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OS PROTEGIDOS

título original Die Schutzbefohlenen


de Elfriede Jelinek
tradução e dramaturgia de Anabela Mendes
direção artística de Pedro Alves
banda sonora original de Maria da Rocha

FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA


Texto Elfriede Jelinek | Tradução e dramaturgia Anabela Mendes | Direção
artística Pedro Alves | Interpretação João Pedro Leal, Philippe Araújo, Rafael
Barreto e Rita Morais | Banda sonora original Maria da Rocha | Cenografia Pedro
Silva | Figurinos Catarina Graça | Direção de movimento Esther Latorre e Hugo
Pereira | Apoio de voz e texto João Henriques | Direção técnica, desenho de luz
e operação Carlos Arroja | Apoio técnico Diogo Graça | Direção de produção Inês
Oliveira | Assistência de encenação Maria Carneiro e Milene Fialho | Fotografia e
produção executiva Catarina Lobo | Costureira Rosário Balbi | Apoio à criação
em residência Alma d’Arame e DEVIR CAPa | Parceria Mestrado Processos de
Criação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve |
Apoios 5àSec Rio de Mouro, Synthomer, Junta de Freguesia de Algualva e Mira Sintra
| Produção teatromosca | Coprodução Colectivo Glovo, Teatro Diogo Bernardes,
Teatro Nacional São João e Theatro Circo | Agradecimentos Teatro Nacional D. Maria
II, Show Ventura | O teatromosca é uma estrutura financiada pela República
Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes e pela Câmara Municipal de Sintra.

A Rowohlt detém os direitos de apresentação da obra de Elfriede Jelinek no teatro. ​



Classificação etária: M/16 Duração: 150 minutos

QUE PAÍS É ESTE QUE NOS ACOLHE E NOS REPELE?


Sob a forma de uma marcha de protesto, cerca de 150 candidatos a asilo
deslocam-se, a 24 de Novembro de 2012, da igreja de Trais, no distrito de Baden, em

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direcção a Viena. Após 35 Km de caminho, uma parte desses deslocados alcança o
parque Sigmund Freud, então transformado em acampamento temporário. A 28 de
Dezembro desse mesmo ano, o espaço criado para receber migrantes e refugiados é
desmantelado sob vigilância policial por guardas
armados até aos dentes. Num gesto de boa vontade, a congregação de religiosos da
Igreja Votiva, situada junto ao parque, resolve albergar, no interior desse edifício,
cerca de 40 pessoas pertencentes ainda ao grupo inicial. A igreja católica austríaca
torna-se, assim, na guardiã do destino provisório daqueles que apelavam a um
espaço de refúgio e asilo. No seio de uma sociedade próspera e muito conservadora,
este episódio denuncia uma política de protecção a candidatos a refúgio que se torna
num verdadeiro alarme social.

O texto dramático de Elfriede Jelinek, “Os Protegidos” (2012-2015), projecta e


interroga até à exaustão o que em geral não nos é dado conhecer de forma directa.
Estamos ao lado do que é vida e memória em insurrectas vozes, através das quais
acompanhamos a vida da Europa configurada por obscuros negócios e benesses. E é
essa mesma Europa que também nos abala com naufrágios, nos faz atravessar a pé
todo um continente, nos esconde em camiões e aviões em busca de uma Terra
Prometida. Será que ela existe? Ou é uma disfuncionalidade?

«Estamos vivos. Estamos vivos. O que importa é que estamos vivos.».

Anabela Mendes
1.11.2023
[A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico]

Como não desaparecer, completamente?


Há uma música dos Radiohead em que o Thom Yorke canta, naquele seu jeito
arrastado, qualquer coisa como: “isto não está a acontecer, eu não estou aqui”. Num
momento de desespero, tensão, sofrimento, desconforto, quem nunca desejou

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desaparecer e deixar de ser visto? Contudo, outros lutam para não serem apagados,
querem ser notados. Alguns, foram expulsos à força dos seus países ou deles fugiram
e agora não encontram refúgio em nenhum outro. No fundo, perderam o seu lugar no
mundo e é como se tivessem sido eliminados da face da Terra, procurando resistir
com as poucas forças que lhes restam. Noutros tempos, os “monstros” eram as
bruxas, os fantasmas, os vampiros, os zombies. Hoje em dia, num mundo sempre
mergulhado em guerras e atormentado por essa terrível “praga” das migrações
forçadas, quando, recorrentemente, se vão (re)erguendo governos totalitários,
quando governam a intolerância, o ódio e os extremismos ideológicos, os
estrangeiros, os estranhos, aqueles que procuram proteção, que suplicam por auxílio,
aqueles que pedem asilo, os refugiados são a nova “peste”. É preciso fazê-los
desaparecer, que raio! O que é que eles querem daqui?

Se, por um lado, parecemos estar cada vez mais desesperados por nos
relacionarmos, simultaneamente, parecemos estar cada vez mais desconfiados das
ligações permanentes que podemos estabelecer com outros seres humanos,
favorecendo antes as conexões operacionalizadas pelas redes virtuais, criando laços e
(ex)terminando-os à velocidade de um toque no ecrã. Segundo Zygmunt Bauman, o
que carateriza este “mundo líquido” do consumismo em que vamos (sobre)vivendo
não é a acumulação de bens, mas antes o facto de os usarmos e descartarmos, muito
fácil e rapidamente, de modo a abrirmos espaço para outros bens. “A vida consumista
favorece a leveza e a velocidade”, afirmava o filósofo polaco. E agora já não são
apenas os objetos que são consumidos (ou não) e descartados (abandonados,
destruídos ou reciclados), mas também as pessoas, outros seres humanos que são
vistos e tratados como mercadoria, consumida, trocada, dissolvida, aniquilada,
ignorada...Tantas vezes nos perguntamos se os outros não são úteis? São
desagradáveis? Indigestos? Que volume de prazer nos proporcionam? Que valor
acrescentam às nossas vidas? Sim, porque é só de mim que se trata, só eu interesso.
Assim, Bauman concluía - de um modo bem inconveniente, meu deus! - que “[a]
solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado
consumidor.” Mas, no fundo, de que nos servirá estarmos vivos, como é dito no
arranque do texto de Elfriede Jelinek que agora levamos a cena, se o mais precioso

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dos valores da humanidade, a dignidade, nos é roubado. Parece que não nos resta
mais do que sobreviver a todo o custo, buscarmos algum tipo de afirmação pessoal no
meio desta massa de gente virada, quase exclusivamente, para dentro de si, tendo-se
a si mesma como referência, como modelo, a querer superar-se e ultrapassar-se a si
mesma a qualquer preço, para criar e apresentar sempre, a todo o instante, uma
melhor versão de si. Nos nossos perfis – essa versão achatada e chata das nossas
realidades -, todos queremos parecer (e, no fundo, ser!) cool. “Frios”. É preciso que
façamos a tradução? Qualquer indício de uma relação próxima, permanente, quente,
conflituante (e o que nunca se poderia tolerar, violenta, imagine-se!), levará,
imediatamente, a um corte, um swipe left, ao apagamento, ao bloqueio. Dizia-se, no
olho do furacão pandémico que nos envolveu há pouco tempo, que sairíamos de toda
aquela agitação mais fortalecidos, mais unidos... Mas que força é essa, afinal? E o que
nos une, verdadeiramente? Que enorme bolo somos nós agora? É este o caminho que
queremos seguir, até um dia ficarmos completamente gelados, acabarmos
congelados, empurrados de um lado para o outro dentro de arcas frigoríficas?

Deportações e expulsões criam espetáculos mediáticos perturbadores e incómodos.


Que aborrecimento! Assim, a maioria das “soluções” apresentadas por governos e
governantes, atualmente, passa por erguer muros e gigantescas vedações de arame
farpado, para manter longe do olhar do seu público aqueles seres monstruosos que
ninguém convidou, os indesejados. Eles deverão exterminados, apagados! Parece ser
esse o plano em marcha há muito, por todo o lado. “Viemos, mas não estamos de
todo aqui!”, cospem na nossa direção, na última frase deste texto avassalador e
implacável que a autora austríaca começou a escrever ainda em 2012 e que a nossa
querida amiga Anabela Mendes traduziu – tarefa heroica, sem dúvida! Preparem-se
para o massacre. Contra a insensibilidade e a desumanização, contra a apatia e a
intolerância, alguns lutam para se fazerem ouvir, suplicam por proteção, exigem
respeito e dignidade, resistem para não desaparecer, completamente. “E? E agora o
quê?”

Pedro Alves
21.11.2023

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