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BRASIL
ÁFRICA
URBANISMO E ARQUITECTURA
do ecletismo ao modernismo
coordenação de
José Manuel Fernandes
Maria Lucia Bressan Pinheiro
Actas do Colóquio Internacional organizado
pela UAL com a FAU-USP, realizado em Lisboa
em 29 e 30 de Novembro de 2012
TÍTULO
Portugal, Brasil, África: Urbanismo e Arquitectura
– Do Ecletismo ao Modernismo
COORDENAÇÃO
José Manuel Fernandes, Maria Lúcia Bressan Pinheiro
AUTORES
Ana Vaz Milheiro, Benedito Lima de Toledo,
Cristina Udelsmann Rodrigues, Daniela Alcântara,
Elisiário Miranda, João Campos, José-Augusto França,
José Eduardo de Assis Lefèvre, José Manuel Fernandes,
José de Monterroso Teixeira, Maria Lucia Bressan Pinheiro,
Mônica Junqueira de Camargo, Raquel Henriques da Silva
SIGLAS
FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo
FAUTL – Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
FCSH – Faculdade de Ciências Sociais Humanas
ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
IUL – Instituto Universitário de Lisboa
UAL – Universidade Autónoma de Lisboa
UM – Universidade do Minho
UNL – Universidade Nova de Lisboa
USP – Universidade de São Paulo
COMISSÃO ORGANIZADORA DO COLÓQUIO INTERNACIONAL HOMÓNIMO
José-Augusto França, José Manuel Fernandes, Miguel Figueira de Faria
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Madalena Mira, Cristina Dias
PAGINAÇÃO
Nuno Pacheco Silva
IMAGENS CAPA E CONTRACAPA
Edifícios Esther e Arthur Nogueira, à esquerda, em foto de 1944 (Capa);
Casa Rey Colaço, no Estoril, por Raul Lino, postal da colecção de JMF (Contracapa).
DATA EDIÇÃO
ISBN
978-989-658-236-4
DEPÓSITO LEGAL
366061/13
EDIÇÃO
Nota Prévia
José Manuel Fernandes ........................................................................................................................... 7
Breve Apresentação
Maria Lúcia Bressan Pinheiro .................................................................................................................. 10
capítulo 1
PORTUGAL e BRASIL
Do século XIX a 1920: Neo-Classicismo, Romantismo, Ecletismo, Art Deco ............ 17
capítulo 3
BRASIL e ÁFRICA ........................................................................................................................ 155
capítulo 5
Conferência de encerramento ............................................................................................... 213
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criando-se assim as condições para a estruturação e articulação metodológica e
científica das três grandes áreas abordadas.
O intróito temático, breve, preciso e certeiro, foi o constante da apresentação
por José-Augusto França – que sobreelevou o “princípio e o fim” da aventura trans-
oceânica lusitana de Oitocentos e Novecentos, em “Portugal e o Ultramar: contri-
buição e herança simbólicas”, com as referências às obras de José da Costa e Silva
e de Pancho Guedes, respectivamente entre o dealbar do século XIX e a segunda
metade do século XX.
Em relação a “Portugal e Brasil”, os aspectos essenciais da arquitectura e
do urbanismo de Oitocentos (até cerca de 1920), nas duas nações, foram abor-
dados por José de Monterroso Teixeira (UAL), em relação ao Neo-Classicismo
(“Declinações neo-clássicas: o Teatro de São Carlos de Lisboa e o Teatro de São
João do Rio de Janeiro: modelo e empréstimos”), e em relação ao Eclectismo, por
José Eduardo de Assis Lefèvre (USP), a partir de um estudo de caso significativo
(“Do Ecletismo do fim de século ao Art Déco e ao Modernismo. Transformações
espaciais da Avenida São Luiz em São Paulo”).
Um segundo tema, que se revelou central na mesma área de assunto, foi o das
transferências culturais no dealbar de Novecentos, entre os dois países, por via
dos movimentos estéticos que então eclodiam, entre o Romantismo, o Ecletismo,
a Casa Portuguesa e o Neo-Colonial, e através da acção de agentes culturais
com personalidades como Ricardo Severo ou Lúcio Costa. Esta época preciosa
e fulcral foi abordada por Raquel Henriques da Silva (UNL) em “Portugal-Brasil no
século XIX: cruzamentos culturais em prol da definição de Pátria”, e por Maria Lucia
Bressan Pinheiro (USP) em “Repercussão das ideias de Ricardo Severo e Raul Lino
no debate cultural arquitectônico dos anos 1920 no Brasil”.
Finalmente, o terceiro passo desta temática Portugal-Brasil - o do desenvolvi-
mento do Modernismo e do Movimento Moderno, dos anos 1930 em diante - foi
desenvolvido, a partir de estudos de caso, de exemplos edificados, e da análise dos
processo culturais, sucessivamente por Mônica Junqueira de Camargo, da USP
(“Ecletismo e Modernismo na arquitectura de Oswaldo Arthur Bratke”), por José
Manuel Fernandes, da FAUTL (“1936-1937, ano chave da arquitectura moderna,
Portugal-Brasil”), e por Ana Vaz Milheiro, da UAL e IUL/ISCTE (”A tradição em Brazil
Builds e o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal”).
No plano da secção “Brasil e África”, de difícil problematização pelo pioneirismo
próprio do tema, e pela consequente escassez de estudos disponíveis, dois tra-
balhos arrojados marcaram o encontro, quer pela abordagem, antropológica cru-
zada com a geo-histórica, por Cristina Udelsmann Rodrigues, do IUL/ISCTE/CEA
(“Migrações luso-brasileiras para a África Portuguesa no século XIX e a criação
de novos espaços urbanos e sociais em Angola: algarvios, madeirenses e bra-
sileiros no Sul / Moçâmedes, Sá da Bandeira e Cunene”), quer pela diversidade
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e cruzamento de leituras, histórico-arquitectónico-simbólicas, por João Campos
(“Três Momentos na ´Estética de Torna-viagem´: de uma Homenagem a Viana
de Lima aos Impérios do Espírito Santo, passando pela arquitectura dos Afro-
Brasileiros retornados ao Golfo da Guiné”).
A terceira secção, “África e Portugal”, igualmente com forte carga inovadora no
aspecto das investigações já desenvolvidas, contou com os trabalhos de Daniela
Alcântara (FAUTL) a partir de bem seleccionados ´estudos de caso´ (“Arquitectura
Moderna: do Brasil a Portugal e África – alguma investigação e leitura”), e de Elisiário
Miranda (UM), aplicado no aprofundar das realidades edificadas em Moçambique
´em campo´ (“No caminho de uma arquitectura racional: infraestruturas modernas
em Moçambique”).
Fechando os trabalhos, a proposta de Benedito Lima de Toledo (USP) apresen-
tou uma brilhante síntese de leituras cruzadas Portugal-Brasil-Portugal, com o tema
“Unidade e Diversidade nas manifestações culturais no universo luso-brasileiro”.
Em suma, estes treze contributos foram, no seu conjunto, quer pela interrelação
que permitiram quer pelos seus conteúdos motivadores, essenciais para a obten-
ção do “corpus” teórico-científico, totalmente original e cremos que fortemente
inovador, que agora temos o gosto de publicar.
Finalizando,
Um agradecimento é devido a todos os participantes, pela sua disponibilidade e
qualidade dos contributos, bem como aos atentos moderadores das várias mesas
das apresentações – Professores Miguel Figueira de Faria, Helena Barreiros, José
de Monterroso Teixeira e Ana Vaz Milheiro (sendo que os dois últimos também
foram conferencistas).
Um destaque é aqui devido ao Reitor da UAL, Professor José Amado da Silva,
que abriu os trabalhos, ao Professor José-Augusto França, que como sempre
se disponibilizou generosamente para a palestra inaugural, e ao Professor Lima
Toledo, que infelizmente não pôde estar presente, mas cuja conferência de encer-
ramento foi apresentada e lida pelo colega da USP, Prof. Assis Lefèvre.
Outro agradecimento, muito importante, é devido à Professora Maria Lucia
Bressan Pinheiro, que connosco (Miguel Faria e José Manuel Fernandes) organizou
do outro lado do Atlântico, ao longo de meses, serena e porfiadamente, toda a
logística e aspectos científicos essenciais ao bom resultado obtido.
Outro agradecimento ainda, ao Secretariado da UAL (com coord. pela Dra.
Madalena Mira), que todos os aspectos práticos e concretizadores apoiou e seguiu,
e, naturalmente, à Editora Caleidoscópio, na pessoa do Dr. Jorge Ferreira, que
como sempre, atenta e eficaz, permite agora esta resultante editorial sem a qual
muito se perderia de todo o esforço realizado.
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BREVE APRESENTAÇÃO
É com grande orgulho e satisfação que agradeço a dupla generosidade dos cole-
gas portugueses José Manuel Fernandes e Miguel Faria – primeiro, pela oportuni-
dade de contribuir na organização do Colóquio Internacional Portugal-Brasil-África,
e segundo, pela publicação bi-nacional das atas do evento, bem como o convite
para escrever uma breve apresentação a esse respeito.
De fato, considero-me privilegiada pela inesperada oportunidade de dar conti-
nuidade a esforços de aproximação empreendidos por estudiosos renomados do
Departamento de História da Arquitetura da FAU-USP - Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo na Universidade de São Paulo e o ambiente acadêmico português,
iniciados há décadas atrás. São professores aos quais eu, como todos os seus
numerosos ex-alunos, devo muito de minha formação, e por esta razão gostaria de
relembrá-los aqui.
Entre os primeiros – e devemos lembrar que tanto a USP, criada em 1934,
quanto a FAU, de 1948, são instituições de ensino bastante jovens, especialmente
em comparação com as instituições portuguesas – deve-se mencionar o Arq.
Eduardo Kneese de Mello, um dos primeiros professores da disciplina “História
da Arquitetura no Brasil”, que, inspirado pela realização do Inquérito à Arquitetura
Popular Portuguesa, pleiteou uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian em
1968, desenvolvendo estudos sobre a herança mourisca na arquitetura brasileira.
Seu exemplo foi imediatamente seguido pelos arquitetos João Walter Toscano,
Carlos Lemos e Benedito Lima de Toledo – todos professores do Departamento de
História da Arquitetura da FAUUSP, sendo que Benedito Lima de Toledo era assis-
tente de ensino de Kneese de Mello, àquela altura.
Nada mais adequado, portanto, que este mesmo pesquisador tenha, por inter-
médio de um seu discípulo e sucessor, José Eduardo de Assis Lefèvre, apresen-
tado a conferência de encerramento do Colóquio, como já destacado por José
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Manuel. Um colóquio, aliás, aberto com a brilhante intervenção do Prof. José-
Augusto França, nome que nos é familiar – a mim e aos colegas brasileiros – pela
sua presença obrigatória nas bibliografias das disciplinas de História da Arquitetura
Brasileira.
Mas os intercâmbios com Portugal contaram e contam, em nosso Departamento,
com outros insignes pesquisadores: os professores Júlio Roberto Katinsky, Nestor
Goulart Reis Filho e Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, voltados a temas de história
da técnica e história da urbanização no Brasil. Especial menção é devida a Murillo
de Azevedo Marx, um dos mais ativos protagonistas de tais intercâmbios, recente-
mente desaparecido.
De tais esforços de aproximação resultaram muitos eventos científicos realiza-
dos na FAUUSP, promovidos pelos professores citados acima e que, a par de cons-
tituírem imperdíveis oportunidades de aprendizado, evidenciavam a necessidade
quase obrigatória do estabelecimento de pesquisas conjuntas, já que é impossível
compreender o arcabouço edilício efetivamente implantado em solo brasileiro sem
o conhecimento das matrizes arquitetônicas de nossa metrópole.
Como beneficiária destas iniciativas e dos numerosos estudos e publicações
delas resultantes, tenho a certeza de que as contribuições do evento ora em epí-
grafe inspirarão outras tantas pesquisas, agora acrescidas de uma outra vertente
investigativa riquíssima, mas ainda bastante incipiente entre nós: a das trocas
arquitetônicas com as culturas africanas, aspecto inovador e instigante, como se
pode comprovar pelos trabalhos aqui apresentados.
Finalizando, gostaria de reiterar os agradecimentos já expressos pelo Arq. José
Manuel Fernandes, aos quais quero acrescentar uma menção ao inestimável apoio
do Diretor da FAUUSP, Prof. Marcelo de Andrade Romero, para viabilizar a partici-
pação da equipe brasileira no evento, bem como a publicação de seus resultados
pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Também quero manifestar minha gra-
tidão para com o Prof. João Mascarenhas Mateus, da Universidade de Coimbra,
e minha querida colega de Departamento, Profa. Beatriz Mugayar Kuhl, através de
quem fui efetivamente indicada para contribuir, pelo lado brasileiro, na organização
desta auspiciosa iniciativa.
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Teatro de São Carlos, Lisboa, foto JMF
PORTUGAL E ULTRAMAR:
CONTRIBUIÇÃO E HERANÇA SIMBÓLICA
José‑Augusto França
Professor Catedrático Jubilado da UNL
Não deve haver conferências inaugurais em colóquios que são feitos para apresen-
tar estudos e investigações inéditas, após os quais, sim, se conferenciará sobre
conclusões ou (sempre mais interessantes) aberturas e percursos de pistas.
No início desses trabalhos trazidos por quem trabalha os temas propostos, ape-
nas poderá caber uma introdução destinada a mostrar ou lembrar o sentido que
eles podem ter. Melhor: um sentido que tenha carga epistemológica. Esse será o
meu papel de conferencista anunciado, na brevidade de algumas palavras. Um
sentido de significado simbólico, na teia das relações dialécticas entre a arquitec-
tura portuguesa e aquela que nos ultramares se praticou ao longo dos séculos da
história comum.
Situemo-nos então no princípio e no fim dessas relações mais historicamente
significativas. Princípio civil de instalação e não militar de ocupação, que é sempre
conjuntural. E foi estruturalmente que em 1812 o Príncipe-Regente D. João pensou
(ou alguém por ele, e terá sido D. Rodrigo de Sousa Coutinho) em chamar à sua
corte do Rio de Janeiro, onde encontrara refúgio contra a invasão dos exércitos
napoleónicos e onde procurava instalar-se, o maior arquitecto português desse
tempo. José da Costa e Silva já dera, na medida do possível, à corte lisbonense
de sua mãe, o grande paço condigno, moderno de estilo neo-clássico (bebido em
Bolonha e na Caserta de Nápoles) cuja construção fora e estaria interrompida.
Na sua capital alternativa do Rio, a quatro anos de ter chegado, D. João preci-
sava de assentar outro período da história de Portugal pela via simbólica maior que
é a da arquitectura – e o já idoso Costa e Silva lá foi projectar o que pode, até lá fale-
cer, sete anos mais tarde. Depois saberemos o quê e como, aguardando-se para
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isso a tese de doutoramento que em breve será apresentada nesta Universidade
por de José de Monterroso Teixeira1.
Simbolicamente, então, Costa e Silva foi chamado ao Brasil no início da fase
política de instalação institucional, numa pátria que se desejava comum.
Ao termo de outra instalação, e em outra parte do mundo, na Costa Oriental
de África, o Estado português, após um longo período de história em que ali teve
responsabilidades que à arquitectura também (e muito) competem, deixou lá ficar o
seu melhor arquitecto de prática local e que se conta entre os maiores da sua pro-
fissão portuguesa de geração: Amâncio de Alpoim Miranda Guedes, pelo nome de
Pancho Guedes conhecido e historiado já. Aos [ ] anos de idade, ele preferiu ficar
para continuar a trabalhar em Moçambique, que era também terra sua, em 1974 –
assegurando assim, moralmente e simbolicamente, as relações entre duas pátrias
que separavam então uma história comum.
Em 2009 uma grande exposição da obra de Pancho Guedes no Centro Cultural
de Belém deu (finalmente !) a conhecer em Lisboa a obra deste arquitecto (e escul-
tor) – mas já em 1977 a revista “Colóquio Artes”, da Fundação Gulbenkian, acolheu
um excelente estudo estético de Salette Tavares sobre ela, e, em 1996, o júri do
prémio anual de arquitectura da Associação Internacional de Críticos de Arte –
AICA (secção portuguesa) resolveu atribui-lo a Pancho Guedes. Tenho gosto de ter
estado activamente em ambas as circunstâncias.
Estes dois casos, de princípio e de fim de um discurso histórico, demonstra-
rão, no plano simbólico da arquitectura, duas situações de consciência cultural
– levando o melhor de uma criação moderna por via neo-clássica, para o Brasil,
e deixando em Moçambique o melhor de uma criação moderna dos fins “pos-
-modernos” do século XX.
Haverá certamente que reflectir, em termos históricos, sobre estes dois casos,
para o entendimento das relações artísticas que constituem o programa deste
Colóquio Internacional.
1
Nota do editor: José de Monterroso Teixeira apresentou já o seu trabalho de doutoramento, intitulado “José da Costa Silva
(1747-1819) e a recepção do neoclassicismo em Portugal: a clivagem de discurso e a prática arquitectónica”.
PORTUGAL e BRASIL
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Planta do Teatro de São Carlos, BNRJ
DECLINAÇÕES NEOCLÁSSICAS:
O TEATRO DE SÃO CARLOS DE LISBOA
E O TEATRO DE SÃO JOÃO DO RIO DE
JANEIRO – MODELO E EMPRÉSTIMOS
Sociabilidades e espaços
de divertimento público
Em meados do reinado de D. João V Lisboa foi agitada pelas representações tea-
trais, que se organizavam no designado Teatro do Bairro Alto, instalado no palácio
dos condes de Soure, onde as polémicas óperas de bonifrates, de António José da
Silva, o Judeu, fizeram sucesso entre 1733 e 1739.
Este teatro foi atingido drasticamente pelos efeitos do terramoto de 1755 e, pou-
cos anos mais tarde, voltou a ser reedificado, a partir dos anos de 1760, tendo o
espectáculo de abertura sido realizado, logo, em 31 de Março de 1762. Lourenço da
Cunha, que desenhou o risco da nova sala, intitulado pintor de arquitecturas e pers-
pectivas, o que quer dizer cenógrafo, na sua prática procurava seguir Baccarelli, e
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tentava disputar a Bibiena a supremacia que este mantinha na produção cenográ-
fica1. Foi ele juntamente com Joaquim Manuel da Rocha, o autor do pano da boca
de cena, que integraram os artistas que o devolveram à cidade com responsabili-
dade artística. Aquele fora bolseiro de D. João V, em Roma de onde terá voltado em
17442 e aí terá tomado contato com os espetáculos mais atualizados na capital com
grandes tradições operáticas. A sua protecção em Lisboa obteve-a, no começo da
sua atividade profissional, com o apoio de Inácio de Oliveira Bernardes (1695-1781)
seu condiscípulo de bolsa, que ao tempo dirigia o Teatro dos Congregados do
Espírito Santo (oratorianos).
Neste mesmo ano de 1762 noticia-se o começo das obras do novo teatro de
corte da Ajuda, também iniciativa de D. José I, que terá utilizado um projeto de
Giovanni Carlo Sicinio Bibiena, entretanto falecido dois anos antes, sendo deste
autor o desenho para a igreja de Nossa Senhora do Livramento, erigida para come-
morar o salvamento da rei do atentado contra si perpetrado, em 1759.
Mário Sampaio Ribeiro, que ainda viu vestígios significativos do palco do teatro,
atribui-o a Giacomo Azzolini3, considerando que era capaz de permitira a evolução
de um esquadrão de Cavalos. Os estrangeiros que escrutinavam com minúcia os
cómodos da família real louvavam as récitas com os mais apreciados músicos e
cantores, de nível europeu. O teatro em 1772 foi descrito nestes termos “The house
itself was of very contracted dimensons, the pit not beeing calculated to contain
more than abou tone hundred and thirty individuals. Boxes, indeed, in the proper
acception of the term, were only three; The King, Queen and Royal family being
seated in gallery fronting the stage, elevated considerably above the body of the
house”4.
Em meados do século XVIII o abade António da Costa que, precisamente em
1749, abandonara o país, consigna na sua correspondência de Itália e de Londres,
de modo a entusiasmar os seus leitores, uma exaltação dos teatros na sua monu-
mentalidade, face à inexistência de tais equipamentos entre nós: “O Teatro por fora,
ou a casa em que está a gente, que vê, é grandíssima e altíssima à proporção do
teatro de dentro; é oval e tem seis andares de camarotes. Para V. M. entender um
pouco mais ou menos o feitio de ambos os teatros, suponha que é como a Igreja
de S. Ildefonso, ou como a dos Clérigos. Representa-se na capela-mor; e a gente
1
MACHADO, Cyrillo Volkmar (1922), Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, escultores, architectos e gra-
vadores Portuguezes, e dos Estrangeiros que estiverão em Portugal, (1. ª ed., 1823, coord. Teixeira de Carvalho e Vergílio
Correia). Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 156-157
2
COSTA, Luís Xavier da (1935), As Belas Artes em Portugal durante o século XVIII. [s.l., s.n.], (Tipografia Colonial), p. ; DIAS;
João Pereira (1947), “Dos momos e arremedilhos ao cenário sintético (encenação)”, in A Evolução e o espírito do teatro em
Portugal, 2.º ciclo (1.ª série) das conferências promovidas pelo O Século, Lisboa, p. 35
3
RIBEIRO, Mário Sampaio (1947), “Teatro de Ópera em Portugal”, in A Evolução e o Espírito do Teatro em Portugal, 2.º
ciclo, 2.ª série das Conferências promovidas pelo Século, pp. 88-89; V. tb GAMEIRO, Alfredo (1932), “A Ajuda de Outros
Tempos”, in O Comércio da Ajuda, n.º 32, de 17 de Dezembro, pp. 4-5.
4
WRAXALL, Sir Nathanael William (1815), Historical Memoirs of My Own Time, Part the first, from 1772 to 1780. London,
pp. 12-13.
está no chão, a que chamam plateia, ou nos camarotes”5. Tópico que nos faz voltar
à insinuação da irrelevância monumental caro a Francisco de Holanda na sua Da
Fabrica que falece à cidade de Lisboa (1571).
Este registo é sinal de uma debilidade herdada de seu pai que D. José I quis erra-
dicar, já que aquele estava mais perto de uma cultura musical vinculada à mag-
nificência dos cerimoniais religiosos, persistência que reporta ao paradigma (de
raiz ibérica) formatado pelo gosto seiscentista de D. João IV. Para a mudança de
tal configuração fez contratar, em Itália, num primeiro momento, Giovanni Carlo
Sicinio Bibiena (1717-1760) para a construção do Real Teatro de Salvaterra, onde a
corte passava largas temporadas na época da caça. A prestação deste arquiteto
foi devidamente apreciada pela sua qualidade, já que pertencia à linhagem ilustre
dos cenógrafos italianos Bibiena, originários de Bolonha, e que conquistaram cele-
bridade em toda a Europa. Um deles, Ferdinando Galli Bibiena (1656-1743) redigiu
5
Cartas do Abade de Sousa Costa, introdução e notas de Fernando Lopes Graça. Lisboa: [s.n.], 1946, (Gráfica Lisbonense),
p. 65, cit. CARNEIRO, Luís Soares (2002), op. cit., p. 45
6
Vem a redigir L’architettura civile (1711) e Varie Opere di prospettiva (1703-1708).
7
FREIRE, Daniel da Silva, Elogio Historico do Magnânimo Rei Dom José, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms. Azul,
Códice 353; Vide CÃMARA, Maria Alexandra Gago da (1991), Os Espaços Teatrais na Lisboa Setecentista: Subsídios para
o Estudo da Arquitectura Teatral. Tese de Mestrado, FCSH– Universidade Nova, Lisboa, Vol. I, Doc. XVI, pp. 304-305
8
CAINI, Antonio (1862), Delle arti del designo e degli artisti nelle provincie di Lombardia dal 1777 al 1862 [...]. Milão: presso
Luigidi Giano Pirola, pp. 14-15
9
Id., ibidem, p. 14
10
TORRE, Carlo (1674), Il Ritratto di Milano, diviso in tre Libri [...]..Milano: Federico Agnelli Scult. 1674, p. 297
11
Pertence à Galeria Národní, de Praga, n.º inv. DO 4561; foi igualmente belissimamente retratado por Pompeo Batoni, em
que o mostra com o Coliseu romano ao fundo, (c.1753)
12
L’Antichita di Roma. Roma: Apresso Giulio Bolano, 1566. BNP, HG 10387 P.
sua ordem de pilastras da ordem toscana parece referir-se à gramática usada por
William Chambers (1723-1796), protagonista das correntes do neopalladianismo
inglês13. Esta orientação vincula-se à reapreciação do legado palladiano na orienta-
ção da valorização do corpus da antiguidade clássica, interpretada por este trata-
dista e de enorme aceitação em Inglaterra.
Ora, em 1778, José da Costa e Silva (1747-1819) que se encontrava na sua fase
final do percurso letivo em Itália, cumprido a partir de 1769, passou por uma con-
trariedade com a partida, para Milão. de Carlo Bianconi (1732-1802) – convidado
para assegurar a direção da recém formada Academia de Brera – ele que era o
seu mestre venerado, em diferentes vetores, na Academia Clementina de Bolonha,
que frequentava há cerca de nove anos. Assinale-se que nesse ano se inaugurou
13
Autor do influentíssimo Treatise on Civil Architecture, publicado em 1759
Figura 7 – Vista da Fachada o Teatro La Scala, Milão, Bilhete -postal, séc. XX, princípios.
Figura 8 – Real Teatro de São Carlos em Lisboa, c. 1839, gravura de Ch. Legrand, BNP.
14
FRANÇA, José-Augusto (1966), A Arte em Portugal no Século XIX, Vol. I. Lisboa: Editora Bertrand, p. ; SILVA, Ra-
quel Henriques (1998), Lisboa Romântica. Urbanismo e Arquitectura, 1777-1874. Dissertação de doutoramento, FCSH-
-Universidade Nova de Lisboa, pp.
15
VASCONCELOS, João José de (1802), Elogio Funebre do Conselheiro Anselmo Jozé da Cruz Sobral, etc[…].Lisboa na
Officina Nunesiana, p. 20, “Direi eu ser Elle o primeiro móvel, de haver na corte hum Teatro, que não cede na Grandeza,
na Architectura, Magnificencia, e Decoração a nenhum dos mais famigerados da Europa? Acaso fallarei …?”. As eficazes
provas dadas na inspecção das obras da real basílica da Estrela reforçaram a sua escolha.
16
CAVALCANTI, Nireu (2004), O Rio de Janeiro Setecentista, a vida e a construção da cidade. Da invasão francesa até a
chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 372.
17
TEIXEIRA, José de Monterroso (2013), José da Costa e Silva (1747-1819) e a receção do neoclassicismo em Portugal: a
clivagem e a prática arquitetónica. Tese de Doutoramento, Universidade Autónoma de Lisboa, pp. 546-563
18
LIMA, Evelyn F. Werneck (2009), “Arquitectura e dramaturgia: modelos iluminados da Corte refletidos na Casa da Ópera
de Vila Rica e no Teatro de São João (1770-1822)”, Revista Convergência Lusíada, 24, 2º semestre, Rio de Janeiro: Real
Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro, p. 177
19
SANTOS, Luís Gonçalves dos (2008), op. cit., p. 321.
1
Citado in Pedro Navascués Palácio, “Fundamentos da Arquitectura Neomedieval” in O Neomanuelino ou a reinvenção da
Arquitectura dos Descobrimentos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/
Instituto Português do Património Arquitectónico, 1994 (catálogo de exposição comissariada por Regina Anacleto).
33
movem entre o imparável percurso para a mundialização, empurrada pelas revolu-
ções industriais, e a forte afirmação das nações, num jogo temível de confrontos
que hão-se conduzir à primeira guerra mundial, dirimida entre os países europeus,
mas que se estendeu aos territórios coloniais.
O carácter contraditório do século XIX não será, eventualmente, maior do que
o de outra qualquer época, mas, neste caso, o que está em elaboração é o mundo
em que hoje vivemos, delineado por gente de quatro ou cinco gerações anteriores
à nossa e que, no essencial dos seus empenhos e questionamentos, são nossos
exactos contemporâneos. É esta alvorada do tempo e da cultura do presente que
me fascina, tanto mais que os problemas então formulados continuam, para nós,
em grande parte irresolutos.
No caso português, o pessimismo, hoje dominante, sobre a possibilidade de
sobrevivência do Estado e talvez mesmo da Nação, é o mesmo da intelectualidade
fino oitocentista, quando gente tão notável como Eça de Queirós, Oliveira Martins
ou Antero de Quental ‘provaram’, perante o seu tempo e para o futuro, que Portugal
era a ‘choldra’, epíteto atribuído ao próprio rei D. Carlos I2. E, no entanto, apesar de
Fernando Pessoa a acusar de ‘provincianismo’3, aquela foi uma geração brilhantís-
sima que, ao contrário das suas proclamações catastrofistas, deixou a prova defi-
nitiva da existência da Nação, através de obras-primas de talento, inventividade,
plena actualização internacional e militantemente auscultadoras do futuro.
Do meu ponto de vista – que raramente vejo enunciado por outros historiadores
– o século XIX, quando visto, não na dimensão da micro-análise, mas no seu movi-
mento conjunto, manifesta capacidade permanente de Regeneração. ‘Perdeu-se’
o Brasil, houve uma violenta guerra civil, extinguiram-se os conventos, falharam-se
os alvores do desenvolvimento capitalista internacional, bem como da generali-
zação da alfabetização, atingiram-se quantitativos impressionantes de emigração,
assistiu-se à agonia da monarquia. Todavia, Portugal não soçobrou, entrando em
1900 guiado pela grande esperança republicana, pela crescente importância das
colónias africanas, geradoras do desenvolvimento epocal. Guiado também pelas
obras dos seus artistas que, depois do brilhantismo das heranças da Geração de
70, serão Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Amadeo de Souza Cardoso, mar-
cados pela rebeldia e pelo modernista desejo de corte com o passado, para não
2
Este tema tem sido amplamente trabalhado na história da cultura em Portugal. Mas a sua obra de referência é O Labirinto
da Saudade. Psicanálise mítica do destino português de Eduardo Lourenço, Lisboa: Dom Quixote, 1978. Afirma o autor, na
p. 26: ‘O século XIX foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos,
a sua imagem de povo com vocação autónoma, tanto no ponto de vista político como cultural. Que tivéssemos merecido
ser um povo, e um povo com lugar no tablado universal, não se discutia. Interrogávamo-nos apenas pela boca de Antero
e de parte da sua geração, para saber se éramos ainda viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência. Curiosamente, o
exame de consciência parricida intentado ao «ser nacional» tinha lugar na mesma altura em que Portugal se religava, com
algum êxito, a essa Europa, exemplo de civilização, cuja comparação connosco nos mergulhava em transes de melancolia
cívica e cultural, tais como a obra de Eça os exemplificará para o nosso sempre. ( )’
3
Fernando Pessoa, “Portugal entre Passado e Futuro”. [consult. 15/03/2013]. Disponível em: http://www.citador.pt/textos/
o-provincianismo-portugues-i-fernando-pessoa
4
In António Paim, ‘Varnhagen e os alicerces da historiografia brasileira’ in Francisco Adolfo Varhagen, História Geral do
Brasil, org. por António Paim, Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, 2011, em linha: http://www.cdpb.org.br/
varnhagen_historia_geral.pdf (acedido: 9 de Abril de 2013), p. 4. Para uma visão actualizada da recepção crítica desta obra
de Varnhagen, ver Evandro Santos, ‘A História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen: apontamentos sobre o
género biográfico na escrita da história oitocentista’ in História da Historiografia, Ouro Preto, nº 9, 2012, p. 88-105, em linha:
www.ichs.ufop. br/rhh/index.php/revista/article/download/366/301 (acedido: 9 de Abril de 2013).
5
Paulo Pereira, «Alguns Aspectos da Cultura Artística de F. A. Varnhagen», Romantismo – Da Mentalidade à Criação Artís-
tica, Sintra, 1986, p. 293-327.
6
Sobre a importância de Murphy na divulgação do gótico do Mosteiro da Batalha, ver Maria João Baptista Neto, James
Murphy e o restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XIX. Lisboa: Estampa, 1997.
7
Alexandre Herculano, A abóbada. O Panorama: jornal literário e instrutivo da sociedade propagadora dos conhecimentos
úteis, 1839. Em linha: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_abobada.
«Bem como a igreja d’aquelle mosteiro Belem, elle o claustro ata e infeixa
com suas inredadas laçarias todos os géneros d’architectura, confundindo
as tradições góticas e as reminiscências clássicas, a simplicidade normanda
e a luxuriante riqueza moirisca. Domina porêm sobre tudo um pensamento
nacional e próprio, uma idea de grandeza, de elevação e de entusiasmo, que
geralmente characterizam aquella época (…)10.
Não cabe nos objectivos deste texto, aprofundar a reflexão sobre o Manuelino
e a análise do opúsculo de Varnhagen. Sabe-se que, a partir desta formulação cuja
cientificidade epocal quis destacar, o tema dividiu os meios historiográficos portu-
gueses, nomeadamente pela contra análise, muito rigorosa também, de Joaquim
de Vasconcelos, que considerou que o Manuelino não era mais do que ‘acidentes
de decoração’ sem qualquer personalidade estilística própria (PEREIRA, 1986: 315).
Mas muitos outros haveriam de partir de Vernhagen para definir a alma portuguesa
através da exuberância exótica do Manuelino, com uma fortuna crítica que teve
considerável divulgação internacional.
8
O Panorama, t. I, 2ª s, 1842, ps 58-61, 99-102, 109-111, 125-126, 130-33, 138-40.
9
Segundo Paulo Pereira, op. cit., p. 298, só um ‘13º capítulo’, publicado, em 1843, de novo na revista O Panorama é as-
sinado, permitindo confirmar a autoria do conjunto da obra.
10
In Paulo Pereira, op. cit., p. 313-314.
11
Para inventário e problematização deste tópico, ver O Neomanuelino ou a reinvenção da Arquitectura dos Descobri-
mentos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/ Instituto Português do
Património Arquitectónico, 1994 (catálogo de exposição comissariada por Regina Anacleto).
12
Ver, para ampliação deste tópico, no contexto da cultura romântica, Pedro Telles da Silveira ‘Ficção, literatura e história
através da «Crónica do descobrimento do Brasil» (1840) de Francisco Adolfo Varnhagen’ in História da Historiografia, Ouro
Preto, nº 9, 2012, p. 34-54, disponível em http://www.ichs.ufop. br/rhh/index.php/revista/article/view/70/33 (acedido: 13
de Abril 2013)
13
Além da questão do Neomanuelino e da Casa Portuguesa, outros revivalismos devem ser considerados na cultura arqui-
tectónica portuguesa, por exemplo o neo-românico. Por outro lado, de modo semelhante ao que noutros países europeus
acontecia, permanecem, com forte capacidade discursiva, as práticas decorrentes do ensino académico, dominado pelos
modelos franceses das Beau-Arts. E é indispensável considerar ainda as componentes mais inovadoras, e mais denega-
das, da arquitectura do tempo, praticadas pelos engenheiros. Deste ponto de vista, as mais notáveis obras da arquitec-
tura portuguesa de então são as pontes sobre o Douro, projectadas por Eiffel e Seyrig ou o Elevador de Santa Justa em
Lisboa de Raoul Mesnier du Ponsard. Tratei em diversos textos estes temas, nomeadamente Raquel Henriques da Silva,
–“A «Casa Portuguesa» e os novos programas, 1900-1920” in Portugal. Arquitectura do século XX. Portugal-Frankfurt 97,
Prestel, Deusches Architektur-Museum/Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1997 (Catálogo de exposição comissariada por
Ana Tostões); Raquel Henriques da Silva, ‘Portugal 1900: Urbanismo e Arquitectura’ in Portugal 1900. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2000 (catálogo de exposição comissariada por José Castelo Branco Pereira), p. 101-114 (também
edição em inglês).
14
In Ramalho Ortigão ‘A obra de Ventura Terra. A nova Câmara dos Deputados em Lisboa’, A Arte e a Natureza em Portu-
gal, vol. III, Porto, 1903, recolhido in Obras completas de Ramalho Ortigão. Arte Portuguesa, vol. II, Lisboa, Livraria Clássica
Editora, 1943, pag.198.
15
In Rosa Peixoto ‘A Casa Portuguesa’ in Rosa Peixoto, Obras. Vol. I: Estudos de Etnografia e Arqueologia. Câmara Mu-
nicipal de Póvoa de Varzim, 1967, p. 153. Este artigo foi pela primeira vez publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, Porto,
10, 12, 13 de Agosto de 1904 e republicado, com o elenco fotográfico definitivo em Serões, Lisboa, 2ª S., Vol. I, nºs 2, 3,
4, 1905.
16
Cite-se, por exemplo, Pedro Vieira de Almeida in História da Arte em Portugal. Vol. XIV: A arquitectura moderna. Edições
Alfa, 1986, p. 15: ‘Lida hoje, e independentemente das críticas então feitas, a Casa Ricardo Severo surge como tentativa
de colagem em fachada de elementos díspares de um vocabulário ruralizante, elementos que só de maneira superficial,
remetem para uma arquitectura vernácula, tentativa de colagem que tem a caracterizá-la, isso sim, uma linguagem de
conjunto que resulta quase necessariamente desarticulada e inconsistente ( )’.
‘Ricardo Severo foi um homem com duas vidas: uma em seu país natal e
outra no país que o acolheu. Por isso mesmo é lembrado de forma diferente
nessas duas pátrias. Enquanto em Portugal ele é reconhecido pelo seu tra-
balho como arqueólogo e etnólogo, no Brasil foi um dos principais defenso-
res da campanha pela arte tradicional e da consequente arquitetura neoco-
lonial. Se nas terras lusas foi um pesquisador, no Brasil, um empresário bem
sucedido e um intelectual que assumiu a tarefa de buscar e reforçar os laços
entre os dois países. Mas suas experiências na juventude influenciaram sua
maturidade, assim como a casa que construiu para si no Porto foi um ensaio
para as obras posteriores na nova pátria’18.
17
Maria Lucia Bressan Pinheiro – Neocolonial, modernismo e preservação do património no debate cultural dos anos 1920
no Brasil. Universidade de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 35
18
Luis Alberto Fresl Backheuser – A Casa do Arqueólogo. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto,
2006, p. 39.
19
Ver, para desenvolvimento deste tópico, João Luís Cardoso, ‘As investigações de Carlos Ribeiro e de Nery Delgado sobre
o «Homem Terciário»: resultados e consequências na época e na actualidade’ in Estudos Arqueológicos de Oeiras. Oeiras,
Câmara Municipal, 1999/2000, p. 23-54. Em linha: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2364/1/Carlos%20
Ribeiro%20e%20o%20homem%20terci%C3%A1rio.pdf (acedido: 14 de Abril 2013).
20
In Joana Melo de Carvalho e Silva, ‘Nacional ou cosmopolita: a cidade moderna de Ricardo Severo’ in IX Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo. S.Paulo, 4 a 6 de Setembro de 2006, p. 7/8. Em Linha: www.anpur.org.br/revista/rbeur/
index.php/shcu/article/.../1127 (acedido: 14 de Abril 2013).
21
In Maria Lucia Bressan Pinheiro, op. cit., p. 71. Vale a pena citar: (Ricardo Severo querendo) ‘munir-se de conhecimen-
tos necessários para construir à maneira tradicional brasileira – tal como fizera em sua casa portuense – encomendou ao
pintor paulista recém retornado de França, José Wasth Rodrigues um levantamento sistemático da arquitectura colonial
brasileira’.
Não sendo este o local para reflectir sobre os equívocos deste discurso, simul-
taneamente ideológico e coniventemente pragmático, resta-me realçar, pela última
vez o que, na minha opinião, une os dois casos de estudo abordados: a plena actu-
alização da cultura portuguesa oitocentista cuja desejada e reivindicada identidade
foi, para Adolfo Varnhagen e Ricardo Severo, alargada à construção da identidade
da nação brasileira.
22
In Joana Melo de Carvalho e Silva, op. cit., p. 17.
1
Estabelecido em São Paulo por volta de 1892, Severo retornou ao Porto entre 1897 e 1907, após seu casamento com
Francisca Santos Dumont. Para sua biografia, ver GONÇALVES, 1977.
47
As propostas de Severo foram enunciadas em duas conferências intituladas A
Arte Tradicional no Brasil. A primeira, proferida em São Paulo em julho de 19142,
em meio a um grande surto de transformações urbanas nas principais cidades do
Brasil, constituía uma exortação aos “jovens arquitetos nacionais” a iniciar “uma
nova era de Renascença Brasileira...”.
Logo de início, Severo explicitou seu entendimento da arte como “fenômeno
coletivo”, afirmando que “a Arquitetura [...] é a mais social de todas as artes”, indo
muito além das “obras-primas dos artistas geniais” e “manifestando-se nos artefa-
tos humildes do povo”.
O objetivo da palestra é, claramente, demonstrar a qualidade e adequação da
arquitetura brasileira do período colonial – que ele denomina ARTE TRADICIONAL – e, ao
mesmo tempo, ressaltar suas origens portuguesas.
Para Severo, as semelhanças climáticas entre Portugal e o Brasil permitiram que
as formas tradicionais portuguesas, decantadas de diversas correntes migratórias
ao longo de séculos, “aqui se estabelecessem com naturalidade, enraizando-se e
resistindo, como na velha metrópole, à invasão das influências cosmopolitas”.
Apresentou então alguns exemplares da arquitetura residencial brasileira, des-
tacando seus elementos construtivos tradicionais, como telhados, beirais, jane-
las, portas, rótulas etc. – uma abordagem absolutamente fora do usual, naquele
momento. Pouco usual era também a importância conferida por Severo à arqui-
tetura residencial anônima que compunha o tecido urbano das cidades, em detri-
mento dos edifícios excepcionais. Com efeito, revelando-se leitor atento de John
Ruskin3, o engenheiro afirmou:
....há que ponderar que o caráter de uma cidade não lhe é dado por seus
monumentos, colocados em pontos dominantes, grandes praças ou lugares
históricos. Ligam esses locais as ruas e avenidas, marginadas por casas de
variado destino; e são estas que dão a característica arquitetônica da cidade;
com efeito, o monumento é uma exceção, a casa é a nota normal da vida
quotidiana do cidadão, é como uma lápide epigráfica de sua ascendência e
de sua história.
2
Proferida em 20/7/1914, a conferência foi publicada na íntegra pela própria Sociedade de Cultura Artística em 1916, na
obra Conferências 1914-1915, pp. 37-82, de onde foram extraídas as citações que se seguem.
3
Na Lâmpada da Memória – a sexta dentre as “Sete Lâmpadas da Arquitetura” –, Ruskin afirmara: “Até hoje, a atração das
mais belas cidades [da Itália e da França] reside não na riqueza isolada de seus palácios, mas na decoração requintada e
cuidadosa das menores moradias de seus períodos de maior esplendor” (RUSKIN, 2008, p. 60).
4
A pedra fundamental da nova catedral de São Paulo foi colocada em 6/7/1913.
Reiterou sua visão da arte como fenômeno coletivo, transmitido pela experi-
ência, bem como sua defesa da arquitetura residencial, cotidiana, que constitui a
trama básica e confere caráter a nossas cidades, tornando-as capazes de resistir
ao “aluvião cosmopolita”.
Ressaltou que, para a arqueologia, tudo – desde as mais rústicos ruínas – se
reveste de significado:
5
Proferida no dia 31 de março, a conferência foi publicada na Revista do Brasil, ano II, vol. 4, jan-abr 1917, pp. 394-424,
de onde foram extraídas as citações que se seguem.
a própria terra que nos alimenta a vida e nos dilui a morte na perpétua alma do
universo”.
Os demais tipos mereceram comentários mais sucintos, com exceção do ter-
ceiro tipo, composto pelas igrejas do Rosário e de S. Francisco de Assis em Ouro
Preto, e a Igreja do Carmo de S. João Del Rei, casos em que, segundo Severo, “a
paixão pelas linhas curvas passa dos elementos decorativos da arquitetura ao pró-
prio plano da igreja” – originalidade que atribuiu ao Aleijadinho, numa rara referên-
cia à autoria das obras analisadas6: “Pode dizer-se que este tipo de plano curvilíneo
é original nessa parte do Estado de Minas, como se fosse composição do mesmo
arquiteto (o “Aleijadinho”) da segunda metade do século XVIII”.
Incluindo o conceito de estilo em sua visão social da arquitetura, Severo bus-
cava evitar preconceitos ditados pelo gosto ou pela moda – o que constituía uma
atitude avançada na segunda década do século XX:
6
Cabe notar que essa hipótese – errônea, uma vez que nem a Igreja do Rosário de Ouro Preto, nem o Carmo de São João
Del Rei são do Aleijadinho – seria retomada várias vezes por autoridades como Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário
de Andrade (PINHEIRO, 2011).
Com tais idéias, Severo lançou as bases para o movimento que logo ficaria
conhecido como Neocolonial, e que se mostraria capaz de promover significativa
mobilização simbólica, extravasando os estreitos círculos acadêmicos e alcan-
çando grande popularidade em meios bastante diversificados. Tratando-se de uma
proposta ancorada na arquitetura, que exige para sua concretização o comprome-
timento efetivo de recursos vultosos, tal feito não pode ser menosprezado.
Entretanto, tal como Severo, Mário não chegou a manifestar qualquer preocu-
pação quanto à preservação da arquitetura religiosa brasileira; defendia veemente-
mente, aliás, a necessidade de renovação das igrejas paulistanas:
Neste orgulhoso estado de São Paulo, que se não podia, com justiça,
contentar com as velhas igrejas, pardieiros a esfrangalhar-se, foi necessário
substituir tudo. Onde fomos buscar inspiração? Em Portugal, que nos deu
o que possuímos? Ou nos progressos dessa dádiva, realizados na vastidão
do Brasil? Nada disso. Queríamos ser progressistas, reformadores, cubistas,
fomos buscar o que não era nosso, imitamos sem altivez, copiamos sem
engenho... (ANDRADE, 1920c, p. 109)
Mário parece ter encontrado resposta para suas inquietações a partir da exor-
tação do próprio Severo, pois, na primeira de suas crônicas “De São Paulo”7, mani-
festava explicitamente seu entusiasmo pela nova tendência neocolonial:
São Paulo, mais uma vez e em outro terreno, vai glorificar-se, reatando
uma tradição artística que o Aleijadinho de Vila Rica, o gênio inculto do
portal de S. Francisco de Assis, em Ouro Preto, e da escadaria de Congonhas
encetou e que nenhum ousara continuar. E Brecheret, cujas forças artísti-
cas rapidamente se maturam ao calor de empecilhos e rivalidades, não só
renova o passado em que a Bahia deu Chagas, o Rio Mestre Valentim e
Minas João [sic] Francisco Lisboa, como realiza o ideal moderno de escul-
tura, templo onde pontificam Bourdelle, Lembruck, Carl Millés e Mestrovic
(Ilustração Brasileira n. 3, nov 1920).
7
“De São Paulo” era uma seção regular sobre “o movimento artístico e literário da gente paulista” publicada de novembro
de 1920 a maio de 1921 na revista carioca de cultura Ilustração Brasileira, a cargo de Mário de Andrade (PINHEIRO, 2011).
8
Ver a respeito AMARAL, 1992, p. 155.
9
Ver ANDRADE, 1920c, p. 110. Severo não fizera qualquer referência a Lino nas conferências analisadas, porém Mário
possuía um exemplar de A Nossa Casa em sua biblioteca particular, atualmente no acervo do Instituto de Estudos Brasi-
leiros da USP.
10
De formação inglesa, Lino concluiu seus estudos na Alemanha, onde frequentou a Handwerker und Kunstgewerbeschule
de Hannover, entre 1893 e 1897. Lá trabalhou também com Albert Haupt, grande estudioso do Renascimento em Portugal
(RIO-CARVALHO, 1986, p. 174).
Nunca se comece por pensar no aspecto exterior duma casa (a não ser
dum modo muito vago) antes de ser bem estudada a sua planta. O cará-
ter essencial das fachadas duma casa reside nas suas proporções gerais,
e estas só podem ser determinadas depois de haver uma planta definitiva
(LINO, 1923, p. 21).
11
Recorde-se que o Arts & Crafts é, por assim dizer, um desdobramento das ideias de John Ruskin. Ver a respeito William
Morris e a SPAB (PINHEIRO, 2004). O termo Arts & Crafts, utilizado para designar a atividade de William Morris e Philip
Webb, só foi cunhado em 1887, período de sua maior divulgação na arquitetura através de William Lethaby e C. R. Ashbee
(CUMMING & KAPLAN, 2002). Assim, apresenta-se por vezes sob outras denominações como Domestic revival, ou English
Free Architecture (PEVSNER, 1981).
12
Um indício de tal popularidade é relatado pelo próprio Lino (1937, p. 67), quando de sua vinda ao Brasil, em 1935. Em
sua visita ao Palácio do Itamaraty, então sede do Ministério das Relações Exteriores, o ministro José Carlos de Macedo
Soares disse-lhe que comprara A Nossa Casa muitos anos antes, em sua primeira viagem a Portugal, na década de 1920.
13
Afirma ele:“É de péssimo gosto usar coisas fingidas quando se não pode ter as verdadeiras” (LINO, 1923, p. 56).
14
Ver a conferência “Art under Plutocracy” proferida em Oxford, em 14/11/1888 (MORRIS, 1947, pp. 245-6).
15
O concurso foi vencido por Ângelo Bruhns, cabendo o segundo lugar a Lucio Costa e o terceiro a Nereu Sampaio.
de materiais brilhantes, como a tinta à óleo: “... nós não nos podemos habituar à
pintura a óleo; dá-nos sempre uma impressão semelhante à de quando vemos uma
pessoa que passeia uma capa de borracha nova por um dia de sol” (1923, p. 33).
Na mesma entrevista, criticando a formalidade e rigidez imperantes na arquite-
tura residencial do período, Lucio discorre sobre a harmonia que deve existir entre
a casa e seu morador:
Toca aí no cerne das preocupações de Raul Lino, que dedicou ao tema inúme-
ras passagens de seu livro, como: “... o mais agradável que pode haver numa casa
é o adivinhar-se pelo exterior e o perceber-se pelo interior que ela foi feita à medida
das ideias sensatas do seu dono, para melhor satisfação nos seus deveres e para
maior alegria nos seus ócios” (LINO, 1923, p. 26).
Também vislumbram-se afinidades de Lucio com Lino em obras como a resi-
dência neocolonial mesclada de hispanidad do pintor Raul Pedrosa, projetada por
Lucio e Fernando Valentim no bairro carioca das Laranjeiras (c. 1925). O projeto
caracteriza-se pelo respeito às características do terreno e até mesmo à vegetação
pré-existente – da qual foi preservada uma frondosa mangueira, conforme o desejo
do proprietário. Informalmente implantada no terreno, a residência, despreocupada
16
Severo foi entrevistado em 15/04/1926, seguindo-se José Wasth Rodrigues, em 16/04/1926; Alexandre Albuquerque, em
17/04/1926, e José Mariano Filho, em 29/04/1926 (PINHEIRO, 2011),
Nessa entrevista, Severo apontou algumas obras recentes de sua autoria, como
a Casa José Moreira, o hospital da Beneficência Portuguesa de Santos e o projeto
para a sede da Sociedade de Cultura Artística, em São Paulo.
O segundo entrevistado por OESP foi o pintor paulista José Wasth Rodrigues,
que fora encarregado por Severo de estudar e registrar in loco a arquitetura colo-
nial brasileira, com vistas à criação de repertório ornamental básico a ser utilizado
pelos adeptos do Neocolonial. Porém, ao contrário do engenheiro português, seu
mentor intelectual, Wasth Rodrigues manifestou preocupação explícita quanto às
demolições e descaracterizações de edificações coloniais, chegando mesmo a
sugerir
17
Alexandre Albuquerque possuía um exemplar de A Nossa Casa, adquirido em 1920 e com parágrafos destacados, e
também de Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitetar das casas simples (1933) (ALBUQUERQUE, 2006,
p. 10).
18
Ver a respeito PINHEIRO, 2011, pp. 200-227 e 240-247.
19
ANDRADE, Mário. Mário de Andrade: Cartas de Trabalho. Brasília: MEC/SPHAN-Fundação Pró-Memória, 1981, pp.
60, 81, 84 e 99.
explícita, porém patente, também o de Raul Lino – nos anos de formação de dois
dos mais importantes personagens daquele período, Mário de Andrade e Lucio
Costa, é indispensável para a compreensão aprofundada não só do debate cultural
dos anos 1920, mas também de seus importantes desdobramentos na década de
1930, no Brasil.
Introdução
A adoção de uma determinada forma de projetar e construir nas cidades está con-
dicionada por fatores históricos, geográficos e de cultura urbana que integram
contextos específicos. Fazem parte destes contextos influências e transferências
provindas de fora. Identificar a temporalidade da ocorrência destas influências e
transferências é essencial para compreender os processos de absorção e criação
de modelos em momentos determinados.
Particularmente estranhas para quem não está familiarizado com o tema são
as razões que levaram uma cidade, que em 1836 apresentava 21.393 habitantes1
(incluindo freguesias que hoje são municípios da Região Metropolitana), a apre-
sentar em 2012 11.376.685 habitantes no município e 19.956.590 na sua Região
Metropolitana2.
A cidade de São Paulo começou de fato a crescer rapidamente a partir da
década de 1870 a 1880, quando teve lugar uma ampla reconstrução sobre sua
antiga estrutura, substituindo edifícios feitos em taipa de pilão por construções que
empregavam a alvenaria de tijolos de barro3. Essa reconstrução se deu sob a égide
1
ARAÚJO FILHO, in AZEVEDO,1956, Vol. II, p. 175.
2
IBGE, 2012.
3
TOLEDO, 2004.
69
do ecletismo que, naquelas circunstâncias, representava a modernidade. Mas, nos
anos de 1920 a 1950 ocorreu a progressiva substituição daquelas construções
ecléticas relativamente recentes por edifícios em altura, empregando estruturas de
concreto armado. Na arquitetura desses novos edifícios a adoção do Art Déco e do
Modernismo é que se constituiu em signo de modernidade. Analisar as mudanças
na arquitetura à luz das transformações sociais e econômicas em curso permite
avaliar as motivações que conduziam essas mudanças.
4
TOLEDO, 2003, p. 85.
5
PETRONE, 1995, p. 44.
6
KEHL, in BUENO, 2004, p. 92.
7
TOLEDO, 2003, p. 111.
8
AB’SABER, in BUENO, 2004, p. 26.
9
AB’SABER, 2004, p. 100.
10
AB’SABER,2007, p. 63.
11
PETRONE, 1995, p. 114.
12
TOLEDO, 2003, p. 255.
13
PETRONE, 1968.
14
LANNA, 1996, p. 54.
15
MAZZOCCO, 2005, pp. 29, 66.
16
MATOS, in AZEVEDO, 1956, Vol. II, p. 87
17
LEMOS, 1985, p. 39.
18
LEMOS, 1999, p. 136.
19
LEMOS, 1999, p. 133.
20
SINGER, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 176.
21
TOLEDO, 1996, p. 40.
22
SINGER, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 190.
23
LUNA, in SZMRECSÁNYI, 2004, p. 352.
24
Todas as informações relativas a este assunto encontram-se em LEFÈVRE, 2006.
Os Edifícios em Altura
O Edifício Esther
A Biblioteca Municipal foi construída na área da sede da antiga Chácara Velha, que,
a esta altura, era a residência de Nicolau de Souza Queiroz, filho do Senador. Sua
construção se estendeu de 1938 a 1941.
No ano de 1926 instalou-se à vizinha Rua 7 de Abril nº 37, a Biblioteca Municipal.
A transferência para um prédio próprio, localizado em um grande terreno arborizado
não foi decorrência apenas da necessidade de mais área, mas, principalmente,
do projeto cultural ambicioso de Mário de Andrade, diretor do Departamento de
Cultura da Municipalidade Paulistana e do diretor da Biblioteca Municipal, Rubens
Borba de Morais, ambos intelectuais integrantes do grupo que organizou a Semana
de Arte Moderna de 1922 e do grupo que integrava a equipe do ilustre Prefeito
Fábio Prado, nomeado em 1934.
O projeto arquitetônico do prédio é de autoria do arquiteto francês Jacques Pilon,
formado em Paris em 1932 e em atuação em São Paulo a partir de 1933. O prédio
apresenta grande afastamento de outras construções, o que permite que possa ser
visto por todos os lados, principalmente depois de criada a Praça Dom José Gaspar,
que circunda o prédio em sua parte posterior. A importância e prestígio do cargo de
diretor da Biblioteca podem ser avaliados pela amplidão da sua sala, ligada a um
grande terraço descoberto, que descortina a vista da Praça Dom José Gaspar.
Nos anos 40 e 50, a instalação das sedes de jornais, como “O Estado de São
Paulo”, ocorrida em 1952 no prédio da Rua Major Quedinho na continuação da Rua
São Luiz, projetado em 1946 pelo escritório do mesmo arquiteto Jacques Pilon,
sob a responsabilidade do arquiteto Franz Heep, e dos “Diários Associados”, na
Rua 7 de Abril, 230, em prédio do início dos anos 40, veio trazer mais atividade inte-
lectual e cultural para as suas imediações. A instalação do Museu de Arte de São
Paulo, no prédio dos Diários, por iniciativa de seu proprietário, Francisco de Assis
Chateaubriand, foi mais um passo na consolidação da importância do Centro Novo
no ambiente cultural da cidade. A presença de grandes cinemas, teatros, livrarias,
constituía fator de atração para a população já acostumada a frequentar o Centro.
Dentro desse panorama, a Biblioteca Municipal ocupava uma situação de destaque
e abrigava sistematicamente eventos como conferências e concertos de câmara
no seu auditório.
Em novembro de 1942, Walter Moreira Salles adquiriu um terreno na Rua São Luiz
onde, antes do seu alargamento, havia duas casas geminadas. Apenas em janeiro
de 1951 foi apresentado à Prefeitura o pedido de aprovação de projeto de autoria
do arquiteto Gregori Warchavchik, para construção de um prédio de apartamen-
tos. A construção começou em 1953. O projeto previa dois apartamentos de dois
dormitórios por andar, do 1º ao 16º pavimento; e um apartamento, também de dois
dormitórios, por andar, do 17º ao 19° pavimento.
O projeto do Edifício Moreira Salles é moderno, mas, como mencionado, a apli-
cação dos princípios arquitetônicos modernistas foi condicionada pela localização
do lote no meio da testada da quadra e pela legislação em vigor à época, que obri-
gava a ausência de recuos laterais até o 11º pavimento e recuos de 2,50m a partir
do 12º. A composição das fachadas para duas ruas, que segue as perspectivas
O terreno em que havia existido a casa nº 14 da Rua São Luiz permaneceu vazio
desde a demolição da casa para alargamento da via, em 1941, até à construção do
Edifício Ouro Preto, concluído em 1958. Após idas e vindas quanto ao programa
a ser seguido na nova construção, se uso residencial ou de escritórios, a escolha
foi para uso residencial, sendo convidado o arquiteto Franz Heep para desenvolver
o projeto. Em meados dos anos cinquenta, Heep desfrutava de prestígio no meio
imobiliário por seus projetos, entre os quais se destacava o já mencionado edifício
sede do jornal “O Estado de São Paulo”, situado no prolongamento da Rua São
Luiz, na esquina da Rua Major Quedinho, inaugurado em 1953.
O projeto de Franz Heep para o Edifício Ouro Preto é exemplar da qualidade
da obra desse arquiteto, rigorosamente funcional e formalmente muito bem resol-
vida. Trata-se de um prédio de dois apartamentos por andar, de três e de dois
dormitórios, de padrão médio-alto, sem ser luxuoso, mas bem resolvido na distri-
buição interna e com qualidades espaciais acima do padrão comercial da época.
O prédio segue a regra do recuo frontal e também os recuos laterais de 2,50m a
partir do 12º pavimento. Com a necessidade de obedecer a esses recuos laterais,
o arquiteto trabalhou a volumetria e a forma do prédio de maneira a caracterizar
dois volumes sobrepostos, tratados diferenciadamente e separados por uma faixa
de sombra. No bloco inferior, onde ficam os apartamentos de três dormitórios, a
superfície da fachada segue o plano das fachadas vizinhas, com uma prumada de
terraços em balcão saliente, com parapeito de concreto na frente e tubos metáli-
cos nas laterais. Este desenho do balcão é leve e produz um efeito interessante
com o recesso sombreado do terraço, que fica para dentro do plano da fachada.
Este terraço constitui ponto de interesse para o ambiente da sala de estar, pos-
sibilitando a comunicação com o exterior através de caixilho que ocupa todo o
vão. O restante da fachada do volume inferior é ocupado por caixilhos de correr
que ocupam todo o vão estrutural, com venezianas metálicas externas na altura
do vão, o que confere à fachada uma movimentação constante, que depende do
uso dos apartamentos. O arquiteto já havia utilizado este efeito, com sucesso,
em outros prédios. O apartamento do 12º andar não apresenta balcão fronteiro,
e sim terraços decorrentes dos recuos laterais. O peitoril desse terraço constitui
um arremate superior, quase uma cimalha, para o volume inferior, e se liga à linha
de arremate dos recuos dos prédios vizinhos. O volume superior do prédio, mais
estreito, é destinado aos apartamentos menores, de dois dormitórios, e apresenta
um tratamento formal e funcional totalmente distinto do empregado no volume
inferior. Primeiramente, toda a fachada se projeta em balanço, constituindo um
terraço comum para os dormitórios e a sala – o que cria uma sombra que destaca
o volume do corpo superior e reforça suas linhas horizontais. A sensação de peso
dos parapeitos destes terraços é minimizada por uma estreita linha vazada entre a
laje e o parapeito, que também é arrematado por um tubo metálico para diminuir
sua altura, sem prejuízo para a segurança.
O Conjunto Metropolitano
O Edifício Itália
O Edifício Itália, o mais alto prédio da cidade e um dos mais famosos, foi construído
no local de uma das residências da família Souza Queiroz, adquirida em 1923 para
servir de sede a um clube da elite da colônia italiana, o Circolo Italiano. Em 1953, o
clube realizou uma concorrência internacional de arquitetura, com a participação
dos arquitetos Gio Ponti, Gregori Warchavchik e Franz Heep, em associação com a
empresa de Otto Meinberg, entre outros. O projeto vencedor foi o de Franz Heep, e
as obras foram iniciadas em 1956-57, tendo se prolongado até 1966, em razão de
diversas dificuldades surgidas, especialmente com as fundações.
O programa do Edifício Itália incluía, além das instalações para o clube, torre
para escritórios, lojas no térreo dispostas em galeria interna, auditório para teatro e
garagem.
A intenção de monumentalidade é explícita no projeto do Edifício Itália, que
deveria conter uma forte carga simbólica para a coletividade italiana de São Paulo.
O projeto é muito bem sucedido neste aspecto, tornando-se um símbolo para a
própria cidade e um ponto de atração para os visitantes da capital, especialmente
pela presença de mirante e restaurante instalados nos últimos andares da torre.
A inserção do prédio na paisagem foi muito bem concebida, aproveitando o
ângulo agudo da esquina formada pelas avenidas Ipiranga e São Luiz, para criar
Considerações Finais
As sucessivas e rápidas mudanças ocorridas na cidade de São Paulo levaram à
ocorrência de manifestações de diversas formas de arquitetura nos séculos XIX
e XX, de acordo com a criação, difusão e incorporação de diferentes ideias e
tendências.
Os exemplos escolhidos permitem avaliar o engenho e criatividade dos arquite-
tos em atuação em São Paulo ao enfrentar os dilemas de projetar uma arquitetura
de qualidade e adequada ao momento de sua concepção, atendendo às necessi-
dades próprias dos seus promotores, inclusive de representação, aos condicionan-
tes legais e financeiros, mas comprometida com uma visão cultural da produção
arquitetônica.
PORTUGAL e BRASIL
Do Modernismo ao Moderno
89
90
Vila Serra do Navio, 1955.
ECLETISMO E MODERNISMO
NA ARQUITETURA DE OSWALDO
ARTHUR BRATKE
Ecletismo e modernismo:
etapas de um processo
As relações entre a produção arquitetônica do ecletismo e do modernismo entendi-
das, hoje, como mais próximas do que uma suposta ruptura pretendida pelas van-
guardas, têm instigado muitas investigações que têm contribuído para uma melhor
compreensão de ambos os movimentos. A dificuldade em estabelecer o fim de um
e o começo do outro aponta para uma imbricada interpenetração dos princípios da
arquitetura eclética na arquitetura moderna.
A pesquisa de Peter Collins publicada, em 1970, com o título de Changing Ideals
of Modern Architecture, com base em textos publicados em meados do século
19, especialmente nas revistas The Builder e Revue Générale de l’Architecture,
aponta que, já naquele momento, muitos deles, geralmente de historiadores e crí-
ticos de arquitetura, criticavam o apego da maioria dos arquitetos aos estilos do
passado e clamavam por uma nova arquitetura, que se livrasse da subserviência
à cópia e recuperasse sua vitalidade progressiva. Por exemplo, a Revue Générale
de l’Architecture, em 1849, publicou um desenho alegórico mostrando Minerva, a
deusa das artes, montada em uma locomotiva chamada Progresso, com o subtí-
tulo: Respeito ao Passado, Liberdade no Presente e Fé no Futuro (COLLINS, 1998,
p. 135). Essa leitura de Collins não só deslocou a reivindicação por uma ruptura
com os estilos do passado creditada às vanguardas do início do século 20 para
91
meio século antes, como sugere que a arquitetura moderna é uma etapa de um
processo mais amplo, cujo fim não tem como prever.
A publicação de 2008 de Anthony Vidler – Histories of the immediate present.
Inventing architectural modernism, apresenta uma nova leitura com base em outros
documentos, como os textos de Emil Kaufmann analisados no capítulo Neoclassical
Modernism, que desde a década de 1920, estabelece a diferença entre o clássico e
o classicismo, hoje conhecido como neoclassicismo, e recupera as ideias de Kant
sobre a autonomia da vontade como premissa fundamental da liberdade burguesa.
O seu artigo – Von Ledoux to le Corbusier faz uma leitura pioneira sobre o ecletismo
do século 19. A partir dos estudos sobre Ledoux, Kaufmann associa a divisão do
projeto em funcionalidade e expressão formal, com a mudança da unidade barroca
para o sistema pavilhonar do século 19, que constituiu, segundo ele, um indicador
do princípio de isolamento que se equiparava à emergência da consciência indivi-
dual moderna (Apud VIDLER,2008, p. 17).
Processo e autonomia são conceitos pertinentes para a exploração desses
movimentos e de suas interelações, especialmente no contexto brasileiro, sendo
a trajetória do arquiteto Oswaldo Arthur Bratke um campo bastante profícuo. Se a
busca dessa autonomia, na interpretação de Vidler, provocou nas vanguardas do
início do século 20 a ruptura com o passado, no contexto das Américas pode ser
interpretada, frente à delicada conjuntura europeia deflagrada pela primeira guerra
mundial, como a ruptura com a supremacia cultural das metrópoles europeias,
provocando uma introspecção em suas próprias raízes que resultou, nos países
americanos, no movimento neocolonial, mais uma referência no leque dos estilos
históricos, tendo cada país o seu matiz. No Brasil, o movimento neocolonial teve
como principal referência o barroco do ciclo do ouro, especialmente a produção
das Minas Gerais e cumpriu uma etapa fundamental no processo de elaboração da
arquitetura moderna.
1
Sobre o curso de arquitetura na Escola Politécnica ver FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli ensino e profissão em São
Paulo. São Paulo: FFLCH, 1996.
2
Sobre o arquiteto ver LEMOS, Carlos. O Escritório Técnico Ramos de Azevedo. e CARVALHO, Cristina Wolff de. Ramos
de Azevedo.
A contribuição da arquitetura
de Oswaldo Arthur Bratke
Formado engenheiro-arquiteto na Escola de Engenheria Mackenzie, em 1931,
Bratke foi, a seu tempo, um dos profissionais mais ativos da cidade de São Paulo,
tendo projetado entre os anos de 1930 e 1960, mais de 1500 projetos dos quais
90% executados, cuja arquitetura se distinguiu pelo apego que sempre manteve às
questões construtivas. Para Bratke, a construção da forma exigia o maior respeito
pelos processos do fazer e pelos materiais nela comprometidos e implicados.
A predominância dos programas residenciais entre seus projetos, se por um
lado, impôs uma escala as suas experimentações, por outro, possibilitou-lhe um
diversificado leque de inovações. A burguesia paulistana consolidada na primeira
metade do século 20, apesar de sua origem rural, mostrou-se ávida pelos novos
padrões socio-culturais, que incluía uma dinâmica experiência urbana.
A partir de 1942, com a morte de seu sócio, Bratke fechou sua construtora e
dedicou-se exclusivamente ao projeto. Até o final dos anos 1940, havia projetado
mais de 450 casas, edifícios de escritórios, apartamentos, indústrias nos quais
foi experimentando materiais, técnicas e formas, aproximando-se cada vez mais
de uma linguagem moderna. É compreensível que nos edifícios comerciais e nas
indústrias a introdução de uma relação harmônica entre os princípios racionalistas
e funcionalistas e a sua composição plástica tenha oferecido menos resistência do
que nas residências.
As suas próprias casas são marcos importantes de sua trajetória. A primeira
casa que fez, em 1947, para ele mesmo à rua Avanhandava foi uma primeira sín-
tese das questões enfrentadas até então. Uma planta compacta, cujo programa se
distribui em um bloco único, com o espaço interno dividido apenas por armários
e com alvenaria somente nas paredes que separam o interior do exterior. Com o
avanço das experiências, seja de materiais, técnicas ou formais, Bratke foi aban-
donando o repertório dos estilos históricos e criando sua própria interpretação dos
princípios modernos, cuja maturidade foi alcançada no projeto da sua segunda
residência (1950) no Morumbi.
Ao decompor a complexidade do problema arquitetônico, Bratke conseguiu
desenvolver uma linguagem própria, baseada na estrutura independente, na modu-
lação espacial e no jogo de planos e superfícies, em estreita relação com a movi-
mentação do sol e da luz, da articulação sensível dos vários espaços, da economia
do sistema construtivo, da integração do interior e exterior, de modo a conseguir a
maior eficiência funcional com o menor custo possível. O racionalismo como pro-
cesso de pensamento se converteu, assim, em forma moderna, que Bratke passou
a explorar sem qualquer hesitação, criando praticamente uma tipologia, tal como
definida por Argan (1992, p. 37), não como um modelo, mas
Seu orgulho pelo simples, sua sensibilidade às formas puras, o desejo de cla-
reza e de modéstia, foram os meios pelos quais atingiu seu modelo de ordem for-
mal e funcional. Para Bratke, nenhuma forma existia em si, a priori, mas era obtida
como ação do construir, juntar e compor. A obsessiva busca da qualidade arquite-
tônica, a qual não dissociava projeto e execução, levou-o a criar um processo de
trabalho, no qual só reconhecia a autoria do projeto se o mesmo tivesse a quali-
dade construtiva por ele imposta.
Se o arquiteto só pode conceber e construir aquilo que é, de fato, capaz de
desenhar, descrever ou moldar com suas próprias mãos, a passagem dos cantei-
ros de obras para o escritório de projeto significou uma mudança radical no seu
processo de trabalho. A presença menos constante nos canteiros e a decorrente
ênfase maior à expressão do desenho colocaram-no frente à delicada relação entre
a técnica de desenho e a concepção arquitetônica, exigindo uma maior precisão no
dimensionamento dos projetos e um maior domínio teórico de complexos porme-
nores técnicos de modo a conseguir expô-los claramente no papel. Esse desafio
fez com que desenvolvesse um método de projeto, no qual o detalhamento era pro-
tagonista e que se tornou uma referência para sucessivas gerações de arquitetos.
A sua casa no Morumbi, outro marco na sua trajetória, inseriu-o definitivamente
no rol dos arquitetos modernos, sem contudo cerceá-lo de novas experimenta-
ções. Paralelamente às casas, a diversificação de programas que passou a enfren-
tar: edifícios residenciais e comerciais, indústrias, clubes, hospitais, escolas, fóruns
e até mesmo uma cidade inteira, lhe proporcionou constantes desafios que foi res-
pondendo com novas experimentações, porém segundo a mesma tipologia.
Na casa Joly (1953) Bratke explorou a máxima potencialidade do novo repertório
formal, lançando quatro módulos estruturais, dos quais apenas um abriga o pro-
grama, enquanto os outros três apenas emolduram a paisagem.
O empreendimento para a exploração das jazidas de manganês na região da
Serra do Navio, no território do Amapá, em meados dos anos 1950, foi das expe-
riências modernas mais bem sucedidas do Brasil, não só como atividade econô-
mica, mas, sobretudo no âmbito do urbanismo, da arquitetura e do design. Aqui, o
arquiteto assumiu a responsabilidade não apenas pelo projeto, mas pela sua viabili-
zação e execução, tomando todas as decisões necessárias para o cumprimento de
prazos e de custos. Os desafios desse empreendimento foram muitos: a magnitude
da escala, as condições geográficas, o prazo, a disponibilidade de materiais e de
mão de obra. O isolamento característico e problemático das company towns, no
caso dos Núcleos Habitacionais do Amapá assumiu uma dimensão ainda maior. As
jazidas de manganês estavam localizadas praticamente sob a linha do Equador, em
plena selva amazônica, portanto, sob um clima equatorial com alto índice pluvio-
métrico, e totalmente isoladas de qualquer centro urbano.
O empreendimento envolveu o projeto e construção de: acampamentos pro-
visórios nas frentes de trabalho; um porto fluvial para navios de grande calado,
dotado de um píer fixo e um píer flutuante; uma estrada de ferro com bitola de 1,435
m, na extensão de 194 km; instalações industriais destinadas à extração, movimen-
tação e beneficiamento do minério; além das duas vilas residenciais, destinadas
aos empregados da Companhia e suas respectivas famílias. A complexidade desse
projeto frente à precariedade das condições da área era uma experiência sem pre-
cedentes, que tinha a pretensão de criar um núcleo urbano que superasse as impo-
sições sociais contratuais e sobrevivesse ao período de mineração, tornando-se
uma cidade aberta com ótima qualidade de vida.
As duas vilas fariam parte do município de Macapá e foram concebidas segundo
o mesmo partido arquitetônico e urbanístico, de modo a configurar uma identidade
que permitisse relacioná-las enquanto complementares de um projeto maior, ainda
que totalmente autônomas. Planejadas segundo a ideia do core, tal como havia
sido discutido no VIII CIAM realizado em 1951 em Hoddesdon – um centro cívico
que estimulasse a convivência e a sociabilidade, a Vila Amazonas foi implantada no
estuário do rio Amazonas a 20 km ao sul da cidade de Macapá, e a Vila Serra do
Navio a 200km, no topo de duas elevações suaves, separadas por um pequeno vale,
próximo à estação ferroviária e distante do rio para prevenir possíveis inundações.
O centro cívico das Vilas foi conformado pelos edifícios administrativos, comer-
ciais, pela escola, Igreja e por um clube social, que se comunicavam por meio de
passadiços cobertos que serviam de anteparos tanto para as chuvas como para o
3
Apud RIBEIRO, op. cit. p. 41.
4
FARAH, 1993 p. 18 e 19.
5
ARGAN, 1984, p. 18.
109
em 1937; e do famoso Ministério da Educação e Saúde Pública do Rio de Janeiro
(actual Palácio Gustavo Capanema), conjunto dominado pela famosa “torre” de
gabinetes, em vidro e “brise-soleils”, erigido entre 1936 e 1945, por equipa projec-
tista de Lúcio Costa, integrando Óscar Niemeyer.
Nesses exactos anos aconteceu igualmente um encontro/desencontro entre
duas figuras-chave (talvez, num certo sentido, “AS” figuras-chave), respectiva-
mente, das arquitecturas portuguesa e brasileira: Raul Lino, paladino da visão cul-
turalista e tradicionalista da arquitectura lusitana, e Lúcio Costa, decano da visão
moderna, urbanista, patrimonial e igualmente com base cultural sólida, do Brasil.
Os factos mais marcantes do seu diálogo, ocorrido aquando da viagem do
arquitecto português ao Brasil (em 1935), estão narrados (pela evidente impressão
que produziram no autor) numa obra de Lino, “Auriverde Jornada”, publicado preci-
samente em Julho de 1937. Livro que se comenta, a título de remate destas nossas
considerações e análises.
A ruptura do Modernismo
Como se disse, a década de 1930 teve em Portugal uma intensa fase de construção
de equipamentos, dentro da Arquitectura Modernista; a moda do Art Deco, e do
1
in Fernandes, José Manuel, Arquitectos Segurado, JMF e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2011 (citando en-
trevista de Jorge Segurado a Fátima Ferreira e Pedro Vieira de Almeida, in Jornal dos Arquitectos n.76, Abril de 1989), p. 26
Jorge Segurado, em Lisboa, com projecto de 1934, sendo o seu edifício administra-
tivo de escritórios principal concluído em 1937, e os restantes erigidos até 1941-48;
e o Ministério da Educação e Saúde, de Niemeyer, Costa e sua equipa, iniciado em
1935-36, pronto em 1945-47, no Rio de Janeiro.
Vejamos pois, em contraste comparativo, os dois conjuntos, já que perfeita-
mente contemporâneos, ambos frutos de políticas centrais de “Obras Públicas” e
com programas de algum modo semelhantes (escritórios de instituições dos res-
pectivos Estados, associados a equipamentos de uso público e / ou industrial), e
com inserções em conjuntos edificados formando quarteirão, de tipo polifuncional:
– escala de conjunto arquitectónico monumentalizada, mas com desenvolvi-
mento “em extensão” no caso da CM, e “em elevação” no caso do MES;
– linguagem arquitectónica inovadora, com volumetrias geométricas abstractas
e puristas, ainda proto-moderna no caso da CM, mas já francamente moderna
no MES;
– dimensões e altimetria procurando uma expressão “horizontal” no caso
da CM (com três a quatro pisos no máximo) versus uma expressão afirmativa e
monumental de tipo “vertical” no caso do MES (com torre de muitos pisos);
Quais ”actores” nos bastidores destes eventos, Raul Lino e Lúcio Costa
encontraram-se, de novo no nosso ano-chave de 1936 (de facto em 1935, com
relato publicado em 1937), durante um almoço de arquitectos no Rio, estabelecendo
de forma natural, coloquial, as normas do debate cultural que era então o “possível”
entre os mais reflectidos e cultos dos arquitectos de ambas as nações.
O encontro, a todos os títulos histórico, ficaria registado na escrita de Lino,
a quem terá quiçá impressionado mais do que a Costa... Veja-se como a forma-
ção, compreensão e visão culturalista de ambos (Costa, de percurso parisiense e
francófono; Lino, de caminhos anglo-germânicos) não impede Costa de defender
o avançar para a reinvenção das formas e espaços arquitectónicos, “modernos
embora de inspiração tradicional”– enquanto para Lino essa base pessoal funcio-
nou sempre como uma “prisão”, uma limitação que o impediu de sair conceptual-
mente dos sistemas de formas regionalistas e viradas para o passado.
Observemos, nos testemunhos de Lino (in Auriverde Jornada, 1937), que cita
Costa, e ao mesmo tempo defende os seus pontos de vista próprios, – como as
visões de ambos são semelhantes aparentemente, mas quase opostas, no seu
fundo essencial e pragmático, o que irá ditar os respectivos futuros e obras:
“|José Cortez, no “Jockey Club”|... me apresentou dois colegas brasileiros,
Ângelo Bruhns e Lúcio Costa. Ambos distintos profissionais com brilhante obra
realizada, interessava-me particularmente tomar contacto com este último artista
cuja personalidade goza do merecido prestígio de um verdadeiro mentor dos jovens
arquitectos do Brasil, havendo-se distinguido na sua fulgurante carreira principal-
mente por uma inesperada evolução do eclectismo tradicionalista – exercido
com notável talento – para um estrito abstencionismo de feição internacio-
nal. Estava cheio de curiosidade por conhecer Lúcio Costa, cujo procedimento
para alguns era tido por acto de apostasia, para outros como lógica transfiguração
dos seus ideais” (p. 90-91).
Diz-lhe Costa: “... apesar do ambiente confuso, o novo ritmo vai, aos poucos,
marcando e acentuando a sua cadência, e o velho espírito transfigurado descobre
na mesma Natureza e nas verdades de sempre, encanto imprevisto, desconhe-
1
A primeira versão deste texto data de 2006. Uma versão mais recente foi publicada em Milheiro, Ana Vaz, Nos Trópicos,
sem Le Corbusier, Lisboa: Relógio d’Água, 2012.
2
A cronologia não está completamente fechada. 1925 é a data “convencionada” do projecto do Capitólio Music Hall (Cris-
tino da Silva, Lisboa), considerado o primeiro edifício português de ruptura com a configuração beaux-arts, cujos desenhos
conhecidos são na verdade de 1929. 1974 é a data da Revolução de Abril. A historiadora Ana Tostões sugere o período de
1920 a 1970 (Tostões, 2004: 11-12). Prefere-se aqui manter o alinhamento anterior seguido por Sergio Fernandez (Fernan-
dez, 1988). Como panorama de referência, admitem-se três ciclos modernos: o primeiro de abertura, com início entre 1925
e 1930; o segundo após 1948 (I Congresso Nacional de Arquitectura); o terceiro que arranca com o Inquérito à Arquitectura
Popular, depois de 1955, fixando-se definitivamente em 1961.
3
“Um tio meu, que foi governador-geral de Moçambique durante a Segunda Guerra Mundial – José Tristão de Bettencourt
–, numa das suas viagens à África do Sul, viu o livro numa livraria, comprou-o e mandou-mo” (Pereira, 10/02/2006).
133
condição igualmente sentida em Portugal. Surge no círculo profissional, muito pro-
vavelmente, através do jovem arquitecto Nuno Teotónio Pereira (n. 1922), que dele
tem conhecimento cerca de 19454. Rapidamente adquire notoriedade entre os por-
tugueses. Fernando Távora (1923-2005) evoca o seu sentido instrumental ao sugerir
que é usado como “cartilha” (Fernandez, 1985: 57). Já Maurício de Vasconcellos
(1925-1977), o único português com experiência profissional no Brasil, no início da
década de 1950, onde estagia com João Vilanova Artigas e com Sérgio Bernardes
(Vasconcellos, 1962: 6), evoca-o como “o nosso segundo Vignola” (Fernandez,
1985: 57). A circunstância vivida por Vasconcellos é bastante invulgar, já que neste
período a maioria dos portugueses não se desloca ao Brasil, como esclarece o
testemunho posterior de Nuno Teotónio Pereira. O facto reforça a centralidade de
Brazil Builds: “Como as viagens não eram fáceis, era a primeira vez que os arqui-
tectos portugueses tomavam conhecimento do riquíssimo acervo do Brasil colonial
e imperial e ao mesmo tempo do surto extraordinário que conhecera o Movimento
Moderno neste país” (Pereira, 1996: 303).
Quando visita o Brasil em 1980, Teotónio Pereira percorre as “cidades históricas”
e privilegia procura das marcas coloniais, em detrimento da arquitectura moderna.
Nos seus vários depoimentos sobre Brazil Builds e a influência da moderna produ-
ção brasileira, destaca com frequência a paridade com que são tratadas a arquitec-
tura do passado e a arquitectura do seu tempo. Esta particularidade terá surpreen-
dido bastante os portugueses.
Normalmente, os livros e revistas que nós recebíamos com arquitectura moderna
não ligavam nenhuma às arquitecturas do passado. Eram realidades opostas. Brazil
Builds desmente isso: na mesma publicação, na mesma exposição do MoMA, apa-
recem essas duas realidades. Isso foi de facto uma surpresa e mostrou que o que é
importante em arquitectura é a autenticidade, a consonância com o tempo (Pereira,
10/02/2006).
4
Tradução e publicação de “A Humanização da Arquitectura”, texto de Alvar Aalto de 1940, dez anos depois da sua versão
original, ou de “O Ovo de Peixe e o Salmão”, que Rogers publicara na italiana Domus [“Arquitectura”, n.º 46, Fevereiro
1953, pp. 15-16].
5
Surgem, sem grande desenvolvimento, pelo menos em três comunicações: Simões, João; Rodrigues, Francisco de Cas-
tro. “Do Ensino da Profissão”, I Congresso Nacional de Arquitectura. Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos, 1948,
p. 94; Martins, Luís José Oliveira. “A Arquitectura de Hoje e as suas relações com o Urbanismo”, Ibidem, p. 170; Simões,
João; Rodrigues, Francisco Castro; Lobo, José Huertas. “O Alojamento Colectivo”, Ibidem, p. 241.
6
Nota introdutória que acompanha Levi, Rino. A Arquitectura é uma Arte e uma Ciência. “Arquitectura”, n.º 36, No-
vembro 1950, p. 2. Informa-se ser este artigo parte de uma conferência pronunciada no Museu de Arte de São Paulo. A
publicação e a data originais não são indicadas.
7
Niemeyer, Oscar. Bloco de habitações na praia da Gávea – Brasil. “Arquitectura”, n.º 41, Março 1952, pp. 8-9.
Não deixa de ser muito agradável para nós [...], verificar o notável pro-
gresso que tem registado a arquitectura brasileira, nos últimos anos. Duas
revistas da especialidade – talvez as melhores que hoje se publicam em
todo o mundo – Architecture d’Aujourd’hui e Forum, dedicaram, quase em
simultâneo, uma na Europa e outra nos E.U., volumosos números às obras
dos arquitectos brasileiros, considerados dos melhores do nosso tempo (“A
Arquitectura Brasileira”, 1948: 23).
8
Nota introdutória que acompanha Levi, Rino. A Arquitectura é uma Arte e uma Ciência. “Arquitectura”, n.º 36, Novembro
1950, p. 2. Informa-se ser este artigo parte de uma conferência pronunciada no Museu de Arte de São Paulo. A publicação
e a data originais não são indicadas.
9
Costa, Lucio. O Arquitecto e a Sociedade Contemporânea. “Arquitectura”, n.º 47, Junho 1953, pp. 7-10/19. [Publicado antes
da existência da revista Módulo, onde será editado no n.º 2, Agosto 1955].
Os editores da Arquitectura reconhecem o seu papel pioneiro “como orientador na formação dos jovens arquitectos; como
trabalhador criterioso e incansável no esclarecimento das autoridades responsáveis, [e na] preparação do clima que permitiu
o desabrochar da arquitectura moderna no Brasil” (nota introdutória, 1953: 7). Nesse texto, preparado para a UNESCO, Lucio
Costa esclarece a posição brasileira dentro da família moderna que faz iniciar nos anos de 1950: “Não obstante, porém,
a índole universal, já se podem observar manifestações «nativas» de arquitectura moderna, de feição sensivelmente dife-
renciada embora obedientes aos mesmos princípios básicos e utilizando materiais e técnicas comuns” (Costa, 1953: 19).
Propõe-se aqui um moderno “localizado”, que os portugueses só manusearão, colectivamente, após o trabalho de inven-
tariação desencadeado pelo inquérito. A recepção efectiva destas palavras em Portugal, em 1953, é hoje difícil de avaliar.
10
Niemeyer, Oscar. Bloco de habitações na praia da Gávea – Brasil. “Arquitectura”, n.º 41, Março 1952, pp. 8-9.
11
Souza, Wladimir Alves de. Arquitectura Contemporânea no Brasil. “Arquitectura”, n.º 53, Novembro/Dezembro 1954, pp.
18-22.
12
Tainha, Manuel. Cidades Universitárias – Realizações e tendências actuais. “Arquitectura”, n.os 55-56, Janeiro/Fevereiro
1956, p. 20.
arquitectura tão acolhedora, tão manifestamente moderna sem ser agressiva; com
aquelas curvas que não faziam parte do vocabulário europeu” (Pereira, 10/02/2006).
Reconhece-se neste depoimento recente – que confirma o conteúdo de uma carta
endereçada a Niemeyer e datada de 1947 – uma sensibilidade aberta à explora-
ção do ideário moderno dentro de um espírito “local”. O trabalho de Niemeyer na
capital mineira é interpretado pelos portugueses como apostando nessa direcção:
“A vossa obra é um estímulo poderoso para a nossa própria luta em prol de uma
arquitectura nacional digna e genuína” (Pereira, 16/02/1947).
Teotónio, então empenhado no projecto da Igreja Paroquial de Águas
(Penamacor, 1949-1957), na Beira Interior, procura contrariar o figurino estilístico
oficial através de uma arquitectura “também do tempo” capaz de conjugar formas
modernas e materiais antigos. Trata-se de uma pesquisa muito particular no seio
da cultura portuguesa do final de 1940, ainda que estrategicamente apontada por
outros arquitectos: “Fiquei apaixonado por aquelas construções da Beira Baixa de
alvenaria com os cunhais de pedra. Queria demonstrar que aquela arquitectura
não tinha nada a ver com o «português suave» imposto pelo Estado Novo” (Pereira,
10/02/2006).
No centro do debate estão as diversas interpretações do conceito de “tradição”
e uma questão determinante: como integrar a tradição numa visão progressista
e moderna, superando a conotação regressiva associada à sua utilização pelo
Estado Novo? Durante o congresso, o arquitecto Mário Bonito (1921-1976), partidá-
rio da visão mais internacionalista, sustentara que a “sobrevivência das técnicas e
das formas do passado [eram] empecilhos do Progresso e da harmonia” (Bonito in
SNA, 1948: 51). Esta leitura, todavia, não serve a via escolhida pelos portugueses a
Referências às imagens que ilustram “Lugar da Tradição” de Victor Palla. “Arquitectura”, n.º 28, Janeiro 1949, p. 4.
13
14
Kirchman, Milton Frederick. Lógica ou Estética? [“Progressive Architecture”, Agosto 1947]. “Arquitectura”, n.º 27,
Outubro/Dezembro 1948, p. 19.
15
“Esta linguagem será viva, poética, expressiva e variada” (Bonito in SNA, 1948: 47).
16
Lúcio Costa, Lucas Mayerhofer, Paulo Thedim Barreto, São Miguel das Missões, 1937 (Wisnik, 2001: 16-17/60).
17
Menção honrosa atribuída na II Bienal de São Paulo, 1953, ao projecto do conjunto habitacional Bairro das Estacas de
Ruy Jervis d’Athouguia (1917-2006) e Formosinho Sanchez, em Lisboa (1948-1954). Cf. Gropius, José Luis Sert, Alvar
Aalto, Ernesto Nathan Rogers, Oswaldo Bratke, Reidy, Lourival Gomes Machado. Acta do Júri Internacional de Premiação
da IIª Exposição da IIª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. “Arquitectura”, n.º 52, Fevereiro/Março 1954, p. 12.
Depoimentos
MENEZES, Manuel Alzina de. Entrevistado por Ana Vaz Milheiro. Lisboa, 1 de
Agosto de 2001.
PEREIRA, Nuno Teotónio. Entrevistado por Ana Vaz Milheiro. Lisboa, 2 de Novembro
de 2003 e 10 de Fevereiro de 2006.
SANCHEZ, Sebastião Formozinho. Entrevistado por Ana Vaz Milheiro e Pedro
Pacheco. Almada, Setembro de 2002.
SIZA, Álvaro. Entrevistado por Ana Vaz Milheiro e Jorge Figueira. Porto, Janeiro de
2006.
BRASIL e ÁFRICA
155
156
Vila de Moçâmedes, gravura de 1865, AHU, foto JMF.
MIGRAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS PARA
A ÁFRICA PORTUGUESA NO SÉCULO
XIX E A CRIAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS
URBANOS E SOCIAIS EM ANGOLA:
ALGARVIOS, MADEIRENSES
E BRASILEIROS NO SUL (MOÇÂMEDES,
SÁ DA BANDEIRA E CUNENE)
Introdução
A análise da circulação de pessoas entre Angola e o Brasil é marcada historica-
mente por importantes momentos e períodos, dos quais se destaca a ida massiva
de angolanos – e outros africanos – escravos para o continente sul-americano. Das
primeiras influências brasileiras propriamente ditas em Angola, ou seja, em sen-
tido reverso, destaca-se a chegada de colonos (‘brasileiros’) ao sul no século XIX1.
Desde essa altura, muitas outras evoluções se deram relativamente aos contactos,
bi-direccionais, sendo de referir, no caso da arquitectura, por exemplo, as influên-
cias brasileiras levadas para Angola pelo Arquitecto Castro Rodrigues2.
1
“Francisco Castro Rodrigues (n. 1920), às vésperas de embarcar definitivamente para território angolano onde trabalhará
até aos anos 80 (…) levará na sua bagagem, muita informação sobre a arquitectura brasileira”. Foi “um dos responsáveis
pelo Núcleo de Estudos Angolano-Brasileiros” tendo organizado uma “exposição de arquitectura brasileira [Arquitectura
Moderna Brasileira] no Lobito somente em 1961 (Ana Vaz Milheiro & Jorge Fernandes Ferreira (s.d.) “A Joyous Architectu-
re: as exposições de arquitectura moderna brasileira em Portugal e a sua influência nos territórios português e africano”,
seminário disponível em http://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/018.pdf).
2
Outras referências apontam o ano de chegada 1851 e o contingente de 125 portugueses (Manuel de Mendonça Torres,
O Distrito de Moçâmedes nas fases de origem e da primeira organização (1485-1859), 1950.
157
Este artigo foca-se no período das primeiras deslocações de populações para
o sul de Angola com impactos registados em termos de influência social e cultural,
como ponto de partida para a discussão sobre a multiplicidade de influências que
resultam dos contactos transatlânticos. O texto concentra-se em três pontos: a) na
descrição destes movimentos, b) na análise de influências que trouxeram ao nível
dos modos de vida, da política ou da cultura em geral, c) numa reflexão tendo em
conta o caso específico da cultura Quimbare e da arte funerária. Este último ponto
apoia a conclusão de que este aspecto, como muitos outros, embora aparente-
mente menos significativo que as grandes diásporas africanas para o continente
americano, ilustra os intercâmbios vários de que é feita a história e a cultura dos
povos, sendo não necessariamente unidireccionais.
3
Segundo cópia extraída dos “Annaes do Municipio de Mossamedes” (1856), transcrita nas notas ao prefácio do ensaio
“Em Torno de Alguns Túmulos Afro-Cristãos” de Gilberto Freyre (1959).
4
Na antiga casa da família Mendonça Torres, actualmente transformada em Museu Etnográfico, encontra-se, entre outras
curiosidades, uma mesa de jacarandá vinda de Pernambuco com a família Torres.
5
Computados, em 1961, em cerca de cinco mil (p. 9).
“Brasileiros”
6
“Com os indígenas que os primeiros colonos trouxeram e com outros que sucessivamente se foram trazendo de pontos
distantes, formou-se a população de quimbares de Mossâmedes” (Felner 1940:143).
Conceição Neto refere especificamente no caso das estreitas relações e das ligações
históricas entre Angola e Brasil as afinidades ao nível da “alimentação, do vestuário,
das variações fonéticas e sintácticas da língua portuguesa e as modalidades de explo-
ração económica” que eram evidentes sobretudo nas cidades (NETO, 1997: 330).
Perante as várias influências que ao longo dos anos se foram amalgamando na
região – incluindo brasileiros, portugueses da colónia incluindo madeirenses, algar-
vios e africanos originários de várias partes de Angola, pode considerar-se que o
surgimento de uma nova categoria sociocultural – os Quimbares – representa mais
do que aquilo que Clarence-Smith interpretou como sendo “aqueles [africanos] que
vivem com os brancos” (CLARENCE-SMITH, 1976:223).
Mas são várias as formulações para definir os Quimbares (ou Mbali). Por um lado,
na senda do que Clarence-Smith já havia indicado, como simplesmente escravos
7
“Objectos em pedra individuais, i.e., monolíticos, nos quais eram efectuadas esculturas em relevo ou textos”.
8
“Com os indígenas que os primeiros colonos trouxeram e com outros que sucessivamente se foram trazendo de pontos
distantes, formou-se a população de quimbares de Mossâmedes” (Felner 1940:143).
9
“Objectos em pedra individuais, i.e., monolíticos, nos quais eram efectuadas esculturas em relevo ou textos”.
1
O Arquitecto brasileiro faleceu a 6 de Dezembro de 2012, escassos dias antes de completar 105 anos de idade
(15/12/1908 – 06/12/2012). É este, assim, outro motivo de homenagem, aqui singularmente associada àquela que sempre
devo a Mestre Viana.
171
as reciprocidades profissionais2 mantidas por um nome cimeiro da Arquitectura
portuguesa do século XX, plasmadas no profundo entendimento do sentido e do
futuro da Arquitectura brasileira3, a par do conhecimento que ele possuía do seu
passado, e que tão profundamente amava.
É muito curioso que tenha sido o relacionamento com o Brasil que nele fez arrei-
gar uma particular motivação pela defesa do património português4, na sequência
da sua participação na organização da Exposição de Arquitectura e Arte Portuguesa
(400 anos do Rio de Janeiro, 1965), altura a partir da qual passa a desenvolver acti-
vidades conjuntamente com os amigos do outro lado do Atlântico5. Viana de Lima
transporta para o Sul do equador o entendimento e preservação de raízes culturais
e arquitectónicas lusitanas e incorpora, no retorno, uma ressonância tropicalista na
sua indefectível coerência como actor do Movimento Moderno Internacional.
No que toca à obra erguida na cidade do Funchal, o melhor a fazer, por respeito
para com a memória dos dois arquitectos citados, é deixarmos de lado uma muito
costumeira auto-menorização nacional: não vamos insistir no tema da presumida
autoria atribuível a Niemeyer depois de, repetidamente, já depois da morte de Viana
de Lima, por escrito e de viva voz circulando na net, o arquitecto brasileiro ter
esclarecido que a sua contribuição para o empreendimento fora escassa e muito
inicial. Outrossim interessaria reflectir sobre o empenho de um profissional em pre-
servar o essencial de uma ideia esquissada, ainda que livremente a pudesse ter
postergado: ao impor a consumação do projecto cujo contrato ele firmara para
concretizar aquela arquitectura, Viana fez vingar uma atitude de perseverança e
de respeito, numa postura ética irrepreensível que a si se impunha, e que também
sabia exigir para consigo. Foi por isso que, no discurso de inauguração do seu
trabalho, referiu diversas vezes que o movera a perseguição da ideia anotada pelo
seu Amigo Óscar.
Claro que nessa postura não existe nenhuma menos-valia: ao lado dos valores
da Amizade e do Saber Partilhado, ele pôde assim trazer para o Funchal o seu tri-
buto ao Brasil que admirava, deixando na arquitectura que traçou a linha curva que
2
O relacionamento profissional entre Viana de Lima e Óscar Niemeyer começou num muito alargado projecto desenvolvido
em parceria no ano de 1966, o qual não chegou a ser viabilizado. Tratava-se de um vasto e inovador empreendimento
turístico a ser implantado no Algarve (Pena Furada).
3
As personalidades brasileiras que mais proximamente tocaram Viana de Lima, para além de Niemeyer, foram Augusto da
Silva Telles, Lúcio Costa e Rodrigo Melo Franco de Andrade. De comum com o arquitecto português, em todos existe uma
forte militância pela Arquitectura Moderna.
4
E não deixa, em si mesma, de ser curiosa a interacção global que resultou na criação levada a cabo na cidade do Funchal,
compreendendo a decisão de investimento de um empresário natural de Goa e radicado em Moçambique, lembrando-se
de contactar Niemeyer, em Paris, o qual, por sua vez, vem a delegar a elaboração do projecto a um colega da cidade do
Porto, Viana de Lima, que assinará o contrato com o seu cliente.
5
Viana de Lima é designado, como Consultor da UNESCO, para intervir em Ouro Preto (1968) e, posteriormente, em
múltiplos estudos sobre centros históricos brasileiros: São Luís e Alcântara, em 1972, no Estado do Maranhão e, em 1977,
também sob a chancela da UNESCO, quatro cidades localizadas no Nordeste do Brasil (São Cristóvão e Laranjeiras no
Estado de Sergipe e Penedo e Marechal Deodoro no Estado de Alagoas), alargando-se finalmente a Olinda e Recife. Essa
actividade vai posteriormente ser complementada pela sua participação em projectos da Fundação Calouste Gulbenkian,
quer no Brasil (Forte do Príncipe da Beira, 1983), quer noutras paragens de África e da Ásia.
6
José Manuel Fernandes, no ensaio “Da Sé ao Casino” (in Monumentos nº 19, Setembro de 2003, pp. 95-99), caracterizou
a excelência da leitura urbana alcançada na evolução da cidade do Funchal, sublinhando as consequências resultantes
da obra de Viana de Lima.
TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 173
DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ
O empreendimento é também, no panorama português de há mais de 40 anos,
um momento inusitado de exercício de invulgares projectos complementares da
construção, no domínio das engenharias, do design e mobiliário e do paisagismo,
sabiamente coordenados pela visão de conjunto do arquitecto Viana de Lima.
Eis aqui (e ainda tão próximo de tudo e de todos), um caso específico de uma
relação frutuosa entre Portugal e o Brasil com uma ilha atlântica de permeio. Tudo
isso só possível pela prática assumida de uma interacção que no Outro busca um
pouco da sua identidade própria, Viana de Lima deixando contaminar-se por uma
expressão mais distendida, conquanto solene…
TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 175
DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ
Figura 3 – Igreja de S. Paulo de Macau, China e Fortaleza de Anhatomirim.
7
As origens culturais de componentes tradicionais dos grupos sociais são o resultado da valorização de uma competência
antropológica baseada na memória (que implica a repetição), numa espécie de relação orgânica com a razão de ser e a
evolução da própria sociedade: o ritmo e a lógica conservadora inscrevem os grupos sociais numa percepção cíclica do
Tempo. Tal concepção exprime-se igualmente no uso do próprio vocabulário: na Índia, à semelhança de outros nomes
em diversas culturas de variados continentes, o termo “Kal” serve de igual modo para designar ontem e amanhã. Essa
palavra designa sobretudo «o outro dia», o dia que não se vive, o espaço-tempo distinto do presente, sendo este a única
realidade vivida.
TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 177
DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ
Figura 5 – Impérios do Espírito Santo dos Açores.
mir com novo conteúdo, como nos “Impérios” do Espírito Santo dos Açores8. Esta
tipologia parece encontrar a sua razão de ser na experiência do reconhecimento
do Oriente como suporte de uma nova estética, validada pelas comunidades do
arquipélago, albergando características religiosas sincréticas, em resultado de uma
cultura insular muito enraizada.
Ao deixarmos seduzir-nos pela exuberância das formas e das cores da compo-
sição das fachadas dos “Impérios” perpassa em pano de fundo o esplendor formal
de certas arquitecturas, como no pequeno templo de Panjora. Mas outros exem-
plos poderiam ser arrolados9, em geral ostentando o estranho barroquismo duma
arquitectura que nos oferece uma teoria arquitectónica de grande heterodoxia, não
somente pelo seu exotismo, mas sobretudo pelo sentido muito depurado do seu
traçado erudito. É o que acontece com a Igreja do Santo Rosário de Dhaka, evo-
luindo e transmutando-se noutras razões e saberes, os quais se identificam como
aquisições que fazem parte de percursos partilhados pelos povos envolvidos.
8
O culto do Espírito Santo pratica-se em Portugal desde o século XIII, nunca tendo tido no continente europeu nenhum
edifício específico para suporte físico. A partir dos séculos XVII / XVIII assiste-se ao estabelecimento duma tipologia do
sagrado exclusiva das ilhas portuguesas do Norte do Atlântico (com excepções únicas em Santa Catarina / Brasil e, mais
recentemente, nos Estados Unidos da América, mas sem respeitar os mesmos fundamentos arquitectónicos). Tratando-
-se de uma arquitectura de “torna-viagem”, a explicação para os “Impérios” radica mesmo na viagem inaugural de Vasco
da Gama à Índia, uma vez que o seu regimento estatuía a regra (mantida pelos séculos seguintes) de reagrupamento
obrigatório dos navios na Ilha Terceira para a partida conjunta em direcção a Lisboa.
9
Como aquele em que estivemos pessoalmente envolvidos no processo de reabilitação, concluído em finais de 2000, em
Tejgaon, hoje um bairro central da imensa capital que é Dhaka: a igreja agostiniana do Santo Rosário (apesar dos acrescen-
tos feitos pelos ingleses), é um dos testemunhos incontornáveis da presença portuguesa no Bangladesh, podendo datar-se
o corpo do altar-mor dos primeiros tempos da feitoria portuguesa (c.1580).
10
A matéria foi objecto da dissertação de Mestrado em Relações Interculturais do autor (“Para uma Explicação da Arqui-
tectura dos Impérios do Espírito Santo”, Universidade Aberta, 2002). Os “Impérios” são representativos duma expressão
estilística nova, com elementos compositivos sempre originais, transportando um cosmopolitismo orientalista. Trata-se
de uma arquitectura que nunca existiu no Portugal da velha Europa, se bem que o culto do Espírito Santo já aí estivesse
enraizado, bem antes da descoberta das ilhas virgens dos Açores.
11
Mas existe uma excepção nessa exclusividade geográfica dos Impérios: se bem que o culto se tenha expandido antes
do descobrimento dos Açores, tendo-se passado do território continental português para o meio do Atlântico e, posterior-
mente, para muitos locais dos diversos continentes onde se geraram comunidades portuguesas, em nenhum outro local se
concebeu a construção de “impérios” senão no Brasil, no estado sulista de Santa Catarina, em virtude de uma colonização
massiva de açorianos no século XVIII.
12
Vejam-se os casos de Sabará e a excepcionalidade da fortaleza de Anhatomirim. Na primeira situação, o interior da
pequena igreja de Nossa Senhora do Ó é um diferente e requintado esplendor do barroco mineiro, carregado de referências
de representações e de técnicas decorativas importadas da China. No segundo caso, a “chinoiserie” (correntemente dito
“chinesices” na historiografia da arte brasileira) do portal de acesso ao interior da Fortaleza de S. José, na pequena ilha da
baía de Florianópolis, indica-nos a aplicação de uma alteração rara na ortodoxia dos elementos próprios da arquitectura
militar, geralmente muito ciosa de uma estabilidade dos referentes da sua representação.
TRÊS MOMENTOS NA “ESTÉTICA DE TORNA-VIAGEM”: DE UMA HOMENAGEM A VIANA DE LIMA AOS IMPÉRIOS | 179
DO ESPÍRITO SANTO, PASSANDO PELA ARQUITECTURA DOS AFRO-BRASILEIROS RETORNADOS AO GOLFO DA GUINÉ
180
Padaria Saipal, em Lourenço Marques - Maputo, por Pancho Guedes, foto JMF.
capítulo 4
ÁFRICA e PORTUGAL
181
Edifício tipo e fachada com “cobogós”. Bairro das Estacas, Lisboa, 1949 -55. Arqs. Formosinho Sanchez
182
e Ruy d’Athoughia. Foto: Joana França, agosto 2012.
ARQUITETURA MODERNA:
DO BRASIL A PORTUGAL E ÁFRICA
– ALGUMA INVESTIGAÇÃO E LEITURA
Daniela Alcântara
Arquiteta, Doutoranda da FAUTL
Introdução
Para iniciar o percurso, é preciso voltar aos anos 1940 e à exposição no Museu de
Arte Moderna de Nova York em 1942, que origina o livro-catálogo “Brazil Builds:
Architecture New and Old: 1652-1942”. A exposição abre em 1943, e o catálogo
com textos de Philip Goodwin e fotos de Kidder-Smith vai se tornar o grande veí-
culo de difusão da arquitetura moderna brasileira1 a partir dos anos 1940, também
em Portugal.
São dois os aspectos que ganham maior evidência no livro-catálogo: por um
lado, o estabelecimento de um elo entre passado e presente, entre tradição e
arquitetura moderna, vinculação que pode ser creditada a Lúcio Costa, que acom-
panhou a visita ao Brasil do curador americano. Outro aspecto evidente é o uso
que os brasileiros fazem do brise-soleil e dos pilotis. É possível que tenham sido
esses atributos os que mais chamaram a atenção de Goodwin. Este ressalta que
as razões da adesão brasileira à linha corbusiana devem-se especialmente às con-
dições técnicas e climáticas existentes no país (GOODWIN, 1943).
Muito embora a influência corbusiana seja determinante, é preciso considerar,
relativizando a sua importância, outros aspectos que contribuíram para a formação
1
A arquitetura moderna brasileira poderá ser eventualmente referida nesse artigo como “AMB”, e referir-se-á ao conjunto
de obras produzidas por arquitetos brasileiros entre os anos de 1930 até à construção de Brasília.
183
da consciência moderna na arquitetura brasileira, como a passagem de Frank Lloyd
Wright pelo Rio de Janeiro. Wright esteve no Brasil para participar do júri interna-
cional do concurso para o Farol de Colombo, a ser construído em Santo Domingo,
República Dominicana. Desembarcou em meio à crise aberta na ENBA 2.
Enquanto esteve no Rio, além do apoio aos estudantes e do julgamento do
concurso, Wright concedeu uma entrevista e realizou três conferências. Os jornais
registram a insistência de Wright na adaptação da arquitetura ao ambiente e ao
clima (IRIGOYEN, 2002). Como possível efeito dessa passagem, pode -se enumerar
a realização, na Associação de Artistas Brasileiros, a mesma onde Wright fez uma
conferência, do I Salão de Arquitetura Tropical, em 1933. Wright figurava como pre-
sidente de honra do Salão, cujo catálogo abrigava projetos brasileiros mas também
textos de Gropius e recomendações dos CIAM, o que revela o caráter exploratório
da arquitetura brasileira nesse momento, até à plena adesão a Le Corbusier mais
tarde.
Maurício de Vasconcellos
Chama a atenção o fato de que uma das obras da moderna arquitetura portuguesa,
em que a feição brasileira é reiteradamente apontada, seja de autoria de um arqui-
teto português que colaborou com um arquiteto brasileiro não aderente de imediato
às teses de Le Corbusier e à arquitetura moderna que figurava em Brazil Builds.
Estes arquitetos são Maurício de Vasconcellos e Vilanova Artigas, respectiva-
mente, e a obra em questão é a Casa Rangel de Lima, construída em Lisboa no
início dos anos 1950. Vasconcellos e Artigas são lembrados antes pela sua identi-
ficação com a obra de Wright.
Vilanova Artigas, formado em 1937 pela Escola Politécnica da Universidade de
São Paulo, tornar-se-á a figura central e inspiradora da Escola Paulista a partir dos
anos 50, alternativamente à Escola Carioca. Provavelmente graças à sua aborda-
gem técnica e prática dos anos iniciais de trabalho e a uma moral construtiva que o
acompanhará sempre, Artigas interessa-se pela arquitetura de Wright.
A partir de 1944, Artigas vem a confrontar-se com os limites que poderá ter
a arquitetura de Wright. Para não incorrer na incoerência entre forma e técnica
nas soluções pragmáticas da construção, vai desenvolver os planos de telhados
2
Escola Nacional de Belas Artes. Trata-se da demissão de Lúcio Costa em razão da crise que foi gerada entre os professo-
res tradicionalistas e os jovens professores (e estudantes) “futuristas”. Sua demissão e a dos jovens professores provocou
a greve dos estudantes. Wright é conduzido para o centro da crise pelos alunos, de quem toma partido, incitando-os à
defesa das posições modernas.
“Sou formado por Lisboa. Mal formado por Lisboa... Realmente a minha
formação não foi totalmente feita aqui. (...) mas talvez se deva mais ao tempo
que estive a trabalhar no Brasil. (...) Aliás, como exemplo disso, pode-se
referir o meu primeiro trabalho – uma casa na Avenida do Aeroporto – que
denota uma procedência brasileira”5.
3
Diz Artigas: “Com as obras da Pampulha, Oscar Niemeyer organiza a síntese necessária ao encaminhamento da arquite-
tura brasileira na direção segura que a caracteriza.” in Artigas, J. B. (2004). Ob. cit. p. 140.
4
Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4. O pai de Vasconcellos era natural de Belém do Pará, Brasil, e a mãe da Madeira.
Vasconcellos esteve também no atelier de Sérgio Bernardes.
5
Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4.
6
Conforme o Dicionário Aurélio e Bruand (1981), a palavra “cobogó” resulta dos sobrenomes dos primeiros responsáveis
pela sua fabricação no Recife, o comerciante alemão Ernest (Bo)eckmann; seu sócio português Amadeu Oliveira (Co)imbra;
e o engenheiro brasileiro Antônio de (Gó)is. Os elementos vazados que permitem a passagem de luz e de ar e a visão do
interior para o exterior, preservando a intimidade de quem observa, também estão presentes na arquitetura tradicional
árabe, ibérica e conseqüentemente também na arquitetura colonial brasileira, embora em tipologias e materiais bastante
diferentes dos cobogós brasileiros usados desde dos anos 1930.
7
“Surpresa no aeroporto: moradia pelo arquitecto Maurício de Vasconcellos.” é o título do artigo publicado na Revista A
Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação (nº 3-4, Abril 1953), pp. 39-59. Curiosamente, essa casa é o único registro
de arquitetura moderna desenhado por Lúcio Costa na sua viagem a Portugal em 1953.
mas também o é o desejo de manifestação plástica. Como diz Lúcio Costa8, “Toda
arquitetura digna do nome é a um tempo orgânica e racional, acrescente-se, no
caso brasileiro, certa tendência ao idealismo formal, e uma eventual gratuidade,
peculiar ao nosso modo de ser” (IRIGOYEN, 2002, p. 104).
Uma “eventual gratuidade”, que resvala num formalismo, poderá ser identificada
na forma como características da AMB são apropriadas no projeto desta casa e em
várias outras obras em Portugal. Quanto à questão da proteção solar, por exemplo,
o arquiteto Nuno Teotónio Pereira afirma em entrevista9, que os cobogós (no Brasil)
ou grelhas (em Portugal) seriam mais uma questão formal, uma apropriação ima-
gética da AMB, considerando que os imperativos do clima em Portugal continental
não são os mesmos das regiões tropicais. Com o deslocamento dos arquitetos
portugueses para África, essa questão ganha outra importância.
8
Cf. Irigoyen, A. (2002), trata-se do Inquérito Nacional de Arquitetura promovido pelo Jornal do Brasil em 1961. A resposta
em questão foi dada à pergunta: “Que pensa das correntes organicista e racionalista como tendências de arquitetura con-
temporânea? Quais suas relações com a realidade brasileira?“.
9
O arquiteto é autor do texto “A influência em Portugal da arquitectura moderna brasileira”, publicado em Pereira, N. T.
(1996). A Entrevista gravada foi concedida à autora em 08/10/2012, na residência do arquiteto.
10
Nascido em Lisboa, 1920. Poderá ser referido eventualmente pelas iniciais FCR.
11
Denominação dada por José Manuel Fernandes, a partir do título do seu livro Geração Africana: Arquitectura e cidades
em Angola e Moçambique, 1925-1975. Lisboa: Livros Horizonte, 2002.
12
Neste intervalo, Castro Rodrigues finaliza
finaliza o curso e parte para Angola, mas está também diretamente envolvido na pro-
dução da revista. Rodrigues, F. C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit. p. 209.
13
Rodrigues, F. C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit. p. 226.
14
Revista Arquitectura no. 53, Nov/Dez 1954.
15
“Gabinete de Urbanização do Ultramar”, até 1951 chamado “Gabinete de Urbanização Colonial”.
16
Face à divergência de datas, optou-se por utilizar as adotadas no “Esboço de Cronologia” que consta em Rodrigues, F.
C., & Dionísio, E. (2009). Ob. Cit.
17
Em relação a este aspecto, Ana Vaz Milheiro aponta o impacto da obra “Café”, de Portinari, vista no Pavilhão do Brasil
na Exposição do Mundo Português de 1940, sobre Castro Rodrigues e outros artistas do neo-realismo português. Este
impacto foi vivamente recordado por FCR em entrevista concedida à autora em 03/04/2012 (gravada), nas Azenhas do Mar.
Referida por FCR na entrevista realizada em 03/04/2012, essa qualidade está para ele associada aos jardins de Burle
18
outras cidades angolanas, “no que pode ser encarado como um ‘exercício político’”
(MILHEIRO & FERREIRA, 2009). O embaixador fica sensibilizado com a exposição e
oferece-lhe uma bolsa de estudos no Brasil, mas a PIDE impede Castro Rodrigues de ir.
19
Organização dos Arquitectos Modernos, organização que, à semelhança da ICAT, reunia o grupo de jovens arquitetos
modernos na cidade do Porto.
20
Oiticica, D. (1991). Delfim Amorim arquiteto (2a. ed.). Recife: IAB-PE. p. 22.
21
O projeto em questão não tem data definida, mas foi publicado em Portugal em 1953, mesmo ano em que é publicada
a Casa Rangel de Lima. Sabe-se no entanto que o projeto de Amorim é anterior à sua ida definitiva para o Brasil, onde
fixou-se em Recife, na véspera do Natal de 1951.
22
Na verdade um esquema inventado pelo estudante de arquitetura Augusto Reinaldo, falecido precocemente.
23
Vasconcellos, M. (1972). Ob. Cit. p. 4.
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Entrada lateral da Estação Central da Beira, Moçambique (EM, 2009).
NO CAMINHO DE UMA ARQUITETURA
RACIONAL: INFRAESTRUTURAS
MODERNAS EM MOÇAMBIQUE
Elisiário Miranda1
Professor da UM
1
Assistente da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, em processo de conclusão de doutoramento com o título
Liberdade & Ortodoxia: Infraestruturas de arquitetura moderna em Moçambique, 1951-1964, sob a orientação dos Profes-
sores Doutores Vincenzo Riso e João Vieira Caldas, e investigador integrado no projeto de I&D da Fundação para a Ciência
e a Tecnologia com a referência PTDC/AUR-AQI/103229/2008 e o título EWV_Visões cruzadas dos mundos: arquitectura
moderna na África Lusófona (1943-1974) vista através da experiência Brasileira.
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Figura 1 – Cine -Teatro São Jorge, Beira, Moçambique (EM, 2009).
Figura 2 – Traseiras da Padaria Saipal, Maputo, Moçambique (EM, 2009).
1953, tinha depois percorrido diversas cidades do país: Porto, Ponta Delgada,
Braga, Coimbra, Funchal, Lourenço Marques – cidade onde foi exposta em Março
de 1955 por iniciativa do Núcleo de Arte –, e Luanda, onde só chegará em 1959.
Duas das questões levantadas pelo inquérito têm particular relevo para o conhe-
cimento dos principais temas que informavam a arquitetura local, perante a emer-
gência dos novos modelos e princípios arquitetónicos do Movimento Moderno
internacional:
esteve previsto para Julho de 1955. Após alguns contratempos, que atrasaram a
execução do edifício, foi benzido em 18 de Agosto de 1957 pelo primeiro Bispo da
Beira, D. Sebastião Soares de Resende. A cerimónia de inauguração foi integrada
nas comemorações do quinquagésimo aniversário da cidade e contou com a pre-
sença do encarregado do Governo-Geral, Dr. Juvenal de Carvalho.
As instalações da delegação do Banco Nacional Ultramarino em Chimoio,
antiga Vila Pery, compreendiam a agência bancária, os cinco apartamentos duplex
dos funcionários, as duas residências geminadas da administração e gerência, e
as seis habitações dos serviçais indígenas. O conjunto foi desenhado por Paulo
de Melo Sampaio através de um anteprojeto, realizado em 1955, e um projeto final
datado de 1956. A abertura das propostas ao concurso público de construção teve
lugar em 31 de Outubro de 1956, tendo a agência entrado em funcionamento em
Maio de 1959.
O Paço Episcopal de Quelimane, residência dos Bispos da Diocese e Secretaria
Episcopal, foi desenhado por João Garizo do Carmo. O projeto do edifício deu
entrada na Câmara Municipal de Quelimane em Maio de 1956, tendo as obras sido
adjudicadas em meados do mesmo ano. Um novo projeto para a capela, que subs-
tituiu integralmente o projeto original, foi desenhado por Garizo do Carmo em 1957.
Com base no projeto deste conjunto, adaptando-o a uma distinta situação topográ-
fica, foi ainda edificado durante a década de 60 o Paço Episcopal de Pemba, antiga
cidade de Porto Amélia.
O conjunto Montalto em Chimoio, antiga Vila Pery, foi projetado por Paulo de
Melo Sampaio em 1957. Compreende o prédio Montalto, edifício de comércio e
governo central na antiga província de Moçambique, foi instituída com este nome
por um diploma legislativo do governo provincial de 28 de Agosto de 1961. A sua
construção foi financiada por verbas inscritas no capítulo Instrução e Saúde do
II Plano de Fomento. O edifício foi projetado nos Serviços de Obras Públicas de
Lourenço Marques por Fernando Mesquita, na continuidade tipológica dos anterio-
res projetos por ele desenhados para as escolas técnicas elementares de Nampula,
Quelimane e Inhambane. O primeiro desenho que dela conhecemos está datado de
30 de Janeiro de 1960, embora a maioria dos elementos do seu processo tenham
sido desenhados entre Fevereiro e Abril do ano seguinte. A construção da escola
iniciou-se em 1962 tendo o edifício sido inaugurado em 7 de Fevereiro de 1963,
numa cerimónia presidida pelo contra-almirante Sarmento Rodrigues, governador-
-geral da antiga província. O programa desta escola técnica elementar de frequên-
cia mista, grau de ensino correspondente ao antigo ciclo preparatório, era o de
maior dimensão e complexidade de todos os programas de escolas técnicas cons-
truídas no período em estudo: foi dimensionado para uma população escolar de
1000 alunos, lotação que seria rapidamente ultrapassada nos anos seguintes à sua
abertura.
O edifício da antiga dependência do Banco Nacional Ultramarino em Quelimane
foi projetado por Francisco de Castro. O primeiro esboceto foi realizado em 1960,
novos esbocetos e um anteprojeto em 1962, projeto em 1964 e mais elementos de
pormenorização construtiva ao longo de 1970.
Conferência de encerramento
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Tommaso Bezzi. Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
UNIDADE E DIVERSIDADE
NAS MANIFESTAÇÕES NO UNIVERSO
LUSO-BRASILEIRO: ECLETISMO
NO FIM DO SÉCULO EM SÃO PAULO
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Figura 1 – Sucessão de "neos". Rua 15 de Novembro, São Paulo.
Figura 4 – Luigi Pucci. Chácara de Carvalho, SP. Ricardo Severo. Res. Numa de Oliveira, São Paulo.
intensa atividade como construtor, a qual desempenhava com muito rigor. Em 1882
foi encarregado da realização do projeto para o Monumento da Independência do
Brasil, às margens do riacho Ipiranga. Os trabalhos foram iniciados em 1885 e con-
cluídos em 1889. Nessa obra pode ser observada uma rigorosa manifestação do
neoclassicismo em todos seus pormenores.
O projeto foi executado por Luigi Pucci, o qual revelou surpreendente eficiên-
cia e espírito de iniciativa nessa tarefa. Segundo A. Salmoni e E. Debenedetti, em
Arquitetura Italiana em São Paulo, Pucci chegou a instalar “uma máquina a vapor
para a tração dos vagões que transportavam o material, diretamente, da estação
ferroviária ‘Inglesa’ para o canteiro da obra”. (“Inglesa” refere-se à forma como era
popularmente conhecida a São Paulo Railway Company).
Figura 7 – Victor Dubugras. Residências art-nouveau. Vila Uchôa e Res. Horácio Sabino, São Paulo.
a ser aberta uma movimentada avenida, a Avenida 23 de Maio. No local havia uma
nascente de água tida como de boa qualidade.
Castro foi adquirindo aos poucos material em demolições para erigir seu pala-
cete. A essa época, estava em demolição no centro da cidade o Teatro São José,
tornado obsoleto face à inauguração do monumental Teatro Municipal.
Monumentais colunas, cariátides, atlantes, esculturas em bronze e mais com-
ponentes encontráveis em uma casa de espetáculo foram resgatados e paulatina-
mente compondo a nova obra. Valendo-se da nascente de água, Castro construiu
uma piscina. Foi a primeira da cidade em residência particular e alimentada por
água corrente!
O conjunto ficou conhecido como “Casa Surrealista”, e contava com vários
níveis valendo-se do desnível do terreno. Aos poucos o imaginativo proprietário
foi erigindo pequenas casas à volta de seu palácio dispondo-as organicamente no
terreno sem geometrismos. Havia até uma “piazzeta”, onde se reunia a comunidade
local, constituída por famílias cujos chefes trabalhavam na região central da cidade.
Predominavam os de origem italiana, os “oriundi”, capazes de promover animadas
reuniões em feriados religiosos.
Como a “Casa Surrealista” ou “Vila Itotoró”, como é conhecida, outras unida-
des populares foram surgindo na cidade e constituindo exemplares da “architettura
senza architetto”, devida a mestres de obras dotados de imaginação.