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Silva - Um Pensamento Social
Silva - Um Pensamento Social
Tratarei de aspectos de estudos sobre um I will deal with aspects of studies on a social
pensamento social do Brasil angulado, thought in the angled Brazil, specifically in
especificamente no século XX, por the 20th century, by black intellectuals,
intelectuais negros e negras. São estudos both male and female. These are studies
sobre direitos dos sujeitos e da cidadania on the rights of subjects and on black
negra produzidos por intelectuais negras citizenship produced by black intellectuals,
e negros, em particular no século XX, particularly in the 20th century, creators of
criadores de um pensamento negro a black thought about the country, which
sobre o país, que o interpreta naquilo interprets it in what is iniquitous and
que possui de iníquo e o fabula a partir fables it from the black social experience.
da experiência social negra. A abordagem The approach I propose is based on the
que proponho se baseia na seleção de selection of common themes which a
temas comuns que uma perspectiva black intellectual perspective has faced at
intelectual negra tenha enfrentado em different times, to account for the black
diferentes momentos, para dar conta da Afro-Brazilian experience. This experience
experiência negra afro-brasileira. Essa has to do with the struggle for civil, social
experiência tem a ver com a luta por and political rights and is part of the history
Domínio público/ Wikimedia Commons
em diferentes momentos, para dar conta da bolas pelo país (Gomes, 2018, pp. 367-77)
experiência negra afro-brasileira. Essa expe- na redemocratização política após a última
riência tem a ver com a luta por direitos ditadura civil-militar.
civis, sociais e políticos e compõe a histó- Essa imaginação política da liberdade
ria da cidadania brasileira. Há um pensa- dos escravizados e seus descendentes foi
mento político negro sobre a insurreição/ importante ainda, ao longo do século XX,
liberdade escrava no Brasil que atravessa por ser inspiradora para diferentes movi-
décadas; há uma discussão longeva entre mentos negros, até que, na década de 1970,
intelectuais negros sobre a necessidade de o Grupo Palmares, liderado pelo poeta
reposicionar os estudos sobre as relações Oliveira Silveira, sugerisse a data de 20 de
raciais, investigando o polo branco; aparece novembro, em referência à morte de Zumbi
nesse pensamento o mundo negro brasileiro dos Palmares, como um dia de comemora-
e suas tentativas de relações atlânticas e ção alternativa e de luta à memória nacio-
afro-caribenhas, que têm concretude, por nal (Alberti & Pereira, 2007). Finalmente,
exemplo, no ativismo negro feminino. em 2003, por ação dos movimentos negros,
o Dia da Consciência Negra foi declarado
PENSAMENTO SOCIAL feriado em diferentes estados e municípios
da federação, em honra ao 20 de novem-
NEGRO SOBRE A LIBERDADE
bro de 1695. Além disso, tal imaginação
alcançou enorme impacto de publicação
A liberdade figura como uma força social para novas gerações, em premiações e tra-
imaginativa importante na agenda do pensa- duções recebidas a livros que a tematizam
mento social negro brasileiro, estando ali- (Salete, 2014, 2017).
cerçada em experiências concretas desde o Esse cenário somente foi possível, no
período colonial. A escravidão não impediu âmbito do pensamento social negro do
que africanos, escravizados, como sujeitos século XX, mocambos e quilombos terem
protagonizassem fugas e criassem suas orga- sido estudados em obras pioneiras como as
nizações, em mocambos e quilombos. Tam- do antropólogo Edison Carneiro (1912-1972)
pouco processos de insurreição e revoltas. e do historiador e sociólogo Clóvis Moura
Esses espaços e seus sujeitos aquilomba- (1925-2003). Tratando da guerra ou da paz
dos, revoltosos e insubordinados figuraram quilombola e seus acordos diplomáticos,
na imaginação política e nas lutas insurre- ainda na primeira metade do século, há o
cionais desde o final do século XVI até o esforço analítico desses autores em promo-
período da Abolição, no século XIX. Tal ver uma rotação de perspectivas através de
imaginação também alcançou, como chama revisão de fontes documentais conhecidas
a atenção o historiador Flávio Gomes, lugar e inéditas, tornando os escravizados, os
na Constituição Federal de 1988, tendo ope- fugidos, os aquilombados protagonistas de
racionalidade política para pensar os direitos uma história política da luta organizada pela
civis e sociais, os direitos à propriedade da liberdade ainda no Brasil colonial.
terra e o reconhecimento como patrimônio Carneiro finalizou em 1944 o estudo
de descendentes de comunidades quilom- sobre o Quilombo dos Palmares, que foi
tentativa de pretos conscientes para lutar sões sobre administração pública, análise da
contra as restrições do branco, despertando produção sociológica nacional e um debate
a consciência de grupo, desenvolvendo um crítico sobre os estudos de relações raciais
programa definido de reivindicações referen- elaborados no país. Neste último aspecto,
tes ao aspecto econômico, social e político. vejam-se suas discussões sobre “O problema
As dificuldades para conseguir reuni-los e a do negro na sociologia” (1954) e “Patologia
indiferença de pretos e mulatos das classes social do ‘branco’ brasileiro” (1957). O pri-
sociais intermediárias revelam a intensidade meiro é uma revisão crítica dos estudos sobre
com que o preto incorporou os ideais e con- o negro brasileiro, desde o final do século
ceitos do branco” (Bicudo, 2010, p. 161). XIX até meados dos anos 1950, indicando
Sua tese demorou 65 anos para ser publi- pontos negativos nas abordagens de Sílvio
cada, embora ela tenha sido uma intelectual Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres,
distintiva, professora da Universidade de São Oliveira Vianna, Nina Rodrigues, alcançando
Paulo e da Escola de Sociologia e Política, seus contemporâneos como Gilberto Freyre,
participante da pesquisa Unesco sobre rela- Arthur Ramos, entre outros. Nele o autor já
ções raciais nos anos 1950, além de uma das anuncia suas críticas relativas à “sociologia
primeiras psicanalistas brasileiras (Bicudo, do negro” no Brasil como uma “ideologia
2010; Gomes, 2013). A produção social da da brancura”, o tratamento do negro como
invisibilidade intelectual negra também é um mero “tema” de pesquisa.
uma componente que precisa estar presente O segundo texto implica um reposiciona-
nas análises sobre os estudos afro-brasileiros. mento, a partir disso, dos estudos de “rela-
Tal aspecto também acompanhará a traje- ções raciais” que tinham como enfoque o
tória do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos negro, visto como um problema ou parte
(1915-1982). Formado em Ciências Sociais na dele no Brasil. Guerreiro Ramos sugere que
então Universidade do Brasil (hoje UFRJ), isso seria reducionista, uma oposição entre
por duas vezes teve recusada sua entrada o “negro-tema”, objeto das ciências sociais,
como professor na mesma instituição, pas- e o “negro-vida”, onde este sujeito social
sando a trabalhar no Departamento de Admi- era muito mais complexo do que, em sua
nistração do Serviço Federal (1943-1951). opinião, até então operavam os estudos de
Além da administração pública, esteve envol- relações raciais. Além disso, o autor sugere
vido em diferentes campos de atuação: nos a necessidade de se estudar o “branco” e
debates sobre o desenvolvimento nacional; na a valorização estética e política da “bran-
sua colaboração ativa com o Teatro Experi- cura” em sua patologia social, através das
mental do Negro no Rio de Janeiro, formado respostas dadas ao Censo de 1940. Alberto
por Abdias do Nascimento; e também interes- Guerreiro Ramos pode figurar assim como
sado nas lutas por independência anticolonial um dos precursores brasileiros do que ficou
dos países africanos e asiáticos e o Terceiro posteriormente conhecido como “estudos
Mundo, entre os anos 1950 e começo dos sobre branquitude”.
anos 1960. Guerreiro Ramos produziu um A brancura configurava-se como um
conjunto significativo de artigos e livros que problema a ser estudado como estruturante
trata de temas teóricos da sociologia, discus- das relações sociais brasileiras, colocando
cura”, base sustentadora, estética e politica- Ideias como “ujamaa”, “kwanzaa”, “pan-
mente, das relações raciais brasileiras. Há -africanismo” e intelectuais negros interna-
um diálogo interessante com as ideias de cionais como Molefi Asanti figuram nos tex-
Guerreiro Ramos, sem dúvida, na busca dos tos na mesma frequência que uma plataforma
alicerces do mito das discriminações brasi- política quilombista para o negro brasileiro,
leiras e da negação racial do que o país via que mescla memória coletiva, projeto eco-
no espelho censitário, nas ruas cotidianas ou nômico e reivindicação de direitos:
no palco artístico. “Mas o nosso trabalho
antológico do drama negro no Brasil revela “[…] se configura como um problema de
outra dimensão, na qual surge a voz autêntica direitos humanos, direitos de soberania, de
do negro, como raça e como homem de cor: autodeterminação e de protagonismo histó-
a vida social. Ser e viver como negro não rico. […] No Brasil, como maioria da popu-
é uma peripécia comum na vida ocidental. lação, vamos além: temos o direito e a obri-
[…] o Teatro Experimental do Negro vem gação de assumir o poder em nosso país e de
procurando restaurar, valorizar e exaltar a construir a sociedade nacional quilombista.
contribuição dos africanos à formação bra- […] O quilombismo e seus vários equivalentes
sileira, desmascarando a ideologia da bran- em todas as Américas – cimarronismo (Cuba
cura” (Nascimento, 1961, pp. 9 e 19). e México), palenquismo (Colômbia), cubismo
Nascimento se exilou em 1968, após o (Venezuela), maroonismo (Jamaica e Estados
golpe de Estado no Brasil e censuras sofri- Unidos) – significam hoje uma alternativa
das. Seguiu para os EUA, desenvolvendo internacional para a organização das massas
carreira como professor universitário e artista afro-americanas de todo esse Novo Mundo”
plástico, tomando contato com o pan-afri- (Nascimento, 1982, pp. 32 e 34).
canismo (Nascimento, 1982). Retornou ao
Brasil em 1978, num momento decisivo de Nascimento organiza um conjunto de
rearticulação do movimento negro brasileiro, princípios e propósitos políticos, apre-
condensada na criação do Movimento Negro sentados em discussão histórica e pontos
Unificado (MNU) que evidenciaria uma outra gerais, tais como: “O quilombismo é um
geração de ativistas e intelectuais negros, movimento político dos negros brasileiros
com a qual estabelecerá, aos poucos, diá- [...] inspirado na República dos Palmares,
logo (Alberti & Pereira, 2007). Nesse ano, no século XVI, e em outros quilombos
publica um livro que denuncia o genocídio que existiram e existem no país. […] O
do negro brasileiro (Nascimento, 1978). E, quilombismo considera a terra uma pro-
na sequência, documenta seu contato com o priedade nacional de uso coletivo […] A
pan-africanismo e uma proposição, baseada revolução quilombista é fundamentalmente
nisso, de organização política para o povo antirracista, anticapitalista, antilatifundiá-
negro, o Quilombismo (1980), retomada na ria, anti-imperialista e anti-neocolonialista
segunda edição de O negro revoltado (1982). […]” (Nascimento, 1980, pp. 275-7); entre
A denúncia do mito da democracia racial e outras proposições, mas que não encontram
o combate da brancura como valor estético imediatamente eco em portadores sociais
e político ganhariam novas forças. capazes de efetivar suas ideias.
vista negra Thereza Santos, da peça E agora ria as diferenças na diferença (a pele mais
falamos nós (Santos, 2008); e, por último, clara ou mais escura dos afrodescendentes
por meio de seu projeto acadêmico de pes- não brancos), mas que tornaria o racismo e
quisa, de investigação das relações raciais seu combate comum aos “negros” algo mais
brasileiras na USP, sua aproximação com complexo. Como afirma o autor:
os african american studies e o projeto de
uma black sociology nos EUA (Trapp, 2020). “O mulato racial existiu e existe tanto no
Além disso, em 1974, o autor antecipa, Brasil como nos Estados Unidos. Mas o
em uma contundente resenha ao livro de mulato social, apenas no Brasil […] o lugar
Carl Degler, Neither black nor white, um social a que se atribui esta mistura, e é aqui
problema inóspito das relações raciais no que se deve buscar a razão desta classifica-
Brasil e que hoje soa como algo novo (apa- ção. […] Da mesma forma que nos Estados
recendo como debate estadunidense sobre Unidos encontramos o passing, entre nós
colorismo), embora, como demonstrou Oli- encontramos o “trânsfuga”, racial e social.
veira e Oliveira, esteja colocado na matriz […] Afinal, que foram os movimentos sociais
das nossas relações sociais racializadas dos meios negros iniciados em São Paulo
desde a colonização: o lugar sociológico na década de 20 senão um movimento de
do “mulato” e da mestiçagem nos estudos congregação de todos os negros do Brasil em
de relações raciais (no Brasil e nos EUA) busca de uma consciência histórica, tendo à
e também na organização política afro-bra- frente José Correia Leite (mulato), Arlindo
sileira. Ele recordava que: Veiga dos Santos (mulato) […] Foi precisa-
mente através da palavra negro que buscou
“Também no Brasil, para nós, as relações congregar os descendentes de africanos que
raciais são oposições polares, não sendo os agastasse do esvaziamento fenotípico –
porém polares antagônicas. […] Aqui gos- o mulato – socialmente e mais predisposto
taríamos de fazer um apelo à semântica a beneficiar-se das manifestações de hie-
e sugerir um outro ângulo de visão pos- rarquização econômico-social dos grupos”
sível para o mulatto escape hatch. Sua (Oliveira e Oliveira, 1974, pp. 71-2).
tradução em português seria alçapão, pala-
vra que comporta diferentes significados: Essa discussão sobre o lugar social dos
tanto pode ser saída de emergência, como sujeitos nas relações racializadas brasileiras
armadilha preparada” (Oliveira e Oliveira, é fundamental nas reflexões de Oliveira e
1974, pp. 69-70). Oliveira, levando-o a discutir, nesse texto, o
mulato (mestiço) como um “obstáculo epis-
Ademais, havia uma historicidade política, temológico”, complexo e desafiador para os
ignorada por Degler, segundo Oliveira e Oli- estudiosos das relações raciais e também
veira, promovida pelos movimentos sociais para os ativistas, historicamente: “[...] todo
antirracistas brasileiros, da incorporação homem negro (e aqui pensamos no amplo
dos “mulatos”, “mestiços” à construção da spectrum em que ele pode colocar-se ou ser
ideia de “negro” no Brasil – portanto, cons- colocado) tem em comum sua precária, sua
truindo uma força política que não apaga- inexprimível relação com o mundo branco.
as relações raciais no Brasil como polí- âmbito do Estado em seus diferentes níveis,
ticas públicas de combate ao racismo e por meio de governos democraticamente
à discriminação racial. Seja na luta pela eleitos. As ideias têm força social, com
redemocratização política, por meio dos portadores capazes de torná-las reivindi-
movimentos e organizações negros; a pauta cações e movimentos públicos, a depender
da memória social afro-brasileira, promo- dos recursos, adversidades e forças polí-
vendo a Serra da Barriga como Memorial a ticas envolvidas. Meu argumento aqui é
Zumbi dos Palmares e patrimônio cultural, que o pensamento social negro brasileiro,
bem como a demarcação, titulação e patri- no século XX, produzido por intelectuais
monialização das “terras de pretos”, terri- negras e negros brasileiros, sintonizados
tórios quilombolas; ações públicas contra com questões locais e globais de seus tem-
a discriminação racial, atos e movimentos pos, foi responsável por um longo caminho
pela criminalização do racismo, que culmi- de disputas intelectuais, com alcances e
nariam na Lei 7.716/1989 (a “Lei Caó”); a limites concretos em diferentes aspectos
denúncia da “farsa da Abolição” na come- da sociedade, capazes de moldar aspec-
moração crítica do Centenário de 1988; a tos da cidadania brasileira. Neste texto,
participação ativa da Assembleia Nacional enquadrei alguns desses aspectos, por meio
Constituinte culminando na inclusão de de estudos fundamentais, de autoria afro-
pautas do movimento negro na Constitui- -brasileira, focados nos temas da insurgên-
ção Federal de 1988 (Alberti & Pereira, cia, liberdade, cidadania e direitos. Não é
2007; Rios, 2014; Néris, 2018). possível uma história crítica da cidadania
Esses pontos serão decisivos nas con- no Brasil sem que afro-brasileiros homens
quistas públicas dos movimentos negros e mulheres tenham destaque. Tampouco
e seus intelectuais orgânicos brasileiros, uma história do pensamento social sobre
acerca das políticas públicas de ações afir- o país, sob pena de discriminação racista
mativas ou a paulatina representação no e um retrato mal-apresentado.