reunir aquilo
Espacialmente na próxima citação fica ainda mais claro que a revelação dos
esquecidas. Estes trechos foram extraídos do texto “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914)
inconsciente, mas avança no sentido de propiciar ao paciente a questão sobre “o que fazer
com Isso344”.
nome poderia não resultar em sua cessação imediata. Deve-se dar ao paciente tempo
para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para
médico nada mais tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem seu curso,
que não pode ser evitado nem continuamente apressado. Se se apegar a esta
está conduzindo o tratamento segundo as linhas corretas. (...) Esta elaboração das
resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e
uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que
344 No subitem 2.1.2, quando trabalhar-se-á a questão da direção do tratamento a partir da perspectiva freudiana do “Wo
Es war soll Ich werden” [Onde o Id estava, deve o Eu advir] (Freud, 1933 [1932]), será esclarecido o porquê de termos
colocado a palavra “isso”, com “i” maiúsculo. Mas já podemos adiantar que trata-se do Id da segunda tópica freudiana.
748
efetua maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de
tratamento proposta por Freud. A simples revelação do conteúdo recalcado - ou, como
assinalado, o simples dar nome à resistência – não é suficiente para fazer cessar a
clínico para que o paciente, em seu ritmo, se convença do poder dos impulsos
inconscientes e recalcados. É preciso esperar para que o paciente, em seu próprio tempo,
elabore e conquiste a capacidade de criar novos desfechos para seus dilemas psíquicos
decorrente deste.
de sua compulsão à repetição. Há, porém, outro fator em jogo numa análise além desse
“dar-se conta de que repito ativamente justamente aquilo que resulta em meu sofrimento”
que é: o que faço com isso? Deste modo, a análise desafia as antigas soluções sintomáticas
outro, suspende a muleta do sintoma e desafia o paciente a criar novas formas de caminhar
sem precisar estar necessariamente preso a tal muleta. Assim, a ética freudiana parece
um “descobrir-se”.
749
A outra proposição freudiana destacada é o “Wo Es war soll Ich werden” [Onde o
Id estava (era), deve o Eu advir (ser/estar)] (Freud, 1933 [1932]). Especialmente no que
se refere ao “dever” [soll] contido na frase destacada, podemos inferir uma premissa ética
da clínica para Freud. Aqui, é preciso relembrarmos a descrição de Freud acerca de sua
tópica347. Vale ressaltar que a primeira tópica (sistema Ics, Pcs e Cs) não fora totalmente
Pois bem, quando da passagem da primeira para a segunda tópica, uma questão
e da formação do Eu: afinal, se o Eu não é uma instância dada a priori, se ele precisa ser
formado, o que há antes da formação do Eu? Aí está a abertura para o que fora nomeado
por Freud de ‘Id’. É preciso atenção cuidadosa sobre este ponto, pois se a direção da
clínica está no “Wo Es was soll Ich Werden”, podemos afirmar que é a esse Id que existe
obviamente não pode ser desconsiderado para pensarmos a clínica. Mas o que é o Id? Ora,
há é um “núcleo indiferenciável”, por assim dizer, que implica que o bebê é tudo e nada
ao mesmo tempo – temos aqui o que Freud nomeou de identificação primária, uma
345 χ título de curiosidade: o pronome „Id‟, em alemão (Das Es), designa „sujeito oculto‟ ou „indeterminado‟. Esse
pronome é geralmente usado em frases como: Es blüht (floresce). Já o pronome alemão „Eu‟ (Das Ich) tem a mesma
forma da primeira pessoa do singular do português, ou seja, é sujeito determinado. O Id seria, portanto, como que o
bebê que não sabe que é um bebê. Esse bebê já é “sujeito”, já é alguém, mas alguém oculto a ele mesmo (ele é alguém
para a mãe, por exemplo). Além disso, veremos que para que haja um sujeito definido (o Eu), invariavelmente esse Eu
precisará do “pano de fundo” do sujeito indefinido (o Id). Em outras palavras, o Eu é o outro do Id e o Id o outro do
Eu. (Comentários do editor. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2007, p.20 e
segs.).
346 Optamos aqui pela nova tradução do antigo Superego , por Supra-Eu (Über-Ich), porque em alemão essa palavra
conota uma idéia de "estar acima", "sobreposto", do que de um super Eu, como um "Eu mais poderoso". O Supra-Eu
guarda a conotação em alemão de "um Eu que paira acima de outro Eu". Estando também de acordo com a tradução
francesa do Surmoi (Sobre-Eu). (Comentários do Editor. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora: IMAGO,
São Paulo-SP, 2007, p.20 e segs.).
347 Neste ponto é preciso considerar que o leitor já tenha alguma familiaridade com a teorização das tópicas freudianas.
750
identificação direta e absoluta entre o bebê e o mundo que o cerca (Freud, 2004b). Mas
então como seria possível ao Eu advir no Id, o Eu que delimita, separa, diferencia,
categoriza, etc. e que tem como núcleo de sua formação justamente o corpo, o qual
indiferenciação”?
Realidade.
comum” (Freud, 1895), conquistar certo grau de capacidade de trabalho e amor (1912)
ou atingir algo como uma “liberdade possível” nas relações entre Eu, Id e Supra-Eu e
diante das exigências dos três princípios implicados no funcionamento psíquico (de
visada clínica.
não. Estar convicto de que algo opera dentro de nós, às expensas de nossa consciência e
de que existe um lugar em nós para além de qualquer estrutura lógica-racional, o Id,
significa concebermos que o centro da “galáxia psíquica” não é o Eu. Significa, pois,
saber-se incompleto nesse lugar que opera a consciência de qualquer saber, havendo aí
751
De qualquer maneira, um ponto fica um pouco mais claro a partir do
correlaciona-se diretamente uma “eterna abertura ao devir”, abertura essa deflagrada com
próprio circuito pulsional no paradoxo entre exercer pressão constante (abrir) e objetivar
a cessação da pressão (fechar). O sintoma significa então uma prisão, uma paralisia
se ele tivesse à disposição infinitas cores de tinta para pintar a vida, porém só lhe
parecesse acessível uma única cor. Embora seja bastante claro que a realidade muitas
vezes impede o acesso a certas “cores de tinta”, os impedimentos internos exercem uma
paralisia frequentemente mais drástica que a própria realidade pode vir a infringir.
abertura ao devir? É ela uma forma de referenciar a característica básica, ou uma das
características básicas, que tornam possível dizer que o homem é. É nessa abertura para
o devir que sustenta-se a ontologia humana? De fato, se sim, seria mesmo lógico que
mortifica/paralisa, assim, a própria vida. Faria, pois, parte da ideia de “saúde”, para a
A partir do exposto, tudo indica que podemos inferir no ser do homem um lado de
reação, mas, também, um lado de criação, um campo aberto para tal. Campo que parece
gerar desamparo, pois, por ser aberto, não propicia ancoragens a priori, mas uma
752
Parece que o ser do homem refere-se a uma liberdade que se sustenta, paradoxalmente,
Pois bem, até o momento podemos considerar que Freud tende, novamente, a
depor a favor de uma anterioridade da inércia, muitas vezes gerando dúvidas sobre se o
tempo. Atentemos, pois, à dimensão estética da clínica, para continuarmos esta tentativa
manejo da transferência.
características tais como: som, luz, tempo, cinestesia, espaço, ritmo, afetos, sentimentos
estética da clínica, nos preocupamos, portanto, com o que sente o paciente, além do que
são reprimidas porque estão associadas à liberação de sentimentos que devem ser
evitados. Seria mais correto dizer que a repressão age sobre sentimentos, mas só
753
nos apercebemos destes através de sua associação com ideias. (Freud, 1976b,
p.55).
Pois bem, tal preocupação com a dimensão estética da clínica não é sem sentido,
inconsciente pelo paciente. Freud, no seu conhecido texto sobre os chistes, faz a seguinte
Alguns pontos importantes podem ser destacados: a) uma relação entre liberdade
estética e contemplação lúdica; b) uma relação com o objeto pautada na satisfação por
sua simples contemplação; c) uma relação especifica entre atitude estética, lúdico e
Seria preciso, pois, verificarmos melhor essa correlação entre a dimensão estética
e o campo lúdico348. Freud, ainda neste mesmo texto, aponta que a habilidade dos chistes
348Certamente, quando chegar a etapa de estudo da obra de Winnicott, prevista para a elaboração da minha tese de
doutorado, a reflexão sobre a dimensão estética e o brincar será significativamente enriquecida.
754
em brincar com diferenciações e indiferenciações entre coisas a princípio semelhantes ou
aos homens ocorra a ideia de exercerem essa capacidade por ela mesma – isto é,
indiscutível que não se deva desconsiderar esse princípio mesmo que ele não
possua a abrangente importância que lhe foi atribuída por Aristóteles. (Freud,
1976a, p. 144).
Além disso, Freud revela que “(...) os sonhos servem predominantemente para
evitar o desprazer, os chistes para a consecução do prazer; mas para as duas finalidades
convergem todas as nossas atividades mentais.” (Freud, 1976a, p.205). Podemos então
perceber que, enquanto que no chiste há uma ação positivada que leva a um prazer
Notamos que Freud demonstra certa diferença entre uma tendência psíquica de
defesa contra o desprazer (demonstrada nos sonhos) e outra de ação em busca de prazer
Aqui, Freud não é, pois, parcial, uma vez não sustenta a concepção do funcionamento
psíquico exclusivamente pela via de formações reativas como parecia ser sua tendência
em outros textos.
Podemos concluir que a questão do prazer estético incide em algo como “sentir
ludicamente a vida”. Essa referência direta que Freud faz entre a dimensão estética e o
755
lúdico aparece, aliás, em vários momentos de sua obra. Eis outro trecho com esta
referência:
Existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes
brincar, após forçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida
com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que
mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto,
pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância;
equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos
de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso
Seguindo esta última citação, podemos asseverar que a dimensão estética que
estamos circunscrevendo aqui diz então de uma perspectiva qualitativa da vida e das
vivencias de dado indivíduo, de um “como” se pode viver a vida. Esse “como” se vive a
vida revela uma manipulação, por assim dizer, da forma pela qual um indivíduo pode
experienciar sua relação com a realidade exterior. Ou seja, diz de uma plasticidade de
No texto “O Humor” (1927), Freud deixa claro que esse como se vive a vida, a
atitude estética para com ela, se pauta especialmente nas relações entre o Eu e o Supra-
Eu, na especificidade daquilo que o Supra-Eu construiu acerca do Ideal-de-Eu, das regras
compreender melhor a atitude estética de dado indivíduo para consigo e com o mundo.
756
Assim, no que se refere à dimensão estética da atitude humorística e o campo de
apresentado num estado de espírito afável.” (Nota do Editor, 1950 [1927]). χssim sendo,
o que podemos notar de maneira bastante clara neste texto é certa “liberdade” desse
que para além dos fatores da realidade, há, em maior ou menor grau, um campo de
Pois bem, como podemos então pensar a articulação dessa dimensão estética no
manejo da transferência? Uma vez que pudemos observar que esta dimensão está
claramente subtendida nas relações que qualquer indivíduo vivencia - pois o caráter de
vivência das relações (nas tensões e distensões entre as instâncias psíquicas e entre o
de maneira tangível numa análise. É nesse espaço entre analista-analisante que o “como”
preocupação com a sensibilidade do analista para julgar suas ações. No entanto, é fato
que Freud não discorreu ao longo de sua obra de uma maneira muito esquemática sobre
com o que o analista não deve fazer numa análise (haja vista os textos da técnica) e
sua prática. Apesar disso, muito se pode inferir a respeito dessa questão da implicação da
757
dimensão estética na direção do tratamento. Freud, nesse sentido, ao apoiar-se no
questão.
estar convicto do inconsciente seria como que a certeza de uma eterna incerteza. Deste
aberto ao devir que, por mais que os sintomas objetivem certo fechamento/estancamento
Podemos notar que com relação à dimensão estética e a obra freudiana, pouco
foi assinalado. No entanto, é importante sublinhar que essa dimensão diz desse “como”
subtendido ao fazer clínico e a uma “margem de manobra”, por assim dizer, e num sentido
própria vida. Sendo que essa “margem de manobra” existe na exata medida dessa “eterna
podemos circunscrever que Freud pressupõe então uma ontologia dupla do devir humano,
por assim dizer. Essa ontologia dupla presume o homem como se constituindo
entanto, Freud demonstra, também e paradoxalmente, o ser humano com uma eterna
abertura ao devir, evidenciando, assim, o homem como um ser que é afetado e constituído
pelo meio, mas que também afeta e constitui esse mesmo meio. Um ser, pois, reativo e
criativo ao mesmo tempo e em maior ou menor grau pendendo para um destes lados,
758
dependendo do caso a caso. Sendo que, no âmbito da clínica, Freud aponta uma
concepção de saúde e de direção do tratamento que prevê como que um equilíbrio entre
excessivamente paralisado.
Referências
Freud, S. (1976a) Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. In: Obras Psicológicas
1915)
Freud. Vol.II, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, pp. 123-199. (Original publicado em
1920)
759
___________ (2004b) O Eu e o Id. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Editora:
publicado em 1924)
Edição Standard Brasileira. Editora: IMAGO, Rio de Janeiro. Volume XXI, pp. 163-
das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXIII. Editora; IMAGO, Rio de
Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Editora; IMAGO, Rio de Janeiro, pp.198-
760
PÔSTERES
761
O AMOR SOB A ÓTICA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL
Thiago de Almeida
Desenvolvimento da Personalidade
E-mail: thalmeida@usp.br
percebido como um mero acaso. Para alguns autores fenomenológicos, observa-se que
pessoa que é amada estará o tempo todo em contato com elementos atrativos do outro, e
isso poderá fortalecer, ou não, o amor que experiência. E, ao ter uma vida a dois, o casal
passar a ser uma só unidade, ou seja, um ser-junto em essência. Dessa forma, pode-se
passar a enxergar o ser amado de uma maneira mais completa ao respeitar os seus aspectos
subjetivos e os tornar também partes integrante de si. Nesse sentido, alguns autores da
relação com o seu amado, agindo com liberdade e com todo nosso potencial criativo.
Neste sentido, este trabalho buscará mostrar a aplicação da visão fenomenológica acerca
Sartre e Lévinas.
inter-relação Eu-Tu.
762
THE LOVE ACCORDING
Abstract: The phenomenology has an understanding that love is something built in the
and looking for some elements to understand the loved one. The meeting between lovers
is not perceived as a mere chance. Some phenomenologists observed that both partners
made dyad suffer influences this loving bond. The person who is loved is all the time in
contact with attractive elements of the other, and this can strengthen or not the love
experience. And to have a life together, the couple become a single unit, that is, a being-
together in essence. So, you can go to see the loved one of a more fully to respect their
subjective aspects and make also integral parts of each other. Thus, some authors of
phenomenology, understand that when one loves, this person is in constant seek for
meanings in the relationship with his loved one, acting freely and with all our creative
potential. In this sense, this study will show the application of the phenomenological view
about romantic love based on conceptions of authors such as Husserl, Scheler, Sartre and
Lévinas.
relation.
Considerações iniciais349
O amor precisa ser entendido como vontade, como a vontade que quer que o amado
349
Agradeço ao Prof. Dr. Renato Nunes Bittencourt (Departamento de Filosofia - Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ) pela a leitura do manuscrito e por suas contribuições nele contidas.
763
O termo "amor" é utilizado livremente no cotidiano. Há muitos séculos, diferentes
concepções de amor têm sido propostas por poetas, filósofos e romancistas, mas não há,
ainda, um consenso e, talvez, nunca haja uma definição do fenômeno amoroso capaz de
captar sua essência, dadas sua diversidade e subjetividade. Logo, o amor, enquanto um
fenômeno passível de ser estudado, não se permite esquadrinhar por quaisquer que sejam
induz a nos aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente amor,
(...) o amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado
sob a condição de que a entrega seja mútua. Em todos os lugares, é difícil este
vínculo afetivo-sexual com alguém, sendo tida, por muitos, como um objetivo a ser
perseguido, ou como a única forma de alcançar a felicidade. Nesta acepção, o amor leva
(Hintz, 2008). Ademais, tanto Almeida e Oliveira (2007) como Braz (2006) defendem
que o amor é a condição fundamental para que a pessoa se realize plenamente enquanto
desenvolvimento de relações sociais. Mas que fenômeno é esse que possibilita a pessoas,
764
até então desconhecidas uma da outra, se aproximarem e expressarem o desejo de
Certa vez, Hunt (1974) afirmou: “amor é, sem dúvida, palavra mercurial; embora
vejamos claramente onde ele se encontra, basta encostar o dedo nele para descobrir que
não se encontra ali, mas noutro lugar qualquer” (p.11). Complementarmente, Konder
(2007) considera que o termo amor tem uma “elasticidade impressionante” (p. 7), e
mais justo” (p.11), de modo que seu uso acontece segundo as possibilidades mais
idiossincráticas.
amor é uma das mais complexas e desafiantes tarefas da Psicologia, dada a abrangência
de sua dimensão na vida das pessoas e uma vez que compreende uma vasta gama de
humano.
ou atitude que reformula o entendimento a respeito dos fenômenos humanos, tais como a
inter-relação entre eles. A fenomenologia propõe a compreensão do mundo tal como ele
aparece para nossa consciência, sem que façamos juízos de valor acerca do mesmo, isto
é, o retorno às coisas mesmas, tal como proposto por Husserl (1973), seu criador. Por
avaliação humana, pretende observar os fatos em sua pureza original, tal como pode ser
ao final de sua obra, Husserl (2012) passa a questionar os limites desta pretensão,
765
O conceito de Lebenswelt, também conhecido como mundo da vida ou mundo
constituindo-se como um fio condutor de suas ideias. Segundo o criador desse conceito,
originárias, para o qual o cientista deveria se voltar para verificar a validade de suas
idealizações, de suas teorias, posto que a ciência interpreta e explica o que é dado
imediatamente neste mundo da vida (Husserl, 2012). De acordo com Messas (2014), o
e que nos constitui e nos circunda, ou seja, é o mundo pré-reflexivo dos fenômenos
subjetivos, antes de serem pensados pelo pensamento discursivo. Neste sentido, de acordo
(...) no Lebenswelt não há uma cisão entre exterior e interior, individual e social,
Almeida e Oliveira (2007) apontam que, embora pairem muitas dúvidas a respeito
do que seja o amor, nunca se deixou de falar dele. Atualmente, nos mais diferentes
contextos, são realizadas perguntas a seu respeito. Essas perguntas intrigam não somente
aos indivíduos que as formulam, mas, também, a muitos psicólogos, mesmo àqueles
interpessoais amorosos (Almeida & Vanni, 2013). Uma das dificuldades neste âmbito de
pessoas e seus estados psíquicos são eminentemente subjetivos (Almeida & Madeira,
766
ignora as penalidades e vicissitudes pelas quais passamos quando os experimentamos.
Portanto, pensar a respeito do amor e da paixão nos coloca frente a esses fenômenos que
conhecemos desde a mais tenra idade, com os quais crescemos e que experimentamos
reflitamos sobre as concepções que ele pode assumir (Almeida, 2013; 2014).
aspirações. Mas o amor não é um sentimento simples. Quando se diz que se ama uma
pessoa, pretende-se expressar, com isso, uma série de atributos desta experiência,
revelando-lhe: que a desejamos, que a idealizamos, que ela nos diverte, que dela
queremos estar próximos, que dela cuidamos e com ela nos preocupamos, bem como que
ela constitui uma prioridade na nossa vida (Bradbury & Karney, 2010).
a) O amor em Husserl
alemão que estabeleceu a escola da Fenomenologia. Ele buscou romper com a orientação
sua época, embora acreditasse que a experiência vivida é a fonte de todo o conhecimento.
767
No início do século XX, a Fenomenologia foi considerada um movimento
questões da vida (Introna, Ilharco, & Faÿ, 2008), tais quais o ser, a existência, a
Foi denominada por Husserl como a “ciência da ciência” (Wissenschaft von der
(Kockelmans & Kisiel, 1970, p.5), na medida em que se apresentava como uma teorização
fundamentos últimos.
estendido por Heidegger (Introna, Ilharco, & Faÿ, 2008), tendo aquele definido as fases
desenvolveu, de uma forma mais exaustiva e completa, a análise feita em cada uma das
fases, ao nele introduzir a hermenêutica, a arte da interpretação (Introna & Ilharco, 2004).
768
profundezas, nas alturas e em extensões universais, afetando a intencionalidade350.
(p. 16)
quanto para a pessoa que ama) e, em segundo, tem-se seu caráter fundamental de
comunidade. No caso de amor interpessoal, ele tem o potencial para destacar o caráter
individual da pessoa amada. Ele é definido da seguinte forma: “um prazer ativo na
espírito de um modo geral351” (Husserl, 1920/1921, citado por Crespo, 2012, p. 21).
faz dele um elemento e meio único para atingir esse objetivo, de tal forma que o
conhecimento puro não poderia fazê-lo. Assim, segundo o próprio autor, as leis do
b) O amor em Scheler
350
Do original: “Liebe im echten Sinn ist eines der Hauptprobleme der Phänomenologie, und das nicht in
der abstrakten Einzelheit und Vereinzelung, sondern als Universalproblem. Nach den intentionalen
Elementarquellen und nach ihren enthüllten Formen der von den Tiefen zu den Höhen und universalen
Weiten hervortreibenden und sich auswirkenden Intentionalität”. (Ms. E III 2/36b)
351
Pode ser encontrada em: Husserl, E. (1973). Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem
Nachlass. Zweiter Teil: 1921-1928. Hrsg. von Iso Kern (Martinus Nijhogg, Den Haag, 1973), Hua, XIV,
172.
769
obra, podemos identificar um paradoxo, porque, ao mesmo tempo em que a ética
humanos como sentimentos integrantes de sua filosofia e, em sua teoria, defende que ser
virtuoso ou ser amoroso não atendia a nenhuma finalidade a não ser à consciência de seu
Max Scheler observa que, no ato do amor, um ser se abandona, para compartilhar
e participar em outro ser como ens intentionale. Dentro e por intermédio do ato de amor,
um ser se encontra com o outro objeto ao afirmar sua tendência em direção à sua própria
perfeição, que ele ativamente ajuda, promove e abençoa. Para Scheler, esta lógica do amor
será a chave para a sua ética filosófica, porque, de alguma forma, a essência do homem é
dada pelo que ele chama de ordo amoris (Scheler, 1996). Scheler entende o amor como
a abertura para a realidade valiosa das situações que nos cercam. O amor, na ótica de
c) O amor em Sartre
Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905 -1980) foi um filósofo, escritor e crítico
“O Ser e o Nada” (Sartre, 1997), o amor é visto como uma possiblidade de escolha
770
comunicação do/no amor é sempre, assim, imprecisa. Mas, desta limitação, o ser humano
criação e reinvenção da relação. Como o ser humano não é autocentrado, mas direcionado
Também, para Sartre, o propósito daquele que ama é ser amado, porque só aquele
(a) que ama resgata a contingência do seu ser no mundo, onde não encontra razão para a
O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada… χ
não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial
de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser
amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre. (p. 394)
o-outro" do homem. O filósofo francês, em sua teoria fenomenológica, nos diz que todo
o modo de consciência representa algo, revela algo, apresenta algo, está voltado e
direcionado para algo fora dela mesma. A visão existencialista consiste em negar por
uma vez que ela não pressupõe nenhum providencialismo que tutela a existência humana
rumo ao estado de progresso moral ou espiritual - que cabe ao próprio homem tomar as
rédeas da sua existência e afirmar, assim, sua inevitável liberdade. Mas tal situação
771
revela-se aterradora para quem é incapaz de atuar autonomamente em sua existência,
impor suas escolhas diante dos outros. Em sua obra, Sartre assume que qualquer homem
pode se tornar o que quiser ser, o que escolher ser, de tal forma que sempre poderá mudar,
e os valores morais não são limitantes para as escolhas e projetos do que possa vir a tornar-
se. O autor também afirma que a sociedade não pode impor a cada pessoa sua forma de
amar, tampouco com quem essa ou aquela pessoa deve se relacionar. De acordo com
Soares (2010):
O amor é conflito, entende-se que o ser está em conexão direta com a liberdade
outro jamais poderá ser plenamente absorvido em sua vida, pois amar é afirmar a
podem afetar a conjugação da relação. Isso não significa uma resignação derrotista
para a tolerância das inevitáveis crises conjugais, mas uma espécie de sabedoria
prática que nos torna mais plenos em nossas vidas, pois nossa felicidade amorosa,
o outro.
justamente, essa lógica, à medida que o tu-amado interage com o eu-que-ama, e ambos
772
tornam-se um ser-junto em essência, a despeito dos conflitos que surgem nessa inter-
amoroso, mas sim uma subjetividade oriunda do vínculo amoroso que torna a existência
d) O amor em Lévinas
se, após a guerra, à escrita sobre a alteridade, na qual conduziu uma reflexão acerca da
dificuldade do ser humano em aceitar aquele que difere de si mesmo, que compreende
com desdém e que julga como inferior a si próprio. Este autor foi bastante influenciado
pela fenomenologia de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim como pelas obras
certamente, uma indicação sobre sua essência. O amor é o eu satisfeito pelo tu,
afirmam:
773
Na proximidade do outro, a suposta soberania do sujeito é questionada. A
significação que nasce da proximidade não é a mesma relação entre termos que se
o outro? De acordo com Costa e Diez (2012), “na visão de totalidade o outro pode ser
mais nessa reflexão, podemos recorrer a Kierkegaard (2007), que entende o amor como
um evento,
(...) o maior de todos, mas também o mais feliz de todos; o amor é uma alteração,
melhor sentido da palavra, que uma pessoa tomada pelo amor está alterada, ou
fica mudada; o amor é uma revolução, a mais profunda de todas, porém a mais
feliz! Ele traz uma confusão, e nesta bendita confusão não há para os amantes
não há um Meu nem um Teu! Pois sem Tu e Eu não há amor, e com Meu e Teu
Por essa perspectiva, o amor é apresentado como uma grande revolução, uma
grande transformação, que implica a relação, mas uma relação que não permite que haja
a perda dos envolvidos, como em uma simbiose. É sempre um “Eu” e um “Tu” que estão
esvair-se na disputa do que é “meu” e do que é “teu”. Nesse sentido, está na assimetria,
774
na deposição do eu, como diria Lévinas (2007), na realidade mesma do amor.
Considerações finais
partir de então, o encontro amoroso passa a ser mais que um mero acaso e, no que respeita
contribuições dos autores e de suas obras aqui citadas, pode-se observar que, nestas
escolha.
comportamental, em cada uma das pessoas que compõe os sistemas: “eu”, “tu” e “nós”.
Referências
775
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Almeida, T., & Madeira, D. (2014). Enigmas do amor. São Paulo, SP: Polo Books.
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Norton.
http://scielo.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870350X200600010000
6&lng=pt&nrm=iso
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R. M. S. Macedo. (Org.). Terapia familiar no Brasil na última década (pp. 376-382). São
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Kockelmans, J. J., & Kisiel, T. J. (1970). Phenomenology and the natural sciences
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Lévinas, E. (2007). Ética e infinito. Lisboa, Portugal: Edições 70.
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Siciliano.
Sartre, J.-P. (1997). O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. (P. Perdigão,
de: http://casofilosofico.blogspot.com.br/2010/12/fenomenologia-do-amor-no-filme-
de.html
Sousa, L. M., Batista, R. D. C., & Taumaturgo, E. R. (2010). Eu-Tu: uma fenomenologia
fenomenologia-do-amor
Susin, L.C., Fabri, M., Pivatto, P. S., & Souza, R. T. (Orgs.). (2003). Éticas em diálogo:
EDIPUCRS.
778
OS ÂMBITOS IRREFLEXIVO E REFLEXIVO DA CONSCIÊNCIA EM
SARTRE
consciência, descrita por ele em dois graus: irreflexivo e reflexivo. Para a realização deste
estudo, utilizaram-se dos variados materiais a que se tiveram acesso, como livros, artigos,
Husserl e, apesar do rompimento teórico que se deu anos após essa aproximação, Sartre
em Husserl, Sartre jamais manteve com o mesmo uma relação de discípulo, e a diferença
dois momentos: primeiro e segundo graus. A primeira diz respeito a uma consciência que
se define como pura espontaneidade, que posiciona o mundo, mas, ao mesmo tempo, não
deixa de ser consciência de si mesma, porém, não a posiciona como objeto. Assim,
refere-se ao momento em que a consciência volta-se para si, tornando-se, ela mesma, o
779
Palavras-chaves: Consciência, Consciência irreflexiva, Consciência reflexiva.
Fenomenologia, Sartre.
SARTRE
Abstract: This paper aims to explain the way by which Sartre understands the
consciousness, described in two degrees: unreflective and reflective. . For this study, we
used several materials we had access to, such as books, articles, online productions,
among others, in order to find out the evidences on how Sartre distinguished the
consciousness. It has been found that the French philosopher was strong influenced by
Husserl’s ideas, and despite the theoretical rupture, which took place years after this
movement of intentionality. Though inspired by Husserl, Sartre never kept with him a
disciple relationship, and the conceptual difference is that Sartre, unlike Husserl,
understood the consciousness through two moments: first and second degree. The first
one is related to a consciousness which is defined as pure spontaneity, that poses itself in
the world, but, at the same time, do not let to be self-consciousness, however, do not
positioned as the object. Like this, even though immersed in the world, the consciousness
does not relinquish the status of being self-consciousness, i.e., it becomes conscious of
itself, as it is at the same time, conscious of a transcendent object, however, this self-
consciousness, on the other hand, refers to the moment when the consciousness turns back
780
manner. It is established the ontological primacy of unreflective consciousness in relation
to reflective
Phenomenology, Sartre.
Introdução
como seu fundador o filósofo Edmund Husserl. Nesta época, ocorreu uma reaproximação
da Psicologia com a Filosofia, momento em que esta última procurava revisar as questões
Dentre elas, a da consciência, que deixa de ser algo substancial e passa a ser caracterizada
como movimento intencional, ou seja, um movimento constante que se dirige para algo,
momentos: consciência de primeiro grau e consciência de segundo grau (Silva, Lopes &
Diniz, 2008).
Histórico
1933, contemplado por uma bolsa de estudos, partiu para a Alemanha, onde entrou em
Segunda Guerra Mundial, a qual mudou os rumos de sua vida. Convocado pelo Exército
781
francês, em 1940, Sartre foi feito prisioneiro pelos alemães já no ano seguinte, em 1941.
No cativeiro, estudou a obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Fazendo-se passar por
civil, conseguiu ser libertado, e escreveu boa parte de suas obras durante a guerra. Em
1943, publicou O Ser e o Nada (Sartre, 2013), sua obra filosófica mais conhecida, versão
de escolher o que será, sendo esta a própria condição da liberdade humana: escolhendo
sua ação, o homem se escolhe a si mesmo, mas não escolhe sua existência, que já lhe vem
concedida e é requisito de sua escolha. Daqui, surge a famosa máxima existencialista que
declara: a “existência precede a essência” (Sartre, 1970, p. 3), uma vez que,
será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.... O homem nada mais
existencialismo... Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe,
ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que
flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o
homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos
vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é
782
Em 1964, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas o recusou, por não acreditar
Fenomenologia
que significa ‘a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para
consciência, daquilo que está presente para a consciência ou para a razão porque
relação psíquica primária, esta que se estrutura num fenômeno psíquico que é concebido
conteúdo é o fenômeno para o qual a consciência está voltada, e ato é a ação intencional
da consciência que se volta para o fenômeno, “pois seria impossível existir um ato de
(Sartre, 1966, p.28), pois não há algo como uma consciência vazia, por assim dizer.
783
a consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato observável, nem é,
significação - são o correlato da consciência, aquilo que é visado por ela e dela
recebe sentido. Não é uma coisa nem uma substância (uma coisa), mas uma
atividade (uma ação). Por ser uma ação que visa os objetos como significações,
toda consciência é sempre consciência de. A isso (ser consciência de), Husserl dá
consciência não há nada. Ela sempre se impulsiona para fora de si, interligando-se com
Sartre a consciência perde a antiga ideia de lugar, no qual poderiam estar armazenados
784
encontra-se posicional ao mundo e não-posicional de si, ou seja, ela está direcionada,
voltada para o mundo e não para si, como nos esclarece Aires (2007):
posiciona os objetos ao voltar-se para eles, porém, não se posiciona perante eles,
por isso, também é conhecida como consciência não-posicional de si; sabe, mas
não sabe que sabe. Em virtude disso é que não podemos considerar toda
consciência se torna objeto dela mesma. Trata-se da presença do Eu, do momento no qual
a consciência possui consciência de ser consciência. Ora, ela dirige-se para a própria
consciência, sendo pessoal, e é nesta atitude que ocorre o aparecimento do Eu. Como
afirma Sartre (1996), "por outro lado, não há uma regressão ao infinito, uma vez que a
para ser consciência dela mesma. Simplesmente, ela não posiciona a si mesma como
está irreflexiva, ora está reflexiva (Sartre, 2008). Nas palavras do filósofo:
ser cumprida por nós (reflexão), e então, tornaríamos a descer no mundo para
352
il n'y a d'ailleurs pas ici de renvoi à l'infini puisqu'une conscience n'a nullement besoin d'une conscience
réfléchissante pour être cons- ciente d'elle-même. Simplement elle ne se pose pas à elle-même comme son
objet.
785
executar a ação (irrefletida), considerando apenas o objeto agido. A seguir, todas
em que se está escrevendo, a consciência não está consciente de si mesma, pois ela está
voltada às palavras e objetos utilizados para escrever. “Escrever é tomar uma consciência
ativa das palavras enquanto elas surgem de minha pena... o eu não aparece de modo algum
aqui” (Sartre, 2008 p. 59 -61). O instante em que o sujeito lembra-se do momento em que
a consciência voltada para si mesma, pois o eu aparece neste instante, enquanto que na de
primeiro momento – que se dá quando sujeito está escrevendo - a consciência está voltada
posicional da degradação do mundo que passa ao nível mágico. O fato é que ela
Mas, como diz Sartre (1966, p.30), "toda consciência irreflexiva, sendo
consciência não-tética dela mesma, deixa uma memória não-tética que pode ser
consultada” 353 [tradução nossa]. Assim, tudo o que ocorrer irreflexivamente pode ser
Primazia ontológica
353
Mais toute conscience irréfléchie, étant conscience non-thétique d'elle- même, laisse un souvenir non-
thétique que l'on peut consulter.
786
A primazia ontológica refere-se à relação que existe entre os dois âmbitos de
consciência descritos por Sartre, o irreflexivo e o reflexivo, sendo que, “de maneira geral,
consciência pré-reflexiva.” (Ferri, 2013, p. 30), ou seja, para que o âmbito reflexivo
ocorra, deve haver ocorrido o irreflexivo primeiramente, ainda que isto não implique,
Sartre (1966, p.41) ressalta que, "mesmo assim, o irreflexivo tem prioridade
ontológica sobre o reflexivo, porque não há necessidade de ser reflexivo para existir e a
reflexão requer a intervenção de uma consciência de segundo grau” 354 [tradução nossa].
Considerações finais
pensadores desta corrente aportaram esclarecimentos sobre facetas de uma nova maneira
Mas também nota-se que, ainda que se tratem de pensadores que sejam
354
Mais même alors l'irréfléchi a la priorité ontologique sur le réfléchi, parce qu'il n'a nullement besoin
d'être réfléchi pour exister et que la réflexion suppose l'intervention d'une conscience du second degré.
787
para algum objeto do mundo, quando ela se posiciona para fora de si; já num segundo
sobretudo, pelo mergulho espontâneo no mundo: ela se volta inteiramente para esta
exterioridade e se define enquanto este movimento. Neste ponto, salta aos olhos a
ausência de um “eu” como objeto para a consciência; este “ego” somente aparecerá com
mesma enquanto objeto. Neste sentido, a consciência não posicional é condição sine qua
Referências
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http://www.theoria.com.br/edicao13/a_consciencia_na_fenomenologia_husserliana.pdf
Brito, E.O. (2012). Franz Brentano e a descrição dos atos psíquicos intencionais: uma
788
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Catarina Florianópolis.
Toledo.
http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos/ARTIGOS/numero%2022/sartre.pdf
http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf
Sartre, J-P. (2008). Esboço para uma teoria das emoções. [Versão digital]. Recuperado
de http://gmeaps.files.wordpress.com/2012/05/sartre-esboc3a7o-para-uma-teoria-das-
emoc3a7c3b5es.pdf
Sartre, J.-P. (2013). O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. (22a ed.).
Silva, J. M. O., Lopes, R. L. M., & Diniz, N. M. F. (2008) Fenomenologia. Rev. bras.
http://www.scielo.br/pdf/reben/v61n2/a18v61n2.pdf
789
RESUMOS
790
FENOMENOLOGIA, SOFRIMENTO E CRISE PSÍQUICA GRAVE: EM
BUSCA DE SENTIDOS
E-mail: ilenoc@gmail.com
o que seja uma crise psíquica grave, ou, como mais comumente é conhecida, o “surto
busca-se ampliar a concepção de pródromos, num diálogo inicial com alguns autores da
fenomenologia, tendo a crise psíquica grave como norteadora de tais reflexões. Embasado
psíquicas graves (com “crises do tipo psicótica”, que vão da neurose grave, passando
filiado à IEPA (Austrália). Ao final, busca-se fazer reflexões clínicas sobre como acolher
791
A MAIOR DOR DO MUNDO: O LUTO MATERNO EM UMA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA
E-mail: luis.hfmichel@gmail.com
realizada uma pesquisa qualitativa com três mães enlutadas. Utilizou-se o método
seguiu os quatro passos metodológicos de Giorgi. O relato das mães evidenciou diferentes
temáticas, descritas por meio de dez elementos constituintes da vivência de luto materno,
com pessoas significativas para o morto. Os resultados obtidos na pesquisa indicam que
compreendendo este sofrimento não mais como uma condição patológica, mas com
792
FENOMENOLOGIA E TEOLOGIA NO TEXTO FREUDIANO:
E-mail: karladanimac@hotmail.com
grande desafio, especialmente quando toda forma de pensar está marcada pela
complexo, falar sobre pessoa humana no texto freudiano a partir de suas contribuições
esse trabalho será apresentado. Para isso faremos uso de fragmentos da sua obra em que
marcado pelas pulsões, regido pela lógica inconsciente é também um sujeito que faz sua
própria história e Freud vai deixando a metapsicologia aberta a novos dizeres e saberes,
com o objetivo de que aquilo que é intrinsecamente humano se revele, se mostre, se deixe
minuciosa e apurada de seu texto deixa claro o quão fenomenólogo foi Sigmund Freud.
793
O (DES)APRENDIZADO DO MÉTODO CARTESIANO E A ÉTICA
FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL
Paulo Alexandre Françoso & Anisha Gonçalves Santana (Centro Universitário São
Camilo)
cultura tecnocrática na qual os fenômenos são efeitos e, portanto, possuem uma causa a
epoché para uma abordagem compreensiva dos fenômenos humanos. Há, no entanto,
794
GRUPO ABERTO DE ESCUTA: QUANDO A COMUNIDADE ACOLHE A SI
PRÓPRIA
E-mail: monikitamendes@hotmail.com
O presente trabalho relata a criação de um grupo de escuta dentro de uma UBS, conduzido
abordagem das questões de saúde mental. Inicialmente recebido com resistência, o grupo
acontecia uma vez por semana, com duração de 2h30 e foi implementado valendo-se de
de atenção a saúde mental e de atenção básica. Para além desses objetivos, evidenciou-se
795
A CONTRIBUIÇÃO DA TERAPIA EM GRUPO DO CAPS- AD AO
Douglas Marcel da Silva Buzoni, Sampaio, G.O & Barbosa, A.P. (UNIFRAN)
E-mail: dmarcel25@yahoo.com.br
Este estudo teve por objeto os pacientes do CAPS-ad com esquizofrenia que fazem uso
terapia em grupo oferecida na instituição pode beneficiar a este tipo de paciente. Foi
com o tratamento medicamentoso. Percebeu-se que é necessário que haja uma equipe
psiquiatra e clínica geral). Ressaltam, ainda, os benefícios que a terapia em grupo traz
para a convivência do doente com seus familiares. Através do estudo realizado nesta
e região pode-se concluir que o tratamento auxilia tanto o paciente quanto seus familiares
de seu quadro proporcionando um tratamento aberto, e, assim sendo, ele continua inserido
na sociedade.
796
O SOFRIMENTO DOS ALUNOS DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP
E-mail: mge497@gmail.com
visões de homem e suas abordagens teórico-práticas, mas pelo envolvimento que o aluno
não tem interlocução, não são compreendidos nas dificuldades e não são considerados
como pessoas. Muitos têm sofrido crises durante o período de sua formação. Em 2005,
atividades por um dia inteiro para que pudéssemos ouvir os alunos e lidar com a
com a pessoa de nossos alunos. Deste encontro surgiu o Espaço de Convivência mensal
e o “Serviço de Cuidado aos χlunos”, sob minha responsabilidade por sete anos e que
possui, como perspectiva, a integralidade da pessoa humana de acordo com Edith Stein.
797
CONTRIBUIÇÕES DE STEIN PARA COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA
ONTOLÓGICA
E-mail: vasconcelosroberta@yahoo.com.br
Estrutura da pessoa humana e Ser finito e ser eteno. Concebendo o ser humano como
pessoa, ser de relações, Stein descreve sua abertura para “fora” (mundo-da-vida), e
“dentro” (saber-se vivo que atravessa a vivência). Demonstra como toda pessoa começa
a se conhecer ao posicionar-se no mundo, ainda que não se tome como objeto de reflexão.
meio deles, configura-os como “seus”, sustenta-os e pode se tornar cônscio do próprio
fluxo mutável de vivências). Conclui-se que a análise empreendida por Stein contribui
como a pessoa, em sua busca existencial, parte da evidência do próprio ser, ponto
798
A FORMAÇÃO DA PESSOA EM EDITH STEIN
E-mail: ir.adair@auxiliadora.com.br
estrutura do ser humano composta de corpo, psique e espírito, constituída numa totalidade
verifica-se que o corpo humano é preenchido por uma forma interior, que tem a
acontece segundo um processo formativo, que tem a função de plasmar o material até
fazê-lo assumir uma forma, em base a um arquétipo. No caso do ser humano, a forma que
ele deve assumir é a que está inscrita no seu núcleo, no seu centro vital. Por isso, a
atividade formativa tem que penetrar na alma da pessoa, também concebida como núcleo,
em modo que a forme e com ela todo o seu ser. No núcleo está a essência daquilo que a
dinamismos para ajudar a pessoa a se tornar aquilo que nasceu para ser.
799
A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: CONTRIBUIÇÕES PARA A
PSICOLOGIA HOSPITALAR
Matos, V.C.A.S & Silva Jr, A.F. (Hospital Universitário Presidente Dutra)
E-mail: valcasmatos@gmail.com
seu livro intitulado O caráter oculto da saúde, Gadamer(2012) faz uma reflexão sobre o
dos sujeitos, mas por outro lado, uma aproximação dos conceitos de domínio médico,
para uma melhor compreensão do processo de adoecimento dos sujeitos. Para o alcance
profissional.
800
CICLOTURISMO, EDUCAÇÃO AMBIENTAL E LAZER: PROCESSOS
Clayton da Silva Carmo, Luiz Gonçalves Junior; (UFSCAR) & Denise Aparecida
E-mail: spina002@gmail.com
O objetivo deste estudo foi identificar e analisar os processos educativos vivenciados por
comunidade tal sentimento para com o grupo. Além disso, a abertura que expõe o
801
A SALA DE AULA E O “MOMENTO DE BRINCAR”
E-mail: tagianemaria@yahoo.com.br
Campinas, do estado de São Paulo, por dez graduandos-bolsistas dos cursos de Pedagogia
experimentam, em sala de aula, uma área para ‘o brincar’ cujo objetivo central é o de,
vínculo com os alunos durante ‘o brincar’, e procuram registrar a dinâmica das crianças
àquelas crianças que não brincam e que são as mesmas que apresentam maior dificuldade
802
A EMPATIA NA CONSTITUIÇÃO DO CORPO PRÓPRIO EM EDITH STEIN
E-mail:rudi.brs@gmail.com
O objetivo deste trabalho consiste em descrever como Edith Stein concebe a constituição
Com efeito, para cumprir com o nosso objetivo faremos na primeira etapa, apontamentos
fenomenológicos desta discussão sobre corpo próprio, principalmente tratado por Stein;
constituição do corpo próprio. Por fim, faremos algumas considerações sobre a abertura
803
EDMUND HUSSERL E ARON GURWITSHC EM TORNO DA PSICOLOGIA
DA GESTALT
E-mail: hernanops@msn.com
possibilidade de esta psicologia contribuir para o que entende ser uma “psicologia
Gestalt, como uma espécie de redução fenomenológica. Este é apenas um dos episódios
Temos por objetivo analisar a diferença de atitude com relação à psicologia da Gestalt
por parte de Husserl e Gurwitsch e comentar a possível novidade do que se pode chamar
de “atitude gurwitchiana”.
804
DEUS E O DIABO NA CLÍNICA DO SOFRIMENTO PSÍQUICO GRAVE:
PSICÓTICA
E-mail: raqueldepaivamano@yahoo.com.br
cuja identificação tem se mostrado cada vez mais complexa, ultrapassando questões
clínica do Sofrimento Psíquico Grave (Costa, 2006) nos desafia a entender este fenômeno,
que por mais que sempre tenha existido, se apresenta na contemporaneidade de forma
efetiva. Há quase um século William James (1902/1986) afirmou que “para o psicólogo,
as tendências religiosas do homem hão de ser, pelo menos, tão interessantes quanto
não pode e não deve ser considerado independentemente das experiências concretas de
do significado que o mundo tem em particular para cada indivíduo. O estudo de caso que
805
ora apresentamos, nos dá uma dimensão da complexidade do sofrimento humano e a
806
GRUPO DE INTERVENÇÃO PRECOCE EM PRIMEIRAS CRISES DO TIPO
PSICÓTICA – GIPSI
807
pesquisas-ação, hermenêutica da profundidade, análises de atos de fala, pesquisa de base
fenomenológica.
808
O CUIDADO COMO UMA ÉTICA: UM DIÁLOGO ENTRE EDITH STEIN E
DONALD WINNICOTT
E-mail: andol@usp.br
do referido livro, para a mudança e transformação pessoal deste último, em sua trajetória
cuidado tomado como uma ética, ou seja, uma práxis de vida nas relações com o outro,
pode ser determinante e transformador na história pessoal dos indivíduos com a qual se
tem contato. A metodologia usada para realizar as discussões necessárias foi o método
cuidado tomado como uma ética é levada para o ambiente clínico da psicologia, e se
conclui que o cuidar está na base do trabalho clínico e sua consideração como uma ética
809
A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO ATRAVÉS DA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA
E-mail: felipeslv@gmail.com
poético enquanto acontecimento vital, isto é, que não está restrito à apreensão racional,
mas que precisamente é vivido numa relação dialógica e afetiva. O resultado da leitura
mesmo tempo promove uma ampliação compreensiva da existência. Esses dois fatores
literatura.
810
A EXPERIÊNCIA DO DESPERTAR DO ESQUECIMENTO DO SER EM
HEIDEGGER
E-mail: eltonpin@gmail.com
O artigo traça uma leitura de textos fundamentais da obra do filósofo Martin Heidegger
ser. Veremos que o pensar mais próprio a respeito da questão e do sentido do ser
denominada pelo termo alemão Ereignis –, uma vez que o problema do esquecimento do
ser só poderá ser pensado a partir do instante em que dele já se tenha despertado. Esse
se-á como uma transformadora viravolta da visão da realidade humana, e de seu modelo
811
LIBERDADE E NOÇÃO DE PESSOA NO ISLÃ: CATEGORIAS DE
ENTENDIMENTO INTERDISCIPLINAR
E-mail: isabelmf@usp.br
de Psicologia da FFCLRP, que tem como eixo estruturante uma discussão interdisciplinar
entre a Psicologia, a Antropologia e a Filosofia a fim de construir uma análise sobre duas
duas noções do mundo islâmico acarretam inúmeros preconceitos originando por sua vez
liberdade sobre o outro, como no caso das mulheres que devem ser “salvas” de sua
Profeta Muhammad pretende-se explorar alguns pontos importantes para este debate. É
antropologia, para ter um horizonte de sentido mais amplo sobre o conflito que nos
permita analisar essas questões porque a pergunta pela liberdade abrange a construção da
pessoa, além de ser um dos seus direitos humanos fundamentais, está configurado pela
812
CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA KIERKEGAARDIANA PARA A
E-mail: yonaradantas@usp.br
Adorno, Kierkegaard se equivoca quando não vê que o indivíduo não é algo absoluto. Por
deixar que o indivíduo permaneça para si, em vez de passar ao seu outro, Kierkegaard
enquanto ele mesmo é um ser social. Mas, de modo dialético, isso que Adorno ressalta
como crítica ao teólogo seria também sua mais contundente contribuição. Kierkegaard
teria sido capaz de farejar algo das mudanças que aconteceram com a experiência humana
às condições estruturais do que aos sujeitos que as refletem, para Adorno, ele contrapõe
813
ALTERIDADE E COMUNIDADE: A ARTE DE DAR A OUTRA FACE
E-mail: betorofer@uol.com.br
Este trabalho, baseado nas psicologias de Heinz Kohut e Carl Jung, procura apontar
dinamismo do bode expiatório que, por ser autônomo e subproduto do narcisismo ferido
alteridade, como o propiciado pela análise. Antes que isso aconteça, o indivíduo é
narcísica, quando ela irrompe em seu psiquismo. Uma das maneiras de dar vasão a ela é
tornar o outro seu bode expiatório. Nessa posição, o sujeito permanece distante de sua
Torna-se, assim, a análise, uma atividade religiosa. Por outro lado, o “dar a outra face”,
814
EM DEVOÇÃO: ENCONTROS EM BUSCA DO HUMANO
E-mail: klyusvf@gmail.com
reflexões críticas captadas nos encontros clínicos mediados pelo fenômeno da devoção
clínica em seu aspecto experiencial, como uma proposta no atendimento clínico de acordo
815
A MÍSTICA NA INTERFACE ENTRE O PSÍQUICO E O ONTOLÓGICO
E-mail: kitodias@gmail.com
Este estudo trata das relações entre a mística e a Psicanálise. No início, se faz uma breve
introdução do tema, buscando-se encontrar uma definição para conceitos centrais, como
William Parsons (1999) entre categorias de compreensão do tema (que destaca três
perspectivas clínicas.
816
CAMUS E "A PEDRA QUE CRESCE": CULTURA POPULAR,
RELIGIOSIDADE E COMUNHÃO
E-mail: gabibalaguer@usp.br
Esse trabalho traça relações entre a viagem de Albert Camus pelo Brasil, em 1949 e seu
conto “χ pedra que cresce”, publicado no livro O exílio e o reino (1957). Seguindo as
experiências biográficas e sua produção literária a partir das vivências de D´arrast, espécie
de alter ego no conto. D´Arrast vive um verdadeiro encontro com um cozinheiro que
muito lhe ensinará sobre a dominação e seu remédio. D´Arrast é apresentado aos rituais
sagrados seja da cultura afro, seja do catolicismo popular brasileiro, pelas mãos do
portanto, de um sofrimento humano – daquela gravidade de que fala Bosi (2002), para
além dos traços nacionais. O surpreendente final com o gesto de D´Arrast, substituindo
tanto a observação passiva e exterior de D´Arrast (assim como do próprio Camus) pela
participação. Esse processo parece ser mediado por ritos coletivos em que as experiências
alcançada pela saída súbita da condição de espectador da dor e sofrimento alheios para a
817
FONTES DE APRENDIZAGEM EM COMUNIDADES BASEADAS EM
EMPREENDEDORISMO SOCIAL
E-mail: valentinamedranocoley@hotmail.com
orientação (ou missão) voltada para a criação e manutenção do valor e capital social
coesão. Com base nesta premissa, a discussão será orientada para a descrição de fontes
818
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE INÁCIO DE LOYOLA E A PSICANÁLISE:
UM DIÁLOGO POSSÍVEL
E-mail: mteresa.mrodrigues@gmail.com
eleição de vida ou mesmo por um crescimento espiritual, neles está em jogo uma
conversão, que é a versão teológica da mudança psíquica. Vividos “com grande ânimo e
transformação do ego, numa trama psíquica e espiritual, em diferentes níveis. Aquele que
busca os EE traz, quer queira quer não, uma histórica psíquica que o condiciona,
bloqueando ou libertando; fazer os EE é colocar essa sua história humana dentro desse
itinerário que o transformará, integrando todas suas dimensões pessoais. χquele que “dá
os EE” acompanha aquele que “os faz” com enorme respeito à sua liberdade, oferecendo-
lhe seu senso comum, seu realismo, seus conhecimentos, sua experiência, e contempla a
humana, pois não se esquece de que o exercitante dos EE é uma pessoa solidária, fruto e
seguimento de Jesus.
819
O SEM-FUNDO HUMANO E AS FRATURAS DA RACIONALIDADE
E-mail: sandromusik@hotmail.com
relação entre os seres humanos, desses com o mundo, com o devir, bem como suas
necessidades ante a existência. Com isso, este trabalho objetiva confluir os principais
conceitos que diferenciam – abismalmente – o ser humano dos demais seres vivos. Em
para sanar as fendas que fazem de tudo aquilo que lhe é externo algo estranho. Para a
elaboração deste escrito usou-se como metodologia a revisão das obras Antropologia
Cornelius Castoriadis. Conclui-se, previamente, que os seres humanos, por mais que
façam parte de uma mesma cultura, têm no seu âmago vontades, anseios e causas
e fraturas existenciais.
820
ACOMPANHANDO INDIVÍDUOS TORNAREM-SE PESSOAS: EXPERIÊNCIA
PSICOLÓGICO
E-mail: davichangbh@yahoo.com.br
se-á os relatos dos clientes a partir de uma escuta fenomenológica, que ao serem
aprofundados para além da queixa inicial, descrevem demandas existenciais legítimas por
acompanhamento psicológico.
821
IDEALIZAÇÃO NEURÓTICA DA IMAGEM E IDENTIDADE PASTORAIS NA
E-mail: prof.thomasheimann@gmail.com
Bauman (2004). Diante de uma sociedade marcada hoje pela fragmentação, indefinição e
tornaram transitórias, voláteis e incertas, dentre as quais a identidade pastoral. Essa crise
identitária foi identificada a partir da escuta terapêutica de pastores ao longo de oito anos,
para a construção de uma imagem e identidade pastorais idealizadas, bem como sinalizar
para o sofrimento advindo dessa idealização, que certamente impacta diretamente sobre
a vida pessoal e profissional dos sacerdotes bem como sobre a vida das comunidades
822
SOFRIMENTO PSÍQUICO NA ADOLESCÊNCIA: AT, UNIVERSIDADE E
COMUNIDADE
E-mail: mamede@uol.com.br
Campus São Miguel Paulista, no extremo leste da cidade de São Paulo, o Projeto de
contra si e contra outros e o desinteresse pela escola. Esses pacientes são atendidos por
uma parceria com a Fundação Tide Setúbal ampliou o Projeto de AT que foi estendido às
pessoas e adolescentes encaminhados por essa Fundação. Essa população vive no extremo
queixas como as descritas acima, trazendo intenso sofrimento psíquico entendido por nós,
entre outros motivos, como decorrente da não participação na vida comunitária com
dignidade.
823
REFLEXÕES SOBRE O INSTRUMENTO CHAMADO EDUCAÇÃO
E-mail: silvacida@hotmail.com
O objetivo desta comunicação é refletir a respeito do humano enquanto ser social a partir
filósofo Theodor Adorno sintetiza de forma clara e direta a questão da educação. Para ele,
quaisquer reflexões acerca da educação devem iniciar-se a partir de uma profunda análise
sobre o que almejamos que um ser humano não pratique – isto é, que não seja conivente
nem concretize atos de crueldade como os testemunhados, por exemplo, nos campos de
Identificação, Educação.
824
O ACONSELHAMENTO PASTORAL COMO FORMA DE CUIDADO JUNTO
E-mail: fernandojosematias@hotmail.com
mentais, tanto assim que foi chamada de “resfriado da psicopatologia”. Essa sua
assiduidade faz com que se imponha como uma das patologias mais desafiadoras na
preciosas ferramentas que, como ação prática e refletida, visam interagir, entender e
intervir também no que se passa com quem está sofrendo por depressão.
825
REPERCUSSÕES CLÍNICAS DE UMA EXPERIÊNCIA DE MUSICOTERAPIA
E-mail: maribrasilcp@yahoo.com.br
O trabalho teve por objetivo investigar as repercussões clínicas apresentadas por sujeitos
potencial da música no cuidado à Saúde Mental. Através de sua utilização é possível criar
um espaço mais descontraído, que facilita a interação e pode gerar um ambiente que tem
como foco a vida. A musicoterapia não é indicada a toda a população já que pode haver
atenção à saúde. Uma, ainda voltada a um enfoque na doença mental e a busca por um
retorno do doente a uma normalidade e, outra, colocando o sujeito como foco do processo
cuidado.
826
CONTRIBUIÇÕES DA FENOMENOLOGIA PARA ATUAÇÃO DE
Joelma Ana Gutiérrez Espíndula; Silva, C.S.M & Angolo, J.L.G. (UF Roraima)
E-mail: espindulajoelma@gmail.com
(PNAISH) de acordo com Ministério de saúde para faixa etária dos 25 a 59 anos das
aos critérios da resolução 466/2012 que regulamenta a pesquisa com seres humanos.
Participaram nove (09) enfermeiros das Unidades de Saúde, de acordo com critérios de
humano estão relacionados aos aspectos biológicos, mas biopsicossocial e cultural, desse
olhar fenomenológico.
827
A RELAÇÃO ENTRE FENOMENOLOGIA E FILOSOFIA CRISTÃ NA
E-mail: makalisson@hotmail.com
com seu mestre, seguindo seu próprio caminho na busca pela verdade. Nesse caminho, a
sua conversão ao catolicismo influencia de forma decisiva seu pensamento. Após sua
conversão, Stein se dedica ao estudo da filosofia Cristã. No entanto, não deixa de ser
Segundo Stein, a Fenomenologia contribuiu de forma decisiva para estabelecer uma ponte
entre essas duas correntes filosóficas. Um dos pontos de comunicação entre essas duas
filosofias destacado pela autora é a ideia da Filosofia como ciência estrita. Para discutir
esse tema será utilizado os seguintes textos: “O que é a Fenomenologia?” (Was ist
Phänomenologie und die Philosophie des hl. Thomas Von Aquin, 1929).
828
SUBJETIVIDADE TRANSDISCIPLINAR: A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO
EPISTEMOLÓGICO INTEGRADO
E-mail: berni@usp.br
Humano, pois numa atitude de rigor, abertura e tolerância, sob o lastro da laicidade
Indígena.
829
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DA PRECE NA PRÁTICA CLÍNICA
Stella Maris Souza Marques & Thaíke Augusto Narciso Ribeiro (UFU)
outra ciência de rigor que considera o humano envolvido nos conhecimentos e resultados
produzidos pelo mesmo, ou seja, uma investigação da sua essência integral. Baseando-
do espírito humano, servindo como meio pelo qual percebemos e somos possuídos pelo
características e servindo como uma forma de linguagem da mesma, temos a prece como
830
O TRATAMENTO E O CUIDADO COM A PESSOA HOSPITALIZADA
E-mail: yolandaforghieri@uol.com.br
Este trabalho tem por objetivo ressaltar a importância do cuidado a ser prestado à pessoa
hospitalizada, pelos profissionais que lidam com ela. A partir de minha longa experiência
justificar o objetivo acima proposto. Nas ideias dos filósofos Merleau-Ponty e Buber e
liberdade. Assim sendo, torna-se necessário que esta seja fortalecida pelo cuidado,
manifestado no amor, consideração e respeito dos profissionais que lidam com ela.
831
COMUNICAÇÕES ENTRE FENOMENOLOGIA, PSICOLOGIA E HISTÓRIA
E-mail: ranierileandro@gmail.com
832
O VOLUNTARIADO NA PERSPECTIVA DO TRABALHADOR VOLUNTÁRIO
E-mail: neiliane.br@gmail.com
temática do voluntariado, sobre o perfil daquele que exerce tal trabalho e/ou motivações
para tal exercício, procurando compreender o modo de ser e estar no mundo do trabalho
voluntários que atuam nos eixos saúde, educação e formação profissional numa
trabalhadores cuja vivência tem sido pouco explorada na medida em que as pesquisas da
atividade remunerada.
833
POSICIONAMENTO VOLUNTÁRIO AUTÊNTICO NA OBRA DE EDITH
STEIN
Mahfoud (UFMG)
E-mail: achillescoelho@yahoo.com.br
interiores. Contudo, nem todo posicionamento corresponde a uma vivência que expresse
pessoa considera os valores pessoais apontados pelo núcleo pessoal, formando assim uma
personalidade autêntica.
834
EDITH STEIN E A FORMAÇÃO HUMANA: FUNDAMENTOS PARA UMA
EDUCAÇÃO INTEGRAL
E-mail: magmendes123@yahoo.com.br
Esta é uma pesquisa bibliográfica baseada nos escritos pedagógicos de Edith Stein com
humana; e contribuir, através da visão de pessoa humana e seu itinerário formativo para
ser humano como uma unidade indivisível de corpo, psique e espírito, que tem em si um
potencial a desenvolver, podendo chegar à sua plena realização ou não. Stein questiona
uma educação que não leve em consideração o ser humano completo, que se limite a
Stein, uma formação humana autêntica forma o homem de modo integral e o conduz à
plena realização de si mesmo, em vista do bem comum, pois cada pessoa que se
835
TEOLOGIA DO ORI-BARÁ: CONTRIBUIÇÕES DAS RELIGIÕES AFRO-
E-mail: joaocarneiro@ftu.edu.br
A partir das contribuições F. Rivas Neto, médico de formação e sacerdote das religiões
Ori é conquistar uma consciência individualizada. Esse destino pode ser modelado pelo
odu – signo que direciona sem solução de continuidade, o caminhar da pessoa. Entender
a pessoa pelo seu Ori e pelo respectivo Odu é admiti-la como livre para se manifestar,
pois o destino não é fechado. As adversidades (doenças sociais, mentais e físicas) seriam
destino pode ser reescrito, retificado por intermédio de vários rituais de fundamento
indivisível. Busca também discutir relações espirituais com o corpo humano e a pessoa.
Teologicamente falando, o corpo humano pode ter pontos de equivalência do Ori Aiyê
ou Ori Inu, a contra parte do Ori Orun. Compreender estes conceitos teológicos significa
devassar uma perspectiva complexa das religiões afro-brasileiras sobre a pessoa que
836
A RELAÇÃO ENTRE CRIADOR, CRIATURA E O GRUPO EM J. L. MORENO
E-mail: anete.roese@gmail.com
é a relação da criatura com o Criador; analisa a complexa e íntima relação entre criatura
“experiência transcendental”. Conclui que para mudar uma cultura é necessário antes
também um primeiro passo no cosmo, pois nele o mundo – com seus medos e valores não
está excluído. A obra As Palavras do Pai formula uma ciência sem a exclusão de Deus,
837
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS E A RECAÍDA: ANÁLISE À LUZ DA
EXPERIÊNCIA ELEMENTAR
Dionete Maria Mendes Nogueira & Coelho, Jr, A.G. (Faculdades Pitágoras,
Montes Claros)
E-mail: dionete_mendes@yahoo.com.br
A recaída é considerada, em alguns estudos, como processo que compreende não apenas
que permite ao sujeito avaliar criticamente seus atos ao comparar seus anseios genuínos
com aquilo que ele experiencia na realidade. Os Alcoólicos Anônimos (AA) visam à
abstinência do álcool tendo por fundamento evitar o primeiro gole. Trata-se de pesquisa
838
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOTERAPIA AO ENFRENTAMENTO DO LUTO –
E-mail: thayane.leonardi@hotmail.com
que modo e em que medida o processo psicoterapêutico pode ser eficaz frente a essa
vivência. Para tanto, desde uma perspectiva fenomenológica, procuramos dar voz àqueles
que durante o luto buscaram ajuda psicoterapêutica. Três mães enlutadas participaram de
disparadora: “você pode relatar a vivência de seu processo terapêutico durante o luto?”.
O relato delas evidenciou elementos da terapia que contribuíram ao alívio de sua dor,
formando 5 constituintes que seguem os passos metodológicos propostos por Giorgi. São
sobre seu próprio fazer - sobre as possibilidades e limites da sua atuação diante do Ser
839
NEUROSES ECLESIÁSTICAS E SEU TRATAMENTO NO EVANGELHO
E-mail: karkep@gmail.com
Deus, e para seu tratamento será útil manejar muito bem conceitos bíblicos igualmente
adoecimento emocional dentro das igrejas. A boa notícia é que o próprio meio evangélico
psicoterápico.
840
INTERPESSOALIDADE NA PÓS-MODERNIDADE: UMA MUDANÇA DE
PARADIGMA
E-mail:professoradrianojau@gmail.com
questionamentos de ameaças aos seus valores individuais, em que julgam essenciais à sua
também cultural, onde se apresenta com grande valia para o diálogo filosófico-
841
A PRESENÇA DA FENOMENOLOGIA DE EDMUND HUSSERL NA
E-mail: prof-tommy@hotmail.com
(1859-1938) foi introduzida no Japão em torno de 1910 pelo filósofo e budista Kitaro
Japão – no sentido ocidental – que mais tarde foi denominada de “Escola de Kioto” (Kioto
Gaku Ha). O termo “Escola de Kioto” foi cunhado em 1932 por Tosaka Jun em um artigo
da filosofia em diálogo com o budismo japonês. Além disso, Nishida foi responsável pela
ter conhecido pessoalmente o filósofo Husserl, tal como os seus alunos que foram à
estudos decisivos das Investigações Lógicas e das Ideias entre os anos de 1911 e 1916,
tendo continuado nos anos de 1920 e 1940. Entretanto, mesmo sendo um estudioso e
355
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Doutor em Psicologia Clínica
(PUC-Campinas), Mestre em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo), Co-Presidente
da Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAFE), Membro-colaborador do Circulo
Latinoamericano de Fenomenologia (CLAFEN), Membro-assistente da Sociedad Iberoamericana de
Estudios Heideggerianos (SIEH). Pesquisador do Grupo de Pesquisa da UFU – CNPQ/CAPES
“Contribuições da Fenomenologia de Edmund Husserl e Edith Stein à Psicologia: fenômenos psicológicos”
e autor de livros sobre Psicologia Fenomenológica e Fenomenologia da Religião (Editora Paulus).
842
divulgador das ideias da Fenomenologia na época, ainda não é possível dizer que a sua
pensamento original e próprio, ainda que tenha sido possível identificar em sua trajetória
importantes entre as duas filosofias como, por exemplo, quando afirma: “o mundo da
fenomenológico. Cabe ressaltar, por fim, que assim como comenta Hajime (1924) no seu
artigo “Novo giro na Fenomenologia”, não se podem evitar certas dúvidas a respeito das
críticas que o mestre Nishida fez à Fenomenologia, apesar de ao mesmo tempo ser ele um
843
O AUMENTO DO CONSUMO DE ÁLCOOL EM MULHERES: UMA
REFLEXÃO HEIDEGGERIANA
E-mail: mgfarinha@hotmail.com
Heidegger. A partir dos conceitos heideggerianos contidos na obra de Ser e Tempo refletir
que o início ou aumento do uso se deu devido a fatores como: separação do cônjuge,
dessas mulheres de vivências mais significativas. |Há a necessidade de oferecer ajuda para
essas mulheres que favoreçam que elas possam melhor cuidar de si mesmas.
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ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: PRÁTICA EFICAZ PARA
E-mail: mgfarinha@hotmail.com
com pessoas que ali eram acompanhadas e faziam tratamento no CAPS ou Ambulatório
de Saúde Mental. Para este trabalho foram entrevistadas 6 pessoas portadoras de algum
tipo de sofrimento psíquico que eram acompanhadas por 5 agentes comunitárias. Foi
realizado por meio de entrevista com a questão norteadora: “Fale-me como você percebe
como as agentes comunitárias puderam notarr um aumento qualitativo nas interações dos
pacientes com os familiares, com a equipe de saúde e com a comunidade, maior adaptação
com o meio ao redor, aderência nas atividades propostas tanto nos dispositivos de saúde
primária como secundária Com este estudo é possível perceber a importância da inserção
fenomenologia
845
ANEXO I – PROGRAMAÇÃO DO CONGRESO
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