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NAMER, Gérard. Les instituitions de mémoire culturelle. In : __________ . Mémoire et societé. Paris:
Méridiens Klincksieck, 1987.
LIVRO III
O estudo da construção social da memória nos conduziu à idéia de que esta construção no indivíduo
era um fenômeno que ia de uma totalização de lembranças em um modelo – a formalização duma
prática social habitual de diálogos – até a atualização dessa memória em uma prática particular.
A questão que se propõe aqui é estudar as dificuldades e facilidades permanentes pelas quais deve
passar esta memória para ir do virtual ao reconstruído, à atualização. Se os lugares de memória,
causas ocasionais duma rememoração individual e coletiva são inumeráveis, os lugares que não são
feitos pela memória individual, social ou coletiva são em número reduzido; eles caracterizam um
gênero de memória social dado: estudaremos aqui as instituições de memória cultural. Procuramos
destacar um modelo de instituição de memória para as bibliotecas: depois abriremos uma perspectiva
de generalização comparando este modelo de biblioteca ao de museu.
Alain Resnais fez um dia um filme sobre a Biblioteca Nacional* que se chamava Toda a Memória do
Mundo. É uma metáfora; tem o valor de hipótese. Inspirados em nossa leitura de Halbwachs nos
referiremos ao espírito de “como se”: estudamos a Biblioteca na medida em que ela organiza de
maneira regulamentada uma prática particular de uma memória cultural, aquela que implica a leitura.
Tudo se passa “como se”os armazéns contivessem os livros como uma memória do mundo. Tudo se
passa como se a massa de livros disponíveis fosse uma memória virtual que atualizaria pela leitura na
sala de trabalho.
É uma memória social resultado de uma acumulação e de uma interação de memórias coletivas, a
memória de todos os pontos de vista culturais, remetendo a grupos ou a correntes de pensamento, a
memória de todas as línguas como acesso às culturas, políticas de conservação, de compra e de acesso
que se sucederam e às vezes se coordenaram no tempo. De todas estas memórias, de todos estes
livros, de todos estes grupos, os diferentes poderes (principesco, real, nacional, municipal fizeram,
graças a um corpo de bibliotecários, uma memória social virtual: uma sociedade que funciona como
uma memória cuja totalidade não foi elaborada ou desejada por nenhum grupo em particular. Esta
instituição de memória já é uma resposta aos problemas da Memória Coletiva visto que a instituição só
permite uma memória virtual porque ela unifica sem cessar as memórias administrativas e as
memórias eruditas.
Esta unificação tem lugar, a princípio, pelos fichários, catálogos, classificações; ela tem lugar, em
seguida, pelas obrigações sociais de memória cultural e erudita que suscita a sociedade global e da
qual a biblioteca é um instrumento permanente. É nesse contexto que a biblioteca organiza um
encontro possível permanente entre a totalização de memórias coletivas em uma memória social
virtual contida nos livros e a obrigação ou necessidade social de atualizar esta memória que
impulsiona os leitores a vir procurar os livros.
Capítulo I
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A biblioteca de 1987 (quando ela é antiga) resulta de uma superposição de vontades coletivas, de
instituições, de memórias. A história das bibliotecas nos esclarece então que a biblioteca atual resulta,
em qualquer caso, de todas as formas históricas pelas quais se tem organizado as bibliotecas,
acumulado os saberes e as culturas.
A primeira forma de memória que se pode assinalar nas bibliotecas assírias (3º. Milênio A.C.) é
uma memória do saber econômico (referente à propriedade, aos impostos) uma memória de
decisões políticas, uma memória de técnicas, uma memória científica (astronômica), por baixo
todo um saber concernente à adivinhação. Esta biblioteca composta de tabletes cuneiformes é,
portanto, uma memória cumulativa dos saberes das elites do poder, saber que eles guardam para
eles mesmos ou para seus descendentes com fins de uma utilização futura. Desde o início,
portanto, nada distingue a biblioteca de um lugar de arquivos oficiais reservados ao poder.
Essa acumulação da memória-saber criará uma legitimação deste mesmo saber e suscitar um
discurso e legitimação erudita unificador das memórias: a história.
Por um lado, esta biblioteca do Príncipe servirá de meio para legitimar a memória oral e a tradição
de uma política. Por outro, a acumulação mesmo das decisões guardadas em memória escrita, os
tratados, as conquistas, etc. torna possível e necessária a aparição de uma história como discurso
contínuo que pode ligar entre si as memórias, seja sob uma forma lógica, seja sob uma forma
apologética unificando as lembranças por uma avaliação.
Quando o poder se desinteressa de seu saber monopolizado, as coleções são o objeto de uma
memória erudita. O fenômeno é de todos os tempos: quando aparece, em 1810, a Bibliografia da
França, ela permite um controle político sobre a produção e se assegurar que a coisa impressa
tenha sido recebida por depósito legal. Quando o controle policial ou político toma outras formas,
a Bibliografia da França torna-se um instrumento científico fornecendo um quadro da edição em
um determinado período.
A biblioteca não é apenas uma acumulação de memórias eruditas, ela é sobretudo, uma
acumulação de memórias culturais. Desde a Renascença, o colecionador, um Médicis, por exemplo,
fazia de sua biblioteca não somente um lugar para onde vêm os manuscritos gregos, mas um lugar
onde se guardava a produção da cultura da corte neo-platônica que o político encorajou.
As paredes inteiras de coleções de livros formam um conjunto coerente para um jogo de citações e
de comentários: esse jogo formará durante os séculos o essencial da memória cultural religiosa: a
citação remete aos comentários precedentes ao mesmo tempo que ao livro sagrado de referência.
Cada livro que rende homenagem em seu prefácio a uma potência política e religiosa, presta
homenagem no corpo do texto a uma autoridade cultural (Aristóteles, Marx, etc.). Durante muito
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Dos dicionários de citações às teses, manuais de referência, a memória cultural livresca tomou
portanto duas formas opostas: a repetição do modelo por seu sentido ou sua forma; a renovação
do modelo pela reconstrução análoga, mas diferente, depois de um trabalho de destruição.
Bem entendido, o concerto é uma prática de memória cultural que tem lugar graças às bibliotecas,
mas não nas bibliotecas: o mesmo que se diria de todas as instituições, organizações de práticas
que se apóiam nas bibliotecas.
Mas, sem sair da biblioteca, se acumulam em seus armazéns, memórias de símbolos, memórias de
sensibilidades de cada sociedade, mas também memórias do mundo inteiro, porque a biblioteca é
memória lembrança das línguas tanto como dos sistemas de difusão dos quais ela foi a sede. Era
um todo, na Idade Média, um conservatório de uma língua, o latim, de uma cultura ligada à esta
língua (tanto a literatura cristã quanto a literatura pagã) e um centro de difusão mundial para a
cópia do manuscrito que lá se fazia circular. É a princípio o latim depois, a partir do séc. XVII, a
língua nacional que assegura uma unidade às numerosas memórias coletivas; se a memória social
assim constituída é uma memória - mensagem, é à língua, à cópia e à difusão que ela o deve. Desde
o princípio, desde a época do monge e do manuscrito, a prática da memória virtual é portanto um
circuito que vai do manuscrito a um outro manuscrito. Esta reiteração guarda, de sua origem, um
caráter de sagrado da leitura e da sua memória. O monge beneditino tem a obrigação de pedir
emprestado ao menos um livro por ano, lê-lo inteiramente e dar conta dele no momento em que
ele o devolve. Temos lá um bom exemplo de um modelo de prática de discurso formalizado em
memória: o monge memoriza aquilo que diz no seu foro íntimo com um tom dado a uma
assembléia de monges.
À memória de um saber legitimado e da cultura, à memória das línguas, à memória da difusão pela
cópia, se agrega, a partir da Renascença, uma memória de colecionadores, que vem a ser em
nossos dias uma memória do patrimônio nacional.
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Da Renascença até o séc. XIX, as bibliotecas são as fundações privadas de mecenas, de príncipes, de
reis. Esses colecionadores colocam em seus livros um “ex-libris” para que seja fixada para sempre
a memória da origem do livro, da coleção e do colecionador. Os livros possuem encadernações
suntuosas com ornamentos, com as armas do proprietário e da biblioteca. A coleção de livros e
manuscritos testemunha a riqueza, a posição social e o gosto do mecenas. A partir do séc. XVIII., os
catálogos de venda permitem que a Europa inteira saiba o que possui um colecionador. Mais tarde,
esses catálogos farão a história da posse do livro raro: mnemotécnica de uma coleção que se
dispersa, o catálogo remete às diferentes coleções anteriores. Quando a coleção é doada à
biblioteca pública, a memória do doador é por vezes resguardada pelo ato mesmo de doação
(catálogo especial, sala especial portando o nome do doador e por vezes seu busto, inscrição sobre
a placa de mármore dos doadores, insígnias da biblioteca...).
Não é que uma coleção do início do século XIX sobre o jansenismo possa nos servir hoje de
bibliografia erudita, de toda forma, ela será uma referência do que se passava por essencial do
assunto nesta época.
Esta articulação do saber e da cultura confere prestígio ao Príncipe. Disto é testemunha o primeiro
tratado de biblioteconomia, o de Naudé, utilizado por toda a Europa, e que é ao mesmo tempo
tratado de técnicas de biblioteca, se inspirando na Biblioteca Real (categorização, apresentação,
fichário, funcionamento), e tratado de bibliofilia, dando aos candidatos a colecionadores príncipes
ou mecenas a lista de livros raros, que uma biblioteca digna desse nome deveria possuir. A idéia de
patrimônio que caracteriza as bibliotecas nacionais valoriza a memória do que possui a biblioteca
como uma dupla normatividade. A biblioteca nacional possui tudo o que pertenceu à memória da
nação e os cidadãos devem ler e salvaguardar os livros portadores desta memória.
Era antes a memória do prestígio, codificado em luxo, raridade, curiosidade que caracterizava a
coleção do mecenas. A Biblioteca Real (depois Nacional) ao contrário, ilustrada pelo tratado de
Naudé, é antes de tudo, uma biblioteca erudita. Naudé escreveu: “a biblioteca será aberta a todos
os eruditos, de todas as nações nos dias e horas que serão regulamentados pelos bibliotecários de
sua Majestade. Será organizada com lugares convenientes para ali receber os ditos eruditos e os
colocar em estado de calma para seus estudos com toda comodidade”.
Fora os eruditos, a biblioteca fica aberta ao grande público um dia por semana. A biblioteca
assegura assim desde a origem a articulação entre o poder político e o saber através de um corpo
de funcionários que se transmitem os instrumentos desta memória totalizante: a classificação, os
catálogos, a categorização.
A biblioteca começa a assegurar a unidade dessas coordenações sucessivas a partir do século XVIII.
É o momento em que se constitui um corpo de bibliotecários a serviço do rei e mais tarde do poder
político. Este corpo de administração é encarregado de unificar e de prosseguir na sucessão de
funcionários a coordenação, entre as exigências de uma memória cultural (possuir os livros que lê
e escreve a elite em torno do poder, a sociedade da corte) e as exigências de uma memória erudita
(possuir os livros que procuram os notáveis do conhecimento erudito).
Esse compromisso entre a memória cultural e a memória erudita já se encontra na Idade Média, na
decoração das bibliotecas que servem de código mnemotécnico à categorização dos livros: a
categorização é um instrumento-saber que remete ao sistema de saber, ao instrumento de saber
de seu tempo; o símbolo utilizado para decoração (que nos é trazido por vezes hoje na sala de
leitura) é uma alusão à cultura clássica ou cristã, muitas vezes à mitologia grega.
É sempre esse compromisso que está no trabalho, na própria disposição das bibliotecas, quando se
estuda o mobiliário em sua forma, sua decoração e sua função. O mais ilustre dentre eles, as
prateleiras ao longo das paredes, concilia a classificação e o gosto de mostrar a cultura prestigiosa
do príncipe, sua cumplicidade com a cultura de seu tempo; o terceiro poder do corpo de
bibliotecários agindo em nome do poder político que vai, portanto, constituir a coleção da
biblioteca real em um compromisso permanente entre os livros legitimados pelo sucesso de
público e os livros legitimados pelos notáveis do saber científico.
O problema proposto por Halbwachs da identidade das memórias coletivas com a memória
cultural e da anomia (fraqueza) que nasce da ausência de unificação das memórias e correntes de
pensamentos coletivos traz uma primeira resposta na instituição cultural: as memórias culturais
são selecionadas, guardadas, acumuladas a partir de um regulamento e de funcionários
encarregados de aplicar o regulamento: os bibliotecários.
É a família dos Bignon que vai desempenhar esse papel durante cinco gerações na Biblioteca Real.
A esse acúmulo de memórias coletivas eles dão um tratamento científico, criam uma classificação
por departamento que se imporá à Europa inteira e preparará a idéia mesmo de saber
enciclopédico. É esta prática administrativa que totaliza as memórias coletivas culturais e eruditas
em uma memória social virtual.
Quando existe, o catálogo sistemático por ramo do saber (a história da França na Biblioteca
Nacional) dá uma imagem da categorização dos livros nas estantes.
Este catálogo sistemático é, portanto, um modo de acesso à memória social que é, ele mesmo,
um saber administrativo que pode ter em conta, pela divisão ou adição, de um tema novo de
estudo nesse domínio.
Mas ela é igualmente uma memória seletiva pela sucessão da política de compra, a aceitação de
doações, o depósito legal. A biblioteca é uma instituição de memória, enquanto a sociedade
permite que se recorde, enquanto os poderes políticos, jurídicos, financeiros, etc. dão as
possibilidades jurídicas e financeiras de criar uma acumulação e uma manutenção de livros,
enquanto os poderes eruditos e culturais julgam que essa prática de memória é indispensável
para uma parte da sociedade.
Fora das leis e dos recursos financeiros, dependendo da sociedade global (pode-se aqui
queimar livros, lá esquecê-los retirando-os do fichário), , existe toda uma margem de poder do
corpo de bibliotecários do fato da raridade dos créditos, dos locais, dos lugares de acesso, em
relação a uma demanda de memória que poderia submergi-los.
Desde séculos o pretexto (verdadeiro) do custo do lugar ocupado por cada livro e da
manutenção que ele exige criaram de uma maneira permanente as condições de raridade que
justificam uma seleção do livro, uma escolha do que se guarda, do que se faz saber existir pelo
catálogo, do que se encaderna, do que se microfilma, do que se mantém.
A Biblioteca Nacional, pela lei, é obrigada a guardar um exemplar de todo livro que é impresso
na França: isto é verdadeiro se o corpo de bibliotecários o considera como “essencial”:
dependendo do caso, se elimina a conservação (literatura de estação, literatura pornográfica)
ou bem não se descarta a coleção, ou bem não se conserva todas as edições mesmo se há
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mudanças (por exemplo, a Biblioteca Nacional não possui todas as edições dos dicionários). O
problema se agrava quando se passa dos livros à impressão em geral (brochuras, panfletos,
jornais de empresas, boletins paroquiais...) que não é nem possuído, nem reclamado, nem
categorizado. A decisão da recusa, de agir por causa da raridade é legítima, mas ela é uma
seleção do livro e da memória disponível em função da representação que o corpo de
bibliotecários faz da cultura e do saber, de sua época e das épocas anteriores. À imposição da
raridade se acrescem os filtros culturais dos bibliotecários e a necessidade em que eles se
encontram sempre de conciliar e tornar compatíveis as exigências científicas, as pressões
culturais e as diretivas políticas, administrativas e financeiras. Toda biblioteca, incluindo a
Biblioteca Nacional é assim uma memória social seletiva porque seja o que for que não se
mantém ou não se conserva na biblioteca.
O corpo de bibliotecários assegura a unidade das memórias coletivas fixadas nos livros sob a
forma de memória social ao encontro das vontades de praticar essa memória.
A instituição da qual eles são os guardiães funciona por imposições: eles dirigem os livros e o
leitor em um encontro que eles preparam.
A instituição de memória cultural se apresenta, portanto, como um lugar onde são conciliadas
as múltiplas normatividades de vontade de memória acumuladas no tempo e as
normatividades de necessidades-demandas de memória que chegam hoje dos grupos da
sociedade global para a biblioteca. A biblioteca, instituição de mediação entre as vontades de
memória dos grupos de outrora e as demandas de memória dos grupos de hoje, se apresenta
como a instituição de um diálogo onde a leitura virtual propõe a questão e a memória social
responde. Mediador desse diálogo, o corpo de bibliotecários é guardião do meio de passar da
questão à resposta: o sistema de fichários. Para desempenhar seu papel de memória na
instituição, completar e unificar sem cessar os temas abordados nas suas coleções, o
bibliotecário tem necessidade de ter uma visão do conjunto dos autores e dos assuntos que ele
possui: é a primeira função mnemotécnica dos fichários de autores e por cabeçalhos de
assunto.
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Somente esses fichários lhe permitem dar conta a cada instante das exigências cambiantes das
memórias culturais e das memórias eruditas. (Quando Foucault, entre outros, lança os
princípios da lingüística e os sistemas de classificação, se completam as antigas coleções sobre
esses assuntos). Para o bibliotecário, como para o leitor esses fichários desempenham o papel
de quadro social da memória e do conhecimento. Eles desempenham assim o papel de uma
mnemotécnica: são suscetíveis de tornarem-se uma memória mecânica (no computador): a
chamada corretamente feita a partir de um nome e de um prenome remete o bibliotecário e o
leitor ao conjunto dos livros desse autor que possui a biblioteca e a sua disposição nas
prateleiras. O fichário de autores é o lugar de um trabalho da memória que a erudição e a
memória-saber modificam: atribuição a um autor de livro anônimo, revelação de um
pseudônimo, mudança de atribuição de um livro (assinado por Voltaire e feito pelo cura
Meslier).
O fichário de autores está “em trabalho” não somente pelas exigências eruditas mas também
pelas exigências político-administrativas que querem conservar a coleção de suas brochuras.
O bibliotecário tem um papel de mediador para decodificar a questão do leitor em uma língua
que seja a do fichário de autores, que contém uma memória–resposta mais erudita que a
memória questão do leitor.
Em todos os casos, a memória que constitui o fichário de assuntos é uma memória em trabalho.
O fichário de assuntos exige uma unificação incessante; ele é uma memória social onde se
fundem as múltiplas correntes de pensamento. O bibliotecário sabe interrogar o fichário e
ajuda o leitor a traduzir sua questão objeto de uma língua cotidiana ou de uma língua erudita, a
colocar sua questão ao fichário na língua do fichário; ele desempenha assim o papel de gate
keeper (guardião do portão) da memória dos fichários, condição de acesso à memória virtual
dos livros.
Capítulo II
Um leitor entra na biblioteca porque seu status jurídico, econômico, social e cultural o permite:
ele solicita as fichas, reproduzindo um parte das indicações do fichário-autores, certo número
de livros. Se as obrigações administrativas foram respeitadas por ele, ele obtém esses livros.
Esses livros foram escritos para que os leitores os lessem um dia ou outro. Existe, contida
nessas páginas, uma vontade de que se lembre daquilo que está escrito: existe uma memória-
mensagem, esta memória é virtual: ela se torna atual agora, porque eu leio, escuto o conteúdo e
a forma do que foi escrito. Logo, quando o livro for fechado e retornar ao seu lugar, esta
memória voltará a ser virtual. Existem, em nossa cultura, ecos fracos de uma antiga prática de
memória: os autores, com efeito, citam os livros e os autores desconhecidos que leram. Bem, os
pré-socráticos só nos são conhecidos pelas citações, alusões, até mesmo por colagem. Cada um
sabe que conhecemos de Aristóteles não mais que as notas tomadas por seus alunos em volta
dos discursos que o mestre fazia caminhando: uma boa parte de nossa cultura depende da
forma pela qual eles tomaram as notas, da forma como um autor ou um texto é citado. Ora, a
prática de memória cultural muda de sociedade para sociedade, e aí está, sem dúvida, um
considerável domínio inexplorado, este da sociologia do trabalho intelectual. Esses modelos de
trabalho implicam sem dúvida uma concepção da verdade, do sentido das coisas ligado ao
modo de atingi-la, de construí-la, ou de desenvolvê-la. Vem ao espírito, imediatamente, que as
práticas de memória religiosa, filosófica, técnica, científica, estética são, provavelmente, muito
diferentes tanto em relação ao modo de comunicação da mensagem da memória (imagem,
gesto, sons, palavras) quanto ao seu conteúdo. Existirá, sem dúvida, para um gênero de
lembrança em uma dada sociedade uma prática de memória privilegiada, entre outras. Pelo
intermediário do meio de comunicação, a sociologia da memória toca aqui a sociologia do
conhecimento. A biblioteca foi, portanto, o conservatório do escrito, da memória normativa
por excelência, porque tem por arquétipo a memória do discurso de Deus, a memória da lei do
príncipe, a memória da propriedade, dos contratos. É uma memória dos mapas e planos para a
guerra e a economia do príncipe. Cultura de prestígio do rei, ela irá ao departamento de
estampas, da música, das antigüidades. Será preciso um dia comparar o modelo da memória
coletiva tradicional com as memórias das imagens contemporâneas.
Todavia, nos limitando às bibliotecas, nossas práticas de memórias cognitivas (copiar, resumir,
citar) nos vêm do ensino e de suas tradições. Possuímos muitos livros anotados felizmente ((ai
de mim) para nos dar conta a que ponto mudou a prática da memória livresca. Sabemos que
esta prática pode ser negativa (os livros religiosos nos quais havia, nas entrelinhas, linhas
eréticas, na biblioteca religiosa). Ela pode ser centrada sobre as primeiras páginas de um
sistema: sabemos que Leibniz anotou somente o início de A Ética de Spinoza. Ela pode ser aqui
copiada, mas adiante resumida, autores colocam valor em uma citação ou uma palavra
simbolizando o livro (o Cogito ou a união da alma e do corpo nas notas tomadas sobre
Descartes).
Ela pode ser a medida do progresso do individualismo das críticas feitas à margem ou das
reflexões pessoais provocadas pelos textos. Cópia, resumo, citação, formalização da reflexão
sobre a memória, todas estas práticas de memória são práticas cognitivas; atualizo uma
memória para recuperar um saber, um raciocínio antigo, a partir dos quase nasce minha
própria reflexão.
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Esta prática cognitiva de memória está ligada à minha intenção de atualizar uma memória-
saber. É uma prática individual aparentemente livre, porque minha vizinha pode ler poesias,
sonhar, e não tomar notas; meu vizinho pode sorrir; ele parece se deter na leitura do seu texto
como por prazer. Se mudo de biblioteca e acompanho uma criança, a bibliotecária lerá para ela
um conto. lhe mostrará as imagens: ela o ensinará a recuperar no livro ilustrado os heróis da
“hora do conto”, ele o ensinará uma prática de memória por prazer estético da imagem, por
prazer da espera, da repetição, do já conhecido, do já amado.
Múltiplas são, portanto, as práticas de memória eventualmente para um mesmo tipo de leitor,
em uma mesma biblioteca, se a prática cognitiva está atenta ao sentido da memória, a prática
lúdica, a prática estética de memória é cúmplice com o tom, com o ritmo, com a música, com a
imagem. Uma prática de memória deságua no sonho, outra na criação poética, uma outra, no
riso.
As práticas de memória livrescas são, portanto, inumeráveis? Elas são inumeráveis quanto à
sua finalidade e se nos damos conta do imprevisível objeto mutante da pesquisa. Elas são, ao
contrário, em número restrito, se nos damos conta das duas categorias que isolamos com
Halbwachs, a memória diálogo e a memória vivida.
A Biblioteca Nacional entrega carteiras de entrada somente aos que justificam um trabalho a
fazer que dependa da leitura de determinados livros, só encontrados lá. Na biblioteca de
estudo em geral, não se faz mais do que estudar: o estudante deve mostrar que faz seus
estudos. As condições de entrada nesta Biblioteca Nacional dão o nível supremo de prática de
memória livresca: atualizar uma memória social, é poder compreender-lhe o sentido na
qualidade de memória-mensagem para criar, por sua vez, sob a forma de artigos, livros, cursos,
uma outra memória-mensagem que se articule à primeira pela prática exigida.
Capítulo III
Os templos, desde a mais Alta Antiguidade, têm salas onde são acumulados os tesouros
doados pelos cidadãos, pelos soldados depois da pilhagem, para obter alguma coisa dos
deuses ou lhes agradecer uma vitória. Acumularam-se os tesouros nas igrejas e catedrais.
Antigamente, havia nas menores igrejas ex-votos onde os devotos agradeciam à virgem ou a
um santo do dom do milagre por um objeto fabricado o mais belo possível.
Em nossos dias, por reconhecimento a Paris, à frança, ou pela cultura francesa, os mecenas
legam suas coleções a tal ou qual museu. A vontade de memória mais arcaica sobre a qual o
museu se funda, é a memória da doação e da contra-doação.
O responsável pela conservação dos tesouros dos templos gregos, da igreja de Saint – Denis
ou do museu do Louvre assegura a acumulação de vontade de memória da doação da
Deusa, e da contra-doação do legatário; a deusa a quem se atribui uma doação anterior em
troca da qual é legada a contra-doação pode ser Minerva, a Santa Virgem, ou a Cultura
francesa eterna.
Como a biblioteca de conservação, o museu é uma memória seletiva do mundo, não é como
para os livros primeiramente uma memória-mensagem do sentido a compreender, mas
primeiramente uma memória-mensagem (endereçada ao deus) de uma prática social de
avaliação do sagrado.
O museu assegura a memória de cada objeto, quer dizer, a explicação de sua natureza, sua
forma, de sua origem. O livro nada mais tem que um ex-libris; é menos importante saber
que um livro pertenceu a um general arrendatário, que uma frisa veio do Parthenon. O
lugar de origem do objeto, seu contexto explica sua forma, sua beleza, sua raridade. O livro
era feito para uma biblioteca, o objeto não é feito para um museu; existia antes dele, mas
adquiriu uma existência nova por ele. O livro era em si uma memória-mensagem a um leitor
contemporâneo ou futuro onde quer que esteja, qualquer que seja o lugar de sua prática de
memória. É o museu, ao contrário, que organiza cada objeto e toda a coleção em memória-
mensagem, graças às suas explicações, à sua apresentação, quer dizer, ao novo contexto que
interrogue o objeto e o obrigue a uma resposta. O museu é memória do antigo contexto do
objeto, é certo, mas ele unifica, para o contexto mesmo que cria, em uma memória social os
objetos, expressão de vontades de memória coletiva diferentes. A frisa do Parthenon cessa
de significar e de ser bela pelo Parthenon em si mesmo, e pode ser por reportar-se aos
objetos que a cercam no museu, a iluminação artificial, etc.
É não somente cada objeto, mas é toda a coleção principesca da Renascença que é uma
homenagem a uma concepção estética neo-platônica, homenagem à cultura antiga. Os
visitantes são convidados por deferência ao Príncipe, à partilhar sua avaliação afetiva, a
admirar, sonhar ou imaginar como ele em presença dos “antigos”, das peças gregas
díspares, unidas pelos seus amores e compreensão imaginárias da Antiguidade.
Nesta tradição há toda uma série de memória-mensagens organizada pelo museu, que se torna, então,
memória da afetividade e, em breve, memória da ideologia. É o caso do museu dos Monumentos
franceses que ao fim do século XVIII organiza uma retrospectiva da história da França, com
monumentos mais ou menos autênticos (uma cabeça tomada de Saint Denis; um busto tomado além,
etc.). é uma primeira memória espetáculo onde o que importa é a significação dos objetos ( e não sua
autenticidade), a significação da sucessão de salas: a Idade Média foi trazida ao sub-solo, em uma
sombra simbólica, e se percorre o museu subindo das caminhadas e do tempo da sombra da Idade
Média à luz das últimas salas, saindo ao dia, sobre os tempos e os Campos Elíseos dos heróis.
Porque o museu é legitimado por uma instância política ou por uma instância religiosa, o sentido que
ele dá a admirar é uma verdade. O museu garante a avaliação que propõe. O Museu do jansenismo ou
do protestantismo francês hierarquiza os objetos ligados à verdadeira crença, e os objetos ligados às
superstições, até mesmo às heresias.
A partir do momento no qual a coleção é feita para suscitar à admiração, ao respeito, à afeição de um
público, estamos verdadeiramente em um museu.
O museu atualiza, portanto, primeiramente, uma memória vivida, ou de preferência, tanto como a
biblioteca, a instituição cultural hierarquiza as práticas de memória para o público que vai visitar o
museu; à frente dessas práticas há o prazer estético que domina os outros.
A prática de memória do museu é, antes de tudo, uma prática de memória de espera. Freqüentemente
se vai a um museu, porque está assinalado em um guia verde e azul, porque uma autoridade cultural
(um professor, um amigo do qual se respeita o gosto) o indica como importante por uma coleção ou
uma determinada peça. Uma normatividade de prestígio do quadro é confirmada por uma
mnemotécnica de avaliação social dos museus e das obras; ela é confirmada pelo status cultural, pelo
status social (Bordieu), pelo preço mesmo de seu acesso ( o preço do bilhete, mas sobretudo o que se
pagou à agência de viagem até o museu mexicano).
Essa memória de espera cultural transmitida pela escola ou pela publicidade se transforma em prazer
da repetição (da coincidência da memória espera com aquilo que se vê).
Esta prática do prazer estético pode ultrapassar a vontade de ver para dizer que viu (a Gioconda): a
emoção da conjunção do visto e da espera poder ser rara, causal ou freqüente e ligada a um método de
prazer. Há os encontros inesperados entre o público que anda de sala em sala e o quadro e quem
procura uma jóia insólita, inesperada; encontro quase miraculoso da iluminação de néon do quadro e
de uma disponibilidade fugaz do espectador. A experiência é crucial: não se vai mais ao museu, depois
dessa experiência, como se ia antes: se recupera então a prática criadora da memória que transforma
o sentido sugerido: a admiração afetiva prepara uma prática criadora das memórias: admirar, então,
é descobrir, então, um sentido novo em um quadro.
Uma outra experiência erudita de prática de memória passa pela função de transmitir uma memória-
saber: o prazer estético pode então ser o prazer de compreender a mensagem estética do pintor ou do
escultor. Ele se move então de uma memória saber da autenticidade do objeto, de uma memória-saber
da especificidade da mensagem para reportar a um estado da técnica, da sociedade e da biografia do
autor. Aqui, o museu como instituição de saber é diferente da biblioteca. Certo, a biblioteca está a
serviço do saber, possuindo os livros julgados essenciais pela citação erudita. Todavia, a citação
erudita – a museografia e a história da arte – que se organiza na instituição mesmo do museu é
essencial à instituição: a biblioteca nacional organiza um saber necessário à atribuição de um anônimo
à um autor “oculto”, mas ela não pode garantir a autenticidade de um livro ou de um manuscrito: este
trabalho é responsabilidade do historiador do texto ou do pensador. Ao contrário, a emoção estética
que propõe um museu pode se a emoção da autenticidade. O museu é lugar de memória-saber, porque
o legitima uma obra de arte que a expõe não somente como digna de admiração, mas como autêntica.
O estágio supremo da prática estética é, portanto, um vai e vem entre memória-saber sobre o quadro e
memória-vivida de tal sorte que toda progressão de uma implica em sua progressão da outra.
É o museu que ajuda a esta ascensão da memória-prazer, à memória-criação. Quando ele organiza
exposições, em que reúne suas próprias obras por tema, por época ou em que compara as obras de um
autor com as de outros museus; em que ele muda simplesmente as sucessões de sua obras, ele renova
a memória-saber prazer. Antes da grande exposição Georges de La Tour, quem percebia o gênio do
pintor de um século jansenista, no lugar de ver uma imitação talentosa das técnicas de Caravagio?
Cada exposição é uma vontade de memória ligada à nossa sensibilidade contemporânea para criar
uma nova memória-saber e uma nova memória-prazer. Isto é o que diferencia o museu da biblioteca, é
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a retroação da prática da memória –prazer criadora (esta emoção por La Tour) sobre a acumulação de
vontades de memória (anteriores); depois dessa exposição se pode compreender como se prepara o
fenômeno La Tour e o que se segue.
Ao lado das bibliotecas e dos museus, os monumentos, as exposições universais poderiam ser
estudadas como exemplos de instituições de memória. O monumento exprime uma vontade de
memória que se impõe por suas dimensões, pelo seu ambiente, pelo seu acesso. . pelo seu contraste
(parque, deserto, perspectiva) ele é uma vontade de memória com certeza. Mas, essencialmente, ele
interpela um público possível; sua forma, seu material, sua dimensão, suas baixos relevos, ou suas
inscrições estão para serem admiradas, decifradas, lidas ou meditadas. No monumento coexiste o fato
de que ele teria qualquer coisa a dizer e o fato de que pessoa alguma obriga um público a mais do que
uma consciência de ser convidado a uma prática de memória. O monumento diz: lembre-se, mas não
precisa nem de quê, nem de como.
As instituições de memória podem ser, bem entendido, de uma outra ordem que a memória cultural:
elas podem utilizar a memória cultural para convidar por exemplo à uma prática de memória
econômica; elas podem não durar mais que um tempo e assegurar, todavia, uma acumulação dessas
memórias econômicas pela repetição regular das práticas de memória. É o caso das exposições
universais que se repetem a intervalos regulares e que comparam em uma memória de reiteração
cada exposição universal à precedente. A exposição universal visa a instituir primeiramente uma
memória econômica e técnica da perfeição, mas para fazê-lo, ela utiliza a memória cultural, de tal
forma que, comemoração das letras, das artes, da poesia, do teatro, desde a última exposição, ela
buscasse, graças ao meio da memória cultural, criar uma legitimação de memória da hierarquia
econômica: aqui a prática dominante da memória econômica será a compra, mas essa instituição se
apresenta como uma instituição da cultura e da festividade como do comércio.
A instituição de memória parece ser essencialmente um convite livre à uma memória social
constituída pela acumulação de vontades de memória coletiva. É um convite ao público de hoje como
de amanhã; é um convite a praticar uma memória da sociedade em um lugar social. Essas práticas de
memória são as formas de sociabilidades obrigatórias ou inventadas que, antes de tudo, dependem de
outras formas de sociabilidades da memória existentes na sociedade (as comemorações, por exemplo)
Bem entendido, há sociabilidades profissionais, políticas (de amizades) que podem estar ligadas à
sociabilidade de uma prática de memória: pode-se de dar no encontro do museu ou preparar a lista de
objetos de interesse ou eleição de um professor a proposta de uma mudança atendendo aos leitores
da Biblioteca Nacional.
E as bibliotecas, museus, exposições, são os lugares de práticas de memória onde se convida o público,
é que eles são o mesmo tempo um lugar de acumulação de vontades de memória: vontades de
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memória reais como no museu, na biblioteca, na exposição, mas também das vontades de memória
imaginárias (todas as legendas de interpretação que se em no tempo atribuídas ao monumento).
A instituição de memória organiza, portanto, o reencontro das vontades passadas de criar um dia uma
memória individual social ou coletiva, com as necessidades e desejos atuais sociais ou coletivos de
recuperar essa memória. É esta conjunção que provoca a instituição suscitando certas práticas de
memória, entre outras possíveis. Esse reencontro por um lado atualiza as memórias-mensagens e por
outro permite uma socialização da memória vivida.