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Núcleos de Significação
como Instrumento para a
Apreensão da Constituição
dos Sentidos
The meaning core as an instrument for the
understanding of the sense constitution

Wanda Maria Junqueira


Aguiar &
Sergio Ozella

Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 222-245


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 222-245

Resumo: O artigo tem como objetivo instrumentalizar o pesquisador,


segundo a abordagem da Psicologia sociohistórica, nos procedimentos de
análise de material qualitativo, visando a apreender os sentidos que
constituem o conteúdo do discurso dos sujeitos informantes através do
que chamamos de núcleos de significação. Na primeira parte, é feita uma
retomada de aspectos teórico-metodológicos desenvolvidos a partir,
basicamente, de Vigotski, tais como a importância de um método
materialista histórico e dialético, as categorias linguagem e pensamento e
as noções de significado e sentido, necessidades e motivos. Na segunda
parte, propomos algumas etapas de procedimento de organização e análise
do material levantado, particularmente através de entrevistas, visando a
chegar aos núcleos de significação no caminho da apreensão dos sentidos
e da subjetividade dos informantes. Destacamos três etapas: pré-
indicadores, indicadores e núcleos de significação. Complementando o
texto, ilustramos os procedimentos propostos com uma dissertação de
mestrado e uma tese de doutorado orientadas pelos autores, no sentido
de visualizar a análise dos núcleos de significação.
Palavras-chave: Psicologia sociohistórica, metodologia, sentidos, núcleo
de significação.

.Abstract:The main objective of this article is to give the researchers


tools,using the sociohistoric psychological view, in the analyses procedure
of the qualitative material, aiming to learn the sense that constitutes the
speech content of the subject informant, through what we call the meaning
core. In the first part, a retake of the theoretical methodological aspects
developed basically by Vigotski is done, such as the importance of the
historical and dialectical materialism method, the language and thought
category and the notions of meaning and sense, necessities and goals. In
the second part, we propose some stages of procedures to organize and
analyze the collected material, mainly through the interviews, aiming to
get in the core of the meaning in order to learn the sense and the subjective
quality of the informants. We point out three stages: pre - indicators,
indicators and meaning core. To complete the text, we illustrated the
proposals procedure with a master dissertation and a Phd thesis orientated
by the authors as a way to visualize the analysis of the meaning core.
Key words: sociohistoric Psychology, methodology, sense, meaning core.
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

Para iniciarmos nossa discussão sobre a dessa perspectiva metodológica, a crítica radical
categoria sentido e suas implicações das visões reducionistas, objetivistas e
1
metodológicas, torna-se necessário, subjetivistas, a discussão sobre a relação
inicialmente, que se destaque, mesmo que aparência - essência, parte - todo, a
brevemente, alguns aspectos teórico- importância da noção de historicidade, de
2
metodológicos desenvolvidos especialmente processo e a noção de mediação.
por Vigotski, como : a importância de um
método materialista dialético, as categorias Desse modo, frisamos que nossa reflexão
linguagem e pensamento e as noções de metodológica sobre a apreensão dos sentidos
significado e sentido. estará pautada numa visão que tem no
empírico seu ponto de partida, mas a clareza
Desde 1927, quando escreve O Significado de que é necessário irmos além das aparências,
Entendemos,
Histórico da Crise da Psicologia – uma não nos contentarmos com a descrição dos
dessa forma, que Investigação Metodológica, Vigotski destaca a fatos, mas buscarmos a explicação do processo
indivíduo e importância de um método que desse conta de constituição do objeto estudado, ou seja,
sociedade não
mantêm uma
da complexidade do que entendia como estudá-lo no seu processo histórico. No
relação isomórfica objeto da Psicologia, ou seja, o Homem e entanto, ao nos referirmos aos pontos
entre si, mas uma suas funções psicológicas. Fica evidente que essenciais a serem considerados sobre o
relação onde um
constitui o outro.
a Psicologia seria impotente para superar as método, não podemos deixar de mencionar a
tarefas práticas que se lhe apresentavam se impossibilidade de se construir um método
não contasse com uma infra-estrutura lógico- alheio a uma concepção de homem. Assim,
metodológica própria. Revela-se, dessa forma, falamos de um homem constituído numa
nas reflexões do autor, a necessidade de uma relação dialética com o social e com a História,
teoria que fizesse a mediação entre o método sendo, ao mesmo tempo, único, singular e
materialista histórico e os fenômenos histórico. Esse homem, constituído na e pela
psíquicos. Vejamos: ainda nesse texto, o autor atividade, ao produzir sua forma humana de
afirma ter a clareza de que não padece de existência, revela - em todas as suas expressões
mania de grandeza, pensando que a história -, a historicidade social, a ideologia, as relações
começa com ele, mas tem a pretensão de sociais, o modo de produção. Ao mesmo
realizar a Psicologia como ciência. A ciência, tempo, esse mesmo homem expressa a sua
nessa perspectiva, deve ter como pedra singularidade, o novo que é capaz de produzir,
angular a idéia da inseparabilidade do lógico, os significados sociais e os sentidos subjetivos.
da base material, da dialética e do histórico. Indivíduo e sociedade vivem uma relação na
Dessa forma, concordamos com Vigotski qual se incluem e se excluem ao mesmo
quando este afirma que a tarefa daqueles que tempo. Quando afirmamos se incluem,
1 Ver mais sobre essa
pretendem aplicar o marxismo à ciência deve lembramos Vigotski (2001), quando afirma que
questão em Vygotski - ser a de elaborar um método, “...um sistema o indivíduo é “quase o social”; para ele, não
Obras Completas, vol. I -
El Significado Histórico de procedimentos mediadores concretos de há invenções individuais no sentido estrito da
de la Crisis de la
Psicología. Una
organização dos conhecimentos que podem palavra. Em todas, existe sempre alguma
Investigación ser aplicados precisamente à escala dessa colaboração anônima. E, quando afirmamos se
Metodológica.
ciência.....A dialética ( metodologia) é chamada excluem, se diferenciam, destacamos a
2 Ver mais sobre a
questão em Vygotski.
a reproduzir, no plano do cognitivo, a dialética singularidade do sujeito. Entendemos, dessa
Formação Social da objetiva do psiquismo (1996, p.471). forma, que indivíduo e sociedade não mantêm
Mente. Ed. Martins
Fontes, 1994 , cap. 5, e uma relação isomórfica entre si, mas uma
Gonzalez Rey - La Sem a intenção de nos determos na análise relação onde um constitui o outro.
Investigación Cualitativa
em Psicología : Rumbos dos aspectos que definem tal método, Concordamos quando Vigotski (1999) afirma
y Desafios. Ed. Educ,
1999.
destacamos, como decorrência da adoção que o Processo de Internalização deveria ser

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chamado de “Processo de Revolução”, utilizarmos a categoria mediação, possibilitamos


pressupondo uma radical reestruturação da a utilização, a intervenção de um elemento/
atividade psíquica nesse movimento chamado um processo, em uma relação que antes era
de Internalização. vista como direta, permitindo-nos pensar em
objetos/processos ausentes até então. Assim,
Ainda nos detendo na questão metodológica, como já colocamos acima, subjetividade e
vemos a necessidade de apresentar uma breve objetividade, externo e interno, nessa
discussão sobre a categoria mediação, dada perspectiva, não podem ser vistos numa
sua importância para a perspectiva adotada. relação dicotômica e imediata, mas como
O uso dessa categoria nos permite romper as elementos que, apesar de diferentes, se
dicotomias interno-externo, objetivo-subjetivo, constituem mutuamente, possibilitando um a
significado-sentido, assim como afastar-nos das existência do outro numa relação de mediação.
visões naturalizantes, baseadas numa Nossa tarefa, portanto, é apreender as
concepção de homem fundada na existência mediações sociais constitutivas do sujeito,
de uma essência metafísica. Por outro lado, saindo assim da aparência, do imediato, e indo
possibilita-nos uma análise das determinações em busca do processo, do não dito, do sentido.
inseridas num processo dialético, portanto, não Colocadas essas questões metodológicas,
causal, linear e imediato, mas no qual as destacamos, como uma questão preliminar
determinações são entendidas como para a discussão dos sentidos e significados, a
elementos constitutivos do sujeito, como relação pensamento – linguagem.
mediações.
Muitos autores têm debatido esse tema; assim,
A apreensão do homem, como nos lembra faremos uma breve retomada de alguns pontos
Vigotski (2001), dar-se-á pela compreensão da essenciais para essa discussão.
gênese social do individual, “pela compreensão
de como a singularidade se constrói na Retomando nossas reflexões sobre a
universalidade e, ao mesmo tempo e do constituição dialética do homem, podemos
mesmo modo, como a universalidade se afirmar que o plano individual não constitui
concretiza na singularidade, tendo a mera transposição do social. O indivíduo
particularidade como mediação” (Oliveira, modifica o social, transforma o social em
2001, p.1). Entendemos, desse modo, que o
psicológico e, assim, cria a possibilidade do
homem, ser social e singular, síntese de
novo. Isso posto, podemos afirmar que a
múltiplas determinações, nas relações com o
linguagem seria o instrumento fundamental
social (universal), constitui sua singularidade
nesse processo de constituição do homem.
através das mediações sociais (particularidades/
3 “Os Signos, entendidos como instrumentos
circunstâncias específicas).
convencionais de natureza social, são os meios 3 Ver mais sobre tais
questões em Lukács, G.
Assim, ao falarmos em mediação, referimo- de contato com o mundo exterior e também Estética: Categorias
Básicas de lo Estético.
nos, como afirma Severino, “a uma instância do homem consigo mesmo e com a própria Tomo 3. Barcelona –
que relaciona objetos, processos ou situações consciência” (Aguiar, 2000, p. 129).
4 M é x i c o , D . F :
Grijalbo,1967.
entre si; a partir daí, o conceito designará um
elemento que viabiliza a realização de outro 4 No artigo Sentido e
Assim, os signos, instrumentos psicológicos, Significação - sobre
que, embora distinto dele, garante a sua Significação e Sentido:
são constitutivos do pensamento não só para uma Contribuição à
efetivação, dando-lhe concretude” (2002, p. Proposta de Rede de
comunicação, mas também como meio de
44). A categoria mediação não tem, portanto, Significados, in Rede

a função de apenas ligar a singularidade e a atividade interna. A palavra, signo por de Significações, Ed.
Artmed, 2004,
universalidade, mas de ser o centro excelência, representa o objeto na Smolka,A.L.B. discute
mais profundamente a
organizador objetivo dessa relação. Ao consciência. Podemos, desse modo, afirmar questão do Signo.
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que os signos representam uma forma Na verdade, o homem transforma a natureza


privilegiada de apreensão do ser, pensar e agir e a si mesmo na atividade, e é fundamental
do sujeito. que se entenda que esse processo de produção
cultural, social e pessoal tem como elemento
Como afirma Vigotski, “O Pensamento não constitutivo os significados. Dessa maneira, a
se exprime na palavra, mas nela se realiza” atividade humana é sempre significada: o
(2001, p.409), podendo, muitas vezes, “o homem, no agir humano, realiza uma atividade
pensamento fracassar”, não se realizando externa e uma interna, e ambas as situações
como palavra. Dessa forma, para que se possa (divisão essa somente para fins didáticos)
compreender o pensamento, entendido aqui operam com os significados. Nessa perspectiva,
como sempre emocionado, temos que analisar Vigotski (2001) lembra que o que
seu processo, que se expressa na palavra com internalizamos não é o gesto como
significado e, ao apreender o significado da materialidade do movimento, mas a sua
palavra, entendemos o movimento do significação, que tem o poder de transformar
pensamento. o natural em cultural.

Temos, assim, que a relação pensamento- Os significados são, portanto, produções


linguagem não pode ser outra que não uma históricas e sociais. São eles que permitem a
relação de mediação, na qual, ao mesmo comunicação, a socialização de nossas
tempo em que um elemento não se confunde experiências. Muito embora sejam mais
com o outro, não pode ser compreendido sem estáveis, “dicionarizados”, eles também se
o outro, onde um constitui o outro. transformam no movimento histórico,
momento em que sua natureza interior se
O pensamento passa, portanto, por muitas modifica, alterando, em conseqüência, a
transformações para ser expresso em palavras, relação que mantêm com o pensamento,
de modo a concluir-se que a transição do entendido como um processo.
“O Pensamento
não se exprime na pensamento para a palavra passa pelo significado
palavra, mas nela e o sentido. Dessa forma, podemos afirmar que Os significados referem-se, assim, aos
se realiza” a compreensão da relação pensamento/ conteúdos instituídos, mais fixos,
Vigotski linguagem passa pela necessária compreensão compartilhados, que são apropriados pelos
das categorias significado e sentido. sujeitos, configurados a partir de suas próprias
subjetividades.
Isso posto, destacamos a necessidade da
discussão das categorias significado e sentido. Ao discutir significado e sentido, é preciso
Apesar de optarmos iniciar pela discussão da compreendê-los como constituídos pela
categoria significado, faz-se necessário unidade contraditória do simbólico e do
explicitar que essas duas categorias, apesar emocional. Dessa forma, na perspectiva de
de serem diferentes, de não perderem sua melhor compreender o sujeito, os significados
singularidade (fato que nos leva a discuti-las constituem o ponto de partida: sabe-se que
em separado), não podem ser compreendidas
eles contêm mais do que aparentam e que,
descoladas uma da outra, pois uma não existe
por meio de um trabalho de análise e
sem a outra.
interpretação, pode-se caminhar para as zonas
Segundo Vigotski, (2001), o significado, no mais instáveis, fluidas e profundas, ou seja,
campo semântico, corresponde às relações para as zonas de sentido. Afirma-se, assim,
que a palavra pode encerrar; já no campo que o sentido é muito mais amplo que o
psicológico, é uma generalização, um significado, pois o primeiro constitui a
conceito. articulação dos eventos psicológicos que o

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sujeito produz frente a uma realidade. Como Para que se possa melhor compreender a
coloca Gonzalez Rey (2003), o sentido categoria sentido, retomamos um dos
subverte o significado, pois ele não se submete princípios do materialismo dialético: a unidade
a uma lógica racional externa. O sentido contraditória existente na relação simbólico -
refere-se a necessidades que, muitas vezes, emocional. Para se avançar na compreensão
ainda não se realizaram, mas que mobilizam do homem, ou melhor dizendo, dos seus
o sujeito, constituem o seu ser, geram formas sentidos, temos que, nas nossas análises,
de colocá-lo na atividade. O sentido deve ser considerar que todas as expressões humanas
entendido, pois, como um ato do homem sejam cognitivas e afetivas.
mediado socialmente. A categoria sentido
destaca a singularidade historicamente Concordamos com González Rey (2003) ao
construída. Como coloca Namura, afirmar que o pensamento é um processo
psicológico, não só por seu caráter cognitivo,
“A análise da relação do sentido com a palavra mas por ser sentido subjetivo, pelas
Entendemos,
mostrou que o sentido de uma palavra nunca significações e emoções que se articulam em dessa form“A
5
é completo, é determinado, no fim das contas, sua expressão. análise da relação
do sentido com a
por toda a riqueza dos momentos existentes palavra mostrou
Como afirma Heller, “...não pode haver um
na consciência.[....]o sentido da palavra é que o sentido de
rosto completamente desprovido de uma palavra
inesgotável porque é contextualizado em
expressão” (1986, p .74). Segundo a autora nunca é
relação à obra do autor, mas também na completo, é
(1986), o sentir – seja positiva ou
compreensão do mundo e no conjunto da determinado, no
negativamente, sempre significa estar fim das contas, por
estrutura interior do indivíduo” (2003, p.185).
implicado em algo; a implicação vai, assim, toda a riqueza dos
ser vista como um fator constitutivo e inerente momentos
Fica evidenciada, desse modo, a complexidade existentes na
do atuar e do pensar. As emoções não podem, consciência.[....]a,
de tal categoria, fato que, sem dúvida, gera
assim, ser vistas como passivas, como que indivíduo e
grande dificuldade nas formas de apreendê- sociedade não
epifenômenos. Em Teoria da Emoções,
la. No entanto, é esse o caminho que nos mantêm uma
Vygotski, citando Spinosa, destaca o aspecto relação isomórfica
propomos a seguir: apreender o processo
fundamental e constitutivo dos afetos: entre si, mas uma
constitutivo dos sentidos bem como os “...afetos são estados corporais que aumentam relação onde um
elementos que engendram esse processo. constitui o outro.
ou diminuem a capacidade do corpo para a
Queremos apropriar-nos daquilo que diz ação, favorecem-na ou limitam-na, assim como Namura
respeito ao sujeito, daquilo que representa o as idéias que se tem sobre esses estados”(
novo, que, mesmo quando não colocado 2004, p.16).
explícita ou intencionalmente, é expressão do
sujeito, configurado pela unicidade histórica e Na perspectiva adotada, portanto, a separação
social do sujeito, revelação das suas entre pensamento e afeto jamais poderá ser
possibilidades de criação. feita, sob o risco de fechar-se definitivamente
o caminho para a explicação das causas do
O sentido coloca-se em um plano que se próprio pensamento, pois a análise do
aproxima mais da subjetividade que com mais pensamento pressupõe necessariamente a
precisão expressa o sujeito, a unidade de todos revelação dos motivos, necessidades e
os processos cognitivos, afetivos e biológicos. interesses que orientam o seu movimento. 5 Em Sujeito e
Subjetividade,São Paulo:
No entanto, dada a sua complexidade, Desse modo, além de apontarmos a relação Ed. Thomson, S.P, 2003,
Gonzalez Rey faz uma
afirmamos como nossa possibilidade dialética entre o aspecto afetivo e o simbólico, discussão aprofundada
aproximarmo-nos de algumas zonas de destacamos a importância de agregarmos a sobre a questão das
emoções, necessidades e
sentido. noção de necessidade e motivos para a motivos.
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compreensão do sujeito e, assim, dos como estado dinâmico, ainda não dão uma
sentidos. Isso posto, vemos como importante, direção ao comportamento. Esse processo, de
mesmo que de maneira breve, apresentarmos ação do sujeito no mundo a partir das suas
algumas reflexões feitas no campo da necessidades, só vai completar-se quando o
Psicologia sociohistórica sobre esses conceitos. sujeito significar algo do mundo social como
As necessidades são entendidas como um possível de satisfazer suas necessidades. Aí
estado de carência do indivíduo que leva a sim, esse objeto/fato/pessoa vai ser vivido
sua ativação com vistas a sua satisfação, como algo que impulsiona/direciona, que
dependendo das suas condições de existência. motiva o sujeito para a ação no sentido da
Temos, assim, que as necessidades se satisfação das suas necessidades. Tal
constituem e se revelam a partir de um movimento, ou seja, a possibilidade de realizar
processo de configuração das relações sociais, uma atividade que vá na direção da satisfação
processo esse que é único, singular, subjetivo das necessidades, com certeza modifica o
e histórico ao mesmo tempo. Além disso, é sujeito, criando novas necessidades e novas
fundamental ressaltar que, pelas características formas de atividade. Afirmamos, assim, que a
do processo de configuração, o sujeito não necessidade não conhece seu objeto de
necessariamente tem o controle e, muitas satisfação, ela completa sua função quando o
vezes, a consciência do movimento de
“descobre” na realidade social. Entendemos
constituição das suas necessidades. Assim, tal
que esse movimento se define como a
processo só pode ser entendido como fruto
configuração das necessidades em motivos.
de um tipo específico de registro cognitivo e
Com isso, estamos dizendo que os motivos
emocional, ou seja, a constituição das
se constituirão como tal somente no encontro
necessidades se dá de forma não intencional,
com o sujeito, no momento que o sujeito o
tendo nas emoções um componente
configurar como possível de satisfazer as suas
fundamental. Pode-se dizer que tais registros
necessidades.
constitutivos das necessidades não são
necessariamente provenientes das
Ao se apreender o processo por meio do qual
significações, podendo constituir-se em
os motivos se configuram, avança-se na
afecções que ainda não foram significadas.
apropriação do processo de constituição dos
Como coloca González Rey, “Se a emoção
sentidos, definidos como a melhor síntese do
diz não, os meios não estão disponíveis.... A
emoção é que define a disponibilidade dos racional e do emocional. Aproximamo-nos,
recursos subjetivos do sujeito para atuar” dessa forma, do processo gerador da atividade,
(2003, p. 245). ao mesmo tempo gerado por ela.
Apreendemos o que é a atividade para o
Evidencia-se, desse modo, a complexidade sujeito, e, assim, algumas zonas de sentidos
desse processo, marcado especialmente pela da atividade, claro que atravessadas pelos
força dos registros emocionais, geradores de significados, mas, no caso, revelando uma
um estado de desejo, de tensão, que mobiliza forma singular de vivê-las e articulá-las.
o sujeito, que cria experiências afetivas que,
como atividade psíquica, têm papel regulador. A apreensão dos sentidos não significa
Esse estado emocional, que mobiliza, que, apreendermos uma resposta única, coerente,
como nos aponta González Rey, “...caracteriza absolutamente definida, completa, mas
o estado do sujeito ante toda a ação expressões do sujeito muitas vezes
fundamental” (2003, p.242), deve ser contraditórias, parciais, que nos apresentam
analisado para chegarmos aos sentidos. Mas indicadores das formas de ser do sujeito, de
ainda falta um elo. Essas necessidades, vividas processos vividos por ele.

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Sabemos o quão difícil é sua apreensão; ele interferem no seu potencial de captação ou
não se revela facilmente, não está na apreensão dos sentidos e significados
aparência; muitas vezes, o próprio sujeito o buscados.
desconhece, não se apropria da totalidade de
suas vivências, não as articula.
● as entrevistas devem ser consistentes e

Não podemos esquecer que o pensamento, suficientemente amplas, de modo a evitar


sempre emocionado, não pode ser entendido inferências desnecessárias ou inadequadas;
como algo linear, fácil de ser captado; não é ● elas devem ser recorrentes, isto é, a cada
algo pronto, acabado. É interessante quando entrevista, após uma primeira leitura, o
Vigotski afirma que o pensamento muitas informante deverá ser consultado no sentido
vezes termina em fracasso, não se converte de eliminar dúvidas, aprofundar colocações e
em palavras. Com essa afirmação, podemos reflexões e permitir uma quase análise conjunta
entender que vivências ocorrem, que um do processo utilizado pelo sujeito para a
processo está ocorrendo, mas que não se produção de sentidos e significados;
expressa claramente, ou nem é significado ● mesmo considerando que uma boa
claramente, objetivamente, e, assim, podemos entrevista possa contemplar material suficiente
concluir que as vivências são muito mais para uma análise, se houver condições, alguns
complexas e ricas do que parecem. outros instrumentos podem permitir
aprimoramento e refinamento analítico. Para
Então, como apreendê-las? isso, recomenda-se um plano de observação
Que caminho nos conduziria a tal tarefa? no processo das entrevistas, tanto para captar
indicadores não verbais como para
Procedimentos para análise complementar e parear discursos e ações que
através dos núcleos de estejam nos objetivos da investigação.
significação
Outros instrumentos úteis e possíveis de
Antes de entrarmos no tema da análise, utilização: relatos escritos, narrativas, história
consideramos adequada a apresentação de de vida, frases incompletas, autoconfrontação,
alguns apontamentos sobre a “coleta” de vídeo-gravação e, inclusive, questionários ou
material a ser analisado, isto é, os desenhos, desde que sejam complementados
procedimentos e instrumentos recomendados e aprofundados através de entrevistas.
6 Para mais detalhes
para uma investigação dentro da abordagem sobre essa questão,
sociohistórica. Não são procedimentos ou Leitura flutuante e organização consultar: Ozella, S.:
Pesquisar ou Construir
instrumentos exclusivos, mas fundamentais do material Conhecimento. O Ensino
da Pesquisa na
para os nossos objetivos dentro de uma A b o r d a g e m
6 Sociohistórica. In Ana
proposta de pesquisa qualitativa. Os pré-indicadores M.B.Bock (org.) A
P e r s p e c t i v a
Sociohistórica na
Neste artigo, trabalharemos com entrevistas, Consideramos que a palavra com significado Formação em Psicologia.
do nosso ponto de vista, um dos instrumentos seja a primeira unidade que se destaca no S.Paulo: Ed. Vozes, 2003,
pp.113-131; González
mais ricos e que permitem acesso aos momento ainda empírico da pesquisa. Rey, Fernando: La
Investigación Cualitativa
processos psíquicos que nos interessam, Partimos dela sem a intenção de fazer mera en Psicologia: Rumbos y
particularmente os sentidos e os significados. análise das construções narrativas, mas com a Desafios. São Paulo:
Educ, 1999; Vigotski, Lev
Sem a pretensão de ampliar uma discussão intenção de fazer uma análise do sujeito. Semenovich: A Formação
Social da Mente. São
sobre esse método de coleta, gostaríamos de Assim, temos que partir das palavras inseridas Paulo: Martins Fontes,
atentar para algumas características que no contexto que lhes atribui significado, 1998.

marcam esse instrumento e que, sem dúvida, entendendo aqui como contexto desde a
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

narrativa do sujeito até as condições histórico- Esse procedimento tem analogia com o que
sociais que o constituem. coloca Vigotski (1998, p.182) quando fala das
peculiaridades semânticas da fala interior e
Tendo o material gravado e transcrito, destaca a aglutinação como uma delas:
iniciamos várias leituras “flutuantes”, para que “Quando diversas palavras se fundem numa
possamos, aos poucos, nos familiarizar, visando
única, a nova palavra não expressa apenas uma
a uma apropriação do mesmo. Essas leituras
idéia de certa complexidade, mas designa
nos permitem destacar e organizar o que
todos os elementos isolados contidos nessa
chamaríamos de pré-indicadores para a
idéia”.
construção dos núcleos futuros. Irão
emergindo temas os mais diversos,
caracterizados por maior freqüência (pela sua Tentaremos aqui ilustrar com exemplos esse
repetição ou reiteração), pela importância processo, que resultará de dois elementos: os
enfatizada nas falas dos informantes, pela indicadores e sua relação com situações ou
carga emocional presente, pelas ambivalências conteúdos temáticos. Um exemplo que pode
ou contradições, pelas insinuações não esclarecer a organização de pré-indicadores e
concretizadas, etc. Geralmente, esses pré- indicadores pode ser encontrado no Anexo 1.
indicadores são em grande número e irão
compor um quadro amplo de possibilidades A partir dos pré-indicadores identificados,
para a organização dos núcleos. Um critério podemos avançar para indicadores do tipo:
básico para filtrar esses pré-indicadores é violência, drogas, gravidez, sexualidade, família,
verificar sua importância para a escola, consumismo, religiosidade, medo,
compreensão do objetivo da investigação.
alegria, tristeza, prazer, etc. Entretanto, tais
indicadores podem ter significados diferentes
Os indicadores e conteúdos dentro de condições específicas (lembrem-se
temáticos dos critérios de aglutinação citados acima:
semelhança, complementaridade,
Uma segunda leitura permitirá um processo contraposição). Um indicador como a violência
de aglutinação dos pré-indicadores, seja pela pode ter potências e coloridos diferentes em
similaridade, pela complementaridade ou pela
condições diversas, tais como: fases ou etapas
contraposição, de modo que nos levem a
de sua trajetória na vida, nas relações com
menor diversidade; já no caso dos indicadores,
“outros” (família, trabalho, autoridades,
que nos permitam caminhar na direção dos
namorada), em experiências de vida, etc. Estes
possíveis núcleos de significação. Esses critérios
seriam os conteúdos temáticos junto aos quais
para aglutinação não são necessariamente
os indicadores adquirem algum significado. De
isolados entre si. Por exemplo, alguns
posse desse conjunto (os indicadores e seus
indicadores podem ser complementares pela
semelhança do mesmo modo que pela conteúdos), devemos, nesse momento, voltar
contraposição: um fato identificado como pré- ao material das entrevistas e iniciar uma
indicador, ao ser aglutinado, pode indicar o primeira seleção dos trechos que ilustram e
caráter impulsionador/motivador para ação em esclarecem os indicadores.
uma determinada condição. Inversamente, o
mesmo fato pode funcionar como paralisador Esse momento já caracteriza uma fase do
da ação em outro momento, mas ambos processo de análise, mesmo que ainda
podem ser indicadores importantes no processo empírica e não interpretativa, mas que ilumina
de análise. um início de nuclearização.

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Construção e análise dos A análise dos núcleos


núcleos de significação
A análise se inicia por um processo intra-
núcleo, avançando para uma articulação inter-
A construção dos núcleos de significação
núcleos. Em geral, esse procedimento
explicitará semelhanças e/ou contradições que
A partir da re-leitura do material, considerando
vão novamente revelar o movimento do
a aglutinação resultante (conjunto dos
sujeito. Tais contradições não necessariamente
indicadores e seus conteúdos), iniciamos um
processo de articulação que resultará na estão manifestas na aparência do discurso,
organização dos núcleos de significação através sendo apreendidas a partir da análise do
de sua nomeação. Os indicadores são pesquisador. Do mesmo modo, o processo de
fundamentais para que identifiquemos os análise não deve ser restrito à fala do
conteúdos e sua mútua articulação de modo informante, ela deve ser articulada (e aqui se
a revelarem e objetivarem a essência dos amplia o processo interpretativo do
conteúdos expressos pelo sujeito. Nesse investigador) com o contexto social, político,
processo de organização dos núcleos de econômico, em síntese, histórico, que permite
significação – que tem como critério a acesso à compreensão do sujeito na sua
articulação de conteúdos semelhantes, totalidade.
complementares ou contraditórios –, é
possível verificar as transformações e Como nos lembra Vigotski (1998), um corpo
contradições que ocorrem no processo de só se revela no movimento. Assim, só
construção dos sentidos e dos significados, o avançaremos na compreensão dos sentidos
que possibilitará uma análise mais consistente quando os conteúdos dos núcleos forem
que nos permita ir além do aparente e articulados. Nesse momento, temos a
considerar tanto as condições subjetivas quanto realização de um momento da análise mais
as contextuais e históricas. Espera-se, nessa complexo, completo e sintetizador, ou seja,
etapa, um número reduzido de núcleos, de quando os núcleos são integrados no seu
modo que não ocorra uma diluição e um movimento, analisados à luz do contexto do
retorno aos indicadores. É nesse momento discurso em questão, à luz do contexto socio-
que, efetivamente, iniciamos o processo de histórico, à luz da teoria.
análise e avançamos do empírico para o
interpretativo, apesar de todo o procedimento Parece-nos importante insistir que o
ser, desde o início da entrevista, um processo procedimento adotado visa a avançarmos do
7
construtivo/interpretativo . Os núcleos empírico para o interpretativo, isto é, da fala
resultantes devem expressar os pontos para o seu sentido, entendendo que vamos
centrais e fundamentais que trazem em busca da fala interior, ou seja, a partir da
implicações para o sujeito, que o envolvam fala exterior caminhamos para um plano mais
emocionalmente, que revelem as suas interiorizado, para o próprio pensamento
determinações constitutivas. (Vigotski, 1998, p.185).

Uma sugestão para a nomeação dos núcleos Caminhando na compreensão dos sentidos,
é extrair da própria fala do informante uma ou relembramos a importância da análise das
mais de suas expressões, de modo a compor determinações constitutivas do sujeito, e, para
uma frase curta que reflita a articulação isso, é importante apreendermos as
realizada na elaboração dos núcleos e que necessidades, de alguma forma colocadas pelos
explicite o processo e o movimento do sujeito sujeitos e identificadas a partir dos indicadores. 7 Consultar obras citadas
dentro dos objetivos do estudo. Entendemos que tais necessidades são na nota de rodapé número
232
Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

determinantes/constitutivas dos modos de contradições e angústias nas opções dos jovens


agir/sentir/pensar dos sujeitos. São elas que, de classes sociais de alta renda.
na sua dinamicidade emocional, mobilizam
os processos de construção de sentido e, é Como apresenta logo no início de seu resumo,
claro, as atividades do sujeito. Célia pretendeu, com seu estudo,
“compreender as contradições existentes na
Para tentarmos deixar mais claro o processo construção de problema da escolha
por nós utilizado na análise de pesquisas por profissional, geradoras de sofrimento nos
intermédio dos núcleos de significação, adolescentes das classes sociais e econômicas
faremos uso de alguns exemplos retirados de de alta renda...” e completa, no seu capítulo
dissertações e teses de alunos que estiveram metodológico, que o fará através da apreensão
sob nossa orientação nos programas de do “conjunto de significados e sentidos que
estudos pós-graduados em Psicologia social e compõem a construção do problema da
Psicologia da educação da Pucsp. Os escolha profissional” (p. 116).
exemplos não pretendem ser modelos
concluídos e irrepreensíveis do processo. Seu A autora justifica o interesse em estudar a
objetivo é ilustrar o processo, mesmo população de alta renda da seguinte maneira:
apresentando uma ou outra falha, já que cada “Em geral, encontramos trabalhos relativos ao
análise é única e encontra-se dentro de um sofrimento daqueles que não dispõem de
momento contínuo de construção e muitas possibilidades de escolhas profissionais,
aprimoramento. constituídos pelos grupos sociais onde se
concentra a parcela da população
Serão utilizados dois trabalhos. Inicialmente, economicamente carente ou marginalizada,
referir-nos-emos à tese de doutorado de Célia excluída da educação formal de qualidade e
Ferreira Novaes, As determinações sociais no de um conjunto de condições que facilitam o
“compreender as
contradições problema da escolha profissional: contradições acesso às melhores oportunidades de
existentes na e angústias nas opções dos jovens das classes trabalho.[...] Entretanto, esses jovens (de classe
construção de sociais de alta renda, desenvolvida no
problema da alta) estão também sendo forjados nesta
escolha Programa de Psicologia social, em 2003, sob mesma sociedade de cuja dinâmica extraem
profissional, orientação do professor Sergio Ozella. Em os elementos a partir dos quais constroem os
geradoras de seguida, ilustraremos com a dissertação de
sofrimento nos ideais e valores que respaldam suas ações,
adolescentes das mestrado de Agnes Maria Gomes Murta, de enquanto agentes privilegiados que
classes sociais e 2004, no Programa de Psicologia da educação, contribuirão, no exercício de suas profissões,
econômicas de orientada pelo professora Wanda Maria
alta renda...” para o processo de construção desta mesma
Junqueira de Aguiar, Contribuições da sociedade.[...] A classe social é uma
Célia Psicologia sociohistórica para a educação referência a valores que definem
inclusiva. possibilidades, limites e contradições [grifo
nosso]” (p. 4).
Cada uma delas teve razões específicas para
ser escolhida como exemplo e não
O sujeito da investigação foi um jovem (Rafael)
necessariamente ilustram de maneira perfeita
em processo de orientação profissional na Puc-
todo o processo, mas servem como referência
RJ. Cursava o 3º ano do ensino médio em
para ao menos uma das etapas identificadas uma escola bilíngüe da zona sul da cidade.
no início desta seção. Pertencia a uma família de altíssimo nível
socioeconômico, residia em um condomínio
Novaes, Célia Ferreira - As determinações fechado e tinha sido alfabetizado na Europa.
sociais no problema da escolha profissional:
O material foi resultado de entrevistas

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Wanda Maria Junqueira Aguiar & Sergio Ozella PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 222-245

individuais ocorridas durante as sessões de ... ambas as profissões têm algo em comum,
orientação profissional, que compuseram um sedutor e glamuroso. São afirmações
total de 15 encontros. explicadas principalmente por imagens, onde
a compreensão do que sejam as profissões se
A partir da organização das entrevistas, que faz a partir de experiências marcadamente
resultaram nos indicadores e nos conteúdos visuais:
importantes para o objetivo do estudo, Célia
construiu seis núcleos de significação: “...eu não consigo ver quando tem operação e
tiram as partes de dentro da gente, o cara coloca
a mão, não gosto de olhar.”
● a realidade que o confunde e incomoda;
● a experiência estética das profissões A referência às profissões parece moldada por
reificadas; relações sensíveis, segundo Rafael, oriundas
● a vida sob controle ou o atrevimento do real; de filmes da TV, que agradam aos sentidos e
● o prazer como causa e conseqüência ; excitam o sujeito.
● as contradições e ambigüidades entre a
autonomia protegida e a rotina sempre nova; Rafael se refere à profissão como um produto,
● a condição de impotência do ser natural. cujo uso deve agregar valor a quem o possui e
identificar o sujeito enquanto classe de
Por problemas de espaço editorial, iremos aqui consumidor a que pertence:
ilustrar a análise com apenas um dos núcleos.
“...lugar desvalorizado ...num lugar que não
Entretanto, todos eles, de alguma forma, estão
te valorizam ...deve ter coisa melhor que
muito inter-relacionados e imbricados entre
Medicina ...coisa que eu goste mais, me der
si, configurando a integração pretendida no
melhor” (p.128).
procedimento proposto anteriormente.
É interessante destacar aqui como a autora
A experiência estética da conduz sua análise. Célia articula dados do
profissão reificada sujeito, quebra a seqüência cronológica da
entrevista e busca a articulação entre fatos até
Esse núcleo se constituiu a partir das narrativas então não articulados pelo sujeito, revela
referentes às duas profissões que pautavam a relações, e, para isso, recorre, além das
dúvida de Rafael: a Medicina e o Direito. categorias de análise da sociohistórica, a
conteúdos de outras áreas das ciências
“...acho a Medicina legal porque é a maior humanas e sociais para explicar (por exemplo)
adrenalina ...tem sempre um caso novo ...uma o poder da mídia na constituição dos sujeitos.
história toda complicada pra gente resolver ...tem A autora continua sua análise:
várias pessoas pra resolver junto com você
...você tem a maior galera pra ajudar você.” “A escolha se faz sobre um conjunto de
profissões-coisas que são avaliadas pelo seu
Quanto ao Direito, sua referência pode ser valor de troca na sociedade, quanto de retorno
identificada como: poderá ser obtido com sua posse. Há um
distanciamento do sujeito com a função social
“...aquela roupa ridícula ...tem que ler muito, do exercício das profissões, avaliadas como
os livros são enormes ...é muito tudo sozinho produtos para uso, consumo e troca... A
...ali na hora você decide a parada, tem que hierarquização das profissões, feita pelas
convencer as pessoas, e se errar? ...também é escolas, e o respectivo status daqueles que as
uma profissão poderosa como a Medicina.” escolhem, participam, também, da
234
Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

configuração desse núcleo de significação. economicamente, sem nenhuma ênfase no


Assim, trabalho para que isso aconteça.[...] Na
sociedade apresentada pela mídia, só se
‘...Publicidade exige menos estudo do que colocam problemas que ela é capaz de
Medicina ...não é tão valorizada ...o pessoal solucionar. Há uma permanente relação entre
de Medicina acha que é melhor que os outros os desejos e os meios para a sua realização,
...eu também achava.’ negando as condições concretas em que
vivemos” (p.139).
O status pessoal é denotado pelo status da
profissão reificada, cujo valor revela o status A autora continua sua análise, agora
de quem a possui ”(p.128). contextualizando e teorizando (sobre) suas
reflexões.
Mais adiante, Célia considera o papel da mídia
na produção de significados sobre as “Vários contextos contribuem como processos
profissões. Senão vejamos: mediadores da construção da subjetividade de
Rafael, de seus sentidos pessoais sobre o
.[...] Na sociedade “Rafael compreende a Medicina, antes de
problema que atravessa e suas possíveis
apresentada pela tudo, pela simbologia de poder e glamour que
mídia, só se soluções. Suas múltiplas relações intersubjetivas
acompanham a apresentação das profissões
colocam servem de mediadores para a conversão
problemas que ela na mídia, para a qual só interessam os seus
desses contextos e seus significados para o
é capaz de aspectos isolados, quer seja nas publicidades,
solucionar. Há uma plano intra-subjetivo e de sentidos pessoais de
nos seriados, filmes ou novelas. A profissão
permanente Rafael.”... “Compreender a cultura e o
relação entre os costuma ser parte do contexto do produto que
conjunto de relações sociais em que Rafael
desejos e os meios pretende vender ou do personagem que a
para a sua está inserido e suas atividades interativas
representa, não tendo qualquer antecedente
realização, concretas no cotidiano permite-nos
negando as que a comprometa num tempo histórico ou
compreender os sistemas de signos que
condições numa realidade social complexa. A Medicina
concretas em que medeiam e configuram o processo de
que é apresentada por Rafael está destituída
vivemos” (p.139). subjetivação de Rafael, como sente e interpreta
de história, são fragmentos de imagens e
a realidade a sua volta” (p.140).
Rocha movimentos em que estão ausentes os
elementos concretos que constituem as Nesse trecho, vale destacar novamente o
relações de produção e o trabalho. Na cuidado da autora em articular a construção
verdade, sua Medicina não está inserida em dos sentidos de seu informante com suas
qualquer relação econômica, tudo é vivências, suas experiências, como a soma dos
funcionalmente articulado para o final feliz, eventos psicológicos despertados pela palavra.
isto é, aquele que faz sentido para o roteiro. Desse modo, fica clara a importância da teoria
Isoladamente, nada é absurdo, mas tudo é e da contextualização para chegarmos aos
acrítico. Essa experiência guarda uma perigosa sentidos entendidos (como dito anteriormente
proximidade com outros aspectos do cotidiano neste texto) como atos do homem mediados
de Rafael” (p.139). socialmente.

Outro destaque a ser feito se refere ao uso Celia conclui, articulando seus sentidos e
da literatura, não se prendendo apenas às falas significados com o grupo social onde Rafael
do sujeito, para justificar, e, dessa forma, está imerso.
ampliar e contextualizar suas considerações.
8
8 Rocha, Everaldo. A “Rocha (1995) nos mostra que a sociedade “Rafael constrói a experiência do seu grupo
Sociedade do Sonho. Rio na mídia é uma sociedade de abundância, social enquanto é por ele constituído, através
de Janeiro: Mauad
Editora, 1995. resolvida e absolutamente bem sucedida das significações que produz a partir das

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funções distintivas de sua classe social. Essas A autora enfatiza o caráter e a importância
funções se realizam por diversos aspectos, desse núcleo de significação,
pela posse de determinados objetos, pelo tipo
e forma de consumo e freqüência a lugares e, “O prazer como causa e conseqüência, em
também, por práticas e partilhas de si mesmo, é essencial em qualquer avaliação
significados que são formas de ser e vivências que faz, se constitui na métrica daquilo que
emocionais, configurando o mundo de Rafael ele observa, analisa, consome e decide, isto
e ensejando novas experiências reais em sua é, a realidade é aferida pelo estado de ânimo
vida” (p.140). que propicia. É ponto de partida, processo e
objetivo. Rafael diz que quer encontrar algo
O prazer como causa e de que goste, e que só assim vai querer
conseqüência estudar e terá garantido o sucesso e a
realização profissional. Os atributos da
profissão deverão fazê-lo sentir-se animado o
Nesse núcleo, a autora trabalha um dos
suficiente para querer tal profissão. Ele a quer
aspectos centrais no discurso de Rafael,
porque ela é uma garantia de que terá prazer.
relacionando-o com o caráter hedonista
Pode inclusive não ser a Medicina, pois indaga
presente nos jovens, particularmente nos do
sobre se
segmento socioeconômico de Rafael e que
parece nortear não apenas suas escolhas
‘...tem alguma coisa que eu possa gostar mais
profissionais mas também sua própria vida.
...que seja melhor pra mim.’
“Escolher aparece fortemente vinculado ao
prazer como critério decisório e que, ao ser Mas não pode ser qualquer outra profissão,
atendido, efetivamente deverá levar a um tem que preencher seus vários critérios, numa
resultado igualmente prazeroso. Todo o liberdade de escolha que só permite um
processo seria um único momento de um resultado – o sucesso em todas as suas
prazer que se expande. A certeza de Rafael nuances” (p.149).
de que isso é possível vem de sua experiência
de vida. Frente ao que lhe desagrada, ele Mais adiante, Célia tenta compreender melhor
simplesmente não olha, troca de canal, como a questão do compromisso e do custo-
nas cenas dos filmes de TV que lhe desagradam benefício presente nas decisões de Rafael.
ou apenas exclui, como as partes da cidade
onde mora, “Rafael define a dose de compromisso que
está disposto a investir, o tempo em que
‘...eu até penso nisso, mas não vejo saída e aí,
permanecerá na sessão e o término dos
desligo.’
assuntos abordados. Tem dificuldade para se
Afirma que, quando está a fim de alguma comprometer com o outro, despejando
coisa, sempre a consegue, seja passar de ano informações, fatos, alegrias e sofrimentos sem
no colégio, seja um carro novo. Sua se deter sobre sua própria história.
preocupação principal não é com seu
desempenho na profissão, mas com a ‘...Eu até penso nisso, mas não vejo saída e
manutenção de um estado de prazer com o aí, desligo.’
que vai fazer, que, por sua vez, é a garantia
do sucesso. Esse gostar não só deve existir no Mais que um processo de defesa circunstancial,
momento da escolha como deve manter-se é uma forma de lidar com a experiência do
no futuro, condição para que permaneça cotidiano e um estilo de vida. Não lhe ocorre
exercendo qualquer profissão”(p.129). procurar ou construir saídas que dependam
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

de si mesmo, de sua persistência ou esforço, O prazer como causa e conseqüência da


pois os mecanismos de delegar as soluções escolha profissional força uma busca ansiosa
de seus problemas e o de desligar-se do que de Rafael pelo curso que mais o encante, com
não gosta já lhe são familiares e sempre garantias de que continuará, no futuro,
funcionaram”(p.150). E continua:“ Rafael não gostando da escolha que fizer, ‘...se eu gostar
pretende deter-se muito tempo sobre os vai ser legal ...não vou ter problemas’ (p.151).
mesmos fatos. Seus momentos estão sempre
repletos de fazeres, exigindo uma dispersão Subjaz uma configuração de mundo profissional
competente para conseguir, ao mesmo que só o interessa na medida e extensão em
tempo, marcar programas com amigos, que cumpre uma função sempre realizadora
resolver seus problemas de estudo, atender de prazer. A profissão se apresenta liberta de
às demandas que lhe chegam pelo telefone qualquer compromisso com o real a sua volta,
celular, enquanto lida com os próprios da mesma forma com que Rafael recorta o
sentimentos durante a nossa relação de mundo que o interessa e apenas por ele circula.
orientação. Rafael se liga e se desliga de um Não se trata apenas de negar a realidade, mas
assunto para o outro, num fluxo de fatos e de subvertê-la, travesti-la numa aparência de
emoções que carecem de reflexão (p. 150). realidade, formando uma ilusão de sociedade
adequada a seus propósitos e onde tudo é
Rafael configura a escolha profissional de igualmente possível, basta querer ‘...se ele
acordo com o seu cotidiano, que ele não quer quiser fazer, que faça’, como afirma a mãe de
ver mudado porque ‘...minha vida é muito Rafael. O real fica, assim, submisso,
manera.’ Não se trata de querer manter-se incondicionalmente, a todas as hipóteses que
criança, muito pelo contrário, a infância impõe se queira lançar sobre ele” (p.152).
limites e barreiras indesejáveis, mas de ter
uma vida adulta repleta das possibilidades Novamente vale a pena chamar a atenção para
avidamente desejadas, ampliando espaços e a maneira como a autora procura compreender
liberdades. Rafael quer ser adulto não com e ampliar as considerações do seu sujeito
as facilidades infantis que são muito tímidas integrando-o ao contexto ideológico do
para seus anseios, mas com as condições, capitalismo que o cerca e determina seus
possibilidades e ações, sem conseqüências significados e sentidos, bem como o
adversas, com as quais convive no universo movimento de transformação e de contradição
dos adultos que o cercam. É um modelo de que pode estar em processo a partir das
adultez que o inspira e não o retorno a discussões com a pesquisadora.
modelos infantis (p.150).
“Rafael convive e partilha da requerida
A preferência profissional de Rafael, portanto, flexibilidade para a mudança e do afrouxamento
depende da capacidade potencial de que das interdições nos deslocamentos,
algum curso suscite o seu gostar e que lhe acompanhando as práticas econômicas e as
permita vislumbrar sensações novas e perspectivas de emprego. Saber-se móvel é
prazerosas que, por sua vez, desencadeiem agora uma qualidade que Rafael deve cultivar,
novos desejos, isto é, a profissão deve atender porque necessita dela para cumprir suas metas
ao desejo de ser capaz de desencadear novos de sucesso profissional, mas sente, com
desejos e assim sucessivamente. Para Rafael, apreensão, a conseqüente deriva interior. A
as profissões têm que extrair sentido de si lógica do capital flexível, deslocada para
mesmas e se autojustificarem, oferecendo sua trabalhadores igualmente flexíveis e
própria legitimação em cada momento e contingenciais, que possam ir e vir, fluindo
proporcionando a maior satisfação possível. pelos lugares sem acusarem danos ou

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sofrimentos, encontra Rafael relutante em Nossa pesquisa nos faz reconhecer os


desprender-se do próprio passado. Nesse paradoxos de vidas cercadas de dispositivos
momento de escolha, a flexibilidade implica de segurança que garantem a liberdade de
tanto riscos e perdas quanto soluções (p.154). movimento e prazer e, ao mesmo tempo,
Dá-se conta de que, na vida, as coisas não incutem o sentido de vulnerabilidade,
funcionam como na prova do vestibular que opressão, incapacidade de superar obstáculos
fez no ano anterior, só ‘...fiz para ver como e medo das diferenças, paralisando suas ações.
era ...fazer de conta sem ter que ficar nervoso.’ A naturalização da individualidade massificada,
No que concerne a sua escolha, além de não soberana numa sociedade invisível, desliza para
ter um script, Rafael compreende que nem a impossibilidade da ação transformadora no
tudo pode ser ensaiado. Situações imprevisíveis mundo real.
constituem o tipo da novidade que ele teme,
aquelas que podem expor o real que não o É fundamental que aprofundemos nosso
interessa e que fogem ao seu controle. Se falar conhecimento sobre as múltiplas
em um projeto de vida a seguir, soa pouco oportunidades de construção de realidades
atrativo porque retira a possibilidade de ser fragmentadas que são oferecidas pela mídia e
flexível e plural; fora dele, surge a insegurança. sua programação para adolescentes, plenas de
Rafael necessita sentir-se seguro, protegido e materiais simbólicos de fácil digestão,
ciente de que está definitivamente certo incentivando consciências planas e explicações
naquilo que faz, mas suspeita que não terá as lineares do real que circulam no cotidiano dos
certezas sobre o caminho que escolher antes jovens. Todo um ritmo veloz e superexcitado,
de percorrê-lo. Dá-se conta, também, de que predominando a cultura da ação sobre a
sua liberdade de escolha é, ao mesmo tempo, narrativa, oferecendo referências simbólicas na
São estilos de vida
gratificante e dolorosa” (p. 154). ininterrupta tela eletrônica eivada de imagens
lúdico-estético-
e efeitos especiais, numa estimulação sem hedonistas que
Nas considerações finais, a autora reafirma seus memória, numa cultura sem rastro e sem insistem em se
colar na idéia do
objetivos e faz uma síntese de suas pretensões conseqüências, com primazia do tempo
ser jovem
e do que foi atingido na sua investigação. presente e do lazer imediato. São estilos de enquanto uma
vida lúdico-estético-hedonistas que insistem criação da própria
“Pretendemos, neste trabalho, chamar a atenção juventude, que
em se colar na idéia do ser jovem enquanto
efetivamente se
também para a importância de acompanharmos uma criação da própria juventude, que apropria desses
os movimentos e as transformações que vêm efetivamente se apropria desses significados significados e
desenvolve um
alterando as relações dos jovens com a educação, e desenvolve um sentido de participação e
sentido de
a informação e a escola de ensino médio, uma ética própria. A partir dessas concepções, participação e
cremos poder ampliar nossa compreensão uma ética própria.
especialmente como instituição garantidora de
empregos. Sem uma perspectiva crítica desse sobre a profundidade e extensão com que a
ambigüidade da urgência do novo, mantendo
complexo relacionamento, perdemos a
a responsabilidade solitária de manutenção dos
possibilidade de compreender o que significa a
controles sobre os resultados, afetam,
educação formal da escola para esses jovens, cuja
estressam e paralisam os sujeitos”(pp.162/
insatisfação aponta um esvaziamento do ensino
163).
médio, percebido como um curso de passagem
e tempo de sofrimento, destituído de significado Murta, Agnes - Contribuições da Psicologia
próprio e sem utilidade outra que não seja, ao sociohistórica para a educação inclusiva: os
terminá-lo, conseguir passar para uma sentidos produzidos por professores da
universidade, escamoteando-se todas as educação infantil de uma cidade do Vale do
contradições desse relativo sucesso (pp.161/162). Jequitinhonha acerca da inclusão escolar.
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

Essa pesquisa teve como objetivo analisar o organização dos núcleos, pretende-se, cada
processo de constituição dos sentidos vez mais, criar as condições de nos
subjetivos de duas professoras de educação apropriarmos daquelas determinações que
infantil acerca da inclusão escolar de crianças constituem o sujeito
com deficiência no ensino regular (deficiências
essas que geram necessidades educacionais A autora (idem) frisa que o levantamento e
especiais). organização dos núcleos de significação já
constitui um momento de análise, pois o ato
Foram realizadas entrevistas com quatro de “recortar” é realizado a partir dos critérios
professoras e uma coordenadora. O critério, propostos pelo pesquisador, e esses critérios
como não poderia deixar de ser, foi qualitativo. são sempre escolhidos em função dos objetivos
Desse modo, foram escolhidos profissionais da pesquisa, e, como diz Ozella (2003, p.114),
que podiam falar com propriedade do tema a “[...]nunca são neutros”.
ser pesquisado. Dentre esses quatro, foram
escolhidas duas professoras que, no entender Os núcleos de significação resultantes foram:
da pesquisadora, melhor se adequavam aos
propósitos da pesquisa. Com o intuito de ● o encontro com a religiosidade;
qualificar as informações obtidas, foram
● ser normal ou estar deficiente: eis a questão;
realizadas cinco entrevistas recorrentes com
● o papel do professor;
cada professora.
● inclusão/projeto creche inclusiva/sociedade
Utilizaremos como exemplo apenas a análise inclusiva.
referente a uma das professoras, denominada
Ferreira. A título de exemplo, utilizaremos um dos
núcleos: “O encontro com a religiosidade”.
Como coloca Agnes (p.124), partindo do
pressuposto que a análise é construtiva e
interpretativa, o procedimento para a
“O encontro com a
apreensão dos indicadores deu-se da seguinte religiosidade”
forma: após a transcrição, foi realizada uma
Segundo Agnes, esse núcleo é capital porque
leitura flutuante do material; em seguida,
foram sendo levantados indicadores, ou seja, evidencia a religiosidade como um dos pontos
questões que se repetiam, que eram fundamentais e constitutivos da vida de
enfatizadas, que revelavam envolvimento da Ferreira, sendo, portanto, um aspecto essencial
professora e que se mostraram importantes, que atravessa a forma como ela sente, pensa
considerando o objetivo da pesquisa, ou seja, e age sobre o mundo. Assim sendo, a
apreender os sentidos e significados sobre religiosidade marca profundamente a maneira
inclusão. Como exemplo, destacamos a como ela atribui sentidos à inclusão, à
questão da religiosidade, que se mostrou um deficiência, à sua vida profissional e às suas
indicador fundamental para a organização de relações interpessoais. Entendemos que a
um dos núcleos, por atravessar e mostrar-se importância dada por Agnes a esse núcleo é
constitutivo de muitas das experiências vividas adequada, dado ser uma das funções centrais
pela professora. Após esse momento, estavam do núcleo de significação, que é destacar
criadas as condições para se organizar, no caso, aqueles aspectos fundamentais para a
um dos núcleos de significação, ou seja, para compreensão do sujeito, aqueles aspectos que
articularmos os conteúdos relacionados às são constitutivos do sujeito a ser pesquisado.
experiências que tinham a religiosidade como Para fundamentar esse movimento de análise
elemento essencial. Com esse processo de que levantou o núcleo, Agnes destaca partes

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da fala de Ferreira que evidenciam a relevância remédio. Depois que eles (os familiares) viram
da religiosidade em sua vida, o quanto ela foi que o remédio estava me deixando daquela
constitutiva das suas formas de ser, pensar e maneira.... [...] Assim, me deixando... é, ...
sentir. Segundo Agnes (p.125), Ferreira nos apática. Então eles ficaram preocupados.
revela, por meio da sua história de vida, que, Como é que eles iam deixar eu sair sozinha
por ter sido diagnosticada aos 14 anos de idade pra ir pra algum lugar.... Então o dia que eu...
como pessoa com sofrimento mental, teve que me internei,....o doutor falou que eu não tinha
tomar “remédio controlado”, era vigiada pela nada, que eu ia melhorar, esse dia eu renasci
família e não tinha autonomia para gerir a pra vida.[..]a doença que eles achavam que
própria vida. “[...] os médicos falavam com eu tinha era um engano, não era doença,
minha mãe que isso (os sintomas apresentados) porque mediunidade não é doença.... Aí
era um princípio de loucura”. Ela relata que, comecei a decidir minha vida, a andar
nesse período, trabalhou e que não pôde sozinha.[...]O que faziam comigo eu comecei
estudar de forma sistemática. Após os 24 anos a fazer pras pessoas [.......]E assim, comecei
de idade, e a partir da intervenção de um a ajudar as pessoas mais... humildes que me
médico espírita e da sua internação em hospital procuravam, porque eu comecei a trabalhar
psiquiátrico no qual a Doutrina Espírita no espiritismo.”
orientava a atividade de alguns profissionais,
Ferreira se sente curada e ressignifica sua Na sua análise, Agnes destaca que a fala de
existência. A Doutrina Espírita passa, então, a Ferreira traz à tona sentimentos e emoções
nortear de maneira profunda a sua vida. sobre sua forma de ser e agir no mundo “antes
“(o médico) [...] fez
e depois da sua cura”. Num esforço de análise um tratamento
“(o médico) [...] fez um tratamento comigo, e portanto, de apreensão do processo de comigo, me
constituição dos sentidos configurados por desintoxicou, me
me desintoxicou, me internou, tirou... todo o internou, tirou...
remédio, melhorou e me deu...ânimo. Ferreira, a pesquisadora em questão traz todo o remédio,
[...] categorias que têm o potencial de iluminar a melhorou e me
realidade estudada. Vejamos um trecho de sua deu...ânimo.
[...]
Quando ele me levou no Centro Espírita, foi análise, realizada por meio de algumas
onde eu melhorei, foi aonde que, que tudo categorias da Psicologia sociohistórica.
pra mim mudou, que eu fui ter vida... nova.
“Segundo Rey (2003, pp. 241-254), as
Foi onde eu tive minha vida renovada, minha
emoções estão estreitamente ligadas às ações,
vida melhorou, porque, eu... eu vi a vida com
por meio das quais caracterizam o sujeito no
outros olhos, eu não precisava de ninguém
mais pra ficar me vigiando.” espaço de suas relações sociais. Para ele, a
vivência da pessoa que é constituída
Ferreira deixa claro como o período historicamente gera um conjunto de emoções,
compreendido entre os 14 e 24 anos foi que, por sua vez, geram necessidades. As
doloroso e o quanto ser considerada “doente” necessidades são entendidas, aqui, como
a incomodava. Dessa forma, após “sua cura”, “estados produtores de sentido, associados à
de pessoa que necessitava da ajuda de outros, atuação do sujeito numa atividade concreta”;
passa a ajudar. Ajudar os outros se torna, essas necessidades geram motivos que levam
então, sua filosofia de vida. Fica evidente o o sujeito a atuar de forma particular no mundo.
prazer e a felicidade que ela sente em tomar Podemos, então, estabelecer relações entre
a responsabilidade de sua própria vida para si as emoções vividas por Ferreira na fase em
e o prazer de dedicá-la à ajuda ao próximo. que se via e era vista como “incapaz”, a
entrada da religiosidade em sua vida e a sua
“[...] o médico falou que eu tinha que tomar forma atual de ação no mundo.
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

O sentimento de exclusão, de inferioridade, pessoal e um motivo que a liga


de incapacidade, de ser doente, que ela deve profissionalmente à atual instituição em que
ter vivido dos 14 aos 24 anos, geraram, para trabalha. Esse aspecto é tão forte que ela
essa segunda fase de sua vida, a necessidade recusa o convite para trabalhar em uma outra
de ter sua capacidade e autonomia atividade melhor remunerada.
reconhecidas. “Aí comecei a ... a decidir minha
vida, sozinha; a andar sozinha; viajar sozinha, Consideramos, nesse núcleo de significação,
trabalhar sozinha, sem que ninguém precisasse a caridade, a doação, a ajuda, o amor como
me levar. Eu comecei a fazer tudo sozinha elementos que, a partir da religiosidade, irão
aí... ao invés “d’eu” ser ajudada, eu comecei constituir os sentidos que serão atribuídos às
ajudar as pessoas.” experiências de vida de Ferreira.

A Doutrina Espírita – que foi sua salvação – É necessário ressaltar que as falas de Ferreira
passa a ser parte constituinte de sua vida e os são reveladoras dos sentidos que se foram
preceitos que norteiam essa Doutrina passam constituindo através das experiências vividas
a nortear também suas ações e sua vida. por ela, ou seja, os sentidos foram sendo
Assim, ajudar, doar, abdicar e a caridade construídos ao longo das suas experiências.
permeiam não só todo o discurso de Ferreira Entretanto, esses sentidos, que são
mas também sua ação/atividade” (pp.127- particulares, são, ao mesmo tempo, compostos
128). pelos significados sociohistóricos da
humanidade. Rey (2003, p. IX) nos ajuda a
Podemos perceber, então, que a partir do
compreender esse caráter dialético da
momento em que Ferreira começa a ‘viver
construção dos sentidos quando, ao tratar das
uma nova vida’, as múltiplas necessidades
questões referentes à produção dos sentidos
constituídas historicamente encontram novas
e dos significados em Vigotski, afirma que :
formas possíveis de se configurar em motivos.
Dessa maneira, diante de sua realidade
“[.....] as criações humanas são produções de
profissional, ela passa a ajudar as pessoas, a
sentidos, que expressam de forma singular os
doar seu tempo, a fazer caridade, a amar a
complexos processos da realidade nos quais o
todos como irmãos, a encontrar novos motivos
homem está envolvido, mas sem constituir um
que impulsionam sua vida.
reflexo destes. Em outras palavras, esses
Vejamos: processos são uma criação humana, os quais,
‘[...] e assim, eu não cobro nada de ninguém, integrando os diferentes aspectos do mundo
eu não peço nada pra ninguém, meu trabalho, em que o sujeito vive, aparecem em cada
meu trabalho é gratuito.’ sujeito ou espaço social concreto de forma
única, organizados em seu caráter subjetivo
A APAE entra, então, em sua vida, como uma pela história de seus protagonistas.”
benção,
“Ser normal ou estar deficiente:
[...] eu não estou trabalhando só prá me eis a questão!”
sustentar; eu estou trabalhando por
prazer.[...]Eu estou trabalhando também por Segundo Agnes (pp.130-131), um ponto
amor.” importante para a análise refere-se à forma
como, também inundada pelos princípios da
Segundo Agnes (pp.128-129), “...sentir-se útil religiosidade, Ferreira concebe a deficiência e
a tira da esfera dos inválidos, incapazes. Ajudar o deficiente. Esse aspecto constitui, portanto,
as outras pessoas passa a ser uma necessidade o segundo núcleo de significação.

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Como explicitado anteriormente, nesse núcleo ‘Olha, eu não vejo elas como deficientes não.
de significação, foram agrupadas e articuladas Eu vejo elas como ser humano. Eu trato elas
as falas/conteúdos (indicadores) que se igual, eu não tenho esse negócio de que elas
referem às concepções, sentimentos e práticas são coisa não. Na hora de cuidar delas a gente
sobre deficiência e sobre a pessoa deficiente. cuida... com mais carinho, cuida de... com um
Segundo a pesquisadora em questão (idem), meio mais... adequado, mas olhar pra elas eu
ao ser solicitado a Ferreira que explicitasse sua olho como ser humano. Como um irmão...
forma de ver as pessoas com deficiência, ela igual! eu não olho elas como deficientes não.
parte do senso comum, de uma visão Porque deficientes somos todos, né?’
estereotipada dessas pessoas. Atribui a elas
características tais como: “eles são dóceis”, A idéia de que todos somos deficientes, de
“carinhosos”, “inteligentes”, capazes”, “não que todos temos uma deficiência, ou de que
todos nós, em algum momento de nossas vidas,
metem medo”, “são bonzinhos”, “gratos”,
vivenciamos uma situação de “estar deficiente”,
“calmos”. Percebe-se aqui que Ferreira
foi muito difundida por Mantovan (1997) e
apresenta uma visão ingênua, ideologizada,
Werneck (1999); entretanto, observa-se que
que descontextualiza o deficiente como ser
muitos de nós, educadores, nos apropriamos
historicamente situado, sendo essa uma visão
dessa fala sem pensar nas implicações que ela
que em nada contribui para a transformação
traz. Mais uma vez, nega-se a diferença e, de
das práticas educacionais, uma vez que se trata
uma forma simplista, reduzem-se as implicações
da educação de seres abstratos e idealizados.
político-pedagógicas, tais como: eliminação das
Retomando nossa intenção de exemplificar
barreiras programáticas e arquitetônicas, maior
possíveis formas de se realizar uma análise,
investimento em formação dos professores,
na perspectiva sociohistórica, vale destacar a etc., necessárias, por exemplo, para a
importância de se buscar não apenas descrever alfabetização de uma criança cega ou surda.
os fatos, mas explicá-los, ou seja, buscar Concordamos com Sá (1992, p.14) quando
formas de explicitar a gênese social do afirma que a ‘corrente máxima de que ‘somos
individual. Agnes pretende, com sua análise, todos iguais’ serve antes para ocultar o
evidenciar que a fala da professora tem como preconceito e justificar a exclusão do que para
elemento constitutivo, determinante, a reconhecer a diferença’”.
ideologia, e o quanto esse tipo de visão
(ideologizada) descontextualiza o problema, Nesse trecho da análise, destacamos a
não contribuindo para a sua superação. relevância do movimento empreendido pela
pesquisadora, de não se contentar
Voltando à análise realizada por Agnes (pp.130), simplesmente em relatar a fala, mas em
ela afirma: “Interessante observar também que apreender as contradições presentes e buscar
Ferreira, ao tentar apropriar-se dos ‘discursos outras formas de se compreender o fenômeno.
politicamente corretos’ como aqueles que Ainda nesse trecho, evidencia-se a necessidade
apregoam que somos todos iguais e, portanto, de o pesquisador conhecer as várias leituras da
todos somos deficientes, ela incorre em uma questão estudada, de conhecer a literatura
contradição, pois, ao declarar a igualdade de sobre o tema para que possa realizar uma
todos, nega exatamente aquilo que nos análise crítica, questionadora, que possa
singulariza – a diferença. Igualdade, propiciar novas formas de se olhar os
normalidade, deficiência, direito, diferença, fenômenos.
necessidades especiais são conceitos que ela
parece não dominar, ou, no mínimo, são pouco Para se evidenciar a importância de uma
elaborados”. compreensão mais completa da questão a ser
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

estudada, destacamos o esforço analítico presente em nossa sociedade, evidenciando-


realizado pela pesquisadora de inserir questões se principalmente na incipiente participação
relativas a uma situação particular, num do poder público na gestão e financiamento
contexto mais amplo, considerando os da educação das pessoas com deficiência.
aspectos sociais e políticos, inclusive Diante dessa falha ou, por que não dizer,
articulando, em alguns momentos, os diante do descaso do poder público, a
diferentes núcleos. educação do deficiente tem sido
desempenhada quase que exclusivamente por
“Como apontado anteriormente, a entidades assistenciais e filantrópicas que, no
religiosidade é marcante na vida de Ferreira. dizer de Sá (1992, p.15), muitas vezes têm
Da mesma forma que a sua vida é inundada ‘concepções autoritárias baseadas em
‘Então eu levo isso
pela Doutrina Espírita, também o é a sentimentalismos em que o deficiente é
muito a sério, que
concepção apresentada por ela sobre tratado como inferior, subalterno e infantil’”
eu sei que... que
deficiência e sobre a pessoa deficiente. (pp.132).
existe outra vida, e
Entendemos tal concepção como
que eu já tive
naturalizante, ou seja, pouco ou nada analisa Para finalizar as discussões sobre esse núcleo,
outras vidas
os aspectos sociohistóricos imbricados na apontamos ainda que os sentidos e significados
passadas e vou ter
constituição/construção da deficiência. Pelo acerca da deficiência e do deficiente, do modo
outras, no futuro,
contrário, para essa Doutrina, a deficiência e como são apreendidos pela pesquisadora,
então acho que...
suas conseqüências estão ligadas a questões aparecem como algo que faz parte da natureza
eu aceitando isso,
cármicas, isto é, a pecados ligados a vidas humana e que são extremamente atravessados
esse princípio,
passadas. As pessoas deficientes teriam pela religiosidade, o que só pode ser
então eu acho
escolhido vir com deficiências nesta vida a globalmente apreendido também pela
que todos aqueles
fim de resgatar dívidas acumuladas em vidas articulação dos núcleos entre si.
que me procuram
passadas. A terra é considerada uma escola
não me procuram Concluindo nossas considerações sobre as
onde os espíritos, através da experiência,
por acaso não.’ análises realizadas por Célia e Agnes, afirmamos
podem evoluir. Dessa forma, a questão da
deficiência é abordada como se fosse a ordem que, ao recorrerem a algumas das categorias
natural das coisas. Ela acredita que cada um analíticas e metodológicas da Psicologia
de seus alunos é deficiente porque tem algo sociohistórica, criaram as condições de
de outra vida para resgatar, assim como ultrapassar a simples descrição dos dados,
também associa a sua “missão” na APAE como estabelecer relações que até então não haviam
um resgate cármico. sido feitas, detectar a gênese de alguns fatos,
afastar-se de explicações naturalizantes.
‘Então eu levo isso muito a sério, que eu sei
Importante ainda destacar que, para nos
que... que existe outra vida, e que eu já tive
aproximarmos de uma apreensão mais global
outras vidas passadas e vou ter outras, no
do sujeito, é necessária a articulação de todos
futuro, então acho que... eu aceitando isso,
os núcleos levantados. Em alguns casos, pela
esse princípio, então eu acho que todos
qualidade da informação obtida, num primeiro
aqueles que me procuram não me procuram
momento, a análise pode ficar mais circunscrita
por acaso não.’
a aspectos da história do sujeito; entretanto,
ao serem articulados com dados advindos da
Essa visão naturalizante corrobora com práticas
realidade social, cultural e com os outros
assistencialistas e filantrópicas, mas é
núcleos, evidenciam-se outras determinações
importante salientar que esse discurso
fundamentais, fazendo, inclusive, com que os
assistencialista e caritativo não é exclusivo da
dados adquiram outra qualidade. Acreditamos
Doutrina Espírita e de Ferreira. Ele está

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que, nesse movimento de articulação dos núcleos entre si, e com as condições sociais, históricas,
ideológicas, condição de classe, gênero, e, sem dúvida, com os conhecimentos cientificamente
produzidos sobre a área em questão, uma nova realidade surge, mais complexa, integrada, reveladora
das contradições, movimento esse fundamental para a apreensão da constituição dos sentidos.

Temos a clareza, no entanto, da complexidade desse exercício de explicar, de como são múltiplas
as determinações dos fatos. Desse modo, percebemos que, sem dúvida, outros determinantes
poderiam ser contemplados nas explicações realizadas, mas que este é um momento do
conhecimento atingido.

Como já afirmamos anteriormente, uma das marcas desse tipo de análise é ter como meta
desvelar fatos e fenômenos, explicitar contradições e assim, ousar apontar caminhos mais críticos,
menos naturalizantes e ideológicos . Anexo 1

Anotações para análise de entrevista9


Pré-indicadores gerais

● sentimentos e emoções manifestados (felicidade, prazer, tristeza, solidão);


● aceitação (ou não) pelos pais/parentes e por homens e mulheres (chavões ao exemplificar a relação gay x bandido,
gay x ladrão, etc.);
● homossexualidade vista como legal;
● sofrimento na relação com a escola;
● preconceito de alunos e de direção;
● assumir para família (mesmo para quem rejeita? exemplifica apenas os que aceitam!!!!!!);
● não assumir para outros;
● aparência dos gays (masculino x feminino);
● namoro (ficar);
● ciúme, posse, fidelidade no namoro;
● assumir para si / não assumir para o outro;
● não aceitação da homossexualidade da mãe (no início);
● pai não existe para ele;
● assumir-se determinando aceitar a mãe como homo;
● respeito como determinante nas relações com os outros;
● internet (pontos positivos e negativos);
● internet e risco;
● internet e cuidados;
● assumir e mudança na vida pessoal (positivamente);
● o aceitar por parte de amigos;
● amizade e balada;
● amizade e diversão;
● amizade e apoio a situações de depressão;
● amizade e “derrubar” (falsidade, inveja...);
● amizade e idades dos amigos (funções diferentes);
9 Entrevista não utilizada
● necessidade de gays serem unidos (não concretizada); na dissertação de
● homossexualidade como alvo da violência; mestrado de Elcio
● homossexualidade e gueto x outros lugares; Nogueira dos Santos
● assumir x estabilidade profissional ou econômica; Conto ou não Conto? O
Significado e os Sentidos
● parada gay; de Tornar Pública a
● gay x heterossexual (iguais e normais); Orientação Sexual
● normalidade (sentir-se normal); Homossexual para
Adolescentes Masculinos
● amizade básica e fundamental para ele;
da Cidade de São Paulo.
● saúde e prevenção; Psicologia Social. Pucsp,
● sexo seguro; 2004.
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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

● a importância do assumir.
Indicadores resultantes da aglutinação dos pré-indicadores
visando à organização de núcleos

Emoções positivas ou negativas em relação ao homossexualismo

● sentimentos e emoções manifestados (felicidade, prazer, tristeza, solidão);


● homossexualidade vista como legal;
● sofrimento na relação com a escola;
● preconceito de alunos e de direção;
● respeito como determinante nas relações com os outros;
● homossexualidade como alvo da violência;
● amizade básica e fundamental para ele.

Relações de amizade/união entre os homossexuais

● amizade e balada;
● amizade e diversão;
● amizade e apoio a situações de depressão;
● amizade e “derrubar” (falsidade, inveja...);
● amizade e idades dos amigos (funções diferentes);
● necessidade de gays serem unidos (não concretizada);
● homossexualidade e gueto x outros lugares;
● gay x heterossexual (iguais e normais);

Aceitação pelos outros da homossexualidade

● aceitação (ou não) pelos pais/parentes e por homens e mulheres (chavões ao exemplificar a relação gay x bandido,
gay x ladrão, etc.);
● não aceitação da homossexualidade da mãe (no início);
● o aceitar por parte de amigos.

Assumir: para si, para os outros, para a família...

● assumir para a família (mesmo para quem rejeita? exemplifica apenas os que aceitam!!!!!!);
● não assumir para outros;
● assumir para si / não assumir para o outro;
● assumir-se determinando aceitar a mãe como homo;
● Assumir e mudança na vida pessoal (positivamente);
● assumir x estabilidade profissional ou econômica;
● normalidade (sentir-se normal);
● a importância do assumir.

Outros: aparência / namoro e posse / internet / parada gay / saúde e prevenção...

● aparência dos gays (masculino x feminino);


● namoro (ficar);
● ciúme, posse, fidelidade no namoro;
● internet (pontos positivos e negativos);
● internet e risco;
● internet e cuidados;
● parada gay;
● saúde e prevenção;
● sexo seguro.

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Wanda Maria Junqueira Aguiar


Professora titular da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São PauloRua Bagé, 230/182 bloco C -
Vila Mariana 04012-140 São Paulo/SP
E-mail:iajunqueira@uol.com.br

Sergio Ozella
Professor associado da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Rua Martiniano de Carvalho, 669/1101 - Bela Vista 01321-001 São Paulo/SP
E-mail:ozella@uol.com.br

Recebido 18/08/05 Reformulado 17/03/06 Aprovado 24/03/06

G. M. & Furtado, O.(orgs). Psicologia Sociohistórica (uma


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