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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Antropologia e Arqueologia

“O Louvor é uma oração, só que ela é cantada”

Este ensaio consiste em um trabalho apresentado à disciplina Simbolismo e


Ritual, ministrada pelo Prof. Leandro de Oliveira

Alex Soares Costa

Letícia Teixeira Gomes

Belo Horizonte, outubro de 2020


INTRODUÇÃO
A religião evangélica é a que mais tem crescido ao longo das últimas décadas em
território nacional: em 1994 representavam cerca de 14% da população, em 2005 esse
número aumentou para 21% e chegou a alcançar 30% da população brasileira em 2015, da
qual 49% está situada na região Sudeste do país, 23% no Nordeste, 10% no Norte, 9% no Sul
e outros 9% na região Centro-Oeste (DATAFOLHA, 2016). Nesse sentido, é considerável a
importância e a influência de tal religião na sociedade brasileira. O culto é um dos principais
meios de exercer a religião evangélica, proporcionando momentos de comunhão para os fiéis
e é notadamente marcado pela forte presença do Louvor, reconhecido como um dom do
Espírito Santo (NATIVIDADE, 2017: 17).
Neste trabalho pretendemos analisar como o louvor nas Igrejas Evangélicas exerce um
papel fundamental na determinação da temporalidade no culto, delimitando momentos e
abrindo caminhos diversos, a depender das músicas que são entoadas. Seguimos, para tanto,
uma definição próxima à de Peirano (2003), que trata do ritual como um fenômeno que
aponta e revela representações e valores de uma sociedade, mas também que expande,
ilumina e ressalta o que há de comum a um determinado grupo. Para definir o ritual, Mariza
Peirano (2003) usa a definição de Stanley Tambiah (1985):

O Ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica; é constituído de


sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos; a ação ritual pode
ser vista como performática em três sentidos: (1) dizer e também fazer
alguma coisa, (2) participantes experimentam intensamente a performance
que utiliza vários meios de comunicação; (3) valores são inferidos e criados
pelos autores durante a performance (TAMBIAH, 1985 apud PEIRANO,
2003, p. 9)

Performance, no entanto, não assume aqui um sentido relacionado à fingimento ou


inverdade. Trata-se de uma atitude ativa e consciente, que segue um padrão exigido pelo
ritual (por exemplo, uso de uma vestimenta específica), mas não de forma mecânica ou de
atuação. Tratamos os fiéis como envoltos em uma verdade cosmológica válida e com a qual
pretendemos dialogar, afinal, sem assumir essa verdade a crença motivadora do ritual se
esvazia de sentido (SEGATO, 1992).

METODOLOGIA
Para realização do trabalho, foram realizadas entrevistas com fiéis, além do
acompanhamento de um culto online. O culto acompanhado foi o da Primeira Igreja Batista
de Sabará (PIBS), do dia 19 de julho de 2020 às 17:00 horas. O culto foi transmitido ao vivo
pelo canal da Igreja na plataforma YouTube e após a transmissão o vídeo completo ficou
disponível para acessos posteriores. Assistimos à gravação, que tem duração total de uma
hora e trinta e oito minutos, e contava com 131 visualizações quando foi acessado. O culto foi
dividido em três momentos: o primeiro foi a leitura da Bíblia pelo Diácono, que fez também
uma oração; o segundo, de Louvor, é o que mais daremos atenção neste texto; por fim, a
Pregação da Palavra pelo Pastor, que inclui o momento de dízimo e mais um Louvor de
encerramento. Foi entrevistada uma fiel da PIBS, Cristiane, que congrega nessa Igreja há 8
anos e é integrante do Coral da mesma. Também foram entrevistadas Nathalia, congregante
da Igreja Anglicana Âncora; Maria Nilse, que frequenta Igrejas Evangélicas há 28 anos,
atualmente congregando na Igreja Batista da Lagoinha Unidade Areias (Ribeirão das Neves –
MG); e Alice, adepta da religião evangélica há 9 anos e congregante da Igreja Batista Central
em Belo Horizonte.
As entrevistas foram feitas à distância, online, em respeito às medidas protetivas que
encorajam o distanciamento social durante a pandemia. As entrevistadas foram questionadas
sobre como eram os cultos presenciais e quais mudanças perceberam após o isolamento
social. Perguntamos, principalmente, qual a relação que elas têm com o momento de Louvor:
em quais momentos do culto acontecem os louvores? Existem diferenças? Pra você, qual a
importância dos louvores? Quais músicas sua Igreja geralmente canta no começo do culto?
Tem alguma marcante pra você? Qual a mensagem que ela te passa? E no final, tem louvor
também? É diferente do começo? Optamos por usar um formato de entrevista
semi-estruturada que permitiu às nossas interlocutoras que respondessem de forma livre,
tendo as perguntas acima citadas apenas como uma orientação. A entrevista mais curta teve
duração de 6 min e as respostas foram enviadas em áudios pelo Whatsapp; a entrevista mais
longa teve duração aproximada de 32 min.

“O LOUVOR É UMA ORAÇÃO, SÓ QUE ELA É CANTADA”


Van Gennep (2011) analisa a passagem material - portais, portais, soleiras - como
coisas que representam a interdição e que exigem, para permitir a passagem, alguma espécie
de ato ritualístico que prepare aquele que quer atravessá-la. A passagem é uma conexão entre
um mundo anterior e um mundo novo. O Louvor é exatamente isso: ele, num primeiro
momento, purifica os fiéis e os preparam para receber a Palavra de Deus, proferida pelo
Pastor ou Pastora. Conforme explica Douglas (1976), é necessário pureza e plenitude para
estabelecer contato com o divino. Nas entrevistas, essa perspectiva se sobressaiu. Para
Cristiane, o Louvor permite que as pessoas “entrem no ritmo”. De acordo com a
interlocutora, o Louvor do início do culto começa com músicas mais agitadas e alegres que
são sucedidas por louvores que transmitem uma mensagem mais reflexiva. Ela citou uma
música “animada” que lembrou, “Te Agradeço” e depois “músicas para pensar”, como “Creio
que tu és a cura”. Primeiro, então, a pessoa “se solta” (ou, ainda, se liberta, se purifica) e
depois pode meditar através da reflexão. Maria Nilse afirma que:

“Pra mim eu acho que o louvor é o momento mais importante do culto, até
mesmo do que Palavra, porque durante o louvor você já começa a ter uma
comunhão com o Senhor. Aqueles hinos não são por acaso, tudo que canta
ali, toca ali, as vezes coincide… é Deus falando aquilo ali, aquilo ali já vem
de Deus. Deus já tem aquele louvor preparado pra tocar o coração de cada
um que tá ali. Não é que vai tocar no meu coração do mesmo jeito que toca
no do outro, é que cada pessoa que ouvir aquele louvor, com certeza ele tem
algo em comum com aquilo que tá acontecendo e naquele momento ali você
já passa a entregar mais o seu coração pra Deus, já passa a refletir… E
quando começa a Palavra, você já tá com os ouvidos, como se diz,
espirituais já atentos à palavra porque você já foi tocado pelo Espírito Santo
durante o Louvor [...] O Louvor é uma oração, só que ela é cantada”.
(Gravação, acervo pessoal)

A fala de Maria Nilse reflete justamente o Louvor enquanto aquilo que abre
caminhos: é através dele que Deus abre os ouvidos espirituais dos fiéis, durante o culto, para
que possam seguir no ritual. Para este propósito, conforme relata Cristiane, o tipo de música
escolhida tem uma importância fundamental. No Culto acompanhado por nós, a música
inicial é Eu vejo a glória do Senhor hoje aqui, originalmente cantada por Fernanda Brum,
cuja mensagem principal é a de que o divino está presente naquele local.

Eu quero ver agora, o Teu poder


A Tua glória inundando o meu ser
Vou levantar as mãos e vou receber
Vou louvando o Seu nome
Porque sinto o Senhor me tocar
(Trecho da música “Eu vejo a glória do Senhor hoje aqui" de Fernanda Brum)

No contexto do culto online, entende-se que Deus, como entidade onipresente, está
não apenas na Igreja, mas também nas casas dos fiéis que assistem ao culto remotamente. A
segunda música performada pelo grupo de Louvor foi a música “Louve”, originalmente
cantada por Eli Soares, fala sobre promessas de Deus que serão cumpridas, cantando no
refrão “Louve” repetidas vezes. Essa canção fala da importância do louvor: “tudo que tem
fôlego louve ao Senhor, pois Deus habita no louvor. Não importa as circunstâncias, nós
louvamos ao Senhor”. Em meio às performances musicais não é incomum que os Levitas
proliferem algumas mensagens destinadas aos público que os assiste e assim ocorreu quando
o levita, enquanto ministrava seu Louvor disse o seguinte: “você crê que Deus habita nos
louvores? Às vezes a gente tá com o nosso coração abatido, aí você começa a louvar ao
Senhor, parece que foi embora, né, Pastor? Os problemas, as dificuldades... E é assim,
quando a gente começa a louvar ao Senhor o Espírito Santo enche nosso coração, faz a gente
realmente descansar na presença dEle”. Após essa fala, ele começa outra canção, “Mesmo
sem entender”, originalmente cantada por Thalles Roberto, convidando aos que estão em casa
a deixarem seus medos e “descansarem na presença do Senhor” louvando.
Conforme alerta Rabelo (1994, p. 48) é de fundamental importância “identificar e
compreender os processos específicos através dos quais o ritual produz uma transformação da
experiência de seus participantes”. O Louvor, nesse sentido, cumpre essa função de
transformação, conforme pode-se perceber pelas falas tanto do Levita quanto das
entrevistadas. Para Natividade (2017), a música “frequentemente toma um ambiente e tem
um caráter persuasivo, no sentido de produzir efeitos de sensibilização" (NATIVIDADE,
2017: 18). Esse momento do louvor e dos cânticos teria o objetivo de preparar as pessoas,
abrir seus corações para receber o Espírito Santo e a pregação. Assim, para Natividade, o
canto constitui um canal privilegiado para interação de Deus e os homens (idem, ibidem).
Segundo este autor, em geral, todos no culto devem participar do louvor - é comum até
mesmo algumas igrejas utilizarem de equipamentos projetores para reproduzir as letras dos
louvores entoados para que todos possam cantá-las e acompanhá-las. No Culto que
acompanhamos, as letras de todas as músicas foram disponibilizadas na tela,
simultaneamente à transmissão, para que todos pudessem cantar. O Levita insistentemente
dialogava com as “pessoas de casa”, dando orientações: “feche os olhos”, “erga as mãos”,
“cante comigo”.
Natividade (2017) distingue alguns tipos diferentes de louvor, distinções que já foram
ressaltadas pelas entrevistadas: louvores de quebrantamento (tratam da relação entre fiel e
Deus como uma relação de cuidado de cura e milagres); corinhos de fogo (assinalam
fortemente as dimensões da libertação e compreendem uma linguagem da Guerra, falam
sobre os guerreiros de Deus); e outros de adoração e exaltação à Deus (dedicam-se a
explicitar o reconhecimento humano da grandiosidade de Deus) (NATIVIDADE, 2017: 19).
Como também foi expressado por Alice ao dizer sobre os louvores: “os louvores tem mais ou
menos aquele critério… De adoração, de entrega da gente pra Deus” e completou dizendo
que existem ou louvores “para adorar ao Senhor e uns que a gente pede coisas pra Deus”
(Gravação, acervo pessoal). Cada música tem, portanto, um objetivo específico de
intensificar a relação do fiel com a divindade. Inicialmente, são apresentadas músicas mais
animadas que tendem a fazer com que a pessoa se sinta envolvida; a partir de então é
possível, através das músicas mais profundas, a imersão em um estado de conexão e reflexão.
Nathalia, em sua fala, concordou com tais afirmações. Ela disse que:

“Eu não costumo gostar muito das músicas do começo do culto não, porque
são... Não é que são tipo músicas de reteté assim, porque minha Igreja não é
muito Pentecostal, mas normalmente são umas músicas tipo, ai, sabe,
[cantando] ‘vem, essa é a hora da adoração’. E eu não gosto muito dessas
músicas, eu prefiro as músicas da parte penitencial, que são músicas que eu
acho elas mais pesadas, assim, eu acho elas mais profundas, porque passa
para mim a mensagem de como eu sou um ser humano falho, como que cada
vez mais eu tenho que me aproximar de Deus, então para mim são as
músicas que eu mais gosto.” (Gravação, acervo pessoal)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das narrativas expostas pelas interlocutoras que foram entrevistadas, pudemos
compreender melhor o papel dos louvores na vida dessas pessoas e como estes compõem
parte fundamental dos processos ritualísticos dos cultos de proliferação da fé evangélica. É
importante ressaltar que os louvores não são restritos aos momentos do Culto. Por estarem
disponíveis em diversas plataformas e possuírem fácil acesso, os louvores ocupam o
cotidiano das fiéis entrevistadas, “os louvores não são só na Igreja, a gente também louva em
casa. Às vezes tá limpando casa e põe louvor, tá limpando quarto, aí põe louvor. É um
momento de conexão com Deus indiferente do ambiente que a gente esteja”, afirma Alice
(Gravação, acervo pessoal).
1- Louvai ao SENHOR. Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no
firmamento do seu poder.
2- Louvai-o pelos seus atos poderosos; louvai-o conforme a excelência da
sua grandeza.
3- Louvai-o com o som de trombeta; louvai-o com o saltério e a harpa.
4- Louvai-o com o tamborim e a dança, louvai-o com instrumentos de
cordas e com órgãos.
5- Louvai-o com os címbalos sonoros; louvai-o com címbalos altissonantes.
6- Tudo quanto tem fôlego louve ao Senhor. Louvai ao Senhor. (A BÍBLIA,
Salmos, 150: 1-6)

Além de atuarem como uma fonte de interação com o divino, os louvores também
reproduzem códigos de condutas que devem ser adotadas. Em trabalhos anteriores, Costa
(2020) discorre sobre como os clipes de músicas de grupos evangélicos, especificamente
sobre aqueles produzidos para o público infantil, reforçam dicotomias de gênero. Por outro
lado, Natividade (2017) ao lançar atenção às performances de levitas em igrejas inclusivas -
que conciliam a vida religiosa e práticas homossexuais - deduz que através das ministrações
musicais são realizadas subversões nos padrões de gênero. Desta forma, percebe-se como os
louvores constituem mais do que parte fundamental dos cultos, mas uma prática cotidiana que
regula e prescreve comportamentos considerados adequados à vida cristã além de operarem
como uma forma de estar mais próximo de Deus e sua benevolência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Alex Soares. (Des)Construindo masculinidades: estudos de gênero na arqueologia.


Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 2020. No prelo;

DATAFOLHA. 44% dos evangélicos são ex-católicos. Instituto de Pesquisas Datafolha,


Opinião pública, dossiês. São Paulo, dez. de 2016. Disponível em:
<https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/12/1845231-44-dos-evangelicos-sao
-ex-catolicos.shtml>. Acesso em 18 de out. de 2020.

DOUGLAS, Mary. As abominações do Levítico. _____. Pureza e perigo. São Paulo,


Perspectiva, p. 57-74, 1976.

HERTZ, Robert. A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa.


Religião e sociedade, v. 6, n. 99-128, p. 1909, 1980;

MILLER, Daniel. Por que a indumentária não é algo superficial. Trecos, troços e coisas, p.
21-65, 2013;

NATIVIDADE, Marcelo Tavares. Cantar e dançar para Jesus: sexualidade, gênero e religião
nas igrejas inclusivas pentecostais. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, p. 15-33,
Jan. 2017;

PEIRANO, M.. Rituais: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003;

RABELO, Miriam Cristina M. Religião, ritual e cura. Saúde e doença: um olhar


antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 47-56, 1994;

SEGATO, Rita Laura. Um paradoxo do relativismo: O discurso racional da antropologia


frente ao sagrado, Religião e Sociedade vol. 16, 1992.

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