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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2009

resenha

DIVULGAÇÃO

Em Contingência, ironia e solidariedade, R. Rorty apre-


senta de forma detalhada sua visão de mundo “li-
terária”. No seu entender, é a literatura – não a filo-
sofia ou a teologia – que tem a aptidão de fornecer
um sentido à solidariedade entre os homens. Utili-
zando como exemplo suas leituras de romancistas
como Nabokov e Orwell, ele ensaia a formulação
não de argumentações racionais abstratas, senão
de experiências humanas concretas, que têm o po-
der de gerar a empatia, que por sua vez motiva a
solidariedade e a compaixão.
Este ideal aplicado a uma comunidade de ho-
mens livres é o que Rorty chama de “cultura li-
terária”. A ascensão dessa “cultura”, descrita em
Contingência, ironia e solidariedade, estaria consumada
com a abdicação total de qualquer forma de conso-
lo metafísico (a Razão, a Humanidade, Deus etc.).
A crítica literária desempenharia para os homens
dessa coletividade, então, “o mesmo papel que se
supõe para os metafísicos desempenha a busca por
princípios morais universais”. Os críticos literários
e culturais assumem, portanto, a tarefa crucial de
movimentar o mercado de valores morais. Os críti-
cos ganham essa importância não por terem acesso
especial a verdades morais, mas simplesmente por
supostamente contarem com um repertório bas-
tante amplo de conhecimentos sobre narrativas:
seus vocabulários nunca estariam presos a uma só
obra ou a um só autor.
Em conformidade com os românticos, que
afirmavam a supremacia da imaginação sobre a
razão, Rorty afirmava que a faculdade humana
fundamental é o talento de falar de formas diver-
sas sobre o mundo e as instituições humanas, e
assim transformá-los. A linguagem, obviamente,
adquire um papel central nesse contexto – ciên-
cia, filosofia e ética são convertidos todos em gê-
neros literários; e a literatura, por sua vez, passa
a ser um gênero de investigação, de pesquisa das
possibilidades humanas.

Richard Rorty: Na história recente, o ano de 1989 ficou marcado


por um evento carregado de consequências e sim-
bolismos: a queda do Muro de Berlin. Junto a outros
fatores, esse acontecimento extraordinário, além
Um exemplo prático que torna claro o pensa-
mento de Rorty se relaciona à questão da escravi-
dão. Os argumentos filosóficos sobre a imoralidade
das sociedades escravocratas, segundo ele, pouco

literatura e
das repercussões políticas óbvias, contribuiu para contribuíram para a eliminação dessa forma de
o aparecimento de uma nova mentalidade – uma injustiça; os relatos sobre as crueldades cometidas
nova forma de ver o mundo –, não mais caracteri- contra os escravos, por sua vez, tiveram o poder de
zada pela bipolaridade ideológica. No ambiente li- comover e, assim, mudar a mentalidade de muitos
terário e filosófico, contaminado naturalmente por homens sobre o assunto.

solidariedade toda a agitação ideológica do período, esse mesmo


ano registrou a publicação de um livro que viria a
se tornar obra fundamental para a compreensão do
ambiente intelectual em que vivemos até hoje – a
A razão literária, por sua natureza intrinseca-
mente ligada à estética, seria uma forma de razão
sensível, capaz de suscitar a compaixão. Essa for-
mulação de uma “razão narrativa” apresenta mui-
O papel do escritor e do tão propalada “pós-modernidade”. Refiro-me a
Contingência, ironia e solidariedade, do pensador norte-
to pontos em comum com a concepção de “razão
vital”, do filósofo espanhol Ortega y Gasset, de-

crítico literário numa americano Richard Rorty.


Conhecido como fundador do neopragmatismo,
R. Rorty nasceu em 1931, em Nova York. No prin-
senvolvida posteriormente por María Zambrano.
Um predecessor de ambos, Miguel de Unamuno,
escreveu que “filosofia e poesia são irmãs gêmeas,
cultura pós-filosófica cípio da carreira, com um doutorado pela Univer-
sidade de Yale, Rorty assumiu a vaga de professor
ou talvez sejam a mesma coisa”. A experiência po-
ética também pode ser entendida como uma forma
titular em Princeton, onde lecionou filosofia por 15 de apreensão do real, uma forma de sabedoria que
eduardo Cesar Maia anos. Em 1983, abandonou sua cátedra e decidiu se dá, não por silogismos ou por seqüências dialé-
ensinar Humanidades na Universidade da Virgínia ticas, mas por uma conexão vital com o real.
e, logo depois, assumiu o posto de professor de Li- Em seu A arte do romance, Milan Kundera opõe o
teratura Comparada na Universidade de Stanford. gênero narrativo a uma concepção de verdade
A atribulada vida acadêmica refletiu sua trajetó- única e absoluta, pois o romance seria um espaço
ria intelectual, que começou dentro da filosofia aberto a uma pluralidade de caracteres, à polifonia,
analítica e terminou na defesa de uma espécie de à ambiguidade, à incerteza e à dúvida. A seme-
anti-filosofia, postura que endossou até sua última lhança da visão de Kundera com a proposta rortya-
entrevista, que ocorreu um pouco antes do seu fa- na em seu Contigência, ironia e solidariedade é evidente:
lecimento, em junho de 2007. a literatura vem contribuindo durante séculos, de
O projeto de Rorty foi a demolição de toda a forma constante e ininterrupta para a ampliação de
tradição filosófica que ambicionasse estabelecer nossa capacidade de imaginação moral. Ela é capaz
teorias eternas, encontrar verdades universais e de nos tornar mais receptivos e sensíveis na medi-
solucionar questões morais de forma definitiva. da em que expande nossa compreensão da diversi-
Grandes pensadores do século 20 tentaram, numa dade dos indivíduos e a diferença inconciliável en-
primeira fase, construir sistemas filosóficos desse tre seus desejos e necessidades. Menos abstrações
tipo, mas acabaram abandonando a busca de fun- morais e mais educação dos sentimentos e sensibi-
damentos últimos, como foi o caso de Heidegger, lidades: esse foi o projeto Richard Rorty.
Dewey e Wittgenstein. Criticando a tradição racio-
nalista ocidental – mas sem negar sua importân-
cia –, Rorty se opôs à ideia de que a filosofia pode O LIVrO
nos conduzir a uma base racional comum que nos Contingência, ironia e solidariedade
redima da imoralidade. A literatura e a crítica li- Editora Martins
terária, em comparação com o discurso filosófico Páginas 336
argumentativo, adquire proeminência devido ao Preço R$ 62,90
poder que, segundo Rorty, as narrativas têm de co-
locar a ética em contexto, pois são “exercício práti-
co de construção moral e política”.

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