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ARTIGOS

APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS:


O QUE A HISTÓRIA DA CIÊNCIA POLÍTICA
AMERICANA TEM PARA NOS CONTAR

João Feres Jr.


City University of New York

behaviorista

PALAVRAS-CHAVE:

I. INTRODUÇÃO de fundadores desse tipo de reflexão. Desde então


uma horda de pensadores sucedeu-os: gregos,
O que a história da Ciência Política americana
romanos, italianos, espanhóis, ingleses, franceses
pode ensinar aos cientistas sociais brasileiros? Essa
etc. Em suma, a invenção do estudo sistemático
é a questão de fundo que orienta este artigo. Como
da política não pode ser atribuída aos americanos.
a maioria das questões de que se ocupam as
O que estes fizeram, de fato, foi criar uma profissão
Ciências Humanas, essa também não tem uma
acadêmica especializada no estudo da política e
resposta simples. Não há “uma” história da Ciência
institucionalmente separada do estudo da História
Política americana, mas de fato várias narrativas
e da Filosofia. Mais tarde essa disciplina se
que diferem de maneira significativa entre si. É
diferenciaria também da Sociologia, da Psicologia
exatamente do embate entre essas versões que
e da Antropologia.
podemos aprender algumas lições esclarecedoras
que talvez nos ajudem a melhor compreender o A institucionalização da Ciência Política
passado e o presente, e a projetar o futuro das americana, na prática, correspondeu à criação de
Ciências Sociais no Brasil, assim como a pensar empregos, cursos, departamentos, programas,
as relações entre Ciências Sociais, democracia e centros de pesquisa, revistas especializadas,
republicanismo em nosso país. associações e linhas de financiamento de pesquisa
sob o mesmo rótulo disciplinar da Ciência Política.
II. ANATOMIA DA PROFISSÃO
Paralelo a esse processo de desenvolvimento
A Ciência Política é uma invenção americana. institucional ocorreu um movimento de especia-
Apesar de aparentemente exagerada, essa lização. A estrutura institucional da Ciência Política
afirmação é em boa medida verdadeira. Claro que americana é hoje dividida em cinco sub-áreas:
a idéia de um esforço sistemático de compreensão política americana, política comparada, relações
da política é coisa bem mais antiga. O Platão das internacionais, políticas públicas e teoria política.
e Aristóteles são candidatos óbvios ao título Cada sub-área apresenta um alto grau de autonomia

, Curitiba, , p. 97-110, nov. 2000


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APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS

disciplinar e endogenia. Conseqüentemente, um para glorificar o progresso da Ciência Política em


professor de política comparada, por exemplo, só vista das novas experiências institucionais postas
ensina cursos de política comparada, publica em em prática pelo recém-criado governo americano.
periódicos especializados em política comparada, James Madison, outro importante federalista e
e participa de conferências nas mesas e painéis da quarto presidente dos EUA, via a Ciência Política
mesma sub-área. como instrumento fundamental de correção
institucional e aprimoramento da governança
Tal nível de especialização acadêmica não foi
(FARR, 1993).
igualado até hoje por nenhum outro país do mundo.
Mesmo no Brasil, onde a academia caminha a A entrada da Ciência Política no ambiente
passos largos em direção ao modelo americano, a acadêmico ocorreu somente sete décadas após os
Ciência Política não é muito institucionalizada. debates sobre a Constituição. Em 1857, o imigrante
Muitas universidades preferem ter programas de alemão Fancis Lieber foi nomeado catedrático em
doutorado em Ciências Sociais; não há periódico História e Ciência Política pela Universidade de
algum especializado em Ciência Política, quanto Columbia, o primeiro posto desse tipo a ser criado
mais em alguma sub-área da disciplina; e a recém- na academia americana. Em 1880, na mesma
criada Associação Brasileira de Ciência Política é universidade, foi criado o primeiro departamento
quase 100 anos mais nova e 100 vezes menor que de Ciência Política, sob a direção de John W.
sua irmã americana. Burgess. Finalmente, em 1903, a Associação Ame-
ricana de Ciência Política (APSA) se consolidou.
Em parte, por ter sido vanguarda na criação
da Ciência Política, a academia americana tornou- Farr declara que muitos cientistas políticos
se modelo para os departamentos de Ciência americanos do século XIX, entre eles Lieber,
Política em outros países e pólo exportador de Burguess e Woodrow Wilson, entendiam que sua
tendências teóricas e temáticas. A influência da tarefa era eminentemente pedagógica e política,
Ciência Política americana no mundo também se qual seja, ensinar aos cidadãos americanos as
dá por meio da formação de acadêmicos de outros virtudes republicanas. “O fim do século XIX foi
países nos inúmeros programas de doutorado em um período de vitalidade e fertilidade para a ciência
Ciência Política dos EUA. O fato de a maioria dos americana da política, que proclamou sua iden-
bolsistas brasileiros no exterior que fazem tidade e unidade como a ciência do Estado. Ao
doutorado em Ciência Política estarem alocados promover a educação dos cidadãos, ao mesmo
em universidades americanas é evidência clara tempo que a teorização científica, a disciplina tor-
dessa influência. Ou seja, o contribuinte brasileiro nou-se mais profissional e inteiramente acadêmica”
tem financiado essa “importação” de “conhe- (FARR, 1988).
cimento”. Nada mais razoável, portanto, do que
Farr parece não ver uma contradição insolúvel
aperfeiçoarmos nossa apreciação crítica da história
no fato de a ciência americana ter sido, no século
e papel político desse produto no seu lugar de
XIX, uma “ciência do Estado” ao mesmo tempo
produção original.
que uma atividade dedicada à educação política
III. A HISTÓRIA “OFICIAL” dos cidadãos. Isso porque, seguindo seu raciocínio,
o Estado americano, por ser democrático, estaria
O uso da expressão “Ciência Política” já era
naturalmente interessado na promoção dessa
corrente nos EUA ao final do século XVIII, durante
educação republicana. De fato, a vocação demo-
a guerra de libertação – que os americanos chamam
crática da Ciência Política americana é tomada por
sem ironia alguma de “revolução” – e, princi-
Farr, e por muitos outros historiadores da Ciência
palmente, durante os debates entre federalistas e
Política naquele país, como um dado histórico in-
anti-federalistas, que precederam a ratificação da
questionável. Após defender a idéia de que a história
Constituição americana. De acordo com James
da Ciência Política americana deveria ser estudada
Farr, nesse contexto a expressão era usada de
dando prioridade à relação entre Ciência Política e
maneira retórica por escritores de diferentes
política, Farr conclui que entre todas as diversas
orientações políticas. Em outras palavras, seu
atividades que definem o exercício da Ciência
significado era vago e aberto à contestação. John
Política, a “educação dos cidadãos para a demo-
Adams, o segundo presidente americano, falou da
cracia” é historicamente predominante. Segundo
“divina Ciência Política”. Alexander Hamilton, um
Farr, o apego à democracia une cientistas políticos
dos autores de , usou a expressão

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de todas as gerações ( ). Para reforçar essa de falta de relevância política.


convicção, o autor cita a seguinte passagem de
Raymond Seidelman e Edward J. Harpham
autoria de Erkki Berndtson: “A Ciência Política
também seguem um parecido. Em um estudo
apareceu com o crescimento da democracia repre-
centrado nas contribuições individuais de dez dos
sentativa. A conclusão lógica a ser tirada é que o
cientistas políticos mais influentes no período de
desenvolvimento da Ciência Política, da maneira
Constituição da academia americana, Seidelman e
pela qual a entendemos, depende do futuro da
Harpham identificam uma tradição de engajamento
democracia representativa” (ANCKAR &
político desses intelectuais com questões relativas
BERNDTSON, 1987).
à reforma progressista das instituições demo-
Contudo, a história da vocação democrática cráticas. Contudo, geração após geração, esses
da Ciência Política americana tem também os seus intelectuais viram seus projetos de reforma rejei-
percalços. Farr lamenta que o comprometimento tados pelas instituições políticas dos EUA. Em
republicano da Ciência Política tenha se dete- resposta a essa rejeição, os cientistas políticos
riorado devido à excessiva profissionalização da passaram a incrementar o rigor científico de suas
disciplina. Para o autor, o inchamento do sistema teorias na esperança de adquirirem maior aceitação
universitário e a autonomia dos critérios acadê- e autoridade social e, conseqüentemente, maior
micos de promoção e sucesso profissional levaram cacife político. Segundo os autores, essa tática
o cientista político para longe da política. Ao invés teve resultados infelizes, pois acabou por afastar
de se envolverem na solução dos problemas con- os cientistas políticos do problemas mais candentes
cretos da democracia americana, os cientistas da democracia americana, e encerrá-los em uma
políticos cada vez mais passam seu tempo dis- comunidade autocentrada e estanque. De novo, a
cutindo entre si teorias com pouca relevância narrativa se repete: a inspiração democrática da
prática. Ciência Política mantém-se mas sua eficácia
prática é prejudicada pelo excessivo enquistamento
Esse veredicto é repetido de maneira similar
profissional.
por outros autores. Em um livro de título suges-
tivo, A defesa mais ardente da identidade entre Ciên-
, David Ricci afirma cia Política e democracia é feita for David Easton,
que a Ciência Política americana tem se dedicado, John G. Gunnell e Michael Stein no livro
através de suas teorias e engajamento político, à
transmissão e à compreensão dos valores demo- , editado pelos mesmos auto-
cráticos (RICCI, 1984). A tragédia fica por conta res (EASTON & GUNNELL, 1995). Easton e Stein
da interação histórica entre o projeto científico e fundaram em 1985 o Comitê Internacional para o
as aspirações democráticas. Segundo Ricci, o ri- Estudo do Desenvolvimento da Ciência Política
gor do procedimento científico levou os cientistas (ICSDPS), que é afiliado à Associação Interna-
políticos americanos a descobrirem “fatos reais” cional de Ciência Política (IPSA). Esse comitê
que contradizem os valores democráticos, como, promoveu três encontros internacionais, em Cor-
por exemplo, que o sistema político americano é tona (Itália), Barcelona e Paris, para discutir a
sustentado pela indiferença dos cidadãos e não por história e o desenvolvimento da Ciência Política
seu engajamento político. Além disso, a demanda em diferentes nações do mundo. O livro é uma
por factualismo e a rejeição de julgamentos de valor coletânea de textos produzidos durante esses en-
têm por conseqüência o abandono de questões contros e selecionados de maneira a dar grande
normativas importantes para a saúde democrática, relevância ao papel fundador da Ciência Política
como a virtude política e o patriotismo. A profis- americana. A questão que supostamente orienta o
sionalização também contribuiu para o estra- projeto de é a da relação
nhamento entre o exercício da Ciência Política e causal “recíproca” entre Ciência Política e regime
sua vocação, ao afastar do escopo dos estudos político. No texto introdutório do livro, Easton,
acadêmicos as questões políticas mais contro- Gunnell e Stein começam por afirmar que a Ciência
versas e debatidas. Em suma, o quadro pintado Política é uma invenção americana, para logo
por Ricci se assemelha ao de Farr: uma vocação depois dizer que, historicamente, a Ciência Política
democrática problematizada por um profissio- esteve tão intimamente ligada à democracia que
nalismo alienante que, apesar de não ameaçar ela é às vezes chamada de “ciência da democracia”;
aquela convicção, é a causa principal de uma crise os autores concluem que em países democráticos

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APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS

a Ciência Política é mais desenvolvida porque “[...] na década de 30, fugindo do nazismo na Europa.
o estabelecimento de instituições democráticas Gunnell lembra que, apesar de suas diferenças
ajuda a fomentar um clima político e cultural mais ideológicas, tanto Leo Strauss como Eric Voeglin,
propício ao aparecimento da Ciência Política como Hannah Arendt e Herbert Marcuse foram críticos
disciplina, e a disciplina, em si, pode contribuir severos do liberalismo americano. Todos viam na
para a instituição e posterior evolução da demo- neutralidade em relação aos valores pregada pela
cracia em um dado país. Isso porque a Ciência Ciência Política empiricista americana uma forma
Política como disciplina está mais apta a florescer de relativismo moral absoluto e, portanto, um
em um contexto liberal de discussão e crítica, passo certeiro em direção ao totalitarismo
controle estatal limitado, e desenvolvimento (GUNNELL, 1988).
profissional autônomo. O cientista político pro-
Gunnell defende que os intelectuais imigrantes
fissional, por sua vez, se inclina a promover
erraram gravemente em sua avaliação. Primeiro,
ativamente regimes que proporcionam tais
porque sua experiência traumática com o tota-
condições” ( ).
litarismo na Europa os fez projetar essa ameaça
Descontando a repetição e circularidade dos no contexto dos EUA, onde não havia risco de
argumentos na passagem acima, devemos notar degeneração totalitária. Segundo, porque seu modo
o tom de universalidade com o qual os autores se de pensar estava impregnado de questões
referem às leis do desenvolvimento da Ciência filosóficas, epistemológicas e universais que os
Política. Contudo, o que está sendo de fato univer- impedia de compreender o pragmatismo na
salizada é a compreensão que esses autores têm orientação da Ciência Política americana. Para
da história da Ciência Política em seu próprio país, Gunnell, a orientação pragmática ditava que a
os EUA. Uma compreensão que beira a auto- Ciência Social americana produzisse soluções que
adulação. Coerentemente, em uma passagem “funcionassem” para problemas políticos con-
posterior, os mesmos autores igualam o desenvol- cretos, e não teorias que fossem epistemolo-
vimento da Ciência Política à emulação do modelo gicamente coerentes ou filosoficamente infor-
americano. Pairando sobre esse raciocínio está a madas. A miopia dos imigrantes impediu-os de
premissa de que a democratização também enxergar a relação umbilical que unia o empiricismo
corresponde à implantação do modelo liberal- positivista praticado pela Ciência Política a um
democrático . compromisso absoluto com o liberalismo demo-
crático. Gunnell insiste em que a defesa da neutra-
Em textos escritos sem a colaboração dos
lidade em relação a valores não deve ser entendida
outros dois colegas, John Gunnell apresenta uma
como um relativismo moral absoluto. Pelo
narrativa mais acabada da história da Ciência
contrário, a defesa da neutralidade só foi possível
Política americana. De acordo com esse autor, a
porque havia um entendimento tácito de que a
Ciência Política americana era umbilicalmente
Ciência Política como um todo estava limitada ao
ligada à democracia desde sua fundação, em
campo da democracia liberal e, portanto, compro-
meados do século XIX. Nesse contexto não havia
metida com seus valores básicos.
divisão entre ciência e teoria, como hoje há, e os
profissionais da disciplina se dedicavam à crítica Contudo, apesar de equivocada, a crítica
construtiva e ao avanço das instituições demo- elaborada pelos intelectuais imigrantes surtiu efeitos
cráticas daquele país. Segundo Gunnell, a tradição que, segundo Gunnell, foram nefastos para o
da Ciência Política nos EUA deve ser entendida futuro da Ciência Política nos EUA. Sentindo a
como uma tentativa de substituir a religião, como autoridade de seu saber ameaçada, os cientistas
fator de coesão social, por uma ciência de controle políticos lançaram a , um
social e políticas públicas que promovesse os novo esforço de produção de uma Ciência Política
valores liberais. Ou seja, como Farr, ele não vê objetiva aos moldes das Ciências Naturais1 . Um
contradição em um projeto que vise ao controle
social e à educação cívica liberal. Contudo, esse
idílio entre Ciência Política e democracia sofreu
um grave abalo por volta da Segunda Guerra
Mundial.
Os causadores desse abalo foram os inte-
lectuais judeus alemães que imigraram para os EUA

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dos pontos programáticos da declínio nos meios filosóficos. Desde então, a


era a separação da Ciência Política verdadei- Ciência Política americana tem visitado a filosofia
ramente científica da história do pensamento da ciência repetidas vezes em busca de um modelo
político e das teorias políticas normativas definitivo que lhe proporcione o tão almejado, mas
(EASTON, 1953). Na prática, essa proposta levou nunca alcançado, científico2.
à criação da teoria política como sub-área da
Segundo Gunnell, a
Ciência Política, uma solução institucional que,
cometeu um erro ao confundir a filosofia das
segundo Gunnell, acabou causando o isolamento
Ciências Naturais, e suas teorias sobre como a
da teoria política das questões práticas mais
ciência opera, com a prática das Ciências Naturais
candentes.
em si. Cientistas naturais se preocupam com
Gunnell conta que, antes da problemas teóricos concretos e não com a filosofia
, não havia distinção entre teoria política do fazer científico. Em contraposição, os cientistas
e Ciência Política. Naquele período, os cientistas políticos passaram a se ocupar mais e mais com
políticos se consideravam os descendentes questões de cunho metateórico, a tal ponto que
modernos dos clássicos do pensamento político. quase todo livro de Ciência Política se inicia com
Gunnell chega a argumentar que a idéia de uma uma digressão sobre os pressupostos do conhe-
tradição da história do pensamento político é de cimento científico nas Ciências Sociais, e/ou um
fato uma invenção da Ciência Política americana. debate teórico sobre a natureza dos fenômenos
Tudo isso se acabou com a . sociais em questão.
A análise da literatura de Ciência Política produzida
Gunnell afirma que, apesar do barulho, a
atualmente nos EUA mostra que textos de teoria
proposta disciplinar avançada pela
política, sejam eles clássicos ou modernos, são
não trazia nada de substantivamente
literalmente ignoradas pela produção acadêmica
novo do ponto de vista da adesão histórica da
das quatro sub-áreas mais “científicas” da Ciência
Ciência Política americana ao empiricismo e à
Política: política americana, política comparada,
separação entre fato e valor. Para Gunnell erram
relações internacionais e políticas públicas.
os que acreditam que também por detrás do
Uma vez isolada das outras sub-áreas da radicalismo da havia um
Ciência Política, a teoria política, segundo conta relativismo moral total. Ainda de acordo com esse
Gunnell, começou a ser “colonizada” pela filosofia autor, como seus predecessores, os arquitetos
política e pela metateoria, abandonando assim desse movimento eram também partidários dos
problemas políticos concretos e dedicando-se a valores do liberalismo democrático americano. Na
questões abstratas como a da natureza do , como anteriormente, o
conhecimento e da ação política. Outros teóricos compromisso com a democracia era tão consen-
políticos concentraram-se no estudo da história sual que esse assunto sequer era tratado.
do pensamento, disciplina vista por Gunnell como
um culto ao antiquarianismo sem relevância
política e, portanto, uma forma de fuga dos
problemas concretos da política (GUNNELL,
1993).
Mas os efeitos nefastos não se limitam ao
enquistamento da teoria política. Ao responder à
ameaça imigrante com um novo projeto que
pregava maior rigor científico, a Ciência Política
também acabou por se envolver com questões
epistemológicas e filosóficas. Os fundadores da
foram buscar no positivismo
lógico do círculo de Viena os fundamentos para
seu “novo” projeto de Ciência Política baseado na
separação radical entre fatos e valores e na verifica-
bilidade empírica das teorias. Ironicamente, quan-
do do lançamento do movimento, na década de
50, o positivismo lógico já estava em franco

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No entanto, o envolvimento da Ciência Política declínio da Ciência Política nos imigrantes alemães.
com questões de ordem epistemológica levou a Só falta agora chamá-los de um bando de judeus
um abandono da orientação pragmática anterior. ressentidos. Ironicamente, esse misto de patrio-
Gunnell argumenta que, hoje, após muitas “revo- tada e liberalismo só confirma os maiores temores
luções” científicas, tanto cientistas políticos como dos intelectuais imigrantes.
teóricos políticos vivem encerrados na torre de
IV. A OUTRA HISTÓRIA
marfim universitária, ocupados com questões e
problemas que raramente ultrapassam os limites As narrativas históricas comentadas acima não
da profissão e, portanto, pouco têm a ver com a são as únicas produzidas dentro da academia
política. americana, mas são as do – um termo
que os americanos usam para descrever o centro,
O plano geral da “história” de Gunnell não
o núcleo duro, a parte de maior aceitação, e
difere muito da de Farr, Ricci, Seidelman e
portanto, mais importante de uma determinada
Harpham. Em todas essas narrativas há primeiro
atividade humana. O termo tem também a cono-
um momento de idílio romântico entre uma ciência
tação conservadora de desacreditar as críticas à
verdadeiramente engajada no aperfeiçoamento das
posição como algo marginal, radical
instituições políticas democráticas e liberais ameri-
e, portanto, menos relevante. A condição
canas, depois uma queda, um processo de desen-
dessas narrativas podem ser com-
canto, em que a profissionalização excessiva, seja
provadas pelo exame do veículo de divulgação atra-
ela causada por motivos externos ou internos à
vés do qual elas vieram a público. As principais
própria disciplina, acaba por afastar os cientistas
contribuições de Farr, Gunnell, Dryzek e Leonard,
políticos da política. O primeiro problema que salta
Seidelman e Harpham foram todas publicadas em
à vista nesse tipo de narrativa é uma certa confusão
forma de artigo em
conceitual quanto à democracia. Esses autores não
ou em os dois
raro tratam o liberalismo e o republicanismo ame-
periódicos mais da Ciência Política
ricano como sinônimos de democracia. Ao faze-
americana. Em contraposição, as versões mais
rem isso, confundem a democracia, como princípio
críticas da história da disciplina não conseguiram
normativo de alargamento da participação política,
alcançar tal prestígio acadêmico.
com a forma de governo real dos EUA. Em suma,
reduzem o universal ao particular e o “dever ser” Esse é o caso do texto
ao “ser”. É nesse ambiente intelectual que decla- , de
rações como a de Leonard D. White são levadas a Terence Ball, um autor renomado que, não
sério: “nós [cientistas políticos] temos o dever de obstante, publicou esse texto somente como
educar o mundo de acordo com o estilo de vida capítulo de livro e não como artigo3. Assim como
americano e o espírito do governo americano, feito Farr, Ball se propõe a entender a história da Ciência
segundo a sua imagem” (EASTON & GUNNELL, Política americana no contexto de suas relações
1995). Qualquer semelhança com a frase “fazer o com a política e a sociedade em geral. Suas
mundo livre para a democracia”, ouvida todas as conclusões, porém, são muito diferentes das de
vezes que os EUA cometem atos de violência Farr. Ball afirma que a Segunda Guerra Mundial
internacional, não é mera coincidência. foi um importante divisor de águas na história da
disci-plina. Até então a Ciência Política era
A versão mais caricata dessa operação ideo-
lógica é dada por Easton, Gunnell e Stein, quando
tentam universalizar a suposta relação histórica
entre Ciência Política e democracia no EUA,
transformando-a em uma hipótese de trabalho a
ser testada em diferentes nações do mundo. A
única coisa que é de fato testada com esse proce-
dimento é o quanto um determinado país se asse-
melha aos EUA, segundo a imagem gloriosa que
os próprios cientistas políticos americanos têm
de seu regime político e de sua Ciência Política. O
chauvinismo dessa postura fica explícito no
esforço de Gunnell em pôr a culpa do suposto

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sustentada basicamente por recursos de viam a academia como um antro de radicais e


instituições privadas. Com a entrada dos EUA no esquerdistas5 .
conflito, os cientistas sociais deixaram o
Através da análise dos depoimentos dados à
confinamento da cátedra para se engajarem no
comissão parlamentar que analisou a criação da
esforço de guerra. A orientação behaviorista e
Divisão para as Ciências Sociais na Fundação Na-
empiricista da Ciência Política, que precede em
cional de Ciência ( ),
muito a , foi posta a serviço
Ball mostra o esforço dos cientistas políticos para
da política de guerra. Cientistas políticos e
legitimar sua atividade e a resistência parlamentar
sociólogos dedicaram-se a estudar o
em aceitar aqueles argumentos. Os congressistas
comportamento e valores dos soldados, pro-
americanos compreendiam bem a utilidade do
paganda e alistamento militar, relações de raça na
investimento público em pesquisas no campo das
corporação militar, os efeitos sociais de bombar-
Ciências Naturais para o esforço da Guerra Fria –
deios em populações civis etc. (BALL, 1993).
afinal de contas, este gerava frutos concretos.
Com o fim do conflito, os cientistas políticos Porém, esses mesmos políticos tinham mais difi-
voltaram à academia, mas a experiência de guerra culdade em enxergar a mesma utilidade nos conhe-
transformou sua atitude em relação à profissão e cimentos produzidos pelas Ciências Sociais. Como
às relações entre academia e política. Ball diz que resposta, os cientistas sociais intensificaram a
eles se tornaram “severos realistas com um senso pregação cientificista, tentando mostrar que havia
sóbrio das possibilidades e limitações da política”. apenas uma diferença de grau entre o conhecimento
Esse sobriedade se traduziu, do ponto de vista da produzido pelas Ciências Naturais e aquele produ-
prática disciplinar, em um maior interesse por zido pelas Ciências Sociais. Ao mesmo tempo,
questões relacionadas ao comportamento político esses mesmos acadêmicos defenderam a utilidade
concreto e, conseqüentemente, na rejeição de do conhecimento produzido pelas Ciências Sociais
modos de pensar mais conceituais, inquisitivos e como forma de controle social, tão ou mais neces-
abstratos, próprios da teoria política e da filosofia. sária quanto o controle de novas tecnologias pro-
Harold Laswell, um dos cientistas políticos mais porcionado pelo avanço das Ciências Naturais.
influentes dessa geração, usou o termo “
A ênfase na tecnificação das Ciências Sociais
” para se referir à disciplina4. Foi com
foi bem recebida pelos órgãos governamentais e
esse espírito que nasceu, segundo Ball, a
instituições privadas de fomento à pesquisa. Já
.
em 1947, o Presidente do Conselho de Pesquisa
Ball chama a atenção para o fato de que esse em Ciências Sociais (
movimento intelectual aconteceu ao mesmo tempo ), Pendleton Herring, declarava: “As
em que a guerra “quente” dos campos de batalha Ciências Sociais necessitam enormemente da
foi substituída pela guerra fria das trincheiras formação de profissionais competentes que pos-
ideológicas. No novo contexto da manipulação de sam usar dados sociais na cura dos males sociais,
corações e mentes, os cientistas políticos se como médicos, que usam informações científicas
mostrariam ainda mais úteis. Mas essa utilidade para curar os males do corpo [...] O termo ‘técni-
social só poderia tornar-se realidade com o fi- co’ em Ciências Sociais designa um indivíduo com
nanciamento consistente das atividades acadê- treinamento profissional para aplicar os fatos,
micas. Como vantagem a seu favor, os cientistas generalizações, princípios, leis e fórmulas desco-
políticos contavam com os contatos dentro do bertas pela pesquisa em Ciências Sociais às situa-
governo que haviam feito durante a guerra. Porém, ções práticas [...] Engenharia social é a aplicação
a classe política e a opinião pública em geral do conhecimento de fenômeno sociais a pro-
desconfiavam da utilidade das Ciências Sociais, e

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APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS

blemas específicos” ( ). de explicação e previsão falharam mesmo nas áreas


em que mais se investiram recursos: modernização
Em 1954, já em plena ,a
e desenvolvimento de países de Terceiro Mundo,
Divisão para as Ciências Sociais da Fundação
teoria da revolução, estabilidade política, e, final-
Nacional de Ciência foi finalmente criada. O tipo
mente, o estudo do regime soviético – o seu mais
de pesquisa proposto pelos behavioristas era
estrondoso fracasso. Paradoxalmente (ou não),
baseado na técnica de , que, por despender
esse mau desempenho disciplinar não se refletiu
muitas horas de trabalho de coleta e análise de
na capacidade dos cientistas políticos de financiar
dados, necessitava de um grande aporte de
suas pesquisas, pois essa só cresceu durante toda
recursos e estrutura institucional. Conseqüen-
a Guerra Fria e depois.
temente, os acadêmicos que praticavam esse tipo
de Ciência Política tornaram-se altamente V. EVIDÊNCIAS EM FAVOR DA VERSÃO
dependentes das fontes de financiamento, privadas ALTERNATIVA
e públicas, a tal ponto que é difícil contar a história
A disparidade entre a versão de Ball e as dos
da sem notar que a
outros autores não pode ser ignorada. Ball evita a
Fundação Ford esteve umbilicalmente envolvida
glorificação chauvinista que assume como pre-
com o financiamento das pesquisas e com a
missas, reproduzidas com mais ou menos inten-
promoção dos acadêmicos desse movimento6 .
sidade nas outras narrativas, de um passado idílico
Com a relação de dependência, nota Ball, veio o
de engajamento dos cientistas políticos com o
controle e a seleção dos temas de pesquisa. Por
aperfeiçoamento da democracia americana, um
sua vez, os cientistas políticos também passaram
vínculo inelutável entre a Ciência Política americana
a deixar de lado temas controversos que pudessem
e a defesa da democracia, e a identificação imediata
ser recebidos com desconfiança pelas fontes de
do sistema político americano com “a democra-
financiamento.
cia”. Além do mais, as outras histórias tendem a
Ball nota que por trás da rejeição aparente de dramatizar um estado de crise da Ciência Política
julgamentos de valor há na produção intelectual no pós-guerra, quando a disciplina perde relevância
dos behavioristas uma tendência para enaltecer social e se afasta da política real. Ball mostra que,
uma versão conservadora do liberalismo americano de fato, o contrário aconteceu. Durante a Guerra
e, ao mesmo tempo, caracterizar o comunismo Fria, a Ciência Política ganhou uma relevância que
como uma patologia psicológica e social. Guiados nunca teve, servindo de aparelho ideológico do
pelo imperativo da glorificação do modo de vida e Estado americano. Não podemos subestimar a
forma de governo americanos, os cientistas polí- importância da Guerra Fria como fator de coesão
ticos produziram diagnósticos que tentavam política e propaganda nos EUA desse período.
mostrar que mesmo os aspectos mais problemá- Nesse contexto, os imperativos da guerra foram
ticos da política americana eram de fato virtudes. freqüentemente colocados acima de questões
Os exemplos mais famosos, e infames, desse relativas à democracia.
esforço intelectual são a adoção quase generalizada
Além disso o argumento apresentado por
de uma teoria democrática de elites, e a “des-
Gunnell, segundo o qual o pragmatismo é capaz
coberta” de que a falta de participação popular é
de resolver a contradição entre positivismo cien-
de fato uma virtude democrática. Ball conclui que
tífico e relativismo moral através da limitação do
“a Ciência Política fez uma contribuição valorosa
debate ao âmbito da democracia liberal, deve ser
ao arsenal americano da Guerra Fria” ( ).
problematizado. John Dewey, o mais ilustre filó-
Julgando pelas promessas e expectativas que sofo político pragmatista, defende que, em uma
alimentou quanto ao rigor disciplinar, a sociedade democrática, as Ciências Sociais deve-
não foi bem-sucedida. Sua capacidade riam ser interpretativas. A diversidade caracterís-
tica das sociedades democráticas traduz-se em
uma diversidade de perspectivas que geram dife-
rentes interpretações dos assuntos politicamente
relevantes. Para Dewey, a resolução desses
conflitos de opinião deve dar-se no embate público
e não no gabinete do especialista. Conseqüente-
mente, na democracia não há lugar para a auto-

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ridade científica positivista sobre a política. Dewey academia (CHOMSKY, 1968 e 1997; ME-
argumenta que as Ciências Sociais positivistas LANSON, 1983; SILVA & SLAUGHTER, 1984;
acabam facilmente convertendo-se em propa- SIMPSON, 1998)8. Em suma, o Estado não foi o
ganda estatal, isso é, em ferramenta de supressão único responsável pela produção e reprodução da
da democracia. Ironicamente, apesar de ser Guerra Fria. Poderosos interesses privados
reverenciado como um dos fundadores da Ciência também estavam por detrás desse projeto político.
Política americana, Dewey foi praticamente
A resposta à pergunta apresentada no início
ignorado pelos cientistas políticos. Em artigo
do parágrafo anterior, portanto, tem que ser feita
recente, James Farr escreve que a história da
traçando-se as ligações entre os interesses mais
recepção da obra de Dewey pela Ciência Política
poderosos por trás do financiamento das Ciências
americana é a história de um não-ser, de algo que
Sociais e o conteúdo e função social do conhe-
não aconteceu (FARR, 1999). Em outras palavras,
cimento produzido por essas disciplinas. Esse é
o imperativo de se produzir uma Ciência Política
um tema para anos de trabalho, que provavelmente
positivista foi mais forte do que o chamado do
não será feito. O impulso crítico e auto-crítico
pragmatismo de Dewey. Os problemas levantados
nas Ciências Sociais americanas é bem mais fraco
por Dewey, na verdade, servem para questionar
e marginal que o chamado para a produção de
não a orientação pragmática dos cientistas políticos
mais conhecimento positivo. Seria ingênuo pensar
americanos, mas sua vocação democrática, que é
que as fontes financiadoras investiriam em projetos
dada gratuitamente por grande parte dos
cujo objetivo é desmascarar os interesses políticos
historiadores da Ciência Política examinados acima.
por trás das políticas de fomento implementadas
Infelizmente, a narrativa de Ball parece con- por elas próprias.9
firmar os temores de John Dewey. Dewey também
Devemos notar também que os autores dessa
nos ajuda a começar a responder à seguinte per-
literatura marginal de crítica ao das
gunta, somente formulada por Ball: se, do ponto
Ciências Sociais americanas raramente são cien-
de vista estritamente “científico”, a Ciência Política
tistas políticos. Mas não é só no quesito do exercí-
americana fracassou, como se explica o sucesso
cio reflexivo de crítica de sua própria prática que
na obtenção crescente de recursos para a pesquisa?
a Ciência Política é omissa. A falta de uma atitude
A hipótese mais provável, já ventilada acima, é a
de crítica à sociedade e política americanas é, sem
de que a produção dessa ciência da política serviu
dúvida, a característica mais preocupante dessa
de propaganda do Estado. Mas essa resposta é
disciplina. É claro que uma coisa está intimamente
apenas parcialmente correta. O Estado americano
ligada à outra, ou seja, a falta de reflexão crítica
não foi o único cliente das Ciências Sociais nesse
interna pode ser entendida como sintoma ou causa
período, apesar de talvez ter sido o maior. As
da falta de uma atitude política crítica.
fundações privadas tiveram um papel de destaque
no fomento à pesquisa em Ciências Sociais naquele Um exemplo caricato desse estado de coisas é
país, durante todo o período da Guerra Fria7. Não
podemos nos esquecer também de que a maior
parte do sistema universitário americano, incluindo
os centros de pesquisa mais prestigiosos, são pri-
vados. Uma série de trabalhos atestam as perse-
guições a esquerdistas e a indivíduos ideologica-
mente “suspeitos” promovidas dentro das uni-
versidades americanas (SANDERS, 1979;
RICHARDS, 1986; SCHRECKER, 1986; WINKS,
1987; LOWEN, 1997; PRICE, 1998), assim como
a influência dos poderes político e econômico na

105
APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS

dado pelo trabalho dos jornalistas Russell Mokhiber internacional, ou as teorias que explicam o sur-
e Robert Weissman, que juntos editam uma coluna gimento do autoritarismo na América Latina
chamada , título que po- (HUNTINGTON, 1968; O’DONNELL, 1973)
de ser traduzido por “De olho nas grandes empre- fazerem vistas grossas à participação direta e
sas”. Aproveitando a disponibilidade, através da indireta do governo americano na desestabilização
internet, de mais de mil artigos apresentados no dos regimes democráticos anteriores. Esta última
encontro anual da Associação Americana de Ciên- é uma lacuna que interessa particularmente a nós,
cia Política (APSA) do ano 2000, Mokhiber e brasileiros.
Weissman resolveram procurar indícios da palavra
VI. ESTRUTURA INSTITUCIONAL E VOCA-
“ ” nos resumos dos trabalhos10. So-
ÇÃO CONSERVADORA
mente dois resumos incluíam a palavra; a palavra
“ ” estava presente em 11 resumos. Tenta- A idéia de uma ciência social positivista foi
ram então a palavra “ ” e o resultado foi bastante criticada durante o século XX. Entre seus
23. Conclusão: aproximadamente apenas 3,6 % mais ilustres opositores estão a hermenêutica de
dos trabalhos tratavam, de maneira central ou inspiração gadameriana, a teoria crítica da escola
marginal, da questão do poder do capital. de Frankfurt e Michel Foucault. Gadamer argu-
menta que nas sociedades contemporâneas há uma
Não contentes com os limites do material
idolatria da ciência e da técnica, que leva as pessoas
pesquisado, os autores decidiram examinar as
a deferir suas responsabilidades à autoridade do
teses de doutorado em Ciência Política defendidas
conhecimento científico. O discurso científico é
nos últimos dois anos mediante a procura dos
monológico e, portanto, uma ameaça à base dialó-
mesmos temas. Os resultados foram semelhantes.
gica da política democrática, onde a reiteração
Apenas 75 dissertações usavam a palavra
interpretativa deve ser a norma. Essa ameaça é
“ ” no resumo, contra 43 que usavam
ainda mais séria naquelas ciências, crias do em-
a palavra “ ”, e 1 008 que continham a
piricismo britânico, que submetem os homens à
palavra “ ” (MOKHIBER & WEISSMAN,
lógica dos números e das leis universais (GADA-
2000).
MER, 1984). A tarefa da filosofia hermenêutica
A premissa que está por trás do trabalho de de Gadamer é proteger o espaço político da razão
Mokhiber e Weissman é que, em um país como prática da dominação da autoridade do discurso
os EUA, assim como na maioria do mundo, o técnico-científico (GADAMER, 1975).
capital tem um poder político imenso. Seria,
A teoria crítica, em suas várias versões, tende
portanto, coerente esperarmos que esse poder
a expor o caráter ideológico das Ciências Hu-
fosse assunto de um grande número de trabalhos
manas. Max Horkeimer afirma que, negando a
em Ciência Política. Contudo, não é isso o que
natureza dialética do conhecimento da coisas do
acontece.
homem, essas ciências produzem leis universais
O “achado” de Mokhiber e Weissman aponta que contribuem para a sua reprodução e manu-
para a conclusão de que um estudo crítico da tenção da sociedade capitalista burguesa. A teoria
história da Ciência Política americana deveria levar crítica, por outro lado, pretende quebrar com essa
em conta não só o que foi escrito mas também o aparência e “produzir teorias que liberem os
que não foi, isto é, as lacunas, os temas-tabu. homens da reprodução mecânica do social
Assim, poderemos entender quais os nexos ideo- e acabe com a separação entre sujeito e objeto,
lógicos que possibilitaram, por exemplo, a teoria entre conhecimento e ação” (HORKHEIMER,
da modernização atribuir a causa do subde- 1972). De maneira semelhante, Jürgen Habermas
senvolvimento a fatores culturais nacionais argumenta que o caráter ideológico das Ciências
(JOHNSON, 1958; ROSTOW, 1960; LIPSET, Sociais positivistas consiste no mascaramento de
1967) e ignorar totalmente a inserção dessas interesses concretos por um discurso do conhe-
nações no mais que centenário sistema capitalista cimento que se apresenta na forma de leis uni-
versais imunes a questões de valor (HABERMAS,
1971).
Michel Foucault, por sua vez, mostra que por
trás dos diferentes projetos de uma ciência do

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 15: 97-110 NOV. 2000

homem há a vontade de se submeter corpos e Somente a título de ilustração, nos 110 artigos
mentes a um controle disciplinar. Em seus estudos examinados, os nomes de Habermas e Foucault
históricos, Foucault examina a ligação entre a são citados somente uma vez, em um mesmo ar-
produção de tecnologias de controle humano e o tigo.
crescimento e sofisticação de instituições moder-
VII. APRENDER SEM MACAQUEAR
nas como o Estado, as instituições penais, o
exército, o hospício etc. (FOUCAULT, 1977, Fiquei positivamente impressionado com o
1980, 1991). último congresso da recém-criada Associação
Brasileira de Ciência Política (ABCP). A diversidade
Enquanto a hermenêutica de Gadamer não
temática era grande, e o vigor com que muitos se
conseguiu penetrar no meio acadêmico americano
dedicavam a discutir problemas cruciais da socie-
de maneira significativa, Habermas e Foucault
dade e política brasileiras era no mínimo estimu-
tornaram-se autores de grande sucesso nos EUA,
lante. Uma coisa, porém, deixou-me um pouco
atraindo um sem-número de seguidores e comen-
aborrecido, senão preocupado. Notei que alguns
tadores. As idéias desses autores penetraram no
dos trabalhos limitavam-se a analisar aspectos da
debate em disciplinas como História, Sociologia,
sociedade americana sem qualquer conexão com
Antropologia e estudos da cultura. A Ciência Po-
“realidades” brasileiras. Minha preocupação apenas
lítica, contudo, parece ser praticamente imune a
aumentou ao constatar que a platéia, também for-
essas influências.
mada por cientistas políticos, não raro se mostrava
A estrutura institucional da Ciência Política muito interessada no assunto. Não que essa atitude
americana atual parece ser a chave para seja desconhecida. Todos sabemos da grande in-
compreender essa anomalia. Reflexões críticas fluência que, há décadas, as coisas da cultura ame-
como as de Habermas ou Foucault atingem a sub- ricana exercem no Brasil. A necessidade de pare-
área de teoria política mas param por aí. Por estar cer americano e a vontade de ser americano são,
isolada das outras sub-áreas, a teoria política acaba para muitos, uma forma de escapar das frustra-
funcionando como uma barreira protetora que ções de um Brasil que parece sempre ficar aquém
impede o contato das outras sub-áreas da Ciência das expectativas. Porém, como o estóico descrito
Política com modos de pensar mais críticos. É por Hegel que se liberta no domínio do pensamento
dentro dos limites da teoria política que debates mas continua vivendo concretamente como um
normativos são travados, sem terem qualquer escravo, o americanófilo acrítico vive uma liber-
conseqüência para o resto da disciplina. Nos de- dade imaginária que é constantemente negada pelo
partamentos de Ciência Política das universidades fato de não estar nos EUA, não saber falar ou
americanas há uma distinção clara entre os entender inglês corretamente, e não ter cidadania
“cientistas políticos” empiricistas das quatro sub- americana; em suma, de não poder realizar o ideal
áreas e os teóricos políticos. Esse isolamento pode tão sonhado. Essa é a condição do colonizado
ser claramente comprovado pela análise da pro- cultural. Penso somente que nós, cientistas sociais
dução acadêmica de cada sub-área. Em uma e estudantes de filosofia, temos a obrigação de
pesquisa recente, examinando as referências ser um pouco mais críticos em relação a esse
bibliográficas de artigos publicados no ano de 2000 assunto.
nos periódicos de Ciência Política de maior pres-
Esse artigo pretende ter mostrado que o estudo
tígio, os seguintes resultados foram encontrados
das coisas americanas não precisa ser uma fonte
(FERES, 2001)11 : a) de 110 artigos analisados,
de alienação. Pelo contrário, ele pode ser usado
93 não tinham qualquer referência bibliográfica
para ajudar-nos a entender melhor os aspectos
que pudesse ser relacionada à teoria política; b) a
dessa colonização, pois o pior colonizado é aquele
média geral de citação de teoria política por artigo
que ignora sua própria condição.
de Ciência Política era de 0,3.
No tocante às relações acadêmicas, não po-
demos nos esquecer de que a imensa maioria da
Ciência Política que se produz no mundo provém
dos EUA. Com a exceção parcial da teoria da
dependência e da Ciência Política de inspiração
marxista, as outras teorias e tendências da Ciência
Política foram criadas naquele país. Além disso, a

107
APRENDENDO COM OS ERROS DOS OUTROS

academia americana produz Ciência Política sobre mo um todo, contribui para o esvaziamento crítico
o Brasil, diretamente através dos brasilianistas, e do debate político e acadêmico.
indiretamente através dos latinoamericanistas12 .
O chauvinismo americano está por trás da
Conseqüentemente, trabalhos escritos por bra-
crença em uma ciência social positivista e, ao
sileiros tendem a incorporar autores americanos
mesmo tempo, democrática. Ele permite que essa
ao debate. Mas, ao invés de tratarmos o debate
ciência sobreviva sem a necessidade de criticar a
acadêmico como uma troca de idéias desinte-
si própria, e que sirva a interesses públicos e
ressada que ocorre em um espaço abstrato de
privados sem se perguntar se são de fato demo-
discussão informada, devemos estar atentos ao
cráticos. Felizmente, devido à consciência que
alto grau de chauvinismo de grande parte da
temos dos percalços de nossa história política,
produção acadêmica americana13 e aos interesses
nós, brasileiros interessados no alargamento da
políticos e econômicos por trás desses discursos
democracia, talvez nunca tenhamos esse excesso
“científicos”. Não se trata aqui de combater
de auto-confiança e, portanto, nunca devamos
chauvinismo com chauvinismo – afinal de contas,
apostar cegamente em uma “Ciência” política de-
os fenômenos culturais mais originais e vigorosos
mocrática. Se nosso compromisso com a demo-
da história brasileira nasceram da incorporação e
cracia é realmente sério, nosso compromisso com
mistura de elementos “estrangeiros” ao cabedal
a Ciência deve ser bem relativo14.
“nacional”. Trata-se, sim, de manter uma atitude
crítica frente a um tipo de discurso que se legitima
através da armadilha retórica da veracidade factual.
Devemos reconhecer que a falta de especia-
lização na academia brasileira, em comparação à
alta fragmentação da academia americana, é, de
fato, uma característica positiva que não deve ser
descartada. Como mostra o exemplo americano,
a separação da Ciência Política em especialidades
isoladas em si mesmas, e das Ciências Sociais co-

João Feres Jr. (jferes@att.net) é Doutorando em Ciência Política na City University of New York
(CUNY), Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Mestre em Ciência
Política pela CUNY.

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